sexta-feira, 27 de agosto de 2010

TRÁFICO INTERNACIONAL DE MULHERES

Tráfico Internacional de pessoas atinge a 60 mil brasileiros por ano, diz Ministério da Justiça

Agência Brasil
Publicação: 18/08/2010 17:53 Atualização: 18/08/2010 22:09
Rio de Janeiro – Todos os anos, cerca de 60 mil brasileiros são vítimas do tráfico internacional de pessoas. A maioria é de mulheres, entre 18 e 25 anos, oriundas de famílias de baixa renda. Os principais destinos são Espanha, Portugal e Suíça. Os dados são da Secretaria Nacional de Justiça (SNJ), ligada ao Ministério da Justiça, que começa amanhã (18) um monitoramento nos núcleos e postos avançados de enfrentamento ao tráfico de pessoas, instalados nos principais aeroportos do país.

O coordenador nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas da SNJ, Ricardo Lins, considera o problema uma nova forma de escravidão. Depois de levada para o exterior, a vítima fica presa a uma rede internacional de prostituição, sujeita a trabalhos forçados, em cárcere privado e exposta a doenças sexualmente transmissíveis.

“O tráfico de pessoas é uma forma moderna de escravidão. Hoje se escravizam pessoas por dívida. Os traficantes mantêm o poder sobre elas, que devem as passagens, a estadia e a alimentação, fazendo com que se submetam ao que eles querem. Elas são mantidas sem condição de sair, porque não têm como pagar o que devem”, afirmou Lins.

Embora os números não sejam precisos, o governo brasileiro trabalha com dados da Organização das Nações Unidas (ONU), que estima em 100 mil vítimas de tráfico de pessoas no Brasil por ano.

Segundo Lins, os números da ONU estariam superestimados, pois incluiriam casos de pessoas que tentam entrar nos países apenas com fins de imigração. Pelos dados recolhidos nos postos avançados, responsáveis por atender os brasileiros deportados, de cada dez casos, seis são de vítimas de exploração. Os demais seriam de tentativas de imigração ilegal.

Para mapear o problema, técnicos da SNJ começam amanhã a percorrer os seis núcleos e quatro postos instalados – ou em implantação – nos estados do Acre, Ceará, Pará, Rio de Janeiro, de Goiás, Pernambuco, São Paulo, e da Bahia.
Acerca do tráfico internacional de pessoas
Jornalista Externo
Com o advento da Lei 11.106, de 28 de março de 2005, passou a ser tipificado o tráfico internacional de pessoas (art. 231) e tráfico interno de pessoas (art. 231-A).
O tráfico sexual de pessoas, especialmente de mulheres, é um fenômeno crescente, ainda que com determinadas peculiaridades, e, na atualidade, tem sido alvo de constante preocupação da comunidade internacional.

Como bem se assinala, “a exploração sexual de seres humanos constitui um grave ataque a sua dignidade humana que merece ser combatido em nível máximo com emprego dos instrumentos do Direito Penal é algo compartilhado por todos, mormente quando se trata de exploração infantil. Nesta ordem, a insistência das organizações internacionais em assegurar o êxito da persecução penal estatal, mediante a harmonização das disposições penais e das penas, e o fomento da cooperação (policial e judicial) internacional não apresenta objeção alguma...”.(1)

Assim, essa modalidade de tráfico continua a ter como objeto preferencial mulheres provenientes de países onde imperam a pobreza, a desigualdade social, a discriminação, o desemprego e a droga (tráfico e uso de entorpecentes), como condições de lucratividade do negócio ilícito. Nos últimos tempos, outra peculiaridade desse fenômeno criminal é a sua internacionalização com o envolvimento de organizações criminosas que operam com conexões em vários países. Alude-se sobre a evolução dessa criminalidade que, “o tráfico de mulheres tem sua origem na exploração econômica da mão de obra feminina e na sexualidade, e se trata de um fenômeno estrutural’. O que talvez só tenha sido alterado, desde de que foi concebido como problema no final do século XIX, vem a ser, na realidade, a condição das mulheres sobre as quais ele recai, visto que “já não são brancas’ senão “negras’ ou, em todo caso, “provenientes de países que se empobrecem rapidamente, de países em crise econômico-social, sob uma situação política instável ou sob regime ditatorial’”.(2)

Nessa perspectiva, tem-se, por exemplo, a denominada Ação Comum relativa à luta contra o tráfico de seres humanos e a exploração sexual de crianças, adotada pelo Conselho da União Européia, em 1997. A diretriz consagrada nesse documento é de que o tráfico de seres humanos e a exploração sexual de crianças constituem um grave atentado contra os direitos fundamentais, especialmente, contra a dignidade humana.

Define-se, genericamente, o tráfico como qualquer conduta que facilite a entrada, o trânsito, a residência ou a saída do território de um Estado membro de seres humanos ou de crianças, com a finalidade de exploração sexual, com a persecução de fins lucrativos. A Assembléia Geral das Nações Unidas se refere ao tráfico de pessoas como sendo “o movimento ilícito e clandestino de pessoas através das fronteiras nacionais e internacionais (...) com o fim último de forçar mulheres e meninas a situações de opressão e de exploração sexual ou econômica em benefício de proxenetas, traficantes e bandos criminosos organizados, bem como a atividades ilícitas relacionadas com o tráfico de mulheres, como, por exemplo, o trabalho doméstico forçado, os casamentos falsos, os empregos clandestinos e as adoções fraudulentas” (Resolução 49/166).

As novas disposições epigrafadas nos artigos 231 e 231-A do Código Penal brasileiro constituem reflexo desse processo e materializam o aperfeiçoamento da luta contra essa espécie de criminalidade.

Feitas essas considerações, cumpre tecer breves comentos sobre tráfico internacional de pessoas.

Tutela a norma penal incriminadora do artigo 231, caput, a própria condição humana, sua dignidade de pessoa, repudiando-se o vil comércio ou tráfico de pessoas, que são utilizadas como objeto, em geral visando obter compensação econômica, para o exercício da prostituição. A pessoa em geral mulher - aparece como vítima e objeto do tráfico de seres humanos. De outro lado, nos §§ 1.º e 2.º, do citado dispositivo, o bem jurídico protegido vem a ser a liberdade sexual da pessoa lato sensu, inclusive sua integridade e autonomia sexual (autodeterminação sexual), como parte do livre desenvolvimento de sua personalidade.

O sujeito ativo do delito pode ser qualquer pessoa (delito comum). Em geral, a conduta delitiva é praticada através de concurso de agentes ou por associação ou grupo de traficantes. O sujeito passivo pode ser qualquer pessoa, seja do sexo masculino, seja do feminino, e a coletividade internacional.

A conduta reprimida pelo legislador no artigo 231, caput, consiste no fato de o agente promover, intermediar ou facilitar ingresso no território brasileiro de pessoa que venha a exercer a prostituição, ou a saída dele de pessoa que vá exercê-la no estrangeiro.

A ação de promover, que é sinônimo de avançar, executar, diligenciar, dar impulso, fomentar, fazer que se execute, que se ponha em prática, tornar possível a execução de algo, representa uma série de atos perpetrados pelo agente visando conseguir a entrada de pessoa no território nacional ou sua saída para o estrangeiro, para exercer a prostituição.

Intermediar significa interceder, mediar, entremear, interceder, intervir, criar ambiente ou propiciar as condições que possibilitem o tráfico internacional de pessoas (v.g., recrutando, providenciando transporte, fazendo contatos). O intermediário atua fazendo ligação entre pessoas: por exemplo, entre o traficante propriamente dito (aquele que promove) e o terceiro (v.g., pessoa que venha exercer prostituição no território nacional ou que vá exercê-la no estrangeiro, ou, ainda, o eventual contratante que explore a prostituição).

Na ação de facilitar - tornar fácil, proporcionar, favorecer, cooperar - a vítima já deliberou estabelecer-se no estrangeiro, de forma que o agente torna-se seu coadjuvante, concedendo-lhe auxílio para lograr, com maior êxito e comodidade, sua saída ou ingresso no país visado, eliminando eventuais empecilhos ou dificuldades. A atividade do agente, nesse caso, é acessória.

É de notar que a anuência ou o consentimento da vítima não descaracteriza o delito, visto que o caput do artigo em exame não contém essa exigência (tráfico consentido). Além do mais, a coletividade internacional também figura como sujeito passivo.

Demais disso, basta o simples trânsito ou permanência rápida no território nacional para se configurar a infração penal.

Por território nacional entende-se o espaço delimitado sujeito ao poder soberano do Estado. Pode ser: real ou efetivo superfície terrestre (solo e subsolo), as águas territoriais (fluviais, lacustres, marítimas) e o espaço aéreo correspondente; b) ficto ou por extensão as embarcações e aeronaves, por força de uma ficção jurídica (art. 5.º, §§ 1.º e 2.º, CP). De outro lado, território estrangeiro é o espaço pertencente a outro Estado e sobre o qual exerce sua soberania, e que, tal como o território nacional, está situado dentro de limites geográficos que abrangem tanto o aspecto real como ficto.(3)

É de se ressaltar que o preceito incriminador genericamente considerado não tem por objetivo o exercício da prostituição em si - ressalvada a primeira parte do dispositivo (caput, do 231) que vincula o tráfico ao efetivo exercício da prostituição -, mas sim o tráfico de pessoas, com vistas à prostituição de outrem, embora o tipo legal não faça nenhuma referência ao lucro ou à vantagem patrimonial a ser auferida pelo sujeito ativo, ainda que seja ela quase sempre inerente a essa atividade. Busca-se, na verdade, punir o comércio de seres humanos, no caso para abastecer o mercado da prostituição. A palavra “prostituição” - elemento normativo extrajurídico pode ser entendida genericamente como o tráfico ou o comércio sexual realizado mediante pagamento ou preço. Integra a prostituição o conceito mais amplo e, por isso, preferível de exploração sexual, que pode incluir outras atividades de natureza sexual. É a exploração sexual conceituada como a “utilização de uma pessoa para fins sexuais, com ânimo de lucro, atentando direta ou indiretamente contra sua dignidade e liberdade sexual, e afetando potencialmente seu equilíbrio psicosocial”.(4)

O tipo de injusto não requer que a pessoa tenha conduta moral irrepreensível, podendo ser até mesmo pessoa plenamente corrompida ou já prostituída. Não se questiona aspectos de ordem moral, de moralidade pública ou privada.

O tipo subjetivo está representado pelo dolo, vontade livre e consciente de promover, intermediar ou facilitar a entrada no território nacional de pessoa que venha a exercer a prostituição, ou a saída de pessoa para exercê-la no estrangeiro. Ademais, exige-se, na segunda parte do caput do art. 231 (“ou a saída de pessoa para exercê-la no estrangeiro”), a presença do elemento subjetivo especial do injusto consistente no propósito de exercício da prostituição. O agente realiza a conduta típica (promove, intermedeia ou facilita) a saída da vítima para exercer a prostituição no exterior (fim transcendente).

Consuma-se o delito, na primeira parte do caput do art. 231 (“a entrada (...) de pessoa que venha a exercer a prostituição”), com o efetivo exercício da prostituição, em regime de habitualidade. Trata-se, nesta modalidade, de delito de resultado e de lesão. De outro lado, na segunda parte do caput do art. 231 (“ou a saída de pessoa para exercê-la no estrangeiro”), o delito se consuma com a prática de quaisquer uma das condutas ali previstas, não sendo necessário que a vítima venha a exercer a prostituição. Trata-se de delito de mera atividade. O seu efetivo exercício pode caracterizar o mero exaurimento. A tentativa é admitida na primeira hipótese, e, em tese, é inadmissível na segunda.

Caso o agente transite pelo território nacional com a vítima com destino ao meretrício de outro país, estará caracterizado o delito, não só por se tratar de crime internacional, mas também porque, ao passar pelo país, não deixa de promover a saída da vítima para a prática de prostituição em território estrangeiro.(5)

Se o agente leva a vítima de uma região a outra do mesmo país, não se caracteriza o delito em epígrafe, que pressupõe tráfico internacional e não interestadual. Nesse caso, configurado estará o crime do art. 231-A (tráfico interno de pessoas).

As circunstâncias que qualificam o tráfico são as mesmas do artigo 227, ou seja, delito perpetrado contra vítima maior de quatorze e menor de dezoito anos, ou se o agente é seu ascendente, descendente, cônjuge ou companheiro, irmão, tutor ou curador ou pessoa a que esteja confiada para fins de educação, de tratamento ou de guarda (§ 1.º) e emprego de violência, grave ameaça ou fraude (§ 2.º).

Cumpre ainda salientar que de acordo com o artigo 232, as formas qualificadas de lenocínio e de tráfico de pessoas e de presunção de violência são as mesmas enumeradas pelo legislador nos artigos 223 e 224.

A pena prevista para o crime de tráfico internacional de pessoas é de três a oito anos de reclusão, e multa (art. 231, caput). Na forma qualificada, ocorrendo qualquer das hipóteses do artigo 227, parágrafo 1.º, a pena é de quatro a dez anos de reclusão, e multa (art. 231, § 1.º). Se há emprego de violência, grave ameaça ou fraude, a pena é de cinco a doze anos de reclusão, e multa, além das sanções atinentes à violência (art. 231, § 2.º). A ação penal é pública incondicionada.

Do lenocínio e do tráfico de pessoas

Conforme o art. 3º da Lei 11.106/2005, o Capítulo V do Título VI (Dos crimes contra os costumes), da Parte Especial do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, passou a vigorar com o seguinte título: “Do lenocínio e do tráfico de pessoas”.

O título passou de: “Do lenocínio e do tráfico de mulheres” para: “Do lenocínio e do tráfico de pessoas” (coloquei o itálico).

A mudança foi necessária em razão das modificações introduzidas nos arts. 227 e 231 do Código Penal, conforme veremos abaixo.


Mediação para servir a lascívia de outrem

Sob o nomem criminis de “mediação para servir a lascívia de outrem” o art.227 do Código Penal tipifica a conduta de “induzir alguém a satisfazer a lascívia de outrem”, estabelecendo pena de reclusão, de um a três anos para a forma simples.

As formas qualificadas estão elencadas nos §§ 1ºe 2º.

Em conformidade com o disposto no § 3º, “se o crime é cometido com o fim de lucro, aplica-se também multa”.

A nova lei deu maior abrangência ao § 1º do art. 227, que na redação antiga tinha o seguinte texto: “Se a vítima é maior de 14 (catorze) e menor de 18 (dezoito) anos, ou se o agente é seu ascendente, descendente, marido, irmão, tutor ou curador ou pessoa a quem esteja confiada para fins de educação, de tratamento ou de guarda” (coloquei o itálico).

A nova redação está nos seguintes termos: “Se a vítima é maior de 14 (catorze) e menor de 18 (dezoito) anos, ou se o agente é seu ascendente, descendente, cônjuge ou companheiro, irmão, tutor ou curador ou pessoa a quem esteja confiada para fins de educação, de tratamento ou de guarda” (coloquei o itálico).

Como se vê, a expressão “marido” foi substituída por “cônjuge ou companheiro”. De melhor rigor técnico e em sintonia com as regras que integram o sistema jurídico vigente, a mudança merece aplauso.

Enquanto a previsão antiga se referia apenas ao marido, cônjuge do sexo masculino, portanto, agora fala em cônjuge ou companheiro. Leia-se: cônjuge do sexo masculino ou feminino; companheiro ou companheira.

No que tange aos reflexos incidentes sobre os fatos praticados sob a égide do regramento antigo é preciso destacar que não houve qualquer abrandamento em relação ao “marido” que cometeu tal crime, visto que a forma qualificada quanto a este permaneceu intacta, somente com nova linguagem técnica, qual seja: cônjuge.

Por outro vértice, se a conduta fora praticada antes da nova lei por cônjuge do sexo feminino; por companheiro ou companheira, não estará submetida ao novo tratamento penal. Quanto a estes, somente a partir da vigência da “nova lei” é que se submeterão a seus efeitos penais severos.

Quanto ao mais, para evitar o enfaro da repetição remetemos o leitor ao que foi dito por ocasião das considerações ao art. 148 do Código Penal (2.1.1.1. Crime praticado contra companheiro), no que for pertinente.


Tráfico internacional de pessoas

Outra mudança trazida pela Lei 11.106/2005 está no art. 231 do Código Penal, antes denominado crime de “tráfico de mulheres”.

Agora o nomem criminis passou a ser “tráfico internacional de pessoas”, e isso em razão da nova redação do art. 231 e também para destacar sua diferença com o novo tipo penal trazido com a “lei nova”, denominado “tráfico interno de pessoas”, expresso no art. 231-A, objeto de apreciação no tópico seguinte.

A redação antiga do art. 231 tinha o seguinte teor: “Promover ou facilitar a entrada, no território nacional, de mulher que nele venha exercer a prostituição, ou a saída de mulher que vá exercê-la no estrangeiro” (coloquei o itálico).

Para a forma fundamental a pena era de reclusão, de três a oito anos.

Com a nova redação o sistema repressivo passou a punir como crime de “tráfico internacional de pessoas” as seguintes condutas: “Promover, intermediar ou facilitar a entrada, no território nacional, de pessoa que venha exercer a prostituição ou a saída de pessoa para exercê-la no estrangeiro” (coloquei o itálico para destacar as mudanças).

Foi mantida a pena de reclusão no mesmo patamar, contudo, agora ela deverá ser aplicada cumulativamente com pena de multa. Antes da nova lei a imposição de pena de multa só se verificava se o crime fosse cometido com o fim de lucro, conforme a redação do § 3º que acabou revogado. Para o legislador, agora, tal crime sempre será praticado com o fim de lucro, conclusão que não é de todo desacertada.

A mudança introduzida no caput atualizou o tipo penal com a realidade dos dias hodiernos.

O verbo intermediar, incluído no caput, tem considerável alcance e por certo proporcionará o enquadramento de muitas condutas convergentes à prática do crime em questão, antes de difícil conformação e ajustamento às hipóteses típicas.

Enquanto as condutas de promover ou facilitar têm alcance mais restrito, a intermediação completa o rol das condutas típicas que normalmente estão ligadas às infrações de tal natureza e permite não deixar a descoberto; fora da esfera de proteção penal, razoável número de comportamentos que se ajustam ao verbo.

