sexta-feira, 13 de agosto de 2010

As cobras logo detectaram os eflúvios - sem dúvida carregados de terror - que
escapavam daquele humano incapaz de reagir ante a presença dos répteis venenosos. E,
uma após outra, se foram levantando sobre o ventre, dirigindo para Sinuhe os negros e
penetrantes olhos. Quatro dos ofídios ostentavam três pequenas escamas sobre a cabeça.
E o investigador compreendeu com espanto que se tratava da áspide ou "víbora de
Cleópatra", sumamente perigosa. Quanto às demais, excitadas pela proximidade do ser
humano, haviam-se apressado a achatar e alargar seus colos, exibindo-se em toda a sua
macabra magnificência. Estas últimas - de pescoço preto - tinham ainda a faculdade de
lançar o veneno aos olhos do adversário. Sinuhe o sabia e, meio hipnotizado pelo ceceio e
pela lenta oscilação das cabeças dos répteis, creu chegado o fim.
Seu último pensamento foi para Nietihw. Que teria sido dela? Estaria viva?
A névoa já lhe chegava ao nível da cintura e, presa do magnetismo das pupilas
verticais dos ofídios, parecia resignado a morrer. Uma das áspides ergueu-se acima das
companheiras e, abrindo as fauces, mostrou as presas venenosas. O ataque parecia
iminente...
Mas, no último segundo, umas fauces maiores do que as das cobras agarram-lhe as
roupas e, empurrando-o pela cintura, derrubam-no de costas, mergulhando-o no "fumo"
leitoso. Enquanto caía, arrastado por aqueles dentes desconhecidos, teve tempo de ver
como os répteis, enganados no último instante, deslizavam velozes sobre a beirada do
sepulcro, submergindo, como ele, na névoa espessa, sem dúvida empenhados em
persegui-lo.
Ao tocar o solo rochoso da cripta, as fauces o liberaram e Sinuhe, bracejando e
sem ar, revolveu-se sobre si mesmo em busca do tão oportuno salvador. Mas ali, no meio
da névoa, a branquidão era tal que o cegava. E não pôde distinguir forma ou figura
alguma. A falta total de oxigênio no interior do "fumo" somada à considerável densidade
do meio que o obrigava a mover-se com lentidão e o cansava, forçaram-no a sair
imediatamente. Ao emergir, descobriu desolado que seu "traje" de "sonhos" e "ilusões"
dissolvera-se por completo. Agora, a única claridade da câmara vinha da névoa que
continuava invadindo o lugar, lenta mas inexoravelmente.
Desta vez, conseguiu evitar o primeiro ataque das cobras. Não obstante, a imagem
dos ofídios a corcovear na espessa claridade fez com que temesse nova acometida,
provavelmente nas pernas ou no ventre. Aterrorizado, vasculhou com os olhos os quatro
pontos cardeais, tentando descobrir os corpos das serpentes. Subitamente, entre as coxas,
acreditou sentir o roçar de alguma coisa mais sólida que "fumo". À beira do histerismo,
patinhou na névoa empreendendo enlouquecida e desesperada fuga em busca de algum
ponto mais distanciado do túmulo.
Mal conseguira avançar um par de metros em direção ao muro que sustentara os
quatro remos de cristal e em cujo extremo se adivinhava aquele também enigmático
quadrado de gesso branco, e sua caminhada foi truncada. Acima da superfície da névoa -
no centro de quatro dos redemoinhos que se agitavam à sua frente - viam-se vários
crânios. Sinuhe, em meio aos farrapos de luz, só distinguiu, de início, a parte superior de
umas cabeças escuras com uns olhos vidrados e ameaçadoras pupilas verticais.
"As cobras", deduziu apavorado.
Mas havia qualquer coisa de estranho naquelas cabeças, apenas assomadas à flor
da névoa.
Pressentindo novo ataque, retrocedeu. No mesmo instante, à direita e à esquerda,
emergindo por outros tantos redemoinhos, descobriu mais quatro vultos, dois de cada
lado, idênticos aos que tinha diante de si. Em todos relampagueavam as mesmas pupilas
verticais, frias e mortais como a névoa que o consumia.
Sem escolha, continuou caminhando de costas até que a parede do catafalco
impediu-lhe a fuga. Sem querer, voltara ao ponto de origem. Em seguida, os oito crânios -
como se soubessem que sua vítima estava encurralada - emergiram sem pressa do meio da
névoa, mostrando-se a Sinuhe em todo o seu horror.
Diante do nosso homem foram aparecendo oito corpos de mais de dois metros de
altura cada um. Embora as pupilas fossem similares à das áspides e "víboras de
Cleópatra", tratava-se, na realidade, de robustos seres peludos de aspecto humano,
vestidos de tanga. As mãos, armadas com longas unhas e as cabeças, cobertas de grenhas
escuras e impenetráveis. Sinuhe os reconheceu. Eram oito dos nove cativos que haviam
escapado misteriosamente do primeiro selo da Necrópole Real! Aqueles inimigos do
Egito já tinham tentado acabar-lhe com a vida quando ele se encontrava encerrado na
"bolha" mental. Inexplicavelmente, porém, haviam-se afastado da antecâmara, deixando
abandonadas as cordas e o selo de argila. O sigilo e a nona corda continuavam em poder
do investigador...
Impotente, viu como os cativos levantavam as garras prontos para um ataque que,
agora, não seria repelido por "esfera" mental alguma...
Triunfantes, os rostos de azeviche dos cativos esboçaram sorrisos diabólicos,
proclamando assim o que parecia ser um final fulminante. E foi nesses instantes críticos,
quando as curvadas unhas - longas como cauda de escorpião - erguiam-se acima da
cabeça do prisioneiro, ao ponto de cravar-se em sua presa, que Sinuhe - com a névoa à
altura das costelas - intuiu onde poderia estar sua salvação...
- O Nome Inefável!...
Ao observar de perto a pele dos cativos - elástica e áspera como a argila de que
haviam escapado -, recordou-se das palavras sagradas. O ato de pronunciá-las lhe havia
franqueado a passagem à câmara sepulcral, embora, é bem possível, houvesse trazido
consigo também o mágico "esvaziado" do selo real...
Tinha de arriscar-se. Talvez uma nova invocação do "Nome" obrasse o milagre e
aqueles seres de barro...
Sinuhe - algo estranho nele - pensou e atuou simultaneamente. Extraiu do bolso o
oval de argila e, levantando-o com a mão esquerda, gritou:
- SHEM HAMEFORASH!
O eco bateu nos muros. Os sorrisos petrificaram-se e com eles os corpos dos oito
cativos. E a névoa, vertiginosamente, qual branca trepadeira, ascendeu pelas musculosas
extremidades dos prisioneiros, cobrindo-os totalmente. Em segundos, as oito criaturas de
argila se converteram em outras tantas estátuas de "fumo". Mas a nova mutação duraria
pouco. A neve cairia com a mesma velocidade com que se levantara. Os remoinhos
desapareceram e também os oito cativos; Sinuhe, aliviado, recostou-se exausto contra a
parede do sepulcro.
Seu desafogo, entretanto, foi breve. Ao examinar o selo ovalado que ele
conservava entre os dedos pouco faltou para que, presa de novo sobressalto, se lhe
escapasse da mão. A quase totalidade da superfície - com exceção do segmento superior -
havia recuperado o aspecto original: oito figurinhas apareciam toscamente representadas
em outros tantos altos-relevos de barro. Eram os cativos ajoelhados e com as mãos
novamente amarradas às costas. Mas faltava uma e, claro, a figura superior: a do galgochacal...
Com a névoa pelo peito, perguntou-se onde estaria Anúbis e por qüe teria sido
atacado pelos oito dos nove cativos. E mais, quem o teria salvo das cobras? Tratar-se-ia
do chacal de madeira a quem devolvera a vida? E se fosse isso, por que não tinha
conseguido vê-lo? Onde se esconderia? Será que aquela névoa não o afetava? Ele, em
compensação, sentia-se cada vez mais fraco... É certo que a densa e nevada fumaça
contribuíra - e não pouco - para a aniquilação das bestas que o rodeavam, mas, se não
atuasse com rapidez - se não encontrasse Horemheb -, aquela mesma bruma que já lhe
cobria e machucava o peito podia converter-se em seu túmulo.
Que fazer para defrontar-se com o "traidor"? Sinuhe dirigiu o olhar para a deusa
alada que tomara o lugar do enigmático dignitário na pintura funerária, propondo-se esta e
outras incógnitas com uma inquietação mais e mais angustiosa.
Os fatos, uma vez mais, precipitaram-se: de súbito, umas mãos longas e úmidas
caíram-lhe ao pescoço, com a intenção de estrangulá-lo. Sobressaltado, tentou sair do
catafalco. Mas aqueles dedos - como cepos - afogavam-no. O selo de argila lhe caiu da
mão perdendo-se na névoa e o investigador, num esforço contínuo, cravou os dedos -
agora livres - naquelas garras, mais que mãos, que se lhe fechavam em volta do pescoço.
Em pânico, olhos arregalados, o "iuranchiano" acreditou identificar a criatura que o
atenazava como o último e nono cativo.
Sua perplexidade e desespero alcançariam, entretanto, o paroxismo quando, ao
colocar a mão esquerda sobre as garras, elas, feitas de um barro úmido, destroçaram-se
quase completamente. Entre estertores, examinou a palma da mão, verificando que não
se enganara: ali, entre os dedos, tinham ficado porções de um adobe fresco e
avermelhado.
Em reação fulminante, descarregou a adaga de ferro sobre a mão que lhe arroxava
a região direita do colo, conseguindo o mesmo efeito. O punhal penetrou na garra; ao ser
retirada, porém, em lugar de sangue, a brilhante lâmina só trouxe... barro!
Apesar do evidente estrago sofrido pelas mãos, nenhuma das duas cedeu um átimo
sequer em seu objetivo. E Sinuhe, meio desmaiado, começou a sentir sinais de asfixia.
Turvou-se-lhe a visão, e o coração, bombeando no limite de suas possibilidades, começou
a fraquejar.
Num derradeiro esforço, guiado unicamente pelo instinto de conservação, o
membro da Loja reuniu suas poucas forças e puxou as garras e o ser para baixo, buscando
a hipotética ajuda da névoa. Evidentemente, a fantástica criatura não previra a súbita
reação e se viu, com efeito, arrastada para o interior da bruma. As mãos e os antebraços,
submersos assim no "fumo" de gelo, sofreram a mesma sorte dos oito cativos.
Simplesmente se dissolveram.
Sinuhe, livre da tenaz assassina, tentou a superfície. Mas, ao emergir frente ao
catafalco, aquele inseparável "companheiro de viagem" - o espanto - voltou a soprar-lhe
sobre o coração gelado.
Diante dele, em pé no interior do túmulo, achava-se o "alto personagem", tão
misteriosamente desaparecido do mural funerário. E Sinuhe, com a névoa a roçar-lhe já as
clavículas, compreendeu.
- Horemheb!... O traidor!
Confirmando suas suspeitas, o corpulento egípcio fez uma leve inclinação de
cabeça, enquanto estendia os braços para Sinuhe. Mãos e antebraços, efetivamente, foram
amputados pela névoa. Nas extremidades distinguiam-se uns cotos úmidos e
avermelhados como o resto da pele do velho general.
Mas, no momento seguinte, o barro que formava o corpo de Horemheb cobrou
vida e os cotos se auto-regeneraram e as mutiladas extremidades renasceram. O êxito
parcial do "iuranchiano" acabou sendo infrutífero...
Horemheb, cravando seus enormes e amendoados olhos negros em sua vítima
indefesa, falou:
- Escuta, estrangeiro!... Em vida do herege rei Akhenaton e do seu irmão
Tutankhamon, fui enviado por Amon, meu senhor,
para recuperar o Grande Tesouro do Reino em Meio ao Mar e destruir o culto a
Aton, vã tentativa dos fiéis a Micael para restituir sua autoridade perdida em
IURANCHA. Desde então, sou o custódio desse Tesouro e nada nem ninguém poderá
entrar na Sala de Thot...
Sinuhe só compreendeu em parte. Ele estudara que aquele temido general - que de
fato conheceu o faraó herege e seu irmão - usurpara o trono do Egito após a morte de Ay,
o chamado "Pai Divino" e sucessor de Tutankhamon. Sabia também que, seguindo os
conselhos das castas sacerdotais, devolvera o culto e a glória a um de seus deuses: Amon,
arrasando qualquer vestígio daquela outra divindade - Aton - "suprema revelação" do rei
herege, Akhenaton. Mas que significava tudo aquilo sobre o Grande Tesouro e os fiéis a
Micael? Que era a Sala de Thot? A confusão do investigador, à medida que escutava as
palavras de Horemheb, foi crescendo...
- Podes unir-te a Amon, meu senhor - concluiu o general - ou morrer... Escolhe!
Grave silêncio, dramático como aquelas frases, planou pela cripta como o prelúdio
de iminente e não menos dramático desenlace...
O cérebro de Sinuhe, acossado por aquele outro perigo - a névoa ondulante - não
respondeu. Pouco importava agora a busca dos arquivos secretos de IURANCHA. O
"fumo", em ascensão contínua, não tardaria a alcançar e sepultar-lhe a cabeça. Como
pensar na missão quando sua vida tinha contados os minutos?
Na ponta dos pés, esquivando-se dos gelados farrapos de névoa, foi aproximandose
do túmulo, já totalmente coberto pela bruma. Era inexplicável que as robustas pernas
de Horemheb não se tivessem dissolvido. Pelo menos da perspectiva do investigador, os
pés do general achavam-se no interior do catafalco e este, como digo, fazia tempo
desaparecera sob o nível daquele inesgotável horror leitoso. Entretanto, hierático e solene,
o corpo de barro do traidor continuava sobressaindo acima da névoa.
Sinuhe não tardaria a entendê-lo. Ao topar com a lateral de quartzito, verificou que
a totalidade do vazio do sepulcro retangular permanecia livre. A névoa ascendia e o
enchia todo à exceção daquele reduto sagrado. Quanto aos pés de Horemheb,
embrulhados em alvas sandálias, pareciam firmemente seguros sobre o tórax de ouro da
esfinge jacente. Atordoado, levantou o rosto para o do general. Iluminada pela brancura
que ameaçava inundar a câmara toda, aquela face avermelhada esboçou um sorriso
irônico. O monstro de adobe, levando a mão esquerda à pele de leopardo que lhe cobria o
ombro, repetiu o ultimatum:
- Escolhe, estrangeiro!...
Para Sinuhe, tristemente, a escolha só podia ser uma. Cansado, o corpo todo ferido
pelo gelo, sem esperança de tornar a ver Nietihw, sem armas, sem a ajuda do já remoto
"amigo" Ra, que sentido teria resistir? Quão longínquos pareciam, naqueles instantes, seu
entusiasmo e seu afã de desvelar a Verdade sobre Lúcifer!...
Com voz quebrantada, só conseguiu retorquir:
- Está bem!... Não quero morrer!... Mas dize-me ao menos quem é teu senhor e
qual a sorte que me aguarda.
Horemheb, satisfeito, continuou acariciando a pele de leopardo.
- Alegra-me tua sensatez, estrangeiro. Vossa missão estava fadada ao fracasso.
Mas, ao eleger Amon, teu esforço não terá sido estéril... Ele, precisamente, te mostrará a
Verdade por que tanto anseias.. .
- Amon? - interrompeu-o Sinuhe. - Quem é?
- Em teu mundo, em IURANCHA, fruto de vossa ignorância, é conhecido como
Lúcifer... meu senhor.
Destino trágico e paradoxal. Se Horemheb não mentia, a força do Maligno - contra
a qual, sem dúvida, haviam batalhado até o momento - era a que, agora, ofertava-lhe a
vida e a Verdade. ..
Aferrado à submersa beirada do catafalco, não teve forças para continuar
interrogando o general. Seu único desejo era sair daquele lugar espantoso e sobreviver; e
Horemheb, compreendendo o lamentável estado do "iuranchiano", falou-lhe de novo:
- Porém, antes de conduzir-te à Torre de Amon, é preciso que renuncies ao
símbolo que ainda te une a Dalamachia.
O investigador olhou-o sem compreender.
- Deves entregar-me o colar, a "cadeia" de números, símbolo dos estúpidos e ilusos
homens "Pi"... até os quais jamais chegarás.
Sinuhe obedeceu. Documente, retirou-a do colo e ofereceu-a a Horemheb.
Sem abandonar o sorriso triunfante, o general inclinou o torso, ao mesmo tempo
em que anunciava em tom cerimonial:
- Como general vitorioso e último rei da dinastia XVIII ordeno que tua submissão
a Amon, e a mim mesmo, deve consumar-se com um ato de entrega total: cinge meu colo
com a tua "coroa"...
Horemheb flexionou a perna direita, apoiando o joelho sobre as plumas de ouro do
segundo ataúde. Com reverência, inclinou a cabeça até o alcance das mãos de Sinuhe.
