quarta-feira, 11 de agosto de 2010

O orifício comum de saída e projecção destes delicados sistemas
fora igualmente camuflado com uma faixa de tinta preta. E, no bordo da
faixa, Cavalo de Tróia colocara mais dois pregos de cabeça de cobre.
Carregando em cada um deles, punha-se automaticamente em
funcionamento o mecanismo correspondente: ou o de ultra-sons ou o de
teletermografia.
Para que pudesse orientar com precisão cada um destes fluxos a
missão dotara-me com lentes de contacto a que chamávamos crótalos.
Estas lentes especiais – de tipo duro – foram fabricadas com um produto
de uma qualidade muito superior ao que normalmente utilizam os
laboratórios de óptica e que, dado o seu carácter secreto não posso
revelar (2).
O ideal, naturalmente, teria sido a utilização de óculos de visão
nocturna,, com que pudesse seguir a trajectória do laser infravermelho
bem como as alterações de cores no corpo do Nazareno3, consequência
das variações da temperatura corporal e das diferentes alterações
fisiológicas provocadas pelas torturas. Mas, obviamente, tal não era
possível e Cavalo de Tróia desenhara estas lentes, totalmente
transparentes que, uma vez ajustadas aos olhos, tornavam realizável o
acompanhamento sem levantar perigosas estranhezas entre as gentes
daquela época. Procurando virar as costas a João Marcos, lancei mão ao
pequeno estojo que continha os crótalos, adaptando-os aos meus olhos.
Embora as lentes tivessem sido aperfeiçoadas com sais monoiónicos4
capazes de permitir aceitável circulação da lágrima no olho e excelente
oxigenação
que me fornecera Cavalo de Tróia. Desta forma, as ondas ultrasónicas
podiam deslizar pelo interior da tubagem formada pela luz sólida
ou coerente”, podendo ser lançada a distâncias que oscilavam entre os
cinco e vinte e cinco metros. (N do M.)
* Precisamente pela sua relativa semelhança com as fossas
infravermelhas, destas serpentes, que lhes permitem caçar, servindo-se
das emissões de radiação infravermelha dos corpos das presas.
2 Geralmente, as lentes de contacto do tipo duro baseiam-se num
produto denominado polimetil-metacrilato (PMMA), que na realidade
constitui a base fundamental da lente”.
3 Como se sabe, qualquer corpo cuja temperatura seja superior ao
zero absoluto (menos 273 graus centígrados) emite energia IV ou
infravermelha. Esta emissão de raios infravermelhos – invisíveis para o
olho humano – é provocada pelas oscilações atómicas no interior das
moléculas e, consequentemente, encontra-se estreitamente ligada à
temperatura de cada corpo.
Pois bem, o olho do homem, como está demonstrado, só vê uma
pequena parcela do espectro electromagnético da luz: a que vai dos
quatrocentos aos setecentos manómetros. Por cima desta última
aparecem as gamas do infravermelho. Mas, mediante o uso de óculos”
especiais, adequados à emissão do infravermelho, o homem pode ver”
também nesta frequência. (Por sua vez, esta região do infravermelho
está subdividida em infravermelho próximo, médio, distante e extremo.)
Os sensores IV ou infravermelho das serpentes americanas – crótalos –
são formados precisamente por uma membrana dotada de inúmeros
terminais nervosos, que lhes permitem detectar variações de
temperatura da ordem de um milésimo de grau. (N. Do M.)
Os especialistas do Projecto tinham conseguido estas quase
milagrosas lentes de contacto imfravermelhas juntando uma série de
bandas periféricas à superfície básica monocurva, dotadas
de centenas de microcélulas que não eram mais que outros tantos
filtros Wratter 89 B que só deixavam passar a radiação infravermelha.
O peso específico conseguido foi de 1,19. A sua força flexional (ppi)
situava-se entre dez mil e quinze mil e a dureza Rockwell em M85-M105.
da córnea, o general Curtiss avisara-me repetidamente que não
abusasse, limitando o seu uso a períodos máximos de 30 ou 40 minutos.
Com rapidez carreguei no prego que accionava a emissão de ultra-sons2.
O espectáculo que a meus olhos se ofereceu (embora, na realidade,
devesse dizer ao meu cérebro) foi quase dantesco: o rosto, pescoço e
mãos de Jesus tornaram-se de um tom azul-esverdeado, consequência da
baixa da temperatura corporal nas referidas zonas (provavelmente, pelo
efeito refrigerante do suor e do sangue que saíam dos poros).
A túnica emitia um branco muito mais imtenso, enquanto o manto
tinha uma tonalidade mais escura, quase negra. A folhagem verde do
olival explodiu num vermelho indescritível... Ao premir a cabeça do prego
para a sua segunda posição – a mais funda -, da parte superior da vara de
Moisés surgiu um finíssimo raio de luz avermelhada: era o laser
infravermelho. Sem perder um segundo dirigi-o para o rosto, pescoço,
cabelos e mãos do Nazareno. Como é evidente, nem João Marcos nem
ninguém que tivesse podido presenciar aquela cena teria visto ou ouvido
alguma coisa. Como já disse, o laser trabalhava na frequência do
infravermelho e, portanto, era invisível ao olho humano. Depois de ter
percorrido minuciosamente todas as áreas ensanguentadas, alterei a
frequência dos ultra-sons (fazendo voltar o prego para a sua primeira
posição), centrando o feixe de luz na parte superior do ventre do Rabi.
Desta forma, explorando o pâncreas talvez obtivéssemos uma explicação
satisfatória sobre a origem daquele suor na forma de sangue. (Quando,
no nosso regresso desta primeira grande viagem, Cavalo de Tróia pôde
analisar todas as imagens por estes processos, os especialistas em
bioquímica e hematologia chegaram a várias e interessantes conclusões.
O suor ensanguentado ou hemato-hidrose fora provocado por um
agudo stress. O Nazareno – tal como eu pudera apreciar – viu-se num
profundo abatimento, motivado, por uma explosiva mistura de angústia,
solidão, tristeza e, talvez, temor perante as duríssimas provas que o
esperavam. Esta violenta tensão emocional segundo os especialistas,
conduzira à libertação de determinados elementos existentes no
pâncreas3, que forçaram a ruptura dos capilares, encharcando
* Ainda que remota, a possibilidade de tropeçar com uma fonte
energética natural de grande intensidade (caso de ter olhado para o
Sol), poderia provocar graves lesões nos meus olhos. E ainda que nada
disto sucedesse, o contacto directo da córnea com os crótalos” não
aconselhava o seu uso excessivo.
2 No caso dos ultra-sons, a cabeça de cobre – de cor branca
- podia adoptar duas posições perfeitamente diferenciadas: a
primeira, para activar o lançamento de ondas com uma frequência de 3,5
Mhz (Suficiente para explorar órgãos internos) e a segunda de 7,5 a 10
Mhz (para o rastreio da superfície e tecidos moles). (N. Do M.) 3
Embora de início se pensasse que a hemato-hidrose, fora provocada por
um excesso de histamina, libertada pelo sistema nervoso em
consequência da grande tensão emocional, e lançada na corrente
sanguínea, rompendo assim os capilares, as investigações sobre o
pâncreas inclinaram os especialistas para a hipótese da chamada
fibrinólise, que consiste na activação patológica de um mecanismo
normal. Um súbito aumento de plasmina (lisoquinase) pode originar o
derramamento generalizado de sangue, diluindo o cimento endotelial, o
que daria como resultado a passagem do sangue para o exterior. (N. do
M.)
as glândulas sudoríparas. Uma vez rasgados os poros subcutâneos, o
sangue fluiu para o exterior, misturado com o suor. O fenómeno – tão
espantoso quanto raro – é, no entanto, perfeitamente possível do ponto
de vista médico. O evangelista Lucas, neste caso, estava certo. (Pierre
Benoit conta numa das suas obras como, em 1914, um soldado que ia ser
levado ao pelotão de fuzilamento suou sangue, em consequência do pavor,
que não pôde dominar, provocado por aquela angustiante situação. )
Embora este derramamento ensaguentado, ou extavasamento – que
não hemorragia -, no Filho do Homem não representasse uma perda
importante de sangue, as informações de Cavalo de Tróia consideraram
que deixou a pele de Jesus num alarmante estado de fragilidade. Esta
circunstância seria determinante no sangradouro, mais que suplício, a que
seria submetido poucas horas depois. Refiro-me, naturalmente, ao
castigo dos açoites.
A ruptura generalizada da rede dos capilares converteria a
flagelação num trágico banho de sangue... Uma das minhas preocupações
naqueles primeiros momentos de grande angústia foi o ritmo cardíaco e
arterial de Jesus.
Ao dirigir os ultra-sons para o coração o efeito Doppler registou o
ritmo de 135 pulsações por minuto: Quanto a tensão arterial, o número
elevava-se a 210 (O ritmo cardíaco normal do Nazareno foi calculado em
sessenta pulsações por minuto e a sua tensão arterial era de cento e
trinta máxima e de oitenta mínima. Aquilo significava, evidentemente,
uma profunda alteração orgânica.
Os especialistas de Cavalo de Tróia avaliaram igualmente que a
descarga prévia de adrenalina na corrente sanguínea daquele Homem – à
vista da resistência arterial periférica – podia ser da ordem de dez
microgramas por quilo e por minuto.)
Pouco a pouco, ao cabo de dez ou quinze minutos, conforme o Rabi ia
serenando o espírito, os ritmos cardíaco e arterial foram recuperando a
normalidade. No entanto, aquela dura prova
- na opinião dos especialistas em nutrição – significou, ainda, o gasto
total das setecentas e cinquenta calorias fornecidas ao organismo na
ceia. O stress deve ter atingido um consumo de calorias sensivelmente
superior a essa quantidade pelo que o Nazareno, na opinião dos médicos
de Cavalo de Tróia, teve de recorrer às suas reservas naturais,
possivelmente a partir da uma ou das duas da madrugada de sexta-feira.
(Com aquele suporte energético, e pressupondo que Jesus se tivesse
retirado para repousar imediatamente, o organismo teria podido
aguentar até às oito da manhã, aproximadamente.
Mas, com a crise iniciada no horto de Getsémani, os especialistas,
consideraram que o organismo do Filho do Homem teve de iniciar uma
lipólise, ou dissolução da gordura do tecido adiposo, com o fim de
administrar ácido gordo e sobreviver.
As reservas de glicogéaio, ou açúcar concentrado, esgotar-se-iam
em questão de horas, e a natureza do Galileu não teria outra alternativa
senão deitar mão, repito, às suas gorduras.) De um ponto de vista
puramente médico, a situação do Mestre começava a ser delicada.
Quinze ou vinte minutos depois de iniciado aquele primeiro exameà
base de ultra-sons – desliguei o laser, e retirei os crótalos. João Marcos
continuava com o rosto escondido nas mãos, negando-se a olhar para o
seu Mestre. Passei-lhe o braço pelos ombros e afaguei-lhe a cabeça.
Pouco a pouco, foi descobrindo a cara.
Estava a chorar. Na clareira, o Galileu fora baixando as mãos. As
convulsões tinham cessado e também o fluxo de sangue.
Alguns dos fios de sangue, maiores que os outros, tinham já
coagulado. Se o Mestre não tivesse a precaução de se lavar, não
tardaria, que o sangue seco transformasse o Seu rosto perfeito numa
máscara... Jesus de novo ergueu os olhos para o firmamento e, com voz
mais serena, repetiu, praticamente, a sua primeira oração:
- Pai... sei muito bem que é possível evitar este cálice.
Tudo é possível para Ti... Porém, Eu vim para cumprir a Tua vontade
e, não obstante ser tão amargo, beberei, se assim é o Teu desejo... Entre
esta segunda oração (não sei se a deveria classificar assim) e a primeira,
observei uma mudança notável, tanto no estado emocional do Mestre
como na Sua atitude perante os acontecimentos já iminentes.
Enquanto nas suas primeiras palavras havia dúvida, nesta altura o
Galileu parecia ter ultrapassado parte da inquietação, mostrando-se,
definitivamente, decidido a assumir a Sua sorte. É possível que esta
transformação mental fosse responsável, em boa medida, pela
progressiva serenidade. Porém, tudo isto, naturalmente, são apenas
apreciações muito subjectivas.
O caso é que, absorto nas minhas primeiras verificações médicas e
suspenso das palavras de Jesus, quase me tinha esquecido de Eliseu e da
aproximação daquele enigmático objecto. Mas o meu companheiro não
tardou em mo recordar:
- Atenção, Jasão... Aquela coisa abandona o estacionário e move-se
de novo... Com todos os...
A transmissão do meu companheiro interrompeu-se durante breves
segundos. Por fim, Eliseu – muito agitado – continuou: .Caiu como... Jasão,
aquela bugiganga desceu ao nível trinta num segundo. Não pode ser... Se
continua a descer, vou perdê-lo... Não! De momento, mantém-se... Mas
dirige-se para nós.
Unindo os lábios ao tronco da canafístula perguntei:
- Ouvi trinta...
- Afirmativo – respondeu Eliseu. - É trinta... E continua a aproximarse
na radial cem (2)... O radar calcula a sua posição em dez milhas. Se
não mudar de rumo, depressa o terás à
vista...
Mas, por mais que olhasse não consegui distingui-lo. Foi então, ao
levantar o olhar para as estrelas, que notei outro estranho fenómeno: a
ramagem da árvore frondosa atrás da qual me ocultava ficara
subitamente imóvel. O vento tinha parado.
Também não notei movimento algum nas copas das oliveiras nem no
mato que nos rodeava. O cabelo de Jesus estava igualmente em repouso.
Um tanto alarmado, interroguei Eliseu sobre a velocidade e direcção
do vento...
1 Nível trinta: três mil pés (cerca de mil metros).
2 Radial Cem: o objecto aproximava-se com rumo de cem graus
(aproximadamente direcção és-sudeste).
, - A quarenta mil pés, cento e vinte graus-cinquenta (1) – respondeu
o meu irmão. - Mas, espera... Ao nível dez desapareceu... Não
compreendo... De repente, da minha esquerda com rumo leste,
aproximadamente, distingui um ponto de luz que se deslocava por cima
do cume do monte das Oliveiras. Vinha direito à nossa posição e com uma
trajectória que, em princípio, me pareceu totalmente horizontal ao solo.
Atónito e meio a gaguejar, carreguei no meu ouvido direito:
- Eliseu... Estou a vê-lo... Pelas nove, da minha posição(2)... Traz
rumo leste... Mas, com todos os diabos, que é aquilo? A resposta do
módulo serviria para confirmar que não era vítima de uma alucinação...
- Afirmativo – exclamou Eliseu, tão desconcertado como eu.O visor
de altura continua a detectá-lo ao nível 10... Acaba agora de sobrevoar o
berço... Tenho-o colimado3...
Velocidade? É inacreditável: não chega às sessenta milhas por
hora... Mas, que se passa? A comunicação voltou a interromper-se. Foram
segundos eternos... Entretanto, aquela luz atingira a nossa vertical. E
parou: .. Jasão – apareceu por fim o meu companheiro – Jasão, estás a
receber-me?
- Afirmativo – apressei-me a responder-lhe. - E têmo-lo por cima
das nossas cabeças...
- Jasão, alguma coisa está a acontecer com o radar. Aquela coisa
está a bloquear-me 4... Nota-se descida de nível?
- Negativo – respondi, sem perder de vista a luz – Parece continuar
em estacionário. Ainda não acabara de transmitir estas palavras a Eliseu
quando, em ; décimos de segundo, a luz efectuou uma queda livre,
imobilizando-se talvez a cinquenta ou cem metros por cima da clareira.
Foi tudo tão vertiginoso que não tive tempo para nada. Fiquei paralisado.
Como eu, , João Marcos e – suponho – quanto se encontrava à nossa volta.
Eu continuava absolutamente consciente: via e escutava, mas não
conseguia mexer um músculo. O meu aparelho locomotor não obedecia
aos impulsos do cérebro e da vontade. Era inútil tentar forçá-los. A
proximidade daquela luz circular, de um branco acima do da soldadura
autógena, e poderosíssima, imobilizava-nos. Durante os segundos que
aquilo durou, ,. pude ouvir, sim, a voz do meu companheiro no módulo, que
– extremamente preocupado – não fazia mais do que chamar-me...
Mas, apesar dos meus esforços, não era capaz de articular palavra.
* Naquela altura o vento tinha a direcção de cento e vinte graus
(sudeste) e cerca de cinquenta nós de velocidade (aproximadamente cem
quilómetros por hora). (N. Do M.) 2 Na terminologia aeronáutica, à
esquerda do observador, considerando sempre as doze horas de um
relógio como o ponto frontal de observação. As três, seria, por exemplo,
à direita.
3 Colimado,: Eliseu tinha localizado e centrado o objecto no seu
painel de instrumentos. O radar do módulo estava a ser silenciado, ou
inutilizado por outra possível emissão de radar ou por alguma
interferência electrónica proveniente do objecto. (N. so M. )
Quase ao mesmo tempo que aquela massa luminosa – de mais de
cinquenta metros de diâmetro – ficava estacionária sobre o local, uma
espécie de cilindro luminoso partiu do centro do disco, iluminando Jesus,
as lajes de pedra e o terreno, num raio aproximado de cinco ou seis
metros. O Mestre, com o rosto para o alto, não parecia alarmado. E
continuou de joelhos...
A minha confusão não tinha limites. Como era possível que o
Nazareno não se sentisse tão aturdido e atemorizado como eu? Aquele
medo que me tinha invadido era partilhado pelo meu jovem companheiro,
a ajuizar pela posição em que ficara. A fulminante descida da luz fizera
que levantasse os braços para cima da cabeça, num movimento instintivo
de protecção. E assim continuava, com o corpo encolhido e o rosto
voltado para a silenciosa massa luminosa... Não consigo entender como
chegou ali, mas, quase no mesmo instante que o cilindro de luz branca
tocou na clareira, uma figura humana – assim me pareceu pelo menos –
surgiu sobre a laje de pedra, aproximando-se imediatamente do Rabi.
Estava de costas para mim e, naturalmente, apesar da ofuscante luz que
inundava a zona, a sua estrutura fisíca tinha de ser sólida e consistente,
e a prova é que, ao chegar à altura do Mestre, o escondeu com o corpo.
O pavor, possivelmente, tornou ainda mais agudos os escassos
sentidos que continuava a controlar. E toda a minha atenção ficou
polarizada na figura daquele ser. Era muito alto.
Muito mais que Jesus. Possivelmente, ia além dos dois metros. Não
se vestia como nós. Pelo contrário, a sua indumentária lembrou-me a dos
pilotos de combate da USAF, embora com um corte muito mais justo ao
corpo e brilho metalizado intenso. (Ainda que esta sensação podesse ser
devida à claridade reinante.) O vestuário parecia ser feito de uma só
peça, com um cinto relativamente largo e do mesmo tom – semelhante ao
do alumínio
- do do resto do traje. As calças (isso chamou-me muito a atenção)
estavam enfiadas dentro de umas botas de meio cano, douradas. Quanto
à cabeça, só consegui ver a zona occipital e a nuca. Tinha cabelo branco,
liso e abundante, que lhe caía até aos ombros. Não havia dúvida de que se
tratava de um indivíduo musculoso, de costas muito largas.
Embora o silêncio fosse total, não consegui ouvir palavra alguma.
Ignoro se houve diálogo. Tudo o que pude perceber foi o movimento do
braço direito daquele ser, dirigido para Jesus, o qual, provavelmente
devia continuar de joelhos... Se não fosse Eliseu, também não teria sido
capaz de contar o tempo decorrido. Segundo o meu companheiro, aquele
lapsus – em que a ligação auditiva com o módulo ficou em branco – durou
entre quatro e cinco minutos, aproximadamente.
Ao fim deste tempo, a figura daquele ser e o cilindro luminoso
extinguiram-se instantaneamente. E disse bem: instantaneamente! Não
houve – ou, pelo menos, não o pude apreciar – elevação do ser para o
disco luminoso. E também não o vi afastar-se ou desaparecer no olival...
Pura e simplesmente, não tenho qualquer explicação. Em seguida, a luz
oscilou suavemente, elevando-se na vertical, com uma aceleração que me
deu vertigens. Num abrir e fechar de olhos (partindo do princípio que me
era possível pestanejar), o objecto converteu-se num
ponto insignificante, perdendo-se no infinito. Quase a seguir, tanto
João Marcos como eu recuperámos a mobilidade. E o vento voltou a
soprar com força por entre as ramadas das árvores, enquanto as cabras
guardadas na gruta baliam em lamentos. ..
Jasão... Estás a receber... ? Jasão! Pelo amor de Deus...
Responde... A voz de Eliseu continuava a insistir.
Inspirei com toda a força, tentando acalmar os nervos.
- Afirmativo... - respondi, com o pouco de voz que me restava. -
Roger... Até que enfim!... Jasão, estás bem?...
Que se passou? Tranquilizei como pude o meu companheiro, dizendolhe
que tentaria explicar mais tarde. A verdade é que a minha confusão
tinha aumentado. Por um instante pensei que fora tudo um pesadelo. Mas
não. Ao olhar o Mestre, a minha perplexidade aumentou; a película
ensanguentada e os regos de sangue que lhe enchiam a cara, pescoço e
mãos tinham desaparecido! O semblante continuava pálido e macilento,
mas não apresentava sinais do recente fenómeno da henato-hidrose.
Era impossível que Jesus tivesse tido tempo de ir até algum dos
recipientes de água do acampamento e proceder à lavagem da cara,
pescoço e mãos. Além disso, se assim tivesse acontecido eu tê-lo-ia visto
afastar-se e, naturalmente, voltar à rocha.
Pelo contrário, tenho a certeza – certeza absoluta – de que o
Mestre não abandonara em momento algum a sua posição: ajoelhado, na
clareira.
Incompreensivelmente, João Marcos, continuava acachapado atrás
do muro de pedra, como se nada tivesse acontecido. Mais tarde, quando
o interroguei quanto ao que se passara naquela noite no horto, o rapaz
respondeu afirmativamente:
- Sim – disse sem dar excessiva importância, e como se já tivesse
sido testemunha de outros acontecimentos semelhantes -, o Pai mandou
um anjo... Claro que o vi... O Galileu, muito mais sereno, levantou
novamente o olhar para os céus e sorriu. Depois levantou-se e, com
passada firme, dirigiu-se para o olival. Não sei como mas a súbita
presença daquele anjo, astronauta, fantasma, ou lá o que fosse, influíra
decisivamente no ânimo do Filho do Homem. A expressão do evangelista –
e o anjo o confortou – não podia ser mais apropriada.
O Nazareno devia ter encontrado os Seus discípulos novamente
adormecidos. Depois de gesticular com eles voltou atrás, ajoelhando-se
pela terceira vez unto da pedra. Eraassombroso. Nenhum dos discípulos
parecia ter-se apercebido do que acontecera. Provavelmente, estavam a
dormir.
Uma vez ali, e no tom de voz habitual, o Mestre falou assim, sempre
com os olhos postos no céu:
- Pai, vês os Meus apóstolos adormecidos... Estende sobre eles a Tua
misericórdia. Na verdade, o espírito está pronto, mas a carne é fraca...
Jesus ficou em silêncio e inclinou a cabeça, fechando os olhos.
Depois, decorridos poucos segundos, voltou novamente o rosto para os
céus, exclamando:
- E agora, Meu Pai, se este cálice não se pode afastar...
bebê-lo-ei. Que sej a feita a tua vontade e não a minha...
Devia ser quase uma da madrugada daquela sexta-feira, 7 de Abril,
quando o Gigante – depois de permanecer uns minutos em recolhimento
total – se levantou pela última vez, dirigindo-se ao ponto onde os três
apóstolos dormiam profundamente.
Mas, nesta ocasião, o Galileu não regressou à clareira.
Acordou os seus homens e, pouco depois, os quatro metiam-se pelo
olival, perdendo-se de vista. Meditei muito sobre aquelas estranhas
palavras de Jesus. Que quereria dizer, quando falou em afastar o cálice?
Referia-se à possibilidade de evitar os suplícios e a morte? Durante
algum tempo, assim pensei. Mas, depois de ser testemunha da Sua Paixão
e outra interpretação – mais subtil – veio substituir a minha ideia
anterior. Comecei então a ter a intuição da grande tragédia do Mestre
naqueles críticos momentos da chamada oração do horto.
Não foi o medo o que possivelmente provocou a sua imensa angústia
e o suor ensanguentado. Ele sabia o que o destino Lhe reservava e, como
demonstrou claramente, enfrentou a dor abertamente e com valentia.
Mas, pela mão dessas torturas, o Galileu sabia que também chegariam as
humilhações. Deve ter sido a visão dos vexames a que criaturas por Si
criadas iriam submetê-lo, que levou o Galileu a mergulhar num estado de
aguda prostração.
Se, realmente, era o Filho de Deus, a simples observação – e muito
mais o sofrimento – da barbárie e primitivismo dos Seus homens para
com Ele próprio tinha de lhe ser insuportável.
Guardadas as devidas proporções, imagino o terrível sofrimento
moral de um pai, ao ver como os seus filhos o esbofeteiam, insultam,
ferem e injuriam...
João Marcos e eu apressámo-nos a saltar o muro que nos separava
da clareira onde tivera lugar a tripla oração do horto e, com idêntica
prudência, penetrámos no olival, seguindo os passos de Jesus e dos
discípulos. À medida que nos aproximávamos do terreiro do
acampamento, um pensamento – talvez tão absurdo quanto inoportuno –
continuava a martelar-me o cérebro. Não podia afastar da mente as
imagens daquele ser de mais de dois metros e do objecto – porque aquilo
era um veículo tripulado – que tinha sido capaz de desafiar tão
eloquentemente as leis da gravidade.
Que tipo de objecto era aquele? Que tecnologia podia realizar tais
acelerações e desacelerações (1)? E, principalmente, que relação
tinha tudo aquilo com Jesus e com a Divindade? Daria anos de vida
para ter registado a conversa entre o Mestre e aquele misterioso ser.
Amaldiçoei a minha má estrela, que não me deixou ver os rostos de
ambas as personagens, e interpretar pelo menos, o que se tinha passado
entre eles. Desde então uma grande incerteza tomou conta de mim:
podia ser um anjo? Se realmente era assim, como os teólogos estão longe
da verdade...
* Como membro da Força Aérea sei até onde chega a resistência
humana à gravidade. Alguns astronautas, utilizando fatos muito
sofisticados chegaram a suportar 11 g” (o valor normal da aceleração da
gravidade – quer dizer de uma g – é de 9,80665 metros por segundo, em
cada segundo). Segundo o meu cálculo, aquele objecto praticou uma
queda, e um arranque que deve ter submetido os pilotos, a 20 g ou 30 g.
(N. Do M.)
Quando, por fim, chegámos ao acampamento, tudo continuava mais
ou menos igual. Os discípulos do Mestre, profundamente adormecidos,
mantinham-se alheios a quanto acabava de acontecer a poucos metros
das barracas. E digo que tudo estava mais ou menos como antes porque,
coincidindo com o nosso regresso, dois dos agentes secretos de David
Zebedeu entravam também no horto. Ofegantes e excitados,
perguntaram pelo seu chefe. Foi João Marcos quem lhes apontou o lugar
onde ele estava de guarda.
Entretanto, o Mestre, aconselhava Pedro, João e Tiago a que
fossem dormir. Mas os apóstolos, talvez suficientemente repousados
pelos sonos breves mas profundos que tinham desfrutado nas
proximidades da gruta, e mais nervosos pcrante a súbita chegada dos
mensageiros, recusaram. Sem poder resistir à tentação, o fogoso Pedro
interrogou um dos agentes de Zebedeu.
O homem, apertado pelas perguntas de Simão, acabou por lhe dizer
que um destacamento de sicários do Sinédrio e uma escolta romana se
encaminhavam para ali. De rosto contorcido, Pedro recuou. Mas quando
se dirigia para as tendas, na intenção de acordar os companheiros, Jesus
interpôs-se no seu caminho, ordenando-lhe que se mantivesse em
silêncio. A recomendação do Galileu foi tão firme que os discípulos,
desconcertados, ficaram como que pregados ao chão.
Os gregos, que acampavam ao ar livre, foram também acordados
pela entrada dos agentes de Zebedeu e não tardaram em rodear Jesus e
os três apóstolos, interrogando-os. Porém, o Mestre que recuperara a
serenidade habitual pediu-lhes que se tranquilizassem e que voltassem
para junto do lagar de azeite.
Foi inútil. Nenhum dos presentes se moveu do sítio em que estava.
O Nazareno compreendeu a atìtude dos homens e, sem dizer uma
palavra, afastou-se do grupo, deixando o acampamento com grandes
passadas.
Durante uns segundos, os gregos e os apóstolos vacilaram.
Uma vez mais foi o jovem João Marcos quem tomou a iniciativa.
Num abrir e fechar de olhos saiu do horto e desapareceu, encosta
abaixo. Aquela inesperada reacção de Jesus, saindo da herdade de
Getsémani, desorientou-me. Segundo os evangelhos canónicos, fonte
principal de informação, a prisão devia ser levada a cabo no horto.
No entanto, o Nazareno acabava de o deixar... Sem pensar duas
vezes, segui os passos do rapaz, deixando os três apóstolos e os gregos,
imóveis, a meio do acampamento.
Tanto Jesus como João Marcos tinham ido pelo caminho que
percorria a encosta ocidental do monte das Oliveiras e que em várias
alturas me levara até à pequena ponte sobre o leito agora seco do
Cédron. Naquele momento, e justamente do outro lado da ponte, chamoume
a atenção o movimento de um grande número de archotes. Ao
observar mais atentamente, verifiquei que se dirigia para aquele lado do
monte. Deviam ser aqueles os homens armados de que falara o
mensageiro de Zebedeu.
Surpreendido, continuei a descer a vereda até que, numa das curvas
vi João Marcos – seria mais correcto dizer que só distingui o seu lençol
branco -, que se refugiava numa pequena barraca de madeira, mesmo
junto do atalho.
Parei, sem saber que fazer. Mas as minhas surpresas naquela
madrugada de sexta-feira mal tinham ainda começado.
Junto da barraca avistei outra cuba – semelhante à da entrada do
acampamento de Getsémani -, que devia fazer parte de um dos lagares
de azeite, tão abundantes no monte das Oliveiras. O Mestre sentara-se
no pequeno muro de pedra da prensa, a dois passos do caminho, voltado
para onde, sempre mais perto, vinha o oscilante enxame de luzes
amareladas.
Num primeiro momento, pensei também em esconder-me na barraca.
Mas desisti da ideia. Ignorava absolutamente o curso que os
acontecimentos podiam tomar e preferi manter-me em local mais aberto.
De ambos os lados da vereda alongavam-se os olivais. Podia ser um bom
ponto de observação.
Rapidamente, deixei o caminho, enfiando-me pelo escuro olival
situado à esquerda do atalho. Escolhi uma das árvores mais altas e
ocultei-me na ramagem. Dali via Jesus, a pouco mais de cinco ou seis
metros. Mas, de repente, fui assaltado por uma dúvida que quase me fez
descer da oliveira. E se o Galileu regressasse ao acampamento? Nesse
caso, não teria outro remédio senão arriscar-me a ir atrás do grupo
armado...
Se não me enganava, a distância percorrida por Jesus da porta de
entrada ao horto de Simão, o Leproso, até àquela curva do serpenteante
caminho em ferradura, fora de uns cento ou cento e cinquenta passos.
Ao vê-lo ali, tão estranhamente sereno, comecei a compreender. Não era
preciso ser muito inteligente para se perceber que aquele rápido
afastamento da zona onde continuavam os seus homens só podia ser
motivado pelo desejo de que o seu encontro com Judas e a guarda do
Sinédrio não afectasse os discípulos. Ele sabia que muitos dos discípulos
e dos gregos tinham armas, e, provavelmente, quis evitar o risco de um
choque armado. Se a memória não me enganava, no acampamento devia
haver, naquele momento, à volta de sessenta homens.
Bastaria que algum deles – Pedro ou Simão, o Zelota, por exemplo –
desembainhasse a sua espada, para provocar um sangrento combate. Se
a versão do agente secreto de Zebedeu estava certa, aos levitas do
Templo tinha de se juntar a patrulha romana. E isto, sem dúvida alguma,
complicava as coisas. Os legionários da Fortaleza Antónia não se
distinguiam precisamente pelos modos suaves... Eu fora testemunha da
sua ferocidade no espancamento de um camarada.
Que podia então esperar-se daqueles infantes aguerridos no caso
de se chegar a um combate? O mais provável, era que muitos dos
discípulos do Mestre fossem feridos ou mortos e, no melhor dos casos,
feitos prisioneiros. E Jesus, a julgar pelas orações do olival, queria
evitá-lo a todo o custo. Que teria sido da sua missão e da futura
propagação do evangelho do reino, se os pregadores tivessem tombado,
aquela noite, no Getsémani? Os archotes apareciam e desapareciam no
arvoredo, aproximando-se cada vez mais. Pedi a Eliseu que me
informasse quanto à hora exacta. Eram uma e quinze minutos da
madrugada.
A Lua continuava a brilhar, proporcionando-me uma mais que
aceitável visibilidade. De repente, e quando o cacho de archotes se
encontrava ainda a certa distância do lugar onde Jesus esperava, vi
aparecer na vereda um indivíduo.
Subia a correr, seguindo na direcção do acampamento. Jesus, ao vêlo,
pôs-se de pé, e postou-se a meio do caminho. O apressado caminhante
– que a princípio não consegui identificar – logo descobriu a alta figura
do Galileu, com a branca túnica banhada pelo luar. A presença inesperada
do Mestre, cortando-lhe a passagem, deve tê-lo desorientado, porque
estacou. Mas após segundos de indecisão continuou a avançar, desta vez
sem muita pressa.
A misteriosa personagem, envolta num manto escuro, devia
encontrar-se a trinta ou quarenta metros do Rabi, quando, ao fundo da
vereda, entrou em cena o pelotão que trazia os archotes. Vinha em
desordem, embora formando uma longa fileira de gente. À primeira
vista, deviam ser mais de cem homens.
Conforme se foram aproximando, pude distinguir, entre os homens à
cabeça, cerca de trinta soldados romanos. Traziam a mesma
indumentária que já vira entre os legionários da Torre Antónia, e
estavam armados de espadas, algumas lanças e escudos. Imediatamente
atrás – quase misturados com os primeiros – um tropel de quarenta ou
cinquenta levitas, ou guardas do Templo, na sua maioria armados com
bastões e clavas de pregos.
A surpresa que experimentei atingiu o máximo quando, à minha
direita, surgiram outros archotes, espalhados entre as oliveiras. Não
eram muitos; talvez uma dezena. Mas ziguezagueavam a grandes
velocidades, descendo para o ponto onde se encontrava Jesus. Pela
direcção que traziam, pensei que se tratava dos discípulos. E um calafrio
voltou a percorrer-me o corpo. Se os dois grupos chegassem a
enfrentar-se, sabia-se lá o que poderia acontecer.
O grupo à minha esquerda – o que vinha de Jerusalém – continuou a
avançar em silêncio, até se deter à distância de uma pedrada do Galileu.
Por seu lado, os que acabavam de aparecer pela direita, acabaram por se
concentrar na vereda.
Uma vez reagrupados, continuaram a descer, mas agora com grande
lentidão.
Quando o grupo armado que viera para prender o Nazareno parou,
os adeptos de Jesus fizeram o mesmo. Estavam agora muito mais perto
do Mestre. Talvez a vinte óu vinte e cinco passos.
À luz das tochas, distingui Pedro na primeira linha. E com ele João,
Tiago e uma vintena de gregos. No entanto, por mais que observasse, não
vi Simão, o Zelota, nem os restantes apóstolos e discípulos. Aquilo
significava que ninguém os acordara.
Durante uns minutos que me pareceram intermináveis, só o vento
assobiou por entre as oliveiras, agitando as chamas dos archutes de
ambos os grupos.
Jesus – no meio – continuava à espera daquele homem que se
destacara da turba vinda da Cidade Santa. Quando faltavam apenas uns
metros para que chegasse junto do Rabi, a Lua fez sobressair a palidez
do seu rosto. Era Judas! Mas por que razão se adiantara à força
armada? O mistério seria deslindado na manhã seguinte, pouco antes do
fatal e inesperado acontecimento que provocaria a morte do Iscariotes.
(Uma vez mais, Judas maquinara os seus planos com tanta astúcia como
maldade.)
Por fim, Jesus reagiu. Com grande dignidade, avançou para Judas
mas, ao chegar junto dele, desviou-se para o limite esquerdo do caminho,
evitando o traidor. O Iscariotes, perplexo, voltou-se naquela altura. O
Mestre tinha continuado na direcção da soldadesca, detendo os seus
passos a poucos metros do grupo. Dali, em voz muito alta, interpelou o
que parecia ser o chefe: - Que procurais aqui?
O soldado romano, que, a ajuizar pelo capacete com um penacho de
penas vermelhas e pela espada (colocada na ilharga esquerda), devia ser
um oficial, avançou por sua vez e, em grego, respondeu:
- Jesus de Nazaré!
O Mestre avançou então para o suposto centurião, e com grande
solenidade, exclamou: - Sou Eu...
Ao escutarem as serenas e majestosas palavras daquele Gigante, os
cinco ou seis legionários que ocupavam a primeira fila recuaram
bruscamente. Este movimento súbito fez que alguns esbarrassem nos
companheiros colocados imediatamente atrás, provocando uma série de
quedas grotescas. Entre os que deram com os ossos em terra estavam
também alguns que traziam archotes. E estes, ao caírem sobre os
companheiros no chão, contribuíram para multiplicar a confusão. O
oficial, indignado, recuou até ao grupo da frente e começou a golpear os
cobardes e vacilantes soldados com o bastão que trazia na mão direita.
(Aquela cena trouxe-me à memória o relato evangélico de João: o único
que fala desta queda da força armada que viera prender o Mestre. Mas,
bem longe do carácter milagroso que alguns teólogos e exegetas
quiseram ver no referido acontecimento, a única verdade é que aqueles
homens rolaram no solo em consequência de um movimento mal calculado.