Enquanto qualquer pessoa pode ser sujeito ativo do crime em questão, na antiga redação somente a mulher é que poderia ser sujeito passivo.

A nova redação deu ao crime uma redefinição e também maior alcance, pois, com a retirada do monopólio do sexo feminino em relação ao pólo passivo, agora qualquer pessoa poderá nele figurar: homem ou mulher.

A restrição foi derrubada.

Sensível à realidade dos dias atuais e conhecendo as práticas que envolvem a exploração sexual em sentido amplo, o legislador reconheceu a necessidade de ampliar, e por isso ampliou, a proteção penal também ao sexo masculino, pois já não é novidade a comercialização e exploração sexual do homem, o que era quase inimaginável no tempo em que se redigiu o Código Penal brasileiro.

Foram mantidas as redações dos §§ 1º 2º e as penas reclusivas exatamente como antes. Acrescentou-se apenas a pena de multa, agora cumulativamente aplicada.

A revogação do § 3º, expressamente anotada no art. 5º da Lei 11.106/2005, deve-se à seguinte mudança: a pena de multa que antes era condicionada ao “fim de lucro” agora é obrigatoriamente cumulativa e está expressa nos §§ precedentes.

Haveria, pois, flagrante impertinência em imaginar possível a permanência do § 3º no ordenamento.


Tráfico interno de pessoas

Além da nova tipificação ampliada em relação ao art. 231 a Lei 11.106/2005 também criou novo tipo penal.

Para o aperfeiçoamento do sistema punitivo, além de punir o tráfico internacional de pessoas agora com maior amplitude, o legislador cuidou de tipificar o crime de “tráfico interno de pessoas”, estabelecendo como crime previsto no art. 231-A do Código Penal as condutas de: “Promover, intermediar ou facilitar, no território nacional, o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento da pessoa que venha exercer a prostituição”. A pena abstratamente prevista é de reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa, exatamente como a pena prevista para o art. 231, caput, e por força do disposto em seu parágrafo único, ao crime de tráfico interno de pessoas também são aplicáveis as regras dos §§ 1º e 2º do art. 231.

O objeto jurídico da tutela penal é a honra sexual; a lei também visa proteger os bons costumes.

Qualquer pessoa poderá figurar como sujeito ativo, independentemente do sexo, ocorrendo o mesmo em relação ao sujeito passivo.

O elemento subjetivo do tipo é o dolo. Basta o dolo genérico.

A consumação ocorre com a prática efetiva de pelo menos uma das condutas descritas no tipo penal, sendo admissível a forma tentada (art. 14, II, co CP).

A figura do art. 231-A é tipo alternativo, de conduta variada.

Promover significa dar impulso, colocar em execução (de qualquer forma); intermediar quer dizer servir de intermediário ou mediador; facilitar, aqui, tem o sentido de desembaraçar, tornar mais simples, dar maior agilidade.

Recrutamento é a reunião; agrupamento ou alistamento de pessoas. Não é preciso que o recrutamento envolva várias pessoas; basta uma para a configuração do ilícito.

Transporte é o deslocamento de um lugar a outro. Enquanto o agente estiver promovendo o transporte o crime será de natureza permanente, assim considerado aquele cuja conduta delituosa se mantém no tempo e no espaço.

Transferência significa mudança de um lugar a outro. Há uma sutil diferença entre esta conduta e a anterior (transporte). Enquanto transporte tem o sentido de levar alguém para local em que se pratica a prostituição (para os fins do tipo legal), a transferência pressupõe a mudança de um lugar onde se pratica a prostituição para outro de igual destinação.

Alojamento é local específico destinado ao abrigo de pessoas.

Acolhimento, para os termos do tipo penal, significa receber alguém em local não destinado ao alojamento. Acolher é dar amparo, guarida; dar refúgio, proteção ou conforto físico.

É preciso que as práticas acima analisadas tenham por alvo “pessoa que venha a exercer a prostituição”. Exercer a prostituição é prostituir-se; dedicar-se ao comércio sexual; à satisfação voluntária da lascívia de outrem em troca de vantagem.

Para a adequação típica é preciso, ainda, que tais condutas tenham ocorrido no território nacional, pois se uma das práticas tocar território estrangeiro a figura penal será a do art. 231 (observados os parâmetros da tipificação), e não a do art. 231-A.

A pena abstratamente prevista afasta a possibilidade de suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei 9.099/95), e eventual condenação até 4 (quatro) anos não impedirá a substituição da privativa de liberdade por restritiva de direito, desde que presentes os demais requisitos exigidos em lei. Se fixada a privativa de liberdade até o limite acima indicado, seu cumprimento poderá iniciar-se no regime aberto, observadas as disposições do art. 33 c.c. o art. 59, ambos do Código Penal.


Irretroatividade da lei mais severa


Reflexo sobre as novas figuras típicas

As inovações acrescidas ao § 1º do art. 227 e ao caput do art. 231, e bem assim a nova figura penal do art. 231-A, obviamente não se aplicam aos casos consumados antes da vigência da Lei 11.106/2005.

Princípios de contornos constitucionais como o da anterioridade da lei (princípio da legalidade ou reserva legal) e da irretroatividade da lei penal mais severa (art. 5º, incs. XXXIX e XL, da CF), também previstos no art. 1º do Código Penal, impedem a retroação do alcance do texto novo para atingir situações consumadas ao tempo em que a regulamentação normativa era outra, mais benéfica.

De tal sorte, para os termos do novo art. 227 do Código Penal, somente os crimes praticados por cônjuge do sexo feminino; companheiro ou companheira, após a vigência da nova regulamentação penal é que se submeterão à forma qualificada do § 1º.

Nessa mesma linha argumentativa, as inovações dos arts. 231 e 231-A só incidirão sobre fatos praticados sob a égide da nova ordem penal. Observe-se, contudo, que em relação à prática do verbo “transporte”, previsto no art. 231-A, onde a conduta é de natureza permanente, poderá ocorrer hipótese em que ele venha a perdurar vários dias. Sendo assim, se iniciado antes da vigência da lei nova, o transporte se estender para além do início da exigência do texto novo, poderá ocorrer prisão em flagrante, por exemplo, e regular processo com a nova definição típica.


Reflexo sobre a pena de multa cumulada

A experiência da vida contemporânea, pautada pela febre do enriquecimento, indica que muitas vezes a pena de multa poderá surtir efeitos econômicos e psicológicos no réu, bem mais severos que a ameaça ou imposição de pena privativa de liberdade.

É forçoso reconhecer, entretanto, que para tal realidade seria necessário um sistema de execução mais eficaz do que o determinado com a redefinição da pena de multa como dívida de valor, nos termos da Lei 9.268/96.

Pelas mesmas razões expostas no item anterior, a pena de multa agora cumulativamente imposta não obriga o aplicador da lei em relação aos fatos passados, consumados antes da vigência do texto novo.

Para os casos consumados antes da Lei 11.106/2005, com ou sem investigação ou processo de conhecimento iniciado antes de 29 de março de 2005 (data em que a lei entrou em vigor), já não subsiste qualquer possibilidade de aplicação de pena de multa, ainda que o crime tenha sido cometido com o fim de lucro, e isso em razão da revogação expressa do §3º do art. 231 (cf. art. 5º da nova lei).

Aqui é forçoso reconhecer que a pena de multa deixou de existir para os casos passados. Não há como se restabelecer a vigência do § 3º. A revogação expressa é causa intransponível e obstativa de tal possibilidade.
Tráfico internacional de pessoas com ênfase no mercado sexual