Este, tiritando, em silêncio, ergueu-se nas pontas dos pés, deslizou a "cadeia" ao redor da
coifa verde, depositando-a no colo do traidor.
E uma tristeza infinita apoderou-se daquele homem vencido...
Foi como um relâmpago. Como uma descarga interior. Como uma luz ou talvez
como um grito distante. Ao soltar a "coroa" de números na nuca de Horemheb, o nome de
Nietihw fez vibrar até a última célula de Sinuhe: arrebatado, crisparam-se-lhe os dedos
sobre o colo do general. O investigador deixou-se cair de costas sobre o mar de brumas,
arrastando consigo o traidor.
Entre brancas turbulências, foram ambos submergidos no "fumo". Em segundos, o
barro vermelho se consumiu e Horemheb, aniquilado pela névoa, desapareceu.
Sem poder entender sua reação fulminante, o membro da Escola da Sabedoria
buscou a superfície desesperadamente. O nível do "fumo" chegava-lhe agora aos olhos;
saltando sobre o solo rochoso, encheu de ar os pulmões e lançou-se em busca do túmulo.
Se conseguisse galgá-lo e refugiar-se em seu interior, talvez adiasse seu fim...
Ao agarrar-se à borda do bloco de pedra, tentou saltá-lo. Mas aquele metro e meio
era já demasiado para as suas forças esgotadas. Rendido, quase asfixiado, sentiu a massa
gasosa a cobri-lo definitivamente.
Pronto para morrer, foi deslizando-se pela parede do catai alço, até cair de joelhos
junto dele. Ali, prisioneiro da branquidão cegante - paradoxalmente salvadora e mortal -
esperou a sua hora.
Entretanto, quando mal tocara o fundo da cripta, aquelas mesmas fauces que o
salvaram do ataque das cobras trancaram-se em suas roupas e o impeliram para o alto,
depositando-o bruscamente no interior do sepulcro.
Ao contato com a madeira chapeada do segundo ataúde, Sinuhe, com a pele
azulada por um congelamento incipiente, entreabriu os olhos. Os pulmões inalaram
ansiosamente e, pouco a pouco, compreendendo que fora resgatado do gás gelado, tratou
de levantar-se. Mas era extrema a sua debilidade, por isso mal conseguiu sentar-se sobre a
figura jacente. O "fumo", colado às quatro paredes exteriores do túmulo, continuava
ganhando altura, respeitando porém o espaço situado acima do grande bloco retangular.
Ficava, assim, sobre o reduzido habitáculo que ocupavam agora o féretro e Sinuhe, um
misterioso e providencial vazio ou "chaminé", fortemente iluminado pela irradiação
daquelas vibrantes "paredes" de névoa.
Na mente do "iuranchiano" martelava uma única idéia: "A segunda adaga!... A
segunda adaga!..."
Urgia encontrá-la. Mas, como abrir a tampa daquele ataúde? O punhal de ferro, tal
como acontecera com sua "cadeia" de números, desaparecera na profundidade da bruma...
Tateou as asas de prata colocadas dos dois lados e puxou-as. Inútil. Seu próprio
corpo, pesando sobre o féretro, dificultava a operação. Havia também a esfinge que,
preenchendo a totalidade do nicho, não deixava espaço suficiente entre a pedra e o ataúde.
Bateu no peito dourado do jovem rei, tornando a maldizer sua má sorte. Mas logo
compreendeu que tal atitude não o levaria a parte alguma, quando muito, só a desperdiçar
as parcas energias que ainda lhe restavam. Tinha de pensar. E rápido. A névoa continuara
a encher a câmara. Talvez faltasse um metro - ou menos - para que tocasse o teto. Que
aconteceria então?
Esfregou o rosto com as mãos espalmadas lutando por recuperar um pouco da
circulação sangüínea. Foi então que atinou com a nona corda dos cativos amarrada ainda
à sua munheca.
Com grande dificuldade, ajudando-se com os dentes, conseguiu desenrolá-la.
- Sim, ainda é possível... - disse com seus botões, buscando ansiosamente uma das
asas.
Deu um nó na corda e voltando-se para a alça oposta repetiu a operação. Uma vez
amarrada às duas asas, segurou a corda entre os dentes e com as mãos procurou apoio nas
beiradas superiores do sepulcro.
"É preciso consegui-lo!... Ê preciso!..."
Sinuhe lutou para levantar-se. Tinha de colocar os pés sobre a borda superior do
túmulo. Só assim, puxando a corda com os dentes, poderia içar a tampa... talvez.
Mas as pernas, tumefatas, não responderam. Gemendo de raiva, deixou-se cair de
joelhos sobre a esfinge.
Ofegante, esmurrou as pernas, rogando, exigindo e suplicando que recuperassem
as forças. Tentou pela segunda vez. Agarrou com os dedos a beirada do sepulcro e alçou o
próprio corpo ao mesmo tempo em que apertava a corda entre os dentes. Mas suas
extremidades,, convertidas em placas de gelo, não se moveram um só milímetro. Como
um fardo, caiu de novo sobre a tampa resplandecente. E dessa vez os gemidos
desembocaram em amargo e copioso pranto. Seu último desejo - abrir aquele segundo
ataúde e apoderar-se da adaga de ouro - começara a esfumar-se.
Mergulhado no desconsolo, Sinuhe, a princípio, não se deu conta. Suas lágrimas,
ao resvalar-lhe pelas faces, arrastavam as últimas estrelas douradas que tinham formado o
seu "traje" de "sonhos". A névoa não destruíra todas as "ilusões". Restavam ainda as que
lhe protegiam o interior dos olhos, agora dissolvidas pelo pranto amargo.
E como um presente - ou talvez um milagre -, aquelas dezenas de minúsculas
"estrelas" se foram caindo sobre a esfinge, fundindo à sua passagem o ouro da tampa.
Sinuhe encontrou-se assim, de repente, estendido sobre o terceiro féretro.
Com o coração confuso e agradecido pôs-se de joelhos contemplando, atônito,
aquele último ataúde. Era também feito de ouro e se achava igualmente envolto em fino
tecido avermelhado.
Deu nervosas palmadas no linho que num instante se rasgou. Ao retirar a proteção
surgiu a máscara, em ouro polido, de um rei quase menino, com formosos e esvaziados
olhos rasgados. Sobre colo e peito havia um complicado colar de contas e de flores,
cosido a uma armação de papiro.
Mas todo o seu interesse concentrou-se nas mãos. Rompeu o linho que cobria o
resto do tórax e ao desvendá-las uma envolvente alegria o compensou de tantas
desventuras...
As mãos, cruzadas sobre o peito, lavradas também em ouro brunido e puríssimo,
sustinham uma adaga. A segunda! A que devia "apontar Dalamachia"!
Como no segundo féretro, a adaga tinha a embocadura ricamente decorada com um
granulado de brilhante ouro amarelo e apontava para o queixo da máscara real. A bainha
era rodeada de tiras de pedras semipreciosas e vidros em cloisonné, desembocando na
empunhadura como uma valiosa cadeia em volutas, bordeada por uma corda de arame de
ouro.
A adaga de ouro - como o punhal de ferro - também apontava a porta da cripta.
Sinuhe compreendeu que enfrentava o dilema anterior. Para onde dirigir-se? Mas
em seguida, movendo negativamente a cabeça e contemplando as "paredes" fumegantes
que já estavam para roçar o teto da câmara, desistiu de qualquer tentativa para elucidar a
nova incógnita. Era óbvio que não poderia sair do sepulcro. . .
Delicadamente, inclinando-se sobre as mãos no ataúde que, sem dúvida continha
os restos mumificados de Tutankhamon, foi retirando a adaga de dentro da bainha.
Aos seus olhos, cintilando como mil sóis, apareceu uma lâmina de ouro de especial
dureza e de formas simples e belas. A superfície era lisa, com exceção de umas ranhuras
profundas que desciam pelo centro, convergindo em um ponto. E nesse ponto descobriu
uma inscrição. Uma legenda que o deixou perplexo:
"Já és um homem 'Pi'."
Não houve tempo para uma segunda leitura do hieróglifo. A névoa, ao tocar o teto
da cripta, irrompeu como um tornado no oco produzido sobre o túmulo, envolvendo o
aterrorizado "iuranchiano". E em uníssono, familiares e felinos olhos cor de âmbar
irromperam no branco caos. E as fauces de Anúbis se cerraram sobre a mão esquerda de
Sinuhe, arrastando-o no meio da névoa.
Sua última lembrança, antes de perder a consciência, foi uma perturbadora
sucessão de sensações: o galgo-chacal a voar ou flutuar à sua esquerda - a puxá-lo como
se ele fosse uma pluma -; aquele frio dilacerante e, finalmente, a implacável aproximação
ao quadrado de gesso branco que ele tivera a oportunidade de ver e sentir junto aos quatro
remos-archotes de cristal...
Depois, ao dar-se o choque com o "quadrado", escuridão. Somente escuridão...
Várias figuras o rodeavam quando, finalmente, abriu os olhos. Sinuhe, mente em
branco, não soube o que fazer nem o que dizer. Não sabia se estava morto ou se acabara
de despertar de um pesadelo. Aqueles homens, ataviados com longas e alvas túnicas de
Unho, formavam em torno dele um círculo tão fechado que lhe tornava impossível
precisar onde estava. Um, especialmente, inclinado um pouco sobre ele, impressionou-o.
À diferença dos outros seis indivíduos, ele sobressaía pela enorme estatura - uns dois
metros e meio, talvez - e pela cor da pele: era negro!
Estendido de costas no chão vermelho impecavelmente polido e brilhante, foi
apalpando as roupas, ante a implacável e silenciosa presença dos observadores. Suas
calças, assim como a camisa, estavam secas. E essa sensação trouxe-lhe à memória o gelo
da neve que acabara por sepultá-lo na câmara sepulcral de Tutankhamon. No mesmo
instante, encadeada às demais vivências: os olhos ambarinos e as fauces de Anúbis e o
quadrado de gesso...
Incompreensivelmente, aquele esgotamento de morte se dissipara. Agora se sentia
bem. Os sintomas de congelamento e aqueles seus primeiros e tímidos movimentos
pareciam normais. No entanto, abrumado pelo círculo, não fez menção alguma de
levantar-se. Não sabia quem eram aqueles seres, tampouco suas intenções. E, temeroso,
foi passeando o olhar por suas fisionomias e aparatos.
Em sua fugaz inspeção, Sinuhe deduziu equivocadamente - talvez devido à luz
avermelhada que banhava o lugar - que aqueles homens, com exceção do negro e de outro
de rosto branco, eram vermelhos. O contraste o perturbou ainda mais. Alguns traços lhe
recordaram os dos chineses e dos esquimós. O negro apresentava os traços típicos da raça:
lábios grossos e salientes, nariz achatado e cabelo anelado. Quanto ao branco, a cabeça -
totalmente raspada - poderia ter sido a de qualquer sacerdote do antigo Egito: pele
ligeiramente tostada e reluzente, talvez efeito de algum óleo gorduroso, olhos negros e
penetrantes, pômulos altos e afinados. As orelhas, pequenas e bem construídas, tinham
lóbulos com orifícios circulares.
O que realmente veio inquietá-lo, pondo-o em guarda, foi a descoberta - no peito
de cada uma das sete personagens - de um mesmo emblema. Uma figura que lhe era
familiar: tratava-se daquele ser de cabeça quadrada e grandes olhos circulares, situado sob
o signo da letra "pi". O mesmo que aparecia no alto-relevo do seu anel de ouro
desaparecido e que ele tivera oportunidade de contemplar nas concavidades da não menos
enigmática caveira negra, na praia...
Quem seriam aqueles homens? Por que exibiam aquele escudo? Que representaria?
Como se lhe tivesse captado os pensamentos, um dos atentos observadores - o de
cabeça raspada - ajoelhou-se junto a Sinuhe. Este, receoso, ergueu-se ligeiramente,
apoiando os cotovelos no solo. Mas o rosto lustroso do que acabava de ajoelhar-se
transformou-se subitamente. Amplo e sincero sorriso iluminou-lhe o rosto, e levando o
dedo indicador direito ao emblema circular falou-lhe em tom cálido e amistoso:
- Não temas, Sinuhe. Este é o signo dos homens "Pi".. .
Boquiaberto, fixou o interlocutor desviando os olhos, depois, para cada um dos
presentes. E todos, ao mesmo tempo, apoiaram as palavras do companheiro com
movimentos afirmativos de cabeça.
- Os homens "Pi"? - conseguiu exclamar. - Mas, então...
O único que havia falado até o momento manteve o sorriso e, estendendo-lhe as
mãos, levantou-se, sugerindo ao investigador, com isso, que o imitasse. Sinuhe aceitou
com reserva. Mas o homem, acentuando o sorriso, tentou ganhar-lhe a confiança. Depois
de tantas amarguras, surpresas e perigos, o "iuranchiano" tinha de estar desconfiado. O
receio acentuou-se quando, ao pôr-se em pé, descobriu a verdadeira cor dos que o
rodeavam. ..
Assustado, retirou as mãos. O homem de pele branca que o ajudara,
compreendendo a confusão de Sinuhe, guardou silêncio. E os sete misteriosos
personagens, com os braços caídos ao longo das túnicas, esperaram que o recém-chegado
saciasse sua curiosidade.
Como se fosse um menino, foi postando-se diante de cada um dos homens que o
rodeavam, estudando-os e verificando se não estaria vivendo um sonho. Apesar da luz
avermelhada que enchia o ambiente, Sinuhe podia ver que um daqueles seres era
verdadeiramente vermelho. Com o cabelo negro e liso e o nariz de águia, juntamente com
o tom da pele, lembrou-lhe os índios americanos. O segundo e o terceiro, esses, eram
sumamente estranhos. Rostos e mãos - únicas partes visíveis de seus corpos - eram laranja
e verde, respectivamente.
"Homens de cor laranja e verde?", perguntou-se, sem poder dar crédito ao que,
evidentemente, tinha ante os olhos.
Ambos eram de talhe similar ao seu e os olhos, como os de seus companheiros,
acompanhavam os movimentos do investigador com uma calma divertida. Suas feições
eram para ele irreconhecíveis. Não se enquadravam em nenhum dos fenótipos raciais de
que se recordava. Só o profundo e negro olhar do verde e o brilho azeitonado da pele
trouxeram-lhe à memória os formosos olhos dos hindus, e certa semelhança com a tez de
alguns povos da Polinésia. Já a cor do homem laranja pareceu-lhe tão alheia quanto
fascinante. Perfil extremamente fino e delicado, quase como o de uma donzela. Era o
único, exceção do calvo, que tinha cabelo albino.
Depois, com a mesma curiosidade, deu um passo até o quarto "humano" - embora
o qualificativo não parecesse excessivamente claro na mente confusa de Sinuhe -
ratificando sua primeira impressão: a que havia recebido quando se encontrava deitado.
Aquele criatura, um pouco mais baixa que as outras e de pele amarela, oferecia as
características das raças asiáticas orientais. Ostentava um espesso bigode azeviche, olhos
rasgados e pômulos nipônicos. Na realidade, poderia ser tomado por mongol ou chinês
talvez.
Sinuhe se deteve muito pouco diante da gigantesca envergadura do negro. Entre
assustado e tímido, levantou fugazmente os olhos até ao alto daqueles dois metros e meio,
porém, embora o olhar do gigante estivesse dominado pela piedade, passou depressa para
o sexto observador. Este, de pele azulada, era o mais baixo de todos. Talvez não fosse
além de um metro e sessenta centímetros. Sob a túnica adivinhava-se uma constituição tão
musculosa quanto as do amarelo, e o negro e o vermelho A cabeça, de forma ligeiramente
ovalada e enterrada, sobressaía sobre o pescoço grosso e forte como o de um touro.
Associou seus traços com os dos esquimós.
Concluído o exame, voltou-se para o único branco - o que parecia o chefe ou
porta-voz daquele estranho conclave - e, mostrando o lugar com um vago gesto de mãos,
perguntou-lhe:
- Onde estou?
- Esta era a câmara couraçada de IURANCHA...
E abrindo passagem entre os companheiros mostrou-lhe o recinto. Ao abrir-se o
círculo, Sinuhe descobriu que fora parar em um estranho habitáculo em forma de prisma
hexagonal de altíssimos muros. As seis paredes que formavam o hexágono, assim como o
solo e talvez o teto - este, difícil de precisar em virtude da distância - tinham sido
construídos com uma liga desconhecida, parecida com ouro,, embora de tonalidade
acobreada. A "câmara couraçada" - como a havia denominado o branco - apesar de sua
desnudez brilhante, tinha um efeito acolhedor.
Sinuhe deu um breve passeio, aproximando-se de um dos muros. Tocou-o com
curiosidade e, ao sentir sua textura e dureza, viu-se assaltado por uma idéia
extraordinária. Mas logo a abandonou. Era fantástica demais. . . Se, naquele momento
tivesse coincidido olhar para o homem de rosto brilhante, teria notado nele a confirmação
do pensamento. Mas o membro da Escola da Sabedoria, cujo temor inicial ia dando lugar
a lenta mas firme confiança e a uma excitante curiosidade, achava-se fascinado por outra
descoberta. No centro geométrico do hexágono levantava-se uma pequena coluna de
mármore branco, de apenas trinta centímetros de diâmetro e metro e meio de altura.