Outra questão é o motivo por que recuaram. Em minha opinião é
possível que tivessem medo. Quase todos tinham visto Jesus quando
pregava no adro do Templo e também era muito provável que tivessem
sabido dos Seus prodígios e do Seu poder. Se unirmos isto à valentia com
que o Galileu se apresentou perante eles, talvez tenhamos aí a
resposta...) Enquanto os infantes romanos se punham de pé e
recuperavam a sua maltratada dignidade, Judas – cujos planos não
estavam a sair tal como tinha previsto, segundo pude averiguar horas
mais tarde – aproximou-se do Nazareno, abraçando-o. Imediatamente, e
de modo ostensivo – para que todos o pudessem ver -, levantou-se nas
pontas das sandálias, dando um beijo na testa de Jesus, ao mesmo tempo
que Lhe dizia: - Saúde, Mestre e Guia!
O Galileu, sem perder a serenidade, respondeu-lhe:
- Amigo... não basta fazer isto? Será que queres ainda trair o Filho
do Homem com um beijo?
E antes que Judas pudesse reagir, o Mestre libertou-se do abraço
do traidor, fitando novamente o oficial romano e a restante força
armada. - Quem procuram?
- Jesus de Nazaré – repetiu o oficial.
- Já te disse que sou Eu... Portanto – prosseguiu Jesus -, se era a
Mim que procuravas, deixa que os outros sigam o seu caminho... Estou
disposto a seguir-Te...
O oficial achou que era razoável o pedido do Nazareno.
Pôs-se a Seu lado e, quando se dispunha a regressar a Jerusalém,
um dos guardas do Sinédrio saiu do pelotão, lançando-se sobre Jesus.
Trazia nas mãos uma corda. E, apesar de o chefe da patrulha romana não
ter dado tal ordem, aquele sírio, que respondia ao nome de Malchus ou
Malco, apressou-se a agarrar os braços do Rabi, tentando atá-los pelas
costas.
Ao vê-lo o oficial levantou o bastão, disposto, sem dúvida, a afastar
o intruso. Mas a fulminante entrada em acção de Pedro e dos seus
companheiros iria anular os propósitos do responsável pela prisão.
Efectivamente, com rapidez vertiginosa, Pedro e os outros – indignados
pela acção de Malco – precipitaram-se sobre o guarda do Sinédrio. Simão
Tiago e alguns dos gregos tinham desembainhado as espadas e, soltando
todo o tipo de imprecações, prepararam-se para o combate.
Antes que a escolta romana tivesse tempo de proteger Malco, Pedro
– espada ao alto – caiu sobre o aterrorizado servo do sumo sacerdote,
vibrando-lhe um violento golpe na cabeça. No último instante, Malco
conseguiu desviar-se, evitando que o poderoso golpe de Pedro lhe abrisse
o crânio. No entanto, o fio da espada passou-lhe rente ao lado direito da
cara, levando-lhe a orelha e ferindo-o no ombro.
Então, Jesus levantou um braço para Pedro e, com grande
severidade censurou-lhe o procedimento:
- Pedro, embainha a tua espada... Quem quer que desembainhe a
espada morrerá pela espada. Não compreendeis que é vontade de Meu
Pai que Eu beba este cálice? Não sabeis que agora mesmo poderia enviar
dezenas de legiões de anjos e os seus companheiros me libertariam das
mãos dos homens? Os discípulos – Pedro, especialmente – ficaram
aturdidos.
Não entendiam as palavras do Mestre e, menos ainda, a sua
docilidade perante o inimigo.
Malco continuava a torcer-se e a gritar de dor, quando Jesus se
inclinou para ele. Com grande firmeza retirou-lhe a mão do ouvido
ensanguentado, colocando a sua palma direita sobre a ferida. Em questão
de segundos, os gemidos diminuíram, tornando-se sempre mais fracos e
espaçados. Depois, o Rabi repetiu a operação, pondo-lhe a mão sobre o
ombro. Do cimo da árvore, não pude verificar que tipo de cura fez o
Galileu. No entanto, o que era claro é que fizera parar a abundante
hemorragia e praticamente congelara a dor daquele infeliz. (No decorrer
das duas intensas jornadas seguintes, antes do meu regresso definitivo
ao módulo, procurei, por todos os meios, localizar o sírio e verificar o
ferimento que Pedro lhe fizera. No entanto, os meus esforços foram
baldados.) A atitude belicosa de Pedro e dos companheiros só serviu
para piorar as coisas.
O oficial romano ignorou as palavras pacíficas e o gesto humanitário
de Jesus com Malco e ordenou aos legionários que o prendessem,
atando-Lhe os pulsos atrás das costas. Enquanto o manietavam, o
Mestre, profundamente magoado por aquela humilhação, dirigiu-se aos
levitas e soldados que, com as espadas e bastões preparados para repelir
qualquer outro ataque, contemplavam a cena:
- Para que empunhais as espadas e paus contra Mim, como se fosse
um ladrão?
Todos os dias estive convosco no Templo, educando e ensinando
publicamente o povo, sem que nada fizésseis para me deter...
Mas ninguém respondeu.
Uma vez o Rabi imobilizado com grossas cordas, o oficial dirigiu-se
aos seus homens, ordenando que prendessem também aquele grupo de
fanáticos, segundo as suas próprias palavras.
Porém, a patrulha não reagiu a tempo e Pedro e os seus
companheiros fugiram dali, atirando os archotes contra os romanos. Este
novo erro da escolta foi mais que suficiente para que a vintena de
adeptos do Mestre se dispersasse pela encosta, entre os olivais.
A quase totalidade dos legionários foi em sua perseguição. No
entanto, os discípulos – que conheciam melhor o terreno e iam com
pânico bastante para voar, mais do que correr – não tardaram em
desaparecer. A prova é que, cinco ou dez minutos depois, o grupo armado
regressou ao caminho, iniciando o regresso a Jerusalém.
Fortemente escoltado, o Mestre não tardou em desaparecer com
eles, numa das curvas do caminho.
Eram duas menos dez da madrugada...
A vozearia dos legionários foi-se dissipando. E ali fiquei eu, com o
coração apertado e num silêncio de morte. Tinha, porém, de continuar
com a minha missão. E assim, tentando não fazer barulho, desci da copa
da oliveira. As minhas ideias – reconheço-o – não eram muito claras.
Durante alguns segundos, e ainda junto da árvore, vacilei.
Que caminho devia tomar? Voltar ao acampamento e juntar-me ao
que restasse do grupo de gregos e discípulos não me parecia o melhor.
Além disso, sabia-se lá onde teriam ido parar? Era muito mais lógico
seguir as pisadas do pelotão de soldados e guardas do Templo.
Mas, como chegar junto deles sem levantar suspeitas e, o que era
pior, sem que me detivessem? Quando me preparava para deixar o olival
e encaminhar-me para a Cidade Santa, as silhuetas de dois legionários
que tinham ficado para trás apareceram de repente entre as oliveiras,
do outro lado da vereda. Agarrei-me como pude a um dos troncos e
esperei que passassem.
Se descobrissem a minha presença ter-me-ia visto numa situação
delicada. Mas, no momento em que os soldados entravam na vereda, João
Marcos – que se mantivera escondido durante tudo aquilo – assomou à
porta da barraca. Embora procedesse com grande cuidado, os romanos
viram imediatamente o seu lençol branco e correram para o rapaz. Desta
vez, a reacção dos infantes foi tão rápida que Marcos não teve tempo de
escapar.
Um dos legionários agarrou o lençol, enquanto o segundo, também a
correr, seguia atrás do companheiro. Mas o ágil Marcos não se deu por
vencido. Sem pensar duas vezes, largou o lençol, fugindo nu por entre as
oliveiras de onde tinham vindo os inoportunos estrangeiros. Aquela
manobra do jovem apanhou os romanos desprevenidos, e fez que
perdessem segundos preciosos. Aquele que tinha conseguido agarrar
João Marcos, atirou o lençol ao chão e, soltando várias maldições,
desembainhou a espada e desatou a correr às cegas.
O companheiro fez o mesmo, enfiando-se novamente pelo bosque.
Mas, naquela noite, a má sorte parecia encarniçar-se contra os
soldados romanos, e o segundo legionário tropeçou numa das raízes do
olival, caindo de bruços. Em consequência da queda, o capacete do
romano foi arremessado, rolando pela encosta.
Porém, o enfurecido infante – na ânsia de apanhar o emboscado
- não procurou o elmo.
Sabia que era arriscado mas, deixando-me guiar pela intuição,
abandonei o meu esconderijo e aproximei-me do sítio onde caíra o
capacete. Apanhei-o e, tentanto tranquilizar-me, esperei. Era,
efectivamente, um elmo de couro, sem adornos ou distintivos.
Não tive de esperar muito. Em poucos minutos, os legionários
regressaram à estrema do olival. No entanto, preocupados em encontrar
o capacete, não deram pela minha presença. Então, levantando a voz e o
elmo, dirigi-me a eles em grego. Ao verem-me, os soldados não reagiram.
Pouco a pouco, foram-se aproximando. Um suor frio começou a
encharcar-me a túnica. Se aquele estratagema não desse resultado, a
minha segurança podia ver-se seriamente ameaçada. O que tinha perdido
o elmo, chegou até mim e, parando a uns dois metros, inspeccionou-me
dos pés à cabeça. Estava suado e sem fôlego. O segundo legionário não
tardou em pôr-se a seu lado.
Tentei sorrir mas, francamente, não sei se o consegui. O caso é que,
procurando esconder o tremor das mãos, entreguei-lhe o capacete. O
romano apressou-se a recebê-lo, arrebatando-mo com violência, e
imediatamente o pôs na cabeça.
- Quem és? - falou, por fim, o segundo soldado.
- Chamo-me Jasão – respondi, com o coração apertado. - Sou grego
e vou para Jerusalém... De repente, lembrei-me da autorização que me
concedera o procurador romano, com a finalidade de me facilitar a
entrada na Fortaleza Antónia. Sem hesitar, lancei mão da bolsa e
mostrei-lhes o salvo-conduto, explicando-lhes que naquela mesma manhã
de sexta-feira deveria visitar Pôncio Pilatos.
Os legionários desviaram o olhar para o rolo, embora eu duvidasse
que soubessem ler. Contudo, deviam ter identificado a assinatura de
Pilatos, porque a sua atitude se tornou mais condescendente. - De onde
vens?
- De Betânia...
- Então – continuou o legionário que falava grego – não sabes o que
aconteceu aqui?
- Aqui – perguntei, num tom de total ignorância. - Não, que
aconteceu?
- Não tem importância – concluiu o legionário. - Nós também vamos
para Jerusalém. Se queres, podemos escoltar-te...
Senti-me encantado com tal oferta mas, quando parecia tudo
resolvido, o soldado que perdera o capacete pegou na lança do
acompanhante e sem uma palavra inclinou-a para o meu peito.
Fiquei paralisado. Ao olhar de novo para o infante, o seu rosto
pareceu-me familiar. O soldado acabou por sorrir. Claro! Logo me
lembrei. Era a sentinela da Torre Antónia, o que me apontara o pilum
enquanto eu e José de Arimateia esperávamos que voltasse o seu
companheiro... Retribuí o sorriso e o legionário – satisfeito por ver que o
tinha reconhecido – retirou a lança, explicando ao segundo e intrigado
soldado que, efectivamente, me vira às portas da Torre Antónia e que eu
não mentia.
Aquele encontro fortuito com o meu amigo legionário ia ser-me
muito útil...
Os soldados tinham pressa de alcançar o pelotão que conduzia o
Nazareno e, dali a pouco, avistámos os archotes. Mas, para minha
surpresa, o grupo parara a meio caminho. Quando os dois retardatários
se juntaram à patrulha romana, insinuei que talvez fosse mais prudente
eu continuar na retaguarda ou seguir directamente para Jerusalém. Mas
a sentinela, que parecia muito honrada com a minha amizade, aconselhoume
a permanecer junto dele. E assim fiz. Desta forma, ao aproximar-se
do oficial que comandava o pelotão, compreendi porque tinham parado. O
chefe dos levitas teimava em levar o Nazareno à residência de Caifás.
No entanto, o optio romano, uma espécie de lugar-tenente dos
centuriões (1), responsável pela captura e custódia do prisioneiro,
opunha-se a esta decisão, considerando que as suas ordens eram
precisas: Jesus de Nazaré devia ser conduzido à presença do ex-sumo
sacerdote Anás. (Segundo parecia, as relações entre o procurador
romano e as castas sacerdotais judaicas continuavam a manter-se,
através do poderoso e influente sogro de Caifás.)
Os guardas levitas tiveram de ceder e Arsenius – o optio ou oficial
subalterno romano – ordenou que a patrulha recomeçasse o seu caminho
para o Bairro Baixo de Jerusalém. Durante a discussão, Jesus
permaneceu em silêncio, de olhos baixos e praticamente ausente.
Judas, por seu lado, colocara-se entre os dois chefes – o romano e o
levita – mas, por mais que tentasse o diálogo, estes evitavam as suas
perguntas, permanecendo num silêncio total e violento. Quando perguntei
ao legionário a razão daquela atitude do optio e do capitão dos guardas
do Templo para o Iscariotes, o meu amigo respondeu com uma afirmação
contundente: - É um traidor...
Estávamos já a poucos metros da ponte que unia a encosta do monte
das Oliveiras ao terreiro situado junto da muralha oriental do Templo,
quando se deu um facto desconcertante e imprevisto.
À cabeça do cortejo marchavam ambos os capitães. No meio deles,
Judas, e, imediatamente atrás, a patrulha romana, cercando Jesus. Por
último, o bando dos levitas e servos do Sinédrio, envoltos nos seus
mantos, furiosos pela firme decisão do oficial romano de entregar o
Galileu ao antigo sumo sacerdote. Eu caminhava à esquerda do grupo,
junto dos últimos legionários.
Subitamente, João, o Evangelista, apareceu à direita, avançando até
* A figura do optio representava um oficial subalterno.
Directamente sob o comando do centurião. Geralmente, enviava
pequenos grupos de tropas. Aliviando o oficial das suas funções
administrativas, disposição das guardas, instrução militar etc. Deu-selhes
o nome de optiones, segundo Festo, porque, desde o tempo em que
foi permitido aos centuriões eleger ou optare o que desejavam. Foi-lhes
aplicado também o nome de optio, por causa da eleição”. (N. Do M.)
chegar perto do Mestre. Fiquei estupefacto perante a valente
resolução do jovem discípulo. Pelo que pude observar, João devia ter
perdido o manto na fuga anárquica dos adeptos do Rabi. Trazia apenas a
sua túnica curta – até aos joelhos – e, na faixa, uma espada. Ao veremno,
os guardas do Templo ficaram alarmados e avisaram o chefe da
presença do galileu. O pelotão parou novamente e o capitão dos levitas
ordenou aos seus homens que prendessem e atassem também João. Mas,
quando os sicários de Caifás se dispunham a amarrá-lo, Arsenius
interveio de novo. O veterano oficial, sagaz e de nobre condição,
interpôs-se entre o apóstolo e os levitas, exclamando:
- Alto! Este homem não é um traidor e também não é um cobarde!
Os hebreus não pareciam muito dispostos a perder também aquela
oportunidade e protestaram energicamente. Os olhos do ajudante do
centurião cravaram-se nos do capitão da guarda do Sinédrio. Baixou o
rosto, mal barbeado, cerrou fortemente os maxilares e, levantando o
bastão até o deixar a um palmo da testa do chefe dos levitas, repetiu em
tom ameaçador:
- Estou a dizer-te que este homem não é um traidor nem um
cobarde... Pude vê-lo antes e não puxou da espada para resistir. Agora
teve a valentia de vir até aqui para estar com o seu mestre.
Fazendo assobiar a vara com uma série de curtos e breves
movimentos de pulso, acrescentou, ao mesmo tempo que o responsável
dos judeus recuava, espantado: - Que ninguém ponha as mãos nele... A lei
romana concede a todos os prisioneiros o privilégio de um amigo que o
acompanhe ante o tribunal. Portanto, ninguém impedirá que este galileu
permaneça ao lado do réu.
O ódio e o desprezo do optio romano pelos judeus, em geral, e por
aqueles, em particular, deviam ser tão grandes que, no fundo, a insólita
ordem do oficial podia ser motivada, em minha opinião, não só por
admirar o gesto audaz de João, mas também para humilhar e contrariar
aqueles cobardes, incapazes de enfrentar por si mesmos o Nazareno.
(Ao chegar ao palácio de Anás, José de Arimateia explicar-me-ia, com
grande soma de pormenores, as manobras tortuosas do Iscariotes e dos
levitas, que chegaram até, a solicitar à guarnição romana que os
acompanhasse para deter Jesus.)
E devo acrescentar que, no meu regresso desta primeira grande
viagem, consultei distintos especialistas de direito e jurisprudência
romanos, procurando averiguar se, efectivamente, existira essa lei,
invocada pelo optio. Mas, até este momento, as minhas indagações têm
sido vãs. Os antigos romanos, como hoje os ingleses tradicionalistas, não
eram muito amantes de leis, tal como nós as interpretamos. O seu
direito, felizmente para eles, não se baseava precisamente em leis1.
Segundo
1 Alguns especialistas falam na possibilidade de a referida lei, se
tratar, na realidade, de uma adaptação” muito particular do regime da
garantia de apresentação perante o juiz, mediante os chamados praedes
vades, que servia precisamente para evitar a prisão preventiva do réu,
tal como se faz actualmente com a abusivamente chamada fiança, (que
não é uma garantia pessoal. Mas sim um depósito em dinheiro). (N. do M.)
os especialistas que interroguei, a disposição invocada pelo oficial
Arsenius não era hábito da época e, principalmente, das autoridades que
ocupavam aquela província romana. A arbitrariedade existente na altura
de aplicar justiça ou de tratar de um prisioneiro era tal que, pelo menos
para os estudiosos do Direito Romano, a conduta do oficial era
perfeitamente possível. Não podemos esquecer que os donos e senhores
de vidas e bens daquele país revolucionário continuavam a ser os
romanos.
Esta providencial ordem do optio da Torre Antónia veio dar
resposta a outra das minhas interrogações. Como era possível que João
Zebedeu fosse o único apóstolo a declarar nos seus escritos ter sido
testemunha ocular de muitos dos acontecimentos que se viveram ao
longo daquela sexta-feira? Logicamente, se não fosse esta inestimável
ajuda do oficial subalterno Arsenius, o discípulo de Jesus teria tido
muitos problemas em poder assistir aos interrogatórios e à Crucificação.
Tal como as coisas estavam, teria sido quase impossível que as castas
sacerdotais
- que odiavam o Mestre e os seus discípulos – cedessem e
aceitassem a livre presença de algum dos amigos do Prisioneiro. Só uma
imposição superior, emanada, neste caso, da autoridade romana, pôde
permitir a João assistir à morte de Cristo.
Apesar de tudo, o oficial romano, à cautela, ordenou a um dos seus
homens que desarmasse João. E o pelotão continuou o seu caminho.
O reconhecimento público da valentia de João pelo oficial romano
representou um duro golpe na dignidade de Judas.
Envergonhado, de cabeça baixa, sobrancelhas franzidas, foi
abandonando o passo até ficar para trás e sozinho. E assim chegou à
casa de Anás.
João, prudentemente, em momento algum falou com seu Mestre, que
também não manifestou vontade de se dirigir ao jovem.
Aliás, as circunstâncias não o aconselhavam. No entanto, quando nos
metemos pelas ruas desertas de Jerusalém, consegui pôr-me ao lado do
Zebedeu e perguntar-lhe pelos outros homens e, muito especialmente,
porque tomara a perigosa decisão de se unir a Jesus. O apóstolo, com os
olhos vermelhos de tanto ter chorado, pareceu alegrar-se um pouco ao
verificar que não se encontrava só e confessou-me que, depois de terem
conseguido despistar os legionários ele e Pedro tinham decidido seguir
Jesus. De resto, só sabia que tinha fugido em direcção ao acampamento.
Enquanto silenciosamente o seguia, João lembrou as instruções que o
Mestre lhe dera de permanecer a Seu lado, e apressou-se a alcançá-Lo.
Entretanto, Pedro – se é que não tinha mudado de parecer – devia
encontrar-se a certa distância, seguindo-nos, escondido pelas árvores.
Às duas e um quarto da madrugada, a comitiva parou diante da casa
de Anás, não muito longe da Porta de Sião, no extremo ocidental da
cidade e a breve distância, segundo os meus cálculos, da casa de João
Marcos. Ali, diante da cancela do espaçoso jardim, que se alongava em
frente da casa, o oficial romano entregou oficialmente o prisioneiro ao
chefe dos levitas. Mas antes, dirigindo-se a um dos legionários e de
modo a que todos pudessem ouvi-lo, ordenou:
- Acompanha o preso e vela para que estes miseráveis não o matem
sem o consentimento de Pilatos. Evita que o assassinem e providencia
para que este galileu – disse referindo-se a João – possa acompanhá-lo a
todo o momento. Observa bem quanto aconteça...
E, dando meia volta, afastou-se do local, na companhia do pelotão de
legionários. Ao despedir-me do soldado meti-lhe dissimuladamente uma
moeda de prata na mão, agradecendo a sua ajuda e pedindo-lhe que antes
de regressar à Fortaleza, falasse ao companheiro que fora designado
por Arsenius para defender Jesus e João e lhe suplicasse que me
permitisse fazer-lhes companhia. O infante sorriu e, sem fazer
perguntas, entendeu-se com o legionário para que os meus desejos
fossem cumpridos. Outro discreto e oportuno denário de prata no punho
deste último acabou por dissipar todas as reservas e receios.
De momento, a minha presença na casa de Anás estava garantida.
Uma vez no pátio, parte da guarda do Templo despediu-se,
afastando-se da sumptuosa residência do antigo sumo sacerdote.
Vários servidores de Anás aproximaram-se precipitadamente do
chefe dos levitas. Este ordenou que avisassem o amo: - O prisioneiro
chegou – disse-lhes, apontando o Nazareno, que continuava com as mãos
atadas atrás das costas e imóvel, no meio do pátio lajeado.
João continuava ao lado do Mestre e o legionário, por sua vez,
procurava não os perder de vista, bem como um reduzido grupo de
guardas e serventes do Templo que se esforçavam a acender uma
fogueira. Empilharam vários troncos num dos cantos do escuro pátio e,
depois de os salpicarem com azeite, inclinaram um dos fachos para a
lenha, pegando-lhe fogo.
A temperatura tinha baixado alguns graus e quase todos os
presentes se foram aproximando do fogo. Dali a poucos minutos, no
centro do pátio apenas se encontravam Jesus, o chefe dos levitas – que
continuava a segurar a grossa corda com que tinham manietado o Filho
do Homem -, o jovem discípulo, o soldado romano e eu. Diante de nós,
erguia-se uma imponente mansão de dois andares, com uma fachada
inteiramente de pedra lavrada, e delicadas escadas semicirculares de
mármore. Na porta, fracamente iluminada por muitas lanternas de
azeite, encontrava-se uma mulher gorda, de baixa estatura, que sorria
sem cessar.
Mas aquela primeira exploração do recinto viu-se interrompida pelo
aparecimento de Judas. O traidor acabava de chegar à casa de Anás. Ao
ver Jesus e João, ficou atrás das grades altas que se erguiam sobre o
muro de pedra. Dali a poucos minutos afastou-se, seguindo pela mesma
rua por onde tinham ido os da guarda levítica. No seu rosto, duro e
impassível, não notei sinal algum de arrependimento. Pelo contrário. Tive
a sensação de que, durante aqueles instantes, o Iscariotes gozou o
espectáculo. No fundo, a sua vingança contra o Mestre e contra o
discípulo de Jesus começava a dar fruto.
João também viu Judas, mas o Nazareno, que continuava de costas à
porta de entrada, não pôde distingui-lo. O semblante do Galileu não se
alterara. Continuava ligeiramente pálido e grave. Os olhos apenas se
tinham levantado duas vezes. Poucos minutos depois da saída do traidor,
voltei a sobressaltar-me. Agora era Pedro quem se encontrava atrás dos
varões do muro. Fiquei sem perceber como não se cruzou com Judas...
Nervoso, caminhava de um lado para o outro do gradeamento,
tentando fazer que o notassem. Ao vê-lo, João fez um sinal com os olhos.
Assenti com a cabeça, indicando-lhe que já reparara nele.
Sinceramente, tive pena daquele impetuoso, amigo e bondoso
apóstolo. Ao ter a certeza de que tanto João como eu tínhamos dado
pela sua presença, Simão agarrou os ferros com ambas as mãos e
começou a fazer sinais com a boca. João e eu entreolhámo-nos, sem
conseguirmos entender as intenções de Pedro, até que, apontando um
dedo para o peito, o discípulo moveu a cabeça, comunicando-nos com
aquela mímica labial que também ele desejava entrar na casa. Olhei-o,
encolhendo os ombros. Que podia eu fazer?
Naquele momento, um dos servos de Anás saiu da mansão, fazendo
sinal ao chefe dos levitas para que entrasse.
Voltei-me para Pedro e li no seu rosto a mais profunda das
desolações. Mas, ao passar o umbral, João dirigiu-se à mulher que
continuava à porta rogando-lhe que deixasse entrar o seu amigo. E o
apóstolo indicou Pedro com a mão.
Fiquei surpreendido ao ouvir como a gorda matrona sem sequer
pestanejar e num tom cordial, acedia ao pedido do Zebedeu, tratando-o
mesmo pelo seu nome de baptismo. (Ao longo daquela angustiante
madrugada, João disse-me que não havia qualquer mistério no amável
comportamento da guardiã. Tanto ele como seu irmão Tiago eram velhos
conhecidos da mulher e dos servos da casa.
João e sua família – em particular a mãe, Salomé, parente afastada
de Anás – tinham sido convidados, em numerosas ocasiões, do palacete
do antigo sumo sacerdote.) Enquanto o chefe dos levitas conduzia o
Nazareno ao interior da mansão, a porteira desceu a escadaria, resolvida
a permitir a entrada do abatido e assustado Pedro.
Fui ali invadido por outra grave dúvida. Ao ver entrar Simão
recordei que – se os Evangelhos não estavam errados – as famosas
negações do fogoso discípulo não tardariam a dar-se. E ainda que os
evangelistas Mateus, Marcos e Lucas as situassem na casa do sumo
sacerdote Caifás, pensei que o testemunho de João – que situa este
acontecimento no pátio de Anás – devia ser o que estava correcto. Ao
notar a minha indecisão, o discípulo insistiu que o acompanhasse. Mas
preferi ficar no pátio, junto de Pedro. E assim lhe disse. Afinal, o que
pudesse acontecer na casa do sogro de Caifás estava perfeitamente
coberto com a presença de João.
Estas razões não me tranquilizaram inteiramente, mas corri ao
encontro de Pedro. O homem, ao ver-me, abraçou-se a mim, sem poder
conter as lágrimas. Estava confuso. Não conseguia entender o que estava
a passar-se e por que razão Jesus se deixara prender tão facilmente.
- Ele, capaz de ressuscitar os mortos – lamentava-se – não mexeu
um dedo para impedir que O capturassem... E o que é pior – acrescentava
com uma raiva surda – é que nem deixou que o ajudássemos... Porquê?...
Porquê?
Com muita dificuldade o tentei serenar. Mas os seus limitados dotes
de inteligência e a sua paixão por Jesus não lhe permitiram raciocinar
com clareza. A sua mente era um turbilhão onde se misturavam, em
doses iguais, o ódio por Judas e pelos membros do Sinédrio, o medo pela
sua própria segurança e do grupo e uma imensa incerteza quanto ao rumo
que os acontecimentos estavam a seguir. É triste e quase inacreditável
mas, não me cansarei de insistir neste ponto, nem Pedro nem os
restantes apóstolos tinham entendido naquela altura a verdadeira missão
do Filho do Homem...
Simão tinha começado a tremer. Ainda não sei se de medo e
angústia se de frio. O caso é que, inconscientemente, nos fomos
aproximando da fogueira. Uma meia-dúzia de levitas e de servos de Anás
tinham-se sentado à turca, aquecendo-se muito perto do fogo. Eu fiz o
mesmo e Pedro continuou de pé, com os olhos perdidos nas chamas.
Nisto, a mulher que lhe abrira a cancela saiu novamente de casa,
pondo-se por baixo do dintel da porta. Os guardas comentavam os
incidentes da prisão, amaldiçoando os romanos.
Um deles, no entanto, aludiu ao gesto do Rabi, que milagrosamente
curara Malco. Mas a tímida defesa do levita foi imediatamente sufocada
por alguns interlocutores, que explicaram o sucedido como mais uma
clara prova de poder diabólico de Jesus. Um dos acérrimos defensores
desta hipótese lembrou aos seus colegas como os demónios, na realidade,
eram anjos banidos, invisíveis e capazes de tomar as mais estranhas
formas, deixando quase sempre umas pegadas semelhantes às dos galos.
Outro dos servidores do Templo opôs-se redondamente a esta
explicação, argumentando que os demónios eram os filhos que Adão
gerara quando tinha cento e trinta anos...
A discussão estava no auge quando, inesperadamente, a guardiãsem
perder aquele constante e malicioso sorriso – avançou para o fogo,
increpando Pedro do extremo oposto do círculo:
- Tu não eras também um dos discípulos deste Homem? Os guardas
voltaram-se para Simão com gesto ameaçador e o apóstolo, cujos
pensamentos se encontravam muito longe deste súbito ataque, abriu
desmedidamente os olhos, sem poder dar crédito ao que estava a
acontecer.
Aquela pergunta, no fundo, era tão absurda como mal intencionada.
Se Pedro tivesse reagido com um mínimo de frieza e sensatez, ter-se-ia
apercebido de que a matrona fora a pessoa que, justamente, lhe abrira a
cancela, a pedido de João. Era óbvio, portanto, que a mulher estava a par
da amizade existente entre ambos. Mas o medo, mais uma vez, se
apossou do seu cérebro e, gaguejando, respondeu:
- Não sou...
A porteira continuou impassível junto do fogo. Porém, a sua atenção
depressa se desviou para a conversa dos serventes e levitas, que tinham
voltado ao tema dos demónios. Nenhum dos presentes parecia dar muita
importância à presença de Pedro nem à sua possível ligação com o
prisioneiro. Se o apóstolo tivesse reparado nesta atitude generalizada
dos levitas, provavelmente teria conseguido vencer o pânico.
Quando o olhei corou. Simão evitou o meu olhar mordendo os lábios
e amarfanhando nervosamente as pregas do manto. Naquele momento
reparei que já não trazia a sua habitual espada.
Certamente a perdera na fuga, ou talvez se tivesse livrado dela
antes de se aproximar da casa de Anás.
O guarda cuja versão sobre os demónios fora interrompida pela
chegada da porteira retomou o fio da conversa fazendo ver aos
presentes que o Galileu bem podia ser um dos tais filhos de Adão.
Mas a explicação do levita não satisfez a maioria. Outro dos
servidores do Sinédrio acrescentou que, geralmente, estes demónios
costumavam habitar nos pântanos, ruínas e à sombra de certas árvores...
- Este – concluiu – não é o caso de Galileu. Todos o vimos pregar
abertamente no meio do Átrio dos Gentios. Que demónio agiria assim...?
- E não esqueçamos – interveio outro dos presentes – que o Rabi de
Galileia curou muitos aleijados... (1)
Distraído com aquela conversa não reparei na presença atrás de mim
de uma figura. Ao sentir uma mão no meu ombro esquerdo sobressalteime.
Era José de Arimateia! Levantei-me imediatamente, afastando-me
da fogueira e caminhando com o ancião até ao centro do pátio.
Tanto ele como eu estávamos ansiosos por nos interrogarmos
mutuamente. Anunciei-lhe que o Mestre fora conduzido à presença de
Anás, pondo-o ao corrente de quanto acontecera na herdade de Simão, o
Leproso, e pelo caminho do monte das Oliveiras. José escutou em
silêncio, movendo de vez em quando a cabeça em sinal de preocupação.
Como era natural, estava a par das andanças do Iscariotes. O rápido
aviso de João Marcos permitira-lhe chegar ao Templo, muito a tempo de
controlar os passos seguintes de Judas. Ali se encontrou com Ismael, o
saduceu, que contribuiu eficazmente para as suas investigações.
O de Arimateia fez um movimento para entrar na mansão mas
retive-o, pedindo-lhe que me informasse sobre a conduta do traidor. E
sem querer comecei a bombardeá-lo com todo o tipo de perguntas. Quem
era aquele misterioso amigo que o acompanhou até ao Templo? Que
acontecera dentro do Santuário? Por que razão Judas tinha esperado
pela meia-noite para levar a cabo a captura do Nazareno? Porque ia ele
na frente do pelotão...?
José pediu-me calma.
- Para começar – esclareceu o ancião -, aquele primeiro
acompanhante a que te referes, e que Judas encontrou antes da sua
chegada ao Templo, também se chama Anás. É primo dele.
Justamente aquele de quem nos falou Ismael e que apresentou o
traidor aos sacerdotes na manhã de quarta-feira. Quando cheguei ao
Santuário, estavam ambos a falar com o porteiro-chefe da
correspondente secção semanal (2). Nesta altura, estava de serviço
* O argumento do levita era correcto. A profunda superstição
daquela gente considerava que os demónios atacavam principalmente os
aleijados, os noivos e os jovens de honra, segundo informação do Pai
Natal. Logo, não era lógico, que um demónio (Jesus) curasse os
aleijados... (N. Do M.)
2 Como julgo ter já explicado anteriormente. Os levitas (cerca de
dez mil) estavam distribuídos, tal como os sacerdotes, em vinte e quatro
secções semanais. Estas revezavam-se todas as semanas. Cada secção
tinha um chefe.
Alem dos serviços inferiores”
- música e algo de semelhante aos actuais sacristãos” - os levitas
encarregavam-se da vigilância do Templo. Filon descreve a suas funções
pormenorizadamente: Uns, os porteiros, estavam às portas. Outros no
adro do Templo, no pronau ou terraço”, e os restantes patrulhando em
volta. Havia, naturalmente. Duas guardas: a diurna e a nocturna., A
vigilância, portanto estava dividida em três grupos: os,porteiros das
portas exteriores do Templo, os guardiães do terraço que separava o
Atrio dos Gentios do recinto sagrado do Santuário e as patrulhas do
Átrio dos Gentios.
Durante o dia vigiavam também o Átrio das Mulheres. Uma vez
fechadas as portas do Santuário, ao pôr do Sol, os guardas nocturnos
ocupavam os postos: vinte e um na totalidade. A zona sagrada – a que não
tinham acesso os levitas – era guardada pelos próprios sacerdotes. Os
chefes destes levitas eram chamados strategoi, tal como refere S.
Lucas (22,4). Alguns, efectivamente, estavam presentes na prisão de
Jesus. (N. Do M.)
o levita Yojanan ben Gudgeda, um indivíduo particularmente brutal.
Para que faças uma ideia da sua índole basta que te diga que não só
espanca com o bastão os guardas que descobre a dormir, como, em
certas alturas, tem chegado a pegar-lhes fogo à roupa...
Pois bem, este capitão da guarda nocturna ouviu atentamente a
informação de Judas. O traidor e o seu primo explicaram-lhe que o
Mestre se encontrava naquele momento numa casa do Bairro Baixo – na
de Elias Marcos, como bem sabes – e que a sua prisão podia ser fácil.
Segundo o Iscariotes, só dois dos onze homens que tinham ficado no
cenáculo empunhavam espada: Pedro e Simão, o Zelota. Mas Judas avisou
Gudgeda que não convinha demorar-se. No acampamento de Getsémani
encontravam-se cerca de sessenta discípulos e havia por lá um
respeitável arsenal.
Graças ao céu, os planos do traidor não lhe saíram como previra. -
Porquê? - perguntei eu ao ancião, com grande curiosidade. - Judas tinha
chegado ao Templo antes do que se previra e foram necessárias muitas
idas e vindas do porteiro-chefe à residência de Caifás e às diferentes
dependências do Templo para conseguir reunir um número suficiente de
guardas. Era impossível levar os que estavam de guarda naquele
momento, fora e dentro do Santuário, e isto, como te disse, atrasou
consideravelmente a saída do pelotão.
As dificuldades para encontrar homens de folga foram tais que, por
fim, desesperado, o sanguinário Yojanan viu-se obrigado a solicitar do
sumo sacerdote em funções o apoio dos servidores e confidentes de
Caifás. No total, se a memória me não falta, saíram do Templo uns trinta
e cinco ou quarenta esbirros, armados com todo o género de clavas e de
paus...
- Mas... e a escolta romana? - intrometi-me eu novamente, sem me
poder conter.
- Espera, Jasão. Como te disse, felizmente, as coisas não estavam a
acontecer como tinham sido planeadas. O Sinédrio queria prender o
Mestre quando a cidade estivesse deserta. E esta era também a
intenção de Judas, que, pelo que pude deduzir, tinha medo da reacção e
possíveis represálias dos homens de Jesus.
Enfim, Ismael encarregou-se de seguir o pelotão e eu fiquei no
Templo, à espera de novos acontecimentos. Mas o traidor e o seu grupo
cercaram a casa de Marcos quando o Mestre e os onze discípulos tinham
praticamente acabado de sair, a caminho do horto. Foi essa a informação
que Ismael recebeu de Elias.
- Então, Judas não chegou a ver Jesus e os onze...
- Não. Mas foi por pouco. Se a patrulha não se demorasse tanto,
certamente que a prisão do Mestre se teria dado mesmo ali. Elias, ao ver
Judas e os homens armados, apercebeu-se imediatamente das suas
funestas intenções, negou-se a falar com o Iscariotes e correu com ele
de casa a pontapé.
- A pontapé?
- Sim, e receio que essa ofensa possa custar caro ao pobre Elias...
Havia alguma coisa que não conseguia compreender. E assim o disse a
José:
- Se Judas conhecia os hábitos do Mestre, porque não o seguiu até
Getsémani?
O de Arimateia sorriu, tristemente.
- Se conhecesses Judas entenderias. Humilhado e temeroso ante a
violenta reacção do dono da casa, o Iscariotes deve ter compreendido
que se a atitude daquele adepto do Rabi fora tão radical, a do grupo
acampado na herdade de Simão não podia ser menor. E, segundo Ismael,
o traidor – cada vez mais nervoso – explicou aos que o seguiam que o
Nazareno e os seus íntimos podiam ter seguido em direcção ao monte
das Oliveiras.
Quando os levitas o incitaram a ir em sua perseguição, o Iscariotes
deteve-os, afirmando que não era prudente fazerem frente a sessenta
homens armados com espadas. Aquela alteração de plano significava que
os guardas do Templo teriam de lutar e, possivelmente, prender também
os apóstolos ou pelo menos os dirigentes do grupo de Getsémani. E as
ordens de Caifás não eram bem essas. Para o sumo sacerdote, o único
homem importante era o Galileu. Que fazer?