Cristiane Araujo de Paula
Resumo: O Projeto de Pesquisa em voga traz consigo o estudo de uma realidade quem vem trazendo imensa preocupação às comunidades nacionais e internacionais: o tráfico de pessoas, em especial mulheres e crianças, para fim de exploração sexual. As ocorrências do fenômeno vêm apresentando um aumento considerável e devastador, resultante de contradições sociais e acentuado pela globalização, bem como pela fragilização dos Estados-Nações. Com isso, vê-se um agravamento das desigualdades sociais de gênero, raça, cor e etnia. Segundo estimativas da comunidade internacional, o tráfico de pessoas é a terceira atividade mais rentável do crime organizado, movimentando anualmente entre US$ 5 bilhões e US$ 7 bilhões. Mais de um milhão de mulheres e crianças são traficadas a cada ano no mundo. Embora os dados disponíveis sobre o tráfico de seres humanos no Brasil sejam escassos, as notícias veiculadas pela mídia nacional e internacional sobre o assunto indicam que esse é um problema de grande magnitude. O presente estudo monográfico, pois, possui o objetivo de tratar especificamente da conjuntura e problemática do tráfico de mulheres e crianças para fins de exploração sexual.
I. INTRODUÇÃO[1]
O escopo do presente trabalho monográfico consiste em, primordialmente, enfatizar a necessidade premente de um debate sério sobre a temática do tráfico de pessoas, em especial mulheres e crianças, no Brasil e no mundo.
No entanto, as discussões sobre o tema não correspondem à sua dimensão, nem às implicações sociais que decorrem da impunidade de agentes responsáveis pela prática desse crime, que encontram vantagens na fragilidade e inocência de suas vítimas.
Deste modo, pois, foi eleita como objeto de estudo essa palpitante questão, uma vez que a violência e o abuso contra a dignidade da pessoa humana são freqüentes na atual sociedade global e capitalista.
O tráfico de seres humanos é uma forma de crime organizado e constitui uma grave violação dos direitos humanos, liberdade sexual e desenvolvimento da sexualidade humana.
A maior parte do tráfico de seres humanos é voltada para a exploração sexual, atingindo mulheres e adolescentes do sexo feminino e masculino. No entanto, há registros da ocorrência do tráfico de pessoas voltado para o trabalho forçado ou escravo, envolvendo indistintamente homens, mulheres e famílias constituídas.
Seja para fins de exploração sexual ou de trabalho forçado, dentro ou fora do Brasil, o artifício empregado pelos grupos de traficantes no aliciamento de suas vítimas tem um atrativo em comum: a oferta de um emprego bem remunerado, dentro ou fora do Brasil, e muitas vezes a oportunidade de uma nova vida em um país mais rico.
Na maioria dos casos, as vítimas acabam trabalhando em bordéis, sendo sexualmente exploradas ou obrigadas a trabalhos forçados sob condições de semi-escravidão.
O retorno ao país, no caso do tráfico internacional, torna-se quase inviável, pois os traficantes criam situações de endividamento permanente da vítima, retém seu passaporte e outros documentos e as ameaçam com denúncias de prática de atividades ilegais, para evitar que as mesmas recorram à justiça.
Apesar de o Brasil ser um dos maiores exportadores de mulheres e crianças para fins de comércio sexual, o Governo Federal desconhece boa parte da extensão do problema, resultando na falta de controle sobre essa modalidade de tráfico.
Contudo, são evidentes os esforços da comunidade global a fim de erradicar o problema do tráfico, que vem assolando vários países de forma violenta e devastadora.
Nações e organizações internacionais, governamentais e não governamentais, estão se unindo para criar programas e adotar leis severas contra este crime, que vem sendo motivo de grande preocupação para ativistas nacionais e internacionais e agentes governamentais.
Deste modo, procurará o presente trabalho monográfico, numa breve resenha, abordar todos os aspectos relativos ao tema, traçando um perfil sobre o fenômeno do tráfico de pessoas, em especial de mulheres e crianças, para fins de comércio sexual, além de abordar sobre os principais agentes envolvidos, sua dimensão no mundo globalizado e os diversos remédios já elaborados como forma de combate e prevenção desse mal.
II. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO TRÁFICO DE PESSOAS
Por tratar-se, o assunto em questão, de instituto que abrange vasta compreensão e conhecimento de fatores que levam a sua causa e a crescente dificuldade que se tem na investigação de dados concretos e elaboração de meios eficazes para resolução do problema, é que se vê necessário um breve histórico da matéria relacionada, tanto da causa quanto da elaboração de meios resolutivos nos âmbitos nacional e internacional.
2.1.Breve escorço histórico
De acordo com Shecaria e Silveira[2] a mais antiga referência histórica do tráfico de pessoas está sem qualquer duvida no tráfico negreiro. O Brasil “colônia” sempre manteve a escravidão, sendo o ultimo pais da América a aboli-la. No inicio do séc XIX a existência de mão-de-obra escrava já não interessava mais aos ingleses, que tinham grandes interesses no mercado consumidor na América do Sul.
Nessa época Portugal mantinha a liderança na pratica de tráfico e comércio de escravos, o que fez com que a coroa Inglesa começasse a pressionar o país a fim de extinguir a prática do tráfico negreiro.
O Tráfico negreiro foi considerado ilegal para os Ingleses a partir de 1º de março de 1807, e crime contra humanidade, em 1º de março de 1808.
Portugal e sua colônia, por sua vez, passaram a ser o principal alvo de medidas que visassem o fim tráfico e do trabalho escravo. Em 1810, os ingleses forçaram Portugal a aceitar um tratado de “Cooperação e Amizade” em que a questão da escravidão era tratada, porém os Ingleses não obtiveram os resultados esperados no acordo, ocasionando nova pressão inglesa, que culminou com a aprovação de uma lei brasileira contra o tráfico em 7 de novembro de 1831, conhecida como lei de Diogo Feijó. Tal lei ratificava a extinção de tráfico de escravos e afirmava, logo em seu art. 1º, que "todos os escravos, que entrarem no território ou nos portos do Brasil, vindos de fora, ficam livres".
No entanto, a disposição normativa não logrou êxito, apesar das normas proibitivas que previam sanções criminais aos infratores, pois até 1855 continuaram a vir da África grandes levas de escravos. Sabe-se que essa lei tinha como verdadeiro objetivo dar uma satisfação internacional, em especial à Inglaterra, o que a fez conhecida como “Lei para inglês ver”.
Posteriormente, novamente decorrente da pressão inglesa em face do Bill Aberdeen” (lei unilateral da Coroa Inglesa que autorizava qualquer nação a reprimir o tráfico de escravo, por ser entendido como crime que fere os direitos das gentes, equivalente à pirataria), é aprovada uma segunda norma brasileira contra o tráfico: Lei Eusébio de Queiroz, dando poderes de apreender quaisquer embarcações brasileiras ou estrangeiras com escravos, ou mesmo com os sinais de terem se destinado ao tráfico de escravos (art. 1º). Como a repressão ao tráfico negreiro continuou leniente, foi aprovada uma terceira lei, em 5 de junho de 1854, dando ainda mais poderes contra os importadores de escravos da África.
O último desembarque de escravos que se tem notícia no Brasil ocorreu em 13 de outubro de outubro de 1855.
Em seu livro sobre Tráfico Internacional de Mulheres e Crianças Damásio de Jesus,[3] relata que o tráfico de seres humanos faz parte da nossa história. Os navios negreiros transportaram ,durante 300 anos, milhões de pessoas - homens, mulheres e crianças - para o trabalho agrícola, que se estendia à servidão doméstica, à exploração sexual e às violações físicas.
Após a escravidão, no início de um novo século, um fluxo contínuo de pessoas provenientes da Europa se iniciou em direção ao território brasileiro. Milhares de pessoas deslocaram-se da Europa para países do Novo Mundo, fugindo da fome e da perseguição que os afligia naquela época.
A realidade deste “Novo Mundo” que os Europeus sonhavam, era diversa da esperada. Os imigrantes aqui encontraram a dura realidade do trabalho semi-escravo.
Com esse enorme fluxo de pessoas, emergiu o tráfico de mulheres brancas. Meninas e jovens eram trazidas da Europa para serem exploradas sexualmente nos países da fronteira da crescente economia capitalista.
Ainda hoje, milhares de pessoas cruzam o oceano em busca de um sonho ou de melhores condições de vida, fugindo das guerras, da fome, da pobreza de suas nações, da perseguição religiosa e da violência.
2.2. Situação atual e aspectos gerais
O problema do tráfico não é novo. Tem-se atualmente uma forma moderna de escravidão que persistiu durante toda história, problema antigo, que o mundo democrático pensava extinto e que, no entanto, vem se consubstanciando com a inércia e a reserva que se tem em encarar o problema, devido aos vários aspectos que a ele são inerentes.
Segundo Shecaria e Silveira1 o mundo enfrenta, hoje, dois tipos de tráfico de mulheres e crianças. Um deles tem atividade de precípuo interesse vinculado à mão-de-obra escrava, ainda que não se desvincule do interesse de comércio sexual. Ocorre principalmente na África. Outro tem clara conotação sexual e sua prática vem ocorrendo em todos os continentes.
O tráfico de seres humanos constitui um fenômeno abominável, tornando-se cada vez mais grave e preocupante. A sua natureza é mais sistemática do que episódica, não afetando apenas um número limitado de pessoas, pois suas conseqüências afetam a estrutura social e econômica das sociedades. Sua prática é facilitada pela globalização e pelas tecnologias modernas. O tráfico de seres humanos não se restringe à exploração sexual, envolvendo também a exploração do trabalho em condições próximas da escravidão. As vítimas sofrem violências, violações, maus tratos e graves sevícias, bem como outros tipos de pressões e coações1.
Segundo Damásio2 as principais causas do tráfico de seres humanos e de fluxo imigratório são a ausência de direitos ou a baixa interpretação das regras internacionais de direitos humanos, a discriminação de gênero, a violência contra a mulher, a pobreza, a desigualdade de oportunidades e de renda, a instabilidade econômica, as guerras, os desastres naturais e a instabilidade política.
As perversas conseqüências sociais oriundas da globalização econômica, terminam por ocasionar pobreza em grande escala, guerras localizadas, eclosão de crises em vários países periféricos e regiões do terceiro mundo. A constante busca por lucros fáceis e o hedonismo desenfreado das sociedades de consumo contribuem em muito para que surjam muitos interessados na manutenção das diferenças sociais, de cor e de gênero. Essas diferenças, muitas vezes, propiciam ocorrências tais como famílias venderem seus filhos por alguns trocados ou a permuta de crianças por comida. Não é por outra razão que, no Brasil, como em outros países subdesenvolvidos, tais ocorrências são encontradas com razoável freqüência.
É certo que se, por um lado, algumas pessoas estão dispostas a assumir o risco de cair nas mãos de traficantes para melhorarem as suas condições de vida, por outro, existe nos países industrializados uma tendência preocupante à utilização de mão-de-obra barata e clandestina, bem como à exploração de mulheres e crianças para fins de prostituição e pornografia. As mulheres são particularmente vulneráveis ao tráfico de seres humanos devido à pobreza, à sobreposição do homem sobre mulheres, à falta de possibilidades de educação e de emprego nos seus países de origem[4].
Um outro fator de grande relevância é que o tráfico de seres humanos se torna a cada dia uma atividade extremamente lucrativa. Segundo dados do Escritório da ONU para o Controle de Drogas e Prevenção do Crime (ODCCP), são movimentados anualmente valores que giram em torno de sete a nove bilhões de dólares.
Segundo Damásio, em termos de crime organizado transnacional, o tráfico de seres humanos somente perde, em lucro, para o tráfico de drogas e o contrabando de armas, e que a maior parte das pessoas traficadas são provenientes de países do chamado Terceiro Mundo (Ásia, África, América do Sul e Leste Europeu) e são encaminhadas preferencialmente para os países desenvolvidos (Estados Unidos, Europa Ocidental, Israel e Japão), onde são submetidas a exploração sexual e ao trabalho forçado.
Charo Nogueira,[5] relata que em 2000, a Organização das Nações Unidas começou a elaboração do informe sobre a população mundial, dando ênfase expressiva ao problema da prostituição de meninas e o tráfico de mulheres como sendo um item relevante e merecedor de destaque nas agendas internacionais e nacionais. De acordo com o Estudo, 2 milhões de meninas entre 5 e 15 anos são introduzidas a cada ano no comércio sexual.
Além disso, sabe-se que muitas meninas padecem de abusos, sendo forçadas a ter relações sexuais inseguras e temporárias. Outras se vêem obrigadas a se casar, mesmo sendo ainda crianças. Em vista de tais estatísticas, a ONU ainda inclui dados da seguinte ordem: cerca de quatro milhões de mulheres e crianças foram vendidas e compradas tendo como destino o matrimônio, a prostituição ou a escravidão. Muitas caem em mãos de rede de traficantes que as exploram.
Vanessa Ribeiro,[6] relata em seu trabalho, sobre Tráfico de Pessoas, Políticas Públicas e o 4º Poder que diante de dados tão alarmantes, têm sido elaborados vários projetos visando a reparação destas ocorrências, passando por políticas públicas de saúde e de direitos reprodutivos que garantam a liberdade e a dignidade das mulheres.
Como tentativa de coibir o tráfico de pessoas nas fronteiras, foram tomadas, em diversos países, medidas como: o levantamento de folders e a realização de campanhas nos aeroportos, divulgação na mídia impressa e televisiva, etc. Foram também elaborados programas de associações de comércio exterior apontando que países desenvolvidos se organizam de uma maneira vasta para divulgação de informações sobre o tráfico. Todavia conclui que:
“Ainda que algumas mulheres saibam previamente que vão trabalhar em shows eróticos, na lavoura, como empregadas domésticas, ou como prostitutas, somente quando chegam ao novo destino é que descobrem que também vão permanecer em isolamento, sofrer maus tratos, além de serem obrigadas a entregar, senão todo, quase todos os ganhos de seu trabalho aos seus empregadores”.
Afirma a mesma autora que a formação do “mercado sexual” nos chamados Países de Terceiro Mundo é resultado de um processo histórico de desigualdades e injustiças. Aliás, as condições econômicas e sociais vividas dentro de um sistema massificador permitem, além da existência, a ampliação do alcance de suas nuances através de meios de comunicação de massa e de redes nacionais e internacionais, promotoras da prostituição e tráfico de mulheres.
Carmem Silva[7], defensora de causas feministas, em um artigo para revista Claudia, afirmou que o caminho percorrido pela miséria e pela exclusão acabam induzindo muitas mulheres à prostituição. Não obstante, essa atividade é considerada um fabuloso negócio que envolve poderosíssimas redes internacionais de tráfico de mulheres e de entorpecentes, bordéis, hotéis, cabarés, boates, enfim, todo o tipo de comércio de cunho sexual.
As vítimas de tráfico, que freqüentemente ficam alojadas em lugares sem segurança, vivem na clandestinidade e trabalham ilegalmente, além de freqüentemente estarem em situação ilegal no país de destino. Esse conjunto de fatores faz com que as vítimas se sintam mais coagidas diante da ameaça dos traficantes e mais inseguras para procurar qualquer tipo de ajuda.
O tráfico internacional de pessoas para fim de exploração sexual, apesar de ser um problema que vem afetando a sociedade há quase um século, era pouco investigado devido à resistência em tratar-se com naturalidade a questão da prostituição como fator predominante da causa do tráfico de pessoas.
Questões como a moralidade, influência religiosa, sobreposição do homem sobre a mulher decorrente de fatores históricos, que ainda se encontram estigmatizadas em nossa sociedade, prejudicaram em muito o desenvolvimento de estudos e medidas nacionais e internacionais realmente eficazes que contemplem todo o panorama relacionado à problemática do tráfico em todos os seus reais aspectos, causas e efeitos.
Por conta da longa inércia dos Estados em reconhecer a preponderância de fatos tão importantes é que pessoas, vítimas de crimes desta categoria e outros que ainda esperam por medidas governamentais, sofrem conseqüências graves, como sevícias, maus tratos e todo tipo de abuso contra integridade humana. Tal problema decorre do desamparo, da carência e da morosidade na elaboração de provimentos necessários para prevenção e combate ao tráfico de seres humanos.
Isso ocorre, sobretudo, em razão do “moralismo costumeiro”, que ainda hoje encontra-se impregnado na mentalidade social, por conta de um condicionamento histórico arcaico e a sobreposição da burocracia formal sobre a real necessidade, que se faz por muitas vezes imediata.
O Tráfico de seres Humanos, principalmente de mulheres, vem ganhando, gradativamente, lugar nos debates internacionais, devido ao crescimento desvairado e contínuo dessa prática delituosa. É bem verdade que medidas mais concretas contra o tráfico sexual, principalmente de mulheres, ganharam lugar na antiga União Internacional de Direito Penal[8].
Primeiramente em Budapeste e, logo depois, em 1902 na Conferência de Paris, o assunto era motivo de debate. No Brasil, algumas medidas também foram adotadas, como as previstas no Decreto nº 5.591/1905, e na Lei nº 2.992/1915.
O próprio Código Penal, anos mais tarde, veio a tipificar, como crime de tráfico de mulheres, a conduta de promover ou facilitar a entrada, no território nacional, de mulher que nele venha a exercer a prostituição, ou a saída de mulher que vá exercê-la no exterior (art. 231).
Consoante Shecaria e Silveira,1 o mundo mudou, pois se há pouco mais de um século a preocupação assumia alarmante relevo, hoje a situação é ainda pior.
“Deve-se levar em consideração de que o problema em questão trata da redução da pessoa humana submetida a condições, se não de escravidão, próximas a estas, restringindo assim a sua liberdade individual, mediante variada gama de ações (sedução, engodo ou fraude), abusando sexualmente, tudo em um mundo onde a imigração (legal ou não) é freqüente, e onde comunidades continentais estão a se formar e barreiras políticas a se desmoronar”
Nesse aspecto convém salientar que, mais do que uma questão de “delicta carnis”, ou de uma moral secularizada, há de se indagar quanto ao real bem jurídico protegido neste contexto. Não se trata mais, como estão a mostrar diversas reformas legislativas no Direito alienígena, de proteção da moral ou dos bons costumes. O tema vai além da própria liberdade sexual ou, como preferem alguns, versa sobre a liberdade de autodeterminação sexual e sobre a própria liberdade pessoal.
III. DEFINIÇÃO DE TRÁFICO E DIVERGÊNCIAS ENTRE TRÁFICO, MIGRAÇÃO ILEGAL E CONTRABANDO.
O intuito do presente capitulo é apresentar a evolução do conceito, definição, aceitação do tráfico de pessoas no decorrer do tempo - na legislação brasileira e nos tratados que procuraram tratar do tema com maior exatidão - as dificuldades, escassez e divergências em sua definição e previsão, visando uma maior compreensão dos capítulos posteriores.
3.1. Histórico do conceito de tráfico e suas definições.
O primeiro documento internacional contra o tráfico foi elaborado em 1904 com o propósito de suprimir a troca de escravos brancos, que ocorria devido ao tráfico e à migração de mulheres brancas da Europa para países árabes e orientais para atuarem como concubinas ou prostitutas, despertando preocupação por parte da sociedade e do governo europeu. Este documento não se mostrou eficaz, pois além de não ser propriamente universal, revelando uma visão do fato centrada na Europa também definiu o tráfico como movimento de mulheres com um propósito imoral, como prostituição.
O segundo documento, elaborado em 1910, além de reconhecer a existência do tráfico dentro do território nacional, também foi o primeiro a incluir previsões para punir os aliciadores, mas obteve apenas 13 ratificações. Apesar de se reconhecer a atividade escrava, ainda havia o tabu e o preconceito quanto à prostituição.
Posteriormente, em 1921 e 1933, surgiram instrumentos que foram elaborados no contexto da Liga das Nações e que, apesar de mais abrangentes, ainda definiam o tráfico independentemente do consentimento da mulher.
A relação entre tráfico e prostituição foi se solidificando, gradativamente nas décadas seguintes, ocorrendo em 1949 a Convenção para Supressão do Tráfico de Pessoas e da Exploração da prostituição, no qual foram consolidados os quatro instrumentos citados anteriormente, permanecendo como o único instrumento voltado para o problema do tráfico até a adoção da convenção de Palermo e seus Protocolos.
Inicialmente, a Convenção de 1949 não trazia uma definição clara de tráfico de pessoas e excluía um vasto padrão de mulheres ao se restringir ao tema da prostituição. Sua meta era abolir a prostituição para industria do sexo, mesmo que voluntária, deixando de mencionar o tráfico para qualquer outro propósito, seja como trabalho doméstico, casamento ou trabalho em condições precárias.
De acordo com uma cartilha elaborada por ocasião do Seminário Internacional sobre Tráfico de Mulheres, realizado em outubro de 20039 , tal convenção criminalizou todas as atividades associadas à prostituição, independente da idade da mulher e seu consentimento, permitindo a expulsão das vítimas caso estivessem sendo submetidas ao tráfico com este fim. O instrumento até hoje iguala o tráfico à exploração da prostituição.
Em outra vertente, os direitos humanos e seus sistemas de proteção internacionais foram se aperfeiçoando, até que em 1993, na Conferência Mundial dos Direitos Humanos, realizada em Viena, foi designada a Declaração e Programa de Ação de Viena, que em seu item 18 dizia:
"Os direitos humanos das mulheres e das meninas são inalienáveis e constituem parte integral e indivisível dos direitos humanos universais".
O Brasil ratificou dois tratados internacionais relativos aos direitos das mulheres: Convenção da ONU sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, ratificada em 1984, e Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, ratificada em 1995. Ambos criaram obrigações para o país perante a comunidade internacional e obrigações internas que geraram novos direitos para as mulheres.
Diante da resistência de todos os países em assegurar direitos às mulheres, a ONU realizou a Convenção sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (CEDAW), mas acabou recebendo reservas por parte dos países que a ratificaram.
A CEDAW, em seu artigo 6º, estabeleceu que os Estados-partes tomassem as medidas apropriadas, inclusive de caráter legislativo, para suprimir todas as formas de tráfico de mulheres e exploração de prostituição da mulher.
Essa Convenção foi fortalecida pela ratificação pelo Brasil, em 28 de junho de 2002, de seu Protocolo Facultativo, que permitiu a apresentação de denúncias de sua violação perante o Comitê da ONU que monitora a Convenção. A Conferência Internacional da Mulher de Pequim, de 1995, também determinou que os países tomassem medidas apropriadas para atacar as raízes do tráfico: a desigualdade, a discriminação, a falta de acesso às fontes de sobrevivência, entre outros[9].
De acordo com uma pesquisa realizada pela GAATW[10] (Aliança Global Contra o Tráfico de Mulheres) sobre Direitos Humanos e Tráfico de Pessoas, a confusão inicial de ativistas antitráfico, governamentais e não governamentais, ocasionou aos países afetados pelo problema grandes dificuldade em definir e diferenciar o tráfico da imigração ilegal.
Conclui-se que, na história do tráfico, houve grande resistência e dificuldade em se reconhecer os direitos das pessoas traficadas, que tiveram por todo esse tempo seus direitos humanos ignorados, por moralismo e conveniência dos governantes, a fim de restringir o movimento das mulheres.
3.2. Aspecto e definição atual
A pesquisa realizada pela (GAATW)9, sobre trafico e direitos Humanos afirma que recentemente a comunidade internacional reconheceu a necessidade de se expandir a compreensão do tráfico de pessoas, para incluir fatos que antes eram desprezados, pois suas características históricas encontravam-se ultrapassadas, mal definidas e não relacionadas às atuais realidades do movimento e tráfico de pessoas, sua natureza, extensão e causas.
As definições limitavam-se a descrever o tráfico apenas como atividade de migração facilitada à exploração da prostituição e como movimento de pessoas através de ameaça ou uso de força, coação ou violência, deixando de incluir, por exemplo, o casamento forçado e o trabalho forçado.
Nesse sentido, redes globais de OSCs (Organizações das Sociedade Civis) integradas à iniciativa de proteção as vítimas do tráfico, elaboraram Padrões de Direitos Humanos (PHD) para o tratamento de pessoas traficadas, que trazia a seguinte definição;
“Todos os atos ou tentativas presentes no recrutamento, transporte, dentro ou através das fronteiras de um país, compra, venda, transferência, recebimento ou abrigo de uma pessoa envolvendo o uso do engano, coerção (incluindo o uso ou ameaça de uso de força ou abuso de autoridade) ou dívida, com o propósito de colocar ou reter tal pessoa, seja por pagamento ou não, em servidão involuntária (domestica, sexual ou reprodutiva) em trabalho forçado ou cativo, ou em condições similares à escravidão, em uma comunidade diferente daquela em que tal pessoa viveu na ocasião do engano, da coerção ou da dívida inicial”[11]
A definição do (PHD) procura focar claramente os elementos restritivos ao crime, a fim de distinguir o tráfico de outros delitos semelhantes.
Conforme este conceito, o grupo pôde envolver um individuo ou um grupo de indivíduos, começando o ilícito com o aliciamento e terminando com a pessoa que explora a vítima, que a compra e a mantém em regime de escravidão ou a submete a condições similares à escravidão, ao trabalho forçado ou a outras formas de servidão.
O tráfico internacional passa a ser visto como aquele que ocorre não só quando se cruza a fronteira entre países, mas no ato de se mover uma pessoa de uma região para outra, até mesmo dentro dos limites de um único país, observando que o consentimento da vítima em seguir viagem não exclui a culpabilidade do traficante ou do explorador, nem limita o direito a vitima de proteção oficial.
Segundo esta definição, observa-se que o requisito central do tráfico é a presença do engano, da coerção, da dívida e do propósito de exploração.
O tipo de atividade em que a vitima se engajou, seja licita, ilícita, moral ou imoral não se mostra relevante para determinar se seus direitos foram ou não violados. O que está em questão é se há violação nos exercícios de seus direitos, constrangimento de vontade e violação corporal.
O Escritório do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, O relator Especial da ONU sobre violência contra Mulheres e a Organização Internacional de Migração (IOM), através de todas as definições já anotadas de tráfico, reconheceu o problema como sendo uma ofensa aos Direitos Humanos, pois envolve o trabalho forçado, servidão e escravidão, não se limitando apenas à questão da prostituição.
Mas foi através do Protocolo para Prevenir, Suprimir, e Punir o Tráfico de Pessoas, especialmente Mulheres e Crianças, realizado na cidade de Palermo, na Itália - que suplementou a convenção da ONU contra o Crime Organizado Transnacional adotada em outubro de 2000 e ratificada pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva em março de 2004 - que foi trazida a primeira definição internacional aceita de Tráfico de Seres Humanos:
a) “Trafico de pessoas” deve significar o recrutamento, transporte, transferência, abrigo ou recebimento de pessoas por meio de ameaça ou uso da força ou outras formas de coerção, de rapto, de fraude, de engano, do abuso de poder ou de uma posição de vulnerabilidade ou de dar ou receber pagamentos ou benefícios para obter o consentimento para uma pessoa ter controle sobre a outra, para o propósito de exploração, inclui, no mínimo a exploração da prostituição, ou outras formas de exploração sexual, trabalho ou serviços forçados, escravidão ou praticas análogas à escravidão, servidão ou a remoção de órgãos.
b) O Consentimento de uma vítima de tráfico de pessoas para desejada exploração definida no subparágrafo a) deste artigo deve ser irrelevante onde qualquer um dos meios definidos no subparágrafo a) tenham sido usados.
c) O recrutamento, transporte, transferência, abrigo ou recebimento de uma criança para fins de exploração devem ser considerados “Trafico de Pessoas” mesmo que não envolvam nenhuns dos meios definidos no subparágrafo a) deste artigo.
d) “ Criança” deve significar qualquer pessoa com menos de 18 anos de idade.
Essa definição incorporou em seu conteúdo sugestões feitas pelo Alto Comissariado da ONU sobre Direitos Humanos (OHCHR), por OSCs de Direitos Humanos e por diversos especialistas ouvidos em diferentes momentos do processo de consulta da adoção da Convenção de Palermo.
O protocolo contém a primeira definição aceita internacionalmente sobre o tráfico, reconhecendo a prostituição voluntária e forçada, não se abstendo na forma em que os Estados Partes se referem à prostituição em suas leis domésticas, focalizando a sua prática forçada e outros crimes que envolvam a força ou a coerção.
Um dos seus principais pontos foi o que tratou dos abusos cometidos durante o curso do tráfico, estando esses fatos previstos nos direitos nacionais ou no direito internacional.
Para Damásio2 a definição foi mais além, procurando em primeiro lugar garantir que as vítimas do tráfico não sejam tratadas como criminosas, mas sim como pessoas que sofrem sérios abusos. Devendo, nesse sentido, ser criado pelos Estados Partes serviços de assistência e mecanismos de denúncia.
Em segundo, coloca em destaque o tráfico de crianças, e o considera um capitulo à parte dentro do enfoque dado pela convenção dos direitos da criança e seus protocolos opcionais.
E em terceiro, enfoca o trabalho forçado e outras práticas similares, não se restringindo apenas à prostituição ou outra prática sexual, apesar de o tráfico englobar a prostituição ou outro tipo de trabalho sexual, trabalho forçado, casamento forçado, adoção ilegal ou outra relação privada[12].
3.3 Divergência de tráfico e migração ilegal e seus aspectos diferenciadores
O tráfico de pessoas pode envolver questões ligadas à migração ilegal, contrabando de pessoas (migração ilegal paga e agenciada por terceiros), trabalho escravo e/ou exploração sexual. Contudo, não significa que toda a sua prática esteja diretamente ligada aos atos acima relacionados.
É preciso compreender que o tráfico constitui questão diversa dessas modalidades, mesmo que essas práticas sejam formas intermediárias para sua configuração.
Francisco Chagas Filho[13] em um artigo sobre Trabalhador imigrante irregular relata que o fenômeno migratório sempre existiu, porém tem se feito cada vez mais presente no mundo globalizado.
O mesmo autor afirma que milhões de pessoas emigram dos países pobres para os ricos quase sempre à procura de trabalho e de melhores condições de vida, não raras vezes fugindo de perseguições políticas, religiosas, de guerras, etc.
Quase sempre estes migrantes se encontram em situação irregular no país de destino, o que os torna um alvo natural de exploração, devido à dificuldade de ter os seus direitos reconhecidos, pois encontram-se destituídos de estatuto jurídico e social, ficando à mercê de seu empregador, podendo, na maioria da vezes, ser obrigado a aceitar todo tipo de labor, sem condições de trabalho e de vida. No pior dos casos, a situação dos trabalhadores migrantes assemelha-se à escravatura ou ao trabalho forçado.
Já o contrabando[14] vem a ser um comércio proibido, importação ou exportação clandestina de mercadorias. Desta prática delituosa decorrem inúmeras outras. Os altos lucros que estas atividades ilícitas proporcionam, aliados ao baixo risco a que estão sujeitas, favorecem e intensificam a formação de verdadeiras quadrilhas, inclusive com participação de empresas estrangeiras. São organizações de caráter empresarial, estruturadas para promover tais práticas nos mais variados ramos de atividade, propiciando e patrocinando, dentre outros, o crime organizado configurado como o tráfico de armas, de drogas e de pessoas.
Evidentemente as características de práticas delituosas dessa natureza são extremamente próximas, até porque, em sua maioria, são interdependentes, tendo em vista que um fator pode vir a propiciar outro de natureza e propósito diverso. As distinções são muito sutis.
É preciso reconhecer que as leis de combate a imigração ilegal ou ao contrabando de imigrantes podem contribuir para o tráfico, na medida em que impedem o acesso e a proteção legal as vitimas do tráfico.
Consoante Damásio, a Convenção da ONU em os protocolos que a suplementam procurou resolver esse problema, tratando do contrabando de pessoas separadamente definindo como sendo:
“... [15]a consecução, para obter direta ou indiretamente, um beneficio financeiro ou outro material, da entrada ilegal de uma pessoa em um Estado-membro do qual a pessoa não é nacional ou um residente permanente”.
A (GATAAW),[16] em sua pesquisa anteriormente mencionada, diante da definição do PHD (Padrões de Direitos Humanos), sobre o Tráfico de Pessoas, focou os elementos restritos ao crime, afim de distinguir o tráfico de outros delitos, tais como a migração sem documento, elementos esses, que foram incluídos no protocolo de Palermo, sobre o tráfico. Desta forma, ao considerar cada elemento característico do crime, pode-se saber em quais casos se trata de tráfico especificamente.
a) Recrutamento: Mais especificadamente aliciamento, ou seja, atrair a si com promessas enganosas; subornar; induzir a atos de rebeldia. A maioria dos casos de tráfico envolvem o processo de recrutamento, que pode ser individual ou através de agências que organizam o processo da viagem de um país para o outro. Embora existam agências legitimas algumas recrutam pessoas com mentiras para o propósito do tráfico.
b) Transporte dentro e entre fronteiras: O tráfico ocorre freqüentemente entre países, mas pode ocorrer sem o cruzamento de fronteiras internacionais. È importante salientar que as vítimas são movidas para um lugar estranho, longe de casa e sob o controle de traficantes, independente da distancia e do local de destino.
c) Formas Legais ou Ilegais de Migração: O tráfico pode ocorrer pela movimentação legal ou ilegal. O fato do visto ser legitimo ou ilegítimo não influência na caracterização ou descaracterização do ilícito. É importante discriminar que o tráfico não envolve sempre migração ilegal.
d) Obtenção, venda, transferência, recebimento ou hospedagem de uma pessoa; Traficantes usam dessas ações para moverem a pessoa traficada do lugar de origem para o lugar de destino. A vítima de tráfico é transferida sem sua vontade, é enganada ou forçada realizar uma atividade diversa daquela que tinha conhecimento.
e) Engano: Significa que a pessoa traficada foi iludida devido a sua situação vulnerável. As pessoas podem receber ofertas de educação, casamento, trabalho, mas acabam forçadas a trabalhar em condições subumanas. Uma pessoa pode concordar em trabalhar sob uma condição e ser forçada a trabalhar em outra. Os traficantes iludem as pessoas sobre as circunstancias a que serão submetidas.
f) Coerção: Aliciadores podem usar da força, chegando a seqüestrar uma vitima ou utilizar outro tipo de violência ou chantagem para manter uma pessoa traficada sobre seu controle. As pessoas traficada são dependentes dos traficantes para alimento, a roupa e a moradia e deve submeter-se as demandas de seus empregadores. Os traficantes geralmente restringem a liberdade de movimento de uma vitima ou proíbem as vitimas de deixar a moradia ou o trabalho sem uma escolta. A coerção pode ser psicológica, como exemplo, tem-se o abuso de autoridade que cria situações de dependência quando uma pessoa tem poder sobre a outra. Exemplo; relação de parentesco; pai e filha.
g) Divida servil; É definida pela legislação internacional como a condição originada devido a promessa de pagamento de divida baseada nos serviços pessoais do devedor ou de qualquer outra pessoa sob seu controle como garantia de pagamento, mantendo o devedor prisioneiro a divida, não sendo devidamente avaliados o valor dos serviços prestados, impossibilitando a sua liquidação ou os serviços prestados pelo devedor são ilimitados e indefinidos.
h) Servidão: O trabalho forçado ou compulsório é definido na lei internacional como todo o trabalho ou serviço, que é extraído de qualquer pessoa sob ameaça de qualquer penalidade e para qual a pessoa não se ofereceu voluntariamente18. O elemento central do tráfico de pessoas está relacionado às ações coercivas e abusivas que os traficantes utilizam sobre as vitimas. O trabalho, a servidão e a escravidão forçada cobrem todas as situações em que as pessoas são traficadas. Dessa forma conclui-se que a condição/relação coerciva é que constitui o tráfico. O Protocolo sobre o tráfico esclarece que ocorre tráfico quando uma pessoa está sendo movida através do uso de engano, coerção e etc..., para o trabalho, a escravidão ou servidão forçada. O Protocolo expõe que a finalidade do tráfico é a “exploração”, envolvendo a privação da liberdade e de direitos humanos básicos. Os adultos, como aqueles que trabalham na industria do sexo voluntariamente, e outros trabalhadores, que embora explorados economicamente encontram-se livres para “ir e vir” e que não estão privados de seus direitos básicos, não são vitimas de tráfico e portanto excluídos de sua definição.
i) Comunidade diversa daquela onde a pessoas vivia anteriormente a prática do tráfico; em sua maioria as vitimas são movidas para o exterior. São desconectadas de suas famílias e até de sua língua tornando-se extremamente dependente dos traficantes em alimento, abrigo, informação e proteção das autoridades.
A mesma pesquisa realizada pela (GAATW)9 afirma que o estado de servidão é a chave para a definição do tráfico. Portanto, os meios pelos quais as pessoas são submetidas à servidão - o recrutamento, a fraude e a coação, que podem dar origem à movimentação do tráfico são fatores importantes, porém secundários em relação à natureza do serviço forçado.
O Tráfico implica o ato de submeter alguém à servidão e tudo o que é feito conscientemente e está relacionado com o tráfico e para ele contribui. Na linguagem popular e por causa da história centenária do termo no direito internacional, isso tem sido interpretado amplamente como movimentação.
Líbano: Sílvia era uma jovem mãe solteira senegalesa em busca de melhor vida para ela e para o seu filho de três anos, quando respondeu um anúncio referente a trabalho doméstico no Líbano. Na agência de emprego local, apoderaram-se de seu passaporte e a empregaram no serviço de uma mulher libanesa que subseqüentemente a confinou e restringiu seu acesso à comida e às comunicações. Tratada como prisioneira e espancada diariamente, Sílvia estava determinada a escapar. Pulou de uma janela para a rua, caindo com tanta força que ficou permanentemente paralisada. Ela está de volta a Sri Lanka e hoje viaja por todo o país contando sua história para que outras pessoas não sofram destino semelhante.
Uma pessoa pode viajar por vontade própria para outro local em seu próprio país ou no exterior e posteriormente cair no estado de servidão involuntária. O que constitui tráfico não é a movimentação dessa pessoa para o novo local, mas a força, a fraude e a coação a que essa pessoa é submetida para realizar um serviço para o patrão ou permanecer a seu serviço. Tais elementos definem o tráfico no uso moderno do termo. A pessoa que cai na armadilha do serviço forçado depois de haver migrado, de início voluntariamente, ou de haver aceito um emprego igualmente de sua própria vontade, ainda assim, é considerada vítima do tráfico.
Uma criança que é vendida por seus pais ao dono de uma olaria nos arredores de sua aldeia indígena rural é vítima do tráfico, da mesma forma que o brasileiro que emigra legal ou ilegalmente para os Estados Unidos somente para ser ameaçado e espancado pelo chefe de sua equipe de lavoura a fim de impedir que ele abandone o trabalho[17].
Assim, conclui-se que o tráfico se configura através do engano e coação (no recrutamento, transporte, transferência, abrigo ou recebimento de pessoas) convertendo-as em vítima, apropriando-se de sua liberdade por dívida ou outro meio com propósito de exploração forçada. O fato de um trabalhador receber baixos salários, sofrer exploração em sua atividade, estar exposto a duras circunstâncias, não configura tráfico se estiver livre para ir e vir e mudar de trabalho, por exemplo.
O tráfico envolve a manipulação criminal das pessoas que querem ou necessitam migrar por uma vida melhor, envolvendo, muitas vezes, a intercessão do crime organizado (pequeno e grande) e da migração.
As leis restritivas e complicadas que tratam de migração pioram a situação do migrante, que, para viajar, procura ajuda, passando a confiar e depender de terceiros para atingir seu objetivo. Vale ressaltar que o traficante costuma usar de todos os meios necessários para assegurar a submissão da vitima.
IV. TRÁFICO INTERNACIONAL
4.1. Extensão e estimativa
O crime organizado transnacional engloba o tráfico de entorpecentes, de armas e o recentemente reconhecido “tráfico de pessoas”, que vem chamando a atenção da opinião pública mundial e se encontra presente em todos os cantos do mundo, movimentando quantias exorbitantes de dinheiro.
Segundo Damásio, todos esses crimes possuem características em comum e são denominados crimes high tech, por envolver outros crimes como: lavagem de dinheiro, falsificação de produtos, fraude de cartões eletrônicos e crimes relacionados com a informática.
Devido a sua extensão, o tráfico internacional de pessoas atrai problemas, tanto para as organizações internacionais como para os estados democráticos, apresentando um grande desafio para as agências nacionais e internacionais de aplicação de lei e para as políticas de direitos humanos, na medida em que as vítimas desse crime sofrem inúmeras violações, tanto por parte dos traficantes quanto por parte das organizações governamentais, que obrigatoriamente deveriam protegê-las.
Damásio afirma ainda que o tráfico de seres humanos tem crescido muito nos últimos anos devido aos altos lucros e baixo risco inerentes ao negócio.
“...Pessoas, diferentemente de mercadorias, podem ser usadas repetidamente, trazendo em conseqüência da durabilidade maior rendimento aos traficantes”.
Ademais, esse tipo de crime não exige grandes investimentos, encontrando guarita na cegueira com que muitos governos lidam com a migração internacional e com a exploração sexual comercial.
Segundo a (OIM) Organização Internacional da Migração, quatro milhões de pessoas são traficadas por ano contra a própria vontade para trabalhar em alguma forma de escravidão. O Relatório do Departamento de Estado dos EUA de 2.000 afirmou que entre 45.000 e 50.000 mulheres e crianças traficadas ingressam no país por ano.
Relatório divulgado a propósito do Dia Internacional da Mulher de 2001 pelo órgão executivo da União Européia (UE) destacou que 120 mil mulheres e crianças são introduzidas ilegalmente, por ano, na UE. A maior parte é do Leste Europeu. Há estimativas de que os bandos transportam até 500 mil mulheres para a UE a cada ano. A meta do tráfico de pessoas é não somente a prostituição, mas também a exploração de mão-de-obra sob condições semelhantes às da escravidão, diz o relatório.
Mônica de Melo e Letícia Massula[18] relatam em sua pesquisa que, de acordo com a ONU e a Federação Internacional Helsinque de Direitos Humanos, 75.000 brasileiras estariam sendo obrigadas a se prostituir nos países da União Européia.
“De acordo com as Nações Unidas, o Brasil é hoje o maior "exportador" de mulheres escravas da América do Sul.”
Segundo a mesma pesquisa, o crime está inserido no contexto da globalização e, com a crescente pluralização de trocas comerciais em todo o mundo, vulnerabilizou-se o sistema de fronteiras. Assim, juntamente com o movimento de mercadorias, há uma crescente migração de pessoas que procuram melhores oportunidades de trabalho e de vida.
Calcula-se que 1,5 milhão de mulheres asiáticas trabalhem em outros países do globo, em geral sob condições sofríveis.
A imigração legal não dá conta da enorme oferta de pessoas proveniente dos países do chamado terceiro mundo, o que torna a imigração ilegal, através da prática do contrabando, a única alternativa para a maioria.
Assim, uma das formas de combate à imigração ilegal seria uma mudança na legislação dos países de destino, pois esses países constantemente oferecem ofertas de trabalho a imigrantes com intuito de obter mão de obra barata.
Portugal, em 2001, precisou de 20.000 trabalhadores estrangeiros. A regularização da situação dessas pessoas seria um passo importante.
Ao lado da imigração, há o problema dos refugiados que fogem da fome, das guerras e das perseguições. O alto Comissário da ONU para os refugiados estima que 21,5 milhões de pessoas em todo o mundo estão em situação de refugiados, podendo ser vítimas potenciais do tráfico de pessoas e de múltiplas formas de exploração.
As políticas de imigração de países de destino, em geral, pecam pelo preconceito, pois, não obstante a boa intenção, o imigrante é visto e tratado como criminoso, mantido em áreas sanitárias de exclusão e repatriado sem assistência. Deve-se ressaltar que, enquanto toda forma de trafico é ou deve ser considerado ilegal, nem toda forma de imigração ilegal é ou deve ser considerado tráfico.
É preciso que as políticas de migração não igualem a imigração ilegal para fins de prostituição ao tráfico de mulheres. Imigração ilegal não é tráfico, embora haja casos de tráfico de pessoas realizados por meio das mesmas estratégias utilizadas pela imigração ilegal.
Damásio esclarece que o problema das vítimas de tráfico é a multiplicidade de fatores que as tornam extremamente vulneráveis à sua prática, pois além de serem submetidos a trabalhos desqualificados e a todo tipo de exploração, quando caem na fiscalização de fronteiras são tratados de maneira discriminatória, como criminosos, ou por estarem ali de forma ilegal, ou por ter praticado atos considerados “imorais” naquele país.
4.2 Causa do Tráfico de Pessoas
Os fatores que contribuem para o tráfico diferem de país para país. Além de serem variados e complexos, a análise intensiva desses fatores e sua compreensão facilitam a execução de medidas preventivas para a eliminação do problema. Este capítulo procurará demonstrar fatores que contribuem para o tráfico por todo o mundo, como considerações sociais e econômicas globais e regionais e uma análise em nível local, nos lugares onde sua prática é originada.
A pesquisa realizada pela (GATAAW)9 relata que o tráfico não ocorre somente de países em desenvolvimento para os países desenvolvidos, mas também entre e dentro de países em desenvolvimento. Apesar disso, a maior parte dos casos de tráfico é originada em países onde há problemas econômicos, sociais, políticos e ambientais com destino a países ou regiões onde a qualidade de vida é mais elevada.
As rotas de tráfico, assunto que será estudado mais adiante, são projetadas e manipuladas por traficantes. Assim, é uma generalização distorcida dizer que pessoas são traficadas sempre de países subdesenvolvidos a países mais desenvolvidos, pois esse não é sempre o caso.
A Relatora Especial sobre violência contra a mulher[19] indicou que as causas e raízes da migração e do tráfico estão altamente interligadas. Preliminarmente, ressalta-se a falta de respeito aos direitos que sofrem as mulheres. Apesar de tais direitos estarem expressos em constituições, leis e políticas, continuam a ser negados às mulheres o direito a elas inerente, pois os governos não protegem e não promovem os direitos das mulheres. Dessa forma, os governos criam situações em que o tráfico floresce.
Fatores freqüentemente mencionados e que contribuem para o tráfico:
- Pobreza e desemprego
- Globalização da Economia
- Feminização[20] da pobreza
- Aumento do turismo
- Situação de conflito aramado
- Discriminação baseada no gênero21
- Leis e política de migração e trabalho migrante
- Leis e políticas sobre prostituição
- Corrupção das autoridades
- Envolvimento com o crime organizado
- Lucros elevados
- Praticas culturais e religiosas
Ao particularizar cada um desses fatores, percebe-se que há uma ramificação ilimitada de questões que estão a eles interligadas. Por isso, serão analisados apenas os principais fatores que contribuem diretamente para o tráfico de pessoas, principalmente de mulheres e crianças.
4.2.1 Questões de Gênero
Como já foi citada, a discriminação de gênero contra mulher, incluindo como conseqüência a violência, a pobreza e a desigualdade de oportunidades e de renda, é uma das principais, se não a principal causa do tráfico de pessoas.
Por isso será feito um estudo mais detalhado dos fatores que ocasionaram tantas diferenças e desigualdades entre homens e mulheres.
Dentro da discriminação de gênero encontra-se uma série de aspectos sócio-culturais que devem ser considerados. Em vários países, principalmente nos subdesenvolvidos e nos que estão em processo de desenvolvimento, as mulheres são desvalorizadas, devido ao status inferior que lhe fora imposto, sofrendo até os dias de hoje constantes discriminações em diversos campos, como na política, religião, sexualidade, costumes e práticas sociais.
O sexismo encontra-se presente em todas as instituições da sociedade e particularmente no mercado de trabalho, visto que a quantidade de oportunidades de trabalho disponíveis para as mulheres é bem inferior àquela oferecida aos homens.
Um Artigo de autoria de Lucia Cortes da Costa[21] sobre gênero evidencia: uma questão feminina divulgada na Internet define bem o conceito de gênero e sua evolução histórica, explicando que o termo “gênero” foi um conceito construído socialmente, buscando compreender as relações estabelecidas entre os homens e as mulheres, os papéis que cada um assume na sociedade e as relações de poder estabelecidas entre eles. Afirma ainda a autora que a sociedade humana é histórica e muda conforme o padrão de desenvolvimento da produção, dos valores e normas sociais.
Assim, desde que o homem começou a produzir seus alimentos, na sociedade agrícolas do período neolítico (entre 8.000 a 4.000 anos atrás), papéis para os homens e para as mulheres começaram a ser definidos.
Surgiram então as sociedade humanas, divididas em clãs, em tribos e aldeias. Na fase pré-capitalista o modelo de família era multigeracional e todos trabalhavam numa mesma unidade econômica de produção. O mundo do trabalho e o mundo doméstico eram coincidentes.
A função de reprodutora da espécie, que cabe à mulher, favoreceu a sua subordinação ao homem. A mulher foi sendo considerada mais frágil e incapaz para assumir a direção e chefia do grupo familiar. O homem, associado à idéia de autoridade devido a sua força física e poder de mando, assumiu o poder dentro da sociedade. Assim, surgiram as sociedades patriarcais, fundadas no poder do homem, do chefe de família.
A idéia de posse dos bens e a garantia da herança dela para as gerações futuras, levou o homem a interessar-se pela paternidade. Assim, a sexualidade da mulher foi sendo cada vez mais submetida aos interesses do homem, tanto no repasse dos bens materiais, através da herança, como na reprodução da sua linhagem. A mulher passou a ser do homem, como forma dele perpetuar-se através da descendência. A função da mulher foi sendo restrita ao mundo doméstico, submissa ao homem.
As sociedades patriarcais permaneceram ao longo dos tempos, mesmo na sociedade industrial. Porém, a revolução industrial incorporou o trabalho da mulher no mundo da fábrica, separou o trabalho doméstico do trabalho remunerado fora do lar e a mulher foi incorporada subalternamente ao trabalho fabril.
Desta forma, nasceu a luta das mulheres por melhores condições de trabalho. Já no século XIX, havia movimento de mulheres reivindicando direitos trabalhistas, igualdade de jornada de trabalho para homens e mulheres e o direito de voto.
Na sociedade capitalista persistiu o argumento da diferença biológica como base para a desigualdade entre homens e mulheres. As mulheres eram vistas como menos capazes que os homens. O direito de propriedade passou a ser o ponto central e assim a origem da prole passou a ser controlada de forma mais rigorosa, levando a desenvolver uma série de restrições à sexualidade da mulher. Cada vez mais o corpo da mulher pertencia ao homem, seu marido e senhor. O adultério era crime gravíssimo, pois colocava em perigo a legitimidade da prole como herdeira da propriedade do homem.
No mesmo artigo anteriormente citado, Lucia Cortes relata que desde o século XX as mulheres começaram uma luta organizada em defesa de seus direitos. A luta feminina constitui uma busca de construção de novos valores sociais, nova moral e nova cultura, almejando a democratização das relações de gênero, com o intuito de não mais ser vista e tratada como objeto de satisfação do homem, mas como ser humano igualitário, dotado de valor próprio, que deve ser reconhecido e respeitado.
A luta pela democratização das relações de gênero persiste até os dias de hoje, apesar de já se ter crescente desenvolvimento nesse aspecto, no âmbito nacional e mundialmente. No Brasil, a Constituição Federal de 1988 apresentou um imenso avanço, declarando a igualdade para todo o ser humano sem diferença de gênero, raça, cor, etnia, etc. Entretanto, ainda é pouco discutida a questão de gênero no mundo jurídico, o que faz das leis vigentes pouco eficientes quando se diz respeito a casos concretos de discriminação.
4.2.2. Violência contra a Mulher
A violência sexista é aquela praticada em virtude de discriminação sexual.
As mulheres e as crianças de paises subdesenvolvidos estão mais vulneráveis à exploração, porque não conseguem fazer valer os seus direitos e permanecem desprotegidas pelo sistema legal. Cerca de 99% das pessoas traficadas são do sexo feminino e tal índice é decorrente de aspectos culturais presentes na sociedade, sobretudo em razão da discriminação de gênero, como visto no sub-capítulo anterior.
Muitas mulheres preferem enfrentar a incerta jornada do tráfico ou da imigração para fugir de maus tratos e exploração sexual a que estão submetidas em suas próprias comunidades. Há muitos casos em que crianças são vendidas e colocadas à disposição do tráfico porque seus pais necessitam de dinheiro e porque acreditam, ignorantemente, que elas estarão libertas da pobreza[22].
A conhecida Convenção de Belém do Pará (Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, aprovada em Belém, através da OEA – Organização dos Estados Americanos) definiu a violência contra a mulher como: qualquer ação ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado.
Muito se tem falado a respeito de liberdade sexual, mas pouco se tem feito para que esta seja uma realidade. Como exemplo cita-se o Brasil, onde o poder de dispor do próprio corpo é principio supremo no país, por tal fato não se pode punir uma prostituta segundo a legislação brasileira.
Porém, ainda subsiste uma punição excessiva de cunho moral, que acaba por ocasionar grande preconceito por parte da sociedade, prejudicando o tratamento imparcial que deve ser fornecido por instituições públicas, incluindo as judiciárias. Um bom exemplo disso é atuação da polícia, que muitas vezes reprime excessivamente ou de forma errônea mulheres prostituídas e travestis, além de todos aqueles que são agentes ativos da prostituição. De nada adianta uma preocupação em nível nacional e internacional ou até mesmo a elaboração de tratados internacionais ou uma mudança no sistema legislativo nacional se não há mudança no comportamento e nas crenças da população. Todavia, o Direito existe para formalizar normas que nunca vão ser consensuais em todo o território nacional, quanto mais transnacional, mas que devem ser respeitadas, mesmo contrariando a moral individual de muitas pessoas24.
