Prostituição infantil: uma realidade que preocupa
Com a possibilidade da aprovação do projeto de lei do deputado Fernando Gabeira e da regulamentação que essa medida pode ensejar, surge uma dúvida: como fica a questão da prostituição infanto-juvenil?
Tiago Barbosa
A prostituição é uma atividade que convive ao lado de uma prática considerada, pela sociedade, nociva e capaz de enterrar o destino de pessoas que nem sequer brotaram para a vida. A constatação de crianças e adolescentes usando o corpo para ganhar dinheiro preocupa autoridades e os que querem dissociar desse cenário a profissão que reivindicam como legítima. Com a possibilidade da aprovação do projeto de lei do deputado Fernando Gabeira (PV-RJ) e da regulamentação que essa medida pode ensejar, surge uma dúvida: como fica a questão da prostituição infanto-juvenil? É o que a Folha debate nessa quinta reportagem da série.
A unanimidade é quase atingida quando o assunto é prostituição infanto-juvenil. Pessoas envolvidas de alguma forma com o tema dizem que é um equívoco colocar a atividade praticada com crianças e adolescentes no mesmo patamar dos serviços feitos por profissionais do sexo. Quando se trata dessa juventude, aliás, a denominação utilizada é até diferente. Em vez de se referirem à realidade como prostituição, o que vigora é o termo “exploração sexual”. A coordenadora do Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, Neide Castanha, acredita que o debate travado entre uma possível associação do reconhecimento da prostituição com a exploração sexual é uma questão encerrada.
A Organização das Nações Unidas (ONU) solicitou aos países membros, segundo ela, que elaborassem uma lista de atividades que julgavam perniciosas à infância e à adolescência. O Brasil, de acordo com Neide, colocou no topo deste ranking a prostituição. “Trata-se de uma forma de trabalho que compromete o desenvolvimento psicológico, físico, moral e social das pessoas que se encontram nessa faixa etária”, acusa. A lógica por trás do argumento dela é o de que, até os 18 anos, os jovens não estão preparados para fazer a escolha pela prostituição. “Esse é o período em que eles estão na fase de consolidação das escolhas, do amadurecimento. A classe média não deixa, por exemplo, seus filhos fazerem opções de tamanha magnitude antes de completar essa idade. Por que deixaríamos que os desamparados as fizessem?”, questiona.
Neide acredita que o raciocínio não se apóia em falsos moralismos ou preconceitos, mas em uma coerência que ela garante ser perseguida pelas políticas sociais do País. “Condenamos a infração ao menor de idade e a gravidez precoce. O mesmo ocorre com a exploração sexual infanto-juvenil”, compara. A coordenadora deixou claro, no entanto, que nada tem contra a prostituição exercida por quem tem mais de 18 anos e diz que conta com o apoio, nessa forma de pensar, dos profissionais do sexo. Ela entende como legítima a luta pela regulamentação e descarta que, se ela vier, a entrada de jovens na atividade será impulsionada.
Apesar de condenável, a exploração sexual infanto-juvenil existe e está enraizada em grande parte do território nacional. O mais recente levantamento feito para estudar a incidência da prática no País data de 2005 e constatou que ela está em 932 dos 5.561 municípios brasileiros. A Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH) e a Universidade de Brasília (UNB) verificaram que a situação é pior no Nordeste, onde 298 cidades (32%) acolhem a exploração. A região é seguida pelo Sudeste, com 241 (25%), Sul, com 162 (17%), Centro-Oeste, com 127 (13%) e Norte, com 109 (12%).
Um outro termômetro para dimensionar a exploração é o disque-denúncia da SEDH, criado em 2003. O órgão recebeu, até 2006, mais de 120 mil ligações. Cerca de 17 mil denúncias foram encaminhadas às instituições que combatem a prática. Os números podem ser ainda maiores, revela a secretaria, porque muitos municípios ainda não utilizam com a intensidade necessária o serviço. Mas são ligações como essas que podem ajudar a denunciar o definhamento de vidas como a de Kelly, de apenas 15 anos. Ela, que na verdade é um travesti, trabalha nas ruas há dois anos e diz “penetrar rapazes com namoradas e casados”. Sem segurança, fala que está trabalhando no que gosta, mas faria algo menos “desconfortável”.
Exploração sexual infanto-juvenil: um problema, cinco dimensões
Ivanise Andrade
Domingo, 23 de novembro de 2003, 17:47
De acordo com o CECRIA (Centro de Referência, Estudo e Ações sobre Crianças e Adolescentes), existem cinco dimensões concretas de como o fenômeno da exploração, abuso sexual e maus-tratos se apresentam e sua articulação com as atividades econômicas no contexto em que aparecem e se desenvolvem, relatadas em Fundamentos e Políticas Contra a Exploração e Abuso Sexual de Crianças e Adolescentes, de 1997. A primeira dimensão é o abuso sexual que ocorre na família e tem favorecido a expulsão de crianças e adolescentes para as ruas e para a prostituição. A CPI da prostituição infanto-juvenil revelou que 50% dos estupros são incestuosos, ou seja, cometidos por algum familiar.
A segunda dimensão refere-se à exploração de crianças e adolescentes em prostíbulos fechados, principalmente onde há um mercado regionalizado com atividades econômicas extrativistas. Nesses locais, a exploração está ligada a situações de cárcere privado, venda, tráfico, leilões de virgens, mutilações, desaparecimentos e assassinatos.
A violência sofrida por crianças e adolescentes em situação de rua apresenta-se como a terceira dimensão. As crianças saem de casa, onde foram vítimas de violência física, sexual, submetidas a situações de miserabilidade ou negligência, e passam a sobreviver nas ruas usando o corpo como mercadoria para obter afeto e sustento.
A quarta dimensão diz respeito ao turismo sexual e à pornografia, principalmente nas regiões litorâneas de intensa atividade turística. É essencialmente comercial, organizada em redes de aliciamento, que incluem agências de turismo, hotéis, comércio de pornografia, taxistas e outros. São exploradas principalmente adolescentes do sexo feminino, pobres, negras ou mulatas. O tráfico internacional está inserido nesse contexto.
Por fim, é descrito o turismo náutico, que acontece em regiões banhadas por rios navegáveis da região Norte, fronteiras e zonas portuárias. Caracteriza-se pela comercialização do corpo infanto-juvenil para atender aos turistas, à tripulação de navios cargueiros e à população ribeirinha.
O texto do CECRIA destaca que a exploração sexual comercial infanto-juvenil está "ligada diretamente a situações de violência sexual doméstica, tráfico de drogas e de mulheres, a organização de redes de aliciamento e exploração, à conivência e participação da polícia, além da impunidade dos agressores e exploradores". Além disso, as questões culturais de dominação, força e poder de homens sobre mulheres e crianças não podem ser desconsideradas.
Dominantes X dominados
A exploração sexual comercial de crianças e adolescentes resulta, conforme texto da pesquisadora Maria Elena Laurnaga, publicado nos Anais do Seminário Contra a Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes das Américas, de várias relações de poder, como os padrões de gênero, que incluem os padrões culturais de reprodução e dominação dos homens sobre as mulheres, hierarquia familiar, status social, poder econômico, prestígio, violência, sedução e ofertas de proteção.
A violência sexual como um todo tem relação com as definições dos papéis sociais feminino e masculino, ou seja, com o estudo de gênero. Culturalmente e historicamente, o papel social do homem é definido como provedor, dominante. Já a mulher e os menores de idade são vistos como as vítimas. Segundo Kathleen Mahoney, citada pelo CECRIA/1997, "os valores e prerrogativas culturais que definem o papel sexual masculino tradicional são o poder, a dominação, a força, a violência e a superioridade. Os valores e prerrogativas culturais que definem o papel sexual feminino são a submissão, a passividade, a fraqueza e a inferioridade".
Assim, com o estereótipo da supremacia masculina, Kathleen Mahoney afirma que "a dominação e a subordinação são sexualizadas, o que leva à idéia de que os homens têm o direito aos serviços sexuais da mulher. Implicitamente o abusador assume que é sua prerrogativa fazer sexo com qualquer mulher que ele escolha, uma vez que o uso das mulheres como objeto pelos homens está legitimizado ou enraizado na cultura".
O gênero pode ser definido, segundo a psicóloga social Jacy Curado em texto publicado na cartilha Exploração Sexual Infanto-Juvenil e o Turismo em Mato Grosso do Sul, editada pelo IBISS (Instituto Brasileiro de Inovações de Saúde Social), como sendo "as maneiras de significar as relações de poder e uma forma de organização estrutural da sociedade, ajudando a compreender como os aspectos psicológicos, sociais e políticos são moldados individualmente de acordo com o sexo".
São construções culturais que tentam definir os papéis sociais e sexuais de homens e mulheres, educados de maneiras diferentes, para agirem de acordo com seu sexo e terem atitudes que condizem com os modelos produzidos pela sociedade. Conforme a educadora Constantina Xavier, em Criança e Sociedade: As Relações de Gênero e a Educação Social, texto publicado no livro Dez Anos de Estatuto: A Construção da Cidadania da Criança e do Adolescente, "o estereótipo de gênero criado pela sociedade define como homens e mulheres devem viver sua masculinidade ou feminilidade".
A questão de gênero traz arraigadas na sua definição opiniões pré-determinadas, formadas socialmente, que dividem os indivíduos em duas categorias, como por exemplo, homem não chora, mulher é mais sensível e pode chorar. O problema é que a sexualidade humana forma-se num ambiente com influências da família, escola e igreja, que passam conceitos e pré-conceitos sobre o que pode e o que não pode. As mulheres são educadas para serem mães, por isso o ato sexual em si tem outras concepções. "Mulher não tem direito aos prazeres da vida", conclui a educadora, baseada no estudo dos estereótipos de gênero.
Para a psicóloga e pesquisadora Dulce Whitaker, citada por Constantina Xavier, "as mulheres são educadas para serem submissas, meigas, dona-de-casa, boa mãe, já os homens carregam a missão de serem namoradores, machões, jogadores de futebol, reprodutores". A sociedade dita normas de educação diferenciadas para meninos e meninas. Assim, o aspecto biológico e o social se aproximam, determinando o tipo de educação de gênero. De acordo com Joan Scott, em seu livro Gênero: Uma Categoria Útil de Análise Histórica, "o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos". A pesquisadora afirma também que o sujeito forma-se a partir de uma "identidade de gênero, uma identidade de classe e uma identidade étnico-racial".
Desta forma, a sexualidade é produzida socialmente pelos sujeitos e pelas instituições sociais, e faz parte de um processo histórico, fruto de uma arquitetura social e cultural. A sexualidade assume um conceito mais amplo, já que não está só ligada ao ato sexual, mas também aos papéis sexuais definidos para homens e mulheres.
Identidade adolescente
A questão de gênero, das diferenças entre homens e mulheres, é mais perceptível quando a criança e o adolescente estão formando sua identidade. Essa é a fase dos questionamentos e das contradições sobre essa ou aquela conduta, sobre o que é ou não permitido. A psicóloga Zaira de Andrade Lopes diz, no artigo As Relações de Gênero, a Menina Adolescente, publicado no livro Dez Anos de Estatuto: A Construção da Cidadania da Criança e do Adolescente, que a adolescência é a época de planejar a vida, fase em que o adolescente confronta as informações para formatar sua identidade, que nada mais é do que a soma da personalidade, nata no indivíduo, com o estilo social.
É normal a fase da busca de si mesmo, de procurar aquilo que o caracterize. Por isso, o adolescente junta-se a grupos para firmar sua identidade, como forma de esclarecer suas dúvidas. Nesse momento, cria fantasias e entra em conflitos. "O adolescente quer refletir sobre suas crises de identidade e uma delas é a evolução sexual", afirma Zaira Lopes. Conflitos, contradições excessivas e a percepção da saída do mundo infantil são algumas das mudanças que acontecem nesse período.
Segundo a psicóloga, na sociedade atual, o adolescente passa por um processo de adaptação às exigências e aos modelos desta sociedade. "A menina deve ser sedutora, ao mesmo tempo em que a contradição diga que isso não pode, porque está provocando o homem, já o menino deve ser o máximo", ressalta. O gênero, com sua definição de poder, superioridade e dominação, passa a ter papel importante na formação dessa identidade. Quando, porém, a criança ou adolescente passa por situações de violência sexual, acontece um impacto negativo no seu desenvolvimento biopsicossocial, determinando a "formação de uma identidade ou personalidade dominadora ou submissa, atrelada a valores como poder, superioridade, inferioridade e subordinação". Há estudos segundo os quais a maioria dos adultos que abusam e exploram sexualmente menores de idade também têm a marca da violência sexual no corpo e, pior, na mente.
Falso moralismo
Apesar disso, de acordo com a psicóloga social Jacy Curado, "normalmente, a
questão da exploração sexual de crianças e de adolescentes tem explicações moralistas para avaliar suas causas". Segundo ela, o vínculo entre as relações sociais que organizam a exploração sexual e as relações de produção prevalece em qualquer tempo e não podem ser desconsideradas. "Falar de exploração sexual infanto-juvenil é, antes de tudo, falar da relação meninas e meninos prostituídos X homens/mulheres/exploradores/prostituintes".
As manifestações de exploração e violência da sexualidade humana, o uso do
corpo como um instrumento para produzir serviços, prazer ou realizar fantasias, a despeito da vontade do indivíduo, têm permeado vários tipos de relações sociais, como escravidão, república e ditadura, ao longo da história. É fato que tanto a prostituição adulta quanto a infanto-juvenil atingem muito mais mulheres e meninas do que pessoas do sexo masculino. O fenômeno, então, está relacionado com a organização social de gênero da sociedade, já que os aspectos psicológicos, sociais e políticos são moldados individualmente de acordo com o sexo.
A submissão feminina e a dominação masculina estão presentes em todas as sociedades, das mais variadas culturas ao longo da história, independentemente da classe social. A exploração masculina sobre a mulher, a criança e o adolescente acaba sendo considerada como natural. Heleieth Saffioti, em Violência de Gênero: Poder e Impotência, conclui que "o macropoder é macho, branco e rico".
Exploração econômica e social
O Brasil é quinto país mais populoso do mundo e apresenta uma taxa de 40% de pobres distribuídos de forma desigual por seu território. Os Estados da região Norte e Nordeste figuram como os mais pobres. De acordo com a AIDP (Associação Internacional de Direito Penal), citada pela PESTRAF (Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para fins de Exploração Sexual e Comercial), em 1999, 15,1 milhões de pessoas, o que equivale a 9% da população, viviam com um dólar por dia e 37 milhões, 22%, estavam abaixo da linha de pobreza, vivendo com renda média mensal inferior a R$ 60,00.
Somados os números, a estimativa é de que mais de 50 milhões de brasileiros vivam na miséria. Segundo relatório divulgado em 2003 pela OIT (Organização Internacional do Trabalho), em todo o mundo, três bilhões de pessoas vivem na pobreza com renda menor de US$ 2,00 por dia. A desigualdade social aumenta ainda mais com a má distribuição de renda.
Conforme o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), na década de 90, os 50% mais pobres ficaram com 14% da renda do País, enquanto que o 1% mais rico ficou com 13%. O levantamento mostra ainda que pelo menos quatro milhões de famílias com crianças de zero a seis anos de idade vivem com menos de meio salário mínimo per capita.
O agravamento da exclusão social é acompanhado pelo aumento da taxa de desemprego, que saltou de 3%, em 1989, para 9,5% da população economicamente ativa, em 1998, conforme relatório da PESTRAF. Atualmente, estima-se que existam, no Brasil, cerca de 25 mil trabalhadores em situação de escravidão, principalmente no sul do Pará.
De acordo com levantamento realizado pelo PISDEC (Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais), em 2000, e citado pela PESTRAF, residem no Brasil cerca de 28 milhões de pessoas na faixa etária de sete a 14 anos de idade. Dados do Ministério da Educação mostram que existe uma escolarização líquida de 95,5% no ensino médio. Considerando a porcentagem de evasão escolar "devem existir cerca de dois milhões de crianças e adolescentes fora da escola", concluem os pesquisadores da PESTRAF. Essa população engrossa o índice de analfabetismo no Brasil. As estatísticas mostram que 17,2% de pessoas de sete a 10 anos e 15,7% da população com mais de 10 anos de idade são analfabetas.
As desigualdades no sistema educacional, as altas taxas de repetência, evasão escolar e distorção entre a idade e a série, acompanhadas pela situação de miséria, violência estrutural e doméstica têm empurrado milhares de crianças e adolescentes para o trabalho infantil. De acordo com o Censo 2000 realizado pelo IBGE, a população de crianças e adolescentes economicamente ativas no Brasil é de 10,2 milhões. Desse total, 3,4 milhões têm entre cinco e 14 anos de idade. Apesar de ter havido uma queda de 2,9% na inserção de menores de 14 anos no mercado de trabalho, entre 1992 e 1999, a OIT ressalta que não existe uma tendência continuada e progressiva de redução do trabalho infantil no Brasil, conforme relata o texto da PESTRAF.
A violência estrutural resulta, de acordo com o CECRIA, de relações econômicas precárias, em que a associação da pobreza com as relações internacionais de dependência cria situações favorecedoras da exclusão e as desigualdades sociais que levam à exploração de "muitos para garantir o privilégio de poucos". A miserabilidade afeta as relações sociais e familiares, gerando a violência doméstica, e favorece as migrações, a busca pelo emprego e o alcoolismo. A conseqüência da soma desses fatores é o aumento do número de crianças e adolescentes que fogem de casa e passam a viver nas ruas possibilitando a exploração sexual.
Dominação do corpo infantil
A exploração sexual infanto-juvenil é um tipo de violência que se caracteriza pela venda de um produto objetivo, o corpo da criança, explorando um mercado subjetivo, o prazer que alguns têm de relacionar-se sexualmente com crianças, cultivando assim um desvio do comportamento sexual humano.
A violência sexual contra crianças e adolescentes é crime e fere principalmente o artigo 5º do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente). O texto estabelece que "nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais".
A partir do ECA, a criança e o adolescente passaram a ser considerados como sujeitos de direitos e não mais como objetos de intervenção, controle social e repressão. Apesar das iniciativas e das mudanças de comportamento, esta situação se reflete até hoje.
A pesquisadora Eva Faleiros, em seu livro Repensando os Conceitos de Violência, Abuso e Exploração Sexual de Crianças e de Adolescentes, afirma que a dificuldade de mudança de comportamento tem relação com a "compreensão autoritária do pátrio poder, ou seja, o poder exercido pelo pai, e por concepções socializadoras e educativas baseadas em castigos físicos, que acabam passando pelo descaso e tolerância da sociedade".
Segundo ela, a ideologia machista e de idade, que compõe as relações sociais de gênero, "autoriza e avaliza o uso de poder pelos adultos sobre os mais jovens e mulheres". De acordo com a pesquisadora, não se pode negar que a violência sexual implica uma relação de poder, autoritária, na qual se confrontam poder e experiência desiguais, sendo sempre danosa à criança e ao adolescente.
Assim, "a violência sexual, por seu caráter íntimo e relacional, é de extrema gravidade, pois adquire particularidades que a tornam muito mais complexa e grave, a partir do momento que cria estruturas psíquicas e sociais, principalmente em crianças e adolescentes que estão em fase de desenvolvimento de suas funções físicas, sociais e psicológicas", afirma.
Trata-se do envolvimento de crianças e adolescentes em atividades sexuais impróprias para sua idade ou seu desenvolvimento psicossexual, que ainda não têm capacidade de compreender ou dar consentimento. São abusivas, incluindo as de caráter comercial. "A dominação, presente na violência sexual e agravada nos casos em que o dominado é uma criança ou adolescente, é um processo construído pelo dominador e/ou pela rede", destaca Eva Faleiros. Essa dominação é possível e facilitada pela vulnerabilidade e imaturidade da criança ou adolescente.
Conforme a pesquisadora, a rede de silêncio, tolerância, conivência, medo, impunidade, tanto de membros da família, como de amigos, vizinhos, colegas de escola, faz com que a criança ou o adolescente dominado sexualmente encontre-se duplamente vitimizado: pelo violentador e pela rede. O abusador pode aparecer como a figura do provedor econômico ou protetor, vitimizando e dominando ainda mais a criança ou adolescente explorado.
Além da ligação da exploração sexual de crianças e de adolescentes com questões culturais e históricas, que produziu uma sociedade machista, escravagista e dominante, existe o caráter econômico, voltado para o trabalho e a comercialização via mercado do sexo. O fenômeno é permeado por uma trama de interesses, em que as situações de miséria, inferioridade, ignorância, violência física e estrutural em que as pessoas se encontram favorecem a inserção de menores de idade no mercado do sexo, que se aproveita dessa vulnerabilidade.
Vende-se prazer
Por ter essa característica econômica, a exploração sexual comercial é avaliada pelos conceitos de exploração, trabalho, mercado do sexo e comércio sexual. Pelo lado capitalista da questão, tem-se a oferta, a demanda, a mercadoria, a troca, a venda e o contrato, que servem de paralelo para a definição da exploração sexual comercial exatamente como um trabalho, uma venda, com apenas um objetivo: o lucro.
De acordo com Eva Faleiros, o funcionamento do mercado e da indústria do sexo, nos quais trabalham milhares de crianças e adolescentes, "gira em torno de um contrato sexual pré-estabelecido, em que o que é negociado, além do prazer oferecido, é a troca por proteção. A liberdade transforma-se numa relação de obediência e subordinação, em troca de condições de sobrevivência, traduzidas em salário, remuneração, alimentação, habitação".
As crianças e adolescentes sacrificam a liberdade e o direito pelo próprio corpo por quantias ínfimas, um prato de comida ou um pouco de droga. O ingresso no mercado do sexo passa, então, pela necessidade de sobrevivência e pelas fantasias, diferentes no adulto e na criança. Para Marcel Hazeu, citado por Eva Faleiros, "o mercado do sexo é inaceitável porque é prejudicial à pessoa em desenvolvimento e por provocar uma violação de direitos".
A família, nesse mercado, figura como a provedora, já que muitas vezes é obrigada a "vender" as crianças ou adolescentes, que não têm ainda condições psicossociais para discernir o certo do errado, tampouco de optar. No comércio sexual e na indústria pornográfica, são várias as formas de trabalho da mão-de-obra adulta e infanto-juvenil empregada. Segundo a pesquisadora, "através desse trabalho é produzido valor de troca e valor de uso". As garotas geram lucro para os proprietários de empresas industriais e comerciais e são, portanto, crianças ou adolescentes exploradas.
Conforme Eva Faleiros, "no mercado do sexo, há a comercialização e a produção da mercadoria serviços e produtos sexuais. Trata-se de um produto subjetivo - o prazer -, que passa a ter valor de uso para os consumidores/clientes". O mercado do sexo é muito amplo, existem milhares de consumidores e uma oferta enorme de produtos e serviços sexuais. Eva Faleiros conclui que "a variedade deve-se aos níveis de qualidade, de consumidores, de profissionais que empregam, de preços. Além disso, é um mercado extremamente lucrativo, florescente, presente em quase todos os países do mundo". No funcionamento do mercado, os aliciadores buscam as trabalhadoras e os trabalhadores onde existe a oferta de produto que eles procuram. Isso significa que o preço também determina o tipo de serviço e de consumidor.
Quem manda é o explorador
A figura constante no mercado do sexo é o explorador. Esse personagem pode
caracterizar-se, conforme o relatório da PESTRAF, como o consumidor, o aliciador ou como aquele que ajuda a cooptar a vítima para a rede criminosa do tráfico.
Assim como no mercado do sexo, no tráfico, o explorador pode ser qualquer pessoa que demande mulheres, crianças e adolescentes para serem explorados pelas redes de favorecimento do tráfico. Segundo a pesquisa, a demanda é "a ação de pessoas que procuram ou buscam aliciar e/ou consumir serviços sexuais de mulheres, crianças e adolescentes visando à comercialização ou à satisfação de desejos sexuais". É a demanda que define o perfil do explorador ou aliciador e também da pessoa a ser explorada sexualmente pelo mercado do sexo.
No comércio do sexo, as pessoas exploradas estão sempre vinculadas à dívida
contraída com os empregadores. Os débitos são relativos a transporte, vestuário, produtos estéticos, alojamento, alimentação, remédios e outros. Conforme o pesquisador Vicente Faleiros, citado por Eva Faleiros em Repensando os Conceitos de Violência, Abuso e Exploração Sexual de Crianças e de Adolescentes, a dívida é um dos mais importantes instrumentos de exploração e controle que os patrões possuem, pois são eles os detentores da contabilidade dos dividendos das trabalhadoras.
As crianças e os adolescentes também são explorados nas ruas, a partir do momento em que vendem a capacidade de proporcionar prazer às pessoas, geralmente mais velhas. Os clientes pagam por isso e alguns não sabem, mas estão cometendo um crime contra os direitos da criança e do adolescente, podendo ser punidos por isso. Nesse aspecto, a Constituição Federal, em seu artigo 27, parágrafo 4º, estabelece: "A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente". As penas podem variar de um a 14 anos de reclusão e o afastamento do agressor da moradia, comum em casos de maus-tratos, opressão ou abuso sexual.
Essas experiências de campo me conduziram a buscar os recursos metodológicos da antropologia cultural. Esses referenciais antropológicos instrumentalizaram-me para romper com os rigores metodológicos das pesquisas que pressupõem a necessidade de afastamento do sujeito e do objeto. Passei então a encontrar as pessoas, ouvir seus relatos de forma mais livre, desenvolvendo a pesquisa conforme essas narrativas apontavam novas questões passíveis de serem investigadas. Aprendi, portanto, que a objetividade do pesquisador não prescinde de seus sentimentos, de sua sensibilidade; neste caso, optei por estabelecer uma relação de diálogo e não de interrogatório com meus entrevistados. Passei a figurar em meus textos como o autor de relatos densos até então considerados descartáveis.