O pelotão encontrou-se, portanto, numa difícil encruzilhada.
E em vez de se arriscarem, tomando, além disso, uma iniciativa que
não fora considerada por Caifás resolveram regressar ao Templo.
Aquilo tranquilizou Judas, mas aumentou o nervosismo dos chefes
dos levitas. Tal como pensava, a reunião secreta de Caifás com a sua
gente de confiança no Sinédrio fora marcada para aquela noite. E, aí
pelas onze horas, quando Judas e o grupo voltaram ao Templo, alguns dos
fariseus, escribas e saduceus tinham começado a chegar à sala das
pedras lavradas.
O nervosismo dos guardas, ao apresentarem-se a Caifás sem o
prisioneiro, era mais que compreensível. O tempo era escasso e, por um
instante, tanto Judas como os sacerdotes chegaram a considerar a ideia
de adiar a prisão. Não dispunha de uma força suficientemente grande e
poderosa para correr o risco de invadir o horto e prender o Mestre.
Cheio de amargura, José prosseguiu:
- Tanto eu como Ismael chegámos a acreditar que, de momento,
tudo estava resolvido e Jesus continuaria em liberdade. Vã esperança...
Caifás não é homem que se dê por vencido facilmente e o seu ódio a
Jesus é tal que não hesitou em propor uma solução que repugnou mesmo
aos seus colegas: solicitar uma escolta armada do procurador romano.
Desta forma, argumentou o astuto sumo sacerdote da prisão do impostor
não será difícil e, ao mesmo tempo, a responsabilidade de captura caberá
às forças estrangeiras de ocupação... Alguns dos membros do Sinédrio
tentaram que Caifás renunciasse àquele projecto, referindo as ideias de
Jesus sobre a violência.
Pensavam, com razão, que o Galileu não permitiria que os seus
desembainhassem armas. Mas Judas interveio novamente. E a sua
cobardia veio à tona mais uma vez. Manifestou a sua concordância com os
sacerdotes, mas foi de opinião que os discípulos não obedeceriam ao
Mestre. A sugestão de Caifás, acrescentou parece-me excelente. Vamos
quanto antes à Torre Antónia. E os sacerdotes designaram uma
representação do Sinédrio, que seguiu imediatamente para o quartelgeneral
romano.
Porém, o centurião de guarda negou-se a deixar sair uma escolta.
Era muito tarde e, além disso, a ordem deve vir de Pôncio Pilatos,
explicou-lhes o oficial. Os sacerdotes insistiram e o centurião não teve
outro remédio senão chamar Civilis, o comandante-chefe da guarnição
destacada em Antónia, que tu conheces. O nosso comum amigo – muito
aborrecido com aquela visita – perguntou-lhes qual a razão por que lhes
deveria proporcionar a escolta. E Judas, antes que os sacerdotes
reagissem, dirigiu-se a Civilis, avisando-o de que Jesus fazia parte de um
grup o de zelotas clandestinamente acampado na herdade de Getsémani.
* Quando consultei o módulo sobre os zelotes ou zelotas”, Pai Natal
facilitou-me a seguinte informação: Este movimento revolucionário e
clandestino – semelhante, em certa medida, aos actuais grupos
terroristas da Europa e da América – começou a desenvolver a sua
actividade guerrilheira e de perseguição ao exército romano na época de
Augusto, comandados, de início, por certo Judas ben Ezequias, da
Galileia, que já no tempo de Herodes se distinguira pelo assalto a um
arsenal do exército real e pelos seus atentados e incêndios. Ao ter
notícia destes bandos que assolavam o país, Varo apressara-se a partir
de
Antioquia com duas legiões. Arrasa as cidades de Zippora, (Seforis)
e Emmaus e os seus habitantes, partidários do rebelde Judas ben
Ezequias, são vendidos como escravos. Varo ordena a captura e execução
de todos os guerrilheiros do galileu, crucificando mais de dois mil dos
seus partidários, mas o chefe, Judas Galileu, consegue escapar e, com a
ajuda de outro extremista – um fariseu chamado Zadok -, inicia um lento
e profundo movimento de luta clandestina contra o Império Romano. Já
em tempos da infância e juventude de Jesus de Nazaré este movimento
– que adota o nome de zelotas ou zeladores, - começa a ganhar adeptos,
estendendo-se como uma mancha de azeite por todo o Israel. Uma vez
mais, a Galileia foi o berço e o coração destes patriotas extremistas,
que não cessam nas suas hostilidades contra a legião romana fixada na
Cesareia e no restante território da nação judaica.
Camuflados com um ardente espírito religioso, estes terroristas” do
século I empunham as armas de acordo com uma doutrina que poderia
sintetizar-se nos princípios seguintes: 1.o O reinado de Deus sobre
Israel é incompatível com qualquer domínio estrangeiro. Aceitar o César
de Roma como rei é violar a lei divina. Deus é o único rei do povo; 2.o O
culto ao imperador, em qualquer das suas formas, é abominável. O zelo
de muitos destes zelotas chegava ao extremo de não tocarem sequer nas
moedas romanas que tivessem a efígie de César. O pagamento dos
impostos a Roma era uma idolatria e uma apostasia, uma vez que
implicava submissão a Roma e ao Imperador. (Precisamente o
nacionalismo zelota surge com Judas ben Ezequias e tem origem na
ordem de Augusto para que toda a nação hebraica seja recenseada.
Esta operação de censo tinha, na realidade uma motivação mais
económica que estatística. E isto indignou os Judeus); 3.o Os Judeus não
deviam esperar passivamente a chegada do Reino de Deus. Era
necessária a colaboração com Deus, mediante a revolução e a guerra
santa. Acreditavam nos milagres de Deus e consideravam que estes
deviam estar sempre ao serviço daquela ideia libertadora; 4.o O
objectivo principal da luta armada era conseguir a liberdade e
independência política de Israel.
Os zelotas tinham tomado a libertação do Egipto por Yavé como o
símbolo e modelo a imitar; 5.o Segundo a filosofia zelota, a conversão a
Deus exigia necessariamente a desobediência à autoridade romana e
sacrificar o dinheiro, a tranquilidade e até a vida em benefício destes
princípios salvadores”.
Aquela vil mentira do Iscariotes fez que o centurião hesitasse. Os
romanos, como sabes, perseguem encarniçadamente os revolucionários.
No entanto, o oficial comandante da legião ordenou-lhes que
esperassem, enquanto ia à residência do procurador. Enfim, nisto e
naquilo o Sinédrio perdeu uma hora.
Pilatos recolhera-se para dormir e, num primeiro momento, não quis
saber de nada. Mas os enviados de Caifás não deixaram de insistir
obrigando Civilis a procurar Pilatos pela segunda vez, anunciando-lhe que
no acampamento se descobrira importante arsenal e que se
conseguissem capturar o chefe – Jesus de Nazaré – o procurador
obteria um triunfo importante aos olhos de César.
Por fim, e talvez para se livrar dos odiosos sacerdotes, Pilatos
consentiu, e o centurião de guarda entregou o comando de um pelotão de
trinta ou quarenta legionários – não saberia precisar-te o número certo
ao seu optio: um tal Arsenius.
Desta forma, e às pressas, o destacamento saiu de Jerusalém
guiado por Judas. O resto já tu sabes... Sim, conhecia, mas alguns
pormenores continuavam sem explicação. Por exemplo, por que
motivo Iscariotes se separou do pelotão? O que seria lógico é que,
se devia guiar os soldados, levitas e serventes do Templo até Getsémani
e denunciar-lhes o Rabi, não se tivesse separado deles em momento
algum. Além disso, se a intenção do oficial subalterno era capturar um
chefe zelota e o seu grupo por que razão Arsenius se contentou em
prender Jesus de Nazaré? Porque não assaltou o acampamento?
(Como disse, na manhã seguinte, sábado, ficaria resolvida a primeira
incógnita. Quanto à segunda, o procurador ia esclarecer-me, na minha
próxima visita à Torre Antónia.) José, naturalmente, não pôde
esclarecer-me estas dúvidas.
Nem ele nem Ismael se tinham atrevido a unirem-se ao pelotão, que
saiu do Templo minutos depois da meia-noite, pela Porta Dourada.
Quanto à minha pergunta sobre a razão por que o Mestre fora conduzido
a casa de Anás, em vez de ser levado imediatamente à presença de
Caifás, o de Arimateia – evidentemente cansado – comentou:
- Feliz és tu, Jasão, que não tens de viver as constantes intrigas
destes homens impuros... Não sei ao certo, mas penso que Anás e o seu
genro estão de acordo em deter o Mestre neste lugar até que Caifás
consiga reunir um máximo de sacerdotes dedicados. Desta forma, o
julgamento será implacável. A lei diz, além disso que o Conselho do
Sinédrio não pode reunir-se antes da primeira oferenda. - E a que hora
tem lugar esse primeiro sacrifício?
- Às três da madrugada. Como vês, ainda temos tempo. Talvez se dê
o milagre que tanto desejamos...
E José concluiu a sua pormenorizada narrativa afirmando que aquele
* Com tudo isto, é fácil entender a confusão de alguns dos
discípulos e apóstolos de Jesus – caso de Simão, o Zelota, e do próprio
Judas Iscariotes -, que acreditaram desde o começo que a doutrina do
Galileu tinha muito a ver com este movimento de libertação nacional. Os
zelotas foram os causadores directos das sangrentas revoltas contra
Roma nos anos 68 a 70 da nossa Era, bem como da registada em 135. (N.
Do M.)
réptil chamado Caifás, com o objectivo de não levantar suspeitas –
nem sequer entre os seus próprios homens e servidores – ordenara a
dois dos seus confidentes que pagassem generosamente ao optio romano
para que, mesmo contra a opinião do chefe dos guardas do Templo,
levasse Jesus de Nazaré ao palacete do seu sogro Anás.
O de Arimateia despediu-se, mostrando-me que tinha intenção de
entrar na residência do antigo sumo sacerdote e fazer quanto estivesse
na sua mão – subornar, até, o velho Anás – para que Jesus fosse posto
em liberdade. Ao vê-lo desaparecer dentro de casa não pude reprimir um
sentimento de tristeza por aquele leal adepto do Mestre. Estava no seu
direito de acalentar a esperança. O que ele não podia saber é que essa
esperança morrera muito antes; no horto de Getsémani...
Semioculto no escuro do pátio informei Eliseu do curso dos
acontecimentos, pedindo-lhe que me avisasse pouco antes da madrugada.
Voltei ao fogo. Pedro, fechado nos seus pensamentos, nem sequer notara
a chegada de José de Arimateia.
Tinha-se sentado atrás dos levitas, cobrindo a calva com o manto.
Suponho que aquele gesto pouco tinha a ver com o frio reinante e sim
com o seu desejo ardente de que ninguém voltasse a descobri-lo e a
denunciá-lo.
Os guardas e sicários continuavam a dar volta às tradições e lendas
sobre os demónios. Na residência de Anás, tudo parecia tranquilo. Não
observei movimento algum nem sinal de violência ou de agitação. E pensei
– erradamente – que o interrogatório do antigo-sumo sacerdote decorria
sem incidentes. I Estava eu sentado perto de Pedro havia pouco mais de
meia hora quando se aproximou do círculo uma segunda mulher. Era mais
nova, e, pelo vestuário, deduzi que se tratava de outra serva. Colocou-se
junto da porteira e esta, ao vê-la, inclinou-se para o seu ouvido esquerdo,
segredando-lhe qualquer coisa, ao mesmo tempo que indicava Pedro com
a mão.
A recém-chegada olhou com atenção. Mas, pela maneira de olhar
calculei que fosse míope. Deu então uns passos, rodeando os que estavam
juntos em volta do lume. Ao chegar junto do apóstolo deu um puxão ao
manto que escondia a cabeça de Simão, gritando-lhe:
- Não és um dos fiéis daquele galileu...? A inesperada exclamação da
hebreia assustou ao mesmo tempo os levitas e Pedro, e o discípulo,
branco como a cal, levantou-se aos tropeções, olhando a rapariga. - Não
conheço aquele homem – gritou, ele mais alto que a sua inquisidora. - E
também não sou um dos seus discípulos...! Pusera tanta veemência nas
suas frases que as artérias do pescoço lhe ., incharam e o seu rosto se
fez de púrpura. Os olhos do aterrorizado amigo de Jesus quase lhe
saíram das órbitas enquanto um delgadíssimo fio de saliva descia pela
comissa esquerda dos lábios.
A agressividade de Pedro foi tal que a serva recuou assustada,
fugindo dali em direcção à porta da casa. Desta vez, os servos e guardas
permaneceram uns segundos com a vista cravada no infeliz pescador.
Pedro, aturdido, deu meia volta, afastando-se do fogo.
Pensei que a sua intenção fosse fugir do recinto e pouco me faltou
para ir atrás dele. Mas não, apesar da sua fraqueza, Pedro continuava a
amar o Mestre. Como se escreveu pouco e pobremente da tortura íntima
deste primitivo galileu, consciente dos seus erros, dominado pelo instinto
da sobrevivência e forçado pelo seu temperamente àquele trágico beco
sem saída! Tive de fazer denodados esforços para não correr para junto
dele e consolá-lo. No entanto, o objectivo da minha missão conseguiu
impor-se e esperei.
Encostado às grades do muro, curvado e silencioso, Simão batia
muitas vezes com a cabeça nos ferros. Temi que se ferisse. As
cabeçadas, secas e constantes, em vez de o magoarem pareciam trazerlhe
alguma serenidade.
Dali a pouco, depois de secar as lágrimas com uma das mangas do
manto, voltou a juntar-se ao grupo. (Sinceramente, aquela atitude do
apóstolo – voltando ao fogo – fez-me reflectir, levando-me a esquecer
até a sua detestável e até certo ponto compreensível conduta. As
igrejas – especialmente a Católica – julgaram e classificaram este
episódio das três negações como um procedimento lamentável de Simão
Pedro. Mas muito poucos teólogos e moralistas parecem ter em
consideração uma atenuante poderosa em favor do renegado.
Pedro poderia ter abandonado o Pátio de Anás depois da sua
primeira traição. E não o fez. E também não o fez depois da segunda e
da terceira e da quarta... Porque, embora os evangelistas citem três
negações, na realidade houve mais uma, embora também seja certo que
essa negação extra não teve carácter público. Quero dizer com tudo isto
que, se é verdade que Pedro não se portou dignamente, não é menos
verdade que a sua presença no local o redime em boa medida, daqueles
momentos de fraqueza.)
O teimoso galileu não estava disposto a imitar os companheiros que
tinham fugido pelo monte e, vencendo o medo, acomodou-se como pôde
entre os serventes, os quais – seja dito de passagem – em nenhum
momento se converteram em acusadores nem o incomodaram. Pelo
menos, os homens que, naquela altura, se uniam em torno das chamas.
Mas quis a má sorte, pouco depois o grupo fosse aumentado por meiadúzia
de sacerdotes, chegados, ao que parecia, de casa de Caifás,
trazendo por missão coordenar e controlar a transferência do Nazareno.
Depois de pedirem informações aos levitas ali reunidos, quatro
desses sacerdotes dirigiram-se para o interior da casa de trás tendo os
outros dois permanecido junto da fogueira. Logo no primeiro instante se
sentiram atraídos pela animada conversa sobre as superstições do povo
judeu.
Alguém tinha falado em Lilith e a conversa animou-se novamente.
Pelo que se dizia, Lilith era o nome de um dos diabos mais famosos. A
maioria dos presentes aceitava a sua existência, classificando-o como
demónio-fêmea. Este curioso espírito concentrava os seus ataques, como
fêmea que era, nos homens, e mais concretamente naqueles varões que
se atreviam a ficar sós numa casa. ..
E só o Divino, bendito seja o seu nome, sabe quando pode
apresentar-se – reforçou outro dos servidores do Sinédrio. A crença em
questão não foi muito bem recebida por um dos sacerdotes um tal
Mardoqueu, mais conhecido em Jerusalém por Petajfa (e ao qual me
referi anteriormente), como consequência da sua grande facilidade para
as línguas. (Conhecia, dizia o povo, mais de setenta idiomas e dialectos.
Daí a sua alcunha: Petajfa, da palavra patj: abria as palavras, ao
interpretá-las.) Este sacerdote, responsável também por uma das caixas
do Templo e homem de grande cultura, riu de tais patranhas. As
gargalhadas de Petajfa indignaram um dos guardas que, apontando
primeiro Pedro e depois o interior da casa, exclamou:
- Podes rir o que quiseres, mas olha esse galileu... Tu próprio
assististe à sua entrada triunfal em Jerusalém, no lombo de um jumento.
Não teve a precaução de colocar uma cauda de raposa ou um trapo
vermelho entre os olhos do burrico e imagina o que lhe trouxe a fortuna
(1)...
Naquele instante, Simão cometeu novo erro. Irritado por aquela
arraigada superstição hebraica, interveio na discussão tentando
esclarecer os presentes de que o Rabi da Galileia não precisava de se
proteger de tão absurdas crendices e que o Seu poder era tal que, se
assim desejasse, podia fazer cair fogo do céu e arrasar o Sinédrio, sem
atingir os inocentes. . Os levitas e servidores do Templo não prestaram
muita atenção à valente mas inoportuna defesa de Pedro. No entanto,
Petajfa – que imediatamente se apercebera do forte sotaque galilaico do
apóstolo – encarou-o, desviando o rumo da conversa para um caminho que
novamente deixou arrepios na pele de Simão:
- Tu tens de ser um dos adeptos do preso. Este Jesus é um galileu e
a tua maneira de falar atraiçoa-te... Falas como um verdadeiro galileu.
Antes que Simão pudesse reagir, um dos sicários do Sinédrio –
precisamente aquele que tinha falado da milagrosa cura de Malco –
confirmou a descoberta de Petajfa, desvendando a todos um facto que,
até àquele momento, passara despercebido:
- Além disso – exclamou, em alarme -, tu estavas no caminho do
monte das Oliveiras... Vi como feriste o meu parente...
Aquilo veio mudar tudo. Já não se tratava unicamente de acusações,
mais ou menos veladas, de partilhar a doutrina do Galileu. A última
afirmação podia arrastar o apóstolo à prisão imediata, como culpado de
agressão a um dos esbirros do sumo-sacerdote.
E julgo que foi esta circunstância o que realmente fez ceder os
nervos de Pedro. Já não se tratava de renegar Jesus mas,
principalmente, de evitar tão perigosa acusação.
Alguns dos levitas puseram-se de pé, brandindo os seus cacetes
numa atitude ameaçadora, e provavelmente, teriam prendido Pedro, se
não
* Na primeira oportunidade que tive solicitei a Pai Natal informação
sobre as principais superstições dos judeus daquela época. Entre outras
figurava, efectivamente, a de não empreender viagem alguma – por breve
que fosse – sem antes ter colocado um rabo de raposa ou um trapo
vermelho entre os olhos da cavalgadura. Por exemplo: se num banquete
dois convidados atiravam um ao outro bolinhas de pão, era garantido que
ficavam doentes. Outra das superstições, relacionada com a presença
dos demónios nas latrinas, chegava a sugerir que se fosse ao referido
lugar na companhia de um cordeiro. Desta forma, o Judeu podia fazer as
suas necessidades sem problemas.
(N. do M.)
fosse a torrente de juramentos que começou a brotar da sua boca.
Aquele obsceno e azedo chorrilho de imprecações – em que o
aterrorizado amigo do Nazareno chegou a incluir a própria mãe e os
filhosttravou o ímpeto dos guardas.
Quando, finalmente, o acossado galileu jurou pelo ouro do Templo,
abrindo o manto de modo a que todos pudessem ver que não trazia
espada, aqueles servis personagens acabaram por deixá-lo em paz.
(Jurar e dar por testemunho o Templo era importante, mas fazê-lo pelo
ouro do Santuário era muito mais...) Quando Pedro viu que se afastava o
fantasma da sua prisão, fez meia volta e, muito devagar – procurando
não levantar novas suspeitas -, distanciou-se da fogueira.
Arrastando os pés sem forças e com a alma duramente castigada,
foi sentar-se nas escadas de mármore da porta. Durante uns minutos não
me atrevi a sair de ao pé do fogo. O infeliz discípulo enterrara o rosto
entre as mãos pequenas e calejadas, marcando o evidente desespero com
uma ininterrupta e ritmada oscilação frontal do corpo. Eram quatro da
madrugada. Consumara-se a terceira negação pública.
O silêncio continuava a dominar Jerusalém. Ao longe, a espaços,
ouviam-se alguns dos muitos cães vadios que eu vira na minha passagem
pela Cidade Santa. Foram aqueles quase sempre queixosos latidos a
trazer-me à memória outro facto que, precisamente, ainda não se tinha
registado. Pedro negara o seu Mestre três vezes, mas no entanto, eu não
tinha ouvido o famoso canto do galo.
Não que este episódio me preocupasse demasiado, muito menos
quando estava a viver – e a sofrer – as angústias de Simão totalmente
exausto e abatido junto ao portão de entrada da casa de Anás. Contudo,
e enquanto esperava o amanhecer procurei apurar o ouvido. Meditando
sobre este pormenor compreendi que os galos de Jerusalém não podiam
ter iniciado os seus característicos cantos pela simples razão de que
ainda faltava mais de uma hora para amanhecer (naquela sexta-feira, 7
de Abril, como já citei noutros momentos o nascer do Sol deu-se às cinco
horas e quarenta e dois minutos). A dada altura cheguei a acreditar que
os evangelistas tinham voltado a enganar-se. As três negações
(2),
como disse, já se tinham dado e os cronómetros monoiónicos
* A lei judaica permitia este tipo de maldições – contra o pai e a
mãe – desde que a maldição não fosse nominal. Neste sentido. Pedro teve
especial cuidado em não citar os nomes de baptismo dos seus
progenitores (N. Do M.) 2 Cavalo de Tróia dotou o módulo de um sistema
múltiplo de relógios cujo fundamento não era já o sistema tradicional de
radiação do Césto 133 dos relógios atómicos,, mas sim a manipulação” ou
aprisionamento” de um ião – um só ião – num campo magnético, mediante
o uso de um delgadíssimo feixe de laser. É quase certo que este novo
sistema de medição do tempo
- com uma precisão cem mil vezes superior à dos relógios atómicos –
participe definitivamente na vida do homem nos próximos anos. Mercê
destes sofisticados instrumentos, o orto ou aparecimento no horizonte
do limbo superior do Sol – para Jerusalém: latitude aproximada trinta e
dois minutos N – foi calculada pelas cinco horas e quarenta e dois
minutos naquele 7 de Abril do ano 30 (sempre tempo local). Quanto ao
ocaso ou desaparecimento abaixo da linha do horizonte do limbo superior
do Sol, foi calculado às dezoito horas e vinte e dois minutos (teve-se em
conta a refracção, que, nos acontecimentos referidos, eleva o astro
aproximadamente trinta e quatro segundos de arco). Para esta latitude,
a variação das horas de orto e ocaso é, aproximadamente, de quatro
minutos por cada cinco graus de separação em latitude. (N. Do M.)
do módulo marcavam quatro da madrugada. Mas não. Desta vez não
houve erro, embora as versões dos escritores sagrados também não
coincidam cem por cento... Mas tenho de me cingir a uma rigorosa ordem
cronológica.
Quando achei que Pedro estava mais calmo, também eu me retirei
do grupo dos levitas. Deixei-me cair junto do discípulo e aproximei a mão
do seu ombro esquerdo. Pedro teve novo sobressalto. Interrompeu
aquele movimento quase catatónico e, ao verificar que era eu, suspirou
aliviado.
Durante algum tempo não falámos. Que podia eu dizer-lhe? Dali a
pouco, Pedro – que tinha recuperado o ânimo – olhou-me fixamente,
exprimindo uma ideia que ainda me deixou mais confuso: - Reparaste,
Jasão, com que habilidade destruí as acusações daqueles servis escravos
do Templo? Um sorriso mecânico acompanhou as inesperadas palavras de
Simão.
Compreendi, então, que a sua máxima preocupação naqueles
momentos não era, como acredltara, o bem pouco nobre facto de ter
renegado o seu amigo. Nada disso. Em minha opinião, Pedro não tinha a
consciência clara de ter traído o Mestre. O que o angustiara e
aterrorizara era a ameaça de um possível encarceramento.
Esta suspeita, que foi ganhando terreno no meu coração, viu-se
confirmada pelos comentários seguintes do apóstolo, que a si próprio se
felicitava por ter evitado a sua identificação. . Além disso, aquelas
mulheres – acrescentou Pedro, dizendo em voz alta aquilo que pensava –
não têm autoridade moral. Não podem interrogar-me... Não têm direito...
Não, não têm... Não têm... O galileu repetiu aquela monótona cantilena
como se precisasse de se justificar, e em momento algum lembrou ou
disse o nome de Jesus. Penso não estar enganado se disser que o
pescador só teve verdadeira e definitiva consciência do seu feio gesto
ao escutar o canto dos galos da cidade. Só então recordou a profecia do
Mestre e assumiu todo o peso da sua infidelidade.
Quando o interroguei sobre a sorte dos companheiros, Pedro nada
soube dizer-me. Ignorava tudo. Só se lembrava de que, quando se
encontrava a poucos metros da cerca de pedra do horto de Simão,
qualquer coisa o obrigou a deter a fuga. Cego de raiva, escondeu-se
entre as oliveiras, disposto a seguir a chusma que tinha capturado o
Rabi. E ali continuámos até que, poucos minutos antes da alvorada, a
porteira e a serva que tinham comprometido a segurança do apóstolo
com as suas perguntas voltaram à carga. Aproximaram-se de nós
inesperadamente e, quase sem levantar a voz, a porteira comentou em
tom sereno, sem a malícia inicial:
- Tenho a certeza de que és um dos discípulos deste Jesus.
Não só porque um dos seus fiéis me pediu para te deixar entrar no
pátio, como ainda porque o meu irmão te viu no Templo com Aquele
homem... Para quê negar? Pela quarta vez Pedro negou qualquer ligação
com o Nazareno.
Porém, nesta ocasião, a sua negativa foi muito mais fria e calculista.
As suas ideias sobre a falta de autoridade legal das mulheres para o
acusarem e o facto de o novo ataque não ser feito em público, foram, em
minha opinião, decisivos.
Mas nem Pedro nem eu contávamos que justamente naqueles
momentos, quando a claridade do novo dia já despontava a leste, no
interior da mansão começaram a ouvir-se algumas vozes. Pusemo-nos de
pé, ao mesmo tempo que um dos criados de Anás saía precipitadamente,
alertando os guardas.
Tudo aconteceu tão rapidamente que nem conseguimos reagir.
De repente, no umbral da porta apareceu o Mestre. Continuava
atado. Junto dele, João, o legionário e mais dois servos de Anás.
Pelo espaço de um minuto, enquanto os levitas do Templo se
organizavam para escoltar o preso, Jesus levantou lentamente a cabeça,
voltando o rosto para nós, que continuávamos à sua direita e a pouco mais
de dois metros. À luz trémula e avermelhada dos archotes, os olhos do
Galileu cravaram-se única e exclusivamente nos do seu amigo Pedro.
Jesus não sorriu, mas o Seu olhar transmitia uma profunda e
comovedora mensagem de amor e de piedade. Com aquele gesto, o
Gigante chegou como nunca antes conseguira ao aturdido coração do
renegado. As palavras estavam a mais. O Mestre parecia saber o que
acontecera durante aquelas quase três horas passadas no pátio do antigo
sumo sacerdote, e Pedro, ao receber aquela intensa mensagem, começou
a avaliar em profundidade a dimensão da sua culpa. Naquele instante,
quando o soldado romano atrás do Nazareno o obrigou a descer as
escadas com violento empurrão, ali perto, um galo rasgava o silêncio da
alvorada em canto demorado e estridente. O amigo do Mestre
empalideceu.
A porteira, que permanecia a nosso lado, dirigiu-se velozmente para
a cancela, abrindo a rangente porta de ferro, e o grupo de levitas,
cercando sempre o Mestre, saiu da casa de Anás.
A partir daquele momento, e durante algum tempo, outros galos
encheram com o seu canto os primeiros alvores daquela sexta-feira 7 de
Abril, que nunca poderei esquecer...1
Teria dado tudo para continuar ao lado de Pedro. Creio que a partir
do canto do galo, o apóstolo deixou de ser o mesmo. É certo que o
inexplicável prodígio da ressurreição do Mestre o afectou
decisivamente. No entanto, aquelas negações pesariam para sempre na
sua alma. Ali, estou convencido, morreu, senão toda, pelo menos boa
parte do Simão
* Não era certo, como pretenderam alguns exegetas que se apoiam
nos escritos rabínicos Baba gamma (VII, 7-VIII,10 e 82b) que a criação
de gahnhas estivesse proibida em Jerusalém.
(Pensava-se que, ao escarvarem, podiam desenterrar coisas
impuras.) Segundo a Misná, o canto do galo servia precisamente como
sinal para o toque das trombetas. Assim o confirmam os textos da Sukka
V, 4, o Tamid I 2 e o Yoma I, 8. Entre as informações fornecidas pelo
computador do módulo garantia-se que a Misná se refere a um galo de
Jerusalém que, segundo Yuda ben Baba, tinha sido lapidado por ter
morto um homem”. Segundo parece o referido galo trespassara com o
bico o crânio de um menino. Também em T os.B. Q. VIII 10 (361,29) se
diz que a criação destas aves domésticas era permitida na Cidade Santa,
sempre e quando se dispusesse de um horto ou de uma estrumeira onde
pudessem escarvar. (N. Do M.)
assustadiço, grosseiro e vaidoso. O seu espírito, recebera o mais
rude dos golpes...
Mas a missão exigia-me que permanecesse o mais perto possível do
Nazareno. Numa breve corrida juntei-me a João e ao soldado romano. Ao
atravessar a porta de entrada do palacete de Anás surpreendeu-me ver
João Marcos desta vez coberto, por um manto. Como chegara ele até ali?
Não pude parar para lho perguntar, mas deduzi, que, depois de escapar
aos legionários, teria arranjado aquele manto, seguindo a escolta romana,
tal como João Zebedeu e Pedro. A comitiva meteu-se pelas ruas
desertas de Jerusalém no momento em que as trombetas do Templo
começavam a despertar a população. Perguntei a João se sabia para onde
nos encaminhávamos.
Os sacerdotes enviados por Caifás – disse-me – anunciaram ao sogro
dessa ratazana que o tribunal do Sinédrio estava reunido. Receio que
bem depressa o saberemos...
Naquele momento, Eliseu estabeleceu de novo ligação, avisando-me
de que eram cinco horas e quarenta e dois minutos.
O seu novo boletim meteorológico veio confirmar o que já me tinha
dito no dia anterior: subida constante dos barómetros e aumento da
velocidade do vento, com perigo de siroco. Aquele amanhecer,
efectivamente, não foi tão fresco como os anteriores. Às pressas o
pelotão puxava pelo Mestre. Assim, interroguei João Zebedeu sobre o
que acontecera em casa do poderoso e influente Anás. Tal como
suspeitava – sempre segundo o testemunho de João, que nem por um
momento se afastou de Jesus – o encontro entre Anás e o Galileu
decorreu de forma estranhamente lenta. No fundo a presença do Rabi
perante o ex-sumo sacerdote não fazia sentido; era apenas um
estratagema urdido entre Caifás e o seu sogro, a fim de o reter num
local seguro até os saduceus, escribas e fariseus comprometidos na
trama acabarem de comparecer ante o sumo sacerdote.
José de Arimateia, que assistiu a parte do interrogatório e que
preferira ficar com Anás, completaria horas mais tarde a narrativa de
João, explicando-me que o hábil sogro de Caifás tinha, desde o primeiro
instante, a secreta intenção de liquidar ali mesmo aquele incómodo
assunto. Pelo que se via, conhecendo o carácter violento e impulsivo do
seu genro, não desejava que o processo contra o Mestre caísse nas suas
mãos.
Porém, a inesperada atitude de Jesus de Nazaré abortou os seus
planos...
. Anás – informou-me o discípulo do Rabi – conhecia o Mestre há
muitos anos. Como toda a gente em Israel, também ele tinha ouvido falar
dos sinais, prodígios e ensinamentos de Jesus.
Ao receber-nos nos seus aposentos privados, Anás quis prescindir
do representante do optio e de mim, mas o legionário opôs-se, avisando-o
de que se tratava de uma ordem do procurador. Como sabes, as relações
daquele corrupto sacerdote com os romanos são excelentes e,
finalmente, teve de se resignar. Sentou-se numa das cadeiras e esteve
um bom momento sem pronunciar palavra, observando o Mestre com
grande curiosidade. Depois, com a sua habitual presunção e autosuficiência,
dirigiu-se a Jesus nos seguintes termos: Já sabes que tenho
de fazer qualquer coisa quanto aos Teus ensinamentos... Andas a
perturbar a paz e a ordem do nosso país.
O Mestre levantou a cabeça e olhou-o fixamente. Mas não abriu a
boca.
Aquilo não agradou a Anás. Os seus nervos começaram a dar de si e
sem poder ocultar a raiva exigiu:
Diz-me os nomes dos teus discípulos...
Mas o Mestre permaneceu calado. E, sem pestanejar, continuou de
olhos fitos no velho réptil.
Juro-te, Jasão que muito poucas vezes tinha visto tanta majestade
no rosto do nosso Mestre. Enquanto Anás se encolerizava, Jesus, de pé,
e apesar de estar amarrado, demonstrava àquele bastardo a Sua
verdadeira grandeza... Apesar das circunstâncias, João falava do Galileu
com tanto ou mais entusiasmo, se é possível, do que em momentos
semelhantes ao da sua entrada triunfal em Jerusalém.
- Então, para minha surpresa, e penso que também para surpresa de
Jesus – continuou o jovem Zebedeu -, Anás mudou de táctica.
Chegou a sugerir ao Mestre que estava disposto a esquecer tudo,
com uma condição.
Também aquilo era novo para mim e, enquanto subíamos pelas vielas
da Cidade Baixa, já com o claro objectivo de chegar à sede do Sinédrio
- situada na zona exterior e sul-ocidental do Templo (muito perto
daquilo que ainda hoje se conserva e se chama muro das Lamentações) –
prestei toda a minha atenção às palavras do discípulo.
- Sabe do que foi capaz...? Anás propôs perdoar-Lhe a vida se saísse
imediatamente da Palestina... Mas o Mestre não manifestou qualquer
sinal de interesse. Aquele silêncio exasperou mais ainda o antigo sumo
sacerdote, que, aos murros nos braços da cadeira, gritou a Jesus: Não
vês que sou muito bondoso contigo...? Não te apercebes de quanto é o
meu poder? Eu posso determinar o resultado final do teu próximo
julgamento... Jesus, pela primeira vez, falou e dirigindo-se a Anás, disselhe:
Já sabes que nunca poderás ter poder sobre Mim sem permissão de
Meu Pai. Alguns gostariam de matar o Filho do Homem porque são uns
ignorantes e não sabem fazer outra coisa. Mas tu, amigo, tens, sim, ideia
do que fazes. Como posso então repelir a luz de Deus?
A inesperada amabilidade do Mestre para com aquela serpente
derrotou Anás e surpreendeu-me.
E o velho pôs-se a maquinar, procurando, suponho, alguma nova
trama para perder Jesus.
Um momento depois perguntou de novo: Que tentas ensinar ao
povo? Quem pretendes ser? O Mestre de modo algum iludiu as questões.
E dirigiu-se a Anás com grande firmeza: Muito bem sabes que falei
claramente às pessoas. Ensinei nas sinagogas muitas vezes e também no
Templo, onde judeus e gentios me escutaram. Nada disse em segredo.
Qual é então a razão por que me interrogas sobre os Meus
ensinamentos? Porque não convocas os Meus ouvintes e te informas por
eles? Toda a Jerusalém Me ouviu. E tu também, embora não tenhas
entendido os Meus sentimentos.
Antes que Anás pudesse responder-lhe, um dos servos da casa
voltou-se para o Mestre e esbofeteou-o violentamente, dizendo: Como te
atreves a responder assim ao sumo-sacerdote? Ah, Jasão, como me
fervia o sangue...!
Quando me interessei pela reacção de Jesus, João encolheu os
ombros e indicando o Mestre, que caminhava uns quantos metros à nossa
frente, comentou: - Não vi sombra alguma de ódio ou ressentimento nos
Seus olhos. Simplesmente, pôs-se na frente do bajulador dos betusianos
e com a mesma transparência e docilidade com que se dirigira a Anás
respondeu: Meu amigo, se falei erradamente, testemunha contra mim.
Mas, se é verdade, porque me maltratas?
Perguntei então ao discípulo se aquela bofetada provocara alguma
hemorragia nasal em Jesus. João disse que não.
Efectivamente, quando vi aparecer o Galileu na porta da grande casa
de Anás o Seu rosto não apresentava sinais de violência.
Pelo menos, eu não consegui distinguir. Havia algum tempo que
observava como Pedro nos seguia à distância. Mas, ao aproximarmo-nos
do arco de Robinson, e numa das alturas em que virei a cabeça para
verificar se o solitário e infeliz Simão continuava ali, vi-o sentar-se ao
pé da muralha meridional que separava os dois grandes bairros de
Jerusalém.
Pela maneira como se deixou cair nos degraus e meteu a cabeça
entre as mãos compreendi que o apóstolo se dera por vencido. A sua
derrota naquela hora era completa. Se eu não conhecesse o final
daqueles acontecimentos, não teria posto as minhas mãos no fogo quanto
à sua sorte...
Infelizmente, não voltaria a vê-lo.
João, que naquele momento não estava a par das negações do amigo,
terminou assim a sua narrativa:
- Anás teve um gesto de reprovação pela brutalidade do seu servo
com o Mestre, mas o seu orgulho é tal que não lhe fez qualquer
observação. Limitou-se a levantar-se da cadeira e saiu da sala. Só o
voltámos a ver passadas duas horas...
- Durante esse tempo, Jesus disse-te alguma coisa?
- Não – respondeu João. - O Mestre, os servos, o soldado e eu
continuámos ali sem nos mexermos, e em silêncio. Passado este tempo,
Anás voltou à sala, e aproximando-se de Jesus recomeçou o
interrogatório: Consideras-te o Messias, o libertador de Israel? Jesus
levantou novamente os olhos e com idêntica calma disse-lhe: Anás,
conheces-me desde a minha juventude e sabes que não pretendo ser
mais nem menos do que delegado de Meu Pai. Fui enviado a todos os
homens: tanto gentios como judeus.