Enquanto mulheres não gozarem de oportunidades igualitárias relativas à moradia, educação, alimentação, emprego, acesso ao poder e não tiverem auxílio e reconhecimento no trabalho doméstico não remunerado vão continuar na lista das vítimas preferenciais da violência e do tráfico.
4.2.3. O fator da Globalização
A globalização consiste num processo de integração econômica mundial sob a égide do neoliberalismo, caracterizado pelo predomínio dos interesses financeiros, pela desregulamentação dos mercados, pelas privatizações das empresas estatais e pelo abandono do estado de bem-estar social.
Essa é uma das razões de os críticos acusarem-na, a globalização, de ser responsável pela intensificação da exclusão social (com o aumento do número de pobres e de desempregados) e de provocar crises econômicas sucessivas, arruinando milhares de poupadores e de pequenos empreendimentos.
Muitas empresas sofreram diminuição em seus lucros para empresas de maior porte de mercado internacional, ocasionando um grande crescimento no mercado informal, a exemplo dos vendedores ambulantes e do trabalho não regulado nas fábricas, particularmente em áreas que envolvem exportação.
Isso ocasionou uma grande vulnerabilidade dos trabalhadores, que encontram-se cada vez mais sujeitos a condições de trabalho abusivas, pois essas novas áreas de trabalho marginalizadas e não reguladas são invisíveis aos olhos da justiça, não sendo por ela amparada. Além do mais, a globalização afetou a estrutura familiar tradicional em muitas zonas rurais, transformando cada membro em uma unidade separada e independente a ser inserida no mercado moderno de trabalho.
Observa-se que os efeitos deste processo são múltiplos e complexos, ocasionando mudanças de amplitude mundial em diversos aspectos, inclusive grande impacto no crescimento do tráfico de pessoas nos últimos anos[23].
4.2.4. Feminização da pobreza e migração
A pesquisa realizada pela (GAATW), anteriormente mencionada, aborda que as recentes reformas econômicas permaneceram duras com as mulheres.
Devido à sua luta em busca de um lugar digno na sociedade, muitas mulheres, além de carregar o fardo financeiro de criar os filhos, têm de exercer a função de chefe de família.
Ao mesmo tempo, o salário para os homens também diminuiu. Logo, onde previamente era suficiente um salário para sustentar uma família, agora dois salários se fazem necessários.
Como conseqüência desse problema, algumas mulheres buscam outras formas para sustentar sua família: seus filhos, irmãos, pais idosos, etc. Assim, se vêem motivadas a procurar novas oportunidades em outros países ou regiões e também em seu próprio estado. Algumas migram para o casamento, outras buscando escapar da violência doméstica ou simplesmente para trabalhar.
A maior parte dessas mulheres são imigrantes de países em desenvolvimento, geralmente desprovidas de capacidade profissional, com nível de cultura muito inferior à população dos locais de destino, geralmente acabam tendo que se contentar com sub-trabalhos, como operárias, ajudantes domésticas e trabalhadoras do sexo.
Uma outra opção é casar, até porque o casamento como maneira de se obter o status legal para viver e trabalhar num país estrangeiro é muito mais freqüente do que se imagina.
Devido à dificuldade de migrar para um país estrangeiro sob vias legais, muitas pessoas recorrem a agentes intermediários para auxiliá-las na entrada em um país e na procura de um trabalho.
Tal procedimento é caro e geralmente perigoso. Os intermediários podem ser pessoas inescrupulosas, envolvidas com crime organizado, que vivem à espreita de prezas fáceis para gerar o mercado que tem sido um dos mais lucrativos do mundo quando se trata de crime organizado.
4.2.5. Turismo; Crescimento da industria do sexo de entretenimento.
Jaqueline Leite,[24] coordenadora Geral do CHAME – Centro Humanitário de Apoio à Mulher - ONG que trabalha na prevenção ao tráfico de mulheres e turismo sexual em Salvador – Ba, em seu artigo sobre “o outro lado do turismo” , divulgado na Internet, explica que o fenômeno do turismo sexual não é uma característica do Brasil ou de países do terceiro mundo, mas do sistema de dominação patriarcal que ainda rege grande parte do mundo.
Esclarece que, indubitavelmente, a maior parte de exploração reside nessa relação entre países do “primeiro” e “terceiro” mundo que, além de não respeitar os direitos humanos, alimenta a crença de que nesses países subdesenvolvidos tudo é permitido e que não há limites nem leis que se encarreguem de puní-los.
A autora afirma que turismo sexual é uma indústria extremamente rentável e, ao mesmo tempo, sem escrúpulos quanto ao respeito à mulher e à dignidade humana. É destacada a posição do governo brasileiro, que a partir da década de 70 passou a investir muito na estrutura política do país e veiculou uma série de propagandas e vinhetas feitas com o objetivo de insinuar a sensualidade e beleza da mulher brasileira. A estratégia foi considerada um forte componente para o turismo, mas visava indireta e disfarçadamente o lucrativo turismo sexual.
“As praias do Brasil ensolaradas,
Mulatas soltam gingas de amor,
A mão de Deus abençoou,
Em terras brasileiras vou plantar amor, ...”
(Ex. de vinheta veiculada nos meios de comunicação nos anos 70)
O grande apelo sexista que se criou para propagar o turismo no Brasil teve seu ponto de partida no Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa. Contudo, o crescente aumento de casos de DSTs, especificamente da AIDS, e da violência, o que passou a não dar mais segurança aos turistas, fez com que a partir dos anos 90 o nordeste brasileiro começasse a ser bastante divulgado e, por conseqüência, procurado com vistas ao turismo sexual.
O turismo sexual gera péssimas conseqüências à sociedade: deprecia a imagem da mulher, reproduz papéis sexistas e ideologias racistas, impacta de forma nefasta as comunidades onde se constroem complexos turísticos, viola os direitos humanos, facilita a exploração sexual de crianças e adolescentes, prolifera DSTs e AIDS, fomenta o tráfico de mulheres, crianças e adolescentes, além de retrair a demanda turística, cultural, artística, ecológica e familiar.
4.2.6. As leis e políticas sobre a migração
Como visto anteriormente, cada vez mais há uma necessidade comprovada de trabalho em diversos setores - como industria, entretenimento e trabalho doméstico - em países de primeiro mundo para trabalhadores de terceiro, pois tais trabalhos são mal pagos e indesejáveis para os nacionais de países desenvolvidos. Apesar dessa necessidade de trabalho migrante, as leis de imigração de países de destino não satisfazem a demanda. As mulheres de países em desenvolvimento que viajam sozinhas geralmente são alvejadas por oficiais da imigração, tendo seus vistos e entradas, muitas vezes, recusados em outros países. Esse fato pode acarretar a procura de agentes para facilitar a migração das pessoas rejeitadas, utilizando meios ilegais para sua entrada no país almejado.
4.2.7. Conflito armado
Apesar de ser rara a participação de mulheres em conflitos armados, esses acarretam conseqüências em vários setores da sociedade, resultando em empobrecimento, deslocamento, etc. Há que se considerar também a vulnerabilidade da mulher, especialmente em relação ao abuso sexual e ao serviço doméstico que são obrigadas pelas forças armadas a prestar. Dessa forma, mais e mais pessoas necessitam sair de sua terra natal em busca de melhores condições de vida.
É incontestável que essas pessoas, extremamente fragilizadas, ao se depararem com a falta de meios legais para imigração, tendem a apelar a agenciadores, muitas vezes traficantes, para atingir seu objetivo.
4.2.8. Autoridades corruptas
A pesquisa realizada pela (GAATW)9 diz que as autoridades corruptas contribuem significativamente para o processo do tráfico. De acordo com o relator especial da ONU sobre violência contra Mulher, a maioria das vítimas de tráfico relatam elevados níveis de cumplicidade e participação de governos na pratica do crime.
A mesma pesquisa afirma ser constante a aceitação de subornos pelos oficiais da migração em troca da permissão para cruzar as fronteiras e que, além disso, outras autoridades podem estar diretamente envolvidas[25].
4.2.9. Interferências Culturais e Religiosas
Diversas culturas e religiões permitem que o tráfico se propague, pois práticas como escravidão e submissão, entre outras, são institucionalizadas e aceitas por algumas sociedades como normais.
Exemplo: Trokosi é uma pratica cultural em Gana; é uma forma tradicional de escravidão. A palavra significa “o escravo de uma divindade”. Ocorre quando um membro de uma família comete um crime ou há alguma calamidade na família, como morte repentina. Essa, então, passa a ter que fornecer um trokosi ( a um membro prolongado da família) um santuário. Uma menina virgem que será ligada a um sacerdote e forçada a passar o resto de sua vida no santuário, fornecendo serviços domésticos e sexuais sem nenhum pagamento. Freqüentemente essas meninas são punidas com chicotes ou negação de alimentos por ofensas como recusa de sexo, fuga e etc[26].
Essa atividade foi considerada uma violação dos direitos humanos das mulheres em 1997 e, em 1999, foi declarada uma prática ilegal em Gana, mas ainda há casos de tradicionalistas que mantêm essa prática e milhares de meninas e mulheres são vítimas desse abuso ainda hoje nessas regiões.
4.3. Rotas do tráfico internacional de pessoas.
Segundo Damásio, as rotas do tráfico acompanham as da imigração, que trazem maior movimento do Sul para o Norte. Mas atualmente o tráfico também acontece em regiões ou sub-regiões dentro de países.
Observa o mesmo autor que há dificuldade em se definir com clareza as rotas do tráfico devido a constantes mudanças repentinas em sua trajetória, origem, destino e pela indisponibilidade de informações. Países que investem mais em políticas de prevenção e combate, geralmente os desenvolvidos, possuem uma conscientização populacional mais abrangente a respeito do problema e, conseqüentemente, as informações são relatadas com maior credibilidade.
Mesmo com todo o problema de informações, as tendências apontam que as pessoas saem dos países do chamado “terceiro mundo” ou das novas democracias e se encaminham para os países desenvolvidos.
Segundo dados da OIM,[27] acredita-se que as mulheres traficadas vêm quase de todo o mundo, como destaque para algumas regiões como Gana, Nigéria e Marrocos, na África, Brasil e Colômbia, na América Latina, Republica Dominicana, no Caribe, bem como Filipinas e Tailândia, no Sudeste da Ásia.
Após a recente independência de alguns Estados e a queda do muro de Berlim, vários países da Europa Central e Oriental passaram a fazer parte da lista de países de origem, países/fonte ou de passagem para o tráfico.
Apesar dos países subdesenvolvidos ainda serem os responsáveis pela maioria das pessoas traficadas no mundo, houve um crescente aumento na Europa Central e Oriental e nos países da antiga União Soviética.
Como já relatado anteriormente, vários especialistas reconhecem um vínculo entre tráfico e os deslocamentos interligados com transição econômica, o crescimento da pobreza e do desemprego das mulheres.
Indubitavelmente, o fluxo se dirige para países industrializados, envolvendo praticamente todos os membros da União Européia.
O Brasil não se configura com clareza como exportador direto nas rotas internacionais de tráfico por conta da carência de dados a respeito. Mas através das noticias veiculadas pela imprensa e de dados da Polícia Federal, conclui-se que o Brasil está, sem dúvida alguma, integrado nas redes internacionais de tráfico.
V CONVENÇÕES, PACTOS E CONFERÊNCIAS RELATIVAS AO TRÁFICO
O tráfico de pessoas é um problema que ultrapassa a esfera nacional de um Estado, pois se trata de fato que desperta interesse de toda a comunidade internacional, considerando que, geralmente, há um deslocamento da vítima de um país para outro, além dos países de trânsito, que servem de ponto intermediario até que se chegue ao local de destino.
Em todas as suas fases - aliciamento, deslocamento e, finalmente, carceramento - a vítima sofre diversas formas de maus tratos e exploração, chegando ao destino final definitivamente privada de sua liberdade individual e de todo e qualquer direito humano básico.
As organizações internacionais, as associações regionais e os governos nacionais estão trabalhando em programas e políticas, a fim de criar ou adaptar suas leis e regulamentações para enfrentar o tráfico de pessoas. Essas iniciativas envolvem ações de campo nacional e internacional, envolvendo a área criminal, quando se trata de interesse do Estado, e os Direitos Humanos, a fim de proteger os interesses dos povos afetados. No entanto, a maioria das iniciativas é de interesse da área criminal, sendo muitas vezes negligenciados os direitos humanos das pessoas traficadas.
É importante manifestar que OSCs e ONGs têm se manifestado nesse sentido, a fim de auxiliar ativistas que trabalham na temática do tráfico de pessoas sobre a necessidade de maior conhecimento e implementação dos princípios de direitos humanos, instrumentos internacionais e demais mecanismos para assegurar que as etapas de enfrentamento do tráfico e assistência às vitimas não aumente a violação dos direitos das pessoas traficadas.
Como exemplo tem-se a Aliança Global contra o Tráfico de Mulheres (GAATW), uma organização internacional que desde 1996 organiza treinamentos sobre direitos humanos para ativistas de anti-tráfico, tendo elaborado alguns manuais a respeito - um deles em 1997, na Ásia e Europa Oriental, entitulado de “Ações de Direitos Humanos No Contexto de Tráfico”.
5.1 DI, ONU, Organização Internacional Dos Direitos Humanos, Direitos Humanos Das Mulheres e Das Crianças e Obrigações Governamentais.
Como exposto no item anterior, o assunto hora tratado é tema de preocupação nos âmbitos nacional e internacional. Dessa forma, não basta apenas a elaboração de meios internos para sua solução, mas a união entre os Estados afetados a fim de que sejam elaborados meios eficientes, que abranjam o tráfico em toda sua extensão.
Por isso, necessário se faz um breve relato sobre o Direito Internacional, a ONU e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, com o intuito de fornecer maior compreensão ao leitor sobre os tratados e convenções já elaborados a respeito do tema.
Tem-se como Direito Internacional o ramo do direito que regula o relacionamento entre os Estados, ou seja, é um conjunto de normas que regula as relações externas dos Estados nacionais e das organizações internacionais, que são denominados como sujeitos de direito internacional.
O Estado é dotado de soberania, que segundo ao âmbito de aplicação, se manifesta de duas formas. Na vertente interna de aplicação da soberania, o Estado encontra-se acima dos demais sujeitos de direito, ou seja, é autoridade máxima em seu território. Na vertente externa, o Estado está em pé de igualdade com os demais Estados soberanos que constituem a sociedade internacional.
Esta divisão entre as vertentes interna e externa, quanto ao âmbito de aplicação da soberania do Estado, reflete-se também na natureza da norma jurídica conforme seja, de direito interno ou de direito internacional.
No direito interno, a norma emana do Estado ou é por este aprovada. O Estado impõe a ordem jurídica interna e garante a sanção em caso de sua violação (relação de subordinação).
O mesmo não acontece no Direito Internacional, onde os Estados são juridicamente iguais (princípio da igualdade jurídica dos Estados), o que faz com que não exista uma entidade central e superior ao conjunto de Estados, com a prerrogativa de impor o cumprimento da ordem jurídica internacional e de aplicar uma sanção por sua violação. Aqui, os sujeitos de direito (os Estados), diferentemente do caso do direito interno, produzem, eles mesmos, diretamente, a norma jurídica que lhes será aplicada (por exemplo, quando um Estado celebra um tratado), o que constitui uma relação de coordenação.
Há discussão sobre a existência de uma hierarquia das normas de direito internacional, se um tipo de norma seria superior a outra, o que resultaria na prevalência de uma norma sobre outra. Entretanto, grande parte dos estudiosos entendem que inexiste hierarquia.
Existem no Direito Internacional os conceitos de ato ilícito (violação de uma norma jurídica) e de sanção (penalidade imposta em conseqüência do ato ilícito), mas sua aplicação não é tão simples como no direito interno. Na ausência de uma entidade supra-estatal, a responsabilidade internacional e a conseqüente sanção contra um Estado dependem da ação coletiva de seus pares[28].
Clóvis Beviláqua[29] conceitua o direito internacional como sendo um conjunto de regras e princípios que regem as relações jurídicas entre Estados. O direito internacional define-se como direito aplicável à sociedade internacional. É a definição mais simples, contudo implica a existência de uma sociedade internacional distinta da sociedade nacional ou interna. Delimita, ao mesmo tempo, os campos de aplicação respectivos do direito internacional e do direito interno. Confirma o vínculo sociológico entre direito e sociedade: qualquer sociedade tem necessidade do direito e todo direito é um produto.
Organizações Internacionais: Ensina o Professor Gustavo de Campos Mônaco[30] que Organizações Internacionais são entidades formadas por estados que se reúnem com intuito de se perseguir certa finalidade em comum. As Organizações Internacionais são detentoras de personalidade jurídica de Direito Internacional, pois os estados/partes estão diretamente ligados a ela. Esclarece ainda que as ONGs, não são organizações internacionais, pois são formadas por cidadãos ou empresas e, por isso, são pessoas jurídicas de Direito Público Interno e não de Direito Internacional, o que não as impede de atuarem em diversos países.
Existem mais de 500 organizações internacionais, com finalidade diversas. Algumas são totalmente independentes das outras, mas há aquelas que possuem finalidades específicas e subordinadas. Como a UNICEF que é uma agencia da ONU.
Estatuto: O estatuto é um tratado Internacional que define quais Estados serão membro de uma determinada Organização Internacional, especificando a forma como os estados devem aceitar ou não determinado tratado e a comunicação de aceitação entre eles, além de especificar os meios e instrumentos que devem ser usados para que os Estados cheguem a um acordo.
Tratado é o acordo formal concluído entre os sujeitos de Direito Internacional Público; Estados, organismos internacionais e outras coletividades destinado a produzir efeitos jurídicos na órbita internacional.
Tratado é o nome que se consagra na literatura jurídica. Outros são conhecidos como sinônimos: Convenção, Acordo, Pacto, Protocolo, Regulamento, Declaração, Carta, Concordata, Convênio, Compromisso, Estatuto, Ata, Memorandum, etc.
A Organização das Nações Unidas (ONU) foi fundada oficialmente a 24 de Outubro de 1945 em São Francisco, Califórnia, nos EUA, por 51 países, logo após o fim da Segunda Guerra Mundial. Trata-se de uma organização mundial constituída atualmente por 191 Estados Membros soberanos e internacionalmente reconhecidos, exceto o Vaticano, que tem qualidade de observador. Sua sede localiza-se em Nova York e Genebra.
A ONU é o sistema internacional que monitora a implementação dos Direitos Humanos e suas violações em todo o mundo.
As Nações Unidas utilizam diferentes tipos de instrumentos para manifestar a vontade e a necessidade que os estados têm de se relacionar. Dentre eles destacam-se os tratados (incluindo convenções), declarações, resoluções e protocolos.
Os tratados são compulsórios: uma vez assinados e ratificados por um país, impõem o mais elevado grau de obrigações pelo seu governo.
Os Protocolos são adições aos tratados, que geralmente devem ser acordados em separado do próprio tratado. Também impõem o mesmo grau de obrigações dos tratados em si.
As declarações apenas dão uma indicação do compromisso político internacional sobre um assunto e, por isso, não são compulsórias. Um dos feitos mais destacáveis da ONU foi a proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos[31] (UDHR) foi adotada pela ONU em 10 de dezembro de 1948. O conceito de “direitos humanos” é de extrema importância, pois 191 países são membros das Nações Unidas, o que os leva a um comprometimento de respeito ao princípios de direitos humanos protegidos pela ONU e pela Declaração Universal de Direitos Humanos. A UDHR estabelece que os princípios de Direitos Humanos Fundamentais (Universalidade, Inalienabilidade e Interdependência) e a liberdade devem ser garantido a todas as pessoas.
Universalidade significa que os Direitos Humanos valem para todos, sem distinção de raça, cor, etnia, religião, classe social, língua, idade ou nacionalidade. Todos os povos têm as mesmas necessidades e direitos básicos a serem protegidos.
Inalienabilidade significa que todos os direitos pertencem às pessoas a partir do nascimento. Desta forma, os governos devem afirmar os princípios dos direitos humanos, que não podem ser negados a ninguém e muito menos dispostos pelos seus titulares.
Interdependência quer dizer que todos os direitos humanos se associam em conseqüência das suas relações e interdependências. Os direitos não podem ser vistos de formas distintas, já que um direito não é mais importante do que o outro. Exemplo: o direito de se expressar ou de escolher o número de filhos que se quer ter são interdependentes com outros direitos, como direito de obter informação e direitos iguais dentro da família. Porém, nenhum direito pode sacrificar o outro.
Os Direitos Humanos das Mulheres[32]
Tendo em vista que o tema em questão apresenta como principal causa o desrespeito aos direitos humanos básicos inerentes a todas as mulheres, é imprescindível um breve relato a respeito;
Com a Declaração Universal dos Direitos Humanos os governos reconheceram os direitos humanos sem qualquer tipo de distinção. Porém, isso não foi suficiente para a adaptação das sociedades e todas as suas leis, culturas, dogmas e códigos sociais machistas. Em 1993, na cidade de Viena, na Conferência Mundial dos Direitos Humanos, os governos reconheceram a violência contra a mulher como violação dos direitos humanos.
Falar em direitos humanos das mulheres é falar em variados modos de violações e situações que evidenciam a condição feminina no mundo atual. Implica olhar o fenômeno como uma conseqüência lógica da ausência de direitos nos planos econômico, político e social, além das privações vividas no próprio lar.
Isso significa que as mulheres, além de serem objeto de violações pela sua condição de sexo feminino, também são privadas dos direitos básicos, como acesso à educação, à saúde, a uma sexualidade e maternidade satisfatórias, a uma garantia no mercado de trabalho, sem falar na participação na política.
A fundamentação dos direitos naturais, onde se encontra a origem dos direitos humanos, tem se formado sobretudo por idéias masculinas e sob uma máscara de neutralidade, o que termina por dar continuidade à exclusão das mulheres.
No contexto do tráfico, muitos direitos das mulheres são violados, como o direito a estar livre de todas as formas de discriminação. Por causa das desigualdades relativas ao gênero, a maioria das pessoas traficadas são mulheres e meninas.
A falha ou a recusa dos governos em concordar que mulheres tenham os mesmos direitos humanos que os homens facilita e propicia a prática deliberada de toda forma de violência contra a mulher, incluindo o tráfico de pessoas.
Quanto ás crianças, essas também são vulneráveis ao tráfico e, como crianças, têm direitos especiais para sua proteção. Elas possuem direitos humanos semelhantes aos dos adultos, mas esses direitos têm uma aplicação especial devido à necessidade de extremo cuidado e atenção, conseqüente de sua vulnerabilidade. A infância possui valor nato e, por isso, os direitos humanos das crianças e seus interesses devem ser primordiais em todas as ações a eles afetas sob égide do Estado e da família.
Os direitos humanos das crianças e seus interesses são acordados na “Convenção dos Direitos da Criança” adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, que trata inclusive de assuntos relacionados ao tráfico de pessoas.
5.2 Pactos, Tratados e Convenções ratificados pelo Brasil (Responsabilidades e Obrigações)
Como abordado no item anterior, de acordo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a ratificação ou acordo dos diversos instrumentos internacionais, os Estados têm o dever de fornecer proteção às pessoas traficadas, pois têm a obrigação de assegurar a proteção de todos os direitos humanos, através de sistemas legislativos nacionais e internacionais.
Desta forma, devem ser responsabilizados e devidamente punidos indivíduos e oficiais de governo que violem os direitos de outros. Assim, no caso do tráfico, o governo é responsável pelos atos cometidos por seus próprios oficiais, por oficiais de patrulha, migração e policiais, inclusive Civis.
Conclui-se que, ao assinar tratados de direitos humanos, os Estados assumem a responsabilidade de agir com devida diligência (cumprindo o que foi estabelecido) e de boa-fé, para impedir, investigar e punir toda e qualquer prática de atos que contrariem o respectivo acordo.
Diz a pesquisa realizada pela (GATAW) que:
“A diligência, no contexto do tráfico, é a obrigação que os governos têm de fornecer proteção, atenção e auxílio às vítimas e, conseqüente, punição dos responsáveis, com investigação rápida e completa e compensação para a pessoa traficada, além da prevenção eficaz do tráfico, de acordo com suas obrigações sob a lei internacional.”
Os direitos humanos encontram-se amparados em diversas constituições nacionais e na legislação nacional dos países do mundo todo, o que os obriga a respeitar, assegurar, proteger e promover os direitos de todos.
Entretanto, violações acabam sendo cometidas por governos de diferentes formas tais como: leis internas que permitam ou encorajem práticas discriminatórias contra as mulheres; ações tomadas por governos ou funcionários, que violam os princípios de direitos humanos; falha na acusação de oficiais públicos e demais sujeitos envolvidos, como traficantes e, no caso de tráfico, falha na proteção dos direitos das pessoas traficadas.
Essas ações violam diversos instrumentos de direitos humanos, principalmente no que diz respeito ao tráfico, em que várias são as violações de direitos humanos sofridos por pessoas traficadas.
A tabela a seguir foi retirada da obra de Damásio sobre Tráfico Internacional de Mulheres e Crianças, citado inúmeras vezes no presente trabalho. Nela encontram-se os principais instrumentos, acordos, convenções, protocolos, pactos e declarações internacionais para direitos humanos e tráfico de pessoas, do qual o Brasil é parte.
ANO
DOCUMENTO
BRASIL
1930
Convenção OIT relativo ao trabalho forçado
1957
1947
Protocolo de Emenda da Convenção Internacional para a Supressão do Trafico de Mulheres e Crianças e Convenção Internacional para a Supressão do Trafico de Mulhres
1948
1949
Convenção e Protocolo Final para a Supressão do trafico de Pessoas e do lenocíneo
1958
1951
Convenção OIT nº100 Sobre Igualdade de Remuneração
1957
1951
Convenção Relativa ao estatuto dos Refugiados de Genebra
1961
1956
Convenção Suplementar sobre Abolição da escravidão, o Comercio de Escravos e de Instituições e Praticas Similares a Escravidão
1966
1957
Convenção da OIT nº 105 sobre Abolição de Trabalho Forçado
1965
1958
Convenção OIT nº 111 contra a Discriminação na Ocupação e Emprego
1965
1966
Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos
1992
1966
Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, sociais e culturais