Esta opção não se deu logo e nem foi o primeiro passo no desenvolvimento do estudo. A princípio, busquei sistematizar um modelo semi-aberto de entrevistas visando responder uma questão inicial específica que pretendia determinar o porquê do turismo sexual. Nesse momento, os dados quantitativos foram priorizados, como instrumento de investigação da realidade, pois acreditava ser necessário delimitar o mais rigorosamente possível a abordagem. Assim, os primeiros questionários foram estruturados de modo a conter perguntas que se limitassem a uma investigação sobre as razões do turismo sexual.
A primeira etapa da pesquisa de campo foi realizada no segundo semestre de 2003, e quando passei à etapa da análise pude refletir sobre as possibilidades que o relato livre dessas pessoas poderia ter trazido; percebi a limitação, a insuficiência das metas estabelecidas inicialmente e redimensionei os rumos do estudo. Coloquei o foco principal na dinâmica da exploração sexual infanto-juvenil, procurando desvendar os principais envolvidos nessa trama social que compreende a comunidade e os turistas, visando a elaboração de uma denúncia.
Em função desse redimensionamento da problemática do porquê para o como, a pesquisa quantitativa foi posta em segundo plano, priorizando-se a pesquisa qualitativa. Entretanto, alguns dos questionários e entrevistas não puderam ser refeitos porque não foi possível reencontrar muitos dos entrevistados da primeira fase. Por esse motivo, algumas entrevistas mostram-se bastante limitadas. Mas mantive esses registros no anexo do trabalho, justamente para mostrar o processo de desenvolvimento da pesquisa e não apenas o resultado final.
Foi justamente a experiência da pesquisa de campo que mostrou o quanto seria contraditório reivindicar uma importância social para o turismo, referir a responsabilidade ética do profissional da área e tratar as pessoas como simples objetos para um levantamento estatístico. Pelo mesmo motivo, não seria pertinente apresentar um resultado final sem apontar os caminhos que levaram a ele. Ao propor uma discussão, um debate sobre a questão do turismo sexual, não poderia apresentar uma conclusão fechada em si mesma. Além do mais, esse processo interpretativo se construiu muito mais pela prática, pelas experiências, pelos erros e acertos dela decorrentes.
As informações bibliográficas sobre a região, suas formas de cultura e lazer, sobre a sociedade, economia e turismo, foram importantes na construção da metodologia de pesquisa, bem como na fundamentação das reflexões sobre a prostituição infanto-juvenil e sobre o turismo sexual. Mas foi na experiência vivida que encontrei os caminhos para definir e desenvolver meus objetivos. Por isso, em vários momentos no decorrer deste trabalho sempre que me referi diretamente às questões observadas em campo, expondo-me na primeira pessoa do singular e rompendo algumas das convenções normalmente utilizadas em trabalhos acadêmicos. Incluo minha experiência entre as outras relatadas nos depoimentos e entrevistas, pois a interação com essas pessoas foi fundamental para a realização do projeto.
Esse tipo de abordagem metodológica fundamenta-se nas orientações de pesquisa de campo propostas pela antropologia cultural, de observação participante e de entrevistas. A observação participante permitiu a interação com crianças e adolescentes e o convívio com a comunidade das regiões onde ocorre a prostituição. As pesquisas nas fontes bibliográficas e nas fontes documentais tiveram um caráter exploratório para uma comparação com a realidade encontrada.
O vídeo, que também segue a metodologia proposta pela antropologia visual, foi a última parte deste trabalho, e, através de recursos de áudio, imagens fotográficas, filmagens e produções digitais de animação, buscou-se viabilizar uma outra forma de exposição do problema deste estudo. A diversificação dos suportes utilizados visa atingir de maneiras diferentes o público, possibilitando uma nova forma de motivar discussões e reflexões sobre o tema. A imagem editada no vídeo, neste caso, foi constituída como uma representação, pois não é a realidade em si. O vídeo foi a maneira encontrada para registrar um olhar pessoal sobre a problemática e interpretar uma dada realidade.
Este trabalho encontra-se dividido em quatro partes principais em formato de texto e um vídeo gerado em sistema digital.
No primeiro capítulo, sistematizamos informações básicas e avaliamos o crescimento do turismo sexual e do envolvimento de crianças e adolescentes nesta prática no mundo, no Brasil e em Fortaleza. A seguir, apresentamos algumas ações de combate ao turismo sexual conduzidas pelos países emissores desses turistas. No segundo momento, anexamos um resumo sucinto das ações oficiais de combate e alguns direitos de crianças e adolescentes baseados no Estatuto da Criança e do Adolescente.
No segundo capítulo, abordamos a questão da construção do espaço urbano de Fortaleza, descrevendo sumariamente o contexto da segregação sócio-espacial implantado na cidade a partir do desenvolvimento da região da avenida Beira-Mar. A seguir, tratamos da consolidação dos espaços e das políticas de desenvolvimento do turismo no Estado do Ceará.
No terceiro capítulo, assunto de principal interesse, enfocamos a exploração sexual infanto-juvenil praticada pelo turismo sexual em Fortaleza. Esse capítulo constituiu-se no principal desafio em função da diversidade de fontes de pesquisa utilizadas: bibliográficas, relatos de moradores e envolvidos na exploração sexual e informações empíricas coletadas a partir das observações participante. No quarto e último capítulo, apresentamos a produção textual que deu origem ao vídeo-denúncia, algumas notas sobre a experiência da produção de um material dessa natureza e a ficha técnica de produção.
TURISMO SEXUAL
Os avanços no século XXI serão conquistados pela luta humanitária contra os valores que justificam as divisões sociais – e contra a oposição que essa luta terá de enfrentar por parte dos interesses econômicos e políticos estabelecidos.
Este capítulo pretende oferecer subsídios para o debate da polêmica questão do turismo sexual, problematizando, especialmente, o crescimento do turismo sexual infanto-juvenil no mundo. Ordenamos as informações em dois momentos principais. No primeiro contemplamos o contexto mundial e o contexto brasileiro. Apresentamos, por fim, algumas ações oficiais de controle promovidas nos países emissores dos turistas sexuais, visando auxiliar em futuras ações brasileiras.
Neste início de século digitalizado surge uma motivação para os deslocamentos que a cada dia passam a ser mais rápidos e mais eficientes, guiados pelos sistemas de comunicação. Objeto que proporciona relacionamentos palpáveis em um curto período de tempo. Através das novas tecnologias, muitas vezes oferece relacionamentos íntimos proibidos. O hedonismo nos leva a cultuar o corpo, a imagem chegando, a sexualidade transformando seres humanos em bens de consumo, nos guiando até ao primitivo.
O turismo sexual é a atividade de deslocamento organizado para a prática de atos sexuais comerciais com residentes do lugar de destino. Muitas vezes a prática desse turismo vem de uma casualidade da divulgação entre certos elementos na propaganda turística que aguçam o imaginário sexual do turista.
A prática do turismo sexual vem crescendo a cada ano principalmente nos países subdesenvolvidos e envolvendo mais crianças e adolescentes nesse processo. De acordo com Ryan e Hall, o turismo sexual consiste na interação entre dois grupos marginais, a saber: turistas de um lado, e prostitutas, homossexuais, ou categorias similares, de outro. Ambos os grupos se situam em posições ambíguas ou limites, com relação ou à lei, ou aos costumes, ou às convenções, etc. Essas "entidades" podem estar disfarçadas e, ao assumirem esses "papéis", não estão obrigatoriamente renunciando a outras dimensões de sua vida. O turista, por exemplo, está distanciando temporariamente de suas atividades regulares, mas retornará a elas depois de determinado período. O indivíduo engajado em atividades sexuais também não está vinculado permanentemente a esse processo, pois, como já dissemos anteriormente, ele ou ela geralmente assume outras funções sociais.
2.1 Turismo e exploração sexual infanto-juvenil no mundo
O presente subcapítulo foi elaborado a partir das informações sistematizadas através de organismos não-governamentais internacionais, tais como: End Children Prostitution, Pornography and Trafficking, Movement to Prevent Child Prostitution, International Labour Organization e Fundo das Nações Unidas para a Infância. Esses organismos em ação conjunta desenvolvem projetos voltados para a minimização de danos provocados por essa atividade, estimulados pelas análises estatísticas de crescimento da mesma no mundo. No turismo sexual encontra-se o comércio da exploração sexual infanto-juvenil. Essa atividade contraria totalmente a ética do turismo e vem sendo desenvolvida principalmente nos países considerados em desenvolvimento.
Alguns países já atuam vigorosamente no combate dessa atividade, como a Alemanha, por exemplo, que possui uma legislação específica para os crimes ligados ao turismo sexual. Na Espanha, Itália, França e também na referida Alemanha há leis de extraterritorialidade, que permitem processar quem comete abuso sexual contra menores no exterior. Na Itália, a Federação das Agências de Viagens e Turismo lançou uma campanha sobre as conseqüências da atividade no Brasil, Cuba e República Dominicana. Sabe-se que na Tailândia, em cuja capital, Bancoc, as crianças são oferecidas em catálogos aos turistas estrangeiros nos mercados populares. Essa prostituição forçada arrecada cerca de US$1,5 bilhão por ano. A situação no Brasil, comparada com a dos países asiáticos, é insignificante; destinos como Fortaleza evidenciam a necessidade de uma atuação imediata das autoridades e órgãos de proteção da infância e da juventude, para que não passemos a figurar nessa listagem de rotas preferenciais da exploração sexual.
A End Children Prostitution, Pornography and Trafficking (ECPAT), baseada em análises feitas em Bancoc, denuncia que, em diversas localidades turísticas, observou uma associação direta entre o crescimento do turismo e a exploração sexual de crianças. Essa entidade comenta ainda que existem entre 60.000 e 100.000 crianças engajadas na indústria do sexo nas Filipinas. Já no Vietnã, crianças com menos de 18 anos correspondem a aproximadamente 20% da "força de trabalho" vinculada à atividade. No Camboja, essa cifra atinge 31% e envolve crianças com idades que variam entre 13 e 17 anos.
As pesquisas da International Labour Organization (ILO) oferecem dados ainda mais alarmantes. Em 1995, havia pelo menos um milhão de crianças asiáticas envolvidas em algum tipo de atividade relacionada à exploração sexual forçada. Essa situação é especialmente alarmante em sete países da Ásia: Coréia, Tailândia, Filipinas, Sri Lanka, Vietnã, Camboja e Nepal.
Em 1996, o Movement to Prevent Child Prostitution (MPCP) notificou que nações como o Sri Lanka, Tailândia, Filipinas e Taiwan tornaram-se notórios destinos para pedófilos. Estimaram que entre 10.000 e 15.000 garotos, de 6 a 15 anos, foram vítimas desse tipo de comércio.
A expansão da exploração sexual de crianças e adolescentes em redes globalizadas, bem como a indústria do sexo, sustentada especialmente pelo turismo sexual, foi denunciada durante o Seminário Contra a Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes nas Américas, realizado em Brasília. O julgamento dos exploradores sexuais de crianças e adolescentes no país da ocorrência e no país de origem do explorador foi uma das recomendações dos participantes desse encontro, que solicitaram a cooperação dos governos de outros países para que esses julgamentos fossem realizados.
No seminário foi proposta ainda a adoção, por todos os países, de leis protetoras e punitivas para eliminar a prática da exploração sexual. A adoção de leis penais extraterritoriais foi incluída no programa de ação proposto no congresso mundial, em Estocolmo. Na oportunidade, representantes de 119 países e de organizações não-governamentais, além do Unicef, comprometeram-se a estabelecer uma associação global contra a exploração sexual de crianças e adolescentes, mobilizando, inclusive, a "indústria turística" para que esta não permita o uso de suas redes para esse fim.
Turismo sexual no Brasil
Nas ruas o presente nos assedia, traz a marca dos itinerários às vezes dispersos, difusos ou mesmo concentrados, definidos pela vida cotidiana.[...] Na rua encontra-se não só a vida, mas os fragmentos de vida, e é o lugar onde o homem comum aparece ora como vítima, ora como figura intransigente e subversiva. No movimento da rua encontra-se o movimento do mundo moderno.
Neste subcapítulo apresentamos um levantamento preliminar que visa à constituição de um quadro geral do sexo pago nas macrorregiões políticas do Brasil. Para tal, sistematizamos informações sobre o crescimento do turismo de exploração sexual infanto-juvenil em algumas regiões brasileiras, valendo-nos de dados quantitativos e qualitativos, visando mapear os envolvidos nesta prática.
Nesta pesquisa do espaço da prostituição no Brasil, podemos identificar as três principais capitais brasileiras envolvidas nesta prática: Rio de Janeiro, Salvador e Recife. Cabe destacar que estas cidades, por terem atraído um fluxo de turistas sexuais considerável, também ocupam um papel fundamental nos destinos turísticos brasileiros vinculados à diversidade cultural e à beleza cênica das paisagens naturais.
As comidas típicas, as belas praias, o carnaval e os monumentos históricos não são os únicos elementos utilizados na propaganda turística do Brasil no exterior. A imagem da mulher brasileira associada à sensualidade é muito freqüente nessas propagandas, o que colabora para o crescente número de visitantes que chegam ao país em busca do turismo sexual, especialmente no litoral do Nordeste.
A desigualdade social brasileira, com diversas características físicas e políticas sociais de desenvolvimento mal formuladas, acaba levando várias pessoas a se envolverem em situações de risco para a conquista de uma melhor qualidade de vida; muitas dessas pessoas se submetem, tornando-se escravas e escravos de americanos e europeus.
A cada ano que passa cresce a prática dessa atividade no Brasil. Nas pesquisas feitas nas cidades de Fortaleza, Natal, Recife, Salvador e Rio de Janeiro detecta-se que não só de estrangeiros vive o turismo sexual, mas sim de vários turistas domésticos que, em busca de sol e praia, aproveitam para praticar sexo sem compromisso e comercialmente.
As embaixadas brasileiras no exterior estão encarregadas de identificar agências de viagem que vendam pacotes para a prática do turismo sexual e impedir sua operação no Brasil. Estados e municípios que usarem marketing sexual não receberão verbas da Embratur, que elaborou cartilha em parceria com o Ministério da Justiça e a Associação Brasileira de Hotéis, mostrando que o turista sexual é pouco rentável. Ele gasta menos de US$40 por dia, enquanto o turista convencional gasta US$80.
Na cidade do Rio de Janeiro, em especial, existe nas imediações da Praia de Copacabana, nos postos dois e três, e na Praia de Ipanema, próximo ao posto nove, um grande fluxo de turistas sexuais estrangeiros e domésticos em busca do turismo sexual GLS. Os brasileiros mulatos e negros que estão inseridos na prática do turismo sexual são os mais procurados.
A Bahia passou a se destacar, na última década, como um dos pontos mais procurados na rota do turismo sexual, principalmente na época do carnaval, e passou a ser um dos principais pontos do tráfico de mulheres para o exterior. Observa-se um grande fluxo de turistas sexuais em busca do turismo sexual GLS na cidade de Salvador, nas imediações do Pelourinho, onde uma rede organizada local faz a ligação entre turistas sexuais estrangeiros e adolescentes. Esses turistas são na maioria argentinos e italianos.
Verifica-se na Praia de Boa Viagem, no Recife, um grande fluxo de turistas estrangeiros em busca de turismo sexual GLS com crianças e adolescentes. A atividade se inicia no aeroporto, com uma quadrilha de taxistas que fazem os traslados na chegada dos turistas e do hotel onde os mesmo ficam hospedados, que fornece todos os contatos necessários para a prática do turismo sexual na cidade.
2.2.1 Turismo e exploração sexual infanto-juvenil no Brasil
A exploração sexual é um dos mais graves problemas que afetam a infância e a juventude no Brasil. Segundo a Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência (Abrapia), de fevereiro de 1997 a fevereiro de 2002 foram denunciados 2.350 casos de abuso e exploração sexual de menores. Estima-se que o número seja muito maior.
A End Child Abuse in Asian Tourism (ECPAT) – Itália, uma organização não-governamental que atua em mais de 30 países na luta contra a prostituição infantil, divulgou o alarmante dado desse tipo de prostituição no Brasil. São cerca de 500 mil menores, em especial no Norte e Nordeste, vendendo o corpo para pagar a conta da miséria, e que investem em seu sonho de salvação nos braços de príncipes encantados louros e barrigudos. Aventura e prazer a baixo custo atraem por ano a Fortaleza, segundo a entidade, cerca de 70 mil italianos; por valores que oscilam entre dez e mil reais, é possível fazer um bom "programa" na capital cearense. Salvador e Recife também substituíram o Rio de Janeiro na preferência dos turistas sexuais de origem alemã, holandesa, suíça e italiana, que procuram menores acreditando que a idade diminui a possibilidade de contágio pelo vírus da Aids.
Verifica-se, nas cidades turísticas, que existem empresas de turismo atuantes, principalmente na Europa, que oferecem pacotes, incluindo passagens, estadia em hotéis e programas com meninas e meninos brasileiros. Há denúncias de conivência de autoridades com motoristas de táxi, disk-pizzas, doleiros, donos de barracas de praia. O maior número de turistas sexuais vem da Europa, especialmente da Alemanha, Portugal, Espanha e dos Estados Unidos; e são, na maioria, homens com idades entre 30 e 50 anos, de classe operária ou média baixa, que aproveitam as férias para uma temporada de orgia a baixo custo. Segundo informações de uma atendente de uma determinada companhia aérea do aeroporto de Lisboa, os vôos charteiros que têm como destino Fortaleza, Recife e Salvador, decolam com 98% de seus lugares com passageiros do sexo masculino. Considerando essas informações, pode-se inferir que não é um vôo familiar, com interesse em desfrutar a cultura e as belezas naturais do país e sim um vôo com intuito à prática de outro tipo de turismo.
Os espaços de algumas regiões brasileiras não estão associados à prostituição e não temos dados estatísticos sobre elas. As informações dos próximos dois parágrafos são relatadas por depoimentos de moradores das comunidades e análises antropológicas.
Nas regiões da Amazônia verifica-se que existe um grande fluxo de turistas estrangeiros que, em visita à floresta amazônica, aproveitam para explorar sexualmente as meninas das cidades ribeirinhas. Identifica-se uma organização em algumas cidades próximas da fronteira com o Peru junto ao Rio Solimões, onde os traficantes de drogas comandam a prática do turismo sexual, oferecendo meninas a "preço de banana". A situação na região é bastante crítica na prática de atos sexuais comerciais, atingindo principalmente crianças e adolescentes.
Nas cidades ribeirinhas ao longo do Rio Negro observa-se uma organização que leva meninas para serem exploradas em outras regiões brasileiras, principalmente o Nordeste e o Centro-Oeste. Segundo informações de uma adolescente com quem se teve contato na região do Rio Negro, elas são enganadas e levadas para trabalhos domésticos em casas de famílias de classe média dessas regiões; quando chegam, são induzidas a se prostituírem, sendo levadas a uma realidade pior do que a vivida em sua região. A adolescente também informou que uma vez por semana a organização passa de barco pelas cidades de São Gabriel da Cachoeira, São Joaquim, Barcelos, Carvoeiro, Santo Antônio, Novo Airão e algumas comunidades indígenas, contratando meninas entre 12 e 18 anos para trabalhar em outras regiões brasileiras, prometendo melhoria da qualidade de vida.
Direito e ações oficiais
Hoje, as crianças têm seus direitos estabelecidos pelas leis internacionais, por quase todos os países. "... a ratificação (validação) obriga os governos especificamente a proteger a criança da exploração econômica e da realização de qualquer tipo de trabalho que possa envolver situações de risco, ou interferir na educação da criança, ou ser prejudicial à saúde ou ao desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral ou social da criança.
Neste subcapítulo encontram-se algumas ações governamentais e não-governamentais de combate ao turismo sexual e alguns direitos de crianças e adolescentes estabelecidos pelo ECA.
O combate ao turismo sexual infanto-juvenil vem ganhando novas dimensões no Brasil e no mundo, nos últimos dois anos, mas ainda são tímidos os programas propostos para combater o problema. Em fins de 1995, o Brasil começou a agir para mudar a imagem do país no exterior retirando de seus cartazes e prospectos qualquer imagem de mulheres em trajes sumários.
O I Encontro Nacional de Parlamentares Integrantes de Comissões de Combate à Prostituição Infanto-Juvenil, realizado em dezembro de 1996 no Rio de Janeiro, aprovou algumas propostas de alteração do Código Penal, entre elas a mudança na classificação dos crimes sexuais, que hoje estão contidos no capítulo referente aos crimes contra os costumes, para o capítulo dos crimes contra a pessoa. O argumento principal dessa correção legislativa é que nos crimes de estupro ou abuso sexual a vítima é a pessoa e não a sociedade ou a família.
O Brasil é um dos países onde existe uma das maiores incidências de turismo sexual, não se sabe ainda a posição em que o país se encontra no ranking . Os organismos especializados insistem que essa atividade tem crescido a cada ano paralela ao crescimento da atividade turística. A Embratur lançou em fevereiro de 2000 uma campanha de combate ao turismo sexual infanto-juvenil, forçada pelas denúncias das organizações não-governamentais. Foi criado o Disque-denúncia Prostituição Infanto-Juvenil, um telefone de contato entre a população e a direção da campanha. Segundo a Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência (Abrapia), responsável pela coordenação da apuração das denúncias, os brasileiros, e não os estrangeiros, são os que mais favorecem a prostituição infanto-juvenil.
Outra proposta refere-se à ampliação do significado do crime de atentado violento ao pudor, que seria classificado, no Código Penal, junto com o crime de estupro, uma vez que o uso da violência na prática sexual, qualquer que seja a forma, constrange e humilha a vítima. Foram propostas também as trocas da palavra "mulher" por "alguém" na classificação das vítimas do crime de estupro, e a criação de um novo tipo de crime denominado "abuso sexual", que se traduz por "constranger alguém à prática de atos libidinosos diversos da relação sexual".
Os idealizadores da Campanha Nacional pelo Fim da Exploração, Violência e Turismo Sexual contra Crianças e Adolescentes elaboraram um anteprojeto de lei para ser aprovado nos municípios brasileiros. O anteprojeto estabelece penalidades para as propriedades que abrigarem crianças e adolescentes desacompanhados dos pais ou responsáveis. A pena é suspensão do alvará por 30 dias na primeira autuação e cassação se comprovada a prática de violência ou exploração de menores ou se houver uma segunda autuação. Essas recomendações legais já estão em vigor em Porto Alegre.
Natal, capital do Rio Grande do Norte, é a cidade que tem a melhor atuação no combate ao turismo sexual infanto-juvenil, e onde políticas públicas são desenvolvidas juntamente com as Instituições de Ensino Superior para o combate da prática, com o lançamento, nos anos 90, de uma campanha pioneira de combate à exploração sexual de crianças e de adolescentes através do turismo.
Com o aumento alarmante da violência sexual no Ceará, o governo estadual assumiu o compromisso de defender e proteger crianças e adolescentes vítimas da violência sexual. Ao assinar, em agosto de 2003, em solenidade pública, o Termo de Compromisso com a presença dos organismos governamentais, não-governamentais e sociedade civil, representada pelo Fórum Cearense de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, os dirigentes dos setores públicos e privados comprometeram-se a lutar com todos os meios e formas possíveis contra a exploração sexual de crianças e adolescentes.
Em março de 2004, o Governo do Estado do Ceará cria o Comitê Cearense Interinstitucional do Turismo para o Enfrentamento à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, instituído pelo Decreto nº 27.391. Tem como objetivo orientar e regular a conduta ética da sociedade e do Estado, através de seus agentes e entidades direta e indiretamente vinculados ao Trade turístico, contra a exploração sexual de crianças e adolescentes.
2.3.1 Direitos das Crianças e dos Adolescentes
Nas primeiras campanhas de combate à exploração sexual de crianças e adolescentes através do turismo, os apelos pela redução dessa atividade eram de pouca importância para a sociedade e para o estado e eram deixados de lado pela pressão dos lucros e da realidade da vida comercial como forma de sustento para várias famílias.
A legislação brasileira estabelece no Estatuto da Criança e do adolescente que:
Art. 2° – "Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade";
Art. 3° – "A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de Ihes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade";
Art. 4° – "É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária";
Art. 5° – "Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais";
Art. 6° - "Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento".
As crianças e os adolescentes envolvidos no turismo sexual não estão com todos os direitos estabelecidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, bloqueados pelo sistema de vida. Não existe proteção da família, da sociedade e do governo. Seu desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social é interrompido pela atividade nas ruas, que os priva de sua liberdade e dignidade.
O esporte, o lazer e a educação, tal como está previsto no Código, não são garantidos a todos, tornando-se um privilégio das classes mais favorecidas. O governo não utiliza seus equipamentos para promover a educação que é a única fonte de informação e inserção social no começo da vida do ser humano. Essas crianças e adolescentes são objetos de exploração, violência, crueldade, opressão, fazendo parte da massa dos excluídos produzidos pelo progresso.
As crianças e os adolescentes, objetos deste estudo, pertencem a um grupo que não conhece os direitos garantidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente; eles são formados na miséria das ruas das cidades brasileiras.
3 A CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO TURÍSTICO NO CEARÁ
Às vezes penso que nasci na cidade errada e que aqui não é lugar para ninguém morar; só consegue viver aqui quem já foi para a escola.