Mas o sumo sacerdote não ficou satisfeito e repetiu a pergunta:
Ouvi comentar que pretendes ser o Messias. É verdade?
O Mestre esperou um pouco antes de responder. Por um momento
acreditei que não desejava falar. Mas acabou por o fazer. E com que
segurança, Jasão! Tu o disseste!, disse Ele por fim.
Foi então que entraram os sacerdotes. Vinham da parte de Caifás,
e, aproximando-se de Anás, murmuram-lhe qualquer coisa ao ouvido. Não
posso dizer-te o quê, embora suponha que muito tem a ver com o
Conselho do Sinédrio. Como te dizia, não tardaremos em saber.
O resto já sabes: Anás ordenou que levassem Jesus à presença do
seu genro e saímos...
Pouco antes das seis da manhã o pelotão que conduzia Jesus parou
na frente de uma grande casa rústica, situada a pouca distância do
grande rectângulo do Templo. Concretamente, junto da esquina sulocidental,
numa reduzida área ajardinada, perfeitamente isolada daquele
sector da Cidade Baixa pelos arcos de Wilson e Robinson, a norte e a sul,
e pela muralha meridional e pela parede do Templo, a oriente e a
ocidente, respectivamente.
Andorinhas madrugadoras voavam, brincalhonas, entre os beirais do
segundo andar daquela grande casa de mais de cinquenta metros de
comprimento por trinta e quatro de fundo.
Os gorjeios dos emigrantes negros e o barulho surdo e ritmado da
moenda do trigo levantando-se de todas as casas de Jerusalém, foram
os últimos e agradáveis sons que escutámos antes de entrar naquele
antro.
Durante esta nova deslocação de Jesus, a possibilidade de que nos
dirigíssemos para a tradicional sede do Sinédrio dentro do Santuário,
fez-me tremer. Se assim fosse, nem o legionário nem eu lá poderíamos
entrar. Felizmente – tal como soubera pelos textos do historiador Flávio
Josefo -, poucos meses antes de se iniciar o ano 30, as castas
sacerdotais tinham descongestionado a célebre sala das pedras talhadas
(situada num dos ângulos sul-ocidentais do Átrio dos Sacerdotes),
transferindo o local de reunião do Sinédrio para este edifício de grandes
pedras cinzentas e somente desbastadas (1). O tribunal que Caifás
planeara – como iremos ver – não era muito ortodoxo e, embora o
Conselho Supremo israelita continuasse a reunir-se, por vezes no
Santuário, nesta altura - com grande contentamento da minha parte – o
sumo sacerdote e os seus correlegionários tinham preferido resolver o
assunto na nova sede, muito mais discreta que a câmara das pedras
talhadas.
Os levitas atravessaram um apertado e escuro corredor,
desembocando no reduzido pátio central do bouleyterion ou quartelgeneral
do Sinédrio. Dali, e sem perda de tempo penetrámos numa sala
quadrada, muito espaçosa e de tecto alto, situada – a ajuizar pelo
caminho que tínhamos percorrido – na ala mais ocidental do edifício. A
escassa claridade que entrava pelas frestas forçava a ter acesas as
lanternas de azeite.
Tal como receava, mal pisámos a quadra onde devia ter lugar o
julgamento contra o Galileu, um dos servos do sumo sacerdote
atravessou-se no meu caminho, exigindo que me identificasse.
Foram segundos de grande tensão. Na minha condição de simples
mercador grego não tinha razão alguma para assistir à assembleia.
Perante aqueles hebreus, a minha presença não se justificava. Quando já
pensava estar tudo perdido,
* Tanto Josefo, na sua obra Guerras dos Judeus (V.4,2 e VI. 6,3)
como a Misná (Mid. V. 5; Samb. XI.2 e Tamid II,S entre outros
documentos) asseguram de forma muito precisa que o Sinédrio se mudou,
quarenta anos antes da destruição do Templo, da sala das pedras
talhadas para uma espécie de bazar, praticamente encostado ao
Santuário pelo lado ocidental. Assim o dá a entender também Factos
(23,10) (N. Do M.)
o legionário, que ainda se encontrava a meu lado, resolveu a
dificuldade com uma resposta oportuníssima: -Alto...! Este homem vem
comigo. Como eu, representa o procurador romano.
Aquela mentira – consequência do denário de prata que entregara ao
delegado do oficial subalterno Arsenius – foi determinante, e sem mais
explicações, dirigimo-nos para o centro da câmara.
Um pouco mais de metade da sala (de uns dez metros de lado) era
ocupada por um banco corrido de madeira, de forma semicircular ou de
meia-lua. Este assento comum, sem braços e dotado de altos espaldares,
primorosamente trabalhados, fora colocado sobre um tablado de cerca
de quarenta centímetros de altura, de modo que os seus ocupantes
pudessem dominar o recinto. Em frente destes assentos – fechando o
semicírculo - observei três filas de bancos, igualmente de madeira, mas
sobre o lajedo do pavimento e, portanto, a um nível muito mais baixo.
Quando entrámos, o banco em forma de meia-lua estava já ocupado por
um total de vinte e três sacerdotes. Mais seis ou sete tinham-se
acomodado na primeira das três filas de bancos a que já fiz referência.
As outras duas filas continuavam vazias. (Posteriormente, ao
comparar estas informações com as do computador central do berço,
cheguei à conclusão que aquela meia-dúzia de saduceus e fariseus que se
sentava fora do semicírculo procedera assim porque aquele lugar era o
do chamado Sinédrio menor, formado única e exclusivamente por vinte e
três membros.
Caifás conseguira reunir uns trinta adeptos e, consequentemente,
nem todos puderam participar no tribunal oficial.) Sentados à beira do
tablado, um em cada ponta do semicírculo, encontravam-se dois escribas
judiciais. Vestiam as suas tradicionais túnicas de linho branco, trazendo
nas faixas umas caixinhas de madeira de onde começaram a tirar os
utensílios de escrita: penas de junco, dois pequenos frascos que faziam
as vezes de tinteiros e vários rolos de couro.
Para dizer a verdade, aqueles dois escribas foram a única coisa legal
e correcta do simulacro de julgamento. (Um, segundo a Misná,
encarregava-se de ir recolhendo as alegações a favor da absolvição do
detido ou detidos, e o segundo escrevia as propostas de condenação.)
Jesus, sempre na companhia do legionário que controlava a corda que lhe
amarrava os pulsos, foi obrigado a colocar-se mesmo junto do tablado,
de frente para os juízes e de costas para as três filas de bancos.
João e eu, na companhia de outros levitas e criados do Sinédrio,
postámo-nos atrás das filas de assentos, à esquerda do Mestre. Ao
fundo da sala, por uma porta situada nas nossas costas e que permanecia
entreaberta,
* 1 O Pai Natal deu os seguintes dados sobre a composição oficial do
Sinédrio naqueles tempos: uma instituição superior, ou Sinédrio maior,
formado por setenta e dois membros, e um Sinédrio menor, constituído
por vinte e três membros. Os dois tribunais tinham competência em
casos criminais e os dois membros mais destacados do grande Sinédrio”
eram o nasi, ou presidente, o ab bet din, ou pai do tribunal, títulos,
segundo parece, puramente honoríficos. As três filas de bancos do
Sinédrio menor, eram destinados aos discípulos dos sábios.
Dadas as características daquele tribunal” e a hora irregular, era
natural que os alunos” dos juízes não estivessem presentes. (N. Do M.)
descobri um grupo de hebreus. Mas, a ajuizar pela sua indumentária,
não pareciam ser sacerdotes nem membros do Sinédrio. (A incógnita não
tardaria a ser desvendada.) Logo no primeiro instante me chamou a
atenção um personagem que ocupava o centro do tribunal. Devia andar
pelos cinquenta anos. Era baixo e muito gordo.
A sua obesidade notava-se especialmente na cara, redonda e
congestionada, e numa grande papada sobre a qual se apoiava uma barba
grisalha. A cabeça, sem o turbante que alguns dos seus companheiros de
banco usavam era rematada por cabelo preto, muito curto, ao estilo
juliano.
A sua grande corpulência via-se notavelmente multiplicada por
vestes muito diferentes da dos restantes juízes. Envergava uma túnica e
calções, tudo de seda de um tom fulvo. O peito estava cingido por cinco
faixas ou listras, cada uma de sua cor: ouro, carmesim, escarlate, azulvioláceo
e alionado.
Aquele indivíduo era José ben Caifás, sumo sacerdote, desde o ano
18, por designação do procurador romano Valério Grato, antecessor de
Pilatos.
À direita e à esquerda do genro de Anás, estavam sentados mais
vinte e dois membros do Sinédrio, quase todos envoltos em amplos
mantos multicores. Em voz baixa, João foi-me indicando os mais
venenosos e intriguistas: Sermes, Dothaim Levi, Gamaliel, Jairo, Neftali
e um tal Alexandre na sua maioria saduceus.
Nos rostos daqueles indivíduos – quase todos com idades que
andavam à volta dos sessenta anos – havia perplexidade. O porte
majestoso e sereno do Nazareno devia causar-lhes profunda impressão.
Assim que Jesus foi posto na sua frente não cessaram de murmurar.
Mas Caifás parecia ter pressa e, a uma ordem sua alguns dos
guardas convidaram o grupo de judeus que aguardava na sala contígua a
que se aproximasse do conselho.
Primeiro, surpreendido, depois indignado, João viu aquelas
testemunhas começarem a fazer declarações contra os ensinamentos e a
pessoa do Galileu. Os seus ataques, tão exaltados como desordenados,
incidiam fundamentalmente nas numerosas violações do sábado e das leis
mosaicas, que segundo eles, Jesus e o seu grupo de esfarrapados galileus
tinham cometido. Os perjuros, com toda a evidência comprados pelo
Sinédrio, contradiziam-se constantemente transformando a sessão numa
farsa. O desfile de falsas testemunhas chegou a ser tão lamentável que
alguns dos juízes, envergonhados, baixavam a cabeça ou se agitavam,
nervosa e violentamente, nos assentos.
O Mestre, que nesta altura levantara o rosto, permanecia
impassível, sobressaindo dos acusadores não só pela estatura como pelo
porte majestoso. Aquele semblante sereno, sem a mais pequena sombra
de orgulho ou de vaidade, exasperou mais ainda Caifás e os seus
cúmplices, que não compreendiam como um homem podia manter tal
serenidade quando tudo se encaminhava para uma sentença de morte.
- Este profanador do sábado – afirmou uma das testemunhas – é
reincidente, pois consta que foi admoestado pelos sacerdotes em várias
ocasiões. Portanto, é réu de extermínio...
* (De acordo com a Misná – capítulo Sinédrio-Makkot – o que
profanava o sábado com premeditação e de modo reincidente devia ser
morto por lapidação.)
Outra das falsas testemunhas fez uso da palavra, e apontando o
Galileu lembrou à sala a multiplicação dos pães e dos peixes. .. De acordo
com as nossas leis – afirmou – este homem é um mágico que enganou o
povo com os Seus actos. Aquiba diz em nome de Yehosua: Se dois unem
pepinos servindo-se da magia, um dos colectores não é culpado, mas o
outro sim. O que realiza o acto é culpado e o que só engana a vista não é
culpado. Fomos muitos os que então pudemos ver como este enviado do
Príncipe dos Demónios levava a cabo o acto e os discípulos o
secundavam...
Um murmúrio de aprovação se prolongou entre os juízes. Mas o
Mestre continuou mudo. - Segundo o Levítico – argumentou outro hebreu
-, o réu adquiriu impureza por contacto com cadáveres. E, como se isto
não fosse culpa bastante, atreveu-se a violar a sagrada crença da
ressurreição dos mortos, tirando Lázaro do túmulo... Alguns dos
saduceus, cuja filosofia recusava de forma liminar a ressurreição dos
mortos, moveram a cabeça em negação, sorrindo abertamente.
Caifás, que pertencia a esta casta, deixou passar a impertinência
dos saduceus. Não era a melhor altura para entrar em polémicas com os
fariseus, que tinham franzido a sobrancelha com claro desagrado pelas
irónicas e silenciosas manifestações da outra parte do tribunal. A
momentânea tensão entre os juízes viu-se dissipada quando a
testemunha desviou a acusação para o novò facto mágico de Jesus ter
erguido Lázaro do sepulcro num tempo inferior ao toque do sofar.
(Aquele dado fez-me pensar que, uma vez que cada um daqueles toques
de como dos levitas do Templo nunca se prolonga para além dos quinze
segundos, a ressurreição de Lázaro – desde que Jesus o chamou até
voltar à vida, se deu entre doze e quinze segundos.) A acusação, como
quase todas, era tão pueril e falha de base que o sumo sacerdote – cada
vez mais agitado – apressou as testemunhas seguintes para que
continuassem. Mas as alegações posteriores não foram mais brilhantes...
Alguns judeus, acompanhando as suas palavras com grande
ostentação de gestos, lembraram ao tribunal mais um dos delitos de
Jesus: Não ter comido o obrigatório cordeiro pascal...
Aquela informação só podia ter sido dada por Judas. O Iscariotes,
que tinha chegado ao edifício do Sinédrio muito antes de nós, mantinhase
atrás do grupo de testemunhas, embora em momento algum chegasse
a depor. As normas daquela gente proibiam que um traidor se dirigisse
publicamente ao Conselho.) A lei mosaica, efectivamente, estabelecia que
todos os israelitas eram obrigados a comer carneiro ou cabrito na festa
da Páscoa. Só anos mais tarde, depois da destruição do Templo, a Misná,
no seu capítulo IV (pesahim)I suaviza as normas, dizendo textualmente
que o lugar onde não seja costume comer carne, não se coma.
* Depois da destruição do Templo, havia quem não comesse carne
assada para evitar que se dissesse que era carne de sacrifício pascal,
proibido depois da referida destruição. (N. Do M.)
Um dos últimos acusadores chegou a dar uma reviravolta completa
àquele desfile de incongruências e despropósitos.
Aludindo a outra lei judaica, chegou a acusar o Nazareno de
homicídio frustrado. O seu fraco e ridículo argumento baseava-se noutra
norma, que decretava a culpabilidade daquele que ferisse o seu próximo
com uma pedra, de tal maneira que o matasse.
A testemunha ensinada expôs então o incidente protagonizado por
uma adúltera, salva do apedrejamento popular quando Jesus, dirigindo-se
à multidão, convidou aquele que estivesse livre de pecado a atirar a
primeira pedra.
Para o retorcido hebreu, o gesto constituía delito, pois incitava ao
assassínio... A grotesca cena atenuou-se um pouco quando, subitamente,
os vinte e três juízes e os restantes membros do Sinédrio se puseram
de pé. Fez-se na sala pesado silêncio e um dos saduceus – o que estava
sentado à direita de Caifás – deixou o seu lugar para o ceder a um
indivíduo baixo e curvado, que acabava de entrar na sala. - É Anás –
murmurou João.
Durante a minha passagem pela casa do antigo sumo sacerdote não
tivera oportunidade de o conhecer. Agora, ao vê-lo subir para o estrado,
ajudado por um dos seus servos, senti uma certa decepção. O poderoso
sogro de Caifás, pai da influente família sacerdotal, era na realidade, um
velho decrépito, muito próximo dos setenta anos e afectado por um
adiantado mal de Parkinson. Como sâgan, ou presidente da câmara dos
anciães, ocupou o lugar à direita do sumo sacerdote em exercício naquele
ano. Imediatamente, os outros juízes voltaram a sentar-se, e Caifás, com
um gesto displicente das mãos gorduchas, indicou às testemunhas que
prosseguissem.
Apesar da sua mais que provável esclerose cerebral, Anás ou Anano
- como lhe chama Josefo – conservava uns olhos de rapace nocturna,
grandes e penetrantes. Mal se sentou, logo eles percorreram a sala, indo
pousar nos do Mestre. A tremura das mãos do velho acentuou-se. Jesus
sustentou-lhe o olhar e Anás, indeciso, procurou esconder as mão cheias
de rugas por baixo do roupão púrpura que o cobria. Depois, desviando a
atenção para o inquisidor de serviço, pareceu esquecer-se do Galileu.
.. Este homem – começara a proclamar a testemunha – afirmou que
destruiria o Templo e que em três dias edificaria outro, mas sem a ajuda
da mão do homem.
Os archontes, ou chefes do Templo, tinham encontrado, por fim, um
motivo condenatório suficientemente sólido.
Naturalmente, não fora aquilo que Jesus dissera. Aliás, nem esta
testemunha nem a seguinte, que confirmou as suas declarações, fizeram
qualquer alusão ao decisivo gesto do Rabi quando, ao mesmo tempo que
pronunciava aquelas palavras proféticas, apontava o Seu corpo com um
dedo.
Se não me falha a memória, aquele foi o único testemunho em que
dois indivíduos conseguiram estar de acordo.
Antes mesmo de terminarem os testemunhos, o clamor dos
archiereis ou sacerdotes-chefes foi geral, perturbando a ordem da sala
com exagerados sinais de desagrado e incredulidade.
Caifás levantou os braços pedindo calma enquanto um cínico sorriso
se lhe desenhava no rosto. E o silêncio restabeleceu-se pouco a pouco.
Naquele momento, Anás fez um sinal ao genro. Este inclinou-se e o antigo
sumo sacerdote disse-lhe qualquer coisa ao ouvido. Ao terminar, ambos
tinham os olhos fitos em Jesus, que se mantinha imperturbável.
Nenhuma das alegações conseguira alterar a sua disposição.
- Não respondes a nenhuma das acusações? - gritou-lhe de repente
Caifás, com a sua voz guinchada e desagradável.
Os juízes, testemunhas, levitas e restantes espectadores,
esperaram a resposta do Galileu. Foi inútil. O Mestre, com os olhos
postos em Caifás, não abriu a boca. Aquele silêncio do acusado, aliado à
sua extrema dignidade, fez que Caifás corasse. As pálpebras começaram
a abrir-se e a fechar-se ritmicamente, num tique nervoso. É muito
possível que o ódio daquele hebreu por Jesus de Nazaré chegasse
naquele momento ao seu ponto extremo, quase tenho a certeza também
de que, além dos ensinamentos e milagres de Cristo, o que
verdadeiramente alimentava a vingança do sumo sacerdote era o domínio
de que constantemente o Mestre fazia gala. Se Jesus se tivesse
humilhado ou adoptado uma atitude conciliatória, talvez aquela aparência
de julgamento não tivesse originado tão dolorosas consequências para o
Rabi da Galileia.
Quando tudo parecia indicar que Caifás estava prestes a explodir, .
Anás levantou-se. Tirou um rolo de pergaminho de dentro da manga
direita e, enquanto o desenrolava anunciou ao tribunal que aquela ameaça
do Galileu de destruir o Templo, era razão mais que suficiente para
considerar as seguintes acusações [...).
Com voz rápida e vacilante, quase enconstando o documento aos
olhos, fez a leitura das acusações que, obviamente, tinham sido
estabelecidas, antes, mesmo, da sessão do Sinédrio: [...) O acusado
desvia perigosamente as pessoas do povo e além disso, ensina-as. [...) O
acusado é um revolucionário fanático que aconselha a violência contra o
Templo Sagrado e, além disso, o pode destruir. [...) O acusado ensina e
pratica a magia e astrologia. O facto de prometer edificar um novo
santuário em três dias e sem auxílio das mãos é concludente.
João, estupefacto, deu-me a ver algo que era claro como a luz: a
redacção de tais acusações tinha de ter sido feita de comum acordo com
os falsos testemunhos.
Mas as indignidades do conselho ainda mal tinham começado.
Anás voltou a enrolar o pergaminho e aguardou, de pé, a resposta do
réu. No entanto, Jesus, não moveu um só músculo.
O ancião, visivelmente contrariado, deixou-se cair e um silêncio
pesado e ameaçador de novo inundou a câmara. Num acesso de ira, Caifás
saiu do seu lugar e, pondo-se na frente do Mestre, intimou-O com o
dedo, gritando-lhe:
- Em nome de Deus vivo – bendito seja – ordeno-Te que me digas se
és o libertador, o Filho de Deus... bendito seja o Seu nome:
* A astrologia era então punida severamente. Rops garante que era
uma ciência funesta, que engendrava todas as maldades (N. Do M.)
Desta vez, Jesus, olhando o baixo e colérico sumo sacerdote, deixou
ouvir a sua voz poderosa:
- Sou... E bem cedo estarei junto do Pai. Não tarda que o Filho do
Homem seja investido de poder e reine de novo sobre os exércitos
celestiais. As sonoras palavras do Nazareno retumbaram na sala como
um golpe de maça. Caifás recuou dois passos. Tinha a boca aberta e
trémula e os olhos injectados de sangue, tal como a cara e o pescoço.
Sem deixar de olhar para Jesus, deitou mão às cinco faixas que lhe
cingiam o peito e, com um puxão fez saltar os fechos que as prendiam
nas costas.
Os ornamentos sagrados do sumo sacerdote tombaram no chão, com
um quase imperceptível estalido das agulhas de marfim ao caírem no
lajedo.
Caifás, fora de si, exclamou com voz quebrada pela raiva, ao mesmo
tempo que uma involuntária chuva de gotículas de saliva lhe saltava da
boca:
- Que necessidade temos de testemunhas...? Ouviram já a blasfémia
deste homem... O que pensam e como temos de proceder com este
violador? Os trinta saduceus, fariseus e escribas puseram-se de pé como
um só homem, vociferando em coro: -Merece a morte... Crucifixão...!
Crucifixão...! A palpitação acelerada das artérias do pescoço de Caifás
mostravam às claras que o seu organismo sofria uma importante
descarga de adrenalina. Da mesma maneira furiosa com que arrancara
parte das vestes, voltou a encarar o Mestre, dando uma violenta
bofetada na face esquerda de Jesus. Os sinetes da mão esquerda do
sumo sacerdote (cheguei a identificar uma pedra de jaspe uma ágata e
uma cornalina) feriram o pómulo e dois finíssimos fios de sangue
correram até à barba.
Mas o Galileu não deixou escapar um só lamento. Baixou os olhos e já
não voltaria a levantá-los até a guarda do Templo O conduzir à sala onde
vira reunidas as testemunhas.
O genro de Anás voltou para o seu lugar, enquanto o coro de juízes
continuava vociferando:
- Morte!... Morte!...
João agarrou-se ao meu braço, mordendo o manto, numa crise de
impotência e de desespero. Mas ninguém, nem sequer o legionário, moveu
um dedo em defesa de Jesus.
O sogro do sumo sacerdote, que foi o único que continuou sentado e
em silêncio, pediu calma. Quando o último dos sinedristas obedeceu à
ordem de Anás, este dirigiu-se ao perturbado conselho, sugerindo que se
obtivessem novas acusações, em especial acusações que pudessem
comprometer o Nazareno perante a autoridade romana. Com uma
inteligência muito mais subtil do que os que ali estavam reunidos, o velho
ex-sumo sacerdote deu-lhes a entender que aquelas alegações podiam
não satisfazer Pôncio Pilatos.
* 1 Naquele tempo, nem os homens nem as mulheres usavam botões.
Em Israel não eram conhecidos. Em seu lugar usavam passadores: uma
espécie de agulha grande com um orifício no centro, a que se prendia um
cordão. Era usada inserindo-a no pano e passando o cordão por detrás da
ponta e da cabeça. (N. Do M.)
Mas os sacerdotes, Caifás à cabeça, opuseram-se com firmeza e,
durante bastante tempo, os chefes do Templo, escribas e fariseus
discutiram acaloradamente, interrompendo-se uns aos outros. Daquela
azeda discussão deduzi que os archiereis – tal como já demonstrara
Caifásnão desejavam demorar o processo por duas razões fundamentais:
primeira, porque era o dia da preparação da Páscoa e, segundo a Lei,
todos os trabalhos tinham de terminar antes do meio-dia; segunda,
porque o receio geral incidia na possibilidade de o procurador deixar
Jerusalém, regressando à sua base: Cesareia. Esta última razão pesou
muito mais que a primeira. Se Pilatos saísse da Cidade Santa, as
manobras do Sinédrio seriam estéreis.
Anás não pôde controlar a situação e os juízes, imitando o sumo
sacerdote, levantaram-se, abandonando a sala. Mas antes, um após outro,
passaram diante do Mestre, cuspindo-lhe no rosto. Se bem recordo,
trinta cuspidelas. Ou antes, escarros e cusparadas em partes iguais.
Quando o Mestre passou ao nosso lado, a caminho do local onde ia ter
lugar uma das mais selvagens e injuriantes afrontas daquela jornada, o
jovem discípulo voltou a cara, impressionado pelas expectorações
repugnantes que quase escondiam o rosto e a barba do dócil Jesus. João
sofreu um acesso de fortes vómitos, acabando por vomitar num dos
cantos da sala. Desta forma, no meio de grande confusão, deu-se por
concluída a primeira parte daquele julgamento. Eram seis e meia da
manhã...
Na realidade, aquela pausa no julgamento judeu de Jesus de Nazaré
ia ser, uma nova e grotesca caricatura do que deveria ter acontecido
num julgamento objectivo. As normas hebraicas – como irei
pormenorizando no final destas duas comparências do Rabi da Galileia
perante o irregular Conselho do Sinédrio – eram muito rigorosas em
quanto se relacionava com causas de sangue. Na sua ordem quarta
(Capítulo V), a Misná israelita estabelece com grande rigor e pormenor
que se o réu é considerado inocente, é posto em liberdade. Caso
contrário, os juízes adiam a sentença para o dia seguinte ....
Pois bem, esta importantíssima prescrição jurídica não só não foi
tida em conta por aqueles trinta sequazes do sumo sacerdote como, além
disso, foi grosseiramente manipulada.
De mútuo acordo, Caifás e os seus partidários retiraram-se da sala
do tribunal, reduzindo as obrigatórias vinte e quatro horas de reflexão e
jejum, antes da sentença definitiva a trinta escasssos minutos. Meia
hora que, em minha opinião, alcançou uma das mais altas quotas de
selvajaria a que pode chegar um grupo que se considera civilizado... É
possível que, por ignorância, ou por um respeito muito humano, os
evangelistas não nos digam praticamente nada do que padeceu o Mestre
naqueles momentos e naquele local. Pessoalmente, inclino-me para a
primeira razão: a falta de informação. Como pormenorizarei de imediato,
o jovem João não pôde estar presente naquela horrível meia hora. Os
escritores sagrados fazem algumas alusões – sempre muito superficiais
e como se não quisessem entrar em pormenores – sobre uma bofetada,
algumas cuspidelas e pancadas dadas pelos servos do Sinédrio... Creio,
honestamente, que os evangelistas – talvez com a preocupação
de não mortificar os seus leitores com os padecimentos de Cristo
prestaram um fraco serviço à Verdade, ao não exporem com mais
pormenores o amargo transe do Nazareno. Precisamente, ao conhecer
com exactidão o sucedido naquela manhã, numa das câmaras do Sinédrio,
uma pessoa pode ter a intuição de que foi aquele, talvez, o momento ,
mais amargo e humilhante de toda a Paixão. Muito mais, naturalmente, ,
que a flagelação ou que a aterrizante cena do pregar dos cravos...
Entendo que, para qualquer pessoa normal – e muito mais logicamente, se
essa pessoa é a própria Divindade – os ultrajes e ataques à sua dignidade
podem ser mais dolorosos que as pancadas ou torturas propriamente
ditas. E foi isto o que aconteceu, enquanto os juízes deliberavam no
jardim central do edifício.
Sem um instante de hesitação fui atrás do soldado que escoltava
Jesus, enquanto João, muito impressionado por aquela repulsiva desonra
da pessoa do seu Mestre, vinha cá fora, procurando respirar ar puro e
recompor-se física e emocionalmente.
Mas, poucos minutos depois, vi-o entrar na sala para onde os levitas
tinham levado Jesus. Encontrávamo-nos num cubículo de reduzidas
dimensões, totalmente vazio, sem móveis e sem ventilação alguma. Dois
dos servos do Sinédrio empunhavam archotes que, juntamente com três
pequenas candeias de azeite penduradas das paredes de tijolo,
iluminavam o rectângulo com uma luz avermelhada e fantasmagórica. O
Nazareno ficou no centro do húmido e fedorento cubículo, enquanto os
guardas e servos do Templo – uns doze, mais ou menos se acomodavam,
encostando-se às paredes ou sentando-se no chão duro.
A minha primeira impressão, ao verificar o silêncio e total
indiferença daqueles indivíduos, foi relativamente tranquilizadora. Era
evidente que os sicários de Caifás tinham recebido ordens para escoltar
o réu e esperar o recomeço do processo. Mas, quando mal tinham
passado ainda dois minutos, um dos levitas que acompanhara o Conselho
apareceu à porta, chamando por sinais um dos que empunhavam archotes.
Depois de um breve segredar, o recém-chegado desapareceu e o do
archote deu uns passos para o seu companheiro, transmitindo-lhe a
ordem que, sem ; dúvida, o guarda acabava de trazer.
Os criados e levitas formaram um círculo, dialogando em voz baixa e
lançando constantes olhares ao preso. Alguma coisa tramavam...
Naqueles momentos críticos Jesus voltou a levantar o rosto,
procurando com o olhar. Por fim, deteve-se em João, que continuava
muito próximo da porta e, sem dizer palavra, fez-lhe um gesto com a
cabeça, ordenando-lhe que saísse dali. Aquele sinal foi peremptório.
Mas o discípulo vacilou, respondendo com uma negativa. O Mestre,
pela segunda e última vez, virou a cabeça para a direita, apontando-lhe a
porta. Nos olhos do Nazareno havia uma força e uma certeza tais que,
por fim, João acabou por ceder, saindo do local.
O legionário, testemunha como eu, da silenciosa ordem do réu,
interrogou-me com o olhar. Mas só pude encolher os ombros. Naquele
instante não era capaz de perceber o motivo por que Jesus de Nazaré
obrigara o seu amigo inseparável a deixar-nos. Lamentavelmente, não
tardaria em saber...
Logo que João saiu, o Mestre limitou-se a observar-me durante
escassos segundos. Naqueles olhos semicerrados em consequência das
cuspidelas – já secas – adivinhei uma mistura de infinita tristeza e
resignação. Depois, o Gigante baixou novamente a cabeça, mergulhando
nos seus pensamentos.
Aquela tensa calma não tardou em se quebrar. O grupo de
assassinos contratados rodeou o Mestre. Os que tinham archotes
colocaram-se um de cada lado de Jesus e, sem prévio aviso, o criado que
recebera a misteriosa ordem despiu o manto e atirou-o para uma ponta
da câmara.
Depois, pondo-se a quatro dedos do peito do Rabi, levantou os olhos
e começou a interrogá-lo:
- Diz, príncipe de Belzebu... como se chamam os Teus cúmplices?
Mas Jesus nem sequer levantou o rosto.
Naquele momento, comecei a entender em que consistiria a ordem
que os guardas e servidores do Sinédrio acabavam de receber.
Se bem estava lembrado, Anás fizera-lhe aquela mesma pergunta.
Era mais que provável que o Conselho dos saduceus, escribas e fariseus,
que se apartara no julgamento, tivesse decretado que os guardas do
Mestre tentassem aproveitar aqueles minutos para interrogarem e
maltratarem o impostor.
- .. Conhecemos Judas – acrescentou o lacaio, com um sorriso que me
fez temer o pior -, também Simão, o Zelota, e aquele João Zebedeu...
Mas quem são os outros...? Responde! O Galileu nem pestanejou. O rosto,
voltado para as lajes cinzentas do pavimento, estava ausente.
Negas-te então a responder.
E ocriado virou-Lhe as costas, dando um breve passo em frente. De
repente voltou-se, esbofeteando-o com a esquerda. O golpe foi tão duro
quanto inesperado. E todo o corpo de Jesus tremeu.
Os restos de escarros na face direita do Rabi ficaram agarrados à
palma da mão do esbirro que, com uma careta de repugnância, sacudiu os
dedos uma e outra vez, procurando livrar-se daquelas imundícies.
Finalmente, aproximou a mão do manto do Nazareno, esfregando-a no
pano.
Quando o legionário tentou acabar com o súbito e selvagem ataque,
um dos guardas do Templo pôs-lhe a mão no ombro e, afastando-o do
Rabi, entregou-lhe uma pequena bolsa de couro, murmurando que não
interviesse e que dividisse as moedas comigo. O suborno tornou surdo e
mudo o soldado que, a partir daquele momento, já não saiu de um dos
cantos da sala. A sua satisfação aumentou quando me neguei a aceitar a
minha parte.
Apesar da raiva que começara a queimar-me as entranhas, não pude
fazer mais que observar e tentar não alterar os acontecimentos, tal
como impunha o código de Cavalo de Tróia...
A partir daquele instante uma saraivada de murros e bofetadas
começou a cair no corpo do Mestre.
De vez em quando, entre pancada e pancada, um dos levitas voltava
a interrogá-lo...
- Responde... Quantos são vocês?... Como se chamam os Teus
adeptos?... Quem tomou o comando?...
Jesus, com os lábios rasgados pelas pancadas, não cedia.
Alguns dos murros atingiram-lhe os olhos, provocando um lento mas
alarmante inchaço.
No meio daquela iniquidade fiquei espantado mais uma vez perante a
serenidade e resistência física do Galileu. Muitas das pancadas, dadas
com frieza em pontos tão delicados e vulneráveis como olhos, lábios,
ouvidos, rins e estômago, teriam lançado por terra um homem vulgar.
No entanto, o Nazareno – ainda que chegasse a vacilar em várias
ocasiões – não soltou um só lamento, conservando sempre o equilíbrio.
O completo silêncio do Rabi aumentava o furor dos levitas, que
redobraram na agressão.
Suados, ofegantes e arrastados pelo paroxismo, os energúmenos,
não satisfeitos com o violento castigo que estavam a infligir, foram
procurar um cântaro de água, submetendo Jesus a um dos suplícios mais
angustiantes que um ser humano possa inventar.
Um dos sicários pôs-se nas costas do Nazareno, puxando-lhe
violentamente os cabelos. Logo o robusto corpo se inclinou para trás. Um
segundo guarda forçava a boca de Jesus a abrir-se enquanto um
terceiro, que segurava no cântaro, começava a deitar água na boca do
Nazareno.
O líquido foi entrando aos borbotões durante muitos e intermináveis
segundos, até que, finalmente, o Rabi teve um seco e forte acesso de
tosse, que pôs termo à tortura. Sem o saberem, aquelas bestas humanas
tinham aliviado – e de que maneira! - o organismo castigado do
prisioneiro. (Por causa das horas de angústia no Getsémani, o Mestre da
Galileia tinha começado a fazer um grave e decisivo processo de
desidratação, que iria agravar-se sensivelmente depois dos açoites.)
O criado que segurava o recipiente de barro afastou-se para o lado
e, enquanto o levita continuava a puxar pelo cabelo do réu, outro esbirro
levantou a perna esquerda, atirando um pontapé ao baixo ventre do
prisioneiro indefeso.
Foi uma das poucas vezes que ouvi um gemido da boca de Jesus. A
dor deve ter sido tão dilacerante que, apesar de estar vergado para
trás, o tronco e a cabeça do Galileu endireitaram-se com um movimento
reflexo, ao mesmo tempo que os joelhos cediam. Cristo caiu, indo o rosto
bater nas lajes.
- Estúpidos! - interveio o legionário, vindo em socorro do preso.Será
que querem acabar com ele? O guarda que estivera a puxar pelo cabelo
do Rabi largou a mecha que lhe ficara nos dedos e, arrancando o cântaro
ao colega, despejou o conteúdo na nuca do Nazareno.
Sinceramente, dado Jesus ter caído de bruços, não pude verificar
se - como temia – desmaiara. Por continuar com os pulsos atados atrás
das costas, tiveram de ser os criados e levitas, ajudados pela sentinela
romana, a levantarem-no. Quando, por fim, consegui ver-lhe o rosto,
percorreu-me um calafrio: Jesus empalidecera em extremo e uma das
sobrancelhas (a esquerda) rasgara-se, possivelmente em consequência do
choque com o lajedo. O nariz, apesar de alguns hematomas não parecia
gravemente ferido com a queda. Pensei que o Mestre ainda se
encontrava consciente no instante do embate com o pavimento, podendo
talvez, amortecer o violento impacte rodando a cabeça. O sangue, no
entanto, começara a correr com abundância, logo cobrindo a parte
esquerda da cara.
Por instinto, o Nazareno começou a inspirar profundamente.
Pouco a pouco foi-se recompondo, ainda que o rosto já não tivesse
qualquer semelhança com aquele semblante majestoso e sereno que
apresentava ao entrar na sede do Sinédrio.
O sangue começara a pingar da barba, manchando o manto e parte
da túnica.
Os sequazes de Caifás, um pouco mais apaziguados, isolaram-se num
dos cantos da quadra, iniciando outra troca de impressões. E dali a pouco
o que se desembaraçara do seu roupão, levantou-o do chão, lançando-o à
cabeça do Rabi. Vendo-o de cabeça tapada, outro levita aproximou-se de
Jesus, gritando-lhe entre sonoras gargalhadas. - Faz profecias,
libertador... Diz-nos, quem Te bateu?
Empunhando um bastão de uns quatro centímetros de diâmetro com
a mão esquerda vibrou uma paulada seca no rosto do silencioso Mestre,
que recuou uns passos em consequência da pancada. Antes que pudesse
desequilibrar-se, outro criado agarrou-O pelas costas, impedindo que
caísse.
As gargalhadas alastraram rapidamente e, um após outro, todos os
homens participaram naquele jogo cruell.
As bofetadas e pauladas continuaram durante os últimos dez
minutos, e a cada pancáda o agressor fazia a mesma pergunta cínica:
- Faz uma profecia... Quem te bateu?... Faz uma profecia, bastardo !
Pelas sete da manhã, quando o Nazareno, curvado e apoiado a uma
das paredes, parecia prestes a desfalecer, entraram vários levitas,
ordenando aos outros que levassem o Rabi à presença do Sinédrio.