Estava coroada por uma lâmina do mesmo metal que revestia o resto da câmara.
Voltando-se para o grupo de homens que continuava próximo a um dos muros,
apontou para a coluna, interrogando-os com o olhar.
O branco, seguido bem de perto pelos seis homens de cor, deu então alguns passos
em direção ao investigador. Chegando junto dele, suas mãos foram pousar sobre a
acobreada e brilhante plataforma circular que arrematava a coluna. E uma sombra de
tristeza obscureceu-lhe o olhar. Nesse instante, ao reparar nas suas ossudas e longas mãos,
Sinuhe, hipnotizado, foi incapaz de apartar os olhos de um dos dedos do enigmático
personagem...
O homem branco, compreendendo a surpresa de Sinuhe, estendeu-lhe então a mão
direita, convidando-o a examinar em seu dedo anular o selo que tanto o impressionava. O
"iuranchiano". sem dissimular a emoção, tomou a mão entre as suas, verificando que,
efetivamente, tratava-se do símbolo ou emblema de sua Ordem: uma serpente vermelha,
enroscada entre dois olhos.. .
Não foi preciso que formulasse pergunta alguma. O portador do anel de marfim
adiantou-se aos seus pensamentos, dizendo-lhe:
- Querido irmão Sinuhe: sabemos que são muitas as dúvidas que te assaltam o
coração. Mas antes de explicar-te por que trago o selo da Escola da Sabedoria (nossa
Ordem) e de falar-te sobre esta coluna, permite-me que, em benefício de uma melhor
compreensão, deixe ambos os assuntos para o final. . .
As cálidas palavras do interlocutor e o incrível achado do escudo da Loja secreta
naquele remoto lugar, infundiram em Sinuhe força e paz insuspeitadas. Então, abrindo a
alma, dispôs-se a escutar aquilo que pressentia ser uma importante informação naquele
quebra-cabeça enlouquecedor.
- Faz agora muito e muito tempo - prosseguiu seu irmão de Ordem, voltando a
colocar as mãos sobre a lâmina avermelhada da coluna -,-mais ou menos 200 000 anos de
IURANCHA, homens leais a Micael, nosso Soberano, viram-se obrigados a fugir de
Dalamachia, a cidade fundada por Caligastia, o então príncipe planetário de nosso mundo.
Naqueles tempos, como sabes, registrou-se no sistema de Satânia (regido por Lúcifer)
uma rebelião que arrastou 37 planetas, entre eles o nosso. E as forças expedicionárias
chegadas a IURANCHA 300 000 anos antes, com Caligastia e seu Estado-Maior,
dividiram-se. A maior parte secundou os propósitos de Lúcifer e de Satan, seu lugartenente,
e a Terra foi posta em "quarentena", sofrendo uma histórica paralisação em seu
desenvolvimento natural. Nem todos porém, como te digo, obedeceram a Caligastia,
representante de Lúcifer em IURANCHA. Houve seres celestes e membros
materializados do Estado-Maior do citado príncipe, assim como 9 800 dos 50 000
"medianos", que formavam esse corpo especial de criaturas "mediadoras", criadas para o
bem, que repeliram a rebelião. Mas tiveram de dispersar-se. Uma das expedições que
fugiu de Dalamachia, a "cidade modelo" refugiou-se no que seria chamado o Grande
Reino em Meio ao Mar. ..
Sinuhe, fascinado, recordou-se então do enigma que encontrara sobre o tabique da
cripta.
- Esse Grande Reino - prosseguiu o homem branco - não foi conhecido pelos atuais
habitantes de IURANCHA. Mas foi pelos antigos. E houve um famoso escritor e filósofo
grego que, quinhentos anos antes da sétima e última encarnação de Micael como Jesus de
Nazaré, teve referências dele através de eminente legislador, Sólon, que, por sua vez,
recebeu as notícias sobre a existência de tal império através dos sacerdotes egípcios da
cidade de Sais...
- Atlântida!
Sem poder conter-se, o investigador pronunciou o mítico nome da ilha-continente,
misteriosamente submersa no oceano Atlântico "no transcurso de um dia e uma noite, há
uns 11 500 anos", segundo os Diálogos de Critias e Timeu, de Platão.
Assentindo com a cabeça, seu informador sorriu satisfeito.
- Atlântida ou Atlantis, sim - afirmou, adivinhando as dúvidas que atormentavam o
perplexo "soror" -. O Grande Reino em Meio ao Mar! Uma segunda Dalamachia que
durante milênios resistiu aos contínuos assédios das forças leais ao Maligno. . . Aquela
valente expedição retirara da "cidade modelo" um grande tesouro: os arquivos secretos de
IURANCHA. E pelo espaço de quase 200 000 anos pôde custodiá-lo e preservá-lo contra
a ambição de Caligastia e dos seus sequazes.. .
Ao chegar a este ponto da narração, a voz daquele homem se quebrou. Mas, apesar
da evidente tristeza, continuou:
- Quando o planeta foi submetido à "quarentena" pelas altas hierarquias do
universo local e da Ilha Estacionaria do Paraíso, à espera da captura e posterior
julgamento do rebelde, todas as comunicações de IURANCHA foram cortadas. E desde
então, tu o sabes, a humanidade se acha incomunicável, submersa no caos e à mercê dos
rebeldes. E aqueles bravos, fiéis a Micael, foram finalmente sitiados. De comum acordo,
traçaram heróico plano, visando pôr a salvo o Grande Tesouro. E numa odisséia que
talvez algum dia te seja revelada, seis expedições partiram simultaneamente do Reino em
Meio ao Mar. Das seis, apenas uma transportava os arquivos secretos do planeta.
Caligastia e suas forças conseguiram interceptar quatro dessas missões, mas,
providencialmente, a que protegia o Grande Tesouro logrou seu objetivo, e desembarcou
no que hoje é o Egito.
- E a outra? - interrompeu-o Sinuhe.
- Atingiram também a meta prevista. Chegaram ao que hoje conheceis como
América, e se ocultaram e se mesclaram entre os povos daquele continente. Os rebeldes,
porém, suspeitando de que os leais a Micael pudessem tentar tirar de Atlantis os arquivos
secretos, investiram contra o Reino com um último e feroz ataque. E as preces daqueles
homens heróicos foram afinal escutadas. E de Jesusem, a capital do sistema de Satânia,
foi enviada a IURANCHA (a pedido dos próprios atlântidas) uma das esferas artificiais
que rodeiam habitualmente o planeta-capital. Era a última fase do plano prodigioso e
generoso traçado pelos leais a Micael. Eles sabiam que, exatamente nesse tempo (11 345
anos antes de Cristo), a órbita periódica de 6 666 anos de "Ra" (a esfera artificial)
coincidia sobre o nosso sistema solar. E optaram por sua autodestruição, na tentativa de
fazer crer aos rebeldes que os arquivos secretos se teriam submergido com a Atlântida no
fundo do oceano.;
O narrador fez uma pausa, visivelmente emocionado com a trágica recordação. E
fixando os olhos em Sinuhe continuou:
- Esta humanidade cega nada sabe do sacrifício daqueles leais. Tal como relata
Platão, o Grande Reino, com todos os habitantes e milhares de rebeldes, afundou no
transcurso de um dia e uma noite, presa de violentos sismos e maremotos, provocados
pela "ronda da roda de "Ra". Caligastia, durante algum tempo, permaneceu no engano,
convencido de que o Grande Tesouro se perdera para sempre.
- "Ra"! - murmurou Sinuhe, começando a compreender a natureza daquele astro
"intruso", captado pelos radioastrônomos de Arecibo e de que já lhe falara seu Kheri
Heb...
Muito embora as perguntas lhe borbulhassem no coração, esperou. Seu misterioso
irmão de Ordem não havia concluído...
- Quando, 11 000 anos antes de Cristo - prosseguiu o homem branco - aquela
audaciosa expedição que transportava os arquivos secretos conseguiu encalhar seu barco
(o Dalamachia) em uma das praias do Egito, os atlântidas sobreviventes deram andamento
a um minucioso e secreto plano, destinado, fundamentalmente, a esconder o Grande
Tesouro. E partindo do próprio casco do barco construíram uma pirâmide subterrânea.
Iluminaram-se os olhos de Sinuhe.
- Pirâmide gigantesca que já conheces - observou o narrador - e que, milhares de
anos depois, teria sua réplica na chamada Grande Pirâmide de Quéops.
O investigador não se conteve e o corrigiu:
- Uma réplica, dizes? A de Quéops, a que todos conhecem, não tem algumas das
câmaras que percorri.. .
O homem branco sorriu, benevolente.
- Digamos que os egiptólogos não tenham tido acesso a elas...
- Queres dizer...?
- Sim, que ambas as construções são gêmeas. Mas muito tempo há que transcorrer
ainda até que os homens do teu mundo tenham acesso a esse segredo.
- Nem consigo entendê-lo... - murmurou Sinuhe, suplicando que o tirassem da
nova e irritante confusão.
- Deves conter tua impaciência e deixar-me prosseguir. Só assim poder ás
compreender - o companheiro de Loja de Sinuhe guardou silêncio e, depois de pequena
pausa, acrescentou: - e, talvez, se o crês oportuno, reencetar tua missão.
O investigador intuiu algo de especial naquelas últimas palavras. Será que a missão
de busca dos arquivos secretos poderia terminar ali, na chamada "câmara couraçada" de
IURANCHA?
- Muito tempo depois que a pirâmide subterrânea estava terminada e o Grande
Tesouro depositado em seu interior (precisamente onde agora nos encontramos), aqueles
leais a Micael tomaram a decisão de fundar um novo povo. Sabiam que a forma mais
segura e eficaz de salvaguardar os arquivos era, justamente, separar-se deles e fazer crer
aos rebeldes (na suposição de que fossem descobertos) que o Tesouro continuava com
eles.
- Um momento! - interferiu novamente o "soror". - Os arquivos secretos estão
aqui?
Seu confidente não respondeu. Apareceu-lhe nos olhos aquele pesar que Sinuhe já
tinha observado pouco antes. Finalmente, com voz trêmula, desvendou uma parte do que
tanto interessava ao
investigador:
- Desgraçadamente, não... Foram saqueados.
- Como? Quando?
O homem branco levantou as mãos e suplicou-lhe paciência.
- O plano dos atlantes era bom. E deu os resultados desejados durante 10 000 anos.
Uns 4 000 antes de vossa Era, aquela reduzida e valorosa população mesclou-se, por fim,
com as tribos dos antigos povoadores do que, a partir desses tempos, seria conhecido
como Egito. Aqueles humanos primitivos, dirigidos pelos atlantes, passaram assim, quase
subitamente do Neolítico a um invejável estágio evolutivo. Bem depressa os
conhecimentos daquela expedição fizeram florescer as artes e as letras, proporcionando
maravilhoso impulso ao comércio, às construções, à agricultura, às matemáticas, à
astronomia e ao culto à Divindade única. Foram eles que revitalizaram o sangue e o
espírito daquele povo, transformando-o, com o passar dos séculos, no que depois seria a
admiração de IURANCHA.
Sinuhe se lembrou das crenças universais e ancestrais que acusaram sempre certa
"influência" estrangeira como possível explicação* e causa do misterioso e repentino
desabrochar do antigo Egito. O escritor e historiador do século I, Deodoro da Sicília, já o
insinuava quando escrevia: "Os egípcios eram estranhos quer em tempos remotos,
assentaram-se às margens do Nilo, levando consigo a civilização do seu país de origem, a
arte de escrever e uma linguagem refinada. Chegaram procedentes da direção do sol
poente, e eram os homens mais antigos."
No século XX, o professor W. N. Emery, como outros muitos especialistas,
anotava em seu livro Egito Arcaico que, no quarto milênio antes de Cristo, o Egito passou
bruscamente da Idade da Pedra a reinos bem organizados onde, ao mesmo tempo em que
aparecia a arte de escrever, a arquitetura monumental, as artes e os ofícios se
desenvolveram de maneira incrível, com todos os sinais de uma civilização bem
organizada e até mesmo requintada.
Mas que pôde ter acontecido? Por que o povo fundado pelos leais a Micael
terminou por extinguir-se e, sobretudo, quem terá sido o responsável pelo roubo dos
arquivos secretos?
- Aquele admirável impulso e transformação, no entanto - continuou o homem
branco - não passou desapercebido para as hostes de Caligastia. Embora os atlantes
tivessem cruzado seu sangue com o dos autóctones, apagando assim as pegadas do
próprio passado e de sua verdadeira identidade, as forças do Maligno (intrigadas e
temerosas) não tardaram a infiltrar-se. Os descendentes da expedição primigênia (zelosos
depositários da
existência do Grande Tesouro) adotaram pois uma série de medidas preventivas.
Uma delas foi precisamente a construção de pirâmides magníficas e monumentais. Uma,
em especial, que levaria o nome do seu construtor, Quéops, foi levantada seguindo os
mesmos padrões e medidas da Grande Pirâmide subterrânea...
- Por quê?
- Se os rebeldes continuassem misturando-se com o povo egípcio e chegassem a
suspeitar ou desvelar a verdadeira origem de seus fundadores, a segurança dos arquivos
secretos poderia ser comprometida. Daí que, por prevenção, decidiram levantar à margem
esquerda do Nilo, a muitos quilômetros da verdadeira localização da pirâmide
subterrânea, outra construção gêmea, com seu complexo enredado de câmaras e galerias
(umas falsas, genuínas outras) que, se fosse o caso, serviria para confundir
definitivamente os seguidores de Lúcifer.
"Não eram infundados os temores dos descendentes dos atlantes. As forças do mal
foram ganhando terreno e influência, conseguindo, a pouco e pouco, que o nobre povo
egípcio olvidasse sua fé em um só Deus, caindo em um emaranhado de costumes idolatras
e supersticiosos. E Amon, símbolo de Lúcifer, não tardou em ocupar posto de honra entre
todas as divindades. Os rebeldes apoderaram-se do controle das castas sacerdotais,
chegando até mesmo ao trono. Apesar disso, no mais profundo do espírito egípcio, ficou
viva a memória daqueles "deuses" chegados um dia do Oeste. Tal sentimento, unido à sua
indestrutível crença em um "além mundo" e seus profundos conhecimentos científicos e
artísticos foram o legado de uma raça (a dos atlantes) que praticamente veio a
desaparecer. ..
- Extinguiram-se? - perguntou meio incrédulo.
- Quase por completo...
- Mas e o Grande Tesouro?
- No ano 1 366 antes de Cristo-Micael, em tempos da XVIII dinastia, os poucos
conhecedores da existência da pirâmide subterrânea decidiram-se a fundar uma Ordem
secreta, que custodiasse o Grande Tesouro. Essa Ordem, caro Sinuhe, passou a chamar-se
"Escola da Sabedoria"...
Ele, que havia estudado a origem remota da Loja de que era irmão, ignorava a
íntima motivação por que fora criada. Daí sua surpresa, ao ouvir as palavras do portador
daquele selo, não ter limite.
- Nossa Ordem? - balbuciou.
- A Escola da Sabedoria! - exclamou o branco com orgulho -. A mais antiga de
IURANCHA, segundo reza vosso papiro número 10 474...
Sinuhe, cada vez mais perplexo, não teve forças para fazer perguntas.
- Pouco tempo após o nascimento da Grande Loja, a Providência fez com que o
sucessor do rei Amenofis III, seu filho Akhenaton ou Amenofis IV, passasse a fazer parte
do primeiro Templo da Irmandade. E guiado pela própria retidão e sensibilidade lutou
pela implantação de uma única Divindade, que ele designou pelo nome de Aton. Durante
seu curto reinado, a Escola da Sabedoria assentou-se definitivamente, admitindo novos
irmãos. Mas, apesar de escrupulosa seleção, a Loja cometeu grave e irreparável erro: um
dos rebeldes (o general Horemheb, de grande prestígio em toda a nação), depois de
numerosas e insistentes petições, foi admitido no Conselho dos Kheri Hebs. E dessa
forma, as forças do mal acabaram por averiguar onde se encontrava o Grande Tesouro...
"Horemheb, astuto qual serpente, soube galgar o trono do Egito quando da morte
de Ay, o "Pai Divino", membro, como seus antecessores (os faraós Akhenaton e seu
irmão e genro, Tutankhamon) da Grande Loja. Apesar dos esforços da Escola da
Sabedoria por impedi-lo, o traidor e seus sequazes, todos eles a serviço de Lúcifer,
penetraram na pirâmide subterrânea e arrebataram os arquivos...
Sinuhe desaprovou com a cabeça, comentando:
- Há alguns aspectos que não consigo entender.
Dessa vez foi o homem branco quem interrogou o "soror" com o olhar.