As pessoas que visitam Fortaleza só conhecem o lado de fachada da cidade, não conhecem o que está atrás da beira-mar.
Este capítulo analisa o desenvolvimento da atividade turística no Estado do Ceará. Primeiramente, apresentamos um breve histórico da cidade de Fortaleza e da evolução dos espaços geográficos da cidade e da região metropolitana, suas mutações no decorrer dos anos e alguns dados estatísticos ligados aos índices econômicos e sociais. Em seguida, tratamos das políticas públicas relacionadas ao turismo cearense.
Entre a construção e a mutação dos espaços urbanos de Fortaleza
Fortaleza teve sua origem nos fortes levantados na Barra do Ceará e às margens do Rio Pajeú, sendo hoje considerada um pólo turístico e uma cidade cheia de complexidades sociais.
Situada na região Nordeste, Fortaleza, não só é conhecida como terra das belas praias, a cidade revela-se como um espaço marcado por fortes contrastes que expressam em significativas desigualdades sociais, no modo de crescimento da cidade e na vida cotidiana de seus habitantes.
A prática do lazer nas praias teve início em Fortaleza nos anos 20, timidamente na Praia do Peixe, que é a atual Praia de Iracema, quando as roupas de banho eram saiotes godês por cima de um calção. Ainda na década de 1940, o banho de mar era uma exceção e um sonho quase inatingível das populações urbanas da cidade. Os primeiros bares foram surgindo à beira-mar, e a moda de ir à praia começou a dar uma nova característica à região da orla. O Hotel Iracema Plaza e o restaurante Lido começaram a exibir lançamentos de artistas e produtos trazidos de fora e, como isso é um demonstrativo de status, o desenvolvimento da orla seguiu-se desenfreado, mudando sua característica de vila de pescadores aos poucos e utilizando os espaços para empreendimentos progressistas luxuosos.
Em 1971, o alargamento da rodovia de acesso à serra de Guaramiranga prolongou a avenida Santos Dumont e a avenida Beira-Mar, fazendo a ligação entre vários bairros e modificando a estrutura já existente na região. Com essas modificações estruturais na cidade, o bairro da Aldeota e a Praia do Futuro sofreram um processo de ocupação intensa, com a construção de edifícios e casas luxuosas e a ampliação de áreas de lazer e turismo.
A construção de prédios na orla marítima, com mais de dez andares, desencadeou mudanças climáticas na cidade, como modificações da circulação dos ventos para o centro da cidade, gerando o aumento da temperatura.
A região metropolitana de Fortaleza
Embora tenha alcançado elevado índice de crescimento nos últimos 20 anos, a concentração de renda de sua população aumenta significativamente, de modo que os 10% mais pobres ganham em média 0,76% do salário mínimo, enquanto os 10% mais ricos ganham 45,7 salários mínimos.
Estes desequilíbrios têm se refletido em várias frentes de expansão da miséria social e da violência, através da segregação dos espaços da cidade. Dados de 1995 revelam um contingente de 720 mil favelados, o que corresponde a 36% da população de Fortaleza.
Os espaços de Fortaleza são segregantes, sendo nítida a cidade dos turistas e a cidade dos miseráveis. Essa característica deixa alguns habitantes locais irritados com a invasão dos turistas, enquanto outros pensam que o turismo desenvolve a cidade, econômica e socialmente, por ser uma atividade geradora de empregos e de renda. A cidade reúne belas praias, e conta com a receptividade de seu povo e outros atrativos culturais.
A cidade é um pólo industrial e um centro turístico, sendo uma das cidades que mais cresce na região Nordeste. A Grande Fortaleza é a quinta maior metrópole do Brasil, e passa por todos os problemas urbanos comuns às cidades brasileiras. Entre as regiões metropolitanas é a segunda maior em proporção de pobres, logo atrás do Recife e um pouco à frente de Salvador. O rápido crescimento urbano-econômico de Fortaleza, que possui 336 km2 de área totalmente urbanizada, e a firme deliberação dos governos municipais e estaduais, a transformaram numa moderna urbe, em um pólo turístico emergente, mesmo sendo uma cidade cheia de contrastes e sem solução de seus problemas sociais e culturais.
As políticas públicas do turismo cearense
A partir do chamado milagre brasileiro, Fortaleza descobre que pode transformar seus 30 quilômetros de praia em espaços de bons negócios e passa a se voltar fortemente para atividades turísticas desenvolvidas a partir do seu sol o ano todo e de suas praias. A oferta turística passa a englobar pontos comerciais à beira-mar, núcleos específicos de comércio de artesanato, hotéis, restaurantes, bares e boates.
No ano de 1971, foi criada a Empresa Cearense de Turismo S/A (Emcetur), entidade de economia mista, com 51% das ações pertencentes ao Estado. Acreditava-se que seria o órgão que faltava para o desenvolvimento da atividade turística no Estado.
Em 1975, o Ceará é governado pelo coronel Adalto Bezerra, com o Primeiro Plano Qüinqüenal de Desenvolvimento do Estado do Ceará (Plandece), tentando destacar o Ceará como modelo de desenvolvimento turístico no país.
O turismo foi inserido na economia do Ceará, programado por políticas governamentais, na década de 80, com o Plano de Mudanças do governo Tasso Jereissati (1987-1991). Esse plano destacava a importância do planejamento turístico, a potencialidade do Estado para a atividade, a implementação de uma infra-estrutura adequada e viabilização dos fluxos turísticos domésticos e internacionais. O governo Virgílio Távora, por seu secretário de Planejamento, que seria o seu sucessor, elabora o 1º Plano Integrado de Desenvolvimento Turístico do Estado do Ceará (1979). E esse governo começa a partir daí analisar o turismo como forma de desenvolvimento econômico para o Estado.
No governo seguinte (Ciro Gomes), o Ceará passa a integrar o Programa de ação para o Desenvolvimento do Turismo do Nordeste – Prodetur Nordeste – em 1992, juntamente com os demais estados da região Nordeste, incluindo o Norte de Minas Gerais ou a área mineira pertencente ao Nordeste, que é definida pela Sudene como Polígono da seca.
Antecede ao Prodetur-CE o Prodeturis – que é o Plano de Desenvolvimento do Turismo no Litoral Cearense, gestado com verbas do próprio Estado, cobrindo todo o litoral cearense. Desde então, o turismo vem contribuindo para o desenvolvimento econômico do Estado, trazendo recursos para a infra-estrutura básica através do Prodetur e contribuindo para a multiplicação das atividades econômicas, por ser um serviço de ação global, que desenvolve uma cadeia de ações paralelas.
Segundo dados do IBGE, na década de 70/80, a população da cidade cresceu 69,5%; entre 80/90, o crescimento populacional foi de 53,26%. Também é significativa a expansão da indústria do turismo na cidade, que a coloca, na atualidade, como terceiro pólo turístico do Nordeste.
A falta de planejamento na construção do espaço urbano gerou vários desequilíbrios para a cidade. Verifica-se que, durante toda a estruturação do turismo do Estado do Ceará, na cidade de Fortaleza só se preocuparam com ações progressistas e não com o desenvolvimento cultural e a preservação das comunidades que viviam à beira-mar.
Verifica-se com o tempo que as questões ligadas a políticas de expansão da atividade turística no Estado do Ceará não foram bem formuladas, no que diz respeito aos impactos provocados pelo turismo, tais como, a exploração sexual de crianças e de adolescentes, temática abordada por este estudo.
Fortaleza é pólo receptor e emissor de turistas ao mesmo tempo; uma parte de sua população também viaja; o governo do Estado do Ceará trabalha para firmar o estado como pólo receptor, colocando-o como grande potencial para a atividade turística.
TURISMO E EXPLORAÇÃO SEXUAL INFANTO-JUVENIL ENTRE O LITORAL E A REGIÃO METROPOLITANA DE FORTALEZA
O problema da exploração sexual está associado à pobreza, à desigualdade e à exclusão social. Mas sabemos, também, que existem outros fatores, como os de natureza cultural que dizem respeito a formas tradicionais e familiares de organização econômica. Sabemos que não podemos esperar mais para oferecer alternativas de mudança que permitam atuar tanto sobre a pobreza quanto sobre as exigências familiares.
Este capítulo aborda o assunto de principal interesse, tratando dos relatos elaborados a partir das pesquisas de campo e de crianças e adolescentes envolvidos na exploração sexual em Fortaleza. A primeira parte foi dedicada a uma análise preliminar do problema, quando se utilizou uma metodologia de entrevistas semi-abertas e quantificaram-se os depoimentos, visando um futuro estudo que dimensione a extensão dessas práticas através da atividade turística.
A beira-mar de Fortaleza é composta pelas Praias de Iracema, Mucuripe e Meireles, que são pontos privilegiados de atração turística tanto para brasileiros quanto para estrangeiros. Com seus três quilômetros de extensão, a praia concentra a maior parte dos hotéis e mistura ofertas de lazer, compra e entretenimento. Tem calçadão para caminhadas, quadras de esporte, feira de artesanato, barracas, bares, cinema e o mercado de sexo que funciona dia e noite sem parar.
De acordo com a pesquisa realizada pela Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência (Abrapia), Fortaleza é a cidade brasileira da região Nordeste com o maior índice de exploração sexual de crianças e de adolescentes. No ranking nacional é a terceira capital do país em número de denúncias de exploração sexual infanto-juvenil depois do Rio de Janeiro e São Paulo. Entre fevereiro de 1997 e setembro de 2001, foram registrados ao todo 117 casos. No mesmo período, São Paulo teve 158 ocorrências e o Rio de Janeiro, 340. As causas ligadas à oferta são numerosas e complexas, ainda que a pobreza seja um dos fatores principais.
Para um melhor desempenho dessa pesquisa, fiz algumas entrevistas com crianças e adolescentes envolvidos no turismo sexual, com identificação da problemática que leva à prostituição. No decorrer do envolvimento com essas crianças e adolescentes, houve contato com pessoas das comunidades da região metropolitana da cidade.
Em uma dessas localidades, na favela Serve Luz, alguns moradores colocam que o principal problema das crianças e adolescentes envolvidos com turistas é a aquisição de algum recurso para a compra de drogas, principalmente as drogas sintéticas. A necessidade do consumo de drogas induz essas crianças e adolescentes a se prostituírem com turistas estrangeiros, que trazem consigo uma moeda mais forte que dá mais autonomia para aquisição de drogas com os traficantes.
No contexto de nossas pesquisas, foram realizadas entrevistas com 10 crianças e adolescentes entre nove e dezoito anos na Praia de Iracema, no período de 20/04/2003 a 22/05/2003. Nas entrevistas foram colocados os seguintes questionamentos: Sexo, Idade, Grau de Instrução, Situação Familiar, Endereços, Ocupação Profissional, envolvimento com algum tipo de droga e envolvimento sexual.
Os 10 entrevistados declararam que já tiveram relacionamento sexual com turistas vindos de outros países e que a maioria era constituída de portugueses, italianos e holandeses.
As entrevistas foram feitas somente com 10 crianças e adolescentes, pela dificuldade de se conseguir mais envolvidos que estivessem disponíveis para passar as informações que se fazem necessárias para essas conclusões. Os traficantes e agenciadores ficam ao redor durante toda a abordagem, as crianças e os adolescentes sempre pedindo para terminar logo as perguntas, para que eles pudessem sair sem que seus agenciadores percebessem que estavam sendo entrevistados. Alguns deles não são dominados por agenciadores, mas estão vinculados de alguma maneira aos traficantes de suas comunidades de origem.
O sentimento de ódio detectado durante as entrevistas é bastante visível na expressão dessas crianças; elas querem sempre falar algo, mas na maioria das vezes omitem informações, por estarem saturadas de promessas e questionamentos sem soluções. Na memória sempre permanece o melhor da rua; os problemas são esquecidos e, dia após dia, arquivados e deletados da mente.
A engenharia da exploração sexual infanto-juvenil de Fortaleza
Durante algum tempo teve-se contato com alguns portugueses que, em visita à Fortaleza, utilizavam casas localizadas nas favelas e bairros afastados para a prática do turismo sexual infanto-juvenil. A maioria deles já conhecia o Brasil e o único objetivo da viagem era o agenciamento de meninos e meninas para a prática de atos sexuais comerciais. Como esses turistas visitam mais de uma vez o Brasil, já na segunda viagem vêm com contatos para hospedagem.
Por essa e outras realidades dos deslocamentos para a prática do turismo sexual, verifica-se que não são utilizados os equipamentos disponíveis para o turista que vem conhecer e desfrutar da cultura, do sol e das praias do país. O turista sexual utiliza meios de hospedagem fora da rede hoteleira convencional, às vezes até mesmo favelas e bairros periféricos, enquanto os outros turistas gastam com os meios de hospedagem, traslados, passeios e bons restaurantes.
O turista, com fins dedicados à cultura e ao lazer, utiliza os traslados nacionais, redes hoteleiras, bons restaurantes, compra artesanato local e, com isso, movimenta a economia da cidade. O turista sexual vem para o Brasil utilizando companhias aéreas internacionais, em vôos charteiros originados das cidades de Lisboa, Milão, Paris, Roma e outras. Quando chega, pega algum tipo de transporte até o local destinado à hospedagem, que geralmente já é de propriedade de europeus instalados no país.
No desembarque internacional do Aeroporto de Fortaleza, é fácil observar pessoas aguardando os passageiros dos vôos internacionais charteiros sem nenhuma identificação dos receptivos convencionais da cidade. Logo após o desembarque, não existe uma organização turística dos passageiros desembarcados; cada um procura pelo nome indicado no receptivo, e segue em carro comum ou em táxi que o leva até seu local de hospedagem.
O turista sexual doméstico aproveita seu deslocamento para a prática da atividade na cidade, mas geralmente não tem como motivação principal a prática dessa atividade e sim a procura de sol e praia.
O grande objetivo das organizações de combate à exploração sexual infanto-juvenil através do turismo é chegar às agências emissoras de pacotes para turistas estrangeiros e brasileiros que vêm a Fortaleza em busca de sexo fácil e barato. A partir dos relatos de crianças e adolescentes envolvidos com o turismo sexual na cidade de Fortaleza é possível chegar a alguns dos agenciadores e praticantes desse tipo de turismo.
Durante algum tempo de observação na Av. Beira-Mar, identificamos barraqueiros ao longo do calçadão oferecendo aos turistas crianças e adolescentes indiscriminadamente. Os barraqueiros das Praias do Mucuripe e Iracema foram identificados como os principais agenciadores de crianças e adolescentes na cidade. Geralmente o turista sexual escolhe o menino ou a menina e paga o programa para o barraqueiro da praia. É sempre possível observar essa situação nas praias urbanas da cidade na época de alta temporada.
A preparação de profissionais para atuação na atividade turística receptiva na região metropolitana da cidade de Fortaleza não é adequada para a formação de um turismo de qualidade. Na recepção de alguns hotéis, os funcionários intermediam a prostituição de pessoas do sexo feminino e masculino de qualquer idade para programas. Na maioria das vezes, a prestação de serviço desses recepcionistas está direcionada a executivos, especialmente homens que estão na cidade a negócios e que já são clientes do hotel.
Na identificação desse tipo de turismo, observou-se que é quase nulo o envolvimento sexual de crianças e adolescentes do sexo masculino com turistas do sexo feminino; geralmente essas crianças e adolescentes estão envolvidos no turismo sexual GLS.
Além da atuação de menores diretamente nos hotéis, pode-se observar na Avenida Beira-Mar e na Avenida Historiador Raimundo Girão a presença de um grande número de menores entre doze e 16 anos também envolvidos na rede ilícita da prostituição.
Os adolescentes que se prostituem nesse local utilizam produções femininas para atrair clientes. Durante algum tempo de observação identifica-se turistas sexuais parando ao longo da pista em carros alugados na busca desse tipo de programa. A maioria dos menores tem seus pontos fixos, e é mais visível a atuação de meninos travestidos do que com caracterização masculina que são os famosos garotos de programa: "Michês".
O problema dos "meninos jornaleiros", é que eles não são vistos pela comunidade local em suas insalubres situações de trabalho, durante as madrugadas, vendendo jornais nos sinais de trânsito. Expostos, esses meninos são explorados sexualmente por turistas estrangeiros que, no final da noite, passam de volta das boates e bares para suas localidades de hospedagem.
Nesse tipo de exploração sexual dos "meninos jornaleiros", observa-se também uma falta de interesse das organizações emitentes de jornais, que, por serem veículos de comunicação diária para toda a população, não deveriam esconder essa situação, que acontece todas as manhãs na distribuição de seus produtos, com seus funcionários, nas principais avenidas da cidade.
No anexo A, na página 76, encontra-se um mapa da exploração sexual infanto-juvenil da Avenida Historiador Raimundo Girão, alguns pontos da Avenida Beira Mar e de outras ruas próximas à essas avenidas.
O sério problema da prostituição infanto juvenil no Brasil.E ninguém faz nada...Só teoriza
Em 03/09/2009 às 23:16
O sério problema da prostituição infanto juvenil no Brasil.E ninguém faz nada...Só teoriza
Retrato afrontoso de um país que fecha os olhos a todo tipo de exploração infantil, a prostituição tem se alastrado de modo espantoso no Brasil, atraindo meninas cada vez mais novas para as ruas. Crianças de até 9 anos podem ser encontradas fazendo programas, tanto em avenidas e praças de cidades grandes, como em bordéis e garimpos do interior. Sua mercadoria é o sexo, que na maioria das vezes é trocado por um prato de comida ou um quarto para dormir. O CBIA (Centro Brasileiro para Infância e Adolescência) estima em 500 mil o número de meninas prostitutas no país. Isso isola o Brasil na dianteira dos países americanos que enfrentam esse tipo de problema social, ficando atrás apenas da Tailândia, que tem 800 mil menores na prostituição.
A estatística ressalta que oito em cada dez garotas brasileiras se prostituem contra a vontade. Elas trabalham de três a quatro dias por semana e têm em média cinco parceiros por dia. Com saúde debilitada e sem educação básica, essas meninas tornam-se mães precoces que não têm condições de educar os filhos. A violência sexual contra menores já estampou o Brasil na capa da revista americana "Time".
Pelo menos 50% das prostitutas de Belém têm menos de 16 anos. Só no centro da capital paraense há cerca de 2 mil. Calcula-se que no Rio de Janeiro existam 30 mil menores nessa vida.
Quase 60% das 10 mil prostitutas da região central e do porto de Santos são crianças ou adolescentes com idade entre 10 e 19 anos. Uma delas é R., que faz ponto na região portuária. Tem 16 anos, é loura, magra, desnutrida e sorridente. Ainda brinca de chupeta. Começou a vida sexual aos 12 anos quando foi estuprada por um primo. Fugiu de casa e hoje mora com duas meretrizes num barraco. Cheira cola, fuma crack e nunca foi à escola.
Ela conta que o seu primeiro programa foi com um homem bem mais velho do que ela: "Ele me levou para um motel e me ofereceu um monte de coisa. A gente transou e depois ele me pagou".
R. faz hoje entre cinco e seis programas por semana e cobra por cada um R$ 10. Segundo ela, no carro é mais barato, porque não precisa pagar o quarto do hotel, que custa R$ 3. "Tem uns que dão o cano e não pagam." Como são os fregueses? Ela conta que "a maioria é velho. Os coroas querem as meninas mais novas. Já ganhei até um vestido".
O mapa da exploração sexual infanto-juvenil mostra que em Fortaleza e no Recife o forte é o "pornoturismo", que oferece como principal atração meninas virgens de 9 a 11 anos para estrangeiros. Em João Pessoa, o incesto é uma prática comum. No Rio Grande do Sul, a desinformação e a ingenuidade do homem do campo tornam os pais presas fáceis de falsas promessas de emprego para as filhas menores.
No oeste de Santa Catarina, em Videira, há exploração sexual de meninas de 8 a 14 anos, por pessoas idosas que as alugam e sobrevivem à sua custa. Em São José do Rio Preto, no interior paulista, adolescentes de 12 a 17 anos vendem o corpo nas ruas. A Secretaria do Trabalho da Paraíba contabilizou 75 meninas entre 13 e 17 anos, sem nenhum vínculo familiar, prostituindo-se nas ruas de João Pessoa, principalmente perto das praias.
Cristina Crovara, coordenadora do programa contra a exploração sexual de menores da organização Bureau Internacional Católico para a Infância, acredita que o que torna a prostituição infantil no Brasil diferente da que se encontra no resto do mundo é a degradação da sociedade. "Em São Paulo, caminhei duas quadras e, das 30 prostitutas que encontrei, 14 eram crianças. Eram onze e meia da manhã, as crianças se prostituíam abertamente nas ruas, com indiferença total das pessoas que passavam. Em uma hora, obtive informações sobre as meninas que levaria dias para conseguir em outro país latino-americano."
Especialistas são unânimes em afirmar que por trás de toda prostituta mirim há uma história de desagregação familiar. Foi o que constatou também o jornalista Gilberto Dimenstein. No livro Meninas da noite ele denunciou o tráfico e exploração sexual de crianças brasileiras. Segundo Dimenstein, um dos estímulos à prostituição é a própria família. "A garota trabalha, em geral, de vendedora de chiclete ou bala. Mas é obrigada a levar uma determinada quantia para casa, sob pena de apanhar. Sem dinheiro, às vezes ela se entrega aos homens para voltar para casa com a quantia exigida. O furto é outra alternativa, porém mais arriscada."
A Fundação Municipal Papa João XXIII apurou um índice dramático de meninas de rua em Belém. Das 114 crianças e adolescentes que vivem pela cidade, 23,7% são meninas de 7 a 17 anos. O dado causa sobressalto porque a média nacional é de 11%. Pesquisa do Centro de Defesa do Menor apontou que as meninas de rua ingressam na prostituição por intermédio de adultos que conhecem nos bares da cidade.
No Recife, há 1.015 meninas de rua, segundo o CBIA. São crianças e adolescentes que garantem a própria subsistência com a mendicância, roubo e prostituição, dormindo na maior parte das vezes em abrigos improvisados ou em pensões do meretrício. De acordo com os dados, 365 delas têm entre 12 e 16 anos. Encontram-se, na história de quase todas, miséria, violência e desagregação familiar.
"Para que houvesse uma desagregação familiar, seria necessário que antes existisse uma família... o que já está deixando de acontecer, pois, as novas gerações dessas meninas, já são proveniêntes de gestações não desejadas dessas crianças, que um dia estiveram em alguma coisa que equivocadamente denominamos de "família"... estaríamos então, assistindo passivamente o surgimento de uma nova espécie de prostitutas mirins; filhas delas próprias.
A prostituição infanto-juvenil sob o prisma do mal-estar e da subjetividade
Francisca Helena Rocha
Assistente Social e Mestre em Psicologia pela UNIFOR. E-mail: cmps@unifor.br
RESUMO
A problemática da prostituição infanto-juvenil, nas grandes cidades brasileiras, vem suscitando debates e concentrando esforços de variados segmentos ligados à esfera jurídica, institucional, bem como à sociedade de forma geral. Tentando inscrever as instâncias da subjetividade e do mal-estar no bojo dessas discussões, constitui objetivo deste trabalho tecer algumas considerações acerca de tais instâncias, por entendê-las imprescindíveis à análise e compreensão do fenômeno em foco.
Palavras-chave: adolescência, mal-estar, prostituição, sociedade, subjetividade
ABSTRACT
The problem of juvenile prostitution in the big Brazilian cities has been generating debates and focusing a great deal of effort from various areas connected to the law and to the society in general. Trying to include subjectivity and hard feelings in those discussions is the main purpose of this project, as well as weaving some insights about the subject, since such insights are vital to the analysis and understanding of the phenomenon of juvenile prostitution.
Keywords: adolescence, discontent, prostitution, society, subjectivity
1. Uma viagem ao território da subjetividade
A temática da subjetividade, apesar de vir sendo abordada nas duas últimas décadas com maior freqüência nas ciências sociais e humanas, não constitui uma terminologia nova, ou mesmo uma palavra de etimologia desconhecida. Diferentes áreas do conhecimento, tais como a Religião, a Filosofia, a Economia, a Sociologia, a Psicologia e a Psicanálise, dentre outras, foram responsáveis pela formulação conceitual da subjetividade, que, embora tendo fundamentos teóricos peculiares a cada área, possibilitaram a utilização do termo subjetividade em mais de um dos campos assinalados.
A noção de subjetividade encontra-se presente não apenas nas áreas de conhecimento citadas, como também, tornou-se recentemente objeto de análises históricas na construção de variados contextos, tais como a família, a sexualidade, a violência, as relações de poder e outros.
Figueiredo (1997, p. 9), ao lado de autores que se preocupam com a subjetividade, entende-a como "morada ou campo de experiências", definindo, conseqüentemente, os processos ou modos de subjetivação como processos de constituição dos campos e modos da experiência humana.
Naffah Neto (1997, p. 198), também interessado nas questões subjetivas, através de sua atividade clínica como psicanalista, foi percebendo a necessidade de correlacionar a noção de subjetividade com a noção de espaço interior, de vazio, capaz de acolher, dar abrigo e morada às experiências de vida: percepções, pensamentos, fantasias, sentimentos. Segundo ele, sem esse espaço psíquico, as experiências humanas não podem ser registradas, muito menos encontrar seus territórios de expressão.