Quando aqueles selvagens tiraram o manto da cabeça do Mestre,
pareceu-me que o sangue se me gelava nas veias. Se não soubesse que
era Ele, acho que não O reconheceria. A paulada – suponho que a primeira
-, apesar de o golpe ter sido amortecido, caíra sobre o pómulo e parte do
nariz, provocando o inchaço de ambas as zonas. Esta pancada, ou talvez
os outros murros e bofetadas, tinham originado uma enorme hemorragia
nasal. Os fios de sangue saíam de ambas as narinas, correndo pelos
lábios e empapando bigode e barba.
Os hematomas dos dois olhos eram tão grandes que o Rabi quase
não os podia abrir.
Aquele rosto quebrado, inflamado e com a metade esquerda
ensanguentada, deixou sem fala alguns dos criados e sicários do
Sinédrio. Era evidente que o castigo fora brutal. Para minha surpresa
muitos dos levitas
* Nos antigos textos gregos é descrito um jogo. Chamado muinda,
que consistia em tapar os olhos a um dos jogadores (com um lenço ou com
a própria mão). Este tinha de adivinhar o objecto que llhe era
apresentado ou a pessoa que lhe tocava. Se acertava ocupava o seu lugar
aquele que tinha perdido.
2 O bastardo”, embora existissem diferentes interpretações era
em linhas gerais, o filho nascido do adultério. Não eram admitidos na
assembleia de Israel, como também não o eram os seus descendentes
até à décima geração”. Não podiam contrair casamento com nenhum
membro legítimo da comunidade judaica, discutindo-se vivamente, até se
as famílias de bastardos poderiam participar na libertação final de
Israel. Este insulto era considerado como uma das piores injúrias.
Aquele que o proferia podia ser condenado a trinta e nove açoites. (N.
Do M. )
nervosos, começaram a discutir quanto a conveniência de lavar e
tornar mais apresentável a face do Mestre. Não por misericórdia,
naturalmente, mas pelo receio de possíveis represálias ou recriminações
dos juízes e, talvez, dos adeptos do Nazareno. Por fim, um dos serventes
embebeu uma das pontas do roupão ou manto com que Lhe tinham tapado
a cabeça na água que restava do cântaro. Num impulso que nunca
consegui explicar, dirigi-me ao guarda, identificando-me como médico e
pedindo-lhe que me permitisse lavar o rosto do Galileu e, de passagem -
disse-lhes – examinar as possíveis fracturas.
Os guardas concordaram, um tanto aliviados, mas sugeriram-me que
fosse diligente no arranjo. O Conselho estava à espera.
Obviamente, nos planos do Cavalo de Tróia não era contemplada a
possibilidade de que eu reparasse, nem nada que se parecesse, as
feridas de que pudesse sofrer Jesus de Nazaré.
Tal como referi, isso estava rigorosamente proibido. No entanto, e
dado que os levitas se dispunham a lavar a face martirizada do
prisioneiro, considerei que aquela era uma oportunidade única de
verificar de perto e pessoalmente as lesões exteriores e visíveis mais
graves. No entanto, e apesar desta justificação, houve também uma
vontade pessoal que me levou a tomar semelhante decisão...
Peguei, pois, na ponta do áspero manto e, com toda a delicadeza de
que fui capaz, comecei a limpar as crostas de sangue que se tinham
agarrado ao malar e à face esquerda. As hemorragias, tanto a provocada
pelo rasgão na sobrancelha esquerda como a nasal, tinham sido enormes,
embora ficasse com a impressão de que a perda de sangue não era
importante. A ajuizar pelos rastos, crostas e sangue acumulado na
barba, manto e túnica, não creio que fosse superior a duzentos ou
trezentos centímetros cúbicos.
Pude igualmente deduzir que a capacidade de coagulação do sangue
de Cristo era normal. Tanto o golpe na sobrancelha como os cortes dos
lábios e os dois fios de sangue que vinham das narinas tinham coagulado
muito rapidamente.
Quando aquela metade do rosto ficou limpa larguei o manto.
Antes que os criados de Caifás pudessem reagir, introduzi os dedos
no rasgão feito pelo punhal do bandido que tentara assaltar-me na noite
anterior e, com dois fortes puxões, consegui arrancar um bocado da
minha túnica. Introduzi-o na boca do cântaro, molhando-o o mais que me
foi possível, e logo voltei à parede onde Jesus continuava encostado,
passando o leve lenço cor de osso pelo nariz deformado e pelos lábios,
sobrancelhas e pálpebras (1).
*1 Graças àquele gesto. Cavalo de Tróia pôde conseguir uma
inestimável amostra do sangue de Jesus de Nazaré. E ainda que as
análises feitas com os coágulos que ficaram no pedaço da minha túnica
não pudessem ser efectuadas com a velocidade aconselhada
em tais casos, puderam, averiguar, entre outras coisas, que naquela
altura (sete da manhã) os eritrócitos por milímetro cúbico de sangue
eram, aproximadamente, de quatro milhões e novecentos mil (pouco
menos que o normal, possivelmente em consequência das perdas que
tinham começado a verificar-se).
Também observámos alguns leucócitos (muito poucos). Por meio de
análises comparativas estabeleceu-se que, tanto o número destas células
(sete mil por milímetro cúbico), como os tipos examinados (neutrófilos,
eosinófilos, basófilos linfócitos e monócitos) correspondiam ao
normalmente exigido num indivíduo saudável. E se bem que a primeira
análise fosse feita antes de trinta e seis horas, não foi possível
encontrar plaquetas, tinham desaparecido todas. No entanto,
encontrámos vestígios de trombina e alguns produtos próprios da
degradação da fibrina. Num dos coágulos – que conservava leves
vestígios de humidade – foi possível detectar algumas proteínas do
plasma (fundamentalmente, albuminas e globulinas), bem como ligeiros
indícios de glucose, vitaminas, hormonas e diversos amino-ácidos. Não
pudemos descobrir restos de colesterol.
Quanto à coagulação, e só através da observação pessoal das
feridas, pudemos estabelecer que era normal. Esta dedução viu-se
reforçada pela análise de uma das proteínas do plasma – o fibrinogéneo –
que, depois de se converter em fibrina, tinha ficado degradada. (N. Do
M.)
Ao apalpar o inchaço do pómulo direito concluí que a paulada tinha
afectado uma ampla zona do osso malar, atingindo parte do olho direito.
Se o hematoma continuasse a aumentar, o mais provável era que o
Nazareno acabasse por ter sérias dificuldades em conseguir abrir aquele
olho.
Quanto ao nariz, a impossibilidade de tirar uma radiografia deixoume
na dúvida se a pancada teria fracturado a cana, formada pelos ossos
nasais. Estes dois ossos, como todos os médicos sabem, são frágeis,
podendo ser quebrados por um murro.
Para mim, e depois daquela observação, os treze ossos da cara de
Jesus pareciam estar intactos. Insisto, no entanto, nas minhas sérias
dúvidas quanto aos nasais. Dada a violência da pancada, era de prever a
possibilidade de que estivessem fracturados. (Entendo, aliás, que a
famosa profecia em que se diz que nenhum dos ossos do Messias ficaria
partido, bem pode referir-se aos ossos longos.) Em especial houve um
pormenor que, com a devida reserva, me inclinou a acreditar desde o
primeiro momento que os dois pequenos ossos nasais podiam estar
seriamente magoados.
Durante esta segunda limpeza, e quando toquei na massa muscular
inflamada do nariz (piramidal e transverso, fundamentalmente), ao
palpar a área da cartilagem nasal o Rabi recuou levemente.
Apesar da minha extensa suavidade, o simples toque do tecido
naquele ponto do nariz multiplicou a dor.
Naquele momento, o Gigante – que continuava silencioso entreabriu
os olhos como pôde, fixando em mim o olhar. Tentei sorrir e acho que o
consegui. Era quanto podia dar. Jesus compreendeu a minha pobre mas
sincera prova de amizade e os Seus lábios estremeceram. De repente,
para meu desconsolo, uma lágrima correu do olho esquerdo, afundandome
mais ainda na impotência...
O sicário que tinha avisado os verdugos voltou a aparecer à porta e,
com um gesto de impaciência, abriu caminho até ao réu.
Agarrando-O por um braço, puxou-O para a saída.
Com passo vacilante, o Mestre entrou novamente na sala do
Sinédrio.
A falta de sono, a dor e o cansaço, depois do espancamento, tinham
começado a minar o Seu organismo.
Fui o último a abandonar aquele lugar trágico. Esperei, de propósito,
que o último levita saísse para, baixando-me, apanhar a mecha de cabelo
que um dos guardas involuntariamente arrancara do crânio de Jesus.
Escondi-a na minha bolsa juntamente com o farrapo ensanguentado
da minha túnica e apressei-me a ir ao encontro do Conselho do Sinédrio.
Os Juízes tinham ocupado os mesmos lugares e o Nazareno,
escoltado pelo legionário e mais dois serventes, tentava manter-se de pé
diante do semicírculo. A Sua aparência, apesar da rápida lavagem ao
rosto, era tão lamentável que aqueles trinta judeus não puderam dominar
a surpresa. Durante alguns minutos trocaram olhares sarcásticos,
imaginando o suplício a que fora submetido o impostor e regozijando-se,
suponho, pela alteração súbita daquele majestoso e sereno rosto.
João, que se juntara a mim, não conseguia articular palavra.
Os seus olhos, espantados, miravam e remiravam o semblante do
Mestre sem poder dar crédito ao que, infelizmente, era só o princípio do
fim...
Quando os escribas judiciais ocuparam os seus lugares, Anás fez
uso da palavra e, apontando um pergaminho que o seu genro tinha nas
mãos, insistiu novamente na ideia que já expusera na primeira parte
daquela reunião. Para o antigo sumo sacerdote, a acusação de blasfémia
carecia de força, pelo menos em relação ao procurador romano.
E insistiu na necessidade de redigir uma série de alegações que
comprometessem o Rabi da Galileia com a justiça que Pilatos
representava. Ao escutar o sogro de Caifás, imaginei que o rolo a que
aludira devia conter a sentença definitiva contra Jesus. Sem poder
reprimir a curiosidade, perguntei a João o que sucedera na deliberação
dos juízes.
O cada vez mais desmoralizado discípulo nem sequer me ouviu.
Tive de o sacudir ligeiramente para que, por fim, desse atenção à
minha pergunta. Com lágrimas nos olhos explicou-me que durante a
improvisada reunião dos saduceus e fariseus no pátio central do edifício,
aqueles indignos sacerdotes só tinham chegado a um acordo: executar
Jesus.
Apesar de ter ficado muito perto dos juízes, João não chegou a
conhecer o texto da sentença, redigido pelo próprio Caifás, após não
poucas discussões.
Por um instante acreditei que o sumo sacerdote leria a acusação ou
acusações. Mas não foi assim. Depois de muitos rodeios e divagações da
assembleia, três dos fariseus levantaram-se dos lugares, renunciando a
continuar naquele julgamento. Embora estivessem de acordo em dar
morte ao Rabi, o seu tradicional sentido da pureza aconselhava-os -
segundo manifestaram publicamente – a não tomar parte naquela
flagrante ilegalidade, a não ser que o Nazareno fosse conduzido perante
Pilatos, quando se Lhe desse a saber a razão por que fora condenado.
Caifás não se impressionou com este desaire que lhe era infligido
pelos chamados santos ou separados e, depois de consultar o tribunal,
suspendeu a sessão.
Às sete e meia da manhã, os saduceus, escribas e os poucos fariseus
que se tinham mantido fiéis a Caifás desfilaram pela segunda vez diante
da figura martirizada de Jesus de Nazaré.
O Mestre não tardou a seguir os passos dos juízes.
Fortemente escoltado, o Galileu ficou uns.minutos no jardim interior
do Sinédrio. A um canto, Caifás e os seus homens continuaram a discutir
acaloradamente.
Voltaram a entrar no hemiciclo e, passado algum tempo,
reapareceram no pátio central. O gordo sumo sacerdote levava dois
pergaminhos na mão esquerda. Aquilo não me causou estranheza.
Em seguida, Caifás, pôs-se à frente dos levitas e servos, ordenando
que apertassem o círculo em volta do blasfemo, enquanto se dirigiam ao
quartel-general romano. Anás e a maior parte dos juízes despediram-se
de Caifás, regressando à quadra onde se realizara a primeira parte do
julgamento.
Judas Iscariotes, que não trocara uma só palavra connosco, juntouse
à comitiva.
O sumo sacerdote em exercício, a meia-dúzia de saduceus e o
pelotão que rodeava o Mestre, meteram-se pelas ruas da Cidade Alta,
em direcção à Porta dos Peixes. Ao passarem na frente dos bazares, as
pessoas levantavam-se, saudando reverentemente o sumo sacerdote. Em
minha opinião, nenhuma das assombradas testemunhas chegou a
reconhecer Jesus. Os hematomas nos olhos, nariz e pómulo direito
tinham deformado o Seu rosto ao ponto de o tornarem quase
irreconhecível. Enquanto caminhávamos apressadamente para a fortaleza
reparei novamente nos dois rolos que Caifás levava. Qual seria o seu
conteúdo?
Tratar-se-ia da sentença que tinha de apresentar a Pôncio Pilatos?
Na minha mente agitava-se incessantemente aquele aviso do
tribunal prometendo uma segunda audiência. Se as minhas informações
estavam correctas, Jesus não voltaria a entrar no Sinédrio. Que ia então
acontecer?
Pensando bem, perante aquele excesso de irregularidades cometidas
no simulacro de julgamento, que haveria a esperar de uma segunda
audiência?
Fazendo um estudo sumário do julgamento, os sinedristas tinham
infringido, pelo menos, doze das normas básicas que as leis hebraicas
estabeleciam para julgamentos relacionados com a pena capital. Vejamos
algumas das mais gritantes.
1.a Para começar, e segundo a Misná (Ordem Quarta, Sinédrio), os
chamados julgamentos de pena capital tinham de se iniciar defendendose
a inocência do réu e não a sua culpabilidade.
2.a Os julgamentos de sangue – ou em que se presume estar em jogo
a vida do acusado – deviam ser celebrados de dia e a sentença, se fosse
condenatória, nunca poderia ser pronunciada durante esse mesmo dia.
Por isso, diz a lei, não pode realizar-se o julgamento de sangue na
véspera do sábado de um dia festivo.
Portanto ao reunir-se, na sexta-feira, 7 de Abril, véspera de sábado
e da Páscoa, o pequeno Sinédrio cometeu um duplo delito.
3.a Nos julgamentos capitais, a audiência devia ser aberta sempre
por um dos juízes que se sentava ao lado do mais antigo, a fim de que os
juízes de menor autoridade não fossem influenciados pelos antigos (na
audiência contra o Mestre foram os falsos testemunhos que deram início
ao pleito).
4.a Falando de falsos testemunhos, bastaria a actuação deste grupo
para invalidar qualquer outra audiência semelhante. A lei judaica era, e é,
extremamente rigorosa em relação a este ponto. Antes de se iniciar o
julgamento, as testemunhas deviam ser admoestadas
* Assim diz a lei (:Llish.. tratado Sinédrio”. Capítulo IV.
n.” 1). (N. Do M.)
340 341
severamente: quando eram introduzidas na sala – diz a Misná – eralhes
infundido temor, ao dizerem-lhes que não falassem por mera
suposição, pelo depoimento de outra testemunha, pela declaração de um
homem digno de fé que tivessem ouvido ou que não pensassem que, em
última análise, não seria examinado e analisado o seu depoimento. Deveis
saber, dizia-se às testemunhas, que, nos julgamentos de sangue, o
sangue do réu e o sangue
de toda a sua descendência cairá sobre a falsa testemunha até ao
fim do mundo (...].
Nada disto aconteceu no Sinédrio. Mais ainda: as testemunhas
compradas caíram em contradições constantes e grosseiras. A lei
esclarecia que as falsas testemunhas deviam ser flageladas ou, mesmo,
condenadas à morte. É óbvio, portanto, que aqueles indivíduos se
prestaram a semelhante risco porque lhes fora garantido previamente
imunidade e, naturalmente, muito dinheiro.
5.o Se o réu era considerado culpado, continua a lei mosaica, a
sentença devia ser adiada para o dia seguinte. Como já referi, nada disto
foi respeitado. No máximo, o tribunal suspendeu a audiência durante
meia hora, logo voltando à sala.
Entretanto, prossegue a lei, os juízes reúnem-se dois a dois, comem
muito frugalmente, não bebem vinho durante todo o dia, passsam toda a
noite a discutir e a deliberar e, pela manhã, levantam-se e vão para o
tribunal.
6.o Se depois de tudo isto continuassem a considerar o preso
merecedor da pena capital, a sentença definitiva devia ser dada
mediante votação. Se doze o declaravam inocente e doze o consideravam
culpado, era dado como inocente. Se doze o declaravam culpado e onze
inocente ou, mesmo, se onze o declaravam inocente e outros onze
culpado e um diz não sei, ou ainda se vinte e dois o consideram inocente
ou culpado e um diz não sei, têm de se reunir mais juízes.
Quantos era possível reunir no máximo? Sempre mais dois até se
chegar aos setenta e um.
No julgamento presidido por Caifás não houve qualquer votação.
7.a A lei hebraica proibia que a mesma pessoa fosse juiz e acusador.
No nosso caso, Caifás acumulou as duas situações.
8.a Também não foi pronunciada a sentença tal como prescrevia a
lei:
[...] Escreve-se (a sentença) e enviam-se mensageiros a todos os
lugares dizendo que fulano de tal, filho de fulano de tal, foi
condenado à morte pelo tribunal.
Foi esta uma das razões por que os fariseus que faziam parte do
Conselho decidiram retirar-se. E, no cúmulo da irregularidade
jurídica, nem sequer o próprio julgado conheceu o texto definitivo da
sentença de morte. (Tal como veremos mais adiante, Jesus de Nazaré
morreu sem saber oficialmente a Sua culpa...) 9.a Até a resposta dada
pelo Mestre a Caifás, quando este o intimou a que declarasse se era o
Messias, não foi motivo de blasfémia. Segundo a Misná, o blasfemo não é
culpado enquanto não menciona explicitamente o Nome. Na resposta de
Jesus, como se recordará, não era citado o Nome, quer dizer, Yavé, Deus
ou o Divino. Jesus disse: Sou ...]: Sou ...] E não tardarei em ir para junto
de Meu Pai. Em breve o Filho do Homem será investido de poder e
reinará de novo sobre os exércitos celestiais.
Onde aparece nestas frases o Nome explícito de Deus? 10.a Mesmo
que assim tivesse acontecido, a lei especificava que, uma vez concluído o
julgamento, não o sentenciarão à morte usando circunlóquio, mas pondo
todo o público fora da sala de tribunal perguntarão à testemunha de
mais dignidade: Diz, que ouviste de modo explícito? Ela diz. Então os
juízes punham-se de pé, rasgando as vestes, que não podiam ser cosidas.
A segunda testemunha dizia: Também eu ouvi o que ele ouviu e a terceira
afirmava: Também eu (ouvi) como ele.
Será que no litígio contra o Nazareno sucedeu algo como isto?
Nem sequer Caifás chegou a rasgar verdadeiramente as vestes...
11.a Se o tribunal considerou que Jesus era um falso profeta - como
aconteceu – a lei também não autorizava o Seu julgamento, a não ser pelo
grande Sinédrio, formado sempre por setenta e um membros. E naquele,
como já disse, só constavam, oficialmente, vinte e três.
12.a Finalmente, embora, como disse, o rosário de faltas e
irregularidades nesta querela pudesse ser muito longo, os juízes também
não respeitaram as normas legais, que fixavam as segundas e as quintasfeiras
como datas oficiais para as diferentes comissões e assembleias
dos tribunais de justiça (assim o fixa a Misná, na sua
Ordem Terceira, capítulo 1).
Enquanto durou o meu treino para esta missão, tive oportunidade
para investigar em numerosas fontes, observando como, até hoje, entre
os exegetas e mais doutores e estudiosos desta parte da Biblia, não
existe acordo quanto ao responsáveis pelo julgamento e posterior
condenação à morte do Nazareno. Para muitos (fundamentalmente
autores judeus), o Sinédrio daquela época gozava da prerrogativa da
pena capital. E se Jesus de Nazaré dizem foi executado ao estilo romano
é porque não havia conflito entre eles. (1)
Para outros, o Conselho Supremo da comunidade israelita – o
Sinédrio – podia julgar mas nunca aplicar e executar a pena máxima.
Neste pressuposto, as castas sacerdotais não tiveram outro remédio
senão procurar Pôncio Pilatos, para que confirmasse a sentença
(2).
Nunca consegui entender a razão destas diferenças de critério, pelo
menos entre os exegetas e escritores católicos. A maioria manifesta-se
de acordo com o misterioso e dificilmente comprovável acontecimento
*1 Assim pensam e escrevem, entre outros, autores como S.
Zeitlin (The crucifixion
of Jesus reexamined ), H. Mantel (Studies in the Story of the
Sanhedrin), P. Winter
(On the trial of Jesus), J. Carmichael (The death of Jesus),
D.
Flusser, J. Isaac,
H. Cohn, W. R. Wilson, Catchpole e um longo et coetera. (N. Do M.)
2 Entre os defensores desta segunda hipótese encontram-se, por
exemplo Blinzer
(O Processo de Jesus), Jeremias, E. Lohse (Sunedrion), Strack-
Billerbeck, Mommsen
(Rmishe Strafecht), Sherwin-White (Roman Society and Roman Law
in the New Testament), A. Strobel (Die Stunde der Wharneit), E.
Schurer, et coetera. (N. Do M.)
da ressurreição de Jesus (sempre dentro de um ponto de vista
histórico-científico) e, no entanto, correm rios de tinta a favor e contra
a jurisdição penal do Sinédrio. Se o assunto fosse verdadeiramente
aprofundado
- além das numerosas referências históricas sobre o poder de Roma
e dos seus procuradores – observar-se-ia que, tendo em conta o ódio de
Caifás e dos seus correlegionários por Jesus, bem fácil teria sido ditar a
pena de morte e executá-la sem mais demora. O facto indiscutível da sua
visita à Fortaleza Antónia e a submissão geral judaica ao juízo de Pilatos
evidencia uma questão objectiva: era Roma quem, definitivamente tinha
a última palavra. Nos casos das mortes de Estêvão (ano 36 da nossa Era)
e de Tiago, um dos irmãos de Jesus de Nazaré (ano 62 depois de Cristo),
muitos dos defensores da culpabilidade romana na execução do Mestre
da Galileia quiseram ver duas provas decisivas dessa capacidade legal do
Sinédrio para ditar e executar sentenças máximas. Entendo, porém, que
ambas as lapidações ou apedrejamentos – levados a cabo, efectivamente
pelo Sinédrio – aconteceram em períodos nos quais a província romana da
Judeia se encontrava temporariamente sem procurador.
No ano 26, Vitélio enviou Pilatos a Roma para prestar contas ao
imperador Tibério e em 62, segundo narra Flávio Josefo (Antiquidades,
XX,197 e segs.), o procurador romano Festo acabava de morrer e o seu
substituto, Albino, não chegara ainda à Judeia.
Existe, ainda, outra opinião. Se o Sinédrio tivesse gozado
verdadeiramente dessa capacidade legal para aplicar e consumar a pena
de morte, porque não foi Jesus executado ao estilo judeu? A lei judaica,
mais uma vez, era muitíssimo cuidadosa neste aspecto.
Na Ordem Quarta (capítulo VII), a Misná diz textualmente: O
tribunal podia infligir quatro tipos de penas de morte: a lapidação, o
abrasamento a decapitação e o estrangulamento.
Geralmente, a lapidação ou apedrejamento era a pena mais dura. Era
aplicada – e continuo a citar a lei hebraica – aos seguintes: ao que tem
relação sexual com sua mãe ou com a mulher de seu pai ou com a nora ou
com um varão ou com um animal; a mulher que atrai a si um animal (para
copular com ele); o blasfemo; o idólatra; o que oferece os seus filhos a
Moloc (um ídolo); o nigromante; o adivinho; o profanador do sábado; o
maldizente do pai ou da mãe; o que copula com uma jovem prometida; o
que conduz uma pessoa à idolatria; o sedutor, que leva toda uma cidade à
idolatria; o feiticeiro e o filho obstinado e rebelde:.
Quanto ao abrasamento – que tive a oportunidade de contemplar na
minha segunda grande viagem – a lei estabelecia que eram réus de tal
execução o que tinha relação sexual com uma mulher e com sua filha e a
filha do sacerdote que tivesse fornicado (depois de ter contraído
matrimónio).
Morriam decapitados o homicida e os habitantes de uma cidade
apóstata.
Por último, a pena de estrangulamento recaía nos seguintes: Naquele
que fere seu pai e sua mãe; no que rapta uma pessoa em Israel no ancião
que se rebela contra a sentença do tribunal; no falso profeta; no que
tem relação sexual com a mulher de outro; no que levanta falso
testemunho contra a filha de um sacerdote ou se deita com ela.
Admitindo, por consequência, que o Sinédrio tivesse tido poder para
executar Jesus, e se as acusações mais importantes eram as de
blasfemo, falso profeta, mágico e profanador do sábado, lógico teria
sido que os hebreus o tivessem lapidado ou estrangulado.
Porque pediram então a morte por crucifixão? Em minha opinião só
pode obedecer a uma dupla causa: primeira, porque o tribunal sabia que
era o procurador romano quem devia decidir; segunda, porque naquele
simulacro de julgamento a maior parte dos juízes eram saduceus. Por
outras palavras, a ala dura das castas sacerdotais. Caifás era um deles e
soube ganhar para si um importante grupo, que foi o que assistiu à
sessão matinal do pequeno Sinédrio.
Como já referi, os saduceus – qualificados nos Actos dos Apóstolos
(5,
17) como o círculo do sumo sacerdote Caifás – estavam em aberta
oposição aos fariseus, desfrutando de uma teologia e código penal
próprios. Se o Tribunal fosse constituído por uma maioria de fariseus,
possivelmente as coisas seriam muito diferentes e Jesus teria
terminado a vida apedrejado ou estrangulado. Mas a morte por
crucifixão era muito mais vil e humilhante do que as ditadas pela lei
mosaica e é quase certo que a maioria saduceia pendera para esta,
refinando até ao limite o seu ódio contra o impostor. No entanto, a
dúvida continuava a agitar-se no meu cérebro. Por que razão os
inquisidores tinham gritado e voltariam a gritar perante Pôncio Pilatos
pela pena de crucifixão?
Só quando tive conhecimento das acusações que, efectivamente,
figuravam num dos pergaminhos que Caifás levava pude deslindar o
mistério.
Mas antes, um facto totalmente imprevisto ia obrigar-me a alterar
os planos de Cavalo de Tróia...
Faltavam poucos minutos para as oito da manhã quando a reduzida
comitiva deixou para trás o Bairro Alto de Jerusalém: Cavalo de Tróia
acreditara desde o começo que o encontro dos sinedristas com o
procurador romano se daria, precisamente, no portão e no túnel da
fachada ocidental da Torre Antónia (aquela por onde eu tivera acesso, na
companhia de José de Arimateia). Mas não foi assim. Caifás e os
saduceus atravessaram diante do muro de protecção situado na frente
do fosso e, sem hesitar, viraram a esquina noroeste, em direcção a uma
outra porta de entrada do quartel-general de Pilatos na Cidade Santa. Eu
tinha combinado com Pilatos e o seu primeiro centurião, Civilis, que a
minha entrada na fortaleza se faria pelo posto de guarda já citado.
Durante uns segundos, enquanto o meu cérebro procurava a solução,
deixei-me arrastar – quase por inércia – pelo pelotão. Ao virar aquela
esquina de Antónia, a súbita presença do ancião José de Arimateia e de
um jovem hebreu fez que esquecesse momentaneamente as minhas
dúvidas.
José, logicamente, estava a par dos passos de Jesus e do sumo
sacerdote. Embora não o tivesse visto no julgamento, deduzi que os seus
contactos o mantinham devidamente informado. O facto de estar ali era
uma prova.
Caifás deve ter visto José. Passou praticamente a seu lado.
No entanto, nem sequer o saudou. O ancião, ao descobrir o Mestre,
angustiou-se. Embora, possivelmente, estivesse informado também da
tortura a que fora submetido, ao verificá-lo por si mesmo empalideceu.
Sem levantar muitas suspeitas fui ficando para trás, até me reunir
com ele e o seu companheiro. E assim seguimos o pelotão.
O de Arimateia, que parecia ter perdido as esperanças que tentara
incutir-me no pátio da casa de Anás, ao notar a minha desconfiança pela
presença do jovem desconhecido instigou-me a falar abertamente.
Quem o acompanhava era um dos correios de David Zebedeu.
Estava ali, segundo me explicou, para transmitir as últimas notícias
ao corpo de emissários, que fora centralizado por David no acampamento
de Getsémani.
Desta forma, à medida que nos aproximávamos da porta norte da
Torre Antónia, José e o emissário puseram-me ao corrente da sorte que
tinham tido os restantes discípulos e aqueles de que não tinha notícia
alguma desde a prisão.
A maior parte dos gregos e discípulos que foram testemunhas da
prisão do Mestre, no caminho que percorre a encosta do monte das
Oliveiras, acabou por voltar ao horto de Simão, o Leproso,
despertando os oito apóstolos e outros adeptos, que permaneciam
alheios àquilo que, entretanto, se passava.
Minutos depois, era o muito jovem João Marcos que corria até ao
cimo do monte das Oliveiras, para avisar David Zebedeu, que continuava
de guarda e à margem dos últimos acontecimentos.
Após uns primeiros instantes de natural confusão, o grupo
concentrou-se em torno do moinho de pedra situado à entrada da
herdade, iniciando-se viva discussão. O chefe dos apóstolos, André,
estava de tal modo confundido que não foi capaz de dizer nada. E foi
Simão, o Zelota, quem, por fim, acabou por se empoleirar no muro do
lagar, falando aos seus companheiros para que pegassem em armas e se
lançassem na perseguição dos guardas, libertando Jesus.
Segundo o correio – testemunha ocular dos acontecimentosquase
todos os presentes naquela madrugada no horto (à volta de meia
centena) corresponderam com veemência ao incitamento do
revolucionário Simão, membro activo – como insinuei noutra altura do
grupo clandestino e terrorista dos Zelotas. E é muito possível que se
tivessem lançado, monte abaixo, no encalço
do Mestre, se não se tivesse dado a oportuníssima intervenção de
Bartolomeu. Logo que Simão, o Zelota, acabou de falar, Bartolomeu pediu
calma e lembrou aos seus amigos os constantes ensinamentos sobre a
não-violência, que Jesus lhes pregara. De modo suave, o apóstolo
reavivou a memória dos inflamados discípulos, citando as palavras
pronunciadas pelo Rabi naquela mesma noite, ordenando-lhes que
protegessem e conservassem as suas vidas, para que pudessem difundir
e propagar a mensagem do reino dos céus.
A tese de Bartolomeu foi apoiada vivamente por Tiago, o irmão de
João Zebedeu, que também explicou aos companheiros como Pedro,
alguns gregos e ele próprio tinham desembainhado as espadas no
momento da prisão de Jesus e como o Mestre lhes pedira que
guardassem as armas.
Os ânimos, assim parecia, foram-se apaziguando. Depois, também
intervieram Filipe e Mateus e, por último, Tomé, que insistiu com o seu
característico sentido prático – na necessidade de não se exporem a
perigos mortais, tal como Jesus tinha sugerido ao seu amigo Lázaro.
Os argumentos de Tomé – pedindo aos discípulos que se
dispersassem enquanto esperavam por novos acontecimentos – acabaram
por dominar a ânsia de luta dos adeptos de Cristo e os discípulos
acabaram por dispersar.
Pelas duas e meia ou três menos um quarto daquela madrugada, o
horto ficou deserto. Apenas David Zebedeu e um reduzido grupo de
mensageiros continuaram no acampamento, preparando-se para uma
missão que como já insinuei, seria vital. O intrépido discípulo soube
organizar-se de tal forma que, por intermédio de João Zebedeu, de José
de Arimateia e de outros agentes, pôde dispor de uma notável e precisa
informação sobre o decorrer dos acontecimentos. De hora a hora,
aproximadamente, um dos seus velozes mensageiros se encontrava com
os já citados, trazendo as notícias ao improvisado quartel-general do
Getsémani. Dali, por sua vez, David enviava outros correios para os
pontos onde os apóstolos tinham combinado esconder-se: cinco
Bartolomeu, Filipe, os dois gémeos e Tomé – nas aldeias de Betfagé e
Betânia. Os quatro restantes – Simão, o Zelota, Tiago, Tadeu e Andréem
Jerusalém.
Quando perguntei ao emissário por Pedro, o jovem tranquilizou-me.
Pouco depois do amanhecer, David encontrara-o nas proximidades
do acampamento, sem rumo certo e cheio de tristeza. É possível que,
naqueles instantes, nem David Zebedeu, o emissário ou discípulos
soubessem a verdadeira razão da imensa angústia do fogoso Simão. A
verdade é que David ordenou a um dos correios que o acompanhasse a
casa de Nicodemo, na Cidade Santa, ponto de encontro de seu irmão
André e dos outros três apóstolos.
O emissário que acompanhava José de Arimateia informou-me
também que, pouco depois da partida de Pedro, chegou ao horto um dos
irmãos carnais do Mestre, Judas. Adiantara-se ao resto da família e
soube ali da trágica prisão de Jesus. A pedido de David Zebedeu, voltou
apressado pelo atalho que atravessa o monte das Oliveiras juntando-se a
Maria, sua mãe, e aos restantes elementos da família. As ordens de
David eram que a família do Mestre se conservasse na casa de Marta e
de Maria, em Betânia. E assim se fez.
Isto significava que Maria, a mãe de Jesus de Nazaré, se
encontrava já nas proximidades de Jerusalém... e que, naturalmente,
devia estar avisada de quanto acontecia ao Filho.
A possibilidade de me encontrar com Maria fez-me estremecer...
O vento soprava com mais força. Quando alcançámos Caifás e as
suas hostes, um dos dois legionários que estavam de guarda do lado
norte da muralha exterior que rodeava a fortaleza acorreu ao interior
do quartel, para anunciar a presença daquele importante grupo de
sacerdotes. Segundo parecia, o sumo sacerdote tinha avisado a sentinela
de que o procurador já sabia daquela visita matinal.
José e eu entreolhámo-nos, deduzindo que Pôncio Pilatos podia ter
tido conhecimento do facto pelos judeus que na noite anterior lhe
tinham solicitado uma escolta.
Fosse como fosse, já há algum tempo que Pilatos aguardava a
chegada da representação do Sinédrio.
Enquanto esperávamos junto do parapeito de pedra, anunciei a José
de Arimateia que, aproveitando a ordem que me concedera o próprio
procurador, tentaria antecipar-me a Caifás e ao seu pelotão.
Ele concordou, acrescentando que era intenção sua continuar ao lado
do Mestre e que, provavelmente, nos voltaríamos a ver na residência do
procurador.
Assim, esquecendo a minha intenção de entrar na Torre Antónia
pelo túnel da ala ocidental, peguei no salvo-conduto, apresentando-o ao
legionário. Este, ao ler a autorização e ao ouvir o nome de Civilis, deu-me
passagem, apresentando-me a vários soldados que estavam de guarda do
outro lado do fosso, junto de uma grande porta aberta na muralha e
ladeada por duas pequenas torres de vigilância.
Ao atravessar a ponte levadiça, semelhante à que facilitava o acesso
pelo túnel, um dos guardas cortou-me a passagem. Tive de repetir a
operação. A sentinela voltou a examinar o documento ordem do
procurador e ordenou-me que esperasse. Depois, deixou o seu posto de
guarda e entrou na fortaleza. A porta monumental coroada por um arco
de volta inteira tinha dois grandes batentes de madeira presos a postes
verticais, que podiam girar em encaixes na pedra.
Pensei que, desta maneira, em momentos de perigo ou ataque, se
podiam fechar batentes, trancando-os por dentro.
Poucos minutos depois, o legionário chamava-me de uma escadaria
de pedra existente ao fundo. Caminhei sozinho até à sentinela,
atravessando um largo pátio, perfeitamente empedrado com cantos
rodados. Junto da escadaria, o soldado indicou-me um oficial, dizendo:
- Ele te levará até Civilis...
Assim foi. No final daqueles quinze degraus esperava-me um
centurião.
A escadaria dava acesso a uma espécie de terraço rectangular,
cuidadosamente ladrilhado e cercado de ambos os lados por uma série de
balaústres de mármore com um metro de altura.
Era a entrada principal do que poderíamos denominar a residência
privada do procurador: um edifício sumptuoso, relativamente afastado
do conjunto, ainda que dentro da fortaleza.
O oficial guiou-me até uma entrada de extraordinárias dimensões,
de onde partiam três escadarias, todas de mármore branco.
- Espera aqui – disse-me, enquanto se dirigia para as escadas que
ficavam em frente da outra escada de duplo batente do vestíbulo. Junto
da referida escadaria estavam de guarda mais dois soldados, com as
suas lanças e cotas de malha.
Obedeci, contemplando com admiração a série de envidraçados
multicores que se alinhavam ao longo das paredes, proporcionando à
quadra uma abundante luz natural. Nas paredes, revestidas a granito de
Siena, tinham sido abertos numerosos nichos, onde se encontravam
bustos do imperador, jarrões gregos decorados com cenas mitológicas e
candelabros de prata.
O pavimento do vestíbulo fora trabalhado com um extenso mosaico,
que nada tinha a invejar aos que eu vira nas ruínas de Pompeia.
Distraído com aquela luxuosa decoração, não notei a chegada de
Civilis.
O centurião e comandante da legião saudou-me, sorridente.
Naquela altura trazia um capacete extremamente polido e rematado
por um penacho de penas vermelhas.
Antes que pudesse explicar-lhe que desejava alterar os meus
planos,
Civilis avançou até à porta do vestíbulo e, apontando o portão da
muralha, anunciou-me que o dia se tinha complicado.
Com um gesto de aborrecimento, revela:
- Esta manhã, Pilatos tem de receber vários representantes do
Conselho de Justiça dos judeus...
- Já sei – respondi – é disso justamente que te queria falar...
O centurião fitou-me, surpreendido.
.. Ouvi dizer que os judeus querem julgar um mágico. Eu vi-o passar.
Sabes que me interesso pelos astros e seus desígnios e gostaria de te
pedir, e pedir ao procurador, uma pequena alteração de planos.
Civilis continuou a ouvir-me com atenção.