1992
1967
Protocolo relativo ao estatuto dos Refugiados (Protocolo a conv. de Genebra)
1972
1969
Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de san José)
1992
1973
Convenção OIT nº 138 relativa a Idade Mínima do Trabalho
2001
1979
Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas Discriminação contra a mulher
1984
1994
1984
Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes
1989
1985
Convenção Internacional para Prevenir e Punir a Tortura
1989
1988
Protocolo Convenção Americana em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de San Salvador)
1996
1989
Convenção sobre Direitos da Criança
1990
1994
Convenção Internacional para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a mulher (Convenção de Belém do Pará)
1995
1999
Convenção OIT nº 182 Contra as Piores Formas de Trabalho Infantil
2000
1999
Protocolo Opcional para Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher
2004*
2000
Protocolo Opcional da convenção sobre os Direitos da Criança, sobre a venda de crianças, a prostituição e Pornografia Infantis
2004*
2000
Protocolo Opcional sobre os Direitos da Criança e sobre o envolvimento de Crianças nos Conflitos Armados
2004*
2000
Convenção da ONU contra o Crime Organizado Transnacional
2004*
2000
Protocolo para Prevenir, Suprimir e Punir Tráfico de Pessoas, Especialmente Mulheres e Crianças, Suplementando a Convenção da ONU contra o Crime Organizado transnacional
2004*
2000
Protocolo contra Contrabando de Imigrantes por Terra, Mar ou Ar suplementando a Convenção da ONU contra o crime organizado Transnacional
2004*
Para Damásio, entre 1949 e 2000, não foram elaborados novos instrumentos internacionais suficientemente eficientes, que refletissem uma nova compreensão acerca dos direitos das mulheres e das crianças, bem como para prevenir e reprimir o tráfico de pessoas. No entanto, neste intervalo de tempo que separa a convenção do Protocolo de 2000, muitas convenções internacionais, regionais e diversas iniciativas inter-regionais alertaram para importância do tráfico de pessoas, concluindo que a questão encontra-se inserida no conjunto de ações voltadas para ampliação de direitos humanos de mulheres e crianças.
Desde então, no âmbito do sistema da ONU, fortalecia-se a idéia de que qualquer forma de combate ao tráfico está relacionada ao quadro de direitos humanos estabelecido, sobretudo pela Convenção de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher e pela Convenção sobre os Direitos das crianças.
A Convenção da ONU contra o Crime Organizado Transnacional de Palermo e o Protocolo para Prevenir, Suprimir e Punir o Tráfico de Pessoas, especialmente de Mulheres e Crianças foram elaborados dentro da lógica de uma luta global contra o crime organizado.
Seus Protocolos adicionais tratam, especificamente, das matérias relativas a tráfico de pessoas e contrabando de imigrantes. A Convenção e o protocolo prevêem o tráfico como um problema de efetividade de aplicação da lei contra o crime organizado local e internacional, necessitando da participação e cooperação entre as agências de aplicação da lei, assim como reforços nos regimes legais por meio da promulgação de leis específicas e medidas punitivas mais rigorosas. Essas previsões visam o auxílio recíproco entre os governos dos países, através da organização e troca de informações sobre o crime organizado, com intuito de aumentar a capacidade para localizar, deter e julgar os traficantes.
Os objetivos do Protocolo Adicional sobre o Tráfico de Pessoas encontram-se elencados no seu art.2º:
“(...) prevenir e combater o tráfico de pessoas, dando particular atenção às mulheres e crianças; proteger e assistir as vítimas do tráfico, respeitando seus direitos humanos; e promover a cooperação entre os Estados-Membros, de forma a cumprir tais objetivos”.
O Protocolo reconhece a existência de prostituição voluntária e forçada, definindo que o tráfico de pessoas ocorre quando há participação involuntária na prostituição, não constituindo tráfico a participação não-coercitiva de adultos na prostituição.
Damásio afirma em sua obra que, paralelamente ao processo de elaboração da Convenção de Palermo e seus Protocolos, houve várias iniciativas regionais a respeito do tráfico de pessoas com enfoque para os direitos humanos.
Essas iniciativas contaram com a presença de redes internacionais de OSCs e o apoio de muitos órgãos internacionais, em sua maioria interagências da ONU, como a OIM (Organização Internacional para (Migrações), OIT (Organização Internacional do Trabalho), UNIFEM (Fundo das Nações Unidas para o Desenvolvimento das Mulheres), UNAIDS (Programa Conjunto das nações Unidas sobre o HIV/AIDS) etc.
VI. BRASIL E O TRÁFICO INTERNACINAL DE PESSOAS
Não será abordado no presente trabalho qualquer perfil político, econômico e social do país, embora sejam aspectos de extrema importância, por propiciarem a prática do tráfico de pessoas. Cumpre aqui limitar o tema hora proposto tão somente dentro dos aspectos a ele relacionados, fazendo uma abordagem superficial e ilustrativa para melhor contextualização das causas e efeitos do tráfico.
Como abordado anteriormente, a pobreza estrutural de uma nação, a desigualdade social, a expectativa de vida, a renda, o desenvolvimento humano, a taxa de alfabetização, o acesso à educação, as desigualdades raciais, as questões de gênero, os índices de trabalho escravo, desigualdade e violência contra a mulher são fatores ainda marcantes em países subdesenvolvidos e levam milhares de pessoas a buscar o acesso a uma vida mais digna.
Isso acaba vulnerabilizando as nações menos privilegiadas e ocasionando a prática de crimes que violam os direito humanos básicos. As vítimas, fragilizadas pelas suas condições sociais, são captadas através de falsas promessas e transformadas em mercadorias de grande valor econômico.
Não é novidade que o Brasil, durante toda sua história, sempre enfrentou grandes crises econômicas e sócio-culturais. Como abordado no primeiro capítulo deste trabalho, o tráfico de seres humanos faz parte da nossa história, inicialmente em decorrência do tráfico negreiro e posteriormente em razão da chegada de imigrantes vindos da Europa, à época da primeira guerra mundial, que buscavam refúgio e melhores condições de vida em países “novos” e desconhecidos.
Nesse fluxo e refluxo de pessoas, emergiu o tráfico mundial de mulheres brancas, vindas de vários países, especialmente da Europa, para serem exploradas sexualmente. Como diz Damásio: “A prostituição florescia a olhos vistos no centro e na periferia do capitalismo”.
Desde aquela época, as mulheres passaram a ser agenciadas por traficantes para alimentar o desejo dos homens mais “privilegiados”.
Há tempos o Brasil passou de país de destino para país fornecedor do tráfico de mulheres e crianças, pois a prática do tráfico acompanha os motivos que deram ensejo à sua origem.
Apesar de ser um problema flagrante, todos os trabalhos e pesquisas utilizados na elaboração deste trabalho relatam que não há estatística confiável para fornecer uma precisa idéia da sua extensão, pois o tráfico é uma atividade clandestina, definida de forma vaga e conflitante pelos vários Estados e entidades que lidam com o problema.
Todavia, diante de tantas informações, pesquisas, reportagens jornalísticas e processos jurídico-legais, é certo de que o País está às voltas com o tráfico pessoas, tanto no que se refere à adoção e a imigração ilegais como, em maior escala, para fins de exploração sexual.
Embora ainda não existam cifras, dados de um estudo realizado pelo departamento dos Estados Unidos da América[33], sobre vítimas do tráfico e a prática de violência afirmam que são numerosos os casos de vítimas de tráfico de pessoas. De acordo com esses estudos, segundo a fundação Helsinque para os Direitos Humanos, em 2003, 75.000 mulheres brasileiras estariam envolvidas no mercado sexual na União Européia.
O mesmo departamento americano constatou em seu estudo que, na mesma época, havia um número considerável de brasileiras traficadas em países como Espanha, Itália, Portugal, Alemanha, Suíça e Inglaterra, além de relatos que informaram o paradeiro de mulheres em Israel, no Japão, nos Estados Unidos e no Paraguai.
Um levantamento parcial da Policia Federal revelou que o Estado de Goiás é o principal exportador de mulheres, seguido do Rio de Janeiro e de São Paulo. As regiões Norte e Nordeste, comparadas às regiões Sul e Sudeste do Brasil, mostram alto índice de desigualdade social e pobreza e, por isso, são as regiões onde há a maior concentração de rotas de tráfico de pessoas.
De acordo com a (PESTRAF)[34], o tráfico envolve o movimento de pessoas da área rural para as cidades, de áreas menos desenvolvidas para as mais industrializadas e de países subdesenvolvidos para os países desenvolvidos.
Damásio diz que, de acordo com os organismos internacionais, o Brasil teria uma fatia de 15% do movimento do tráfico mundial de seres humanos e que cerca de 95% dessas pessoas têm seus passaportes retidos, devem para aliciadores e vivem em situações degradantes e humilhantes.
Cita ainda o mesmo autor que, segundo Sandra Vale, ex-Coordenadora do Programa das Nações Unidas Para o Combate de Tráfico de Seres Humanos, as principais portas de entrada para as brasileiras na Europa são Espanha e Portugal, pela semelhança e facilidade do idioma.
A PESTRAF identificou que a maior parte das vítimas do tráfico para fins sexuais no Brasil são mulheres e garotas negras e morenas com idade entre 15 e 27 anos, geralmente oriundas de classes populares, que habitam em espaços humanos periféricos, com carência de saneamento, transporte (dentre outros bens sociais comunitários), moram com algum familiar, têm filhos e exercem atividades laborais de baixa exigência. O agressor também persegue um perfil, segundo a mesma pesquisa, e geralmente é do sexo masculino, embora existam casos de mulheres, homossexuais e até menores.
6.1. Tráfico de Crianças e Adolescentes no Brasil
O Relatório, realizado em 2003, pelo Sr. Juan Miguel Petit Addendun[35] Relator especial da ONU sobre a venda de crianças, prostituição infantil e pornografia infantil no Brasil, explica que quantificar a exploração sexual comercial de crianças é uma tarefa difícil, devido a muitos fatores relacionados as características invisíveis do fenômeno.
Assim como o tráfico de mulheres, também não há sobre o tráfico de crianças, informações disponíveis que possam dar uma dimensão apropriada da ocorrência do fenômeno no Brasil.
O Relator constatou que, no Brasil, a maior parte dos dados disponíveis são colhidos por programas de Disque-Denuncia que dão assistência às vítimas. Como se não bastasse a escassez de meios para identificar a real dimensão do tráfico, os programas de Disque-Denuncia dão maior assistência a vítimas de abuso sexual do que às vítimas de exploração sexual, limitando o número de denúncias. Isto ocasiona um sentimento de impunidade nos criminosos e, conseqüentemente, propaga a prática do tráfico de crianças e adolescentes no Brasil.
Segundo o relatório da ONU adolescentes e crianças são forçadas a se inserir na prostituição de muitas formas. Na maioria das vezes acorre por intermédio familiares ou pessoas próximas, como a mãe, por exemplo, que organiza encontros sexuais para a criança na própria casa.
Situações de exploração sexual dentro da própria família estão claramente relacionadas à situação de pobreza. Ocorrem em áreas marginalizadas onde instituições e programas sociais são ausentes.
Há casos em que adolescentes se prostituem na rua, especialmente em vias onde há um grande fluxo de homens, como portos, grandes construções, grandes rodovias com tráfego intenso de caminhões e em shoppings ou restaurantes, por serem lugares anônimos e de trânsito intenso.
Há casos ainda em que garotas são encorajadas a se prostituir para ganhar status, geralmente sendo iniciadas por colegas da escola. Essa modalidade explica uma introdução da classe média no mercado sexual e o aumento de vítimas dessa classe no tráfico de pessoas.
A exploração sexual de crianças e adolescentes está geralmente vinculada ao crime organizado, principalmente quando ocorre em bares, hotéis, clube noturnos e bordéis. Alguns adolescentes são obrigados a se manter entre o tráfico e a prostituição.
O Brasil é considerado um país fornecedor de crianças e adolescentes para diversos fins, tanto para o tráfico interno como para o internacional.
M., uma garota de 16 anos de idade, moradora de uma província rural no Camboja, foi abordada por um vizinho que lhe oferecia emprego na capital do país. Ao contrário do que havia prometido, o vizinho vendeu M. para um bordel pelo valor de 150 dólares. Passados 5 dias, ela foi vendida mais uma vez para outro bordel. Ao final de dois meses, ela havia sido vendida cinco vezes e a soma de sua comercialização chegou a 750 dólares. M. foi forçada a manter relações sexuais com pelo menos dez homens por dia e não recebeu nada. A mãe de M., enquanto isso, alarmada com o desaparecimento de sua filha, convenceu um policial conhecido a tentar encontrá-la e, por fim, ela foi resgatada. Ela tinha marcas de injeção na base do crânio, indicando que fora sedada. M. também estava com infecção vaginal e, felizmente, não apresentava HIV.
Estimativas internacionais apontam que mais de um milhão de mulheres são traficadas e exploradas sexualmente no mundo inteiro. Pelo menos 35% desse total são meninas com idade abaixo de 18 anos, que passam por histórias semelhantes à de M..[36]
Segundo especialistas, pesquisas e relatórios elaborados a respeito, as causas do tráfico de crianças são, em maior ou menor grau, derivadas da miséria e da desigualdade entre países. O esquema de tráfico de crianças copia o modelo econômico que impera atualmente no mundo. As crianças das sociedades desfavorecidas são exportadas em proveito de representantes das sociedades ricas. Desta forma, diversos fatores, derivados da falta de recursos e, portanto, endêmicos nos Estados marginais, corroboram para agravar a situação. Nesse rol, relacionam-se o abuso doméstico e negligência, conflitos armados, consumismo, órfãos da AIDS, vida e trabalho nas ruas, discriminação, etnicismo e comportamento sexual irresponsável[37].
O tráfico de crianças se procede no Brasil, através de alguns tipos de violações dos direitos das crianças como: Adoção Internacional de crianças; exploração sexual infanto-juvenil, turismo sexual, pornografia infantil e pedofilia na Internet, entre outros. Essas violações, embora não tenham ligações diretas com o tráfico estimulam indiretamente a sua prática.
“A criança gozará de proteção contra quaisquer formas de negligência, crueldade e exploração. Não será jamais objeto de tráfico, sob qualquer forma. Não será permitido à criança empregar-se antes da idade mínima conveniente; de nenhuma forma será levada a ou ser-lhe-á permitido empenhar-se em qualquer ocupação ou emprego que lhe prejudique a saúde ou a educação ou que interfira em seu desenvolvimento físico, mental ou moral.” (Art. 9º da Declaração Universal dos Direitos as Criança, de 1959).
VII. LEGISLAÇÃO
No plano de proteção internacional dos direitos humanos, o Brasil ratificou os principais tratados. Os Tratados Internacionais ratificados, além de criarem obrigações para o Brasil perante a Comunidade Internacional, também criam obrigações internas, gerando novos direitos, que passam a contar com uma última instância internacional de decisão quando todos os recursos disponíveis no Brasil falharem na realização da justiça.
Estabelece a Constituição Federal do Brasil, em seu art 5º,§ 2o que os direitos e garantias nela expressos não excluem outros decorrentes do regime e princípios por ela adotados e dos tratados internacionais de que o Brasil seja parte.
O tráfico de mulheres favorece uma ampla violação dos direitos humanos dessas, que são traficadas com a finalidade de serem exploradas sexualmente. Elas são freqüentemente torturadas, sexualmente abusadas, estupradas. Costumam ter seus documentos e passaportes apreendidos e têm que pagar para obtê-los de volta, o que raramente conseguem vivendo presas, reduzidas à condição de escravas.
A definição do Protocolo da Convenção de Palermo é bastante ampla e abrange as mais diversas atividades e finalidades envolvidas no tráfico de pessoas, em especial de mulheres.
Os Estados-Parte devem desenvolver todos os esforços possíveis para prevenir, punir e erradicar o tráfico, além de garantir a segurança física das vítimas enquanto se encontrarem em seu território e de assegurar que o seu sistema jurídico contenha medidas que ofereçam às vítimas de tráfico de pessoas a possibilidade obter indenização pelos danos sofridos, mediante a condenação dos agentes responsáveis pelo tráfico.
De acordo com o protocolo, quando se tratar de tráfico de crianças, basta apenas o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento para a caracterização de tráfico, sem a necessidade de comprovar ameaça, uso de força, rapto, fraude, engano e as demais formas previstas no artigo 3o do Protocolo, ou seja, há uma presunção do uso de meios ilícitos que favorece as crianças. Nos termos do Protocolo, criança significa qualquer pessoa, menina ou menino, com idade inferior a dezoito anos.
7.1. Legislação Interna
Para o direito penal brasileiro considera-se Tráfico de Pessoas:
Art 231 - Promover, intermediar ou facilitar a entrada, no território nacional, de pessoa que venha exercer a prostituição ou a saída de pessoa para exercê-la no estrangeiro: (Alterado pela L-011.106-2005)
Pena - reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa. (Alterado pela L-011.106-2005) Prevenção, Cooperação e Outras Medidas - Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças - D-005.017-2004
§ 1º - Se ocorre qualquer das hipóteses do § 1º do Art. 227:
Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 10 (dez) anos, e multa. (Alterado pela L-011.106-2005)
§ 2º - Se há emprego de violência, grave ameaça ou fraude, a pena é de reclusão, de 5 (cinco) a 12 (doze) anos, e multa, além da pena correspondente à violência. (Alterado pela L-011.106-2005)
O Código Penal Brasileiro trata apenas do tráfico internacional de mulheres (artigo 231). Quando o tráfico ocorre no âmbito interno, normalmente o enquadramento legal é o do crime de "favorecimento à prostituição" (artigo 228), já que não há um tipo penal específico para o tráfico interno de mulheres.
Art. 228 - Induzir ou atrair alguém à prostituição, facilitá-la ou impedir que alguém a abandone:
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos.
§ 1º - Se ocorre qualquer das hipóteses do § 1º do artigo anterior:
Pena - reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos.
§ 2º - Se o crime, é cometido com emprego de violência, grave ameaça ou fraude:
Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 10 (dez) anos, além da pena correspondente à violência.
§ 3º - Se o crime é cometido com o fim de lucro, aplica-se também multa.
O art 206 do Código penal (alterado pela lei 8.683/93) trata do deslocamento de pessoas em razão do aliciamento de trabalhadores para o fim de emigração, nas hipóteses que houver sido praticado mediante fraude.
Art. 206. Aliciar trabalhadores para fins de exploração.
Pena - detenção de 1 (um) a 3 (três) anos e multa.
Damásio explica que, tanto no caso do tráfico de mulheres como no de aliciamento para fins de emigração, pode haver deslocamento para figura típica prevista no artigo 149 do Código Penal, que comina a pena de reclusão de dois a oito anos para a conduta de “reduzir alguém a condição análoga à de escravo”. Para tanto, exige-se que tenha ocorrido a sujeição de uma pessoa ao domíno de outra, independente da existência de consentimento, visto que “a situação de liberdade do homem constitui interesse preponderante do Estado”. Nota-se que o delito pertence ao Capítulo VI do CPB (que trata dos crimes contra a liberdade individual) e do Titulo I (dos crimes contra pessoa), enquanto o tráfico de mulheres encontra-se inserido no Titulo VI[38].
“Art. 149 - Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: (Alterado pela L-010.803-2003)
Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.”
O art 245 do Código Penal também deve ser objeto de analise, pois trata do envio de menor para o exterior.
Art. 245: (...)
§ 2º - Incorre, também, na pena do parágrafo anterior quem, embora excluído o perigo moral ou material, auxilia a efetivação de ato destinado ao envio de menor para o exterior, com o fito de obter lucro. (Acrescentado pela L-007.251-1984)
Damásio afirma ainda que os delitos acima mencionados são punidos de formas diferenciadas, embora estejam todos ligados à prática do tráfico de pessoas com a finalidade de exploração das vítimas, submetendo-as trabalhos escravos e a condições degradantes de sobrevivência.
Estas diferenças, criadas pela legislação interna e mantidas inalteradas, não condizem com os acordos e tratados internacionais sobre os direitos humanos, direitos das mulheres, dos trabalhadores e especialmente sobre o tráfico de pessoas, já ratificados pelo Brasil, que impõem medidas eficientes de prevenção e combate ao crime.
Para Mônica de Melo e Letícia Massula,8 esse é um ponto no qual o Brasil deve se centrar se quiser realmente enfrentar o grave problema do tráfico de pessoas. Afirmam, ainda, que o Código Penal Brasileiro não define como crime o tráfico interno e, por isso, esse crime acaba não sendo punido adequadamente.
Resta mencionar a falta de amparo jurídico a outra espécie cada vez mais crescente de tráfico: o tráfico voltado para subtração de órgãos humanos. Existe uma norma que trata especialmente de remoção de órgãos, tecidos ou parte do corpo humano, para fins de transplante e tratamento (Lei nº 9.434/47). Porém, essa lei não trata de sanções penais nem administrativas e não faz nenhuma referência ao assunto.
A ação penal para apurar a ocorrência do delito de tráfico de mulheres é, em todas as hipóteses, da modalidade pública incondicionada e, por isso, deve se iniciar mediante denúncia oferecida pelo Ministério Público.
Em relação à competência dos órgãos julgadores, preceitua o art. 109, V, da CF, in verbis:
Art. 109. Aos juizes federais compete processar e julgar:
(...)
V- os crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente; (...)
A competência para processar e julgar o crime de tráfico internacional de pessoas é do juiz monocrático, não existindo nenhum tribunal especial para atais julgamentos. A competência é da Justiça Federal, a teor do disposto no artigo 109, III e V, da Constituição Federal.
A competência brasileira não é limitada aos crimes praticados dentro do Brasil, uma vez que o legislador adotou o principio da territorialidade apenas como regra, ao ressalvar a possibilidade de renuncia de jurisdição do Estado, mediante convenções, tratados e regras de Direito Internacional. O país adotou princípio da territorialidade temperada, permitindo a aplicação da lei penal estrangeira a delitos total ou parcialmente praticados em nosso território, quando assim determinarem tratados e convenções celebrados entre o Brasil e outros Estados ou cânones do Direito Internacional.
O Código Penal Brasileiro, em seu artigo 7º prevê a possibilidade de determinados crimes praticados no estrangeiro sofrerem eficácia da lei nacional. É a extraterritorialidade da lei penal brasileira.[39]
VIII. CONCLUSÃO
Como visto o tráfico de seres humanos tem relações profundas com a miséria e exploração dos países do terceiro mundo. A rota do tráfico de seres humanos é a rota da grana. As pessoas são presas fáceis do tráfico, pois estão atrás de condições mais dignas de vida. Muitas pessoas saem do seu país, espontaneamente ou influenciada por aliciadores, em busca de promessas falsas, de sonhos irreais, de um mundo que não existe e o que encontram é a desilusão de serem submetidas a trabalhos forçados, serviços árduos, sujos, difíceis e perigosos, além de terem sua liberdade tolhida ficando a mercê da exploração econômica dos “grandes empresários de maquinas humanas”.
O tráfico de seres humanos não se restringe à exploração sexual comercial, mas é nítido que o problema recai principalmente sobre as mulheres, por causa de uma questão cultural. Esta oposição está encarnada, particularmente na nossa região, em boa parte da igreja católica e representantes de sua hierarquia, e de setores conservadores.
O autoritarismo imposto por esse conservadorismo são condições que atentam claramente contra os direitos das mulheres, e contra o livre exercício de sua sexualidade. A mulher ainda é considerada um ser de segunda categoria; suas decisões, vontades, sexualidade estão indiretamente ligadas a aprovação e o falso moralismo masculino que foram implantados pela sociedade patriarcal ao longo do tempo.
Conclui-se, então, que as duas causas fundamentais que ocasionam e facilitam o tráfico de pessoas é sem duvida a econômico-social e a cultural".
No entanto, apesar do receio e dificuldade das comunidades mundiais em reconhecer a verdadeira causa do tráfico e admitir pontos importantes que ferem alguns princípios morais, diversos avanços foram conquistados do ponto de vista da proteção internacional dos direitos humanos das mulheres com a adoção de variados meios eficientes de combate ao tráfico. O Protocolo da Convenção de Palermo para a repressão do tráfico de pessoas, em especial o de mulheres, é um exemplo deste avanço. Esses avanços obtidos permitiram afirmar que as vítimas do tráfico já não podem mais ser consideradas como criminosas e cúmplices do tráfico, mas sim como pessoas que sofreram sérias violações em seus direitos humanos fundamentais.
Para tanto se torna irrelevante que a mulher tenha consentido em exercer a prostituição fora de seu país. Esse fato, por si só, não a torna ré do crime de tráfico de pessoas, pois com o Protocolo reconhece expressamente sua vulnerabilidade e a necessidade de apoiá-la e protegê-la nessa situação.
É notório o esforço e a conseqüente evolução de comunidades nacionais e internacionais no tocante ao problema do tráfico de pessoas.
Muito se tem feito a respeito. ONGs e entidades não governamentais se esforçam no sentido de auxiliar as vitimas prestando-lhes assistência e colhendo dados concretos de extrema importância para elaboração de meios legais de prevenção e combate.
Os governos de diversos Estados, muito tem se empenhado no desenvolvimento de estudos e medidas eficazes para eliminação do problema. Porém, a resolução da criminalidade, em geral, não se trata apenas de esforços no plano legislativo, judiciário e executivo, de definições penais cada vez mais abrangentes, de penas mais severas, de aprimoramento de funções administrativas do Estado, se contudo continua-se a alimentar e acobertar a real causa do problema.
O que se vê é um paliativo institucional com a função de esconder o cerne das contradições de classe que a criminalidade expressa, seu produto mais rejeitado, sua sombra obscura que a sociedade tenta esconder.
É obvio que a ilegalidade não é algo fora da lógica do sistema capitalista, massante em que vivemos. Um caldo social explosivo originado pelo acúmulo de opressão social de todo tipo: do racismo, do machismo, do capitalismo, da globalização, etc. A pobreza por si só não leva ao crime, mas a desigualdade social produz o contexto propício para sua reprodução.
O narcotráfico, o jogo do bicho, a lavagem de dinheiro, os contrabandos em geral, os tráficos, os chamados crimes de colarinho branco, etc., são uma faceta do capitalismo necessária à sua reprodução. A própria criminalidade é produto social, portanto, a única perspectiva de acabar com ela é pela transformação profunda das bases que a sustentam.
O tráfico de pessoas, especificadamente, está enraizado a essas questões sócio-culturais do qual a nossa realidade política é complacente. Somos parte dessa sociedade injusta e preconceituosa. Construímos a nossa historia dia a dia, pois a inércia de alguns fortalece predomínio e o poderio, nem sempre bem intencionado, de outros.
“ Tente mover o mundo - o primeiro passo será mover a si mesmo” (Platão)
TRÁFICO INTERNACIONAL DE PESSOAS