- Em primeiro lugar - expôs o investigador - se a pirâmide subterrânea foi
construída milhares de anos antes do reinado de Tutankhamon, morto em 1 343 antes de
Cristo, como é possível que aqueles primitivos atlantes desenhassem e construíssem uma
réplica quase exata do túmulo dele, no interior da pirâmide subterrânea?
- Muito simples - replicou o interlocutor com sorriso amargo -. Essa câmara
sepulcral a que te referes, e de que praticamente acabas de sair, é obra posterior.
- Continuo sem entender...
- A réplica da tumba descoberta em 1 922 de tua Era por Howard Carter no Vale
dos Reis foi executada por Horemheb, com o único fito de confundir possíveis e futuros
intrusos.. . como tu. As forças do Maligno, como haveis tido ocasião de sofrer, dominam
e controlam a pirâmide. Nada nem ninguém pode entrar ou sair dela sem que os rebeldes
o saibam e consintam.
- Isso não é possível - explodiu Sinuhe - Nietihw e eu fomos ajudados e, inclusive,
salvos, em vários e graves momentos. Além do mais, como explicar vossa presença e a
minha nesta "câmara couraçada"?
- Tanto tu, Sinuhe, como nós, os homens "Pi" - sentenciou o branco com tristeza -,
somos apenas prisioneiros.
Aquela revelação categórica mudava as coisas.
- Prisioneiros?.. . De quem?
- De Lúcifer ou de seus representantes em IURANCHA. .. naturalmente.
- Então - lamentou o investigador - todas essas provas a que temos sido
submetidos.. .
O companheiro de Loja moveu a cabeça em sinal de desaprovação.
- Farsa pura. Puros sonhos e fantasias para provar-vos, conhecer-vos e,
definitivamente, para colocar-vos (a ti e à filha da raça azul) no ponto desejado por eles.
No mais inexpugnável. Naquele em que permanecereis (como nós) enterrados pelo resto
da vida. . .
As palavras daquele homem foram ditas em tom tão convincente que Sinuhe,
mergulhado nas mais densas dúvidas desde que se envolvera naquela missão, deixou-se
cair no chão da câmara. Por muito tempo ficou sentado, cabeça baixa, tentando ordenai
sentimentos e idéias.
Apesar de tudo, havia "alguma coisa" viva ainda - que lhe adejava no coração.
Eram as palavras de Agurno, aquele ser gigantesco materializado no bosquezinho de
Sotillo...
"Saibam que não será fácil" - tinha-lhes anunciado -. "Guardem-se de Belzebu.
Estejam prevenidos porque' não haverá tréguas para vós. Embora ninguém os possa
substituir, outros 'medianos' leais estarão prontos a socorrê-los. Procurem Solônia, o
serafim que guardou o Éden. Sua espada lhes será necessária. O olho de Ra velará pelos
dois..."
"Que sentido teriam agora essas palavras?" - meditou Sinuhe. - "Onde estavam
esses 'medianos leais' que deveriam estar prontos para socorrê-los? Por que o olho de Ra
fora tragado por aquele misterioso corvo branco?"
Entretanto, embora sua confusão fosse crescendo, Sinuhe negava-se a aceitar que
tudo tivesse sido farsa ou miragem manipuladas pelos rebeldes. É verdade que antes de
penetrar no velho barco - o Dalamachia -, tanto Nietihw como ele haviam perdido a coroa
com o nome cósmico e seu "amigo", o disco, respectivamente. Mas que sentido teria que
Vana - o "mediano" rebelde a quem devolveram a vida - os tivesse ajudado? "Se as forças
do mal estavam conjuradas para perdê-los" - deduziu, pondo à prova sua própria lógica -
"aquela criatura não lhes teria indicado a direção de Dalamachia... Ou sim?"
Consumiu tempo mas, finalmente, convenceu-se, pela enésima vez, de que não
podia confiar nas aparências. E se aquela suposta câmara blindada e os homens de cor
fossem também um estratagema ou uma farsa? Já não podia ter certeza de nada, a não ser,
claro, na sua intuição. E lutando consigo mesmo, tomou a firme decisão - acontecesse o
que acontecesse - de não ser render. Sua missão era chegar até os arquivos secretos de
IURANCHA e tinha de batalhar até consumir o último alento.. .
Mais animado, levantou o rosto e, pondo-se em pé, dirigiu-se novamente ao grupo
que, silencioso, aguardava a sua reação. Ele porém, prudentemente, não abriu o coração
aos homens "Pi". Em sua mente ficavam ainda muitas lacunas e, se em realidade se
encontrava enterrado vivo, tinha todo o tempo do mundo - embora os conceitos "tempo" e
"mundo" não lhe aparecessem muito claros - para solucioná-las. Talvez por esse caminho
se lhe fizesse a luz no espírito atormentado.. .
- Prisioneiros. Dizes que somos prisioneiros - manifestou-se, fixando o olhar nos
olhos do porta-voz do grupo -. Mas e vós? Desde quando estais aqui? Acabais de afirmar
que nada nem ninguém pode ingressar na pirâmide subterrânea sem o consentimento
deles...
- É isso - replicou o branco -. Tuas perguntas são lógicas. Quem primeiro desafiou
Horemheb fui eu, Amen-Em-Apt. Eis o
meu nome. Figuro nos sagrados papiros da Escola da Sabedoria com o cognome de
O Verdadeiro Silencioso.
Aquela revelação quase arruinou os propósitos do investigador. Amen-Em-Apt,
como constava no já mencionado papiro 10 474 da Loja, era considerado o propulsor, o
primeiro Kheri Heb ou Grão-Mestre da Escola da Sabedoria. Sua existência remontava a
quase catorze séculos antes de Cristo. E Sinuhe, boca aberta, contemplou de cima a baixo
o sacerdote egípcio, sem poder conceber que estivesse diante de um ser humano que
viveu na dinastia XVIII e, portanto, cerca de 3 350 anos atrás!
- Sei o que estás pensando, Sinuhe - surpreendeu-o Amen com um sorriso... Em
primeiro lugar, devo esclarecer-te que não fui o primeiro Kheri Heb. Em todo caso, um
mais do Primeiro Grão-Conselho... E, em segundo, que todo aquele que, como nós,
desafia o poder das forças do Maligno e é capaz de chegar até aqui, é condenado ao pior
dos suplícios: viver eternamente...
"Mas dizia-te que fui o primeiro a desafiar Horemheb. Con-tar-te-ei por quê.
Quando os rebeldes, graças à traição do general, conquistaram o domínio da pirâmide
subterrânea, na tentativa de salvar o Grande Tesouro, aventurei-me por ela. Tive de
padecer sofrimentos idênticos aos que experimentaste. Finalmente, quando a segunda
adaga estava em minhas mãos, fui projetado da névoa de gelo até a "câmara couraçada", e
minha desilusão foi completa: o Tesouro havia desaparecido. Desde aquele momento,
como te dizia, vivo nesta prisão... Depois, tal como tu, outros homens "Pi" também o
tentaram... com o mesmo resultado.
Amen acompanhou essas palavras com um gesto, apresentando os homens que o
escutavam.
- Por que vos chamais homens "Pi"?
- Somos, como tu e Nietihw, buscadores da Verdade. "Pi" é um símbolo: o número
transcendental, racional e infinito que tende à Perfeição. Como "pi", toda alma
evolucionária que anseia pela Verdade vai modificando a "quadratura" de suas
imperfeições até talvez, algum dia, trocar sua tosca personalidade pela brilhante infinitude
do "círculo". Mas tal momento se acha ainda muito distante...
E o Kheri Heb, mostrando a figura de cabeça quadrada em seu emblema,
acrescentou:
- Por isso, com toda humildade, conscientes do nosso longo caminho para a
Perfeição, nós, os homens "Pi", incluímos em nosso escudo o homem de cabeça quadrada:
a primeira etapa para esse irrenunciável encontro com a Verdade.
Sem querer, Sinuhe se perguntou de que valiam agora aquelas boas intenções. Que
sentido tinham os homens "Pi"?
Amen, lendo seu coração, respondeu-lhe assim:
- Precisamente os fracassos (ou aparentes fracassos), querido irmão, constituem o
meio mais eficaz para que algum dia se possua a Verdade. E posso adiantar-te que nossa
falida tentativa de recuperar o Grande Tesouro não foi em vão...
Sinuhe captou uma chispa de esperança nos olhos do Grão-Mestre. A que se
referiria Amen-Em-Apt?
- Também os rebeldes cometem erros, Sinuhe...
O Kheri Heb abandonou a coluna de mármore e caminhou para um dos altos muros
do hexágono. Uma vez ali, girou sobre os calcanhares e, apontando para a reluzente
parede que estava às suas costas, exclamou:
- Solônia te espera... Dá-nos tempo para abrir o ano...
Sinuhe compreendeu. Se a "câmara blindada" se achava realmente sob o controle
permanente dos rebeldes, o mais provável seria que, naqueles momentos, estivessem
sendo observados. Amen lhe havia falado em código. E embora houvesse entendido
apenas a primeira frase, aceitou o jogo. Os homens "Pi", sem dúvida, sabiam alguma,
coisa. Podia ser que ao longo da milenar residência na câmara, eles tivessem descoberto
algum meio para sair da pirâmide.
O sacerdote se reintegrou ao grupo e prosseguiu em suas explicações:
- Horemheb e todos os que habitam a Torre de Amon (desde Belzebu até o último
dos seus 40 000 "medianos" rebeldes) sabem que o Grande Tesouro está a salvo, a menos
que alguém consiga penetrar em seus domínios. E ainda assim, tal missão seria quase
impossível. Mas, para ter acesso à Torre infernal, é preciso primeiro chegar até Solônia, o
serafim que guardou as portas do Éden e que brande a espada "iluminadora". Nós somos
os únicos que conhecemos o meio para encontrá-lo e os seguidores de Lúcifer sabem
disso. Portanto, nada melhor para eles do que manter-nos com vida e perfeitamente
vigiados nesta "câmara couraçada". Se alguém, alguma vez, pudesse ter nas mãos a
espada de Solônia, os rebeldes teriam descoberto o segredo, tornando mais difícil ainda a
recuperação dos arquivos. Eles, como sabes, estão conscientes da transcendência que teria
para o mundo o conhecimento do que verdadeiramente aconteceu no passado. Se a
humanidade conquistasse essa parte da Verdade, as mentes de muitos nobres
"iuranchianos" se abririam e talvez o caos e a confusão atuais fossem aliviados pela íuz e
pela esperança.
Amen pronunciou então uma palavra que trouxe velhas lembranças ao
investigador.
- Os rebeldes têm também notícias de um Corpo de Reserva, chamado "da
Finalidade", que congrega uma série de "finalistas" em IURANCHA e entre cujas missões
figura a busca do Grande Tesouro...
- Os reservistas! - exclamou, recordando-se da misteriosa mensagem de Ra, no
ático do velho casarão. - "Sou seu enlace mediano como reservista."
O sacerdote assentiu com gesto grave.
- Dize-me Amen: em que consiste esse Corpo de Reserva da Finalidade?
- Já que Belzebu e seus "medianos" o sabem, entendo que te posso falar disso. Esse
"Corpo" é formado (nas diferentes épocas de IURANCHA) por um reduzido núcleo de
humanos evolucionários, autóctones do planeta, homens e mulheres, escolhidos pelos
diretores espirituais do Reino para colaborar no ministério da misericórdia e sabedoria
junto aos filhos do tempo, seus irmãos. Quando seres humanos são eleitos "reservistas" ou
indivíduos "destacados" nos planos dos administradores celestes, o chefe dos serafins
planetários confirma sua agregação temporal ao corpo seráfico, designando para eles
guardiães pessoais do Destino. Em geral são escolhidos pelas seguintes razões:
"Pela aptidão especial para serem secretamente treinados em missões de urgência.
"Pela consagração sincera a causas sociais, econômicas, políticas, espirituais ou de
qualquer outra índole e às quais se tenham entregado sem visar a recompensas ou
reconhecimento humano.
"Por último, por estar de posse de um Harmonizador Mental dotado de
extraordinária variedade de talentos e que, provavelmente, tenha já adquirido grande
experiência em outros mundos, na luta pela Justiça e pela Perfeição.
"Cada mundo habitado utiliza uma média de 70 Corpos de Reserva. Em
IURANCHA, nosso planeta, há 12 grupos de "reservistas". Um para cada bloco de
"supervisão seráfica". Na atualidade, tua Era, a totalidade de membros desse Corpo de
Reserva soma 962. O grupo mais reduzido consta de 41 e o mais nutrido, de 172. Com
exceção de uma vintena de humanos, os demais "reservistas" não têm consciência de
terem sido preparados para as emergências planetárias. Perguntar-te-ás como são (como
fostes) treinados. A maior parte, por uma ação meticulosa, lenta e conjugada mentalmente
aos seus respectivos Harmonizadores e anjos da guarda. Freqüentemente, outras muitas»
personalidades celestes participam também dessa preparação espiritual inconsciente, sem
esquecer, claro, os "medianos" leais que prestam serviços esplêndidos à causa.
- Então Ra, o disco, não era outra coisa senão um desses "medianos" leais...
Amen concordou com a cabeça.
- Essas criaturas - prosseguiu o Kheri Heb, esclarecendo assim outra das velhas
dúvidas de Sinuhe - nasceram há já muito tempo e quase acidentalmente. Foram a
prodigiosa conseqüência de um experimento mental, levado a cabo entre dois altos
membros do Estado-Maior de Caligastia: um varão e uma mulher. Essa "união" espiritual
deu um fruto singular: a aparição sobre IURANCHA (não o confundas com um
nascimento) de um ser intermédio entre a natureza física e densa, como a nossa, e a
espiritual. São invisíveis aos olhos dos "iuranchianos", mas podem materializar-se em
diferentes formas e ocasiões. Há 500 000 anos, quando Caligastia era ainda um príncipe
planetário leal a Micael, os 100 membros que formavam seu Estado-Maior "procriaram"
assim um total de 50 000 "medianos", que prestaram valiosos serviços ao maravilhoso
plano de elevação física e mental da humanidade. Mas, ao acontecer a grande revolta,
apenas 9 800 desses 40 000 permaneceram fiéis a Micael. Todos os demais (Vana, por
exemplo) foram engrossar as fileiras dos rebeldes, e seu quartel-general é a Torre de
Amon, de onde se estendem pelo planeta, semeando a confusão e a iniqüidade. Durante
séculos e séculos, inclusive agora, no teu século XX, muitos humanos os confundiram
com "diabos" ou "demônios". E talvez tenham razão...
- E Belzebu? - perguntou um Sinuhe, fascinado.
- Continua sendo o chefe dos "medianos" desleais. Na atualidade é o custódio do
Grande Tesouro.. .
- Alguma coisa eu não vejo claramente. Se esses "medianos" são de uma natureza
intermediária, isso significa que são imortais?
- Foram-no, querido Sinuhe. Foram-no...
- Que queres dizer?
- Nós, apesar de levarmos o título de homens "Pi", não conhecemos toda a Verdade
sobre o passado de IURANCHA; essa Verdade, como outras de valor incalculável, está
depositada no Grande Tesouro. Só posso adiantar-te que a perda da imortalidade por parte
de Belzebu e seus sequazes teve muito que ver com sua própria rebelião..., e com a
Árvore da Vida. Mas não atormentes nossos corações com novas perguntas sobre aqueles
sucessos. Se algum dia alcançares os arquivos secretos, tuas dúvidas serão satisfeitas...
- Mas lembro-me de que Vana, o "mediano" rebelde - continuou Sinuhe, fazendo
ouvidos moucos à súplica de Amen - foi devolvido à vida com a ajuda dos "ibos".
O Kheri'Heb considerou em sua verdadeira medida o zelo do jovem e impetuoso
"iuranchiano". Mas, ao contrário do que esperava Sinuhe, eludiu o tema com a seguinte
insinuação:
- E por que achas que os rebeldes capturaram Nietihw?. . .
O investigador se deu conta de que, efetivamente, quando a filha da raça azul
desapareceu no poço da câmara dourada, conservava o pequeno frasco com os mágicos
"ibos" ou grânulos de "tempo", com os quais devolvera a vida a Samej, a serpente, e a
Vana.
- Então, Nietihw...
- Sim, foi levada para a Torre de Amon. E sua preciosa carga de "ibos", requisitada
por Belzebu. Essa "areia do tempo", que contribuiu decisivamente para o vosso "salto" a
esta outra realidade, pode permitir agora aos rebeldes uma prolongação de sua longa,
embora mortal existência. . .
Árvore da Vida, "medianos", Nietihw, Torre de Amon, Grande Tesouro. . . Tudo
aquilo dançava na torturada alma de Sinuhe. Agora, mais que nunca, tinha de consumar a
missão; e com êxito. Mas como?
Amen-Em-Apt pousou a mão direita sobre o ombro esquerdo de Sinuhe.
Contemplou-o intensamente e, fazendo-se eco de seus próprios pensamentos, murmurou:
- Vejo que teu coração, longe de desfalecer, inflama-se e que desejas, mais que
nunca, a recuperação do Grande Tesouro. ..
O investigador assentiu. Cerrava os punhos de raiva.