- Tenho ouvido dizer – continuei – que esse homem a quem chamam
Jesus de Nazaré tem feito grandes prodígios e, abusando da vossa
hospitalidade, gostaria de estar presente quando ele for levado à
presença de Pilatos. Antes que o centurião pudesse responder, concluí as
minhas palavras com uma afirmação que, tal como esperava, só em parte
atraiu a curiosidade do romano: .. Soube que ainda hoje, tu, o
procurador, eu e toda a cidade teremos oportunidade de assistir a um
estranho fenómeno celeste... O pragmático e incrédulo oficial sorriu
zombeteiramente, limitando-se a responder:
- Está bem, Jasão, vou dizer a Pilatos...
Civilis desapareceu pela escadaria central, ao encontro do
procurador, não sem antes me ter dito para ficar ali.
- Aquelas ratazanas – comentou para mim, referindo-se aos
sacerdotes, que aguardavam junto do parapeito exterior – não têm
escrúpulos em nos virem pedir que executemos um dos seus e, no
entanto, não querem entrar no pretório, com medo de se contaminarem e
não poderem celebrar a sua maldita Páscoa...
Civilis tinha razão. Para a celebração da festa anual da Páscoa, os
judeus – muito especialmente os membros das diferentes castas
sacerdotais – tinham proibido a entrada nas casas dos gentios (todas
elas suspeitas de albergar alimentos que pudessem conter fermento,
sendo este contacto com substâncias fermentadas rigorosamente
proibido) (1). Isso fez-me pensar que o procurador e os seus homens não
teriam outro remédio senão ouvir Caifás e os saduceus às portas do
pretório (quase por certo, concluí, muito próximo daquelas escadarias
que acabo de subir.) E preparei a minha vara de Moisés para o que ia ser
o primeiro encontro oficial de Pilatos com os membros do Sinédrio.
Efectivamente, pelas oito e quinze minutos daquela manhã de sextafeira,
7 de Abril, o gordo procurador apareceu no alto da escadaria
central do vestíbulo onde eu esperava. Vinha acompanhado por Civilis e
por mais três ou quatro centuriões.
Ao ver-me, apressou-se a descer as escadas, saudando-me com os
braços erguidos. Pilatos mudara de indumentária. Nesta altura, e dada a
sua qualidade de representante de César, trazia uma armadura de metal,
curta e musculada, belamente trabalhada e brilhante como um espelho ao
estilo das melhores couraças gregas da época. Por baixo da armadura
via-se uma túnica curta de seda, de meia manga, cor de osso,
cuidadosamente engomada e rematada por franjas douradas. O volumoso
ventre do procurador sobressaía por baixo da couraça, dando-lhe um
perfil bem pouco cavalheiresco. Em volta do pescoço, e caindo-lhe pelas
costas, trazia um manto, ou sagum, de tom vermelho-arroxeado, muito
claro. Porém, o que mais me chamou a atenção, foram as pernas:
apareciam envolvidas inteiramente em faixas de linho. Aquilo fez-me
suspeitar de que o procurador padecia de varizes.
1 Na sua Ordem Segunda, a Misná estabelece que na noite de 14 do
mês de Nisan (véspera da festa da Páscoa) tinha de se retirar toda a
substância com levedura (geralmente cereais) à luz de uma vela”. (N do
M.)
O centurião-chefe já o informara dos meus desejos e do tal
presságio celeste de que falara a Civilis e, sem poder conter a sua
curiosidade, interrogou-me, ao mesmo tempo que me convidava a
caminhar junto dele até à porta de entrada da residência oficial.
Expliquei-lhe como pude que os astros tinham anunciado para aquela
mesma manhã um funesto augúrio e que, para o bem de todos, tomasse
todas as precauções... Não houve tempo para mais. Pôncio Pilatos e os
seus ficaram pelo terraço enquanto um dos centuriões descia as escadas,
ao encontro, sem dúvida, de Caifás e daquele Galileu que começara a
estragar o tranquilo dia do procurador. O vento despenteou Pilatos,
pondo-o em dificuldade com a cabeleira postiça, o que deve ter
aumentado ainda mais o seu mau humor. O facto de ter de ir até às
portas do pretório para receber o sumo sacerdote e os membros do
Sinédrio não o fazia muito feliz... Pouco depois, vi aparecer pelo arco da
muralha o grupo que Caifás guiava. Logo atrás, Jesus o legionário romano
que o escoltara durante toda a noite, João Zebedeu e os levitas e servos
do Sinédrio. Ao chegarem junto da escadaria, os saduceus pararam,
avisando o procurador de que a sua religião os impedia de darem um só
passo mais. Pilatos olhou para Civilis e, com um gesto de aborrecimento,
avançou, até ficar mesmo no cimo da escadaria. Uma vez ali, e em tom
desabrido, perguntou-lhes: - Que acusações tendes contra este Homem?
Os juízes trocaram um olhar e, por ordem de Caifás, um dos saduceus
respondeu: - Se este homem não fosse um criminoso não o teríamos
trazido... Pilatos manteve-se em silêncio.
Segurou o manto e começou a descer as escadas. Imediatamente,
Civilis e os outros centuriões se apressaram a acompanhá-lo, rodeando-o.
O romano, sempre em silêncio, aproximou-se de Jesus, observandoo
com curiosidade. O Mestre continuava de cabeça baixa e de mãos
atadas atrás das costas. Os cabelos, agitados pelo vento, escondiam
parcialmente os ferimentos do rosto.
Pilatos deu uma volta completa em redor do Nazareno. Depois, sem
fazer comentário algum, mas com uma evidente careta de repugnância
nos lábios, voltou a subir os degraus. Sem qualquer dúvida – e Civilis
confirmaria a minha suspeita pouco depois – o procurador fora
previamente informado da sessão matinal do Sinédrio, bem como das
divergências surgidas entre os juízes, no momento de estabelecer as
acusações. (Segundo Civilis, uma das servas e intérprete da mulher de
Pilatos, Cláudia Procula, conhecia os ensinamentos de Jesus de Nazaré,
tendo informado o procurador dos prodígios e das pregações do Rabi.)
Quando ia a meio da escadaria, Pilatos parou e, rodando nos calcanhares
voltou-se novamente para os hebreus, dizendo-lhes: - Dado que não
estais de acordo com as acusações, porque não levais este Homem, para
que seja julgado em conformidade com as vossas próprias leis? As
palavras do procurador caíram como um balde de água fria.
Os homens do Sinédrio que não esperavam tal resistência de Pilatos,
responderam, visivelmente nervosos.
- Não temos o direito de condenar um homem à morte. E este
perturbador da nossa nação merece a morte pelo que disse e fez. Esta é
a razão por que viemos ter contigo: para que ratifiques esta decisão.
Pilatos sorriu maliciosamente. O reconhecimento público da
impotência judaica para pronunciar e executar uma sentença de morte,
nem mesmo contra um dos seus, encheu-o de satisfação. O seu ódio pelos
Judeus era muito mais fundo do que podia supor.
- Não condenarei esse Homem sem um julgamento – interveio o
romano, apontando Jesus com a mão direita. - E nunca consentirei que O
interroguem sem que receba, por escrito – acentuou com ênfase -, as
acusações... No entanto, o procurador tinha subestimado os sinedristas.
Quando Pilatos já pensava que o assunto estava encerrado, suspendendo
assim a aborrecida questão, Caifás entregou um dos rolos que trazia a
um escriba judicial que os acompanhava, pedindo ao procurador para
ouvir as acusações, conforme era vontade sua.
A manobra surpreendeu o romano, que não teve outro remédio senão
deter os passos à porta da sua residência. Cada vez mais irritado pela
tenaz insistência de Caifás e dos saduceus, dispôs-se a ouvir o conteúdo
do pergaminho.
O escriba desenrolou-o e, em tom solene, deu início à leitura:
- O tribunal do Sinédrio considera que este Homem é um malfeitor
e um perturbador da nossa nação, tendo por base as seguintes
acusações: 1.o Por perverter o nosso povo e incitá-lo à rebelião; 2. Por
impedir o pagamento do tributo a César 3.o Por a Si mesmo se
considerar rei dos judeus e propagar a criação de um novo reino.
Ao conhecer as acusações oficiais compreendi que o texto – que
nada tinha a ver com o que fora discutido em juízo – tinha sido
preparado por Anás e pelos restantes membros do Conselho na sua
segunda entrada na sala do Tribunal, enquanto o Mestre e todos os
outros esperavam no pátio central do Sinédrio.
Agora conseguia entender a razão das azedas discussões entre
Caifás, Anás e os juízes, e o súbito aparecimento de um segundo
pergaminho nas mãos do sumo sacerdote, momentos antes de sair para a
Torre Antónia.
Muito astutamente, os saduceus tinham preparado aquelas três
acusações, de modo que o procurador romano se visse inevitavelmente
envolvido no processo. Pilatos pediu a Civilis que se aproximasse e
segredou-lhe qualquer coisa ao ouvido. O centurião fez com a cabeça um
aceno afirmativo.
(Aquela consulta confidencial – conforme soube pelo comandantechefe
da legião – incidira nas informações que estavam em poder do
procurador e que, tal como todos sabíamos, mdicavam que a conspiração
contra o Nazareno tinha raízes pura e inteiramente religiosas.)
Pilatos compreendeu de imediato que a mudança de estratégia dos
sacerdotes obedecia, unicamente, ao seu fanatismo e ódio cego por
aquele visionário, que fora capaz de desafiar a autoridade do sumo
pontífice, ridicularizando as castas sacerdotais. Sem que o
pretendessem, Caifás e os seus esbirros tinham conseguido com aquela
falsidade que Pôncio Pilatos logo pendesse, desde o começo, não a favor
de Jesus - que praticamente ignorava – mas contra aquela ralé de má
mãe, segundo as palavras do próprio romano. (Era extremamente
importante ter em conta estes factos, perante a conduta e as sucessivas
tentativas do representante do imperador para libertar o Mestre. Nada
teria dado mais satisfação ao seu desprezo pela suprema autoridade
judaica que fazê-los morder o pó, pondo em liberdade o prisioneiro.) Mas
os acontecimentos - contrariando o procurador – iam enveredar por
caminhos inesperados...
, Pilatos ficou em silêncio. Lançou um olhar de desprezo aos juízes e,
descendo as escadas pela segunda vez, abriu caminho até Caifás. Uma
vez ali, ante a expectativa geral, perguntou ao Mestre o que tinha a
alegar em Sua defesa. Jesus não levantou o rosto. Civilis, que seguira as
passadas do chefe, levantou o bastão de vide, pronto para ferir o Galileu
pelo que considerou uma falta de respeito. Mas o procurador deteve-o.
Ainda que a sua confusão e enfado fossem cada vez maiores, o romano
compreendeu que aquele não era o local mais adequado para interrogar o
prisioneiro. Bastava a presença dos judeus para imaginar um obstáculo,
tanto para ele como para o réu. Voltando-se para o primeiro-centurião
deu ordem para que levassem o Rabi à sua residência.
Civilis fez um sinal ao soldado que escoltava o Mestre e ambos, na
companhia de João Zebedeu e de alguns dos serventes do Sinédrio,
seguiram Pilatos e os oficiais.
Caifás e os juízes permaneceram no pátio. A contrariedade
reflectida nos seus rostos punha bem a claro o seu desejo frustrado de
acompanhar Jesus de Nazaré e assistir ao interrogatório privado.
Porém, o seu fanatismo religioso acabava de se voltar contra eles (aliás,
duvido muito que Pilatos tivesse autorizado a presença deles no
interrogatório). Ao passar por mim, o procurador fez-me um gesto,
convidando-me a acompanhá-lo.
- Diz-me, Jasão – perguntou-me Pôncio, enquanto atravessávamos o
vestíbulo em direcção à escadaria fronteira
- conheces este mágico?... Achas que possa ser um zelota? Foi um
momento especialmente delicado para mim. Teriam bastado umas quantas
explicações para que a balança do instável procurador pendesse a favor
do Mestre. Porém, não era a minha missão. E respondi à sua pergunta
com outra pergunta:
- Ouvi dizer que os teus homens foram destacados ontem à noite
até uma herdade em Getsémani, com o objectivo de verificarem se havia
por lá um acampamento zelota.
Encontraram esses guerrilheiros? O procurador, que fazia grande
esforço para subir os vinte e oito degraus da escadaria, parou, ofegante:
- E como sabes tu isso? Enquanto Civilis guiava o Nazareno e o pequeno
grupo por um luminoso corredor de mármore númida, tendo à direita
estátuas assentes em pedestais de Carrara, tranquilizei Pilatos,
narrando-lhe o meu encontro casual com os dois legionários que
perseguiam um dos simpatizantes do mágico.
O procurador confessou-me então que as suas informações sobre o
tal Jesus de Nazaré datavam já de anos atrás, especialmente desde que
um dos seus centuriões lhe confessou como o mágico tinha curado um
dos seus servos mais queridos, em Cafarnaum. Pouco a pouco Pôncio
Pilatos fora reunindo dados e confidências suficientes para saber se o
grupo que o Rabi dirigia era ou não perigoso, apenas do ponto de vista
que o podia interessar: o da rebelião contra Roma.
Os agentes do procurador junto do Sinédrio tinham-no avisado de
numerosas reuniões celebradas com a finalidade de prender e perder o
Nazareno. Pilatos, estava, portanto, ao corrente das intenções dos que
esperavam no pátio e do carácter místico e visionário – segundo
expressão sua – do movimento que Jesus orientava.
- Por que razão iria eu fazer a vontade àqueles invejosos – concluiu
Pilatos -, prendendo uns pobres-diabos cujo único mal é acreditar em
fantasias e sortilégios?...
As revelações do governador da Judeia abriram-me definitivamente
os olhos. Era claro que, pela minha parte, também subestimara o poder
de Pilatos. Era natural que, numa província como aquela, tão rebelde e
difícil, o poder de Roma tivesse os meios e tentáculos suficientes para
saber quem era quem. E, evidentemente, Pilatos sabia quem era o
Mestre.
- Então – perguntei com curiosidade -, porque concordaste em
enviar um pelotão de soldados a Getsémani? O procurador voltou a sorrir
maliciosamente.
- Tu ainda não conheces esta gente. São teimosos como mulas.
Além disso, as minhas relações... digamos comerciais, com Anás,
sempre foram excelentes. Não vou negar que a procuradoria recebe
importantes quantias, a troco de certos favores...
Não me atrevi a perguntar que tipo de favores aquele corrupto
representante de César prestava, mas o próprio Pilatos facilitou-me a
pista:
- Anás e esse magarefe que tem por genro amontoaram grandes
riquezas à custa do povo e do tráfico de moedas e de animais para os
sacrifícios... Julgo que estejas informado do desastre sofrido pelos
cambistas e intermediários do terreiro do Templo, precisamente por
causa desse Jesus. Pois bem, os meus interesses nesse negócio
obrigavam-me, em parte, a salvar as aparências e ajudar o antigo sumo
sacerdote na sua pretensão de apanhar o mágico...
Aquele descarado nepotismo da família Anás – colocando os
membros do seu clã nos postos-chave do Templo – era um segredo de
polichinelo. A actuação do procurador pareceu-me, portanto,
inteiramente verosímil.
Chegado ao fim do corredor Civilis abriu uma porta dando passagem
a Pilatos. Atrás, e por ordem do centurião, entraram Jesus, João
Zebedeu, mais dois oficiais e eu. O legionário e os criados ficaram cá
fora. Ao entrar naquela sala reconheci imediatamente o gabinete oval
onde tivera a minha primeira entrevista com o procurador. A ala norte
da fortaleza encontrava-se, pois, em ligação directa com a sala de
audiências de Pilatos. Compreendia agora a razão por que não tinha visto
guardas naquela porta: possivelmente comunicava com os aposentos
privados do romano por onde vira aparecer na manhã de quarta-feira, o
servo que nos anunciou o almoço.
Pôncio Pilatos dirigiu-se à sua mesa e convidou o Nazareno a que se
sentasse na cadeira que José de Arimateia tinha ocupado. João,
timidamente, fez o mesmo com aquela que eu utilizara. Os oficiais
postaram-se um de cada lado do Rabi, enquanto Civilis ocupava a sua
habitual posição, na extremidade da mesa, à esquerda do procurador. Eu,
discretamente, procurei ficar junto do chefe dos centuriões.
A luz que vinha da grande janela nas costas do romano permitia-me
explorar com facilidade o rosto do Mestre. Jesus abandonara em parte
aquela atitude de permanente ausência.
Levantava agora a cabeça. O nariz e o arco zigomático direito (área
malar ou do pómulo) continuavam muito inchados, tendo afectado, como
eu temia, um olho. Quanto à sobrancelha esquerda, o golpe parecia bem
fechado. Os coágulos de sangue das fossas nasais e lábios tinham
secado, enegrecendo a parte do bigode e da barba.
Pilatos retomou o fio da conversa, indicando ao Rabi que, para
começar e para Sua tranquilidade, não acreditava na primeira das
acusações.
- Sei dos Teus passos – disse-lhe com ar conciliador – e custa-me a
acreditar que sejas um agitador político.
Jesus observou-o com ar cansado.
- Quanto à segunda acusação, disseste alguma vez que não se deve
pagar o tributo a César?
O Mestre com a cabeça indicou João e respondeu:
- Pergunta a este ou a quem quer que me tenha ouvido.
O procurador interrogou o jovem Zebedeu com o olhar e João
atabalhoadamente, explicou que tanto o seu Mestre como os restantes
do grupo pagavam sempre os impostos do Templo e os de César. Quando
o discípulo se dispunha a deter-se noutros ensinamentos, Pilatos fez um
aceno de mão, ordenando-lhe que se calasse. - Chega – disse-lhe. - E
cuida de não dizeres a ninguém o que me disseste.
E assim foi. Nem mesmo no texto evangélico escrito por João
muitos anos mais tarde se lê aquela parte da entrevista do procurador
romano com Jesus. [Mais ainda, o escritor sagrado nem sequer faz
menção da sua presença no referido diálogo. Se esta parte do
interrogatório – tal como se depreende do Evangelho de São João – se
verificou dentro do pretório e, portanto, privadamente, como é possível
que o Zebedeu a descreva, referindo-se aos já conhecidos temas do
reino e da verdade? (João 18, 28-38). Só podia ter uma explicação: que
ele, precisamente, fora testemunha.] Pilatos dirigiu-se novamente ao
Galileu:
- No que se refere à terceira das acusações, diz-me, és Tu o rei dos
Judeus?
O tom do procurador era sincero. Foi essa, pelo menos, a minha
impressão. E o Mestre esboçou um débil sorriso. Ao fazê-lo, uma das
gretas do lábio inferior voltou a abrir-se e um fio de sangue correu pelos
pêlos da barba.
- Pilatos – respondeu o Rabi -, fazes essa pergunta por ti próprio ou
recolheste-a dos acusadores? O procurador abriu os olhos indignado.
- Será que sou judeu? O Teu próprio povo Te entregou e os
principais sacerdotes pediram-me para Ti a pena de morte...
Pilatos tentou recuperar a serenidade e, mostrando os dentes de
ouro, acrescentou:
- Duvido da validade destas acusações e procuro apenas descobrir
por mim mesmo aquilo que fizeste. Por isso te perguntarei pela segunda
vez: disseste que eras o rei dos Judeus e que pretendes formar um novo
reino? O Galileu não se demorou na resposta:
- Não vês que o Meu reino não é deste mundo? Se assim fosse, os
Meus discípulos teriam lutado para que não me entregassem aos judeus.
A Minha presença aqui, perante ti e amarrado demonstra a todos os
homens que o Meu reino é um domínio espiritual: o da confraternização
dos homens que, por amor e fé, passaram a ser filhos de Deus. Esta
oferta é a mesma, tanto para gentios como para judeus.
Pilatos levantou-se e, batendo na mesa com a palma da mão,
exclamou, sem poder reprimir a sua surpresa: - Por conseguinte, és rei!
- Sou – respondeu o prisioneiro, olhando de frente para o
procurador. - Sou um rei deste género e o Meu reino é a família dos que
crêem em Meu Pai que está nos céus. Nasci para revelar Meu Pai a todos
os homens e testemunhar a verdade de Deus. E neste mesmo instante
declaro que o amante da verdade Me ouve.
O procurador deu uns passos em volta da mesa e colocando-se entre
João e o prisioneiro comentou para consigo:
- A verdade?... Que é a verdade?... Quem a conhece?...
Antes que Jesus pudesse responder, fez um sinal a Civilis, dando
por terminado o interrogatório.
Os oficiais forçaram o Rabi a pôr-se de pé e Pilatos abriu a porta
ordenando aos seus homens que levassem o Nazareno à presença de
Caifás. Quando novamente caminhávamos pelo corredor, Pilatos pôs-se a
meu lado fazendo um único mas eloquente comentário:
- Este homem é um estóico. Conheço os Seus ensinamentos e sei o
que pregam: o homem sábio é sempre um rei.
Depois daquele pensamento concluí que o romano estava disposto a
libertar Jesus. Ao apresentar-se pela segunda vez diante dos judeus, a
sua atitude confirmou o meu pressentimento.
Pouco antes das nove da manhã, Pilatos veio ao terraço e, assumindo
um tom autoritário, sentenciou:
- Interroguei Este homem e não vejo nEle culpa alguma. Não o
considero culpado das acusações. Por esta razão, penso que deve ser
posto em liberdade.
Caifás e os saduceus ficaram desconcertados. Mas logo reagiram,
gritando e manifestando grande indignação. Civilis interrogou Pilatos com
o olhar, ao mesmo tempo que levava a mão à espada. Mas o procurador
voltou a pedir-lhe calma. Um dos oficiais regressou precipitadamente ao
pretório, possivelmente em busca de reforços.
Muito irado, um dos judeus separou-se do grupo, e subindo três ou
quatro degraus, invectivou Pilatos com as seguintes palavras: - Este
homem incita o povo!... Começou pela Galileia e continuou
pela Judeia É causador de desordens e um malfeitor. Se deixares
esse homem livre vais lamentá-lo durante muito tempo...
Sem que o pretendesse, aquele saduceu acabava de proporcionar a
Pilatos um motivo para se furtar ao desagradável assunto, pelo menos
temporariamente. O procurador aproximou-se então do seu centuriãochefe,
comunicando-lhe:
- Este homem é um galileu. Conduzam-no imediatamente à presença
de Herodes... Civilis preparou-se para cumprir a vontade de Pôncio e,
quando se dirigia para o legionário encarregado da escolta do Mestre,
Pilatos voltou ao alto da plataforma, acrescentando:
- Ah!... e quando o tiver interrogado tragam-me as suas conclusões.
Nesta altura foi o próprio Civilis quem se responsabilizou pela
escolta do Mestre. Os ânimos dos judeus estavam tão exaltados que,
com muito bom critério, o centurião se rodeou de uma pequena escolta
de dez legionários, pondo-se a caminho da residência de Herodes
Antipas, tetrarca da Galileia e, como Pilatos, visitante, por aquela altura,
de Jerusalém. Este Herodes era filho do tristemente célebre Herodes,
o Grande, que ordenara a matança das crianças em Belém e ao seu redor.
Uma chacina muito própria do carácter e trajectória daquele rei,
odiado pelo povo e ao qual chamavam desdenhosamente criado indumeu.
Através de numerosas pesquisas, Cavalo de Tróia conseguiu averiguar
que a sanguinária matança dos inocentes envolveu cerca de trinta
crianças. Civilis, na frente, atravessou a ponte levadiça. Atrás, os
soldados, defendendo o Mestre e formados em duas filas. E a pequena
distância, o resto do grupo: Caifás, o punhado de juízes, Judas
Iscariotes, João Zebedeu, o ancião José de Arimateia e eu. Enquanto
saíamos da fortaleza voltei-me para o portão aberto na muralha norte e
a confusão reinou de novo no meu espírito. Segundo os textos
evangélicos, uma grande multidão tinha acorrido àquelas mesmas portas
do Pretório. Mas, como podia ser isso? De momento, as entrevistas com
Pôncio Pilatos tinham-se dado mais ou menos de modo privado. Só aquela
reduzida representação do Sinédrio pudera entrar na Torre Antónia...
Além disso – continuei eu a reflectir, enquanto prosseguíamos em
direcção ao Bairro Alto da cidade -, sem o expresso consentimento do
procurador ou dos seus oficiais, nenhum hebreu podia passar do muro
* Antes de iniciar a missão. Eu tinha recebido uma completa
informação quanto a quem era aquele tetrarca ou governador da Galileia:
Herodes, por cognome Antipas, ou igual a seu pai. E a verdade é que
aquela designação lhe assentava perfeitamente.
Herodes Antipas herdara o governo das terras do norte (Galileia)
por morte do seu funesto pai, Herodes, o Grande, no ano 4 antes de
Cristo. Tinha dezassete anos. De acordo com o primeiro testamento de
seu pai, Antipas deveria receber o reino da Judeia. Mas Herodes, o
Grande, mudou de ideias e substituiu Antipas pelo outro seu filho,
Arquelau, que tomou a seu cargo o reino da Judeia. Herodes Antipas
recebeu a Galileia. Um terceiro filho, Filipo, foi designado também
tetrarca da Pereia. Foi precisamente a este último que Herodes Antipas
tiraria a mulher, a não menos célebre Herodíade, responsável, segundo
parece, pelo assassínio de João Baptista, primo-direito de Jesus de
Nazaré. (N. Do M.)
ou parapeito exterior, e muito menos, do fosso que rodeava aquela
zona do quartel-general romano.
Logo, que ia acontecer, para que a multidão judaica pudesse chegar
até à escadaria da residência privada de Pilatos? João, o discípulo amado
de Jesus, informou imediatamente José e o mensageiro de quanto
acontecera junto do pretório e no interrogatório privado do procurador,
evitando, assim, a sua conversa com o romano. O jovem Zebedeu
recuperara as esperanças. Vi-o optimista perante as declarações de
Pilatos.
Na verdade, tinha razão. Se o processo se tivesse mantido dentro
daquela linha, praticamente circunscrita ao pequeno círculo do homens
do Sinédrio e do governador estrangeiro, talvez a sorte do Mestre
tivesse sido outra. Porém, as maquinações de Caifás e dos seus homens
não paravam...
Uma vez recolhidas as últimas notícias sobre Jesus, o correio
despediu-se dos amigos do Rabi, partindo a correr para o acampamento
de Getsémani.
Foi ao passar a Porta dos Peixes que o de Arimateia, ao ver como um
grande grupo de hebreus, presidido por vários chefes do Templo e
outros fariseus, se unia ao sumo sacerdote e aos saduceus, exprimiu o
seu desalento. Enquanto aguardava em frente do parapeito de pedra de
Antónia, José tinha recebido uma informação que vinha complicar tudo:
de mútuo acordo com os juízes, Anás começara a distribuir
secretamente moedas de ouro pertencentes ao tesouro do Templo.
Depois de tomar nota dos nomes de cada um dos subornados, os três
gisbarim ou tesoureiros oficiais tinham dado uma palavra de ordem
comum: clamar perante Pôncio Pilatos a morte do impostor da Galileia.
Ao ver como o grupo inicial de saduceus aumentava sensivelmente,
perguntei ao de Arimateia como pensava Caifás introduzir aquela
multidão no recinto da fortaleza. - Duvido muito – disse-lhe – que Pilatos
e as suas tropas o consintam.
José desfez as minhas dúvidas num segundo. Justamente naquela
manhã de sexta-feira, véspera da Páscoa, os judeus desfrutavam de uma
antiga prerrogativa. Centenas de hebreus tinham por costume subir até
às imediações do Pretório e assistir à libertação de um preso. Aquela
graça, poder que cabia ao procurador, constituía um dos gestos de
amizade e simpatia de Roma para com os seus súbditos. Encerrava, por
consequência, um manifesto carácter festivo e, durante os dias
precedentes, tanto os habitantes de Jerusalém como os milhares de
peregrinos discutiam, apostando por este ou por aquele candidato.
Naquela altura, o nome que mais se ouvia entre os hebreus era o de
Barrabás, que segundo José de Arimateia, era membro activo do grupo
revolucionário zelota, um filho de pai desconhecido, vil e sanguinário,
capturado pelas forças romanas numa revolta.
* Ao consultar os arquivos do Pai Natal, o computador central
confirmou que o nome de Barrabás era de origem semita (mais
exactamente aramaica). Podia ter vários significados: Bar, que significa
filho em aramaico e, Rabba, ou mestre e rabi. Também era válida a
explicação de Bar Abba, ou filho de seu pai, que era uma maneira de
chamar todo aquele cujo pai fosse desconhecido. (N. Do M.)
O esclarecimento do ancião amigo de Jesus permitiu-me
compreender muitas coisas. Em primeiro lugar, e como era evidente, a
cidade despertara naquela manhã de sexta-feira, 7 de Abril, sem o
menor conhecimento da prisão do seu ídolo, Jesus de Nazaré. Só alguns
sabiam. Em segundo lugar, a próxima e iminente manifestação de judeus
em frente da residência de Pilatos nada tinha a ver com o Mestre da
Galileia. Mesmo que Jesus não tivesse sido preso, ter-se-ia celebrado da
mesma forma. Foram, como disse, as pérfidas manobras do Sinédrio e a
quase total ausência de amigos e partidários do Nazareno na referida
manifestação popular, para pedir a libertação de um réu, que levaram ao
que todos já conhecemos.
O palácio dos antigos asmoneus – residência provisória de Herodes
Antipas durante a sua breve passagem por Jerusalém – encontrava-se
muito perto da muralha que ia do soberbo conjunto palaciano de
Herodes, o Grande (no extremo ocidental da cidade) ao Templo. Tratavase
de uma velha construção, à base de enormes silhares de vinte côvados
de comprimento por dez de largura, que, nas palavras de Josefo, não
podiam ser cavadas nem quebrados com ferro, nem movidos com todas as
máquinas do mundo.
Às portas do palácio saiu ao nosso encontro uma parte da guarda
pessoal de Antipas, constituída, na sua maioria, por mercenários trácios,
germanos e gauleses. Muitos tinham servido antes o pai do actual
Herodes. Vestiam longas túnicas verdes – de meia manga – com o tronco
e o ventre cobertos por uma espécie de camisa ou couraça entrançada,
feita de escamas metálicas. Quase todos traziam às costas aljavas de
couro, cheias de flechas. (Em face do considerável número de soldados
que vi dentro do palácio, Herodes devia temer pela sua segurança
pessoal. )
Civilis trocou algumas palavras com os porteiros e a guarda abriu
passagem à escolta romana e a um reduzido grupo de sacerdotes. Os
outros, incluindo José de Arimateia, tiveram de esperar em frente do
edifício.
Uma vez mais, a sorte esteve do meu lado. Antes de entrar no
palácio, o centurião agarrou-me pelo braço, anunciando-me que o
tetrarca era um entusiasta da Grécia e que, se me parecesse bem, ele
teria muito prazer em me apresentar a Herodes, falando-lhe das minhas
virtudes como astrólogo ao serviço do imperador. Aceitei, encantado,
ainda que dos planos do Cavalo de Tróia não fizesse parte uma entrevista
com o governador da Galileia.
Como era natural, o centurião não podia imaginar que o
interrogatório de Antipas a Jesus de Nazaré fosse tão breve quanto
estéril. Apesar da antiguidade daquele palácio, Herodes encarregara-se
de o embelezar até limites de que não se suspeitava. Do pátio central,
ocupado por um tanque rectangular e onde, no lajedo, bicavam inúmeras
pombas, alguns dos criados, guiados sempre por um somatophylax, ou
* Alguns daqueles gauleses tinham participado na guarda de
Cleópatra, rainha do Egipto, atingindo o seu número mais de
quatrocentos. (N. Do M.)
guarda-costas da corte herodina (que respondia ao nome de
Corinto), conduziram-nos ao andar superior. No primeiro piso do palácio,
aberto na sua totalidade para o jardim interior e coberto por um
artístico claustro de mármore, encontrava-se a sala de audiência de
Antipas. O que primeiro me atraiu a atenção na espaçosa sala,
perfeitamente iluminada por três grandes janelas orientadas a norte, foi
um cadeirão de madeira preta, magistralmente talhada e colocado à
direita da câmara. Tratava-se, sem dúvida, de um trono. Fora colocado
em cima de um estrado, também de madeira escura. A pouca distância, e
ocupando o centro da sala, abria-se uma piscina circular de quatro a
cinco metros de diâmetro e profundidade difícil de precisar, por causa
do líquido branco que a enchia. Aos pés do trono, uns vinte indivíduos
estavam recostados em grandes almofadões brancos de penas. Ao
verem-nos, fez-se um grande silêncio.
Mas, por mais que tentasse identificar Antipas, não consegui. O
Mestre foi colocado pelo centurião em frente do cadeirão de madeira,
entre a piscina e aquela plêiade de brilhantes primos e amigos do
tetrarca, que olhavam estupefactos para o Galileu e para os legionários
romanos.
Caifás rompeu por fim o pesado silêncio. Avançou para o grupo de
cortesãos e entregou o pergaminho das acusações a um indivíduo
extremamente fraco, igualmente recostado e meio escondido entre os
coxins. Ao pôr-se de pé, apareceu na minha frente um Herodes difícil de
imaginar. Apesar dos seus cinquenta e cinco anos parecia um velho. Por
baixo da túnica, praticamente transparente, adivinhava-se o corpo
esquelético, semeado de crostas acinzentadas e sujas, provocadas
decerto por uma doença a que os romanos chamavam mentagra,
Aquelas úlceras – que hoje nos fariam pensar na sífilis – tinham-lhe
atacado especialmente as mãos, o pescoço e a cara.
Para cúmulo, Antipas exibia cabelo comprido e aparado na testa,
pintado de louro brilhante.
, Depois de examinar o pergaminho, Herodes lançou um olhar a
Jesus, ao mesmo tempo que o sumo sacerdote se multiplicava em todo o
género de explicações sobre o processo que se levantara contra o
impostor e sobre o desejo do procurador romano de que o tetrarca
procedesse ao interrogatório do Galileu.
Antipas arremessou o rolo aos pés de Caifás. Este, confundido pela
inesperada reacção do governador da Galileia, emudeceu, enquanto um
dos seus levitas se apressava a apanhar o pergaminho.
Sem dizer palavra, o tetrarca começou a dar voltas em redor do
Nazareno. Finalmente, parou em frente de Jesus soltando sonoras
gargalhadas. Os cortesãos não tardaram em imitá-lo e os risos acabaram
por ecoar nas paredes de mármore da sala.
Herodes levantou então os braços e as gargalhadas cessaram
imediatamente. Depois, baixando as mãos devagar, comentou, divertido.
- E assim, no fim de contas, o milagreiro presunçoso acabou por
visitar a velha raposa...
* Plínio, o Velho, na sua História Natural, descreve esta doença
garantindo que as úlceras começavam sempre pelo queixo.
Segundo o nosso computador, a doença teve origem na Ásia,
transmitida por um cidadão de Perusa. (N. Do I.)
O tetrarca, evidentemente, conhecia o Mestre e estava informado
das palavras de Jesus, que lhe chamava raposa.
Antipas esperou pela resposta do prisioneiro. Mas o Rabi, com a
cabeça descaída para o peito nem se dignou olhá-lo.
Durante pouco mais de um quarto de hora, o filho de Herodes, o
Grande, perseguiu o prisioneiro com perguntas, mas nem uma só resposta
obteve. Uma das principais preocupações de Antipas – a ajuizar pelas
suas perguntas – era a possibilidade de aquele galileu ser a reencarnação
de João Baptista, que ele executara três anos antes (1). Saltava à vista
que os remorsos se tinham apossado da alma daquele governante
despótico e cruel.
Desiludido com o silêncio do Galileu, Herodes mudou de táctica.
Fazendo um sinal a um dos seus leais, exclamou: - Manaen!... Chama
Herodíade!
E o velho syntroplzos, o preceptor de Herodes Antipas, apressou-se
a sair do salão de audiências, para ir procurar a amante do senhor. Longe
de se irritar com o mutismo do Galileu, Herodes parecia ter íntima
satisfação com isso.
Aquela atitude era muito estranha e, dissimuladamente, o tetrarca
foi caminhando pela beira da piscina, procurando não escorregar no
polido pavimento de mármore, com incrustações de coral rosa. A sua
paixão pelo helenismo, tal como já me dissera o centurião, notava-se não
só no seu vestuário e nos homens que o rodeavam mas também na
decoração do palácio. O pavimento, por exemplo, primorosamente
trabalhado com pedacinhos de coral brilhante e uniforme a que se
chamava pele de anjo – provavelmente retirado do Mediterrâneo – era
uma das provas mais eloquentes do requinte de que fazia gala aquela
personagem. Os artesãos fenícios ao serviço de Antipas tinham
conseguido formar um formosíssimo e gigantesco quadro da lendária
Medusa e de seu matador, Teseu 2, embutindo nas placas de
*1 Quando Herodes Antipas se apaixonou pela mulher de seu irmão
Filipe. Tetrarca na região de Pereia. A oriente do Jordão, aproveitou
uma viagem a Roma para se unir a Herodíade.
A sua mulher legítima, filha do xeque árabe Areta, quarto rei dos
Nabateus, teve de sair de Israel regressando com a família. Desde
então, João Baptista aproveitou quantas oportunidades teve para
censurar Herodes e a amante, Herodíade, em permanente adultério. As
críticas do primo-direito de Jesus foram tão duras que Antipas,
possivelmente a conselho de Herodíade, mandou encarcerar Baptista
numa fortaleza afastada na margem oriental do mar Morto, e que os
Beduínos ainda conhecem por Mashnaka ou Palácio Pendente. Ali seria
decapitado pouco depois. Desde então Antipas viveu sempre com o medo
de que o fantasma de João Baptista voltasse para fazer justiça. De
acordo com as nossas investigações, era improvável que Antipas tivesse
consentido degolar Baptista por causa da famosa dança de Salomé, a
filha de Herodíade. Naquela época, Salomé devia ser uma adolescente. O
verdadeiro nome da enteada de Herodes é nosso conhecido graças ao
testemunho de F. Josefo e à inscrição de uma moeda, em que aparece
junto de seu marido, Aristóbulo. Segundo os historiadores, a versão mais
racional e verosímil é a de que João Baptista tenha sido encarcerado e
executado por causa das suas duras críticas contra o tetrarca e contra a
esposa de Filipe. (N. Do M.) 2 A lenda grega conta que havia três irmãs –
as Górgonas – que tinham um único olho e um único dente, passando-os
umas às outras quando queriam ver ou comer. Isto segundo a lenda,
simbolizava que a inveja, a calúnia e o ódio viam com um único olho e se
alimentavam com o mesmo dente.