Dessa forma, a instância da subjetividade veio ao encontro da abordagem do tema que envolve as discussões em torno da prostituição infanto-juvenil, uma vez que, no contato com a literatura existente sobre o assunto, comumente enfocam-se as causas atribuídas ao fenômeno, que, freqüentemente, vêm de sistemas externos à adolescente que se encontra envolvida com a prostituição. São geralmente apresentadas, como fatores determinantes, a questão econômica, cultural de gênero, familiar e a violência doméstica, que aparecem de forma isoladas ou articuladas. Entretanto, percebe-se ser coerente abordar, também, os aspectos subjetivos da adolescente que se encontra nessa condição, uma vez que a subjetividade é impossível de ser explicada por determinismos causais exteriores ao próprio sujeito, ao mesmo tempo em que também não pode ser explicada exclusivamente pela biologia humana. Isto significa dizer que, ao seguir a trajetória da subjetividade humana, mais especificamente, os aspectos ligados à prostituição infanto-juvenil, não seria concebível visualizá-la exclusivamente pelo prisma socioeconômico-cultural, nem muito menos pela ligação com a genética ou hereditariedade. O lugar que o genético ocupa, no fenômeno subjetivo, não está apenas ligado diretamente à sua condição biológica, hereditária. Vincula-se, também, à expressão genética, às condições externas, que, de acordo com a predisposição herdada, podem ou não ser processadas na construção da subjetividade humana.
Pensar a subjetividade nessa perspectiva pressupõe romper os limites tradicionais do pensamento da cultura ocidental, no qual o racionalismo e o positivismo exerceram forte influência no nosso século, uma vez que tais correntes filosóficas se recusam a reconhecer os aspectos da singularidade, da flexibilidade, da integração e de outros semelhantes, imprescindíveis nessa nova noção de subjetividade.
Dentre os autores que reiteram essa concepção, encontra-se um aporte significativo em Rey (1998, p. 4), quando afirma que:
A subjetividade é a expressão qualitativa diferenciada do aparelho psíquico do ser humano frente às condições culturais em que este vive, a qual, pressupõe que o sujeito humano tem que produzir respostas e construções que não estão contidas fora dele, senão, que são parte de uma produção criativa de sua história social e cultural.
Ao enveredar pela temática da subjetividade, pretende-se edificar toda uma trajetória reflexiva de forma a não ancorar as discussões em torno da prostituição infanto-juvenil em invariantes genéricas, mas, sim, ampliar o marco teórico de reflexão em direção a pontos pertinentes ao sentido que tem a prostituição para cada adolescente contatada, o que vai depender de histórias singulares, individuais, não se podendo, pois, eleger parâmetros universais, em se tratando da discussão em torno da subjetividade.
Segundo Rey (1997), pensar a subjetividade, nesses termos, pressupõe-se, no terreno ontológico, que a compreendamos sob uma dupla condição: como processo e como constituição do sujeito, no qual o histórico e o social se combinam permanentemente na constituição da subjetividade humana. Para tanto, propõe, ao referir-se a essa abordagem de subjetividade, que sejam superadas algumas unidades conceituais e metodológicas tradicionais para que se avance na reflexão teórica do plano subjetivo.
Dentre tais unidades, destaca-se a importância de ultrapassar os limites da convencional demarcação entre a estrutura psíquica e o ambiente interativo do sujeito. De maneira geral, somos acostumados a pensar a subjetividade como um perfil de um modo de ser, de pensar, de sonhar, de agir, de amar, etc., que, por sua vez, ocupa um espaço, formado de um interior e de um exterior. Esse raciocínio reduz esse perfil a uma espécie de imutabilidade, tal como o interior e o exterior que ele divide. Entretanto, tem sido percebida, na realidade atual, a necessidade de redirecionar esse pensamento para um ângulo maior de reflexão. Rolnik (1997) utiliza, para esse fim, um artifício explicativo bastante interessante. Ressalta ela ser esse perfil recoberto por uma "pele" (tecido vivo, móvel, de densidade ilusória), por onde passam os diversos elementos que compõem tudo o que habita a subjetividade, como o ambiente profissional, afetivo, familiar, econômico, social, cultural, etc. Como esses meios variam e intercruzam-se constantemente, forçosamente essa "pele" passará a movimentar-se ou "dobrar-se" de forma diversificada, tendo que, em certos momentos, curvar-se, e em outros estender-se de acordo com a seguinte dinâmica:
Cada modo de existência é uma dobra da pele que delineia o perfil de uma determinada figura da subjetividade ... o dentro detém o fora e o fora desmancha o dentro. Vejamos como: o dentro é uma desintegração do movimento das forças do fora, cristalizadas temporariamente num determinado diagrama que ganha corpo numa figura com seu microssomo; o fora é uma permanente agitação de forças que acaba desfazendo a dobra e seu dentro, diluindo a figura atual da subjetividade até que outra se perfile (ibid., p. 27).
A estrutura psíquica do sujeito não é unicamente definida a partir de reflexos oriundos do meio externo, mas a partir das diferentes formas de relacionamento, sendo que o sujeito constantemente atualiza suas potencialidades em cada momento específico de sua vida social, e é, através desse processo, que se constitui e organiza a subjetividade individual. Assim posto, entende-se que constituição da subjetividade individual é um processo singular, constituído numa trama dialética entre o sujeito e o seu meio atual de interação, onde as ações do sujeito são determinadas a partir dessa trama. A natureza dinâmica da constituição da história subjetiva de cada sujeito em interação com o seu ambiente social inviabiliza pensar a questão biológica ou a social isoladamente. Dessa forma, uma vez constituída a subjetividade em cada sujeito, o universo exterior atua somente como momento constitutivo dessa subjetividade desse sujeito particular, o que, de certa forma, lhe tira a condição de exterioridade, aparecendo como um novo momento do sistema subjetivo que se expressa. Na verdade, o ambiente externo só atua sobre o interior do sujeito na medida em que é subjetivado por ele e passa a fazer parte da sua constituição subjetiva (Rey, op. cit.).
Em decorrência do aspecto ora enfocado, acreditam os detentores dessa concepção de subjetividade, que esta se constitui em dois níveis simultâneos e contraditórios, quais sejam o social e o individual. Esses dois níveis, aparentemente opostos, integram conjuntamente a subjetividade, como sistema complexo e plurideterminado.
O sujeito é, ao mesmo tempo, um ser que constitui uma subjetividade individual e produz paralelamente o seu universo social. Portanto o social não está fora do indivíduo, ele está dentro, uma vez que o social se constitui em subjetivo no próprio curso da história singular de cada sujeito. Nesse processo histórico individual de cada ser humano, estão integradas permanentemente todas as experiências sociais vivenciadas por esse sujeito, a partir das quais o subjetivo existe como condição processual que, simultaneamente, se confirma e modifica. Dessa forma, o contexto social, apesar de se fazer representar de maneira diversificada em cada sujeito, afeta indiscutivelmente o decurso de vida cotidiana de cada ser humano. O universo social vem caracterizar os diversos espaços de convivência social, espaços esses em que se expressa o sentido subjetivo, aos quais são atribuídas as diferentes formas do comportamento humano, fazendo com que a subjetividade seja uma referência obrigatória em termos de investigação social.
A subjetividade individual, por sua vez, não é apenas reflexo do espaço social compartilhado. Ela é um eixo diferencial que toma parte desses espaços de subjetivação, mas expressa ao nível individual esses espaços de uma maneira diferenciada (Rey, 1998, p. 6). Pressupõe pensar o sujeito concreto num contexto interativo que, em todo momento, está inserido numa dinâmica que vai além do limite estritamente individual.
A subjetividade constitui-se em sujeitos singulares, não comportando generalizações, padronizações. Ela resgata o lugar do particular, que não pode ser confundido com o individual. A singularidade do processo de subjetivação é um princípio da concepção teórica da subjetividade.
Diante do exposto, entende-se que, ao falar de subjetividade, significa pensar, obrigatoriamente, num sujeito compreendido em seus diversos momentos de atuação de sua experiência individual, produto de um processo complexo a partir do qual se estruturam os aspectos de diferentes formas, em face das rápidas transformações vivenciadas por esse sujeito na contemporaneidade.
O processo veloz de mutações, que é notório na atualidade, é enfatizado por Guattari (1986), outro teórico interessado na temática da subjetividade. Ele concorda com que os processos de subjetivação não são centrados, nem só em instâncias psíquicas, nem apenas em instâncias sociais, econômicas, tecnológicas ou de outra ordem externa. Acredita que esses processos são duplamente descentrados e articulados, e que a subjetividade é produzida por "agenciamentos de enunciação", definidos pelo autor como:
Máquinas de expressão que podem ser tanto de natureza extrapessoal, extra-individual (sistemas maquínicos, econômicos, sociais, tecnológicos, icônicos, ecolólogicos, etológicos, de mídia, enfim sistemas que não são mais imediatamente antropológicos), quanto de natureza infra-humana, infra psíquica, infrapessoal (sistemas de percepção, de sensibilidade, de afeto, de desejo, de representação, de imagens, de valor, modos de memorização e de produção de idéia, sistemas de inibição e de automatismos, sistemas corporais, orgânicos, biológicos, fisiológicos, etc. (ibid., p. 31).
Esses agenciamentos de enunciação, segundo Guattari, são os responsáveis por conectar as instâncias interiores e exteriores ao ser humano. Ressalta, porém, a importância de se observar a forma como estão sendo estruturadas, nos dias atuais, essas máquinas de expressão, as quais põem em articulação essas diferentes instâncias.
Alerta o autor para o fato de que o indivíduo está cercado de múltiplos componentes de subjetividade e supõe existir uma forma de subjetividade bem mais ampla, que denomina de subjetividade capitalista. A produção de subjetividade, uma vez entendida como matéria-prima de toda e qualquer produção, vem incidir no capitalismo como uma potente produtora de outros modos de subjetivação bastante adversos dos existentes nas sociedades tradicionais. A explicação encontrada para tal fato é que as forças sociais controladoras do capitalismo entenderam que investir na produção de uma subjetividade característica desse modelo seria mais lucrativo do que qualquer outro tipo de produção. Reitera, ainda, que aquilo que chama de produção de subjetividade do capitalismo mundial integrado - CMI - não incide apenas em estratégias de poder para controlar as relações sociais e as relações de produção. Incide, principalmente, em delinear "modelos" referentes ao comportamento, à memória, à sensibilidade, às relações sociais e sexuais, enfim, à própria percepção de mundo. Dessa forma, ao conceber a subjetividade como produção, considera que uma das principais características dessa produção nas sociedades capitalistas seria, precisamente, a tendência a bloquear processos de singularização e instaurar processos de individualização (ibid., p. 38).
Ao tentar reduzir os processos de singularização e incentivar a individualização, a produção de subjetividade atrelada ao capitalismo ameaça esmagar todo o potencial criativo do ser humano, fazendo com que passe a organizar-se segundo padrões universais.
Rolnik (1996) enfatiza essa organização da subjetividade em torno de "modelos identitários", na sua concepção acerca da temática.
Segundo a autora, habituamo-nos a pensar a subjetividade como um traçado de formas, de um perfil através do qual as pessoas se reconhecem e são reconhecidas pelos outros (formas como andam, expressam-se, vestem-se, trabalham, amam, etc.). Seria a subjetividade da "ordem das representações". Entretanto, esse conceito, de acordo com a diversidade e a velocidade das mutações ocorridas na atualidade, precisa ser redirecionado para o reconhecimento de outra dimensão de subjetividade, qual seja, a subjetividade da "ordem das sensações". Esta é, por sua vez, invisível e irrepresentável, porém igualmente material e real (ibid., p. 10). Cada subjetividade vive mergulhada em universos culturais, políticos, sexuais, domésticos etc. Tais universos estão presentes tanto na subjetividade da ordem das representações como na subjetividade da ordem das sensações. Esses universos de subjetividades estão em constante transformação, alguns confrontando-se, alguns desaparecendo, outros permanecendo e alguns se integrando. Esse processo acontece incessantemente até o ponto em que há uma dificuldade em reconhecer-se e em ser reconhecido pelo outro. É nesse momento que entra em cena a sensação de estranhamento, porque há uma inequação entre sua realidade sensível e sua realidade expressiva. Esse colapso de sentido produz mal-estar (ibid., p. 11).
2. O mal-estar na contemporaneidade
Freud (1930), em seu célebre texto "Mal-estar na civilização", nos proporciona a base de entendimento para a compreensão do que é o mal-estar vivido na contemporaneidade.
Nessa obra, a "felicidade" é enfocada como o grande propósito da vida humana. Esforçar-se para ser feliz e assim permanecer constitui o grande objetivo do programa do princípio do prazer perseguido pelo homem. Entretanto, Freud (op. cit., p. 95), ao referir-se à felicidade, assim se expressa:
O que chamamos de felicidade no sentido mais restrito provém da satisfação (de preferência, repentina) de necessidades represadas em alto grau, sendo por sua natureza, possível apenas como uma manifestação episódica. Quando qualquer situação desejada pelo princípio do prazer se prolonga, ela produz tão somente um sentimento de contentamento muito tênue.
Dessa forma, a felicidade é contrastada pelo sofrimento que, por sua vez, é muito mais fácil de ser experimentado. O sofrimento, segundo ele, é uma ameaça constante ao homem, sendo originado basicamente pelo próprio corpo humano, condenado à decadência e à velhice pelo mundo externo com sua terrível força esmagadora e pelo relacionamento entre os homens.
Diante da diversidade de fontes de que emana o sofrimento e da potência de seus efeitos, o homem vem, cada vez mais, inibindo suas reivindicações de prazer, de felicidade. A tarefa de encontrar estratégias para evitar o sofrimento passou, então, a ser mais valorizada do que a própria busca do prazer. Assim, surge o cenário em que o indivíduo situa-se, qual seja, entre a estrutura biológica, sociocultural, política e econômica e a sua estrutura libidinal-pulsional e psíquica. Na medida em que esta última não pode ter todas as pulsões contempladas em função da realidade, são operados bloqueios, recalques no fluxo da libido que, por sua vez, condiciona a sublimação da sexualidade.
A civilização, na medida em que restringe a vida sexual, amplia a unidade cultural. O pressuposto dessa afirmação parte da idéia de que a civilização visa a unir os diversos membros da comunidade e, quando um relacionamento amoroso acontece, a relação destes com os outros seres humanos torna-se desnecessária. Daí por que se faz presente a necessidade de inibir a libido do homem para fortalecer o vínculo comunal através da amizade. Reside aí a explicação para a incompatibilidade entre civilização e sexualidade.
Entretanto, a civilização não atingiu, em seu curso, apenas a sexualidade do homem, mas também a sua agressividade. Com o que se expôs sobre as restrições impostas às pulsões do homem "civilizado", permite-se pensar que o homem primitivo se encontrava em melhor situação em relação à felicidade do que o atual. Porém, se a felicidade era conquistada com maior facilidade, a possibilidade de desfrutá-la era restrita em face de forte agressividade do homem primitivo, fato que sugere entender que o homem contemporâneo trocou parte do prazer por uma parcela de segurança, através da repressão dessa agressividade. Freud argumenta, ainda, que a agressividade do homem primitivo, reprimida através da civilização, liga-se a um tipo de pulsão, que contraria a preservação da vida, tendo, portanto, o mesmo grau de importância na constituição do ser humano. Dito de outra forma, ele aponta que, paralelamente à pulsão de vida, existe também a pulsão de morte, de onde deriva a agressividade do homem. Dessa maneira, com a evolução da civilização, representa o tempo todo o conflito entre a pulsão de vida e a pulsão de morte, uma analogia com a evolução da própria espécie humana.
A estratégia utilizada pela civilização para restringir a agressividade do homem foi introjetá-la, internalizá-la, ou seja, enviá-la para o seu lugar de origem, dirigi-la ao próprio ego que, por sua vez, está submetido à autoridade do superego, que atormenta o ego pecador com o mesmo sentimento de ansiedade e fica à espera de oportunidades para fazê-lo punido pelo mundo externo (ibid., p. 149). A civilização, portanto, consegue dominar o instinto agressivo do indivíduo, enfraquecendo-o, desarmando-o e criando, em seu universo interior, um sensor para ocupar-se dele, no caso, o superego.
Entretanto, a trajetória empreendida obedece a uma seqüência cronológica, que assim se explicita:
Em primeiro lugar, vem a renúncia ao instinto, devido ao medo de agressão por parte da autoridade externa. Depois, vem a organização de uma autoridade interna e a renúncia ao instinto devido ao medo dela, ou seja, devido ao medo da consciência. Nessa segunda situação, as más intenções são igualadas às más ações e daí surgem sentimento de culpa e necessidade de punição (ibid., p. 151).
O sentimento de culpa é, nesses termos, enfocado como uma espécie de ansiedade, de insatisfação, de mal-estar, através do qual, as pessoas terão que buscar outras motivações para suas vidas.
Na realidade, Freud tenta mostrar que, se a civilização se impõe ao desenvolvimento da humanidade, passa obrigatoriamente pelo conflito inato entre os instintos de preservação de vida e de morte, o qual implica um aumento do sentimento de culpa, sentimento esse reconhecido pelo autor como o mais importante problema no desenvolvimento da civilização.
Vale salientar que essa visão enfocada por Freud tem todo um referencial psicanalítico acerca do mal-estar na cultura, mas, a partir de seus trabalhos clínicos, ele próprio deixou bem clara a importância de sua inserção no quadro geral da civilização, sendo, portanto, universalmente válido para diversas áreas e épocas.
O texto citado deixa claro que o estado de mal-estar compreende essencialmente a categoria do conflito como eixo norteador.
Porém, quase setenta anos após essa proposição, numa era tecnológica e cultural avançada, diante do processo de "complexificação" das condições socioeconômicas e pulsionais da vida humana, inerentes ao final do milênio, o mal-estar como sintoma, conforme o próprio Freud previa, deve ser recontextualizado de acordo com a era atual, muito embora se deva preservar a instância da conflitividade como questão de base.
Nessa redefinição e atualização do estado de mal-estar, evidencia-se que, nesse final de século, não seria mais viável pensar em um mal-estar na cultura, mas numa cultura do mal-estar (Trivinho, 1997, p. 30). Em outra abordagem, significa dizer que tal mal-estar deixou de ser um elemento, ao mesmo tempo constitutivo e opositor da civilização, para se estabelecer na atualidade como condição própria de tal civilização. Explicita-se no presente como um mal-estar estrutural que se incorporou ao próprio ser humano na sua dimensão individual e social.
Na construção teórica e no âmbito onde se desenrola o fenômeno da prostituição infanto-juvenil, percebe-se claramente a dinâmica que envolve o mal-estar e a subjetividade de acordo com o que aqui se expôs.
3. A prostituição e a subjetividade da adolescente
A trajetória casa-rua percorrida pela adolescente em situação de prostituição segue, de forma geral, uma trilha que envolve um cenário submerso numa violência doméstica, que traz marcas profundas no universo subjetivo de quem a vivencia. São experiências cotidianas permeadas por abusos e maus-tratos de várias formas, inclusive abusos sexuais, na maioria das vezes silenciados. A rua se descortina, inicialmente, como a alternativa mais viável para a busca do prazer, da liberdade, do lúdico, da felicidade. Ao chegar a esse espaço, inicialmente é submetida à prática da mendicância, do furto/roubo e da prostituição, como maneiras disponíveis para prover sua subsistência.
Entretanto, de acordo com o próprio processo decorrente do desenvolvimento da civilização, que impõe ao homem estabelecer vínculos de amizade com os seus semelhantes, a menina, ao ingressar no mundo da rua, necessita, para poder nela permanecer e se estabelecer, agregar-se aos diversos companheiros que com ela compartilham aquele espaço conquistado. Acontece, então, gradativamente, a sua entrada na turma de amigos da rua. Tornar-se integrante da turma traduz-se na única possibilidade de conseguir aceitação e, principalmente, proteção. Outra decorrência dessa espécie de pertença é a iniciação da adolescente às atividades da prostituição, nas quais, dependendo da idade e do período de permanência na rua, ela ascende gradativamente. Acompanhar a amiga mais experiente apresenta-se como o rito de iniciação ao mundo da prostituição, o que consiste em proteger tal amiga, no sentido de assegurar o pagamento previamente acertado pelo "cliente", favorecer o programa com sua parcial participação ou, até mesmo, ajudá-la a furtar o parceiro, caso ele "vacile".
No entanto, esse percurso empreendido também traz marcas dolorosas. A adolescente, na condição de sujeito, constituída de uma subjetividade individual, na qual o social se subjetiviza permanentemente na história singular de cada uma, não pode deixar de ser afetada pela forma como a sociedade vigente visualiza a prostituição, que, por sua vez, desencadeia, a partir de tal pensamento, a incorporação de um elevado sentimento de culpa.
Para que se possa melhor entender a sociedade contemporânea, torna-se necessário enfocar a moral do trabalho, inserindo-a na discussão do fenômeno da prostituição infanto-juvenil na atualidade. O pano de fundo dessa moral do trabalho gira em torno de uma mecanização e uniformização que impõe limites ao potencial criativo do homem, onde o próprio corpo passa a ser "disciplinado" e "ordenado", basicamente para o trabalho.
Fazendo-se uma analogia à sociedade burguesa do século XIX, é como se pudesse supor que todo o aparato educacional direcionado para o servilismo do Estado, naquela época, houvesse sido transportado, nos dias de hoje, para uma moral do trabalho, que, por sua vez, passa a direcionar a vida dos indivíduos, rumo ao que se considera produtivo, ou seja, rentável do ponto de vista econômico.
O que de diferente dessa moral surge passa a ter uma conotação de "estranheza", de "marginalidade", o que induz os diversos segmentos da sociedade a guiarem-se por uma "moral", onde torna praticamente impossível articular, numa mesma plataforma, a esfera do trabalho e a esfera do prazer.
Diante disso e, ainda, seguindo a linha de pensamento da filósofa Hannah Arendt (1987), de que só adquire visibilidade o que se explicita na esfera pública, o prazer, ao ausentar-se do mundo público, viabiliza-se no mundo do privado, submetendo-se, então, ao espaço da ocultação, da invisibilidade, da inexistência.
Dessa forma, o prazer inserido na esfera privada passa a ser "ordenado" por uma moral que remonta à sociedade burguesa do século XIX e, conseqüentemente, fruto do próprio processo de civilização que tornava incompatível a conciliação do processo civilizatório com a sexualidade, sendo apenas concebido em face da necessidade de procriação e preservação da espécie humana (Freud, op. cit.).
A prostituição, por contrariar todo esse quadro, surge como um segmento que precisa ser "banido", "segregado", uma vez que teria toda uma possibilidade de desordenar as relações sociais estabelecidas por essa moral.
De acordo com esse pensamento, as cidades passaram a seguir uma espécie de zoneamento, de forma a destinar determinados lugares para os segmentos considerados "nocivos" à ordem da sociedade vigente.
Uma pesquisa realizada com mulheres que atuam nos prostíbulos da capital cearense ressalta que:
Em Fortaleza, não muito diferente do que ocorreu em outras cidades estrangeiras, a onda de higienização baseou-se nas mudanças de costumes através das reformas urbanas e sociais, tornando-se necessária e imperante a localização do meretrício como forma de separar duas morais que não podiam prescindir uma da outra: a moral da casa e a moral do prostíbulo (Sousa, 1996, p. 66).
Dentro da perspectiva de uma sociedade regida por uma moral e uma ética, que inviabiliza a conciliação entre o trabalho e o prazer, onde o primeiro assume lugar de destaque em detrimento do último que é tido como transgressor da normalidade, a prostituição vem romper com o arraigado pensamento dominante.
Diógenes (1998), ressalta que o grande incômodo causado pela prostituição é que ela, ao "se tornar campo de explicitação do caráter mercadoria do corpo e do prazer", "vitriniza" o que deve ser escondido para não perturbar a ordem social.
É como se pudesse supor um mesmo campo, uma sociedade funcionando como uma máquina de unificação poderosa, e a prostituição, segmento considerado "maldito", atuando num sentido inverso, como uma espécie de força dispersiva, em contrapartida à homogeneização que se pretende instaurar.
O estigma que permeia o mundo da prostituição adulta, que faz com que os seus modos de subjetivação sejam o tempo todo delimitados entre dois tipos distintos de territórios simbólicos de conduta moral, ou seja, a nítida divisão entre o que representa ser prostituta no "mundo de fora" e o no "mundo de dentro" (Castro, 1993), como mecanismo de defesa ou estratégia de sobrevivência quanto ao mal-estar que experiencia, também se faz presente na adolescente em situação de prostituição. Habita o espaço subjetivo da menina envolvida com a prostituição um arraigado conceito de desvalor, de vergonha, de baixa-estima ao deparar-se com o seu envolvimento em tais atividades. Nesse estágio entra em cena "o sentimento de culpa", advindo de suas duas fontes originárias: o sentimento de culpa originado pelo medo da autoridade externa, representado nesse contexto pela figura da sociedade e o derivado do medo do superego, através do que foi subjetivado individualmente como conduta desviante, pecaminosa.
Desde a década de 30, Freud (op. cit., p. 158) já preconizava o sentimento de culpa na seguinte dimensão:
... corresponde fielmente à minha intenção representar o sentimento de culpa como o mais importante problema do desenvolvimento da civilização, e de demonstrar que o preço que pagamos por nosso avanço em termos de civilização é uma perda de felicidade pela intensificação do sentimento de culpa.
Recontextualizando o pensamento de Freud na sociedade atual, as possibilidades de o homem contemporâneo sucumbir a uma mistura de variadas patologias simultâneas multiplicaram-se e fortaleceram-se, disseminando-se tanto de forma individual como coletiva.