- És um "reservista" digno, Sinuhe. A verdadeira tempera se mede sempre ante a
adversidade. Todos os que aqui estamos, prisioneiros da Mentira, fomos enviados pelos
correspondentes Corpos da Reserva. Somos portanto "reservistas" como tu. Permite-me
que tos apresente. Eles são parte da História de IURANCHA. Quando souberes quem
representam, tenho certeza de que amarás um pouco mais a todos os humanos da Terra, e,
contigo, se voltares ao teu mundo, aqueles que, por sua mediação, souberem e fizerem seu
o testemunho que te vão oferecer. Mesmo que fosse somente para isso, caro Sinuhe, valeu
a pena que tenhas chegado até aqui...
Observou-os, perplexo. Que espécie de informação tinham reservada para ele? A
quem representariam?
De novo foi Amen, o sacerdote, quem tomou a palavra, iniciando um incrível
relato. Uma história que marcaria as idéias do investigador sobre as raças humanas da
Terra...
- A humanidade de IURANCHA, tal como te ensinou a Escola da Sabedoria, é
velha. Desde a aparição daqueles gêmeos (Àdon e Fonta), 10 000 séculos se passaram. A
primeira metade de sua História corresponde à época que precedeu a chegada do primeiro
príncipe planetário. A segunda começou com a tomada de poder de Caligastia, faz agora,
como sabes, 500 000 anos terrestres. Os arqueólogos e antropólogos dos teus tempos
chamam aos últimos milênios dessa segunda metade a Idade da Pedra...
A verdade é que Sinuhe não sabia aonde queria chegar o Grão-Mestre. Tudo aquilo
ela já conhecia mais ou menos.
- Pois bem - prosseguiu Amen -, há um milhão de anos, aqueles homens foram
submetidos a uma dura prova. Por puro instinto, fizeram por evitar cruzamento com as
tribos de símios. Mas as terras altas do Tibet, com seus nove mil metros, impedia-lhes
emigrar rumo ao este. Por outro lado, os andonitas (os descendentes de Andon) tampouco
puderam encaminhar-se para o sul ou para o oeste. Naqueles tempos, o mar Mediterrâneo
era muito mais extenso, chegando até o oceano Indico. Quando lutaram para abrir
caminho até o Norte, os gelos lhes fecharam a passagem. Esse "enclausuramento" foi
registrado como uma das emoções "religiosas" mais antigas do homem: montanhas
inacessíveis, à direita, água à esquerda, gelo ao norte e ao sul, seus "primos" os primatas,
aos quais repudiavam. Desse "sentimento" surgiu profundo sentido de impotência que,
com o tempo, daria lugar a tímidas e incipientes manifestações "religiosas".
"À diferença dos símios, aqueles andonitas evitaram freqüentemente os bosques, Ê
fácil constatar que a evolução progrediu em ritmo menos lento em terrenos abertos e
quando, sobretudo, tiveram os humanos de enfrentar o frio e a fome. E em sua
peregrinação iniciada para o Norte, os andonitas (freados pela terceira glaciação: a que
vossos geólogos qualificam como a "primeira") estimularam grandemente sua atividade,
fruto das privações e castigos de climas tão rigorosos.
"Aquele dado, o da primeira glaciação, é interessante" - pensou Sinuhe -. "De
acordo com a Geologia moderna, esse período pode ter-se iniciado há um milhão de anos,
com duração aproximada de cem mil anos. As afirmações de Amen não estão, por
conseguinte, e no momento, em desacordo com a ciência do século XX..."
E o Kheri Heb, como se lhe tivesse lido os pensamentos, sublinhou:
- As duas glaciações precedentes (que vossos estudiosos não levam em conta) mal
se estenderam pela Europa setentrional. Durante essa terceira, ou "primeira" época de
gelo, como prefiras, a Inglaterra se comunicava com a França. Eram unidas por terra,
assim como a África e a Europa, pela ponte terrestre da Sicília. Esses "canais", assim
como aquele que vinculava Java pelo Leste, tiveram grande importância nas migrações
andonitas. O chamado "homem de Java", considerado por vossos antropólogos como um
pitecantropo, foi um daqueles andonitas que alcançaram o Leste e que depois
prosseguiram seu caminho para a Tasmânia.
"Ao contrário destes últimos, os andonitas que emigraram para o Oeste viram-se
menos contaminados pelos cruzamentos com as raças simiescas. Com o tempo, fortes
contingentes dos andonitas que se haviam espalhado a leste, degenerando-se em seus
contínuos cruzamentos com os primatas, retornaram para o Norte, unindo-se assim aos
homens mais puros, colocando a primitiva raça humana à beira da extinção como tal
espécie. Foram tempos muito difíceis para os que ainda conservavam o culto ao "Gerador
do Alento". ..
"Por volta de 900 000 antes de Micael, a sabedoria que Onagar soubera infundir
nos andonitas chegou ao seu mais baixo nível. O culto, a incipiente cultura e até mesmo o
trabalho com o sílex estiveram a ponto de desaparecer.
"Naquele tempo, tribos de bastardos procedentes do sul da França, perigosamente
entrecruzados com criaturas simiescas dos bosques, chegaram à Inglaterra. Eram
arremedos humanos: faltava-lhes o sentimento religioso e mal dominavam o sílex e o
fogo. Pouco depois seguiu-lhes um povo prolífico e um pouco superior (a denominada
"raça de Heidelberg"), cujos descendentes se estenderam por todo o continente: desde os
gelos nórdicos até os Alpes e o Mediterrâneo.
"Em todo esse período de decadência, os chamados povos de Foxhall na Inglaterra
e as tribos de Badonan, ao noroeste da Índia, souberam conservar alguns dos costumes de
Andon, assim como restos da cultura de Onagar. Aqueles homens de Foxhall, os mais
ocidentais de então, lograram transmitir seus conhecimentos sobre o sílex a seus
sucessores, os remotos antepassados dos esquimós.
Aquela, se não se enganava, era a primeira vez que Sinuhe ouvia falar de Badonan.
Intrigado, solicitou mais informação.
- Sim, memoriza bem esse nome (Badonan, tataraneto de Andon), pois de sua
estirpe procedem estes irmãos que te contemplam. ..
- Os homens de cor?
- Exato. Mas antes - pediu o Kheri Heb - permite-me que conclua esta parte da
História de IURANCHA.
- Além dos povos de Foxhall, a Oeste, o grupo de Badonan converteu-se em foco
vital para a evolução do homem. Já verás por quê. ..
"Esse núcleo humano vivia nos contrafortes das terras altas do noroeste da índia.
Foram os únicos herdeiros dos famosos gêmeos que jamais praticaram sacrifícios
humanos. Os badonitas ocupavam vasta área rodeada de bosques e cortada por numerosos
rios. A caça era abundante; prosperaram, construíram toscas casas de pedra ou habitaram
grutas ou galerias subterrâneas. Há explicação para a escolha desses habitats altos.
Enquanto as tribos do Norte temiam o gelo, aquelas que viviam perto de seus países de
origem viram-se também aterrorizadas, mas por inundações contínuas. Muitas dessas
tribos viram desaparecer e emergir a península da Mesopotâmia, e esse medo ancestral do
mar e das cheias acabou por empurrá-las para o refúgio das terras elevadas. Hoje, nos
atuais montes de Siwalik, ao norte da Índia, encontra-se a maior parte dos restos fósseis
que cobriram a transição entre o homem e os grupos pré-humanos.
"Mas, pelo ano 850 000 antes de Micael, as tribos de Badonan iniciaram uma série
de guerras com seus vizinhos, os bastardos cruzados com símios. E em menos de mil anos
os destruíram ou expulsaram para os bosques do sul; com isso fortaleceram e melhoraram
o ramo andônico. Aqueles descendentes da Badonan ocupariam lugar de destaque na
evolução: deles nasceria a raça de Neanderthal.
- Neanderthal? - Sinuhe perguntou, incrédulo. - O homem de Neanderthal?
Amen disse sim com breve e significativo sorriso.
O investigador sabia que os ossos desse homem primitivo, achados
originariamente no vale de Neanderthal, junto à localidade de Mettmann, não longe da
cidade de Düsseldorf no ano de 1856, constituíam fonte de polêmicas constantes entre
arqueólogos. Muito especialmente na hora de fixar-lhe a verdadeira origem. Por isso, as
revelações do Kheri Heb, concretizando a "pátria" da raça de Neanderthal nas terras altas
do noroeste da índia, deixaram-no atônito.
- Aqueles povos (que depois seriam batizados pela tua civilização como homens de
Neanderthal) eram excelentes caçadores e melhores viajeiros. Desde seu encrave inicial
na Índia, partiram para o Leste, penetrando na China e para o Oeste e para o Sul,
dominando a África e a América do Norte, respectivamente. Sua influência foi
indiscutível por meio milhão de anos mais ou menos.
"No ano 800 000 antes de Micael, a caça era muito abundante. Cervídeos, elefantes
e hipopótamos deslocavam-se pela Europa. O gado era numeroso, assim como os cavalos
e os lobos. E os homens de Neanderthal souberam fazer uso da carne abundante.
As tribos assentadas na França foram as primeiras a estabelecer a prioridade de
eleição da esposa para aqueles membros do clã que demonstrassem maior habilidade na
caça.
"A rena foi particularmente útil aos homens de Neanderthal. Utilizavam-nas como
fonte de alimento, suas peles para cobrir-se e as partes duras para fabricar ferramentas.
Não eram humanos muito inteligentes, porém trouxeram progressos aos trabalhos de
sílex, chegando a alcançar quase o mesmo nível dos da época de Andon. Com eles
surgiram os machados e as enxadas de sílex atado a cabos de madeira.
"E, em 750 000 antes de Micael, por causa da quarta glaciação, aqueles povos
viram-se obrigados a deslocar-se para o Sul. Cinqüenta mil anos mais tarde, quando o
pior período de gelo já conhecido na Europa iniciava seu retrocesso, as tribos puderam,
finalmente, retornar aos países de origem. O clima era fresco e úmido; os bosques
voltaram a cobrir aquelas terras. Graças à ponte terrestre da Sicília, numerosos animais
africanos ganharam a Europa, que viu multiplicarem-se leões, rinocerontes, hienas e
elefantes.
"Pela metade desse novo período interglaciário (por volta de 650 000 antes de
Micael), o clima se tornou tão cálido que o gelo e a neve dos Alpes desapareceram. Mas,
pelos anos 550.000 a. M., os gelos avançaram novamente e os humanos foram
empurrados para o Sul. Dessa vez, entretanto, as tribos dispunham de ampla faixa de terra
que ia em direção ao nordeste, na Ásia, estendendo-se entre a capa glacial e o mar Negro,
que formava, então, um grande anexo do Mediterrâneo.
"Nas épocas seguintes às invasões glaciárias, a cultura humana pouco ou nada
prosperou: as hierarquias celestes temeram pela vida inteligente em IURANCHA.
Naquele último quarto de milhão de anos, os povos primitivos limitaram-se a pescar e a
caçar, retrocedendo, até mesmo, em relação a seus antepassados, os andonitas.
"Durante essas idades tenebrosas, a humanidade chegou ao nível mais baixo de sua
História. O culto do homem de Neanderthal não ia além de uma vergonhosa superstição,
um medo animalesco das nuvens, da bruma, das névoas. Progressivamente se foi
desenvolvendo uma religião nascida do pânico diante das forças da Natureza, com o fito
de granjear para si sua clemência à base de sacrifícios humanos. Uma das características
mais tristes e degradantes do homem de Neanderthal nasceu, precisamente, do seu horror
à escuridão. Não podiam compreender por que o Sol os deixava a cada dia para mergulhálos
nas trevas. Tão-somente a presença da Lua aliviava a pavorosa situação. Por isso,
quando a Lua não aparecia no céu, as tribos começaram a oferecer-lhe sacrifícios
humanos para suplicar que voltasse a iluminar-lhes a noite. "E chegamos, enfim, ao ano
500 000 antes de Micael. Data verdadeiramente histórica para a humanidade de
IURANCHA. ..
Sinuhe creu que seu informante, ao mencionar-lhe aquele momento crucial na
História da Terra, iria referir-se à usurpação de Caligastia e, talvez, a um dos assuntos que
o havia levado até ali: as causas da rebelião de Lúcifer. Amen, o "Verdadeiro Silencioso",
e os homens de cor pareciam conhecer toda a verdade sobre IURANCHA. Mas não foi
assim.
- Há alguns momentos - reencetou o branco sua exposição - um nome te chamava a
atenção: Badonan, Tua intuição não te enganava. Esse tataraneto de Andon e Fonta, além
de propiciar o nascimento da raça de Neanderthal, foi o "tronco" mater de que brotariam
as seis raças de cor que tens diante de ti. Escuta como se deu aquele singular
acontecimento, de que a ciência de tua época sofre total ignorância.. .
"Naqueles tempos (faz agora meio milhão de anos) as tribos badonitas das terras
altas do noroeste da atual Índia viram-se envolvidas em uma luta racial que se prolongou
durante mais de cem anos. Após a contenda sangrenta, os sobreviventes (uma centena de
famílias, apenas) se tornaram os mais inteligentes sucessores dos gêmeos. E deu-se um
misterioso acontecimento. Acontecimento que seria a origem de todas, melhor dito, de
quase todas as raças humanas. ..
"Um casal que vivia na região nordeste dessas terras altas deu à luz uma prole tão
estranha como evolvida: dezenove filhos de cores diferentes. Era a família Sangik. Um
nome que foi um marco para a História...
"Os dezenove filhos, digo-te, não só eram mais vivos que seus contemporâneos
mas, principalmente, chamaram imediatamente a atenção pela cor da pele. Cinco eram
vermelhos; dois, alaranjados; quatro, azuis; dois, verdes; quatro, amarelos, e o resto
(outros dois), índigos. Curiosamente, essas cores se acentuavam à luz solar. E essa
peculiar característica dos Sangik se foi confirmando com os anos, quando os dezenove
filhos se misturaram com outros membros de sua tribo, procriando filhos da mesma cor
dos seus respectivos progenitores. A família Sangik pusera em IURANCHA a semente
das raças de cor.
Sinuhe examinou os silenciosos companheiros de prisão e começou a intuir o alvo
do relato de Amen-Em-Apt. A Antropologia moderna - a do seu mundo - levava e leva
decênios a discutir e polemizar sobre a origem do homem e das principais raças, tendo-se
formado, inclusive, duas grandes escolas: a policentrista e a monocentrista. A primeira -
lembrou Sinuhe - fundada por F. Weidenreich, supõe que o homem atual apareceu, por
evolução, em vários centros ou regiões do planeta, relativamente independentes e com
ritmos diferentes. Essa teoria - defendida por antropólogos tão esclarecidos como Debetz,
V. Alexeiev, Coon e L. Brace, entre outros - acentua que essa diversidade de gênese deu
lugar à formação das raças básicas da Terra: européia, negróide, australóide, mongolóide
etc. . . Baseiam suas conclusões no fato de os representantes das raças de hoje
continuaram guardando alguns traços parecidos com os dos fósseis típicos localizados em
territórios em que tais raças viveram algum dia.
Os seguidores da escola monocentrista, por seu lado, tais como Vallois, G. Olivier,
Howells, K. Oakley, Bunak e Roguinsky, para citar alguns, consideram que o homem
consumou sua evolução em um só centro ou região. Roguinsky, por exemplo, crê que o
Homo Sapiens surgiu em uma zona bastante ampla, que abarca a Ásia ocidental, parte da
Ásia central e meridional e o nordeste da África. Nessas zonas - afirma - cruzaram-se
vários grupos de "paleoantropos", enriquecendo a estrutura genética de suas povoações e
desencadeando assim a evolução do homem atual.
Se aquelas explanações do Kheri Heb estavam corretas, a escola monocentrista
tinha razão: as principais raças humanas teriam nascido em um só ponto do planeta - ao
nordeste da Índia -, tal como assegura Roguinsky quando indica, acertadamente, a Ásia
meridional.
- E por que dizes que aquele (o nascimento dos dezenove filhos de cor) foi um
acontecimento singular?
- Em um planeta ordinário - respondeu Amen - as seis raças básicas evolucionárias
de cor apresentam-se uma após outra. Já aqui, em IURANCHA (um mundo "decimal",
não o esqueças), aconteceu de uma só vez e no seio de uma só família. Em outros
planetas, além disso, a presença dessas raças é um fato que acontece pouco depois da
aparição dos primeiros seres humanos propriamente ditos. Em IURANCHA, se não fosse
um mundo experimental, deveria ter acontecido pouco depois da expansão dos andonitas.
Mas aqui, tal qual revelam os arquivos secretos, tudo se complicou. ..
Sinuhe captou a insinuação e, sem conter-se, soltou-lhe à queima-roupa:
__ Conheces o conteúdo desse Grande Tesouro.. .
Amen manteve-se sério. E, uma vez mais, arruinou as esperanças do seu irmão de
Loja.
__ Mesmo que assim fosse, és tu, e sobretudo a filha da raça azul, que deveis
descobri-lo por vós mesmos. É vossa a missão. . .