Uma destas terríveis irmãs, velhas como a Humanidade com
serpentes em vez de cabelos (Medusa), tinha o poder de converter em
pedra tudo aquilo que olhasse. Mas foi morta por Teseu, que lhe cortou a
cabeça. Segundo a mitologia, uma parte do seu sangue foi cair no mar,
convertendo-se em coral. Daí que o coral tenha tido sempre uma grande
aceitação entre estes povos, como valiosos amuletos contra o mau
olhado, e a inveja. (N. Do M.)
mármore milhares de grânulos de coral, que davam forma à cena
mitológica. Desta forma, aproximei-me de Civilis e, em voz baixa,
perguntei-lhe por que razão o tetrarca adoptava aquela atitude. O
centurião – que conhecia bem a desordenada vida de Antipas – sugeriume
uma explicação que nada tinha de subestimável: - Todo Israel sabe
que Herodes temia e respeitava o fogoso profeta a quem chamavam
Baptista. Em certa altura, este louco chegou a comentar que Jesus da
Galileia podia ser João. Não seria de estranhar que, ao verificar o
silêncio do prisioneiro, a sua desequilibrada razão tenha recuperado a
calma. De repente, Antipas saiu dos seus pensamentos e, pegando numa
taça de cristal, aproximou-se do tanque. Inclinou-se e encheu-a. Depois,
pondo a taça à altura do rosto do Nazareno, perguntou-lhe com malícia: -
Diz-me, Galileu, podes transformar o leite em vinho? Jesus, imóvel, não
pestanejou. Continuava de cabeça baixa.
Herodes encolheu os ombros e voltou ao seu colchão de penas.
Um dos criados, possivelmente um eunuco, a julgar pelos anéis nas
orelhas e pelas ancas e meneios femininos, ajoelhou-se na frente do
tetrarca, para o calçar. Aquelas sandálias com tiras douradas atraíramme
a atenção. Ambas as solas pareciam cobertas com uma série de
finíssimas almofadinhas. Uma vez calçadas, Antipas pôs-se de pé e, para
minha surpresa, com o peso do seu corpo, as bolsinhas começaram a
ressumar um líquido transparente e aromático. Eram vaporizadores (uma
espécie de desodorizante que tinha começado a fazer furor entre as
classes endinheiradas de Roma e da Grécia, e que eliminava, em boa
medida, os desagradáveis cheiros da transpiração).
Antipas não se rendia, e tentou que o Mestre o divertisse com algum
dos Seus prodígios. Pegou numa bandeja de prata, onde se alinhavam
pequenas tiras de carne e, apresentando-a a Jesus, increpou-o nos
seguintes termos: - Se foste capaz de multiplicar pães e peixes acho que
não Te seria muito difícil fazer o mesmo com estas línguas de flamingo...
Terias a amabilidade de...
O silêncio foi a única resposta. Herodes, que tinha passado da
zombaria à cólera, levantou a peça de metal, deixando cair o seu manjar
favorito na cabeça e nos ombros do Rabi. O gesto foi imediatamente
apoiado pelos risos dos seus acólitos.
Mas o Mestre não se mostrou impressionado.
A grotesca cena viu-se interrompida pelo súbito aparecimento de
uma mulher. Antipas, ao vê-la, apressou-se a ir ao seu encontro
agarrando-a por uma mão e levando-a até Jesus. Apesar de ter passado
a barreira dos quarenta, a beleza de Herodíade, amante de Antipas, era
excitante. O seu vestuário consistia numa série de gazes de Malta, que
formavam uma dupla túnica, deixando ver a pele cor de azeitona. Na
cabeça tinha uma faixa branca que lhe cingia as têmporas e das quais se
erguiam três andares de tranças, tão negras quanto os seus olhos. O
original penteado tinha por remate pequenos caracóis, feitos de anéis de
cabelo. Ao ver Herodíade, Civilis fixou os olhos nos seios pequenos,
perfeitamente visíveis através dos tecidos, e voltando-se para mim
piscou-me um olho.
Antipas aproximou-se de Jesus e, sacudindo com os dedos algumas
das línguas de flamingo que lhe tinham ficado enredadas no cabelo,
tranquilizou a mulher garantindo-lhe que aquele mago nem sequer era a
sombra do aborrecido João Baptista. Herodíade, com as sobrancelhas e
pestanas besuntadas de uma substância gordurosa e as pálpebras
sombreadas por uma mistura de lápis-lazúli moído, observou
atentamente o réu.
Depois rebolando as ancas sem o mesmo pudor, afastou-se do
Mestre, indo sentar-se no trono de madeira. Uma vez ali, e ante a
expectativa geral, fez sinal a Antipas, pedindo-lhe que se aproximasse.
Herodes obedeceu imediatamente. Depois de lhe segredar qualquer
coisa, o tetrarca sorrindo maliciosamente, desceu do estrado e foi
postar-se atrás do Rabi. A seguir pegou na orla da túnica de Jesus,
levantando-a lentamente, de modo a que Herodíade e os seus cortesãos
pudessem contemplar as pernas do Nazareno. Antipas continuou, até
descobrir a totalidade das musculosas pernas do prisioneiro, bem como a
tanga que o cobria. Os lábios de Herodíade, de um vermelho carmesim,
abriram-se com visível admiração, ao mesmo tempo que uma vaga de
indignação começava a queimar-me as entranhas.
Civilis notou a minha crescente cólera e, inclinando-se para mim,
comentou: - Não te alarmes. A lei judaica concede àquele porco um
máximo de dezoito mulheres mas a sua impotência é tão pública e tão
notória que Herodíade até nos escravos das cavalariças procura
consolo... E Herodes sabe.
Herodíade tem-no agarrado pelo trono e pelos testículos. As
palavras do oficial eram tão certas quanto proféticas. Bem pouco
suspeitava Antipas que, justamente, aquela mulher seria a causa da sua
desgraça final... 1
A humilhante cena foi interrompida pelo centurião. O tempo era
pouco e com amáveis mas firmes palavras pediu ao tetrarca que lhe
comunicasse o seu veredicto.
* Esta fulminante afirmação do major levou-me a procurar quantos
documentos me foram possíveis, em busca do desgraçado final de
Herodes Antipas. Com grande surpresa minha, descobri que o filho de
Herodes, o Grande, acabara por ser vítima da ambição e do domínio da
sua amante, Herodíade. Depois da morte do imperador Tibério, no ano 37
da nossa era, outro membro da numerosa família dos Herodes, irmão de
Herodíade, foi libertado do cárcere de Roma pelo novo césar, Caio, aliás
Calígula ou Botinha. Perante o desespero de Antipas e da sua amante,
Herodes Agripa foi nomeado rei de todo o Israel.
Antipas deixou-se influenciar por Herodíade e acorreu a Roma,
disposto a pedir para si o título de rei. Mas Calígula, que, por aquele
tempo – ano 39 da nossa Era – se encontrava em plena campanha militar
nas Gálias, não só não foi ao encontro dos desejos do tetrarca da Galileia
como, para desorientação do velho raposo, lhe retirou o título,
desterrando-o. Flávio Josefo e Tilemont estão de acordo em que
Herodes Antipas e sua mulher Herodíade, se viram obrigados a
peregrinar por Espanha, onde possivelmente se fixaram e morreram.
(Por aquele tempo existiam já na Península Ibérica sete cidades
mediterrânicas com importantes colónias judaicas bem como outras
zonas da Andaluzia, onde Herodes pôde fixar residência.) (Nota de J. J.
Benitez. )
- Veredicto? - respondeu Antipas, que há muito compreendera que o
Galileu não desejava abrir a boca. - Diz a Pilatos que lhe agradeço a
gentileza, mas que a Judeia não entra na minha jurisdição. Que seja ele a
decidir.
Dando meia volta encaminhou-se para um dos seus amigos.
Arrancou-lhe um rico manto de púrpura com que se cobria e, sem
mais palavras, foi pô-lo nos ombros do Mestre, soltando uma longa e
estridente gargalhada, que foi aplaudida pelos amigos e parentes.
Caifás e os sacerdotes, tão desiludidos como Antipas,
encaminharam-se para a porta, enquanto Civilis, depois de saudar de
braço levantado o tetrarca e Herodíade, empurrou Jesus, indicando-Lhe
que a audiência tinha terminado.
Ao deixar a sala ainda ecoavam os aplausos da camarilha de
Herodes, extremamente agradada por aquele último gesto de troça e de
escárnio do idumeu.
(Uma vez mais, o testemunho de alguns exegetas não coincidem com
a realidade. Jesus não foi tapado com um manto branco, sinal de loucura,
como dizem estes comentadores bíblicos, mas sim com um manto
vermelho-vivo, que reflectia a mofa de Herodes Antipas, considerando-o
um libertador ou um rei de pacotilha. Um manto que iria acompanhar
Jesus de Nazaré até ao momento crítico da flagelação e que, como mais
adiante veremos, foi aquele com que o cobriram os legionários romanos.)
Pelas dez da manhã, a escolta retirou-se do palácio dos Asmoneus,
retomando a viagem de regresso à Fortaleza Antónia.
Tal como na ida, um numeroso grupo de hebreus seguiu, silencioso e
vigilante, os legionários que protegiam o Rabi.
Naquele momento, inesperadamente, Judas Iscariotes afastou-se
da turma encabeçada por Caifás e surpreendeu-me com uma pergunta...
A princípio hesitou. Olhou à sua volta com desconfiança e, finalmente,
decidiu-se a falar. Judas devia pensar que a minha constante presença
perto do Mestre me convertera num dos Seus adeptos. No entanto,
acabou por vencer o seu receio e, afastando-se do pelotão de escolta
perguntou-me como decorrera o interrogatório no palácio de Antipas.
Contei-lhe o sucedido e Iscariotes, como único comentário, lamentou o
silêncio de Jesus, acrescentando:
- Que nova oportunidade perdida!...
Disse-lhe que não entendia e o Iscariotes, evitando olhar-me faloume
dos seus tempos como discípulo de Baptista e de como nunca
perdoara ao Mestre não ter intercedido pela vida de João. Agora –
segundo o traidor – Jesus também nada fizera para reivindicar a
memória do seu amigo e precursor. A confissão surpreendeu-me. Pelo
que via, o Iscariotes unira-se ao Nazareno devido à prisão de Baptista, e
cheguei a pensar que boa parte do seu ódio pelo Rabi tinha por motivo
aquele facto. Continuámos os dois em silêncio. Eu ardia no desejo de lhe
perguntar o motivo da sua traição, mas não tive coragem, e só me atrevi
a por que razão se antecipara ao grupo de soldados na noite da prisão.
Isolado e humilhado por uns e por outros, Judas sentia a necessidade de
confessar-se. Mas a sua resposta foi uma meia-verdade... - Sei que
ninguém acredita em mim – lamentou-se -, mas a minha intenção foi boa.
Se me pus à frente dos soldados e levitas do Templo foi para avisar o
Mestre e os meus companheiros da tropa que O vinha prender.
Calei-me. Aquela explicação, de facto, era difícil de aceitar. É
possível que Judas, cobarde como era, tivesse podido maquinar
semelhante arranjo. De qualquer forma, os discípulos talvez não
tivessem chegado a desconfiar dele. Mas as suas intenções, se é que
realmente foram essas, ficaram anuladas perante a inesperada presença
do Nazareno a meio do caminho que conduzia ao horto.
Não tivemos tempo para mais. Civilis e os seus homens entraram
novamente pela muralha norte da Torre Antónia, encaminhando-se para a
escadaria do Pretório.
Ao chegar ao terraço onde se celebrara a primeira parte do
interrogatório, estranhei a presença de um estrado semicircular, sobre
o qual fora colocada uma cadeira curul, geralmente destinada a aplicar a
justiça. O centurião deixou Jesus entregue aos seus homens e entrou na
residência.
Os hebreus, com o sumo sacerdote na primeira linha, esperaram,
como habitualmente, junto das escadas. Desta vez, José de Arimateia
tinha entrado no recinto da Torre. Pilatos não tardou a aparecer e,
sentando-se na cadeira transportável, dirigiu-se a Caifás e aos saduceus:
- Haveis trazido este Homem à minha presença, acusando-O de
perverter o povo, de impedir o pagamento do tributo a César e de
pretender ser o rei dos Judeus. Interroguei-O e não O creio culpado de
tais acusações. Na realidade, não vejo falta alguma... Enviei-O a Herodes
e o tetrarca deve ter chegado à mesma conclusão, pois que me O enviou
novamente. Com toda a certeza, este Homem não cometeu delito algum
que justifique a morte. Se considerais que deve ser castigado, estou
disposto a impor-Lhe uma sanção antes de O soltar. Sem poder conter a
sua alegria, João deu um salto, abraçando José de Arimateia.
Mas, quando tudo parecia a favor do Nazareno, o pátio entre a
escadaria e o portão da muralha foi subitamente invadido por centenas
de judeus. Entraram tranquila e silenciosamente, com um grupo de
soldados romanos à frente. Tal como me tinha avisado o ancião de
Arimateia, a multidão acorrera à casa do procurador, desejosa de
assistir ao indulto de um réu. E é de grande importância acentuar que, no
momento em que aquela massa humana chegou diante da residência de
Pilatos – com prévia autorização da guarda – nenhum dos israelitas sabia
o que estava a acontecer. Foi ali, à vista de Jesus e dos sacerdotes, que
se deixaram arrastar pela hábil e oportuna intervenção de Caifás e dos
saduceus. Se o julgamento de Jesus se tivesse dado noutro momento ou
noutro dia, sem a presença daquela turba, é bem possível que o Sinédrio
não tivesse levado a melhor.
Pilatos sabia da chegada da multidão. De facto, a colocação do
estrado e da cadeira sobre o empedrado do terraço obedeciam única e
exclusivamente à cerimónia da tradicional amnistia.
Mas, desejando agir de boa fé, Pilatos cometeu um grave erro.
Depois de efectuar uma série de consultas aos seus centuriões, pôsse
de pé e, elevando a voz, perguntou à multidão o nome do preso
escolhido.
- Barrabás! - respondeu o povo como um só homem.
Até àquele momento, nem Pilatos nem os juízes tinham pronunciado
o nome de Jesus. Aquilo significava, tal como supunha, que os hebreus
tinham vindo até ao pretório com intenção premeditada de solicitar a
libertação do terrorista, e assim o manifestarem antes de o procurador
lhes pedir silêncio e lhes explicar como os sacerdotes tinham levado
Jesus à sua presença e de que o acusavam. Em suma: aquela gentemesmo
sem a presença do Rabi da Galileia – teria gritado por Barrabás, o
Zelota. Mas, como referi, a oportuna intervenção de Caifás e dos seus
sequazes e o ouro que fora distribuído entre um punhado de judeus,
colocados estrategicamente por entre a multidão, acabaram por inclinar
a balança a favor do Sinédrio.
Quando Pilatos acabou de explicar à multidão a presença de Jesus
no tribunal, deixando bem claro que não via naquele homem razões que
justificassem a sentença, formulou uma segunda pergunta:
- Quem desejais que eu liberte? Barrabás, o assassino, ou este
Jesus da Galileia?
Por um instante, a multidão de judeus ficou atónita. Não houve
resposta imediata. Aquela gente, isso foi evidente, vacilou. Caifás e os
saduceus compreenderam o grave risco que aquele silêncio representava
e, avançando para Pilatos, gritaram com força:
- Barrabás!... Barrabás!..
A iniciativa dos homens do Sinédrio teve um rápido eco. De
diferentes pontos do pátio cheio de gente se levantaram outras vozes,
pertencentes, sem dúvida, aos judeus comprados, que clamaram também
pela libertação do revolucionário. Em questão de segundos, toda aquela
multidão imitou os sacerdotes unindo-se em coro a Caifás. Foi inútil que
João Zebedeu quase perdesse a voz a gritar o nome do seu Mestre.
Ficou abafado por um Barrabás! Rotundo e generalizado, repetido outra
e outra vez até o procurador, levantando os braços, pedir silêncio.
Nos olhos de Pilatos havia um brilho de ódio por aqueles saduceus,
flagrantes instigadores de uma massa amorfa e ignorante. Como disse, a
irritação do procurador romano não tinha a sua origem no facto
circunstancial de aquele Galileu poder ou não vir a ser executado. O que
o encolerizava era, precisamente, que a sua decisão de pôr em liberdade
o Mestre se visse olimpicamente desprezada pela casta sacerdotal. Mas
o erro de Pilatos, oferecendo Jesus como possível candidato à
libertação, ainda era susceptível de rectificação. Tomando novamente a
palavra, recriminou-lhes a conduta aleivosa:
- Como é possível escolher a vida de um assassino – disse, apontando
directamente para Caifás – contra a deste Galileu, cujo crime mais grave
é julgar-se rei dos Judeus? O resultado daquelas palavras foi
totalmente contrário ao que Pilatos podia esperar. Os juízes mostraramse
extremamente ofendidos pelo que consideraram um insulto à sua
soberania nacional, instigando a multidão a que gritasse ainda com mais
força pela liberdade do zelota. E assim aconteceu. Aqueles hebreus, na
sua maioria gente inculta, pisoeiros, carregadores, mendigos, peregrinos
e, naturalmente, levitas livres de serviço no Templo, levantaram de novo
as vozes, exigindo a libertação de Barrabás. A súbita explosão popular
fez que o procurador vacilasse, e, acompanhado pelos seus oficiais,
retirou-se para deliberar. Estou agora convencido que se Pilatos não
tivesse metido o Nazareno naquela eleição, certamente não se teria
visto comprometido perante os dignitários religiosos.
Entretanto, Jesus permanecia tranquilo diante da multidão.
Aqueles minutos de espera – e os que se seguiram – foram decisivos
para Caifás. Aproveitando a momentânea ausência do procurador
arranjou maneira de os seus companheiros de conjura se espalharem
entre os que ali estavam reunidos incitando-os constantemente a que
pedissem a libertação do popular Barrabás. Era triste e decepcionante
observar aqueles judeus, muitos dos quais conheciam e tinham admirado
as palavras e a coragem do Galileu, quando, por exemplo, varrera o átrio
dos Gentios do sacrílego comércio dos cambistas e intermediários.
Num instante e, sem o menor critério pessoal, tinham-se voltado
contra o indefeso Jesus.
Pilatos voltou à sua cadeira e observou a multidão. Tinha firmado os
cotovelos nos braços da cadeira, apoiando a cabeça nas mãos
entrelaçadas, em atitude pensativa. Como medida de precaução, Civilis
dera ordem para que a porta da muralha fosse fechada, colocando várias
unidades armadas em torno da multidão. Foi pena que os judeus não
tivessem reparado antes naquela manobra dos romanos. Conhecendo
como conheciam a crueldade de Pilatos, talvez que ao verem que estavam
a ser cercados disfarçadamente, se preocupassem mais com a sua
segurança que com a libertação de alguém.
O comandante-chefe da legião acabara de dar ordens precisas aos
seus legionários. Se a ordem fosse ameaçada tinham autorização para
desembainhar as espadas.
Durante uns minutos, o governador romano ficou em silêncio.
A multidão imitou-o à espera de uma decisão. E estávamos nisto
quando um dos serventes do Pretório apareceu no terraço, entregando
uma missiva lacrada a Civilis, ao mesmo tempo que lhe comunicava
qualquer coisa. O centurião examinou a pequena folha de pergaminho e
avançou até à cadeira, arrancando Pilatos aos seus pensamentos. O
procurador abriu a carta e, depois de a ler atentamente, levantou-se.
Caifás, os juízes e todos os que ali estavam reunidos ficaram intrigados.
Pilatos parecia hesitar. Deu dois breves passos pelo terraço e, por fim,
parando, voltado para a multidão, anunciou que tinha recebido uma carta
de sua mulher, Cláudia Prócula, e que desejava lê-la em público. O vento
obrigou-o a segurar o pergaminho com ambas as mãos. Com voz clara e
forte começou a ler: Rogo-te que em nada intervenhas para a condenação
do homem íntegro e inocente que se chama Jesus. Esta noite, durante
um sonho, sofri muito por Ele. Ao conhecer o conteúdo da carta, José de
Arimateia pareceu alegrar-se muito.
Embora o ancião não chegasse a confessar-mo abertamente, todos
os indícios apontavam para ele o importante facto de a esposa de Pôncio
conhecer e aceitar os ensinamentos do Mestre da Galileia (segundo pude
entender, alguns dos seus servos faziam parte do primeiro grupo dos que
seguiam Jesus).
De início, ao reparar no intenso olhar de Civilis, não associei o texto
da missiva de Prócula com a aguda superstição que dominava o
procurador e com o augúrio que eu me atrevera a formular na presença
do centurião. Foi pouco depois, quando nos dirigíamos para o pátio
central da fortaleza para assistir à flagelação do Mestre, que o oficialchefe
recordou as minhas palavras sobre o estranho fenómeno celeste
que eu vaticinara para aquela manhã, vinculando-o ao misterioso sonho da
mulher do procurador. Tudo aquilo, segundo parecia, tinha influído – e
não pouco – em Pilatos. Talvez por isso, depois da leitura da mensagem da
mulher, o governador, com voz trémula, se dirigiu novamente à multidão,
perguntando-lhe: - Porque quereis crucificá-Lo? Que mal vos fez?
Os sacerdotes perceberam imediatamente a crescente fraqueza do
representante de César e lançaram-se contra ele, vociferando sem
parar: - Crucifica-o... Crucifica-o! O paroxismo dos judeus chegou a tal
extremo que a pergunta seguinte de Pilatos quase não foi ouvida.
- Quem quer testemunhar contra Ele?
A multidão só sabia repetir uma palavra:
- Crucifica-o!
Em vista daquele tumulto, Civilis desembainhou a espada e,
levantando-a mais alto que o capacete, preparou-se para dar sinal aos
seus homens para entrarem em acção. Porém, Pilatos obrigou o centurião
a embainhar a arma, e, agitando as palmas das mãos, pediu silêncio. Pouco
a pouco, aqueles fanáticos foram recuperando a serenidade. E o
procurador ignorando os pedidos anteriores do populacho, repetiu a
pergunta: - Peço-vos mais uma vez que me digais que preso quereis que
libertemos neste dia de Páscoa. A resposta foi igualmente monolítica e
contundente:
- Entrega-nos Barrabás!
Pilatos ficou silencioso e, movendo a cabeça em sinal de
desaprovação, insistiu: - Se solto Barrabás, o assassino, que faço com
Jesus?
Aquele novo sinal de fraqueza do governador foi acolhido com uma
brutal explosão de violência. E a palavra crucifica-o! Levantou-se como
um trovão. A turba, com os punhos levantados, continuou clamando,
sempre mais alto:
* 1 Ainda que na primeira grande viagem, de Cavalo de Tróia não
chegasse a encontrar-me com Cláudia Prócula ou Procla, todas as nossas
informações assinalavam a origem desta mulher como distinta,, e,
possivelmente, entroncada no ramo dos Próculos, pertencentes, como
Pilatos, à ordem equestre. Foram muito conhecidos Tício Próculo, amigo
de Sila; Cervário Próculo, que conspirou contra Nero; Licino Próculo,
servidor de Otão e prefeito do Pretório, e Volúsio Próculo, que comandou
a esquadra de Messina. Uma das tradições colocava Prócula como
descendente dos Cláudios, oriundos, por sua vez, das Gálias, e talvez
parenta afastada de Tibério. Se isto fosse certo, talvez pudesse
explicar-se a razão por que Pôncio Pilatos foi desterrado por Calígula
para as Gálias, depois da morte de Tibério. (N. Do M.)
- Crucifica-o!... Crucifica-o!... Crucifica-o! A vozearia impressionou
tanto Pilatos que, assustado, se retirou do terraço, voltando para a sua
residência. Um dos oficiais, seguindo as instruções de Civilis, apressouse
a seguir o procurador. E um momento depois, enquanto a multidão,
possessa pela ideia de matar o Mestre, continuava com o seu funesto
pedido de crucifixão, o centurião que tinha saído logo depois de Pilatos
reapareceu à entrada do pretório, trazendo a Civilis uma trágica ordem.
O centurião-chefe assentiu com a cabeça e, levantando os braços num
gesto autoritário, ordenou silêncio.
A multidão obedeceu, consciente do poder e da extrema dureza do
estrangeiro. Uma vez obtido o silêncio, Civilis pronunciou breves mas
dramáticas palavras que gelaram o coração de José e de João: - A ordem
do procurador é esta: o prisioneiro será açoitado... E com o mais absoluto
dos desprezos girou nos calcanhares fazendo um gesto aos seus homens
para que conduzissem o réu ao pretório. Sem me deter a pensar, lanceime
atrás de Civilis, juntando-me à escolta que atravessava já o vestíbulo
da residência oficial. Eram dez e meia da manhã...
Daquela vez, João Zebedeu não acompanhou o Mestre. E alegrei-me
profundamente. O espectáculo de que estava prestes a ser testemunha
tê-lo-ia abatido moralmente.
Seguimos pela escadaria da direita e enfiámos por um comprido e
húmido corredor, iluminado apenas por algumas candeias de azeite, cujas
chamas oscilavam à passagem da escolta.
O centurião, visivelmente desgostoso pelo curso que os
acontecimentos estavam a seguir, lamentou-se da fraqueza do
procurador. Se tivesse dependido dele, o processo contra aquele Galileu
teria acabado sem contemplações...
- Entre este visionário e um zelota assassino – garantiu-me,
enquanto percorríamos os últimos metros do corredor -, Roma não teria
hesitado. E muito menos quando este ninho de serpentes tem o
atrevimento de desafiar a autoridade de César...
Ao sair do túnel logo reconheci o pátio com pórticos que tinha
atravessado na manhã de quarta-feira, quando José e eu nos
preparávamos para nos encontrarmos com Pilatos. Do vestíbulo do
pretório podia ter-se acesso, pois, àquele pátio e ao túnel abobadado da
entrada ocidental na fortaleza, para o que bastava percorrer ocorredor
de escassos cinquenta metros.
A saída encontrava-se exactamente no canto nordeste do pátio, à
direita das escadas de mármore que conduziam ao escritório oval de
Pilatos.
Seguindo, pelo que parecia, um costume muito frequente, os
soldados chegaram ao centro do pátio, detendo-se junto da fonte
circular da deusa Roma. O centurião ordenou que tirassem dali os cavalos
que estavam a ser escovados e, enquanto os cavaleiros os puxavam pelas
rédeas, várias dezenas de legionários de folga foram-se aproximando. A
notícia da iminente flagelação dAquele judeu – que se qualificava como
rei dos Hebreus – espalhara-se rapidamente pela guarnição que,
naturalmente, não quis perder o acontecimento.
Civilis sugeriu que me afastasse.
- Pilatos quer um castigo... especial – acrescentou o centurião com
um sorriso sarcástico. - E por Zeus que o vai ter!
As palavras do oficial fizeram-me tremer. Olhei para Jesus, mas o
Gigante continuava ausente e imóvel, de olhos fitos no jorro de água que
saía da pequena esfera que a deusa tinha na mão esquerda.
Os cascos dos cavalos, afastando-se para um dos cantos do recinto,
marcaram o começo da tortura. Dos legionários tinham-se separado dois,
especialmente robustos. Ambos tinham nas mãos grandes flagrum, ou
látegos curtos, formados por cabos de couro e metal, com apenas trinta
centímetros de comprimento. Do cabo partiam três correias de quarenta
ou cinquenta centímetros cada, armadas nas extremidades por pares de
astrágalos (tali) ou ganizes de carneiro. O outro verdugo afagava os
anéis de ferro da sua plumbata, da qual saíam duas tiras de couro,
munidas de um par de bolinhas de metal (possivelmente, chumbo) em
cada ponta.
A um sinal do oficial comandante, dois dos soldados da escolta
puseram o Mestre diante de um dos quatro marcos, de quarenta
centímetros de altura, que rodeavam a fonte e que eram usadas para
prender as rédeas dos cavalos. Um dos legionários tentou soltar as
ataduras dos pulsos de Jesus, mas de tal forma tinham sido dados os nós
que, depois de várias e inúteis tentativas, teve de lançar mão da espada,
cortando-as de um golpe. Depois de quase oito horas com os pulsos
atados atrás das costas, as mãos de Jesus estavam tumefactas e com
uma cor violácea.
Uma vez desatado, os legionários tiraram o manto púrpura que
Herodes Antipas Lhe prendera ao pescoço, despindo depois o amplo
roupão. Com a mesma violência O despojaram da túnica. As roupas do
Mestre caíram num dos charcos de urina dos cavalos.
Por último, descalçaram-lhe as sandálias. Em seguida, o mesmo
soldado que tinha cortado as ataduras colocou-se na frente do
prisioneiro, atando-lhe os pulsos à frente com os restos da corda que
acabara de cortar.
Com uma completa e absoluta docilidade, Jesus tudo consentia sem
reagir. O Seu corpo começara a suar. Aquela reacção do organismo pôsme
alerta. A temperatura ambiente não era, nada que se parecesse, tão
elevada que pudesse provocar a transpiração súbita. Dei uns passos em
volta da fonte, de modo a ficar na frente dEle, e verifiquei
efectivamente, como o rosto, pescoço e peito começavam a ficar
molhados. Naquele momento lamentei não ter posto as lentes de visão
infravermelha. A ajuizar pelas pulsações cada vez mais aceleradas das
artérias carótidas e pelas inspirações profundas e sucessivas, o Rabi
começara a experimentar uma nova elevação do ritmo cardíaco.
O Nazareno estava perfeitamente consciente daquilo que O
esperava e o organismo reagiu como o de qualquer indivíduo.
Com um puxão, o legionário obrigou-O a inclinar-Se para o marco de
pedra, prendendo a corda na argola metálica que coroava a pequena
coluna. A grande altura do Galileu e o reduzido tamanho do marco
obrigaram-no a abrir muito as pernas, ficando numa posição muito
forçada. O cabelo caíra para a cara, escondendo as feições
completamente. De alguma forma alegrei-me por não Lhe poder ver o
rosto...
O suor foi aumentando, convertendo as largas espáduas e o torso
numa superfície brilhante. De repente, um dos carrascos avançou e
agarrando a tanga de Jesus arrancou-a com um puxão brusco, deixando-o
inteiramente nu. O quebrar dos cordões que seguravam a tanga provocou
uma dor súbita e intensa nos órgãos genitais de Jesus. O corpo
estremeceu e os joelhos vergaram pela primeira vez. Ao verem-no nu, os
legionários soltaram uma gargalhada. Mas as troças da soldadesca foram
interrompidas pela chegada de Pilatos. Sem mais preâmbulos, o
procurador ordenou aos verdugos que começassem. Num silêncio de
expectativa, o legionário mais alto, postado à direita do Mestre,
levantou o seu flagrum de triplo rabo, atirando uma terrível chicotada às
costas de Jesus, ao mesmo tempo que cantava o número do golpe.
- Unus!
A chicotada foi tão brutal que os joelhos do Rabi vergaram e foram
bater no empedrado de calcário com um som seco. Mas, com um
movimento reflexo, o Galileu voltou a pôr-se de pé, ao mesmo tempo que
o segundo verdugo vibrava novo golpe com o seu flagrum bífido. - Duo!
- Tres!
- Quattour...
Os soldados profissionais consumados, manejavam os látegos com
um simples rodar dos pulsos. Deste modo, as correias ondeavam,
alcançando-se o máximo efeito com o mínimo de esforço. - Quinque!
O entrechocar dos ossinhos e das bolas de metal foram o único som
perceptível durante os primeiros minutos. Jesus, inteiramente curvado,
ainda não deixara escapar um só gemido.
Os astrágalos e as peças de chumbo caíam-lhe nas costas,
arrancando de cada vez pedaços de pele. Logo à primeira chicotada
vários fios de sangue tinham começado a correr pelo corpo, escorrendo
pelas ilhargas e pingando no pavimento.
Tal como suspeitava, depois do fenómeno do suor ensanguentado, a
pele do Mestre ficara num estado de extrema fragilidade, e aquela
saraivada de golpes múltiplos não tardou em rasgá-la, pondo os ombros,
costas e cintura em carne viva. Pouco a pouco, a cada silvo do flagrum, os
astrágalos e as bolas penetravam na pele, provocando a sua ablação ou
separação, rasgando os tecidos musculares e arrancando vasos e nervos.
- Triginta!
Ao trigésimo açoite, o Rabi caiu, ficando de joelhos e com os dedos
fortemente agarrados ao aro de metal da coluna.
As costas, ombros e zonas lombares estavam já encharcados em
sangue, com uma infinidade de hematomas azulados e grandes como ovos
de galinha. As correias, por seu lado, tinham desenhado dezenas de
vergões – como unhadas – de um tom de vinho. Os múltiplos hematomas –
alguns dos quais tinham começado a rebentar – levaram-me a pensar que
a dor que Jesus de Nazaré suportou naqueles primeiros minutos devia
ter atingido o paroxismo.
Mas, felizmente para Ele, as chicotadas, infligidas com tanta sanha
como precisão, foram abrindo muitos dos hematomas, transformando as
costas num rio de sangue e, consequentemente, em certa medida,
diminuindo a dor. - Quadraginta! A chicotada número quarenta chegou
quatro ou cinco minutos depois do começo do suplício. Mas, longe de
estremecer, como acontecera com os golpes anteriores, o corpo do
Nazareno não reagiu. Civilis levantou a sua vara de vide, interrompendo a
flagelação. Um dos suados verdugos aproximou-se do Mestre, puxando-
Lhe os cabelos. Depois de verificar que desfalecera, soltou a cabeça, que
tombou desmaiada na abertura entre os braços.
O centurião apressou os seus homens. Um dos legionários encheu um
balde com a água da fonte, despejando-o na nuca do Nazareno. Ao
contacto com o líquido a cabeça de Jesus moveu-se ligeiramente,
enquanto parte do sangue escorria para o chão, arrastado pela água.
Havia já algum tempo que a coluna, uma ampla faixa da parede
circular da fonte e os rostos, braços e túnicas dos verdugos estavam
tintos de vermelho. A hemorragia, generalizada já nas costas e zona dos
rins, começara a ser preocupante. Ainda que o suplício tivesse parado na
quadragésima chicotada, coincidindo assim casualmente com a fórmula
judaica de flagelação a intenção de Pilatos – que acompanhava, impassível
e silencioso, o decorrer da tortura – era que aquele massacre
continuasse. Os verdugos aproveitaram o breve descanso para se
debruçarem sobre o tanque e refrescarem a cara, ao mesmo tempo que
esfregavam os braços para os lavarem de todos aqueles salpicos de
sangue. Embora os legionários encarregues do tormento conhecessem o
latim, tenho quase a certeza – a julgar pelas barbas ralas e abundantes –
de que eram mercenários sírios ou samaritanos. Geralmente, os romanos
designavam-nos quando o condenado era judeu. O seu ódio ancestral
pelos Judeus convertia-os em executores exemplares.
O Mestre fora-se recompondo. Um dos verdugos agarrou-o então
pelas axilas, puxando-o para cima. Mas o peso era excessivo e teve de
pedir ajuda. Quando, por fim, conseguiram levantá-lo, outro soldado
- com uma caçarola de latão nas mãos – pôs-se na frente do
torturado Nazareno, enquanto os verdugos, sem contemplação alguma
Lhe puxavam o cabelo e O obrigavam a erguer o rosto.
Assim o mantiveram até o romano que tinha a caçarola a esvaziar na
boca do Galileu. Ao perguntar a Civilis do que se tratava, explicou-me que
a caçarola continha água com sal.
Era evidente que o exército romano conhecia muito bem os graves
* A Lei judaica estabelecia para o castigo da flagelação um total de
quarenta chicotadas menos uma. Assim estava escrito: em número de
quarenta (o estabelecido, segundo R. Yehudá, seria quarenta). O réu era
açoitado com as mãos atadas a uma coluna. O servidor da sinagoga
agarrava-o pela roupa e rasgava-as, rasgava-as e dilacerava-as,
dilacerava-as até ficar com o peito a descoberto. Depois colocava uma
pedra e em cima dela o servidor da sinagoga, tendo na mão uma correia
de vitela. Esta era primeiro dobrada em duas e as duas em quatro;
outras duas correias subiam e baixavam nela. (N. Do M.)
problemas que _podiam vir de um castigo como aquele. Em especial,
o da desidratação. Embora Jesus tivesse sido obrigado, a ingerir uma
grande quantidade de água no Sinédrio, a excessiva sudação no horto de
Getsémani e, agora, durante a flagelação, mais as grandes hemorragias
que sofrera, tinham de ter minado as reservas e o equilíbrio hídrico do
corpo, tanto intracelular como extracelular. A água com sal, constituía,
pois, um reforço decisivo, se é que Pilatos desejava, realmente, que o
prisioneiro não morresse durante os açoites.
(Também havia o perigo de que a excessiva concentração de cloreto
de sódio na água – o ideal teria sido uma proporção de 0,85%, pudesse
ocasionar o aparecimento de edemas ou inchaços brandos em diversas
partes do corpo.) Mas, tal como sentenciara Civilis, a pretensão do
procurador era torturar Jesus até ao limite, de tal forma que o Seu
estado lamentável pudesse satisfazer e comover os ânimos agressivos
dos saduceus. Assim, uma vez bebido o conteúdo da caçarola, o centurião
levantou o seu bastão e os legionários voltaram a empunhar os flagrum,
prosseguindo o castigo. - Unus!
O novo golpe e os que se seguiram foram dirigidos especialmente às
coxas, pernas, nádegas, ventre e parte dos braços e peito. As costas e a
cintura foram desta vez poupadas.
Os golpes das correias, enroscando-se nas pernas do Mestre,
obrigaram-no a uma suprema contracção dos feixes musculares, em
especial dos que se encontravam nos lados posteriores das coxas, que
assim ficaram mais vulneráveis. Bem depressa, a pele se foi abrindo,
provocando uma hemorragia muito mais forte que a das costas.
- Decem!
Num esforço titânico para suportar a dor, Jesus de Nazaré
agarrara-se à argola da coluna, levantando o rosto até onde lhe era
possível. Os músculos do pescoço, tensos como a corda de um arco,
contrastavam com as fossas supraclaviculares, inundadas por um suor
frio que escorria sem parar e que esbatia o vermelho-vivo do sangue.
- Duo-de-viginti!