Para parte do contingente das crianças e adolescentes que vivenciam o cotidiano das ruas, o objetivo de busca de felicidade foi trocado pela simples expectativa de permanecer existindo no dia seguinte. Quando indagados sobre o que esperam do futuro, normalmente respondem: o futuro é amanhã, é permanecer vivo. Viver ou morrer não faz muita diferença. Nesse ritmo estabelecido, o confronto entre os companheiros é levado às últimas conseqüências. Sai lucrando quem consegue sobreviver. Cada dia a mais é contabilizado como um saldo positivo. Nessa realidade, os conflitos entre os instintos de vida e de morte também se estabelecem.
Entretanto, esse mal-estar, hoje vivenciado, encontra-se também envolto em ambigüidades, uma vez que, visto de um outro ângulo, é apontado como desencadeador de uma força produtiva potencial, que, por sua vez, pode vir a desencadear surpreendentes conseqüências na sociedade tecnológica atual.
É a partir desse mal-estar ou dessa certa insatisfação que o ser humano busca outros tipos de motivações para suas vidas e a subjetividade ou as construções subjetivas são as formas encontradas pelo homem para se posicionar frente a tal mal-estar ou para criar novas formas de existência.
A esse respeito Rolnik (1997, p. 33) assim se reporta:
O modo pelo qual os indivíduos vivem essa subjetividade oscila entre dois extremos: uma relação de alienação e opressão, na qual o indivíduo se submete à subjetividade tal como a recebe, ou uma relação de expressão e de criação, na qual o indivíduo se reapropria dos componentes da subjetividade, produzindo um processo de singularização.
Na dinâmica de vida da adolescente em situação de prostituição, a sua entrada na turma reflete o primeiro extremo de oscilação da subjetividade acima enfocado. A adesão a roupas de "marca", o uso constante de drogas são, dentre outros, os elementos utilizados para anestesiar os sentimentos e sustentar uma ilusão identitária. Ao configurar-se a partir de comportamentos "massificados", a subjetividade não escutará seus estados sensíveis, individualizados, para criar uma nova forma de existência, apenas buscará modelos para "guiar-se" a partir deles (Rolnik, 1996, p. 11).
Da mesma forma em que o desenvolvimento da civilização impôs ao ser humano o sofrimento, numa escala bem maior do que a felicidade, a sociedade, posta nesse final de século, proporciona, em abundância, estratégias responsáveis por essa adesão a comportamentos "massificados", deixando de considerar, por completo, a subjetividade enquanto objeto de estudo no trato das crianças e adolescentes, frente a variável do mal-estar na perspectiva aqui abordada.
As alternativas possíveis de desencadeamento de suas singularidades e desenvolvimento de seus ricos potenciais criativos ainda são muito tênues, fato bastante comprometedor.
Acredita-se que o mal-estar, enquanto sintoma de uma época, não pode ser limitado apenas ao conhecimento de suas nuanças mas deve, sim, acima de tudo, ser esmiuçado e reciclado continuamente para que se possa compreendê-lo, tendo por base explicações consistentes e atualizadas, para, quem sabe, num futuro próximo, a situação de grande parte das crianças e adolescentes brasileiras não seja a mesma de agora.
A PROSTITUIÇÃO INFANTIL FEMININA NO BRASIL:
CONSIDERAÇÕES SOBRE A VISÃO DA CPI
Helena Fontoura
Romeu Gomes
Introdução
O presente artigo apresenta parte de uma pesquisa que aborda a relação entre prostituição infantil feminina, processo saúde-doença e violência (CLAVES, 1994), desenvolvida pelo Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde "Jorge Careli" (CLAVES) da Fundação Oswaldo Cruz, com sede no Rio de Janeiro, Brasil. Essa investigação foi patrocinada pela Organização Panamericana de Saúde (OPS). O escopo geral da pesquisa foi refletir sobre a configuração da prostituição infantil feminina no Brasil e contribuir para um debate dessa problemática no campo da saúde pública
A prostituição infantil, em qualquer cenário em que se configura, desponta como um fato cruel com diferentes matizes. Há momentos em que ela se integra ao tráfico de drogas; há situações em que ela se confunde com a miséria, e há casos em que seu início ocorre dentro do próprio lar. Em qualquer uma dessas situações, as crianças que a ela sobrevivem têm uma história comum a contar: a história da violência. As marcas desta violência são visíveis nos corpos e nas mentes, mesmo para aqueles que fazem força para não ver. É a partir dessa perspectiva que abordamos a presente temática.
Em termos metodológicos, a pesquisa que serviu de base a este artigo foi, predominantemente, de caráter qualitativo, visando realizar análises das representações sociais e das relações estruturais em torno do objeto da investigação, tentando contextualizar as falas sobre o tema e as observações realizadas nos espaços sócio-cultural onde se deram as observações.
Este trabalho especificamente se volta para os depoimentos prestados à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) instaurada pela Câmara Federal dos Deputados, com 13 deputados-titulares de diferentes partidos e igual número de suplentes. Essa comissão foi criada com o objetivo de apurar responsabilidades pelo fenômeno disseminado no território e culturalmente persistente da exploração e prostituição infanto-juvenil. O prazo previsto para o seu funcionamento, inicialmente, compreendia o período de 28 de maio a 26 de setembro de 1993. Posteriormente, foi prorrogado para o mês de março de 1994.
O funcionamento dessa CPI, como todas comissões dessa natureza, segue uma agenda de reuniões ordinárias, que são semanais ou quinzenais. Durante as reuniões, ocorriam debates entre os seus membros e tomada de depoimentos de pessoas que eram intimadas por causa de seu envolvimento com a exploração de crianças, ou ainda de pessoas convidadas devido à sua atuação junto ao objeto de discussão das reuniões. Além das reuniões, alguns membros da comissão faziam visitas a diferentes locais do país para observarem situações que podiam configurar a exploração sexual de crianças.
As pessoas que prestaram depoimento nas sessões da CPI, em geral, representavam instituições governamentais e não-governamentais, destacando-se: membros de grupos que defendiam os direitos da infância; voluntários e profissionais que trabalhavam com crianças sexualmente exploradas e/ou meninos e meninas que vivem na rua; líderes religiosos; jornalistas; juízes e promotores públicos; policiais; jornalistas e radialistas; representantes de ministérios e secretarias de estados; membros de órgãos públicos internacionais, a exemplo do UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância).
Ao todo foram consultadas as notas taquigráficas de 22 sessões, realizadas no período de junho de 1993 a março de 1994, perfazendo 87 depoimentos. Quando se procedeu à análise dos depoimentos, o relatório não havia sido concluído. Com base neste fato, as considerações aqui constantes estão centradas nas falas de depoentes e não no pensamento oficial da CPI. Por se tratar de uma Comissão Parlamentar, entendemos que a compreensão da fala aí expressa traduz, de forma privilegiada, o campo de preocupações, de estereótipos, de preconceitos e também de busca de possíveis soluções.
No estudo desses depoimentos, focalizamos principalmente as representações sociais da prostituição infantil. Assim como Adam e Herzlich, acreditamos que as falas se apoiam em noções, símbolos e esquemas de referências interiorizados relacionados às suas origens sociais e culturais. Segundo esses autores, para compreendermos de que forma as representações e os discursos servem de referência para ação, é preciso relacioná-los, de um lado, aos problemas cotidianos da vida das pessoas e, de outro, às características de suas relações sociais. No processo de representação, elementos da estrutura social, sistemas de valores e referências culturais assumem um papel fundamental.
A técnica de análise dos depoimentos, proposta por Minayo, procurou integrar aspectos da análise temática de Bardin e princípios da concepção de Habermas. Dado o fato de que, embora a prostituição infantil esteja sendo praticada em todo o território nacional, tentamos aqui, experimentalmente, tratar as representações presentes nos depoimentos à CPI, por suas expressões nas regiões. Certamente haverá concepções gerais e específicas, sendo necessário detectar as semelhanças e diferenças quando se trata de propor diretrizes de ação. Após a organização dos depoimentos por origem regional dos depoentes, identificamos os núcleos de sentido presentes no material para caracterizarmos as peculiaridades de cada um dos contextos sociais em termos da ocorrência da prostituição infantil. Após esse primeiro passo, procuramos situar os depoimentos no universo sócio-cultural brasileiro no sentido de buscar uma maior compreensão da complexidade da problemática abordada.
Com base nessa opção metodológica, inicialmente esboçamos um desenho da visão apresentada pela CPI da situação dos diferentes regiões brasileiras. Em seguida, procuramos discutir aspectos relacionados à temática, que refletem determinações sócio-histórico-culturais. Por último, refletimos sobre as implicações do problema no campo da saúde.
Configurações regionais na ótica da CPI
A partir das falas dos depoentes e dos relatos das observações dos membros da CPI, realizadas através de visitas locais, a prostituição infanto-juvenil se configura de forma diferenciada nas diversas regiões do país. Isto não significa que ela deixe de expressar, em alguns locais, implícita ou explicitamente a violência. Destacamos a questão das redes de relações porque, em algumas partes do país, o agenciamento ou a organização para se prostituir crianças e adolescentes é um dado significativo.
A análise que fazemos a seguir sobre as especificidades regionais da prostituição infanto-juvenil se volta mais para a caracterização do problema do que para sua extensão. Não é proposta deste relato buscar quantificações, mesmo porque os dados levantados, a nível nacional, são incompletos e insuficientes para tal.
Os relatos que a CPI apresenta sobre a situação na Região Norte, principalmente nas áreas de garimpos, apresentam a situação de uma forma muito cruel. Esta crueldade revela a indignação, a conivência, a omissão e a impotência. Diante de fatos tão violentos descritos, é impossível, em primeiro lugar, que alguém que esteja à frente de uma instituição voltada para o atendimento de crianças e adolescentes não perceba o que acontece na região. Talvez pela própria dramaticidade como a situação é exposta, as instituições sociais se vêem impotentes para agir, assumindo diferentes atitudes, ora denunciando, ora se omitindo, ou até se corrompendo. O quadro regional do problema é denunciado como deixando marcas violentas nos corpos das crianças e, em alguns casos, levando-as à morte como conseqüência. A narrativa dos casos é de tamanho impacto que fica a dúvida de se tratar de ficção ou realidade.
Os relatos ajudam a compor o quadro da região. Em geral, as falas revelam que nas áreas de garimpos as meninas vivem em regime de escravidão e são tratadas como mercadoria.Um depoimento fala da existência de uma tabela, exposta em uma boate, indicando que a relação sexual com uma menina custava menos do que uma dose das bebidas Natu Nobillis e Cinzano. Há denúncias sobre meninas serem obrigadas a se relacionar sexualmente com 15 a 20 homens por dia. Um outro testemunho traz o fato de que no Acre uma criança foi levada para o garimpo e, tendo se recusado a ter sexo com o chefe do mesmo, este a degolou e saiu com a sua cabeça exposta, mostrando o que aconteceria com quem não lhe obedecesse.
Em vários depoimentos se mencionam as dificuldades de combate a esta cruel realidade, por parte da Polícia Federal, devido principalmente às grandes distâncias em que se localizam dos garimpos e a escassez de pessoal para o atendimento. Conclui-se daí que este problema não é considerado prioritário pelos órgãos de combate ao crime e as contravenções. Por outro lado, as organizações que facilitam a prostituição infanto-juvenil, assim como outras instâncias do crime organizado, são mais equipadas do que os órgãos públicos responsáveis pela repressão e proteção. Seria importante refletir, por exemplo, por que as distâncias físicas conseguem, neste caso, impedir ações e em relação a outros problemas, não. Segundo a fala de um representante da Polícia Federal, em Itaituba (município do Pará), por exemplo, já houve um posto da polícia, mas o objetivo era dar segurança à Caixa Econômica Federal e à Receita Federal, porque a preocupação do serviço público era com a proteção contra o contrabando do ouro, ou seja, era financeira e econômica. Quando o garimpo do ouro diminuiu, o posto foi desativado. Assim também ocorreu com Serra Pelada. Este depoimento dá a dimensão da naturalização com que é tratada a violência social, sexual e a prostituição.
A configuração pelos informantes à CPI de algumas áreas da Região Centro-Oeste, devido à sua proximidade com o norte e por causa de seus garimpos, se confunde com a da Região Norte. Segundo um relato, por exemplo, há casos de aliciamento de mulheres, e entre elas, meninas de Cuiabá e Goiânia. São recrutadas a pretexto de irem trabalhar em lojas ou como garçonetes e quando chegam nos garimpo, descobrem que seu destinado é a prostituição, passando a ser mantidas em cativeiro e, muitas vezes, com a conivência ou a ajuda de policiais locais. Especificamente, no Centro-Oeste são citados casos de caminhoneiros que participam voluntária ou involuntariamente na promoção do problema, ou porque servem de ligação entre locais interioranos e centrais de agenciadores ou porque dão carona às meninas para os lugares dos agenciadores sem saber que estão contribuindo para a manutenção e a reprodução dessa forma de violência.
Em geral, áreas do Centro-Oeste e do Norte se misturam na prática do tráfico de meninas, tendo como capital desta rota, Itaituba, município do Pará. Com base em depoimentos, sabe-se que meninas retiradas por instituições sociais ou pela polícia dessa situação de exploração, acabam voltando pouco depois para seu cativeiro por falta de opção de vida e de trabalho, ou por terem se acostumado a essa forma de ganhar a vida. Igualmente, alguns agenciadores, acusados e retirados da área de exploração, depois de atos isolados de repressão, voltam impunes para dar continuidade aos seus negócios, demonstrando-se, como já foi dito, a naturalização, a cronicidade do problema e a falta de uma política combativa por parte dos poderes públicos.
Os problemas não são uniformes em todos os locais; há diferenças nas áreas de garimpos, comparadas às áreas urbanas, como Belém e Manaus, no Norte, e Brasília, no Centro-Oeste. Mesmo nos centros urbanos há algumas diferenças sobre como se apresenta a situação. Observamos, pelos depoimentos, que nestes centros o aliciamento para a prostituição bem como a sua manutenção, oscila entre o requinte, como é o caso dos programas de hotéis para clientes importantes, financeira, social ou politicamente, e o ambiente das meninas pobres, sobretudo das que vivem na rua, exploradas sexualmente por policiais e outras pessoas que vivem ou transitam nesses espaços públicos.
Viajando para o outro extremo do país, no Sul, os depoimentos na CPI permitem descrever um quadro que, apesar de se afigurar com tons mais suaves, não deixa de ser cruel. Na região Sul, as autoridades e a sociedade foram denunciadas como assumindo duas atitudes de omissão. Segundo o relator da CPI, na região há a ‘síndrome de Pilatos’, que se traduz pelo fato de os diferentes órgãos públicos da justiça e da segurança lavarem as mãos, fazendo de conta que o problema não acontece. Já a presidente da CPI observa outro fato que a este se relaciona. Trata-se da lei do silêncio, gerada pelo medo da denúncia, que dificulta as investigações, ficando tudo "escondido por debaixo do tapete", velando-se o problema.
Nesta região, envolvendo principalmente os estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, a rota da prostituição de crianças e adolescentes foi também mapeada e escrita no jornal Zero Hora, de Porto Alegre, coincidindo a apresentação dos problemas da Comissão com o relato de dois profissionais deste jornal.
Na área urbana, mais especificamente em Porto Alegre, existem quadrilhas especializadas em traficar e prostituir meninas. Um destes grupos, chefiado por um policial civil aposentado, na época em que a matéria jornalística foi feita, contava com uma rede de 12 gigolôs e aproximadamente 60 meninas, além de outras prostitutas com mais de 18 anos de idade. O grupo buscava as crianças preferencialmente no interior, principalmente em Chapecó, cidade com 120 mil habitantes e 100 bordéis. Lá, segundo os relatos, é fácil conseguir até 30 meninas, bastando pagar de 50 a 100 dólares por cada uma. Um jornalista simulou a compra para mostrar esta facilidade. Vindas para Porto Alegre, as meninas são mantidas em cárcere privado em pequenos hotéis no centro da cidade. Um dos gigolôs se passava, no interior, por inofensivo vendedor de bonecas e bichinhos de pelúcia, expostos em praça pública, funcionando como chamariz.
Há casos também em que as meninas são atraídas por anúncios de rádio que oferecem empregos de doméstica. Chegam à rodoviária com sonhos de que vão ter televisão a cores e vão poder estudar, e lá mesmo são abordadas por aliciadores experientes com a promessa de lhes conseguir emprego. Na verdade, a seqüência da história é que as entregam para os gigolôs, que as trancam nos hotéis, as surram, as adestram nas artes sexuais, consumando-se assim o início da vida de exploração. Dificilmente essas meninas escapam das mãos dos gigolôs.
Outra forma de os agenciadores agirem é conseguir meninas e mulheres para festas de empresários e visitantes estrangeiros. Segundo os depoimentos, costumam agir em áreas economicamente dinâmicas, como Vale do Sino e Caxias do Sul, que concentram 80% de toda força industrial gaúcha.
Na área rural, na opinião de outro jornalista, o problema é mais cruel porque, junto à existência de colonos com boas condições de vida, há milhares de famílias sem terra expostas a inúmeros problemas, aí se incluindo a prostituição infanto-juvenil. O jornalista encontrou uma menina de 7 anos prostituída que fazia sexo oral com caminhoneiros.
Nessa área, há duas formas de aliciamento, mas a mais popular é o programa de rádio, chamado Hora do Recado, que anuncia empregos. Os grupos que dele se utilizam, depois de alguns dias do anúncio, começam a agir. Aparece um aliciador no interior, perguntando quem aceita trabalhar na capital. Recruta assim filhas de agregados, oferecendo emprego e escola. Leva as meninas para uma cidade pequena e de lá as embarca de ônibus para uma cidade maior, onde são recebidas por alguém da turma de agenciadores.
Outra forma local de se iniciar crianças e adolescentes na prostituição é através de motoristas de táxis que, com promessas de emprego, recrutam as meninas nas casas e levam para um prostíbulo de beira de estrada. No caminho, eles já fazem a iniciação sexual. A dona do prostíbulo fornece comida, roupa, perfume, remédio para DST e outros objetos de consumo às meninas. Depois de "amaciadas" segundo expressão do jornalista, as meninas estão prontas para ir para os grandes centros. Os motoristas que participam do esquema pagam a dívida delas e as levam para um prostíbulo de um centro maior. Lá eles as vendem pelo preço que pagaram ao bordel da estrada, mais a corrida do táxi e mais uma taxa de 10% ou 15%.
Também existem gigolôs que pegam grupos de prostitutas e levam para o local onde a safra agrícola for melhor. Depois de explorarem bem o local, seguem para outra região com seu grupo. Nesta rota, há a preferência pelas filhas de famílias religiosas que dificilmente as aceitam de volta, caso consigam escapar da prostituição. Este fato é usado como ameaça para as meninas, e serve para pressioná-las a permanecerem no negócio.
No interior, na avaliação do jornalista, ainda há muita ingenuidade e muita desinformação. Basta ter boa aparência e boa comunicação que se consegue levar as filhas dos colonos. Sua observação se baseia em conversas que teve com inúmeros pais, possíveis vítimas da situação. Ou seja, há um sistema lucrativo montado em que várias pessoas exploram a vida, o corpo, e as esperanças das crianças e adolescentes.
Na Região Sudeste, em específico no Rio de Janeiro, destacamos dois aspectos importantes. O primeiro diz respeito à pouca visibilidade do problema da prostituição infantil feminina. O depoimento de um representante de uma organização de apoio às meninas, por exemplo, ao apresentar dados sobre o assunto, em termos verbais, revela que seu autor tem receio de ameaças. Fica claro em sua fala que não é fácil divulgar publicamente informações em relação à prostituição infantil, por se tratar de um negócio poderoso em rede, frente à qual estas organizações de apoio são pequenas. Da fala deste depoente, fica o alerta de não se vincular a figura da menina que vive na rua à prostituição infanto-juvenil. Segundo ele, isto foi feito por um jornal carioca, com entrevistas de meninas que vivem na rua, acarretando sérios problemas para elas. Pela sua experiência, o depoente prefere falar de situações que não são denominadas de prostituição, mas de exploração sexual.
O segundo aspecto a ser destacado sobre a cidade do Rio de Janeiro, ao contrário de outros locais, diz respeito à visibilidade da prostituição infanto-juvenil masculina. Este tipo de fenômeno é levemente mencionado em depoimentos de outras regiões, mas só no Estado do Rio de Janeiro é objeto de análise. Segundo o depoimento de um psicólogo do programa de prevenção à AIDS do Hospital Gafré Guinle, a prostituição masculina não está localizada numa área específica da cidade. Em geral, trata-se de uma prática velada. Sua existência é pouco observada e pouco identificada. Quando apontada pela televisão ou pelos jornais, aparece de forma estereotipada, mostrando rapazes musculosos, bonitos, com boa aparência. Na realidade, porém, a situação desse grupo social é bastante diferente. O michê pode ser qualquer um: um office-boy, um menino que vive na rua, um garoto de classe média, um surfista da Zona Sul.
Na prostituição masculina de adolescentes, nem sempre as pessoas são exploradas ou conduzidas a esta prática, que basicamente é de natureza homossexual. Segundo o depoente, 90% dos clientes são de classe social mais elevada. Os que vivem desta prática não se sentem homossexuais porque desempenham um papel ativo e o fazem para ganhar dinheiro. Em vários casos o dinheiro é o álibi para o exercício desta sexualidade. A questão da exploração também existe nesse âmbito, sendo que policiais têm uma participação significativa na extorsão dos rapazes. Mas há casos em que eles se referem ao prazer e não à exploração. A figura do cafetão não é percebida. Alguns são levados para a casa de homossexuais mais velhos, o que é um fato algumas vezes aceito pelas suas famílias, porque costumam ganhar dinheiro com isso.
Ainda no Rio de Janeiro, houve a denúncia de que havia uma diretora de um CIEP (Centro Integrado de Educação Popular) que fez um álbum de fotografias de estudantes e encaminhou para um motel. Os clientes escolhiam as meninas pelas fotografias e o carro do motel buscava a estudante no CIEP, levando-a para a exploração sexual. Há também relatos da presença marcante de pseudo agências de modelos que camuflam a exploração sexual de adolescentes.
Em síntese, com base no conjunto das falas, em relação à cidade do Rio de Janeiro, podemos considerar que: (a) a questão da prostituição infantil masculina aparece de forma mais visível; (b) há aspectos comuns a outros locais, em termos de meninas serem exploradas sexualmente, atraindo turistas e/ou clientes em geral; (c) há casos de meninas que vivem na rua que, para sobreviverem, praticam trocas de favores sexuais, sem, no entanto, se considerarem prostitutas.
A análise sobre a situação de São Paulo dá ênfase ao depoimento de uma menina que vive na rua, que luta pela vida, e que, marcada, doente e criminalizada, acaba vendendo seu corpo. Existem menções também a casos de meninas que vivem na rua e sofrem violências sexuais, principalmente por parte de policiais, assim como de meninas que caem nas mãos dos cafetões ou cafetinas. Algumas delas usam drogas, crack na maioria das vezes; também são comuns os relatos de casos em que os traficantes as usam para passar as drogas para os clientes.
Entre as meninas exploradas sexualmente, existem as que vêm de outros estados com a promessa de emprego. O aliciador faz promessas, juras de amor, desvirginando-as e obrigando-a a trabalhar para ele. A rodoviária é um lugar de contato para os aliciadores. Adolescentes que chegam com caminhoneiros fugindo de casa ou com o sonho de emprego e que são presas fáceis para os agenciadores. Nos bordéis e em boates é comum a prática de se alterar as idades de adolescentes para que não se configure a prostituição infanto-juvenil.
Fica patente nos depoimentos também, neste estado, a insegurança em que vivem os agentes da pastoral da criança que trabalham com meninas e meninos. Por atuarem com assunto delicado, como a prostituição infantil, são alvos de constantes ameaças.
A polêmica que se estabelece entre meninas que vivem na rua e prostituição infanto-juvenil também é objeto de discussão em São Paulo. Uma representante de instituição que trabalha nas ruas diz que as meninas de rua vivem entre a prostituição e a promiscuidade, sendo muito mais na promiscuidade do que na prostituição, que agem com fim lucrativo e como meio de vida. Já uma pesquisadora do Nordeste diz que não tem dúvida de que 100% das meninas que vivem na rua são abusadas e usadas sexualmente, prostituídas e trocam sexo por dinheiro.
Na Região Nordeste, como definiu um depoente da Paraíba, há duas realidades em termos de prostituição infanto-juvenil. Uma delas se refere ao fato de meninas que vivem na rua recorrerem à prostituição ou a ela se submeterem como forma de sobrevivência. A outra se diz respeito ao agenciamento de crianças e adolescentes, em estabelecimentos privados, para a comercialização do sexo. No âmbito da comercialização, há praticamente em todo Nordeste uma predominância de turismo sexual com, pelo menos, duas formas de agenciamento. A mais comum, em cidades como Natal, Fortaleza e Recife, é a promoção de pacotes de turismo que incluem as meninas como atração sexual. Donos de hotéis, táxis, barracas das praias e de boates formam uma rede organizada em torno desse negócio rentável. Segundo depoimento de Ana Vasconcelos, que fez um vídeo sobre este problema, havia um vôo quinzenal vindo da Alemanha que trazia muitos turistas. As meninas disputavam os turistas porque cada um deles representava dólares "que iriam ajudar no conserto do barraco da mãe, na compra do remédio do pai ou de alimento para o filho." Depois de ser exibido o vídeo na Alemanha, este vôo foi suspenso. Mas os turistas continuam vindo e as meninas encontrando na prostituição uma saída para a sobrevivência.