E o sacerdote, esgrimindo um sorriso que deixou perplexo o "iuranchiano",
acresceu:
- Além do mais, tudo isso, e nós mesmos, podemos ser uma ilusão a mais, criada
pelo Maligno para confundir-te... e perder-te.
A afirmação, embora aparentemente cruel, foi de valor inestimável para o
confiante Sinuhe. Mas. . . sigamos o curso dos acontecimentos. ..
- Se IURANCHA, como te dizia - continuou o Kheri Heb, como se não se
houvesse passado nada -, tivesse sido um planeta normal, a primeira raça de cor que teria
prosperado e dominado o mundo, muito antes que as outras, teria sido a vermelha: a mais
inteligente, arrojada e evoluída de quantas existem no universo..
- A vermelha? - repetiu o investigador, incrédulo... A que nós identificamos com a
dos índios "peles-vermelhas"?
Amen dirigiu-se ao homem vermelho e, tomando-o pelo braço, conduziu-o frente a
Sinuhe.
- Este é Onamonalonton. Um caudilho e chefe espiritual daquela primitiva raça
vermelha de IURANCHA. Ele, melhor do que eu, te falará do seu povo e assim
compreenderás o grande erro que comete a humanidade ao menosprezar seus atuais
descendentes. ..
O homem vermelho saudou Sinuhe com uma leve inclinação de cabeça. E,
cruzando os musculosos braços sobre o peito - à maneira indígena - falou assim:
- Meu povo (a raça vermelha) foi notável exemplo para a humanidade. Sob muitos
aspectos foi superior a nossos antepassados comuns, os gêmeos Andon e Fonta. Muito
cedo se destacaram pela inteligência e atividade, formando o primeiro Governo conhecido
do planeta. Eram monogâmicos e souberam preservar-se dos perigosos cruzamentos com
outras tribos inferiores ou simiescas. Mas, com o passar do tempo, tiveram graves
dificuldades com seus "irmãos", os homens amarelos da Ásia. Inventaram o arco e as
flechas e foram reconhecidos como bravos lutadores. Desgraçadamente, aqueles meus
antepassados, consumidos por contínuas lutas fratricidas, enfraqueceram-se e foram
expulsos da Ásia pelas tribos amarelas.
"Faz agora 85 000 anos, os sobreviventes vermelhos cruzaram o istmo de Bering,
penetrando na América do Norte. Depois, quando essa "ponte" terrestre desapareceu,
ficaram isolados dos irmãos e descendentes que povoavam outras regiões da Sibéria,
China, Ásia central, Índia e Europa. Mas estes últimos grupos, em virtude de
acasalamentos sucessivos, foram perdendo cor e identidade primitivas.
"O resto do meu povo (aquele que emigrou para a América) levou consigo muitos
dos ensinamentos e costumes de sua origem primeva. Seus antepassados imediatos
haviam tido oportunidade de conhecer e aprender as últimas atividades e ensinanças do
Quartel-General Mundial do príncipe planetário (Caligastia), embora, como aos demais
humanos evolucionários de então, a rebelião os submergisse em profundo caos.
Ao ouvir o nome de Caligastia, Sinuhe esteve a ponto de interromper
Onamonalonton. Ele sabia que a chegada, a IURANCHA do referido príncipe
praticamente coincidira com o providencial sucesso ocorrido na família Sangik. Mas se
conteve.
- Lentamente, aqueles primeiros povoadores da América foram olvidando os
ensinamentos. O nível espiritual e cultural baixou ao mínimo. Bem depressa, como
acontecera com seus primigênios, os povos vermelhos se enredaram em lutas, chegando à
beira do extermínio.
"Até que, faz agora 65 000 anos, a bondade do Pai Celestial me pôs em meio
àquelas gentes dizimadas e degradadas. E pelo espaço de 96 anos esforcei-me por
devolver ao meu povo o sentimento do culto ao "Grande Espírito". Durante longo tempo
da minha vida, o novo centro revitalizador dos homens vermelhos (meu quartel-general)
esteve entre as sequóias gigantes da atual Califórnia.
O investigador interrompeu, surpreso:
- Então, os índios "Pés Pretos"... Onamonalonton sorriu.
- Sim, esse povo é hoje um dos ramos diretamente vinculados ao meu tempo de
ensinanças.
Entretanto, a voz do cacique sofreu súbito declínio.
- Desgraçadamente, com o passar dos séculos, os homens vermelhos foram
ignorando e modificando instruções e orientações, e as guerras aniquilaram os elementos
mais valiosos Desde então, nenhum outro educador logrou devolver-lhes a luz. Tivessem
seguido meus ensinamentos, e a raça vermelha teria podido expandir-se em paz pelo
continente, proporcionando uma civilização brilhante. Essa trágica realidade agravou-se
pelo insulamento total dos primeiros homens americanos. Somente com a chegada dos
brancos quebrou-se essa situação. Tarde demais, porém. O orgulho do meu povo e a
iniqüidade dos segundos terminaram por submergir o homem vermelho na destruição e no
obscurantismo quase absolutos.
Amen tinha razão. A partir desse instante - ao conhecer a que supunha ser a
verdadeira história das raças humanas de cor -, Sinuhe compreendeu que o passado ds
IURANCHA era muito mais intenso e rico do que aquilo que sempre imaginara. Um
passado que, se desvendado, só poderia unir a todos os mortais deste mundo confuso,
demonstrando, por exemplo, que a pretensa supremacia de algumas dessas raças não
passa de quimera, fruto da ignorância.
Quem imaginaria que todos os homens de cor procedem no fundo de uma mesma
família e que, em conseqüência, são "irmãos' no mais literal dos sentidos!. . .
Entusiasmado, Sinuhe se dispôs a escutar o segundo discurso: o que fazia alusão
aos enigmáticos homens cor de laranja.. .
- Homens alaranjados na Terra?
Custava-lhe muito adaptar-se à idéia. Mas, por outro lado, Por que rechaçá-la? Que
sabemos na realidade do passado remoto
do nosso mundo? A história de IURANCHA está repleta de "achados" e
"afirmações" que foram considerados "científicos" nas diferentes épocas em que surgiram
ou se promulgaram e que hoje só provocam rubor nessa mesma "casta" científica. ..
Exemplos? No século XVII o doutor James Ussher, arcebispo de Armagh (Irlanda),
pensador de prestígio reconhecido, chegou a determinar o dia exato da criação do mundo:
22 de outubro do ano 4 004 antes de Cristo, às oito da tarde... Essa conclusão "científica",
baseada em laboriosos cálculos em torno da duração das vidas dos personagens bíblicos,
foi aceita e até corrigida e matizada por outro reconhecido cientista do mesmo século:
nada menos que o vice-chanceler da Universidade de Cambridge, John Lighfoot,
pedagogo eminente. O bom Lighfoot, depois de sisudos e "científicos" estudos, precisou o
momento exato da criação de Adão; 23 de outubro do mesmo ano - 4 004 a.C. -, às nove
da manhã! pelo meridiano de Greenwich, claro.
Mais exemplos? Na primeira metade do século passado, Lorde Kelvin atreveu-se a
saltar a barreira do milhão de anos - antigüidade "estabelecida" pela ciência para o planeta
- anunciando, apesar de seus princípios religiosos, que a Terra devia ter, pelo menos, uma
idade de vinte e quatro milhões de anos. Kelvin foi o primeiro cientista a se atrever a
tanto.. . Hoje sabemos, pelo relógio de urânio, que IURANCHA é "algo" mais velha: só 5
000 milhões de anos mais.. .
Louis S. B. Leakey, diretor do National Museum Centre for Prehistory and
Palaeontology de Nairobi (Quênia), um dos grandes revolucionários da Paleontologia,
recordava ao mundo em Paris, em 1 969, "que há mais de um século, Darwin já se atrevia
a predizer que o berço da humanidade seria descoberto na África Mas foram poucos os
que acreditaram nele. . ."
Em tempos mais próximos que os de Darwin, em 1900, o doutor Deyffarth,
teólogo de Leipzig, escrevia um livro em que dizia textualmente:
"... Ficou incontestavelmente demonstrado que no dia 7 de setembro do ano 3 446
antes de Nosso Senhor Jesus Cristo terminou o dilúvio e se inventaram os alfabetos das
raças do mundo."
Por que prosseguir na enumeração de exemplos sobre "verdades científicas",
obviamente superadas?
Amen-Em-Apt apresentou então o segundo homem de cor: o de pele alaranjada.
- Este é Porshunta, líder também do povo laranja...
O homem de cabelos albinos repetiu a breve reverência e com palavras enxutas
expôs-lhe a não menos trágica história de sua gente:
- Meu povo também soube abeberar-se nas escolas de Dalamachia, sede do
príncipe planetário. Durante muito tempo destacou suas delegações para a "cidade
modelo", instruindo-se com a cultura e o progresso chegados de Jerusem e Edência, as
capitais do sistema e da constelação, respectivamente.
"Quando o Mediterrâneo se retirou para o Oeste, minha raça foi a primeira a
aventurar-se em uma peregrinação para o Sul, entrando na África: Ali destacou-se
sobretudo na arte das construções. E, embora com os milênios (e também a partir da
rebelião do Maligno) fosse naufragando na escuridão espiritual, a bondade do Pai
Celestial me conduziu até eles, faz agora 300 000 anos. Minha sede, em Armageddon, foi
outra oportunidade, e a vida espiritual e cultural renasceu com força. Mas a chegada de
outra raça irmã (a verde) marcaria o princípio do fim de meu povo infortunado. As
batalhas foram constantes e o último choque, no vale do Nilo, conferiu o triunfo aos
homens verdes. Meu povo, dizimado, dispersou-se, sendo absorvido pelos vencedores e,
finalmente, pela raça índiga. E há uns 100 000 anos o homem alaranjado desapareceu por
completo.
Ao guardar silêncio, um terceiro homem - o de cor verde - tomou entre as suas as
mãos de Porshunta, exclamando com melancolia:
- Eu, Fantad, chefe da raça que não soube guardar em seu coração o sagrado dever
da fraternidade, quero expor-te agora como meu povo (com justiça) recebeu o mesmo
pagamento que reclamara dos homens cor de laranja. . .
E o "reservista" de olhos negros e profundos como a noite, falou assim:
- A História de IURANCHA sabe que a raça verde foi um dos grupos humanos
menos capacitados, debilitados sempre por suas contínuas emigrações. Quando minha
vida se extinguiu (faz 350 000 anos já) a dispersão do meu povo foi total e, com isso, sua
decadência moral e cultural. A raça verde se dividiu então em três grupos. Os dó Norte,
que acabaram como escravos dos amarelos e dos azuis. Os do Oriente, que se uniram a
outras tribos da Índia. Restam ainda alguns descendentes, na atualidade, entre os
chamados hindus. E os que se dirigiram para o Sul, penetrando na África. Estes, como
sabes, massacraram os homens laranja. Os chefes destes últimos colonizadores verdes, da
remota ordem dos gigantes, chegaram a medir até 2,40 e 2,70 metros. Seriam mitificados
depois através de muitas lendas e tradições.
"Mas estes sobreviventes vitoriosos seriam igualmente subjugados pelos povos
índigos, os últimos a emigrar desde o centro primigênio "Sangik", na Índia, e que os
absorveram.
- Como podes comprovar, Sinuhe - interveio o homem amarelo -, a história das
raças humanas tem sido sempre, desde suas origens, contínuo e trágico batalhar entre
irmãos. A do meu povo, embora o final não tenha sido tão desgraçado, está igualmente
repleta de sangue, obscurantismo e desventura.
O homem de aspecto mongol guardou silêncio, aguardando que Amen o
apresentasse.
- Singlanton, guia da raça amarela - anunciou o Kheri Heb -, falar-te-á de seu
povo, o mais pacífico de IURANCHA.
- Com efeito - prosseguiu Singlanton - se meu povo conseguiu sobreviver, terá
sido, especialmente, porque há 100 000 anos (data em que a bondade do Pai Celestial me
concedeu a vida neste mundo evolucionário), até os tempos atuais da China moderna, as
tribos amarelas, em geral, têm sido dóceis e pacíficas de espírito. Nossos remotos e
primitivos antepassados foram os primeiros a abandonar a caça, estabelecendo-se em
comunidades que souberam estimular a vida familiar e a agricultura. Em inteligência
eram inferiores a nossos irmãos, os homens vermelhos, mas, social e coletivamente,
conseguiram superar a todos os povos "Sangik", vindo a ser os fundadores do que
poderíamos chamar "civilização radial". Esse sentido do fraterno, que não os abandonou
nunca, permitiu-lhes viver em comunidade, tornando realidade seu total e definitivo
domínio da Ásia.
"Jamais se distanciaram dos centros de influência espiritual do mundo, embora a
apostasia do príncipe planetário os houvesse submetido (talvez mais que a qualquer outro
povo) a um insula-mento e a uma postura impenetrável, que chegaram até os dias do teu
século XX...
Uma vez ou outra, no transcorrer das exposições dos homens de cor, a rebelião de
Lúcifer aparecia como a "grande desgraça" de IURANCHA. E Sinuhe confirmou suas
suspeitas: aquela insurreição remota e quase ignorada marcou trágica e decisivamente
todas as raças do mundo. Mas por quê? Que teria ocorrido, na realidade, para que os
povos da Terra se vissem assim condenados às trevas?
A resposta - ele o sabia - estava no Grande Tesouro...
Sinuhe aguardou a apresentação seguinte: a dos homens azuis. Aquela raça, de
traços esquimós, havia-lhe causado emoção especial. Talvez, involuntariamente, a
associara com sua querida companheira. Ela, afinal de contas, era a última, ou uma das
últimas descendentes da chamada "raça azul". Tratar-se-ia da mesma? Ou, pelo contrário,
como já lhe haviam assegurado, os ancestrais de Nietihw nada teriam que ver com esses
"azuis"?
Orlandof, o homem azul, depois de cumprimentar Sinuhe, também com leve
inclinação de cabeça, acedeu de boa vontade ao pedido de Amen e expôs a odisséia de seu
povo com as seguintes e singelas frases:
- Os azuis, minha raça, foram homens inquietos. Inventaram o dardo e muitos dos
rudimentos das artes atuais. Tinham a força cerebral de seu irmão, o homem vermelho, e
os sentimentos do amarelo. Durante milhares de anos beberam também das fontes de
Dalamachia. Quinhentos anos antes da queda de Caligastia (faz agora 200 000 anos), a
bondade do Pai Universal me colocou à frente do meu povo que conheceu, então, seu
máximo ressurgimento espiritual. Mas, tal como te anunciaram meus irmãos "Sangik", a
tempestade que se seguiu à rebelião de Lúcifer mergulhou os homens azuis em idêntica
confusão; e eles retrocederam em sua evolução. E mil guerras intestinas explodiram.
"Os achados arqueológicos efetuados na Europa e que, segundo vossa
classificação, correspondem à Idade da Pedra, pertencem em grande parte a esqueletos,
ferramentas e objetos decorativos daqueles primitivos homens azuis. E hoje, essa que
chamais "raça branca" é a descendente do meu povo.
Sinuhe, perplexo, rogou a Orlandof que repetisse aquilo.
- Com efeito, a raça branca de IURANCHA é conseqüência direta dos povos azuis,
ligeiramente modificados pelos cruzamentos com as raças amarela e vermelha. O
resultado ficaria definitivamente alterado com a derradeira e mais importante
contribuição: a segunda "raça azul ou violeta", à que pertence Nietihw...
O investigador, incansável, tratou de obter mais informações sobre essa segunda
raça. Como surgiu na Terra? De onde procedia? Por que foi tão importante para o que
hoje é a raça branca?
Orlandof se negou. E Amen tornou a lembrar-lhe que "essa parte da Verdade" ele
só poderia encontrá-la nos arquivos secretos. ..
E, ignorando as súplicas de Sinuhe, tomou pelo braço o gigantesco homem negro,
dizendo:
- E este, por último, é o grande chefe Orvonon, supremo educador da raça dos
homens índigos. Escuta-o.
O enorme negro, ao sorrir, deixou a descoberto branca e ordenada fileira de dentes.
Apesar do talhe, havia nele, como nos companheiros, uma doçura inata.
- Como terás imaginado - falou com voz profunda - meu povo, ao deixar as terras
altas do noroeste da índia, ocupou o continente africano. E nunca saiu dele, com exceção
daqueles que foram escravizados. Devo reconhecer também que, ao contrário dos
vermelhos, meus irmãos foram sempre os mais atrasados do ponto de vista cultural.
Minha raça, isolada como a vermelha, não pôde beneficiar-se da ascensão a todos os
níveis que representou a "contribuição" da segunda raça "azul".. .
De novo aquela misteriosa "contribuição". E Sinuhe sentiu o quanto se consumia
de curiosidade...
- Depois de meus dias em IURANCHA, a fé dos homens negros no "Deus dos
Deuses", que me esforcei por restaurar, se foi apagando aos poucos, embora eles não
perdessem de todo o íntimo sentido de adoração ao oculto e desconhecido.