Artigo 231 – C.P.

Tráfico de mulheres
Art.231 - Promover, intermediar ou facilitar a entrada, no território nacional, de pessoa que venha exercer a prostituição ou a saída de pessoa para exercê-la no estrangeiro:
Obs.: Caput com redação da Lei 11.106 de 28.03.2005.
Pena – reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa.
§ 1º - Se ocorre qualquer das hipóteses do § 1º do art. 227:
Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 10 (dez) anos.
§ 2o Se há emprego de violência, grave ameaça ou fraude, a pena é de reclusão, de 5 (cinco) a 12 (doze) anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
Obs.: Parágrafo com redação da Lei 11.106 de 28.03.2005.
§ 3o Revogado pela Lei 11.106 de 28.03.2005.

Objeto jurídico
A moralidade pública sexual. Segundo o ensinamento de Magalhães Noronha “Tutela-se a honra sexual contra os assaltos dos lenões (aquele que vive do lenocínio) internacional, porque tal figura tem o fim específico de incriminar um fato que lesa não só interesse de um Estado, mas dos Estados. (trata-se de um crime internacional) Impedindo-se, conseqüentemente, a expansão da vil atividade de mercadores do meretrício, atentado não só conta o bem próprio do sujeito passivo, mas da coletividade, ou seja, a moralidade pública e os bons costumes, que sempre são lesados pelo “metier” do lenão)
A finalidade do agente é dar entrada, em território nacional, de pessoa que nele venha a exercer o meretrício, ou visa a saída de pessoa que vá exercê-la no estrangeiro.