Outra forma do turismo sexual, principalmente em Recife, é a promessa de casamento de meninas com estrangeiros. Elas são levadas para fora do país e lá são destinadas à prostituição. O fato é tão significativo que, segundo informações de Ana Vasconcelos, há uma instituição alemã que vem estudando a prostituição de mulheres brasileiras. Quando elas chegam ao exterior, aqueles que investiram nelas tentam recuperar seu dinheiro, emprestando-as para conhecidos mediante cobrança.
Além do turismo sexual, relacionado ou não a este, a comercialização da exploração sexual de crianças e adolescentes aparece, nesta região, através das casas de drinques, boates e recintos de diversão noturna em geral, que agenciam a prostituição infanto-juvenil. Nestas casas, escamotear as idades das meninas é uma prática comum, assim como a ajuda e/ou a conivência de policiais, também citadas nesta forma de comercialização.
Esta síntese das configurações revela apenas fatos que aparecem, enquanto figuras, num primeiro plano. No quadro de violência que emoldura e permeia a situação, há um fundo que, embora se diferenciando em seus tons, praticamente permanece o mesmo em todo país. Trata-se da violência estrutural em que se geram as desigualdades de classe, gênero e etnia, fazendo com que determinadas pessoas, excluídas socialmente e vivendo na pobreza, se vejam envolvidas com a prostituição infanto-juvenil. Este fundo é retocado pelos traços das violências física e sexual que delineiam suas marcas nos corpos e nas mentes das crianças e dos adolescentes explorados.
Em todas as regiões, policiais são apontados como principais agressores de meninas prostituídas ou, em geral, das meninas que vivem na rua. É a figura do policial que mais está presente na visão daqueles que sofrem a violência e daqueles que a denunciam. Mas não se pode esquecer que os policiais integram um complicado sistema de segurança pública, sendo a parte mais visível deste sistema, hoje, em absoluto questionamento no país. Assim, os policiais muitas vezes são vistos como uma ameaça, pois usam daquilo que chamam de autoridade para ameaçar, humilhar e desmoralizar os cidadãos. Reforçando esta denúncia, há inúmeros depoimentos sobre maus tratos que sofrem os meninos e meninas de rua, como espancamentos, sedução, violência sexual e intimidação, para citar alguns exemplos. Há também relatos de denúncia contra policiais que intimidam agentes educadores, tentando desmoralizar a imagem dos que trabalham com a população de rua, dizendo que "só o fazem pelo dinheiro envolvido, os dólares das ONGs".
Outra característica comum é a questão das drogas, traduzindo-se ou pelo uso como iniciação na exploração sexual, ou pelo uso das meninas sexualmente exploradas no tráfico, ou, ainda, pela combinação destas duas possibilidades. Um depoente menciona o caso de uma menina de 15 anos que após o décimo homem só queria acabar logo, porque se sentia enojada e via no ato de se drogar uma forma de resistir ao sofrimento.
Realidade polissêmica
Entre as imagens sociais de culpabilização dos indivíduos e a busca de explicações estruturais na maioria dos depoimentos, há predomínio desta segunda abordagem, revelando-se, assim, uma tendência da sociedade brasileira de desconhecer mediações para a problemática tanto da violência como da prostituição, mobilizando-se portanto apenas no nível da denúncia. A faceta macrossocial aparece com diferentes conotações quando são abordadas as raízes do problema. A causa mais comum apontada se inscreve na instância sócio-econômica e cultural. Diz-se, por exemplo que além das questões da miséria, estão o machismo e o tratamento diferenciado que é dado para meninas e meninos em todas as classes sociais, se agravando no caso das meninas pobres. Há falas que apontam para o fato de que as meninas expulsas de casa, por estarem grávidas, também são facilmente alvo da prostituição.
Ainda sobre as raízes do problema, inseridas no campo sócio-econômico- cultural, há um depoimento que aponta a civilização adultocêntrica, ocidental, cristã, democrática e capitalista como a grande responsável pela prostituição de crianças, que são usadas para proporcionar prazer a esta ‘civilização’. Com base nesse raciocínio é apontado que as crianças e adolescentes sofrem com o modelo de desenvolvimento, com os sucessivos erros dos governantes, com a incompetência dos políticos, com a corrupção e a ausência de ética que predominam nos setores público e privado. Um pouco parecida com este posicionamento, destaca-se uma visão pessimista que relaciona a questão da prostituição infantil ao fato de que quanto mais o desenvolvimento avança, no âmbito da atual sociedade, criam-se novas formas de profunda deterioração da condição humana, e, aí se insere a exploração da mulher, em todos os aspectos.
Por outro lado, dentro da perspectiva da sociedade como um todo, alguns depoentes apontam a predominância da lei do silêncio, levando a que não se explicite a questão da prostituição infantil. Existe a percepção de que, pelo fato de fazer de conta que nada existe, a sociedade parece se anestesiar diante desse tipo de violência.
Entre a culpabilização do indivíduo enquanto sujeito da ação e a culpabilização de aspectos macro-sociais, existe uma instância intermediária, a família, que também é responsabilizada. Sobre isto há diferentes visões. Uma posição se caracteriza pelo fato de aceitar a prostituição como algo comum, fazendo parte da saúde das famílias de classe média, para prover iniciação sexual aos rapazes desta camada da população, não sendo, portanto, vista como um problema a ser debatido.
Outra equipara a miséria e a violência intra-familiar da qual a criança tenta sair, à miséria moral e violência sexual em que se envolve com a prostituição. Sobre a família, também se destacam expressões que a apontam como agente e promotora da prostituição de crianças ou ainda como elemento conivente com essa situação de exploração. Junto a este fato, há outro que se refere a uma certa ingenuidade das pessoas que entregam seus filhos para aqueles que prometem emprego, encobrindo a real intenção de aliciamento para a prostituição.
A partir do conjunto dos depoimentos, tentamos mostrar que a denúncia no âmbito da CPI é multifacetada. Este fato tanto serve de via para se chegar ao imaginário social sobre a problemática em questão, como também revela um certo grau de elaboração no sentido de ultrapassar este imaginário. Parece que, em nível de discurso, geralmente busca-se atravessar o estágio em que se culpam indivíduos, ou quando muito a família, para se chegar à dimensão sócio-econômica-cultural. No entanto, a ausência de análise dos fatos para busca de soluções concretas, quando muito tornam a CPI um espaço de expressão da ‘má consciência’ da sociedade.
Para denunciar a prostituição infanto-juvenil, alguns depoentes fazem uso de estatísticas no sentido de mostrar que esta problemática é um fato bem presente na realidade social brasileira. Um exemplo disso é o dado apresentado pelo Ministério da Saúde, com base nos dados da American Watch que aponta para o fato de o Brasil ter hoje quinhentas mil prostitutas menores de dezessete anos de idade, o que seria um absurdo, a menos que o conceito de prostituição fosse demasiado extenso. Certamente são dados inconsistentes, usados para denunciar a gravidade do fenômeno, como se o exagero dos dados provocasse comoção nos políticos ou na sociedade.
Nos próprios depoimentos há menção ao fato de que não existem dados confiáveis, em nível nacional. O ato de quantificar parece que revela uma lógica muito presente no imaginário que é a de chamar a atenção para a gravidade dos problemas sem atentar para o fato de que, ao exagerá-los alimenta-se a idéia de que são praticamente insolúveis. Nesta lógica, a importância de algo se configura muito mais pela sua extensão do que pela sua natureza em si. A prostituição infanto-juvenil parece não escapar deste raciocínio, ou seja, para que socialmente seja reconhecida como um problema sério a ser enfrentado é preciso que a quantificação seja explicitada, com dados nunca fundamentados em investigação fidedigna.
A relação entre prostituição infanto-juvenil e meninas que vivem na rua é outra faceta das denúncias. Alguns depoentes fazem uma associação simples entre o aumento do número de crianças e adolescentes vivendo nas ruas, e o aumento da prostituição infanto-juvenil sem diferenciarem as raízes dessas duas problemáticas. Intencionalmente ou não, estas formas de ver a questão contribuem para o reducionismo da discussão. De um lado, a adesão ao posicionamento simplista em que se fundem os dois fenômenos num só, pode levar à pura reprodução de estereótipos, como o de que a mulher que está na rua é prostituta. Por outro lado, desconsiderar esta relação pode facilitar a ação dos que agem a partir do estereótipo.
Tendo em vista que muitos dos depoentes eram membros de organizações não-governamentais, observa-se também o uso do espaço da CPI e da denúncia para a reivindicação de reconhecimento e de condições de funcionamento para suas organizações. Neste sentido tiveram destaque as falas de movimentos feministas e de prostitutas chamando a atenção para os estereótipos contidos na abordagem da prostituição infantil, e denunciando a articulação dessa problemática com a dinâmica das desigualdades de classe e gênero.
Da mesma forma, representantes de órgãos públicos, como de segurança, saúde e educação acabaram mostrando, no trato do problema, as insuficiências e as péssimas condições dos equipamentos do estado. Ou seja, para além da prostituição infantil, os funcionários públicos evidenciaram a crise dos serviços governamentais e o desmantelamento das políticas sociais de segurança e de atenção aos cidadãos.
O cenário social
No confronto do simbólico (âmbito das representações) com a realidade (o fato vivido), afinal, como se configura o caminho da prostituição infantil feminina na atual sociedade brasileira? Num primeiro plano, o que surge como início desse caminho é a pobreza. Se, de um lado, esta afirmação é a expressão do que realmente acontece, de outro, ela sozinha não serve para explicar essa complexa realidade. Em outras palavras, não se pode, em termos da relação causa e efeito, associar de forma mecânica a prostituição infantil à pobreza. Dependendo da realidade de cada local, outros fatores, quase sempre associados a ela, determinam a sua existência.
O abuso sexual e outras violências cometidas no âmbito da família e de sua vizinhança constitui um fator que pode decretar o início da prática da prostituição por parte de meninas. No conjunto das fontes primárias e secundárias, não são poucos os depoimentos que revelam a existência dessa triste realidade. Nas histórias de vida dos sujeitos sociais aqui estudados e nas histórias de prostitutas adultas, mencionadas por outros pesquisadores, casos de padrastos, irmãos, parentes próximos ou até mesmo pais que abusam sexualmente de crianças são comuns. Assim, esses fatos podem servir de iniciação para o mundo da prostituição, que passa antes por um processo de exclusão do mundo familiar, conforme atestam os depoimentos.
A existência de uma rede de agenciamento também se evidencia no conjunto das determinações da prostituição infantil feminina. Utilizando diferentes estratégias para atrair as meninas e distintas formas de iniciação, essas redes quase sempre conseguem colocar as meninas num caminho sem volta. Em muitos casos, o agenciamento chega a se configurar como trabalho escravo em que a menina nada recebe pelo seu serviço ou quando recebe tem que repassar para o agenciador o seu ganho para saldar dívidas que nunca terminam.
Associado ou não a essas redes de agenciamento, o tráfico de droga é outro fator significativo a ser destacado. Esse poderoso esquema tem na menina-prostituta, ao mesmo tempo, uma usuária e um veículo do tráfico. Há depoimentos que atestam o fato de as meninas serem viciadas primeiro para se prostituírem depois, visando a reprodução desse negócio lucrativo.
A influência de grupos de amizades, relacionada ao desejo de liberdade, também pode facilitar a iniciação de uma menina na prática da prostituição. No entanto, este fator aparece numa proporção bem menor em relação aos outros.
No conjunto de todos os depoimentos analisados fica nítido que a prostituição infantil feminina se expressa pela violência que a antecede e nela perdura. Para se trilhar na compreensão desta complexa realidade, não basta ver os fatos. É preciso avançar para a apreensão das determinações dessa realidade, revelada no corpo da menina prostituta.
Sobre o corpo da prostituta, em geral, Chacón observa que este é um corpo silenciado. Entretanto, a partir desse silêncio se escuta a divisão inscrita na subjetividade feminina, marcada por contradições, a exemplo das antinomias paganismo/cristianismo, desejo/transgressão, limpeza/sociedade e possibilidade/morte. Para a autora citada, nesse silêncio se escuta uma história de violência que vem sendo escrita, a partir de um espelho retrovisor, com novas tecnologias e novas racionalidades, reinaugurando o passado.
A compreensão da realidade da figura da prostituta se torna possível quando a ela se transcende, buscando nexo com a racionalidade disciplinadora que forma e justifica as desigualdades entre os gênero. Tanto a prostituição em geral como a prostituição infantil feminina são frutos dessas desigualdades, associadas à violência estrutural, sendo que esta última é acrescida por expressivo componente: a violência do adulto sobre a criança. Partir do entendimento dessa totalidade, superando o âmbito do senso comum, é o desafio para que se mude o olhar tanto sobre o corpo na rua, quanto o corpo da rua.
Considerações finais
Muitas poderiam ser as considerações a partir destas reflexões, onde tomamos a CPI como expressão da própria sociedade sobre a problemática da prostituição infantil. Na verdade sua fala política corresponde ao conjunto das questões que a própria sociedade se coloca. Ela contempla o cerne fundamental da violência de gênero, presente na prostituição enquanto exercício de poder da sociedade patriarcal, segundo a qual o homem considera seu direito ter acesso ao sexo, seja sob a forma de direito adquirido através do casamento, seja sob a forma de coação física, moral ou por dinheiro. Mulher, sexualidade e dinheiro vinculam o tema da prostituição a costumes ancestrais que a vêem um como mal necessário para permitir o bem, a família constituída.
Quando se trata, porém, da prostituição infantil, há uma encruzilhada para onde todos os depoimentos convergem. Trata-se da situação de extrema pobreza e miséria material que antecede e acompanha a vida nos prostíbulos.
No Brasil, a prostituição infanto-juvenil está calcada na comercialização do corpo como coerção ou escravidão ou para atender às necessidades básicas de sobrevivência. Isso fica claro nos depoimentos à CPI e em estudos e pesquisas, evidente em regiões como as de colonização amazônica e garimpos, onde os próprios pais expõem e comercializam suas filhas em troca de atendimento a necessidades básicas do resto da família, perdendo assim, seu papel protetor e provedor.
Após a finalização da CPI, algumas diretrizes têm sido tomadas, no bojo de ações voltadas para a defesa dos direitos humanos e para proibições legais da exploração infantil. Movimentos sociais têm buscado também denunciar, no país e no exterior, o turismo sexual. Falta, porém, determinação e vontade política aos governos federal e locais para promover a erradicação dessa praga nacional.
Do ponto de vista econômico é preciso realizar ações concretas que promovam as necessidades básicas das famílias, celeiros dessas crianças que carregam sobre seus ombros o ônus de sua sobrevivência e de outras pessoas. Do ponto de vista cultural, não podem se arrefecer as denúncias, ações indignadas, aplicações de punições aos aliciadores, exploradores e escravizadores, nunca aceitando a prostituição infantil como uma escolha imoral individualmente assumida por seres em formação.
Do ponto de vista da saúde coletiva, o engajamento na proscrição dessa forma de exploração se fundamenta nas necessidades de crescimento e desenvolvimento das crianças; na prevenção das doenças sexualmente transmissíveis a que ficam expostas e dos problemas emocionais que deixam seqüelas em toda sua vida. E não menos importantes na prevenção do risco de lesões, traumas, seqüestros e extermínios a que estão expostas.
O tema tratado na CPI da prostituição infanto-juvenil não pode ficar apenas nas hipérboles dos discursos e dos números. Ele exige que a fala se transforme em atitude, tornando cada vez menor a distância entre intenção e gesto, mobilização parlamentar e ação de governo com políticas sociais efetivas e duradouras. Para que tal aconteça, é necessária uma intensa mobilização da sociedade civil, exercendo sua cidadania, buscando direitos e cobrando deveres do poder público.
QUARTA-FEIRA, 11 DE AGOSTO DE 2010
PROSTITUIÇÃO INFANTO-JUVENIL
A prostituição infantil no Brasil é um dos problemas sociais mais vergonhosos pois como já diz o nome afeta a classe mais "ingênua" da sociedade. Atualmente no município de Patos de Minas o tema não é muito discutido pelas pessoas, pois muitos acreditam que não há prostituição infantil em nossa cidade. Por incrível que pareça, a prostituição infantil existe e não é pouca coisa. Isso acontece mais "isoladamente", é algo mais fechado. Segundo dados do Conselho Tutelar da Criança e do Adolescente há denuncias de aproximadamente 10 casos por mês. A prostituição infantil está em todas as classes sociais, mas há uma incidência maior na classe menos favorecida, devido ao fato de os pais não terem uma boa base para educar seus filhos e também por não conseguirem dar uma boa assistência financeira para a família.
Traçar o perfil da prostituição feminina no Brasil constitui tarefa diretamente associada a uma vasta gama de fatores que se interpõem como desafios a serem superados. As dificuldades da tarefa têm a dimensão do País e são permeadas pela pluralidade da riqueza humana que define sua população. Qualquer tentativa de se traçar o perfil brasileiro da prostituição feminina, terá que observar atentamente alguns fatores de interferência, caso contrário corre-se o risco de fornecer uma visão deformada da multiplicidade disponível. Neste contexto alguns elementos são determinantes, como as modalidades variadas no exercício da profissão, a dimensão continental do País, a diversidade das condições sócio-econômicas e culturais, a inexistência de dados específicos sobre profissionais do sexo nos serviços de saúde e, a insuficiência de dados nos levantamentos realizados sobre esse segmento em particular.
Respeitando essas dificuldades, a sistematização da proposta incidiu, inicialmente, sobre três tópicos que longe de se esgotarem, pretendem modestamente, rascunhar uma possibilidade de entendimento sobre a dinâmica vinculada às profissionais do sexo no País. O primeiro fornece informações gerais sobre as leis que vigoram no País quanto ao exercício da profissão e de que maneira interferem no cotidiano das profissionais do sexo, incluindo algumas perspectivas relacionadas às possibilidades de desdobramento. O tópico seguinte traça um resumo histórico do movimento de classe no País e no mundo, objetivando não só definir o perfil da organização e como se deu a criação das associações de profissionais do sexo, mas também abordando a contribuição dessas associações no âmbito das ações específicas de prevenção às DST/HIV/Aids. O último tópico, descreve as principais modalidades vinculadas ao exercício da profissão, levantando informações sobre as práticas sexuais, os valores atribuídos pelo mercado e as interferências sócioeconômicas sujeitas à profissão.
O quarto tópico deste capítulo relaciona as iniciativas implantadas no âmbito da assistência e prevenção às DST/HIV/AIDS junto às profissionais do sexo. Como objeto da análise processada, tomou-se como base tanto as ações governamentais como aquelas das associações de classe e de outras organizações não governamentais. A expectativa é não só retratar este cenário em nível nacional, considerando determinado período, mas também incentivar a formulação de novas propostas que possam efetivamente ampliar a abrangência da cobertura até hoje efetivada.
A partir dessas prioridades, a prostituição feminina foi contextualizada no cenário nacional, observando tanto fatores de ordem socioculturais quanto as características relacionadas à epidemia pelo HIV. Certamente, é necessário considerar nesse quadro, o histórico dos temas referendados para um maior entendimento sobre a inserção desse segmento específico da população no País. Neste sentido, ressalta-se a estigmatização e a discriminação sofridas, ao longo da história, pelas profissionais do sexo. O papel de "transmissoras naturais das DST" imposto por uma sociedade dirigida por padrões masculinos e opressores, associado aos primeiros conceitos aplicados quando do surgimento da epidemia pelo HIV, não podem deixar de ser considerados na análise dos temas aqui propostos. Por um lado, o incremento das discussões sobre gênero e sexualidade, a maior vulnerabilidade da mulher em relação à infecção e as atuais tendências epidemiológicas do HIV/Aids, se inscrevem como fatores que contribuíram para a alteração de comportamentos e/ou diminuição de atitudes discriminatórias. Por outro, esses mesmos elementos foram fundamentais no processo de promoção de maior cidadania e garantia dos direitos humanos às mulheres profissionais do sexo.
Cabe ressaltar, no entanto, que independentemente dos avanços no campo da discussão sobre a legalização da profissão, da prevenção às DST/HIV/Aids e, da conscientização e mobilização da classe, dois fatores ainda sobressaem. O primeiro está vinculado às características socioeconômicas das diferentes regiões brasileiras, que determinam para algumas áreas poucas diferenças contrapondo o avanço obtido em outras, restringido desta forma a possibilidade de crescimento. O segundo, diz respeito ao muito ainda a ser feito para garantir o direito à saúde, ao trabalho, à informação e à educação das profissionais do sexo, promovendo não só uma sociedade mais justa e igualitária, mas também ações eficazes e eficientes de combate à epidemia.
Tipos de Prostituição
O fator econômico é o determinante mais comum de ingresso na prostituição, sendo seguido pelo fim do casamento e pelo abandono da família, associados à dificuldade de integração no mercado de trabalho. Geralmente existe a expectativa por parte das mulheres, de que a permanência na prostituição seja transitória, alimentada pela esperança de conseguir outro tipo de trabalho, voltar a estudar, encontrar um companheiro e casar. Assim, para grande parte das profissionais do sexo a prostituição é ainda considerada como uma estratégia de curta duração, coincidindo com a transitoriedade das dificuldades enfrentadas na manutenção pessoal e de seus filhos.
A baixa escolaridade somada às dificuldades financeiras ou à pobreza absoluta, integram os obstáculos, quase intransponíveis, para a integração das profissionais do sexo no mercado oficial de trabalho. Para aquelas que pertencem às camadas sociais mais baixas, as perspectivas de mudança de atividade ainda são menos viáveis em virtude da baixa (ou nenhuma) escolaridade e a falta de qualquer qualificação profissional.
A invisibilidade das profissionais do sexo no sistema oficial de saúde, em relação às DST/HIV/Aids, se estabelece a partir da ausência de variável específica no instrumento de coleta de dados de notificação. Acrescenta-se a este fato o constrangimento dessas mulheres em se identificarem enquanto profissionais do sexo quando atendidas nos serviços de saúde. Essa prática muito utilizada, evita a exposição pessoal ao possível preconceito dos profissionais de saúde. Na maioria das vezes, as profissionais do sexo se auto-identificam como donas-de-casa, empregadas domésticas ou comerciárias, na tentativa de garantir um atendimento mais digno.
A violência física é presença constante na vida das profissionais do sexo e se expressa nas relações com clientes, cafetinas, taxistas e policiais. Apesar de existirem indicadores de ausência ou diminuição da violência física nas áreas de prostituição abrangidas pela ação das associações de classe e/ou ONG, este ainda é um elemento fortemente associado à profissão. A intensidade e a freqüência de práticas agressivas que permanecem impunes, contribuem para que a violência seja considerada pelas próprias profissionais do sexo, como o maior perigo enfrentado no cotidiano. Além dessa violência característica do trabalho, a presença de um estupro inicial é também um fato recorrente nas histórias pessoais, sendo muitas vezes responsável pelo ingresso na prostituição. Frente a esses fatores de vulnerabilidade imediatos e cotidianos, as DST e a Aids passam a ser secundárias na percepção dos riscos vinculados à profissão.
Mesmo considerando essa realidade, e embora não tenham muitas vezes um conhecimento claro sobre todas as formas de transmissão das DST/HIV/Aids, as profissionais do sexo estão bem informadas sobre a importância do preservativo no exercício da atividade profissional. Por outro lado, de forma a preservar a clientela e a própria sobrevivência, tanto a aids quanto as outras DST se apresentam como doenças do "outro", distanciando sempre a possibilidade de infecção na prática pessoal ou profissional.
Assim sendo, pode-se identificar como satisfatório o conhecimento das profissionais do sexo quanto à necessidade de uso do preservativo com seus clientes, apesar da baixa assimilação de informações mais amplas sobre a transmissão e a prevenção das DST/HIV/Aids.
Outro fator que amplia a vulnerabilidade das profissionais do sexo para as DST/HIV/Aids é a presença marcante do uso de drogas, que são consumidas por um contigente significativo de mulheres. Há registros constatando que a grande demanda de drogas está associada ao efeito deturpante da consciência promovido pelo álcool, anfetaminas, cocaína e crack no desempenho diário da profissão. As drogas são, geralmente, consideradas substâncias aliadas capazes de abrandar as dificuldades cotidianas, principalmente no que tange ao cumprimento da longa duração da jornada de trabalho. Complementando esse quadro, existem ainda as profissionais do sexo que definem a prostituição como a sua principal fonte de sustento para o consumo de drogas, injetáveis ou não.
A principal variável que permite traçar o perfil socioeconômico das mulheres que exercem a prostituição é o valor cobrado pelos programas. Esse "valor" será determinante na classificação da profissional do sexo, uma vez que oscila de acordo com a região geográfica, o tipo de profissional e as diferentes modalidades dos programas sexuais comprados. Considerando como parâmetro a prostituição tradicional exercida em ruas ou casas fechadas em áreas metropolitanas das Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste o valor do programa pode ficar entre R$ 5,00 e R$ 20,00. Por outro lado, nas Regiões Sul e Sudeste, nessa mesma modalidade, o programa fica em torno de 10,00 a 30,00 reais.