- Estes que tens diante de ti, resumiu Amen-Em-Apt, descendente dos homens
azuis -, foram os seis grandes guias (talvez hoje, em teu tempo, pudesses chamá-los
profetas) das raças de cor originárias do planeta. Mas, ao longo da História de
IURANCHA, outros muitos educadores foram postos entre os homens para iluminar-lhes
o caminho, especialmente no período de obscurantismo que mediou entre a rebelião de
Caligastia e a chegada dos segundos "azuis" ou "violetas". ..
- Por que falais de "azuis" ou "violetas"?
- Se a Suprema Inteligência te iluminar e conseguires chegar aos arquivos secretos
te darás conta de que a diferenciação não tem a menor importância.
Amen, uma vez mais, respondia com evasivas.
- O certo é - argumentou Sinuhe, mudando de tática - que o "plano" celeste, ao
menos com o nosso planeta, não parece ter dado bons resultados. A presença das raças de
cor só serviu para multiplicar a violência e o ódio.
- Tens razão. . . até certo ponto. O "plano" da Divindade é bom. Erros posteriores
são conseqüência da ignorância dos mortais ou, como no caso de IURANCHA, da terrível
involução provocada pela rebelião. . . Mas as raças, em si mesmas, não são negativas. Ao
contrário. Dar-te-ei algumas razões: a variedade, por exemplo, é indispensável para
permitir amplo funcionamento da seleção natural. Com o cruzamento de vários povos,
quando são portadores de fatores hereditários superiores, conseguem-se raças melhores e
mais fortes. Aqui na Terra, entretanto, como já insinuamos, falhou o último "passo": a
revitalização dessas raças pela contribuição dos segundos "azuis", também chamados
"ascensores biológicos".
- "Ascensores biológicos"? - pressionou Sinuhe.
O Kheri Heb, com um sorriso de cumplicidade, continuou enumerando razões que,
em sua opinião, justificam a existência das raças de cor:
- A diversificação das raças, além disso, favorece competitividade sã. E não te
esqueças de que os diferentes estatutos dessas raças e dos grupos que as integram são
essenciais para o cultivo da tolerância e do altruísmo humanos. Por último, a
homogeneidade das raças em um mundo em evolução não é desejável enquanto esse
planeta não tenha alcançado níveis relativamente altos de desenvolvimento espiritual.
- Queres dizer que, algum dia, em IURANCHA, haverá uma só raça humana?
- É possível, caro Sinuhe, sempre e quando o planeta saiba descobrir qual foi sua
origem e qual seu destino maravilhoso. E tanto tu, como nós e todos os que nos sucedam
na busca da Verdade, desempenhamos um modesto mas, ao mesmo tempo, insubstituível
papel. E o vosso, aqui e agora, não é outro senão o de chegar ao Grande Tesouro. . . e
difundir quanto ele contém.
- Sim - lamentou-se o investigador -, mas, como? Amen, colocando de novo as
mãos sobre a prancha cobreada da coluna de mármore branco, pôs em andamento um
velho e calculado plano de fuga...
- Quando a força do Maligno te arrastou até nós - explicou-lhe o sacerdote -, uma
de tuas primeiras perguntas (lembras-te?) foi sobre esta coluna.
Sinuhe se lembrava, naturalmente.
- Pois bem, desde que as atlantes construíram esta grande pirâmide subterrânea,
cujo nome, como sabes (Dalamachia), evoca a "cidade-modelo" da qual eles foram
obrigados a fugir depois da rebelião de Lúcifer, esta que chamamos "Câmara couraçada"
de IURANCHA - e Amen fez um gesto com as mãos, abarcando o hexágono onde se
achavam - foi sempre o depósito dos arquivos secretos do planeta. O Grande Tesouro, se
o preferes!
- Aqui? Como...?
- É lógico que Nietihw e tu tenhais imaginado esses arquivos à maneira dos que
habitualmente se utilizam em teu mundo. Fosse assim e, como compreenderás, não teria
sido suficiente esta pirâmide, nem mais outras cem como Dalamachia... A História da
Terra, amigo, é mais antiga e complexa do que pretendem os sábios de vossa Era. Seus
arquivos, por conseguinte, tinham de ser... "diferentes".
O investigador compreendeu que estava na iminência de conhecer uma nova
maravilha.
- Quando Caligastia e seu Estado-Maior tomaram posse de IURANCHA, há 500
000 anos, um corpo especial de serafins transportou de Edência, a capital de nossa
constelação, a Árvore da Vida e a "pluma de Thot". Da primeira, não tenho permissão
para falar-te. Mas da segunda sim, já que é a chave da tua missão.
A "pluma de Thot" vem a ser, na realidade, o Grande Tesouro. Entre outros
sistemas, a administração dos universos utiliza essas "plumas" como arquivos secretos de
cada mundo evolucionário.
- Uma "pluma"? - perguntou impaciente. - Não te compreendo.
- O importante não é que o entendas, mas que o creias e saibas como manejá-las, se
é que a força e a luz da Sabedoria te permitirão chegar até ela. ..
- Tu dirás - retrucou, disposto a aceitar o que quer que fosse.
- Desde o momento em que os Mui Altos Pais da constelação decidem consagrar
uma dessas "plumas" ao serviço de um planeta em evolução, esses mesmos seres celestes
responsáveis pelo traslado delas permanecem já em íntimo e contínuo contato com o
Grande Tesouro, subministrando à "pluma" toda a informação concernente ao mundo em
questão. Esses serafins, conhecidos como os "arquivistas celestes", dependentes da
Ordem dos "mantenedores do arquivo do Paraíso", embora o pretendam, não podem
influir nem controlar o destino da "pluma" que têm sob sua responsabilidade. Somente no
fim dos tempos de cada mundo devem restituí-la à capital da constelação. E durante o
período de vida concedido a cada esfera evolucionária, o trabalho dos "arquivistas" se
circunscreve à subministração informativa: a mais veraz, objetiva e pormenorizada que
ser humano algum pode supor e que abarca todos os sucessos protagonizados pelas
criaturas viventes do astro. Mas essa "pluma" (indestrutível e de cuja beleza não te
falarei) goza de singular particularidade. Ao mesmo tempo em que recebe e classifica
cronologicamente cada informação trazida pelos "arquivistas celestes", está preparada
("programada", diriam em teu mundo) para responder a quantas perguntas lhe sejam
formuladas pelos que ostentam o "sinal de Micael".
Amen fez uma pausa para esperar a imediata e lógica pergunta do "soror".
- E eu, supondo-se que eu possa chegar até a "pluma de Thot", que devo fazer?
- Não é nossa intenção ocultar-te a verdade. A "pluma" de IURANCHA, o Grande
Tesouro, como já te foi dito, caiu em poder dos rebeldes. Horemheb, o traidor, logrou
apoderar-se dela e levá-la desta câmara.
O Kheri Heb apontou para a placa avermelhada sobre a coluna, acrescendo:
- Durante milênios, este foi seu sagrado altar.. . Agora está fortemente custodiada
na Torre de Amon, quartel-general de Bel-zebu e seus 40 000 "medianos". O ingresso
nessa torre é praticamente impossível para os humanos. Além do mais, mesmo que o êxito
te acompanhasse, os servidores de Lúcifer a guardaram em outra "câmara blindada",
igualzinha a esta, na qual é materialmente inviável entrar ou sair, sem a ajuda dos
próprios rebeldes. Como também sabes, a força do mal é a primeira interessada em que a
sabedoria da "pluma" não transcenda aos mortais de IURANCHA. Isso significaria
conhecer parte da Verdade sobre o que sucedeu em nosso mundo, e a inegável influência
dessa força sobre a humanidade poderia ver-se afetada.
- Um momento - terçou Sinuhe -. Vamos por partes. Se compreendi bem, somente
os que ostentam o "sinal de Micael podem interrogar a "pluma". . .
Amen concordou.
- Nesse caso, nem Belzebu nem seus sequazes puderam. . . -' Não precisam -
interveio Amen, aclarando as dúvidas do investigador -. Eles fazem parte dessa Verdade.
Em boa medida a protagonizaram, embora eu imagine que sentirão curiosidade por saber
que terá sido do seu grande caudilho, Lúcifer. ..
- Não o sabem?
- Suponhamos que não. Quando eclodiu a rebelião, IURANCHA e os demais
planetas leais ao Maligno foram postos em "quarentena" e, conseqüentemente, isolados
do exterior.
- Bem interessante. . . - murmurou Sinuhe, acalentando na mente o que parecia ser
uma remota possibilidade.
- Não cries ilusões - argumentou o sacerdote -. Se chegasses a penetrar na torre,
como escapadas? E o que é mais difícil ainda: como resgatadas a "pluma"?
Nosso homem não houve responder. As dificuldades sempre o estimularam,
embora, neste caso, reconhecesse que eram quase intransponíveis...
- Alguma coisa há de ocorrer-me - retrucou, sem meditar sobre o problema.
- Está bem. Era precisamente o que desejávamos ouvir. E agora, por favor, escuta
atentamente. . .
Cinco dos sete homens - como se houvessem estado à espera durante milênios por
aquele momento - caminharam devagar até a parede diante da qual Amen-Em-Apt
pronunciara aquelas enigmáticas palavras: "Solônia te aguarda. . . Dá-nos tempo para
abrir o ano".
Os cinco chefes, com exceção do negro, tomaram posição, situando-se de frente - e
a coisa de meio metro - da reluzente parede. E assim permaneceram, hieráticos e em
silêncio.Alguma coisa eles planejavam e Sinuhe se preparou para o que supunha ser sua
saída da "câmara couraçada". Então Amen, tomando-o pelo braço, colocou-o entre a
coluna e o muro frente ao qual montavam guarda os homens de cor. Orvonon, o negro,
com as imensas mãos sobre a prancha cobreada da coluna, parecia aguardar ordens.
- Escuta com atenção - expôs-lhe o sacerdote, em cujos olhos voltara a brilhar a
esperança -. A partir deste momento, tudo dependerá de tua capacidade de compreensão e
dos teus reflexos. . . Lembras-te de que te falei de uma falha cometida pelos rebeldes?
Assentiu em silêncio.
- Bom. E te recordas que Dalamachia, a pirâmide subterrânea onde nos
encontramos, está sob o controle dos rebeldes?
O investigador repetiu o movimento afirmativo de cabeça.
- Pois não te olvides que, por essa razão, o que vais ouvir dos meus lábios não
poderá ser repetido. Apesar de ter feito parte do primeiro Grão-Conselho da Escola da
Sabedoria (e graças à sua precipitação por abordar Dalamachia e roubar o Grande
Tesouro), Horemheb não chegou a conhecer a única saída secreta desta "câmara".. . Este,
e manter-nos com vida, foram seus erros.
- Um instante - interveio Sinuhe, receoso - Se conhecíeis esse segredo, por que não
o haveis aproveitado?
- Seria muito longo explicar.. . Apenas te direi que os atlantes, ao concluir a
construção de Dalamachia, em previsão do que, desafortunadamente, ocorreu,
construíram um mecanismo de abertura da Sala de Thot, ou do Grande Tesouro,
sumamente "complexo..."
O Kheri Heb deu ênfase especial àquela última palavra.
- "Complexo" - acentuou - porque, para ativá-lo, exige a presença, na câmara
couraçada, de um descendente de cada uma das raças "Sangik", únicas e verdadeiras
herdeiras do grande patrimônio que significam os arquivos secretos de IURANCHA. E
esses representantes, além disso, como tu mesmo tiveste ocasião de experimentar em tua
busca através da pirâmide, só poderiam ser autênticos e sinceros homens "Pi" ou leais
buscadores da Verdade...
- Continuo sem entender por que já não haveis escapado desta câmara.
- Querido Sinuhe, a sutileza dos construtores de Dalamachia era admirável. Uma
vez reunidos (depois de milênios), estes seis homens de cor, os "Sangik" tiveram de
vencer a difícil prova da desesperança. E uma vez alcançada essa dura meta, ao desvelar,
após paciente estudo, o mecanismo propriamente dito de abertura, descobriram
igualmente que essa "janela" para o exterior só pode ser aberta com o concurso
simultâneo de todos eles. Isso requer, portanto, a presença de um sétimo homem: o único
que pode tentar a fuga...
- E tu, Amen?... Durante muito tempo tens sido esse sétimo afortunado. Por que
não o tentaste?
O sacerdote sorriu com amargura.
- Tu te esqueces do essencial. Esse sofisticado sistema de segurança dos atlantes
foi pensado para, em último caso, pôr a salvo o Grande Tesouro. Se a entrada nesta
pirâmide subterrânea (tu o sabes) é árdua, a saída é mais ainda. O valor do Grande
Tesouro assim o exigia. Mas a traição de Horemheb e a fulminante subtração da "pluma
de Thot" tornaram inútil minha presença na "câmara couraçada". Se a "pluma" tivesse
ficado aqui, com efeito, eu teria sido o sétimo homem, responsável por seu traslado para
outro lugar...
Sinuhe insistiu:
- Apesar disso, por que não ocupas o meu posto? És, sem dúvida, um homem sábio
e saberás, melhor que eu, chegar até a Torre de Amon.
- Não, Sinuhe, não posso.. .
- Por quê?
Amen, comprimindo o dedo índice no lado esquerdo das costas do investigador,
explicou:
- Porque agora as coisas são diferentes. O julgamento de Lúcifer (como sabes) está
próximo. Já não importa tanto resgatar o Grande Tesouro quanto conhecer a Verdade.
Mas essa missão (também vô-lo disseram) é só o primeiro passo para assistir ao grande
julgamento. E a esse tribunal só pode ter acesso a filha da raça azul. Eu, ou qualquer um
desses chefes, poderíamos contar-te simplesmente essa Verdade, mas não é o estabelecido
por "Ra". . . Sois vós, com vosso esforço, que deveis fazer-vos dignos representantes
dessa honra. Lembra-te que, nesse caso, talvez mais que em nenhum outro, o caminho
para a Verdade faz parte da própria Verdade. Alegra-me dizer que minhas palavras se
vêem confirmadas, ainda, por este sinal.. .
O Kheri Heb pressionou as costelas de Sinuhe.
- O sinal de Micael!
O investigador recordou as marcas - os três círculos concêntricos - que tão
misteriosamente foram gravados em suas costas durante a segunda exploração no ático da
Câmara Municipal de Sotillo.
- Exato. Como vês, foi tudo meticulosamente preparado por aqueles que servem a
Micael...
Sinuhe não podia crê-lo.
- Então, "eles" sabiam e sabem...
O sacerdote retirou seu indicador das costas do atônito "iuranchiano".
- Santo Deus! - exclamou o investigador. - De acordo com o que dizes, tu também
sabias...
Amen sorriu maliciosamente.
- Já te disse que te esperávamos, melhor dito, vos esperávamos. .. Deves agora
aproveitar nossa longa e paciente espera. Escuta. E que a Suprema Força te guie, Sinuhe.
- Permita-me que insista. Já que os rebeldes, conhecedores do nosso segredo, não
tardarão em cair sobre esta câmara blindada, presta muita atenção a quanto vou
comunicar-te. Não poderei falar senão uma vez...
Sinuhe apertou os maxilares.
- Siga! - animou-o por sua vez.
Na mente do investigador, outras dúvidas tinham ficado pendentes. Por exemplo:
como e por onde poderiam entrar os rebeldes naquele recinto? Talvez pelo mesmo
quadrado de gesso branco existente do outro lado da câmara? Além disso, se tinham o
controle da pirâmide, por que não atuavam imediatamente, frustrando assim o que podia
converter-se em uma circunstância adversa para eles? Talvez o sacerdote tivesse razão e
optassem primeiro por conhecer este último segredo, tão zelosamente guardado. Ou
haveria outras razões?
Mas, afinal de contas, aqueles pensamentos em tropel eram apenas minúcias;
questões secundárias, se comparadas com a máxima questão em jogo em semelhantes
momentos: a fuga da "câmara couraçada" e - quem sabe? - se da pirâmide subterrânea de
"Dalamachia".. .
Amen-Em-Apt situou então Sinuhe frente ao muro, entre a coluna e as costas dos
cinco chefes. Por último, antes de retirar-se, abraçou o jovem, sussurrando-lhe ao ouvido:
- Se não compreendes o que vais ouvir. . . por Deus! salta de qualquer modo!
Não houve tempo para mais nada. Sinuhe mal pôde corresponder ao abraço. Seu
irmão de Loja, após pedir-lhe que se não movesse enquanto não recebesse a ordem,
desapareceu de sua vista, indo postar-se à direita do homem negro. Trocou com ele um
olhar e Orverdon, prestando atenção ao Kheri Heb, assentiu com a cabeça, dando-lhe a
entender que estava tudo pronto.
E Amen, lentamente, dando tempo para que o "iuranchiano" estivesse preparado
para interpretar suas solenes palavras, rompeu o silêncio do recinto:
- Ourocalcum!. . . sagrada proteção das muralhas do antigo Reino em Meio ao Mar
e hoje da "câmara couraçada" de IURANCHA.. .