Crime Doloso
Não há previsão para a forma culposa

Sujeito ativo
Qualquer pessoa

Sujeito passivo
Qualquer pessoa

Núcleo

a)Promover
Significa dar causa, executar

b) Facilitar
Indica tornar mais fácil, ajudar

c) Intermediar
Significa interceder, colocar-se entre as partes para viabilizar (são condutas alternativas)

Consumação
Efetiva entrada ou saída em território nacional, não importando se a vítima venha de fato a exercitar a prostituição.

Tentativa
Admissível, como na hipótese do lenão que, após preparar todos os papeis para a viagem, é preso em flagrante delito quando embarcava a vítima em um navio ou avião.

Trata-se de ação penal pública incondicionada, a que prevê tal delito, mas de competência da Justiça Federal.
Tráfico de pessoas em xeque


Por Daniela Oliveira

O atual Código Penal Brasileiro começou a vigorar na década de 1940, época de outros conceitos e costumes sociais. Tal dispositivo visava resguardar não só os direitos individuais, inerentes a todo e qualquer cidadão, mas também, e, principalmente, a moralidade e a ordem social, preservando a organização ético-jurídica da vida familiar.

Em razão disso, muitas normas, contidas em seu bojo, tornaram-se antiquadas frente à modernidade, perdendo, de certa forma, sua eficácia.

Assim, o legislador, reconhecendo a necessidade de atualizar tal dispositivo com a realidade dos dias modernos, está, lentamente, reformando alguns aspectos importantes da área penal.

Neste diapasão, em 28 de março de 2005, foi aprovada e sancionada a Lei nº 11.106, oriunda do Projeto de Lei nº 117/03, de autoria da deputada Iara Bernardi (PT-SP), que, visando ajustar alguns pontos destoantes entre o Código Penal e a atual realidade brasileira, revogou e alterou a redação de alguns dispositivos do diploma, na tentativa de adaptar a lei aos valores culturais em vigência.

Desta forma, dentre as principais mudanças surgidas com o advento da mencionada lei, destacam-se aquelas concernentes aos delitos sexuais, os denominados crimes contra os costumes.

Neste sentido, não obstante a revogação dos crimes de adultério, rapto e outras modificações ocasionadas pela Lei 11.106/2005, a mudança mais contundente e notória ocorreu com a alteração da redação do artigo 231 do Código Penal, até então denominado crime de “tráfico de mulheres”.

A nova lei deu maior abrangência a tal dispositivo, buscando amparar não só as mulheres, mas toda e qualquer pessoa que for traficada. Agora, o nomem criminis passou a ser “Tráfico Internacional de Pessoas”.

Com a nova redação, o sistema repressivo passou a punir como crime as condutas de “promover, intermediar ou facilitar a entrada, no território nacional, de pessoa que venha exercer a prostituição ou a saída de pessoa para exercê-la no estrangeiro”.

Com isso, o legislador, sensível à realidade dos dias atuais, reconheceu a necessidade de ampliar, e por isso ampliou, a proteção penal também ao sexo masculino, pois já não é novidade a comercialização e exploração sexual do homem, o que era quase inimaginável quando se redigiu o Código Penal Brasileiro.

Além disso, a lei também criou novo tipo penal, incluindo em nosso ordenamento jurídico, o crime de tráfico interno de pessoas, previsto agora no artigo 231-A do Código Penal.

Para o aperfeiçoamento do sistema punitivo, o legislador cuidou de tipificar como crime as condutas de “promover, intermediar ou facilitar, no território nacional, o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento da pessoa que venha exercer a prostituição”.

A nova tipificação houve por bem punir o tráfico interno de pessoas, que tem características muito semelhantes ao tráfico internacional, dele se diferenciando quanto ao local do crime, pois ocorre entre localidades distintas do Brasil.

Destarte, cabe ressaltar que tais delitos, tanto o crime de tráfico internacional quanto o interno de pessoas, violam frontalmente direitos humanos e fundamentais. Possuem como principal característica a exploração das vítimas, que são submetidas a condições de vida e trabalho tão precárias, ao ponto de se poder afirmar que são formas modernas de escravidão, problema que o atual mundo democrático julgava ter sido extinto.

Isto posto, o tráfico de pessoas é uma prática que merece amplo esforço para ser reprimido, uma vez que, além de ser prática inescrupulosa e vergonhosa para o mundo, alimenta outros tipos de infrações penais, como o crime organizado, a lavagem de dinheiro e o trabalho escravo, entre outras.

Assim, além de representar um grande desafio para as organizações internacionais e para os Estados democráticos, ainda apresenta desafios para as políticas de direitos humanos. A única forma de dar combate a estes crimes é por intermédio de um esforço global, devendo haver universalização na repressão ao crime organizado, na proteção e assistência às vítimas, aliadas a medidas econômicas e políticas sólidas que mudem a face da desigualdade, da pobreza e das violações de direitos que afligem a população mundial.

Brasil se destaca na rota do tráfico internacional de mulheres
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18 de junho de 2006
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As brasileiras estão entre as principais vítimas do tráfico internacional de pessoas para fins de exploração sexual, revelam recentes pesquisas do Ministério da Justiça e do Escritório das Nações Unidas Contra Drogas e Crimes (UNODC).

Elas têm, em média, entre 15 e 27 anos e são aliciadas por taxistas, donos de boates e agências de modelo. Com promessas de uma vida melhor no exterior, seguem para a Europa e Ásia. No entanto, acabam mantidas em cativeiro e são obrigadas a pagar pelas passagens, alimentação e moradia. Endividadas e sem passaporte, poucas conseguem fugir e procurar auxílio.

"É um crime brutal, que desrespeita os direitos humanos e humilha as mulheres", afirmou Marina Oliveira, gerente de projetos da Secretaria Nacional de Justiça, do Ministério da Justiça.

A atividade ilícita prospera no Brasil devido à desigualdade social e econômica, característica dos países em desenvolvimento. As vítimas são, em sua maioria, de origem humilde e recebiam no Brasil até três salários mínimos. A maior parte é de Goiás, Paraná e Minas Gerais, respectivamente. Cerca de 58% tem ensino médio completo ou incompleto, sendo que uma parte significativa alcançou o ensino superior completo ou incompleto (19,4%).

Atividade rentável - O tráfico internacional de pessoas é tão sofisticado e complexo quanto o tráfico de drogas e armas, a corrupção e a lavagem de dinheiro. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), é uma das atividades mais rentáveis do crime organizado, com uma movimentação financeira estimada em US$ 9 bilhões por ano.

"O crime é mais rentável porque dá lucro por muitos anos, diferente das drogas, que são rapidamente consumidas", garantiu Marina. "Também identificamos que as redes que traficam pessoas também traficam drogas e armas, revelando uma interface entre essas organizações criminosas".

Para o delegado da Polícia Federal, Eriosvaldo Renovato Dias, chefe da divisão de Direitos Humanos da PF, o País precisa se preparar cada vez mais para combater o tráfico de pessoas. "O Brasil é uma praça de aliciamento e já identificamos o crime em todos os estados", afirmou. "Precisamos informar a sociedade e capacitar os policiais federais, civis e militares para lidar com esse crime".

Desde 2003, a Polícia Federal já realizou nove operações especiais de combate ao tráfico internacional de pessoas. Uma das operações realizadas foi a Babilônia que prendeu, em Goiás, sete pessoas de uma quadrilha que enviava mulheres para a Espanha. Já a operação Castanhola desarticulou uma quadrilha que atuava no tráfico internacional de mulheres para Portugal. As mulheres eram aliciadas em Anápolis (GO).

Pesquisas - O Rio Grande do Sul é rota preferencial para o tráfico de seres humanos, revela a pesquisa "Tráfico de Seres Humanos para Fins de Exploração Sexual no Rio Grande do Sul". Divulgado na semana passada, o levantamento detectou que regiões com uma economia local forte, com infra-estrutura, transporte (aeroportos) e facilidade de emissão de passaporte são as prediletas para o tráfico de mulheres.

"Desmistificamos o senso comum de que o tráfico de pessoas só ocorre em locais onde os indicadores sociais são de extrema vulnerabilidade", afirmou Marina Oliveira. "O trabalho mostra que as redes criminosas também se articulam, associadas a cadeias produtivas globalizadas, como é o caso do município de Caxias do Sul, centro industrial que atrai empresários de várias partes do mundo ao Rio Grande do Sul".

Já uma pesquisa realizada no ano passado no aeroporto internacional de Guarulhos (SP) revelou que mulheres brasileiras desacompanhadas e jovens têm maior chance de não serem aceitas em países da União Européia. Ao todo, 175 mulheres responderam a um questionário. Do universo analisado, 76% não chegaram a ser aceitas nos países de destino. Portugal foi o país que mais recusou a entrada das brasileiras, seguido por Itália, França, Espanha e Inglaterra, respectivamente.

De acordo com dados da Polícia Federal, cerca de 22.500 brasileiros foram deportados ou não admitidos no exterior em 2004. Desse total, em torno de 15.000 (33% mulheres) retornaram ao Brasil via Guarulhos.

Como definir "tráfico de pessoas"?

Tráfico de pessoas significa o recrutamento, transporte, transferência, abrigo e guarda de pessoas por meio de ameaças, uso da força ou outras formas de coerção, abdução, fraude, enganação ou abuso de poder e vulnerabilidade, com pagamento ou recebimento de benefícios que facilitem o consentimento de uma pessoa que tenha controle sobre outra, com propósitos de exploração.

Isso inclui, no mínimo, a exploração da prostituição de terceiros ou outras formas de exploração sexual, trabalho ou serviços forçados, escravidão ou práticas similares à escravidão, servidão ou remoção de órgãos.

Depoimentos de mulheres deportadas da Europa -

Paranaense, com ensino fundamental incompleto. No Brasil era empregada doméstica. Vivia na Espanha antes de ser deportada.

"Uma brasileira amiga minha tinha um namorado espanhol que era dono de uma boate. Ela me ajudou a ir para a Europa e a me estabelecer na cidade. Comecei a fazer programas nessa casa noturna. Ganhei muito dinheiro, paguei minhas dívidas, mas acabei deportada de novo para o Brasil".

Mulher, 34 anos, mãe de 3 filhos. Vivia no Paraná antes de ira para a Espanha.

"Uma vizinha aqui no Brasil que me falou dos trabalhos lá, que ela já trabalhava, já tinha ido antes. Aqui ela não era garota de programa. Ela foi fazer isso lá. Daí, através dela, ela me deu a idéia de ir para lá. Ela falou que eu ia ganhar mais, ia conseguir as coisas para mim, que as coisas não era bicho de sete cabeças igual as pessoas pensam.

Já tinha uma sobrinha lá, então ela mandou a passagem para mim. Ela tinha ido através de um cara que ela conheceu em Rondônia. Ele insistiu que a minha sobrinha fosse, falou que ela era muito bonita, que estava perdendo tempo no Brasil não ia ganhar dinheiro. Ele comprou a passagem. Ela foi, se deu muito bem, ganhou muito dinheiro. Daí lá ela pagou o cara".

Goiana, que morou em Madri. Foi para a Europa com o próprio dinheiro, mas conta que viu muitas mulheres que deviam altas somas para donos de boates.

Comigo não aconteceu. Claro, as mulheres que vão para lá e são ameaçadas é que vão e não pagam a passagem, que devem para o dono do clube e o dono do clube quer receber a passagem, se não paga, não ameaça, mas comigo não. Aqui, no Brasil, tem mulher que se dedica a fazer o tráfico normal e manda para lá devendo... Eu fui através de uma amiga, eu fui com meu dinheiro, mesmo.

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