Se focarmos as áreas de prostituição que possuem características específicas – como nos garimpos – não há, nem mesmo, uma remuneração concreta: as profissionais do sexo são atraídas por promessas de elevados lucros, ficando no entanto condicionadas ao pagamento de intermináveis dívidas referentes às despesas de alojamento, medicação, consumo de bebidas alcóolicas, alimentação e vestuário. Em contrapartida, se dirigirmos nossa atenção às casas de massagem do Sul e do Sudeste, podemos identificar profissionais do sexo com renda semanal mínima em torno de R$ 300,00. Para fins de comparação e estudo, se realizarmos uma média dos diferentes valores dos programas cobrados no País, o preço da prática sexual tradicional (coito) varia de R$20,00 a R$ 30,00. A inclusão de práticas diferenciadas da tradicional, ocasiona um acréscimo no valor a ser cobrado: o serviço completo convencional (incluindo felação), por exemplo, pode variar de R$40,00 a R$80,00.
É importante considerar como elemento diferencial no estabelecimento do preço do programa e na adoção de comportamentos mais seguros em relação às DST/Aids, a multiplicidade das categorias e/ou modalidades para o exercício da prostituição no País. Essas categorias são determinadas tanto pelas características pessoais da profissional do sexo, quanto pelo local onde atua. Conjugando esses dois fatores, podemos observar que as profissionais que trabalham nas ruas, assim como aquelas "mais velhas" (acima de 25 anos) são menos procuradas e, por conseqüência, estabelecem preços menores em comparação com aquelas mais jovens, que atuam em boates ou casas fechadas. Esta situação além de refletir o ciclo de prostituição da mulher (quanto menor o tempo na prostituição mais valorizado o preço do programa) revela a flexibilidade de comportamentos a que estão sujeitas em função da manutenção da sobrevivência.
As profissionais do sexo que trabalham em boates ou casas fechadas têm um discurso onde a auto-representação e a auto-estima são bastante positivas. As informações sobre a prostituição de alta renda são muito difíceis de se obter devido, principalmente, ao sigilo mantido em relação aos clientes atendidos. Essa modalidade da profissão é freqüentemente encontrada em fechadas "casas de massagens" ou em "agências" especializadas. Um dos desdobramentos dessa categoria são as profissionais do sexo denominadas "garotas de programa" ou "scort girls", que também constituem um segmento à parte, com características bem peculiares.
Devido às características geográficas e culturais do País, o sexo-turismo é uma das modalidades que vem se consolidando na rotina da profissional do sexo, sobretudo naquelas das regiões balneárias (como Recife, Belém, Rio de Janeiro, Santos, Fortaleza, Salvador e, Aracaju). Aliado a este fato, o empobrecimento crescente da população feminina, tem incrementado a prostituição infantil atrelada ao sexo-turismo. Os clientes-estrangeiros, que também sustentam essa prática ilegal da prostituição, não compõem um grupo homogêneo. Em algumas cidades portuárias como Belém e Santos, há a predominância de trabalhadores (marinheiros que circulam nos pontos de prostituição de baixa renda próximos aos portos). Em cidades cuja economia está fortemente baseada no turismo como Fortaleza, Salvador e Recife, os clientes consumidores do sexo-turismo são homens de meia idade de países europeus, como Alemanha e Itália, que agenciam suas viagens a partir da negociação de pacotes "turísticos" com forte apelo sexual.
A definição de um perfil da profissional do sexo no Brasil é extremamente difícil, uma vez que existem vários tipos e categorias da profissão, estabelecidas a partir de variáveis pouco definidas. A precariedade econômica e o difícil acesso aos serviços de saúde e educação, vêm contribuindo para diminuir ou anular a estrutura familiar das classes menos favorecidas ao longo das últimas décadas. Uma das conseqüências dessa realidade, é a presença de um "incentivo" suplementar ao ingresso na prostituição para as mulheres da faixa etária de 15 a 26 anos. Assim, a profissão deixa de ser uma opção individual, para se impor enquanto única alternativa na busca da sobrevivência. A exemplo do que acontece com a população brasileira de uma forma geral, a preocupação diária com a subsistência (fundamentalmente alimentação e moradia), não permite que a saúde seja inscrita como uma prioridade no cotidiano da profissional do sexo. Desta forma, a efetiva alteração em qualquer padrão de comportamento - seja na adoção de práticas sexuais mais seguras, seja na promoção de cuidados com a saúde sexual e reprodutiva - tende a se distanciar cada vez mais do cotidiano dessas mulheres. No entanto, frente ao muito que já se avançou nessa área, e considerando a situação sócioeconômica a que estão sujeitas as profissionais do sexo, é possível definir a presença de uma efetiva assimilação de conhecimento e/ou comportamentos preventivos relacionados às DST/Aids, quando - e se - minimizadas as dificuldades de sobrevivência.
Parte 02: Prostituição e exploração: comercialização de sexo jovem
Ivanise Andrade
Sábado, 22 de novembro de 2003, 17:17
Considerando que no Brasil a população infanto-juvenil passou por centenas de anos de exploração, exclusão, humilhação e discriminação e que a exploração sexual infanto-juvenil é mais uma das formas de abuso também arraigada nas civilizações, é importante definir e contextualizar a história do fenômeno no mundo.
A prostituição, tanto adulta quanto infanto-juvenil, foi encarada de várias formas ao longo da história. De acordo com Armando Pereira, em seu livro Prostituição: Uma Visão Global, a venda dos serviços sexuais passou por um período em que teve caráter sacro, com aspecto místico e tutelar. Num segundo momento, denominado pelo autor de epicuriano, a prostituta assume um papel estético e político. Nessa época, seu trabalho é gerenciado pelo Estado, que cobrava impostos, enriquecendo a elite dominante.
No terceiro período, chamado cristão, a prostituta é considerada "leprosa", em nome da moral e dos bons costumes. Depois dessa época, vem um período de tolerância, quando essas profissionais do sexo são consideradas um mal necessário e submetidas ao controle sanitário mediante força policial. Por fim, surge o período chamado de abolicionista, quando a prostituta é vista como escrava e vítima. Os regulamentos são revogados e a mulher é livre para exercer a atividade.
A palavra prostituir vem do verbo latino prostituere, que significa expor publicamente, por à venda, referindo-se às cortesãs de Roma que se colocavam na entrada das casas de devassidão. A palavra sempre esteve acompanhada de uma conotação negativa, e, quando envolve crianças e adolescentes, a situação agrava-se, já que a sociedade prefere não ver o problema, opta por omitir-se ou negar que ele existe e está presente no dia-a-dia das pessoas.
A ONU (Organização das Nações Unidas) amplia essa definição e considera a
prostituição como o "processo em que as pessoas mediante remuneração de maneira habitual, sob quaisquer formas, entregam-se às relações sexuais, normais ou anormais com pessoas do mesmo sexo ou do sexo oposto, durante todo o tempo". Completa a definição dizendo que o ato sexual comercial é como qualquer ato sexual, em que algo de valor seja dado ou recebido por alguém. As definições foram citadas em texto da doutoranda em Ciências Sociais do CEPPAC/UnB (Centro de Pesquisa e Pós-graduação sobre as Américas da Universidade de Brasília) Francilene dos Santos Rodrigues.
Historicamente, há registros da existência de prostitutas desde a Antigüidade, quando havia o predomínio do matriarcado. Segundo a historiadora Nickie Roberts, em seu livro As Prostitutas na História, nesse longo período, em torno de 25 mil anos, havia a adoração à deusa Ishtar, tida como provedora da vida e das atividades vitais. Na pré-história, a cultura, a religião e a sexualidade eram interligadas, por isso, o sexo era sagrado.
Devido a esse contexto, a deusa Ishtar era identificada como uma prostituta, que no antigo Oriente Médio centralizava o poder religioso, político e econômico. Naquele período as mulheres que exerciam a prostituição não sofriam repressões e isso preocupava os homens interessados em derrubar o poder que elas possuíam, conforme Roberts. A saída encontrada foi criar um código moralista de repressão ao sexo, colocando-o como algo negativo.
O primeiro registro da separação de prostitutas das esposas data de dois mil anos a.C., na antiga Suméria. De acordo com a historiadora, os homens deveriam prover a prostituta que lhe tivesse dado filhos, no entanto, ela nunca poderia freqüentar a casa onde vivia a esposa, enquanto ela fosse viva.
Os sacerdotes hebreus criaram o estigma da prostituta que as acompanha até hoje. A história conta que os profetas e sacerdotes hebreus consideravam a sexualidade das mulheres como algo a ser controlado pelos homens, porque esse sentimento simbolizava a raiz de todo o mal. Eles desprezavam e desdenhavam qualquer mulher que não fosse virgem ou casada. Essa exclusão das mulheres que foram empurradas pela sua condição social e econômica para o comércio do sexo é algo historicamente consolidado nas sociedades.
Legalização da prostituição
Sólon de Atenas, legislador da antiga Grécia do século VI, foi o responsável
por legalizar, pela primeira vez na história, alguns aspectos da prostituição. Segundo Roberts, a medida visava facilitar os impulsos sexuais do homem, uma vez que o adultério era castigado com a pena de morte. As prostitutas eram escravas estrangeiras, pois as mulheres livres de Atenas não podiam entrar nessa vida. Quando Sólon percebeu que as prostitutas conseguiam bons lucros com a prática, resolveu organizar o negócio. Houve então uma proliferação por toda Atenas de bordéis oficiais, administrados pelo Estado.
As prostitutas gregas eram divididas de acordo com seus dotes físicos, intelectuais e habilidades amorosas. Algumas eram respeitadas e famosas. "As únicas mulheres da sociedade ateniense que podiam administrar seus próprios negócios e andar pela rua em qualquer lugar e a qualquer hora", conforme texto da historiadora. A prostituição foi reconhecida oficialmente a partir do século III a.C.
Há relatos, de acordo com Roberts, de que os exércitos romanos deslocavam-se em suas campanhas levando haréns compostos de mulheres e rapazes para satisfazer sexualmente os comandantes. Os imperadores eram revestidos de poder divino e político que legitimavam o comportamento social e moral, incluindo todo o tipo de fantasias sexuais. Eles satisfaziam-se com as escravas, escravos e até mesmo com as próprias irmãs e aceitavam naturalmente a prostituição, justificada como sendo necessária para proteger os casamentos.
Foram os romanos que instituíram pela primeira vez uma espécie de registro estatal das prostituas chamadas de "classe baixa", que passaram a pertencer a duas categorias: as meretrices, registradas, e as prostibulae, não registradas. Elas pagavam impostos ao Estado e se tornaram farta fonte de lucros.
O mercado do sexo na Roma Antiga contava ainda com a conivência e a participação de políticos e pessoas da alta sociedade. De acordo com a historiadora, os senadores e altos dignitários romanos alugavam suas casas e outras propriedades a gerenciadores de bordéis, fazendo com que todos lucrassem. "A prostituição estava profundamente arraigada à economia romana", afirma Roberts. As prostitutas ficaram famosas e eram respeitadas por causa de suas habilidades com dança e música. Essas procediam, às vezes, de famílias de classe alta e outras eram inclusive casadas.
Com a queda do Império Romano, por conta de toda a corrupção enraizada na sociedade e a ascensão do cristianismo como religião, a prostituição passou a ser considerada moralmente repreensível. Na Idade Média, a Igreja começou a perseguir mulheres que exerciam a atividade. Entretanto, a constante guerra entre os senhores feudais gerou êxodos rurais em direção às cidades. Eram principalmente viúvas e filhas dos servos mortos nas batalhas que passaram a se prostituir para sobreviver. Para Roberts, a posição da Igreja no século XIII era hipócrita: ao mesmo tempo em que condenava a prostituição, considerava-a um mal necessário.
E foi na Itália renascentista que a figura da esposa dedicada, casta e fiel foi reforçada. Nesse período, as mulheres casadas deviam manter-se confinadas em casa e só saírem acompanhadas de seus maridos para ir à igreja. Em contraposição à reclusão das esposas, existiam as cortesãs de alta classe, as cortiggiane, belas, instruídas, talentosas, ricas e independentes. Apesar de toda a violência que sofriam, as cortesãs tinham posição privilegiada comparando-se àquelas que freqüentavam as ruas, as chamada puttanas, proibidas de ir à igreja, estalagens ou tavernas.
Venda do sexo jovem na história
Um dos primeiros registros históricos da prática da exploração sexual de crianças e adolescentes, relatado por Nickie Roberts, refere-se à corte francesa do rei Luís XV. A realeza mantinha, além das amantes reais, um sistema bem elaborado e formal de compra de meninos e meninas para compor seu harém real. Conforme a historiadora, Luís XV abrigava, em uma de suas propriedades, jovens muito bonitas acolhidas pela cafetina real, madame Mère Bompart.
As garotas procediam tanto da nobreza como do povo e eram entregues pelos pais, mediante remuneração. As meninas entravam na casa aos nove anos e eram instruídas em comportamento educado, história e literatura. Quando completavam 15 anos estavam prontas para servir ao rei. Aos 18 anos eram consideradas formadas. Antes disso, porém, Jussara Cabral relatou em seu livro A Sexualidade no Mundo Ocidental, que na antiga Grécia, meninas escravas eram comercializadas para prostituição aos cinco anos, como forma de compensar o tempo e gastos despendidos no seu sustento.
Em Londres, no século XVIII, existiam os bordéis que atendiam os mais variados desejos da clientela. Entre eles, a vontade de se satisfazer com garotas mais jovens. Por isso, conforme Roberts, havia o aliciamento de meninas vindas do campo e a compra de crianças postas à venda do lado de fora das igrejas. Além disso, caso as mulheres operárias – que não eram respeitadas e trabalhavam até 16 horas por dia – ficassem desempregadas, o roubo, a pobreza e a prostituição eram conseqüências.
Na França do século XIX, as prostitutas atuavam em bordéis caros ou nas ruas, onde corriam o risco de ser presas. Além disso, as trabalhadoras das fábricas eram consideradas prostitutas ou futuras prostitutas. Na Alemanha, ainda segundo a historiadora, também havia o controle pela polícia, exigindo o registro das mulheres, que deveriam atuar apenas nos bordéis.
Na Itália, o sistema de controle da prostituição estava sob a tutela do Estado, como uma herança da Roma Antiga. O governo estipulava os preços e permitia que as mulheres ficassem com ¼ de seus ganhos, além disso, eram obrigadas a fazer exames de saúde duas vezes por semana e tinham que se recolher nos horários predeterminados e usar roupas discretas.
No Brasil, a história mostra que a exploração sexual infanto-juvenil começou no passado. Segundo o historiador Guido Fonseca, em seu livro História da Prostituição em São Paulo, já em 1788, José Arouche de Toledo Rondon chamava a atenção para "o triste espetáculo que se via nas ruas da cidade: inúmeras meninas esmolando e outras recebendo dinheiro em troca do corpo, muitas delas com menos de 12 anos. Em sua maioria eram órfãs ou enjeitadas pelos pais".
Fonseca relata que, em 1825, crianças rejeitadas ou filhas de militares enviados ao extremo sul do país para a defesa da Pátria que não haviam retornado ou voltavam inválidos vagavam pela cidade e acabavam sendo recolhidas por famílias miseráveis que logo as atiravam à prostituição, almejando algum lucro, como na Grécia Antiga. No século passado, havia prostíbulos onde as exploradoras reservavam crianças do sexo feminino, filhas de prostitutas escravas, substituindo as mais velhas ou as que tivessem morrido.
Conforme o historiador Guido Fonseca, idade, beleza e gravidez eram itens considerados pelos compradores de escravas, assim como na Grécia Antiga. Exemplo disso é o anúncio publicado no jornal A Lei, de São Paulo, em 1º de março de 1853: "Vende-se uma boa escrava crioula de 15 anos de idade, sem vícios, moléstia ou defeito; muito bonita e bem preta, a qual está grávida de quatro meses. Quem quiser comprá-la dirija-se à rua Tabatinga, na casa que fica em frente à rua Boa Morte".
Proximidade com o presente
Essa situação parece muito distante da contemporaneidade. Mas não é. No interior do Brasil, principalmente na região Norte, meninas são comercializadas como escravas sexuais, por meio de redes de tráfico de seres humanos. Muitas são vendidas pelas próprias famílias, que, miseráveis e excluídas, não têm condições de prover o sustento da criança.
Os aliciadores acabam mantendo as meninas e até meninos em cárcere privado, onde sofrem todo o tipo de violência sexual, física e psicológica. São mantidos em regime de escravidão e permanecem vinculados a uma dívida contraída junto ao agenciador ou dono do prostíbulo, em troca da alimentação, estadia, roupas e produtos de higiene.
A partir dos relatos históricos é possível constatar que, ao longo das épocas, os motivos que levaram crianças, adolescentes e mulheres a serem explorados sexualmente não são muito diferentes dos atuais. Nickie Roberts ressalta que 90% das prostitutas eram operárias das fábricas. As crianças e adolescentes prostituídas também se originaram de famílias operárias em grandes dificuldades econômicas. Trata-se, como hoje, da vulnerabilidade provocada pela miséria e pela violência física, sexual e psicológica sofrida no seio da família.
A problemática da exploração sexual comercial de crianças e adolescentes é algo que constantemente toma novas formas, mas segue um processo histórico de exclusão, discriminação e fuga para uma situação melhor que a vivida. O incesto, abuso e violência sexual intrafamiliar vêm desde a Roma Antiga, com os imperadores que se serviam sexualmente das irmãs.
Trata-se da exclusão social de pessoas que carregavam o estigma da pobreza e da prostituição, como uma conseqüência da miséria e única forma de sobrevivência. A história relata ainda os primeiros casos de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual quando mostra que os escravos de ambos os sexos tinham de acompanhar os exércitos para servi-los sexualmente.
O rei francês Luis XV pode ser considerado um dos primeiros aliciadores de crianças e adolescentes para a exploração sexual, uma vez que mantinha meninas sob sua tutela em troca da proteção e sustento, aproveitando-se da situação de miserabilidade, exclusão e pobreza de suas famílias. O envolvimento de políticos, senadores e pessoas da alta sociedade da Roma Antiga com a prostituição é algo que se repete até hoje em todo o mundo. O que muda são as maneiras como as crianças e adolescentes são exploradas, a fim de darem lucro aos seus "donos".
Os êxodos rurais em busca de melhores condições de sobrevivência sempre aconteceram. Assim como na Idade Média, quando muitas mulheres e crianças fugiram das guerras entre os feudos refugiando-se nas cidades, milhares de famílias miseráveis do Nordeste brasileiro também realizaram há poucas décadas um processo migratório rumo às metrópoles, gerando inchaço nas periferias dos grandes centros.
Enfrentamento tardio
Apesar de caminhar junto à história da humanidade, a exploração sexual comercial infanto-juvenil passou a ser pauta de discussões e a ser encarada como algo nocivo para crianças e adolescentes vitimizados há pouco mais de duas décadas. Os marcos referenciais foram a conclusão da CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) da Prostituição Infanto-Juvenil, realizada em 1993; o Seminário das Américas, em Brasília, em 1996, e o Congresso Mundial contra a Exploração Sexual Comercial de Crianças, realizado no mesmo ano, em Estocolmo, Suécia.
A CPI da Prostituição Infanto-Juvenil deu visibilidade ao problema e concluiu que a exploração sexual de crianças e adolescentes é incentivada por vários fatores, entre elas a desestruturação da família, que empurra a garota ou o garoto para as ruas, para pedófilos e indivíduos viciados. Além disso, é aceita com naturalidade e até incentivada. A CPI colocou em evidência também a ligação existente com o narcotráfico e o intercâmbio de crianças e adolescentes prostituídos. Revelou que a facilidade encontrada por tais atividades ilícitas deve-se à impunidade dos culpados e à ausência ou ineficiência de políticas de atendimento às vítimas.
O levantamento destacou a ligação do problema com casos de assassinatos e situações de cárcere privado, em que os agenciadores, aliciadores e donos dos prostíbulos chegam a ficar com 80% do dinheiro conseguido pelas adolescentes. Mesmo com essa exploração, a dívida nunca é abatida, obrigando-as a permanecer no local e em constante atividade.
Segundo o relatório conclusivo do Congresso Mundial, a exploração sexual comercial infanto-juvenil é facilitada pelas disparidades econômicas, estruturas sócio-econômicas injustas, desintegração familiar, educação, consumismo, migração rural-urbana, discriminação de gênero, conduta sexual masculina irresponsável, práticas tradicionais nocivas e o tráfico de crianças. Assim, apenas a pobreza não pode ser considerada como fator determinante da problemática.
EXPLORAÇÃO SEXUAL INFANTO-JUVENIL
Luiz Antonio Miguel Ferreira
Promotor de Justiça da Infância e da Juventude do Ministério Público do Estado de São Paulo.
Publicado em 04/07/2007
Sumário: 1. Introdução; 2. Exploração Sexual Infanto-Juvenil; 3. Normatividade Internacional; 4. A Legislação Nacional e as Formas de Se Enfrentar a Exploração Sexual Infanto Juvenil; 5. No Campo Penal - Atuação Repressiva; 6. No Campo Social; 7. Dificuldades para o Efetivo Combate à Exploração Sexual Infanto Juvenil; 8. Considerações Finais; 9. Referência Bibliográfica.
EDVALDA PEREIRA DA SILVA. Ela tem onze anos, mas já aprendeu as manhas da profissão: não entra no motel, ou no carro, sem receber o dinheiro antes, guardado sempre por outra amiga. Não conhece o pai, e sua mãe, que trabalha na zona do meretrício, não se importa com quem e onde ela dorme. Edvalda se acha igual às outras meninas que fazem programa. Com uma diferença: "eu ainda não tenho peito". (DIMENSTEIN. 1992, p.69).
01.INTRODUÇÃO:
A situação retratada pelo jornalista Gilberto Dimenstein com relação a Edvalda e outras tantas meninas que integram o chamado mundo da prostituição infantil, na região norte e nordeste do Brasil, apresenta um problema extremamente grave que não fica restrito às referidas regiões, pois, de caráter democrático, acaba por atingir todo o nosso País. E, na globalização dos problemas, não se trata de assunto restrito ao chamado terceiro mundo, maculando, também, nações desenvolvidas.
Apesar do problema fazer-se presente em vários Países, o levantamento de números, a respeito dos envolvidos (agressores e vítimas) nesta rede, apresenta-se complexo, diante da natureza do ato e de seu caráter ilícito, conforme esclarece LIBÓRIO: "o número de crianças e adolescentes envolvidos nesta rede de exploração é muito difícil de ser estimado e a sua quantificação é difícil, principalmente devido ao fato do mesmo ser ilegal e estar intimamente ligado a uma rede de crime, o que, portanto impede o acesso a muitas dessas crianças e/ou adolescentes, mascarando sua ocorrência" (2001).
No entanto, pesquisa realizada pela Universidade da Pensilvânia - Estados Unidos - revelou que, de "cerca de 350.000 menores de 18 anos, uma em cada 100 crianças americanas é vítima de prostituição, pornografia, ou outra forma de comércio sexual. Segundo o coordenador do trabalho, a "exploração sexual infantil é uma epidemia". Os dados apontam que 1% das crianças americanas é vítima do comércio sexual; 75% das crianças prostituídas vieram de famílias de classes média e a maioria é branca; que os homens casados e com filhos são os principais clientes que pagam por sexo com menores; que meninos são tão vítimas quanto as meninas e que 40% das meninas e 30% dos meninos envolvidos em prostituição sofreram abuso sexual em casa.(1)
Verifica-se que tais informações apresentam certa similitude com as apresentadas pela CPI da Prostituição infanto-juvenil realizada em 1994 pela Câmara dos Deputados, onde se destacam:
a) A prostituição e a exploração infanto-juvenil são realidades disseminadas por todo o território nacional e permeiam todas as classes sociais;
b) O número de meninas prostituídas é maior que o de meninos, mas estes encontram-se, também, em grande quantidade;
c) Há distinção entre a prostituição famélica e a destinada à obtenção de bens de consumo, ou acesso a locais da moda (com meninas da classe média);
d) Uso de drogas tem estreita relação com a prostituição infantil: (a) em primeiro lugar, o jovem que se vicia pode chegar a se prostituir para obter droga; (b) em segundo lugar, os exploradores incentivam os vícios em droga, para manterem ascendência e controle sobre os explorados. Por último, (c) a alienação trazida pelas drogas converte-se, não raro, no refúgio último do jovem quando na prostituição.
e) Influi, decisivamente, na violência sexual no lar, o fato de as populações de baixa renda, ou de condições miseráveis, viverem em habitações que convidam à promiscuidade.
Como consignado no relatório, a violência sexual costuma originar-se no próprio lar (violência doméstica), quando praticada pelos pais, padrastos, irmãos, tios, etc.. No entanto, ganha força na comunidade e nos meios de comunicação, sendo as crianças e os adolescentes objetos de apelos e desejos, em termos turísticos inclusive. Trata-se de um fenômeno que precisa ser mais bem conhecido, diante do grave problema social que envolve.
Nesse sentido, adverte SUMALLA:
La prostitución infantil es un mundo que necesita ser mejor conocido, por su evidente relevancia criminológica y también porque la iniciación precoz a la prostitución antes de alcanzar la mayoría de edad es un hecho bastante extendido entre las personas que se dedican a esta práctica (2000, p. 32).
Diante desta epidemia, mister se faz analisar o problema, dando a exata dimensão do que se pode compreender por exploração sexual infanto-juvenil e as implicações penais dos envolvidos.
02. EXPLORAÇÃO SEXUAL INFANTO-JUVENIL.
No I Congresso Mundial contra a exploração sexual comercial de crianças(2) realizado em 1996 em Estocolmo - Suécia ficou definido como exploração sexual comercial de crianças:
O uso de uma criança para propósitos sexuais em troca de dinheiro ou favores em espécie entre a criança, o cliente, o intermediário ou agenciador e outros que se beneficiam do comércio de crianças para esse propósito.