Com os nervos tensos, Sinuhe reconheceu aquela palavra - "ourocalcum" - como a
mágica e soberba liga de ouro e outros metais misteriosos, empregados pelos atlantes no
revestimento da terceira muralha - a externa - que guardava a cidadela de Poseidon, o
primeiro rei de Atlântida. Essa muralha, assim como os muros do hexágono, resplandecia,
segundo a lenda, com esplêndida luminosidade vermelha.
- Abre-nos teu segredo - prosseguiu Amen-Em-Apt -. Sob tua luz uma só fileira é
igual a "5" e igual a um ano.. .
O investigador sentiu como se materializava a angústia em um golpe de sangue
que lhe ascendeu das entranhas. Que teria querido dizer o Kheri Heb? Uma fileira igual a
"5"?. . . Sinuhe puxou pela cabeça. Sabia que Dalamachia e a Grande Pirâmide de
Quéops, sua réplica, foram construídas à base de grandes fileiras de pedras. Mas qual.
delas era "igual a '5' e igual a um ano"?
Em frações de segundos, sua mente desenterrou seus velhos conhecimentos de
Egiptologia. Mas, dominado pelos nervos, não chegou a conclusão alguma. E a voz do
sacerdote ressoou de novo no hexágono:
- ... E igual à liberdade...
Liberdade? Aquilo só se poderia interpretar de uma maneira: como a saída de
Dalamachia... E, subitamente, fez-se a luz em seu cérebro atormentado.
"Deus meu!... claro! agora o compreendo."
Durante sua instrução como "soror" da Grande Loja, tivera a oportunidade de
conhecer esta circunstância singular: o eixo principal de uma das fiadas da Grande
Pirâmide de Queops - e de Dalamachia, naturalmente - coincide com a cota do vértice do
triângulo isóscele do frontão da entrada à pirâmide, na face norte.
Essa fiada - a número 23 -, é igual, com efeito, a "5". Basta somar os dois números.
Além disso, é também "igual a um ano". Das 226 fiadas de blocos que constituíam
inicialmente a suposta tumba do rei Quéops, só uma - a 23! - equivale, pela longitude, ao
chamado ano anomalístico de 365,2 dias. (Entendendo-se por "ano anomalístico" o tempo
que transcorre entre duas passagens consecutivas da Terra pelo afélio e o periélio de sua
órbita.)
Sinuhe rememorou seus vertiginosos cálculos, intuindo as intenções do sacerdote.
"Sob a luz do ourocalcum, uma só fileira - a 23 - é igual a '5'... e igual a um ano
(essa fileira de pedra soma 365,2 pés egípcios, sendo essa longitude igual a um ano)... e
igual a liberdade: a fiada em questão coincide com a parte superior da porta secreta de
acesso à Grande Pirâmide ^ela face norte. Se era assim" - deduziu Sinuhe - "em algum
lugar daquela 'câmara couraçada' tinha de esconder-se a providencial fiada 23 e,
provavelmente, um dispositivo oculto que permitisse franqueá-la e alcançar a saída..."
Nesses críticos momentos deu-se conta de outro sério problema. Se não lhe falhava
a memória, a rocha triangular que trancava a pirâmide pesava quarenta toneladas.
Como iria deslocá-la?
- ... Abramos o "ano" com o arco-íris dos "Sangik"! Aquela parte do conjuro
cabalístico de Amen-Em-Apt ficou incompreensível para Sinuhe. Mas, na suposição de
que "algo" decisivo estava por acontecer, apertou os punhos, prestes a saltar - fora a
recomendação do amigo - pela primeira cavidade ou conduto que se abrisse debaixo da
refulgente lâmina de ourocalcum. No entanto, nada disso aconteceu. Ao finalizar aquela
última e enigmática frase, o Kheri Heb fez um sinal a Orvonon. E este, fechando os olhos,
colocou as imensas mãos sobre a prancha circular que coroava a coluna. E, lenta e
majestosamente, como que possuídas de força sobrenatural, começaram a elevar-se,
arrastando atrás o branco pedestal de mármore.
Embora alheio ao que se passava às suas costas, Sinuhe pôde assistir a outro
sucesso prodigioso protagonizado pelos cinco homens "Sangik" e praticamente
simultâneo com a ascensão da coluna. Em silêncio profundo, os chefes obedeceram a
Amen. E de suas frontes brotaram feixes luminosos, de igual coloração à da pele de cada
um deles. Assim, da esquerda para a direita, formou-se um belíssimo leque com as cores
do arco-íris: vermelho, laranja, amarelo, verde e azul.
Maravilhado diante daquela nova demonstração de poder mental, Sinuhe recordou
os fachos de catorze cores da companheira querida. E aquele pensamento - a recordação
de Nietihw, prisioneira dos rebeldes - veio fortalecê-lo.
Durante alguns segundos, os cinco focos passearam pelo muro, entrecruzando-se e
como que a buscar "alguma coisa".
A coluna, entretanto, ao atingir os dois metros de altura deteve a subida. Orvonon
abriu os olhos e, depositando as mãos sobre a lâmina circular, fixou a atenção no "arcoíris"
que seus irmãos continuavam projetando.
De repente, um dos cones luminosos ficou imóvel a pouco mais de metro e meio
do solo. Era o azul. E do pequeno Círculo celeste projetado sobre o ourocalcum
avermelhado surgiu uma tímida, quase imperceptível centelha de luz negra. Como que
movidos por mola, os outros fachos se deslocaram para aquele ponto, fundindo-se e
concentrando-se sobre o ansiado lugar. E a luz preta - a mesma que o investigador
contemplara no quarto da maquinaria do velho relógio; e por cima da oscilante "campana
de luz" da praia - foi tomando corpo, propagando-se pela superfície do muro.
Ante o olhar atônito de Sinuhe, aquela "luz" se foi derramando sobre o
ourocalcum, adotando a forma de uma estrela de cinco pontas. Quando alcançou a
longitude aproximada de um metro, a "luz" parou de avançar. E os braços horizontais
começaram a prolongar-se como um rastilho de pólvora, dividindo em duas a parede do
hexágono.
Às suas costas, soou então a voz grave de Amen:
- A fileira, Sinuhe!... Prepara-te para pular!. ..
O investigador, confuso, não soube o que fazer. Onde estava o passadiço? Para
onde devia saltar?
Sua incerteza não duraria muito.
Quando os negros braços horizontais da estrela se detiveram nas respectivas
confluências das outras paredes do hexágono, os cinco homens "Sangik" fizeram
desaparecer seus feixes luminosos, e retrocederam até se colocarem atrás de Amen e
Orvonon. E no muro começou a palpitar aquela enorme estrela negra. . .
Se o "iuranchiano" tivesse virado o pescoço teria testemunhado como, ao produzirse
a ruptura da lâmina de ourocalcum - assinalando assim a fiada 23 de "Dalamachia" -, o
pedestal da pluma de "Thot", instantaneamente, desaparecera deixando aberto no solo da
"câmara" escuro e estreito túnel. Só a chapa circular que rematava a coluna ficara colada
às palmas do chefe negro. E este, a um novo sinal do Kheri Heb, sem perda de um
segundo, arrojou-se, esmagando a lâmina de ourocalcum sobre o centro geométrico da
estrela. Ao contato com o metal mágico, a ponta superior da estrela, assim como as duas
inferiores, dobraram-se, imprimindo ao conjunto enlouquecida rotação, no sentido
horário. Imediatamente a estrela desapareceu, transformada em tenebroso torvelinho.
- Agora!... Sinuhe! pula!...
Apesar de seus firmes propósitos, o investigador hesitou. Saltar para aquele
remoinho escuro que já estremecia o muro e a totalidade da "câmara couraçada" de
Dalamachia? Um suor frio foi sua única reação. Sinuhe sentiu medo. Terror incontido,
que parecia soldar-lhe os pés ao solo do hexágono.
- Sinuhe, por Nietihw!... Salta!
O segundo grito de Amen - dilacerante - fez com que se voltasse. Com espanto,
descobriu umas velhas e esquecidas criaturas. Pelo buraco, agora existente no solo da
câmara, emergiam, inconfundíveis, as "golem"... E as negras mãos amputadas
aprisionaram as túnicas dos "Sangik" e a do Kheri Heb. Mas, em vez de lutar e resistir, os
sete homens "Pi", ignorando a presença das diabólicas enviadas dos rebeldes, tinham
cravados os seus olhos nos de Sinuhe. O investigador não teria podido descrever jamais
aqueles olhares suplicantes, esperançosos e imperativos ao mesmo tempo...
Novas vagas de "golem", atropelando-se umas às outras, foram vomitadas do vazio
sinistro. E, trotando sobre os dedos, dirigiram-se para Sinuhe. Mas o "iuranchiano"
atirado pelos olhares-catapultas daqueles homens que não hesitavam em sacrificar-se por
ele, saltara já para a turbulência que sem cessar girava em círculos na parede.
Ao penetrar no que, à primeira vista, parecia um tobogã ascendente, escuro como
um bueiro, forte calor o envolveu e ele foi açoitado por fortíssima corrente em espiral que
o sugou, projetando-o como um dardo em direção oposta à "câmara couraçada" de
Dalamachia.
Foram segundos. Ou não? Na realidade, pouco importava. Qual o sentido de falar
em "tempo", naquele mundo?
O caso é que, atropeladamente e procurando proteger-se das constantes cabeçadas
contra os limites pétreos do passadiço cilíndrico, prosseguiu naquela alucinante subida...
até sabe Deus onde.
De repente terminaram as trevas. Foi brusca a mudança. Aquela espécie de
"encanamento" acabou, e Sinuhe se viu projetado com aquela mesma força, mas em meio
a uma atmosfera vermelha!
A turbulência cessara. Mas ele descobriu que um não acabar de negras mãos tinhase-
lhe agarrado aos ombros, braços e tórax...
- As "golem"!
O achado o abalou. Mas compreendeu logo que não podia tratar-se das macabras
extremidades que estiveram a ponto de capturá-lo na pirâmide. Aquelas mãos.. . não
estavam amputadas. À altura dos corpos vinham fundidas a outros tantos raios,
igualmente pretos e brilhantes como a obsidiana. E aqueles raios... sim - observou o
investigador quando olhou para o alto -, perdiam-se no espaço. Ele estava sendo
transportado pelos ares... por uns raios terminados em mãos humanas!
Pelos ares?
Aquele pensamento, unido ao que divisava em terra - o velho barco encalhado, a
costa e as águas do oceano, tudo isso tingido de vermelho -, levaram-no a compreender
que os homens
"Pi" tinham logrado o seu propósito: Dalamachia, a pirâmide milenar subterrânea
era apenas uma lembrança. . . Algo ou alguém o havia puxado, burlando assim os
rebeldes.
Seu vôo agora era suave. Harmonioso, quase. Os braços estendidos para frente,
seguro e arrastado pelas mãos-raios negros, experimentou inolvidável sensação de paz.
Paz que foi aumentando, na medida em que ascendia. . .
À sua passagem, aquela "atmosfera" escarlate roçava-lhe docemente a pele e lhe
embaralhava os cabelos. Pouco a pouco, sem pressa, como se o tempo não contasse, a
linha da praia foi desaparecendo. Foi então, seguindo a direção dos raios que pareciam
dobrar-se sobre si mesmos, que divisou no alto uma silhueta escura.
- Oh, Deus!. . . O sol negro!
Já não havia dúvida. Aqueles raios tinham brotado do misterioso disco e a ele
voltavam.
Aquele medo incipiente virou confusão quando, de repente, abandonou o "ar
escarlate", entrando em uma obscuridade sideral, rasgada apenas pelo longínquo tiritar de
milhões de estrelas. Seria aquele o firmamento que vislumbrara da terra, em companhia
de Nietihw?
Seus temores o invadiram novamente. Ao deixar para trás o "céu" cor de sangue, a
velocidade daquelas mãos aumentou, projetando-o como a um meteoro em direção à cada
vez mais crescida figura do sol. A respiração quase desapareceu e o rosto, submetido
àquela formidável aceleração, contorceu-se. Seus ouvidos e crânio todo começaram a
zumbir e, espantado, viu como a silhueta do sol "negro" se lhe apresentava imensa,
quilométrica. Gigantescas línguas de luz e fogo negros eram projetados no espaço. . .
Logo em seguida a atmosfera se tornou vermelha, passando imediatamente a
negra. Depois, a ponto de chocar-se contra aquela massa, a consciência o abandonou. . .
- Sou Solônia, o que foi guardião do Éden. . . Levanta-te, filho de IURANCHA!
Que terá acontecido? A sensação de Sinuhe, ao despertar, foi de irrealidade e
bruma. Como se as mãos o tivessem depositado suave e firmemente aos pés daquela
incrível criatura. . .
Mas e o fogo negro? Por que não morrera abrasado? Onde se encontrava? Que
teria sido dos raios e mãos que o haviam transportado?
Quando o membro da Escola da Sabedoria escutou a voz e conseguiu levantar o
rosto, descobriu que se achava de joelhos diante de um ser de estatura e beleza
desconcertantes. Seu corpo, em pé, aparecia envolto em uma cota de malha de um negro
reluzente. Mas aquela prodigiosa vestimenta defensiva, em lugar de ser tecida com aço,
era trabalhada com letras diminutas. E estas, por sua vez, formavam outros tantos
milhares de nomes. Um nome que o sobressaltou: "Micael". E daquela maravilhosa trama
protetora emanava ininterrupto resplendor negro...
Longos cabelos escuros, também rodeados de um halo de luz negra, caíam-lhe
pelos ombros musculosos.
O rosto, como que lavrado a cinzel, era duro e sereno como o do mais bravo
guerreiro jamais visto. Somente seus olhos rasgados lhe pareceram familiares...
Sinuhe obedeceu e, ao pôr-se de pé, constatou atônito que seus olhos ficavam à
altura da cintura de Solônia. Aquele gigante - um serafim, sem dúvida - sustinha entre as
mãos a empunhadura de uma espada... sem lâmina!
Timidamente, movido por sua curiosidade insaciável, olhou ao redor. Onde estava?
Inútil. Ao desviar o olhar do guardião do Éden, nublou-se-lhe a vista e ele não
distinguiu senão escuridão. Baixou os olhos para o lugar em que sem dúvida se sustinha,
mas aconteceu o mesmo: só "viu" trevas...
Perplexo, virou de novo o rosto para a única coisa visível no interior daquele sol
"negro". Ou tampouco se encontrava no misterioso astro?
E Solônia, mostrando o próprio peito com a mão esquerda disse:
- Não temas, Sinuhe, filho de IURANCHA!
Num instante, sobre a couraça, iluminaram-se três círculos celestes e concêntricos.
- Reconheces esta bandeira? - perguntou-lhe.
Sinuhe não se atreveu a falar. Nem sequer sabia se podia. Limitou-se a mover a
cabeça em breve e quase imperceptível sinal de afirmação.
- É o emblema do Soberano de Nebadon, nosso Senhor - retumbou como trovão a
voz de Solônia -. Tal como vos anunciou Agurno, o Mensageiro Solitário, para cumprir
vossa missão deveras utilizar minha espada. Recebe-a, pois...
O serafim estendeu a mão direita para o nosso homem, convidando-o a tomar a
empunhadura solitária.
Sinuhe, apesar das dúvidas que o acossavam, recebeu a espada do guardião.
Tratava-se de uma enorme guarnição de quase meio metro de comprimento, um cabo de
uns dez centímetros de diâmetro que, a ele pelo menos, obrigava-o a empunhá-lo com
ambas as mãos. Apesar das dimensões, era extremamente leve. "Talvez se deva" -
pensou :- "a esses incríveis anéis..."
Efetivamente, tanto a empunhadura propriamente dita, quanto o braço horizontal,
tinham sido forjados à base de aros paralelos. Cada círculo continha outros dois em seu
interior, concêntricos, imitando assim o tríplice circuito de Micael. E todos eles, como
ocorrera com as letras do nome cósmico de Nietihw e com a "cadeia" do número "pi",
magicamente coesos graças a uma força invisível.
Enquanto permaneceram entre a cota de malhas que cobria as mãos de Solônia,
aqueles anéis da empunhadura conservavam a cor igualmente negra e reluzente. Agora,
porém, ao passar para as mãos de Sinuhe, tornaram-se transparentes.
O investigador, sem saber o que fazer com semelhante arma, levantou o rosto para
o serafim, interrogando-o com o olhar.
- A espada "iluminadora" - esclareceu Solônia - permitir-te-á descobrir a entrada
secreta da Torre de Amon. Mas escuta minha advertência, filho de IURANCHA... Aquele
que a empregar para a violência, que só espere violência.
"Uma espada 'iluminadora'?" - perguntou-se o "iuranchiano" - "Como devo utilizála?
E que é isso de violência?..."
Solônia, apesar de lhe haver lido os pensamentos, não respondeu. Por último,
levantando a mão direita como o fizera Agurno ao despedir-se em meio à névoa do
bosque, exclamou:
- Que a paz de Micael esteja contigo, Sinuhe!...

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