Conforme esclarece LIBÓRIO, com base nas informações tiradas do citado congresso, podem-se vislumbrar quatro dimensões da exploração sexual comercial de crianças e adolescentes, que estão interligadas:
a) Prostituição;
b) Pornografia (tanto a produção, como distribuição e consumo);
c) Turismo sexual e o
d) Tráfico de crianças e adolescentes para fins comerciais e sexuais.
Estas situações, segundo SUMALLA, "giram en torno a dos ideas principales: la assimetría de edad y el abuso de poder" (2000, p. 21).
A definição de cada uma das situações referentes à exploração sexual infanto-juvenil, segundo a ONU, pode ser assim apresentada:
PROSTITUIÇÃO:
"É o ato de engajar ou oferecer os serviços de uma criança para executar os atos sexuais por dinheiro ou outras considerações com aquela pessoa ou qualquer outra pessoa".
Tendo como parâmetro a pessoa maior de idade, a jurisprudência francesa define prostituição em termos amplos como:
el hecho de prestarse, mediante uma remuneración, a contactos físicos de cualquer naturaleza a fin de satisfacer los deseos sexuales de outro.
Na Alemanha, entende-se por prostituição:
el comportamiento de hombres y mujeres que a cambio de una retribución se entregan a contactos sexuales com un círculo no determinado de hombres y mujeres.
E, na doutrina espanhola, a prostituição define-se nas palavras de Morales/Garcia, como:
aquella actividad que, ejercida com cierta nota de contidianeidad o habitualidad, consiste en la prestación de servicios de naturaleza sexual verificados a cambio de una prestación de contenido econômico (SUMALLA, 2000, p. 84-85).
Quando se analisa a questão da prostituição de crianças e adolescentes, surge a dúvida lançada pela socióloga Marlene Vaz: seria a criança prostituta ou prostituída? (1994, p.8).
Na verdade, o termo prostituição não se deve aplicar às crianças e aos adolescentes. Eles não optam por se prostituírem. Induzem-se a isso pelo comportamento delituoso do adulto e, muitas vezes, da própria família. Assim, seriam vítimas da conduta do maior, que deve ser responsabilizado pelo seu ato.
A relação existente entre crianças, adolescentes, e a questão sexual está mais ligada à exploração, figurando-os mais como vítimas, do que a um ato volitivo, que implique a prática sexual por dinheiro, ou na vontade de se prostituir.
PORNOGRAFIA
"É qualquer material áudio ou visual que use crianças num contexto sexual. Consiste na exibição de uma criança engajada em conduta sexual explícita, real ou simulada, ou a exibição impudica de seus genitais com a finalidade de oferecer gratificação sexual ao usuário, e envolve a produção, distribuição e/ou uso de tal material".
TURISMO SEXUAL
Segundo a Associação Brasileira Multiprofissional de proteção à infância e à adolescência, define-se turismo sexual como "esquemas de exploração sexual de crianças e adolescentes voltados para o turista estrangeiro". Está ligado ao aspecto econômico da exploração sexual de crianças, assim como o tráfico.
TRÁFICO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES PARA FINS COMERCIAIS E SEXUAIS.
"A transferência de uma criança de uma parte a outra para qualquer propósito, em troca de compensação financeira ou de outra natureza. O tráfico sexual é um negócio lucrativo que transporta crianças para propósitos sexuais comerciais. Pode ocorrer nas fronteiras, entre países, ou dentro do mesmo país".
Esclarece LIBÓRIO (2001) que:
No mercado do sexo, as relações de exploração se dão em rede, onde há busca de clientes, busca de corpos, e busca de lucro. Nesse contexto, as relações de proteção de direito não existem, em seu lugar há a mercantilização da infância,"o corpo da criança e do adolescente se transforma em valor de uso e em valor de troca em âmbito nacional e internacional" (Faleiros, 1998, p. 19).
A exploração sexual infanto-juvenil traduz, na verdade, um ato de violência praticada contra a criança e o adolescente, que coloca em risco sua integridade física e psicológica, merecendo o devido repúdio por parte da sociedade.
03. NORMATIVIDADE INTERNACIONAL
Diante desse contexto de exploração sexual infanto-juvenil, no âmbito internacional, surgiu a iniciativa de se reconhecer uma proteção especial à infância, em todos os termos, na questão sexual inclusive. A primeira referência é a Declaração de Genebra (1924), que determinava a "necessidade de proporcionar à criança uma proteção especial". Representou um marco inicial, vez que introduziu, no cenário jurídico, o conceito denominado "interesse superior da criança".
Posteriormente, em 1948, com a Declaração Universal de Direitos Humanos das Nações Unidas (artigo 25, parágrafo 2º.) ficou reconhecido, à infância, "o direito a cuidados e assistência especiais". Assim reza o dispositivo:
A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças nascidas, dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social.
Seguindo a mesma orientação, em 1959, a Assembléia Geral das Nações Unidas adotou a Declaração dos Direitos da Criança, na qual buscou ampliar e atualizar a proteção oferecida pela Declaração de Genebra. Em seu princípio 9º., declarou-se:
A criança gozará proteção contra quaisquer formas de negligência, crueldade e exploração. Não será jamais objeto de tráfico, sob qualquer forma.
Da mesma forma, a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica, 1969) convencionou, em seu artigo 19, que:
Toda criança tem direito às medidas de proteção que na sua condição de menor requer, por parte da família, da sociedade e do Estado.
Tais instrumentos tiveram importantes papéis na luta pelo reconhecimento dos direitos da infância, posto que apresentavam um paradigma protetivo. Por fim, em 1989, a comunidade internacional apresentou uma proposta que deu origem à Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, que teve papel fundamental na confirmação e alargamento do princípio da proteção integral.
Tal instrumento completou, aperfeiçoou e deu caráter vinculante à Declaração dos Direitos da Criança, proposta trinta anos antes.
Os Estados-partes deste tratado, do qual o Brasil é signatário, tomarão todas as medidas legislativas, administrativas, sociais e educacionais apropriadas para proteger a criança contra todas as formas de violência física ou mental, abuso ou tratamento negligente, maus-tratos ou exploração, inclusive abuso sexual (artigo 19). No artigo 34 ficou consignado que:
Os Estados -partes se comprometem a proteger a criança contra todas as formas de exploração e abuso sexual. Nesse sentido, os Estados-partes tomarão, em especial, todas as medidas de caráter nacional, bilateral e multilateral que sejam necessárias para impedir:
a) o incentivo ou coação para que uma criança dedique-se a qualquer atividade sexual ilegal;
b) a exploração da criança na prostituição ou outras práticas sexuais ilegais
c) a exploração da criança em espetáculos ou materiais pornográficos"
Além desta normatividade, outros artigos da Declaração também visaram a proteger as crianças e adolescentes vítimas de exploração sexual. São eles:
Artigo 35 - Os Estados-partes tomarão todas as medidas de caráter nacional, bilateral ou multilateral que sejam necessárias para impedir o seqüestro, a venda ou o tráfico de crianças para qualquer fim ou sob qualquer forma.
Artigo 36 - Os Estados-partes protegerão a criança contra todas as demais formas de exploração que sejam prejudiciais a qualquer aspecto de seu bem-estar.
Artigo 39 - Os Estados-partes adotarão todas as medidas apropriadas para estimular a recuperação física e psicológica e a reintegração social de toda criança vítima de: qualquer forma de abandono, exploração ou abuso; tortura ou outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes; ou conflitos armados. Essa recuperação e reintegração serão efetuadas em ambiente que estimule a saúde, o respeito próprio e a dignidade da criança.
Desta forma, a Convenção de 1989 representou importante marco para o reconhecimento dos direitos da infância e da juventude, mesmo porque, a partir do momento em que o Estado firma o tratado, vincula-se a ele, submetendo-se, aos mecanismos de supervisão e cumprimento das medidas pactuadas inclusive. Neste último documento internacional, assenta-se a mudança de paradigma que envolveu a legislação brasileira no sentido de garantir, à criança e ao adolescente, a proteção integral e deu atenção especial à questão da exploração sexual infanto-juvenil. Anote-se que esta Convenção deu suporte à Constituição Federal e, posteriormente, ao Estatuto da Criança e do Adolescente, que dispensou tratamento diferenciado à criança e ao adolescente, na questão relativa a exploração sexual inclusive.
04. A LEGISLAÇÃO NACIONAL E AS FORMAS DE SE ENFRENTAR A EXPLORAÇÃO SEXUAL INFANTO JUVENIL
A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança não só deu suporte ao Estatuto da Criança e do Adolescente como também à Constituição Federal. E, no assunto em pauta, apontou quem são os responsáveis diretos pela efetivação dos direitos das crianças e dos adolescentes e, em especial, ao combate à exploração sexual infanto-juvenil.
Neste caso, estabelece a Constituição Federal:
Art. 227: "É dever da família, da sociedade, do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, saúde, alimentação .... além de colocá-lo a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Parágrafo 4º - A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente".
No mesmo sentido, estabeleceu o Estatuto da Criança e do Adolescente:
Art. 4º - É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, alimentação, ....
E mais:
Art. 5º - Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punindo na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.
Logo, fica evidente que os responsáveis diretos pelo combate à exploração sexual são: família, sociedade (comunidade) e o Estado (Poder Público).
Identificados os responsáveis, resta verificar como pode ocorrer o enfrentamento de tal problema. No caso em comento, há necessidade de se estabelecer mecanismos, que venham a contemplar tanto a criança e o adolescente vítima como também o agressor. Assim, destacam-se duas formas de agir:
1- Atuação social e preventiva
2 -Penal e repressiva
05. NO CAMPO PENAL - atuação repressiva:
A base do sistema repressivo brasileiro é o Código Penal de 1940, que estabeleceu como crimes, algumas condutas relacionadas à questão sexual que merecem atenção especial, por atentar contra a "moralidade pública". Nesse sentido, esclarece NORONHA que a "vida social necessita de moralidade pública, conjunto de normas que ditam o comportamento a ser observado nos domínios da sexualidade. Primeiramente, surgem como princípios de ordem ética, para depois se tornarem jurídicos. Impedem aquelas manifestações que constituem desvio ou aberração da função sexual normal, quer sob o ponto de vista biológico, quer sob o social". (1964, p. 116).
Especificamente, em relação à prostituição, a legislação brasileira adotou o sistema do abolicionismo, compreendendo como uma atividade não criminosa, razão pela qual não deve o Estado interferir no seu exercício, nem mesmo impedi-la. Este sistema é contrário ao da regulamentação, que, com o objetivo de prevenir doenças venéreas e garantir a ordem pública, aceita a prática da prostituição, restrita a certas áreas da cidade, geralmente, distante do centro, onde as mulheres sujeitam-se a um conjunto de obrigações, como, por exemplo, submeterem-se a exames médicos periódicos. Também é contrária ao sistema da proibição, que considera a prostituição uma conduta criminosa, vedando o seu exercício.
No Brasil, como afirmado, vigora o abolicionismo, preferindo o legislador punir o proxeneta, o rufião e o traficante de mulheres, mas não a prostituta, já que não se considera crime a atividade exercida pela ela.
Assim, na legislação relacionada ao tema, em especial, com relação à prática de atos sexuais ou libidinosos, podem-se citar os seguintes dispositivos penais, que, de uma forma ou de outra, buscam coibir a prática da exploração sexual infanto-juvenil:
a) Seqüestro e cárcere privado
Art. 148 do Código Penal - privar alguém de sua liberdade, mediante seqüestro ou cárcere privado:
Pena - reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos
Parágrafo Primeiro - A pena é de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos:
I - se a vitima é ascendente, descendente, cônjuge ou companheiro do agente ou maior de 60 (sessenta) anos;
II - ....
III - .....
IV - se o crime é praticado contra menor de 18 (dezoito) anos;
V - se o crime é praticado com fins libidinosos.
Parágrafo segundo - Se resulta à vítima, em razão de maus-tratos ou da natureza da detenção, grave sofrimento físico ou moral:
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos.
b) Estupro:
Art. 213 do Código Penal - Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça:
Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.
c) Atentado violento ao pudor:
Art. 214 do Código Penal - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal:
Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.
d) Corrupção de menores:
Art. 218 do Código Penal - Corromper ou facilitar a corrupção de pessoa maior de 14 (catorze) e menor de 18 (dezoito) anos, com ela praticando ato de libidinagem, ou induzindo-a praticá-lo ou presenciá-lo:
Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos.
e) Lenocínio: Mediação para servir a lascívia de outrem:
Art. 227 do Código Penal - Induzir alguém a satisfazer a lascívia de outrem:
Pena - reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos.
Parágrafo primeiro - Se a vítima é maior de 14 (catorze) e menor de 18 (dezoito) anos, ou se o agente é seu ascendente, descendente, cônjuge ou companheiro, irmão, tutor ou curador ou pessoa a que esteja confiada para fins de educação, de tratamento ou de guarda:
Pena: reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos.
Parágrafo segundo - Se o crime é cometido com emprego de violência, grave ameaça ou fraude:
Pena: reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência.
Parágrafo terceiro - Se o crime é cometido com o fim de lucro, aplica-se também multa.
f) Favorecimento da prostituição:
Art. 228 do Código Penal - Induzir ou atrair alguém à prostituição, facilitá-la ou impedir que alguém a abandone:
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos.
Parágrafo primeiro - Se ocorre qualquer das hipóteses do parágrafo 1º. do artigo anterior:
Pena - reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos.
Parágrafo segundo - Se o crime é cometido com emprego de violência, grave ameaça ou fraude:
Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 10 (dez) anos, além da pena correspondente à violência.
Parágrafo terceiro - Se o crime é cometido com o fim de lucro, aplica-se também multa.
g) Casa de prostituição:
Art. 229 do Código Penal - Manter, por conta própria ou de terceiro, casa de prostituição ou lugar destinado a encontros para fim libidinoso, haja, ou não, intuito de lucro ou mediação direta do proprietário ou gerente:
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.
h) Rufianismo:
Art. 230 do Código Penal -Tirar proveito da prostituição alheia, participando diretamente de seus lucros ou fazendo-se sustentar, no todo ou em parte, por quem a exerça:
Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
Parágrafo primeiro - Se ocorre qualquer das hipóteses do parágrafo primeiro do art. 227:
Pena - reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, além da multa.
Parágrafo segundo - Se há emprego de violência ou grave ameaça:
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, além da multa e sem prejuízo da pena correspondente à violência.
i) Tráfico internacional de pessoas / Tráfico interno de pessoas
Art. 231 do Código Penal - Promover, intermediar ou facilitar a entrada, no território nacional, de pessoa que venha a exercer a prostituição, ou a saída de pessoa para exercê-la no estrangeiro.
Pena: reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa.
Parágrafo primeiro - Se ocorre qualquer das hipóteses do parágrafo 1º. do art. 227:
Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 10 (dez) anos e multa.
Parágrafo segundo - Se há emprego de violência, grave ameaça ou fraude, a pena é de reclusão, de 5 (cinco) a 12 (doze) anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
Art. 231 - A do Código Penal - Promover, intermediar ou facilitar, no território nacional, o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento da pessoa que venha exercer a prostituição:
Pena: reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa.
Parágrafo único: Aplica-se ao crime de que trata este artigo o disposto nos parágrafos 1º e 2º do artigo 231 deste Decreto - lei.
Artigo 212 do Código Penal: nos crimes de que trata este capítulo, é aplicável o disposto nos arts. 223 e 224.
j) Ato obsceno:
Art. 233 do Código Penal - Praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto, ou exposto ao público:
Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa.
l) Importunação ofensiva ao pudor:
Art. 61 da Lei das Contravenções Penais - Importunar alguém, em lugar público ou acessível ao público, de modo ofensivo ao pudor:
Pena- multa.
Esta legislação, como bem aponta VERONESE, ao tratar das questões relativas à exploração sexual, a situa, genericamente, dentro do mundo dos maiores de idade e com ênfase à prostituição feminina, não dando a devida importância à prostituição infanto-juvenil. É certo que, quanto ao menor de 14 anos, em todas as hipóteses descritas, a violência já é presumida na forma do artigo 224 do Código Penal, com o conseqüente agravamento da pena (1977, p. 40).
E conclui: "Temos, dessa forma, ao contemplar o Código Penal, um sistema punitivo que não pune e sequer contramotiva a prática da prostituição infantil".
Estatuto da Criança e do Adolescente.
Visando a sanar tal vício, o ECA procurou estabelecer algumas situações referentes à prostituição infanto-juvenil, tipificando como crimes:
a) Art. 240 - Produzir ou dirigir representação teatral, televisiva, cinematográfica, atividade fotográfica ou de qualquer outro meio visual, utilizando-se de criança ou adolescente em cena pornográfica, de sexo explícito ou vexatório.
Pena: reclusão de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa.
Parágrafo primeiro: Incorre na mesma pena quem, nas condições referidas neste artigo, contracena com criança ou adolescente.
Parágrafo segundo: A pena é de reclusão de 3 (três) a 8 (oito) anos:
I - se o agente comete o crime no exercício de cargo ou função;
II - se o agente comete o crime com o fim de obter para si ou para outrem vantagem patrimonial.
b) Art. 241 - Apresentar, produzir, vender, fornecer, divulgar ou publicar, por qualquer meio de comunicação, inclusive rede mundial de computadores ou internet, fotografias ou imagens com pornografia ou cenas de sexo explicito envolvendo criança ou adolescente:
Pena: reclusão de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa.
Parágrafo Primeiro: Incorre na mesma pena quem:
I - agencia, autoriza, facilita ou, de qualquer modo, intermedeia a participação de criança ou adolescente em produção referida neste artigo;
II - assegura os meios ou serviços para o armazenamento das fotografias, cenas ou imagens, produzidas na forma do caput deste artigo;
III - assegura, por qualquer meio, o acesso, na rede mundial de computadores ou internet, das fotografias, cenas ou imagens produzidas na forma do caput deste artigo.
Parágrafo segundo: A pena é de reclusão de 3 (três) a 8 (oito) anos:
I - se o agente comete o crime prevalecendo-se do exercício de cargo ou função;
II - Se o agente comete o crime com o fim de obter para si ou para outrem vantagem patrimonial.
c) Art. 244 - A - Submeter criança ou adolescente, como tais definidos no caput do art. 2º. desta Lei, à prostituição ou à exploração sexual.
Pena: reclusão de 4 (quatro) a 10 (dez) anos e multa.
Parágrafo 1º - Incorrem nas mesmas penas o proprietário, o gerente ou o responsável pelo local em que se verifique a submissão de criança ou adolescente às práticas referidas no caput deste artigo.
Parágrafo 2º - Constitui efeito obrigatório da condenação a cassação da licença de localização e funcionamento do estabelecimento.
Este artigo veio suprir a lacuna existente na legislação referente à prostituição infantil e foi inserido no ECA, pela Lei n. 9975 de 24 de junho de 2000.
A legislação punitiva do ECA necessita ainda de alguma evolução, pois não a redação do Art. 244-A não é suficientemente clara para indicar que "submeter criança ou adolescente à prostituição ou à exploração sexual, implica responsabilizar não somente aquele que detém certa parcela de autoridade sobre ela (como o pai, o responsável, o rufião, o proxeneta, etc.), como também aquele que sai com a menor para a prática do ato sexual (o "cliente").
Além da esfera repressiva, o Estatuto da Criança e do Adolescente apresenta medida de natureza cível e administrativa, com o intuito de proteger as crianças e os adolescentes vítimas de exploração sexual. Assim, estabelece o ECA:
Art. 130 - Verificada a hipótese de maus-tratos, opressão ou abuso sexual imposto por pais ou responsável, a autoridade judiciária poderá determinar, como medida cautelar, o afastamento do agressor da moradia comum.
Art. 250 - Hospedar criança ou adolescente, desacompanhado dos pais ou responsável ou sem autorização escrita destes, ou da autoridade judiciária, em hotel, pensão, motel ou congênere.
Pena: Multa de 10 a 50 salários de referência; em caso de reincidência, a autoridade judiciária poderá determinar o fechamento do estabelecimento por até 15 dias.
A responsabilidade pelo combate à exploração sexual infanto-juvenil, em face de tais dispositivos de natureza penal, é da Polícia Civil, Militar, Ministério Público e Poder Judiciário. Ressalte-se que, neste campo, a preocupação principal é com o agressor maior e nem sempre com a vítima/menor, que, muitas vezes, não é preservada em sua intimidade e dignidade.
06. NO CAMPO SOCIAL:
A atuação preventiva e social tem como alvo a própria criança ou o adolescente, como sujeitos de direitos que gozam de liberdade, respeito, dignidade (Art. 16, 17 e 18 do ECA) e que merecem ser tratados com prioridade absoluta.
Para solucionar ou diminuir o problema da exploração sexual tão presente em nossa sociedade, deve-se tratar, não os sintomas, mas as causas, através de medidas preventivas - e não corretivas - inseridas dentro de todo o complexo quadro dos problemas sociais. Este caso envolve políticas públicas que venham a garantir os direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes, com o comprometimento da família, do Estado e da comunidade no desenvolvimento sadio de seus filhos.
VERONESE, ao analisar tal situação esclarece:
... a verdadeira prevenção de um problema tão sério como é o da prostituição infantil se dará através de uma ação conjunta entre a sociedade e o Estado, se servindo de métodos e programas capazes de neutralizar o problema na sua origem. É lógico que não se dará a curto prazo, mas isto não deve servir como um argumento para não agir (1977, p. 43)
A responsabilidade por esta atuação social, como afirmado, é da comunidade, família, sociedade em geral e Poder Público, envolvendo diretamente o Conselho Municipal, o Conselho Tutelar, a Escola, os Poderes Legislativo e Executivo, o Ministério Público e o Judiciário.
Algumas medidas são apontadas por LIBÓRIO (2001) na prevenção e/ou enfrentamento desse problema, especificamente, na área da educação, como:
a) Manutenção das crianças e adolescentes no sistema educacional;
b) Promover a educação sexual que deve ocorrer nos âmbitos familiar, escolar, comunitário e governamental;
c) Analisar os fatores sócio-enocômicos na educação, além da consideração aos pedagógicos;
d) Enfatizar o protagonismo infanto-juvenil, onde crianças e adolescentes sejam estimulados a participar de todos os programas educacionais;
e) Estabelecer parcerias com setores não governamentais para o desenvolvimento de projetos educacionais, etc.
Mas, para além do campo educacional, a prevenção envolve, diretamente, a questão familiar e comunitária, para que tais medidas se efetivem.
É certo que, no campo social, o Estatuto da Criança e do Adolescente oferece as medidas de proteção (art. 101), com programas de cunho social como alternativa para interferir na realidade das crianças e adolescentes vítimas da exploração sexual e prostituição.
07. DIFICULDADES PARA O EFETIVO COMBATE À EXPLORAÇÃO SEXUAL INFANTO-JUVENIL.
A questão da exploração sexual infanto-juvenil encontra algumas dificuldades paro o efetivo combate, especialmente na área jurídica, podendo-se citar:
a) Dificuldade de se lidar com os conceitos apresentados quanto à exploração sexual - nem sempre a definição apresentada na doutrina encontra um paralelo na esfera penal. Muitas vezes, denuncia-se determinada situação como caracterizadora da exploração sexual que não guarda relação com o tipo penal previsto na legislação, e vice-versa. Exemplo desta situação é a prevista no artigo 244-A do ECA que confunde exploração sexual com prostituição.
b) A questão legislativa - lei específica referente à da criança e do adolescente. Trata-se de uma legislação nova que buscou suprir algumas lacunas deixadas pelo Código Penal. Porém, ainda assim existem algumas situações que merecem reparo. A lei não estabeleceu nenhuma sanção de natureza administrativa àqueles responsáveis diretos pelo tema, como, por exemplo, os médicos que detectam lesões provenientes de abusos sexuais e não denunciam. A Lei fala apenas em maus tratos (art. 245).
c) Comprovação dos delitos. Há uma dificuldade enorme de se comprovar tais infrações, em razão da natureza e forma como são praticadas e da própria situação da vítima, pessoa menor de idade, cujo depoimento, muitas vezes, não recebe a credibilidade que merece. Quando não, são ainda vítimas de ameaças para impedir a denúncia dos agressores.
d) Despreparo e falta de comprometimento, quanto ao tema tratado, dos responsáveis pela investigação dos delitos e aplicação da lei. Há, ainda, apego ao formalismo, em detrimento da garantia dos direitos fundamentais da vítima menor de idade.
Estas situações podem dificultar, um pouco, a aplicação da lei quanto à exploração em análise. Contudo, apresentam-se como exceções à regra geral.
08. CONSIDERAÇÕES FINAIS.
A exploração sexual infanto-juvenil representa um desafio para todos aqueles que estão comprometidos com a efetivação dos direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes. Implica uma atuação coordenada da questão na esfera jurídica, social, educacional e política, no sentido de propiciar uma mudança "ideológica e cultural".
Requer preparo do profissional para lutar contra as adversidades que o tema proporciona, pois envolve uma rede organizada de infratores em contrapartida às vítimas despreparadas. Contudo, não se pode negar que, com uma atuação coordenada e comprometida de toda a sociedade, é possível mudar esta realidade. Aliás, estamos nesse mundo para melhorá-lo; nesse sentido, adverte GIANNI RODARI no poema "Por que nascemos!"
Esta é uma história verdadeira:
Uma vez você não era e agora é.
Como? Por quê?
Você veio a este mundo para ver como ele é lindo,
Assim grande, assim redondo e, ao invés, que descobriu?
Que ele é velho, encurvado e até mal organizado: dá pena até de olhar...
Arregace logo as mangas, é preciso consertar...
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