O verdugo cantou o número dezoito, atirando o látego ao peito do
Mestre. Um dos pares de ossinhos deve ter ferido o mamilo esquerdo de
Jesus, e a fortíssima dor provocou um movimento reflexo. O Gigante
levantou-se com todas as Suas forças, ao mesmo tempo que os dentes –
solidamente apertados uns contra os outros – se abriam, lançando um
gemido lancinante. Era o primeiro lamento do Rabi.
O esticão foi tão rápido e forte que as cordas que o prendiam à
argola se partiram e o corpo do Mestre foi violentamente atirado para
trás apanhando desprevenidos os verdugos e o resto da tropa, que
recuaram, assustados. O Nazareno caiu pesadamente de costas,
resvalando pelo empedrado, onde deixou um largo rasto de sangue.
Quando os legionários se precipitaram para ele, levantando-o
pesadamente, a respiração de Jesus estava extremamente agitada.
Eu aproveitei aquele momento de confusão para pôr os crótalos e
iniciar uma exploração exaustiva dos danos provocados pela flagelação.
Carreguei no prego dos ultra-sons na sua posição máxima (7,5 Mhz ou
megahertz) e preparei-me para examinar, primeiro, os tecidos
superficiais. Os soldados tinham arrastado o Mestre até à pequena
coluna, prendendo-O novamente à argola. E os verdugos recomeçaram os
açoites, extremamente irritados por aquela contrariedade.
As chicotadas, cada vez mais implacáveis, foram abatendo pouco a
pouco o corpo do Mestre, que acabou por vergar os joelhos, enquanto os
dedos, a escorrer sangue, se crispavam de dor. A cada açoite, Jesus
tinha começado a responder com um curto e breve gemido.
Uma vez traduzidas as ondas ultra-sónicas em imagens, o resultado
da flagelação surgiu-me em todo o seu dramatismo. Os verdugos,
consumados especialistas, sabiam muito bem as zonas em que podiam
tocar e aquelas em que não. Desde o primeiro momento, chamou-me a
atenção o facto inacreditável de nenhuma das costelas ficar fracturada.
A precisão das chicotadas, em contrapartida, foram abrindo os flancos
de Jesus até deixar a descoberto as faixas fibrosas, ou aponevroses,
dos músculos infra-espinhosos. A dor, ao destruir estas últimas
protecções das costelas, teve de alcançar limiares difíceis de imaginar.
Na opinião dos peritos de Cavalo de Tróia, superiores mesmo aos
vinte e dois JND.
Naturalmente, grande parte dos músculos das costas – dorsais,
infra-espinhosos e deltóides – apareceram rasgados e cheios de
hematomas que, por não rebentarem, esticaram extraordinariamente o
que restava de pele, multiplicando a sensação de dor.
Ao examinarem os tecidos superficiais, os investigadores ficaram
surpreendidos por verificar como os legionários tinham escolhido as
zonas mais dolorosas, mas menos susceptíveis de provocarem uma
paragem cardíaca, que talvez pudesse fulminar o Nazareno. Escolheram,
principalmente, a parte dianteira das coxas, peitorais e zonas internas
dos músculos, evitando o coração, o fígado, o pâncreas, o baço e as
artérias principais, como as do pescoço.
Ao alterar a frequência dos ultra-sons, passando a 3,5 Mhz, a
análise dos órgãos internos pôs em evidência, desde o primeiro instante,
uma considerável perda de sangue. A volemia de Jesus (ou volume total
de sangue) foi fixada entre seis e seis litros e meio. Pois bem, depois do
duríssimo castigo da flagelação a volemia baixara vinte e sete por cento
o que significava que o Galileu perdera, no total, desde os ultrajes na
sede do Sinédrio, cerca de 1,6 litros de sangue. Uma quantidade
importante, embora não fosse a suficiente para alterar de forma
definitiva – física e psiquicamente – uma pessoa normal. E uma prova
disto foi que Jesus de Nazaré ainda teve forças e lucidez de mente para
responder às perguntas que lhe fizeram depois dos açoites. No entanto,
os derrames circulatórios provocaram nEle uma angústia crescente,
palpitações esporádicas, fraqueza e, principalmente, sede sufocante.
* Um aumento na intensidade de um estímulo que origina uma
diferença perceptível no grau de dor recebe a designação de diferença
apenas perceptível ou just noticeable difference (JND). Aplicando todas
as intensidades de estímulos entre o nível em que não há dor e o nível da
dor mais intensa, verificou-se que o doente comum pode distinguir vinte
e dois JND. (N. Do M.)
Quanto à frequência cardíaca, as oscilações foram contínuas.
Nalguns dos golpes – em especial num dos últimos, que atingira
directamente os testículos – o pico alcançou as cento e setenta
pulsações por minuto, descendo rapidamente a noventa e provocando o
segundo desmaio. Devido à intensa descarga de adrenalina a tensão
arterial elevou-se também nalguns momentos até 210 mm H20 de
máxima, embora, depois, o progressivo esgotamento de adrenalina fosse
dando lugar a um domínio do sistema vago e seu intermediário, a
acetilcolina, que foi acompanhada por uma baixa de tensão arterial,
traduzida no final do suplício, num estado de prostração quase total. A
análise da corrente sanguínea também nos permitiu a confirmação de um
facto evidente: o sucessivo aumento dos índices de sódio, cloro e da
pressão osmótica eram inequívocos sinais da grave desidratação por que
começava a passar o organismo do filho do Homem.
- Quadraginta!
A chicotada quarenta, que, na realidade, completava os oitenta
açoites, se tivermos em conta os quarenta primeiros, caiu num homem
praticamente destruído. O Mestre, com o corpo deformado pelos
hematomas e banhado em sangue, já mal se mexia. Os Seus lamentos
imperceptíveis já não se ouviam e só ecoava no pátio o estalido dos
látegos ao cravarem-se na carne e a respiração cada vez mais ofegante
dos verdugos, visivelmente esgotados. Havia já algum tempo que o
Nazareno se enrolara num novelo, com a cabeça e parte do tórax
apoiados nos braços, em posição fetal. As chicotadas, cada vez mais
lentas e espaçadas, continuavam a dilacerar-lhe as nádegas, ventre,
ilhargas e zonas laterais das pernas, ferindo, até, as plantas dos pés.
Alguns dos legionários, aborrecidos ou comovidos por aquele
selvático espancamento, tinham começado a abandonar o local, tratando
das suas ocupações habituais.
Civilis, que observava o progressivo esgotamento dos verdugos,
dirigiu um significativo olhar a Lucílio, o gigantesco centurião que eu já
tinha visto no apaleamento do soldado romano. O da Panónia
compreendeu as intenções do primus prior e, abrindo caminho aos
empurrões por entre os elementos da corte, levantou o braço, apanhando
em voo o flagrum do legionário postado à direita do Mestre, quando
aquele se preparava para vibrar novo golpe. A súbita presença daquela
torre humana, empunhando o látego de triplo rabo, foi bastante para que
ambos os verdugos se retirassem, deixando-se cair – quase sem fôlego –
nas lajes do pátio. A soldadesca, que conhecia a força e a crueldade do
oficial, ficou em silêncio, suspensa de todos e cada um dos movimentos
daquele urso.
Lucílio afagou as correias, limpando-as do sangue com os dedos.
Depois, colocando-se a um metro da ilharga esquerda do prisioneiro,
levantou o braço direito, lançando uma chicotada feroz e certeira à
parte inferior das nádegas de Jesus.
O açoite deve ter-lhe atingido o cóccix e a aguda dor reactivou o
sistema nervoso do Rabi, que chegou a levantar-se durante uns segundos.
Mas, entre grandes tremores, os músculos fraquejaram, caindo de
joelhos. Os legionários acolheram aquele ataque estudado com uma
exclamação que se iria repetindo a cada chicotada:
- Cedo alteram!
Um segundo golpe desta vez dirigido à curva da perna esquerda, fez
o Mestre gemer, ao mesmo tempo que a soldadesca repetia, entusias
mada:
- Cedo alteram!
A terceira, quarta e quinta chicotadas caíram sobre os rins... - Cedo
alteram!... Cedo alteram!... Cedo alteram!...
A violência de Lucilio era tal, que os astrágalos de carneiro ficavam
incrustados na carne, provocando em cada golpe uma abundante
hemorragia. - Cedo alteram!... Cedo alteram!...
A sexta e a sétima chicotadas caíram em cada um dos pavilhões
auditivos de Jesus. Quase instantaneamente, de ambos os lados do
pescoço, correram largos regos de sangue. O Mestre inclinou a cabeça
para o aro de metal e o centurião procurou o flanco direito, soltando
toda a sua fúria no umbigo de Cristo.
- Cedo alteram!
A selvática pancada no ventre do Mestre afectou decisivamente o
já castigado diafragma, cortando praticamente a respiração penosa.
Aquele, provavelmente, foi um dos momentos mais delicados do castigo.
Durante segundos que me pareceram intermináveis, a caixa torácica do
Galileu permaneceu imóvel.
Mas, por fim, os músculos intercostais reagiram, aliviando a tensão
pulmonar. - Cedo alteram! O nono açoite, vibrado pelo colosso no flanco
dilacerado de Jesus – e julgo que lançado com toda a intenção sobre os
abertos músculos denteados, para assim reactivar a respiração
bloqueada -, emitiu um som oco, como se os astrágalos tivessem golpeado
directamente as costelas.
O ímpeto do oficial, que tinha começado a suar abundantemente da
testa, foi tal, que o corpo do Nazareno se desequilibrou, caindo para o
lado esquerdo.
É muito possível que, naquele instante, outra dor – abafada pelo
atroz calvário da flagelação – ferisse o organismo do Galileu. Refiro-me à
bexiga urinária. De tal modo devia estar cheia que, involuntariamente, os
esfíncteres dos ureteres se abriram, dando origem a uma micção
abundante (a julgar pelo tempo que durou o derrame urinário, a bexiga
devia conter aproximadamente entre trezentos e cinquenta e
quatrocentos centímetros cúbicos). Felizmente, a urina – ainda que
extremamente amarela – não trazia sangue. Mas a descarga involuntária
da urina serviu apenas para provocar o riso dos romanos e um ataque
muito mais violento de ira em Lucílio, que considerou aquilo como um
insulto pessoal.
Levantando o látego, apontou-o com raiva para os testículos do
Mestre. Uma das pontas do flagrum tocou na pele do escroto e as outras
duas caíram na bolsa testicular.
Reagindo ao golpe dilacerante, Jesus encolheu-se, ao mesmo tempo
que a pulsação se acelerava e um gemido angustiante se confundia com o
último Cedo alteram!
De imediato o pulso baixou para noventa e o Mestre, empalidecendo,
desmaiou.
Civilis levantou a vara novamente, ordenando aos soldados que
examinassem o Rabi. Depois, aproximando-se do procurador, pediu-lhe
instruções. Devia continuar o castigo? Antes que Pôncio tomasse uma
decisão, o brutal Lucílio insinuou ao governador que, dada a situação do
prisioneiro, melhor seria acabar com Ele ali mesmo.
Pilatos dirigiu o olhar para o corpo rígido e sangrento do Rabi,
hesitando. O oficial que tinha executado aquela última parte da
flagelação lançou mão da espada, convencido de que o bom senso de
Pilatos se inclinaria para a solução que acabava de propor. Mas a água que
fora baldeada novamente sobre a cabeça e a nuca do prisioneiro
estimulou o precário estado de Jesus, que, lentamente, foi recobrando
os sentidos. A progressiva recuperação do Nazareno inclinou Pilatos para
continuar com o seu plano e, antes de se retirar do pátio, ordenou a
Civilis que cuidasse do Galileu, levando-o à sua presença assim que fosse
possível.
Eram onze da manhã. Os legionários soltaram as cordas e, com muita
dificuldade apoiaram as costas do prisioneiro contra a coluna que servira
para a flagelação. Um dos soldados colocou-se de cócoras atrás do
marco, procurando suster pelos ombros o corpo maltratado de Jesus.
O Gigante com as pernas estendidas no pavimento, respirava ainda
com dificuldade, acusando com esporádicos estremecimentos a
infinidade de pontos dolorosos. Como os tremores fossem mais intensos
e regulares, cheguei a temer que a febre pudesse ter-se apossado do
Mestre. Não me enganava...
Outro legionário, sempre sob a atenta vigilância de Civilis,
aproximou dos lábios do Rabi um segundo púcaro, obrigando-o a beber
nova dose de água com sal.
Algumas das feridas tinham começado a coagular e muitos dos fios
sanguinolentos a secar. As dos flancos, no entanto, continuavam a verter
sangue, que caía na laje, ao ritmo do movimento respiratório, cada vez
mais curto e rápido.
O centurião moveu a cabeça em sinal de desaprovação. Não era
preciso ser médico para perceber que o castigo fora desproporcionado,
ao ponto de temer pela vida do Mestre.
Antes que fosse demasiado tarde, desliguei o sistema ultra-sónico,
carregando no segundo prego. Ao activá-lo, o minicomputador alojado na
vara de Moisés deu passagem ao fluxo de raios infravermelhos,
dispostos para as análises de teletermografia dinâmica.
A detecção da temperatura cutânea à distância – base das nossas
experiências de teletermografia – realizou-se graças à propriedade da
pele humana, capaz de se comportar como um emissor natural da
radiação infravermelha ou RI. Tal como se sabe pela fórmula da lei de
Stephan-Boltzmann (W=eJT), a emissão é proporcional à temperatura
cutânea, e devido a que T se encontra elevada à quarta potência,
pequenas variações no seu valor provocam aumentos ou diminuições,
assinalados na emissão infravermelha. (W: energia emitida por unidade
de superfície; e: factor de emissão do corpo considerado; J: constante
de Stephan-Boltzmann; T: temperatura absoluta.) Em numerosas
experiências, iniciadas por Hardy, em 1934, fora possível comprovar que
a pele humana se comporta como um emissor infravermelho, semelhante
ao corpo negro e, consequentemente, não emite radiação infravermelha
reflectida de volta.
Como já referi anteriormente, os crótalos, ou lentes especiais de
contacto, permitiam-me dirigir o sistema de teletermografia para as
zonas que desejasse, podendo assim ordenar o máximo de explorações.
As imagens obtidas por este processo foram simplesmente dramáticas.
A maior parte do corpo de Jesus, banhado em sangue venoso, oferecia
uma tonalidade vermelho-pardacenta, enquanto os hematomas (muito
mais quentes) lançavam uma cor azul intensa.
O rastreio permitiu-nos observar como a rede arterial principal não
fora lesada, ainda que a vascularização cutânea e o sistema venoso
superficial (especialmente, em extensas zonas dorsais) apresentassem
numerosas destruições. Segundo os médicos do Projecto, na hipótesse
de que o Mestre tivesse vivido, a recuperação – com as técnicas e
fórmulas da época – ter-se-ia prolongado por um período de mais de três
meses.
A análise das retinas foi satisfatória. A sua cor amareloavermelhada
veio demonstrar que a visão estava correcta. Não se pôde
dizer o mesmo de algumas das articulações – em especial as da perna
esquerda (concavidade do poplíteo) e as dos ombros – seriamente
afectadas pelas bolas de chumbo e pelos astrágalos de carneiro. A
temperatura dérmica destas articulações, extraordinariamente
inflamadas, tinha aumentado o calor do corpo em três graus centígrados.
Quanto à elevada temperatura geral (que variava entre os trinta e
nove e os quarenta graus), veio ratificar a minha impressão pessoal:
Jesus estava com febre, que já não O abandonaria até à morte.
O rastreio minucioso do corpo do Galileu permitiu-nos distinguir,
* (
Este espectro de radiação infravermelha emitido pela pele humana
é amplo, com um pico máximo de intensidade fixado em 9,6q.)
O nosso dispositivo de teletermografia consistia, portanto, num
aparelho capaz de detectar, à distância, intensidades mínimas de
radiação infravermelha. Contava basicamente de um sistema óptico que
focava a RI num detector. Este era formado por substâncias
semicondutoras (principalmente SbIn e Ge-Hg), capazes de emitir um
mínimo sinal eléctrico sempre que um fotão infravermelho de um
intervalo de comprimento de onda determinado incidia na sua superfície.
Ainda que o detector fosse de tipo pontual, - capaz de detectar a RI
procedente de um único ponto geométrico -, Cavalo de Tróia conseguira
ampliar o seu raio de acção, mediante complexo sistema em leque,
formado por mini-espelhos rotativos e oscilantes. A alta velocidade com
que o leque varria permitia analisar por completo o corpo de Jesus,
várias vezes por segundo. Isto, por sua vez, possibilitava a obtenção de
imagens dinâmicas (de onde o nome de teletermografia dinâmica).
A seguir à emissão, o sinal eléctrico correspondente à presença de
fotões infravermelhos era ampliado e filtrado, sendo conduzido
posteriormente a um osciloscópio miniaturizado. Nele, graças à alta
voltagem existente e a um leque que varria sincronicamente com a do
detector, obtinha-se a imagem correspondente, que ficava gravada na
memória de cristal de titânio do computador. Naturalmente o nosso
teletermógrafo dispunha de uma escala de sensibilidade térmica (0,1,
0,2 graus centígrados, etc.) e de uma série de dispositivos técnicos
adicionais, que facilitam a medida de gradientes térmicos diferenciais
entre zonas do termograma (isotermas, análise linear, etc).
As imagens assim obtidas podiam ser de dois tipos: na escala de
cinzentos, muito adequadas para o estudo morfológico dos vasos; na
escala de cor, entre oito e dezasseis cores, muito útil para efectuar
medições térmicas diferenciais com precisão. Naturalmente, os dois
sistemas podiam ser usados de forma complementar. Cavalo de Tróia,
depois de numerosas provas, seleccionou os equipamentos AGA-661, bem
como uma associação do Barnes-Pyroscan e os do sistema CSF-IR-815,
como os mais adequados para a nossa missão. (N. Do M.)
pelo menos, 225 pontos quentes, correspondentes a outros tantos
golpes provocados pelos flagrum. As escoriações, hematomas e rasgões
tinham originado outras tantas áreas inflamatórias, geralmente
circulares, que marcavam com a sua elevada temperatura o trágico mapa
dos açoites. Foi este o guia da flagelação, pormenorizada pelo
computador central do módulo: costas e ombros: cinquenta e quatro
golpes; cintura e rins: vinte e nove; ventre: seis; peito: catorze; perna
direita (zona dorsal): dezoito; perna esquerda (dorsal): vinte e dois;
perna direita (zona dorsal): dezanove; perna esquerda (frontal) onze
golpes; braço direito (ambas as faces): catorze; orelhas, um golpe em
cada uma; testículos: dois; nádegas: catorze.
A estes danos teve de se acrescentar uma infinidade de vergões ou
arranhões, provocados pelas correias dos látegos. A imensa maioria
destas feridas tinha um comprimento de três centímetros, com a típica
forma de pesos de ginásio, consequência dos escorpiões das pontas:
bolas de metal e astrágalos. Em síntese, um castigo tão brutal que
nenhum dos especialistas do Projecto chegou alguma vez a compreender
como Aquele homem lhe pôde resistir.
- Já chega! Ponham-No de pé e vistam-No.
A voz do oficial-chefe ressoou, cheia de impaciência.
Enquanto os infantes levantavam Jesus, eu desliguei os circuitos da
vara de Moisés, guardando as lentes de contacto.
Foi preciso que dois legionários amparassem o maltratado corpo do
Mestre a recuperar a posição vertical. A extrema fraqueza fez que os
joelhos vergassem, obrigando os soldados a segurá-Lo pelas axilas.
Outros romanos, a uma ordem de Civilis, acudiram a ajudar os
companheiros, tentando que o Rabi não tombasse no lajedo. Ao ser
levantado, algumas das feridas – especialmente as dos flancos – voltaram
a sangrar em hborbotões e o sangue correu abundante pelo ventre,
virilhas, coxas e pernas, até cair nas lajes, Alguém apanhou a roupa e
depois de lhe vestir a túnica, colocou a manta sobre o ombro esquerdo,
envolvendo depois o tórax.
O roupão ficou firmemente preso ao peito e às costas de Jesus, de
modo que, juntamente com a túnica, fizeram as vezes de ligaduras. Os
romanos sabiam que era um excelente processo para estancar muitas das
feridas, impedindo assim parte das hemorragias. Senti um
estremecimento ao imaginar o que podia acontecer no momento em que o
Galileu fosse despojado da roupa. Se os coágulos ficavam presos ao
tecido – como seria natural -, arrancar a túnica significaria um novo e
doloroso suplício com a consequente abertura das chagas.
O sangue empapou imediatamente a túnica branca, que começou a
pingar pelas mangas e pela orla inferior, e o esponjoso tecido viu-se
tingido com inúmeros círculos avermelhados. Os soldados obrigaram o
Nazareno a dar alguns passos mas, quando mal tinha arrastado os pés
descalços pelo pavimento, as forças abandonaram-No, começando a cair.
A rápida intervenção dos legionários de Civilis evitou que tombasse.
O grupo interrogou o centurião com o olhar e este, desalentado,
indicou aos seus homens que O sentassem num dos bancos de madeira do
pórtico.
Civilis compreendeu que, de momento, era inútil levar o Mestre até
ao terraço onde o procurador devia estar à espera.
Teria sido necessário que vários infantes o acompanhassem e
amparassem.
Os tremores febris continuaram a sacudir o corpo do Nazareno que,
pouco a pouco, passo a passo, foi levado pelos romanos até um dos bancos
do lado oriental do pátio. Enquanto outros legionários tinham começado a
lavar o lajedo e a coluna onde se dera a flagelação. Os cavalos voltaram
para junto da fonte e os seus tratadores continuaram a escovar-lhes os
lombos com folhas de poejo, cujo cheiro – segundo a crença popular –
matava os piolhos.
O centurião tirou o capacete e, depois de meditar uns segundos,
afastou-se do pórtico, na direcção do túnel que conduzia ao pretório.
Devo indicar que, conforme observava o vacilante caminhar do Mestre
reparava num visível claudicar da perna esquerda, o que me levou à
conclusão de que a chicotada de Lucílio em plena curva tinha alterado a
articulação daquele joelho (isto viria a ser confirmado posteriormente.
Como já indiquei, pelo exame teletermográfico).
Por fim, sentaram Jesus num dos bancos, e, ao fazê-lo. Um ricto de
dor se desenhou novamente no Seu rosto. Era muito possível que aquele
gesto fosse provocado pelos golpes no cóccix ou nos rins. Ao apoiar-se
na madeira, o osso inferior da coluna e as zonas lombares deviam ter
acusado o contacto com assento e encosto, respectivamente.
Durante uns minutos, a atitude dos legionários foi calma, mesmo
correcta. Dois continuaram juntos do Nazareno, suspensos da Sua
recuperação, e os outros juntaram-se a um grupo que vociferava, num
dos cantos do pátio. Ao ver que o Mestre se encontrava um pouco mais
tranquilo, não pude resistir à tentação e aproximei-me também do
círculo de legionários que, sentados ou de cócoras, concentravam a
atenção numa das lajes do pavimento.
Ao debruçar-me sobre a cabeça dos soldados verifiquei que se
tratava de um jogo (uma espécie de três na raia, já descrito por
Plutarco). Usando as espadas, os membros da guarnição tinham riscado
um círculo numa daquelas lousas, gravando também, dentro do círculo,
uma série de toscas figuras e letras. Pude distinguir um B – que servia,
segundo parecia, para a chamada jogada do Rei ou de Basileus, em grego
é uma coroa real.
Todas estas figuras estavam separadas umas das outras por meio
de uma linha que ziguezagueava por dentro do círculo. Os participantes
serviam-se de quatro astrágalos, previamente marcados com letras e
números, que eram lançados para dentro do círculo, e cantando as
diferentes jogadas, segundo as figuras ou letras onde calhavam cair.
O jogo foi-se animando paulatinamente e vários dos legionários
cantaram jogadas como a de Alexandre, Dario e o Efebo. Por último, um
dos jogadores teve a fortuna de um dos ossinhos rolar até à coroa,
gritando jogada do rei, que equivalia ao nosso xeque-mate e portanto, ao
final do jogo.
Os soldados apanharam os astrágalos e o que tinha ganho,
influenciado certamente por aquele último golpe de sorte, reparou no
Galileu animando os camaradas a que continuassem o jogo, mas desta vez
com um rei de verdade... A ideia foi acolhida com entusiasmo e o grupo
dirigiu-se para o banco disposto a divertir-se à custa dAquele que se
proclamava rei dos malditos e odiados hebreus. A ausência de Civilis fez
hesitar os que escoltavam Jesus, mas depressa se juntaram às graçolas
e grosserias dos companheiros. De imediato aquela dezena de legionários
aborrecidos e ociosos fizeram alas, dando passagem a mais dois infantes.
Com ar marcial e contendo o riso, os dois soldados foram-se
aproximando do Nazareno, que tinha voltado a inclinar a cabeça,
suportando com o mutismo habitual o novo e amargo transe.
Um dos que tinha começado a desfilar em direcção ao prisioneiro
trazia nas mãos o que, num primeiro instante, me pareceu um cesto de
vime às avessas. Mas quando chegou junto do Galileu compreendi. Não se
tratava de um cesto, mas de um complicado capacete, entrançado, à base
de sarças espinhosas.
Tinha a forma de uma meia laranja, com um aro ou suporte na base,
formado por um feixe de juncos verdes, perfeitamente ligados por
outras fibras, igualmente de junco. Segundo pude ajuizar, o capacete
espinhoso fora entrançado com meia-dúzia de ramos muito flexíveis,
entre os quais se destacava um aterrorizador enxame de puas rectas e
em forma de bico de papagaio, com dimensões que oscilavam entre os
vinte milímetros e os seis centímetros, aproximadamente (1).
Era evidente que, enquanto o grosso dos legionários concentrava a
sua troça em Jesus, aqueles dois indivíduos tinham entrado nalgum dos
depósitos de lenha da fortaleza, ocupando-se na sinistra ideia de
entrançar uma coroa para o rei dos judeus.
A ideia foi recebida com risos e aplausos. O que trazia aquele
perigoso capacete de ramos delgados e pardacentos inclinou-se,
simulando uma reverência. Depois, levantou a coroa a meio metro acima
da cabeça do Mestre, baixando-a violentamente e enfiando-a na cabeça
do Rabi. Um alarido de satisfação escapou das gargantas da soldadesca,
abafando o gemido de Jesus que, ao contacto dos espinhos, levantou a
cabeça, batendo involuntariamente com a região occipital no muro a que
estava encostado o banco. O embate na parede mais fez enterrar as
puas na zona posterior do crânio.
O elmo, brutalmente posto, cobriu quase toda a cabeça do Mestre.
O arco a que se prendia a rede espinhosa ficou à altura da ponta do
nariz, dificultando, até, a visão do Rabi.
A aguda dor dos vinte ou trinta espinhos que perfuraram o couro
cabeludo, testa, têmporas, orelhas e parte das faces, abalou novamente
o Filho do Homem, que, com os olhos cerrados num movimento reflexo de
protecção, permaneceu durante alguns segundos com a boca
entreaberta, tentando inspirar. Ao ver aparecer seis grossos fios de
sangue pela testa e têmporas temi que as puas tivessem perfurado a veia
facial (que vem do queixo à zona ocular). Aproximei-me quanto pude do
rosto, mas não cheguei a descobrir espinho algum espetado no sector
que essa veia atravessa. Mas outros espinhos tinham perfurado a testa e
a região malar esquerda. Uma das puas, em forma de gancho, penetrara a
poucos centímetros da
* Num primeiro exame visual. Pensei identificar aquelas sarças com
as plantas chamadas Poterium spinosam, muito comum na Palestina e
usada habitualmente para acender o fogo, o que confirmava a hipótese
do doutor Ha Reubeni, director do Museu Botânico da Universidade
Hebraica de Jerusalém, desautorizando muitas outras teorias sobre a
origem da planta utilizada para o entrançado da coroa de espinhos,. A
mais conhecida e popular indicava a Ziziphus, ou Spina Christi (Palinurus
Aculeatus) como a sarça utilizada nesta coroação,. (N. Do M.)
sobrancelha esquerda (no músculo orbicular), dando lugar a uma
copiosa hemorragia, que cobriu rapidamente o arco supraciliar, inundando
de sangue o olho, face e barba.
A sangria indicava que os espinhos tinham afectado gravemente a
aponevrose epicraniana (situada logo abaixo do couro cabeludo). A
retracção dos vasos rasgados pelos espinhos nesta zona – extremamente
vascularizada – fez-se notar, como disse, de imediato. O sangue começou
a fluir em abundância, pingando constantemente da barba para o peito.
Mas os soldados, que ainda não estavam satisfeitos com este
bárbaro atentado, foram à procura do manto púrpura, que tinha ficado
no lajedo, pondo-lho sobre os ombros. Um outro legionário meteu-lhe
uma cana nas mãos e, ajoelhando-se, exclamou entre o regozijo geral: -
Salve, rei dos Judeus! As reverências, imprecações, cuspidelas e
pontapés nas canelas do Nazareno eram sempre mais frequentes,
divertindo cada vez mais a turbamulta. Um dos soldados pediu passagem
e, pondo as nádegas a pouco centímetros do rosto de Jesus, levantou a
túnica e aliviou-se dos gases do intestino com muito ruído, provocando
novas e estridentes gargalhadas. O divertimento da soldadesca viu-se
subitamente interrompido pela presença do gigantesco Lucílio sem
dúvida atraído pelo alvoroço dos seus homens. Observou a cena em
silêncio e, com um sorriso de cumplicidade, pôs-se na frente do Mestre.
Os legionários, intrigados, calaram-se e levantando o fraldelim, o
centurião urinou para as pernas, peito e rosto de Jesus de Nazaré.
A nova injúria arrastou os romanos para uma estrepitosa gargalhada
que se prolongaria, mesmo depois de o oficial ter acabado. O meu
coração sentiu-se tão oprimido e ferido como se aquelas ofensas me
tivessem sido feitas pessoalmente.
Abatido, encostei-me à parede do pórtico, com um único desejo: ver
aparecer Civilis.
Desta vez os meus desejos viram-se realizados. O comandante das
forças legionárias fez a sua entrada no pátio central da Fortaleza
Antónia no momento em que um daqueles desalmados arrancava a cana
das mãos do Nazareno e lhe vibrava um forte golpe no elmo de espinhos.
Os risos e os legionários desapareceram imediatamente, ante a súbita
chegada de Civilis.
Quando o centurião interrogou a escolta sobre aquele novo escárnio,
os soldados encolheram os ombros, responsabilizando os companheiros.
Mas estes tinham-se dispersado por entre as colunas e o pátio.
Visivelmente aborrecido com a indisciplina dos seus homens, o
oficial ordenou aos infantes que pusessem de pé o condenado e que o
seguissem. Assim o fizeram e Jesus de Nazaré, um pouco mais
recomposto, embora sempre com calafrios constantes, começou a
caminhar para o túnel, arrastando praticamente a perna esquerda.
A seu lado, e atentos ao Galileu, avançaram também mais três
soldados, que já não se separariam do Rabi até ao Seu regresso ao lugar
da flagelação.
Eram onze horas e quinze minutos da manhã...
Ao sair do pretório, o Sol, cada vez mais alto, iluminou a alta figura
de Jesus. Ao vê-lo, a multidão que esperava em frente das escadarias
deixou escapar um murmúrio, inevitavelmente surpreendida pelo terrível
aspecto do Mestre.
A escolta parou a meio do terraço, à esquerda da cadeira onde
Pilatos aguardava. Este, ao ver o capacete de espinhos no crânio do
Mestre, agitou-se, nervoso e indignado, olhou para Civilis, interrogandoo,
enquanto apontava com o dedo indicador a cabeça do Rabi. Ignoro o
que o centurião lhe pôde dizer. A minha atenção ficara presa no Galileu.
Ao parar em frente da multidão, Jesus – curvado e com os dedos
entrelaçados, tentando dominar assim os grandes tremores que O
sacudiamsentiu imediatamente a cálida presença do Sol.
Muito lentamente, como procurando absorver a doce carícia dos
seus raios, foi levantando o rosto, até olhar de frente o disco solar.
Durante escassos segundos, as profúndas olheiras e a catarata de
sangue que lhe escondia a cara ficaram perfeitamente visíveis à
multidão. Mas, ao levantar a cabeça, as puas foram contra a base do
pescoço, perfurando-lhe novamente a nuca, e a dor obrigou-o a baixar o
rosto.
Paralisado pela trágica transformação do Mestre, João Zebedeu
reagiu por fim e, soltando o braço de José de Arimateia, correu para
Jesus, ajoelhando-se e chorando aos pés do Rabi. Os legionários
interrogaram o centurião com o olhar, dispostos a afastar o jovem amigo
do Prisioneiro, mas Civilis, estendendo a mão esquerda, fez sinal para que
o deixassem.
Durante uns minutos, tanto Pilatos como a multidão ficaram
surpreendidos pelo choro do rapaz, e um respeitoso silêncio reinou no
pátio.
Por duas vezes o Mestre quis inclinar-se para João, tentando
aproximar as mãos trémulas e ensanguentadas do discípulo mais amado,
mas a coroa de espinhos e a rigidez das ataduras impediram-no.
O novo gesto de valentia do discípulo e o semblante destroçado do
Nazareno comoveram sem dúvida o procurador.
Levantando-se do cadeirão, deu breves passos para o alto da
escadaria. Depois, apontando Jesus e sem perder de vista Caifás e os
saduceus, exclamou, tentando despertar a piedade dos acusadores:
- Aqui tendes o Homem... De novo vos declaro que não O julgo culpado de crime algum... Depois
de O castigar, quero dar-Lhe a liberdade. Mais uma vez Pilatos se enganava. E embora a multidão
não se atrevesse a replicar, o sumo sacerdote e os seus homens, esses sim, responderam,
entoando o conhecido crucifica-o! Pouco a pouco, a multidão foi-se juntando às manifestações
dos homens do Sinédrio, fazendo coro impiedosamente: - Crucifica-o! Crucifica-o! Desiludido,
Pilatos regressou ao tribunal e esperou que a multidão serenasse.
O vento, cada vez mais quente e desagradável, começava a levantar
grandes remoinhos de pó que eram arrastados para oriente fustigando
sempre com maior dureza a ala norte da Torre Antónia. Civilis
apercebeu-se imediatamente da alteração atmosférica e, depois de
verificar como as sentinelas de atalaia nos torreões da muralha
procuravam refugiar-se do vento em rajada, olhou-me fixamente,
recordando-me com o seu rosto grave o meu presságio. Com um
movimento de cabeça, assenti.
Mas o nosso diálogo silencioso viu-se interrompido pela voz do
procurador. Uma vez serenada a turba, Pilatos – a mão direita segurando
a peruca, que o siroco ameaçava – falou aos hebreus, com um tom
inconfundível de desalento nas suas palavras. - Reconheço perfeitamente
que vos haveis decidido pela morte deste homem. Mas que fez Ele para
merecer a condenação? Quem quer declarar o Seu crime? Caifás,
congestionado pela ira, subiu as escadas e, depois de cuspir em Jesus,
encarou o governador, gritando-lhe:
- Temos uma lei sagrada pela qual Este homem tem de morrer.
Ele próprio declarou ser o Filho de Deus... Bendito seja o Seu
nome!Voltando a cabeça para o prisioneiro cabisbaixo, tornou a cuspir-
Lhe. O procurador fitou Jesus com um súbito medo. O sangue continuava
a pingar-Lhe da testa, manchando o manto de João, que, ajoelhado e
abraçado aos pés do Mestre, parecia não prestar atenção alguma ao que
estava a acontecer.
Caifás regressou com passo decidido para junto da multidão e
Pilatos, I com a face pálida e o cabelo em desordem, bateu nos braços do
cadeirão com ambas as palmas, ordenando a Civilis que levasse o Galileu
para a sua residência. Os soldados forçaram o Rabi a dar meia volta,
novamente levando-o para o átrio. Obedecendo a um impulso, baixei-me
para João, animando-o a que se levantasse e parasse com o seu choro.
Depois, envolvendo-lhe os ombros com o braço e encostando-lhe a
cara ao meu peito, levei-o para o pretório. Pilatos, com as mãos atrás das
costas, dava curtos passos pelo centro do vesuôulo. Entretando, a pouca
distância da porta, Civilis e os soldados aguardavam. Ao ver-me, o
procurador interrompeu os seus nervosos passos e interrogou-me em voz
baixa, como se temesse que o pudessem ouvir: - Jasão, acreditas
realmente que este Galileu possa ser um deus que tenha descido à Terra
como as divindades do Olimpo?
Os olhos claros do romano brilhavam e agitavam-se, invadidos por
um medo supersticioso e, assim me parecia, cada vez mais profundo. Mas
Pilatos não esperou pela minha resposta.
Depois de alisar o postiço deu meia volta, aproximando-se do
Mestre, e em voz trémula perguntou: - De onde vens?... Quem és?
Porque dizem que és Filho de Deus? O Nazareno levantou levemente o
rosto, lançado um olhar cheio de piedade àquele juiz fraco e encurralado
pelas suas próprias dúvidas. Mas os lábios trémulos de Jesus não
chegaram a abrir-se.
Pilatos, cada vez mais inquieto, insistiu:
- Negas-Te então a responder? Não compreendes que ainda tenho
poder bastante para Te libertar ou Te crucificar? Ao escutar as
ameaçadoras advertências, o Galileu respondeu por fim num fio de voz:
- Não terias poder sobre Mim sem a permissão de cima...
A extrema debilidade do Mestre fez que as Suas palavras
chegassem muito abafadas aos ouvidos do procurador. Este,
aproximando-se o mais que pôde do sangue coagulado agarrado à barba e
ao bigode do Mestre, pediu-Lhe que repetisse.
- Que dizes?
- Não podes exercer autoridade alguma sobre o Filho do
Homemacrescentou Jesus, fazendo um esforço – a não ser que o Pai
Celestial o consinta...
Pilatos recuou, com os olhos muito abertos de espanto. Mas o
Nazareno não tinha terminado. .. Mas tu não és totalmente culpado, uma
vez que ignoras o evangelho. Aquele que Me traiu e a ti Me entregou
cometeu o maior dos pecados. O romano sabia de sobra a quem se
referia o prisioneiro e a inesperada confissão, libertando, em parte,
Pilatos da sua responsabilidade, pareceu aliviá-lo muito. O governador
esqueceu as suas perguntas e, esboçando um sorriso de agradecimento,
voltou ao terraço. A escolta preparou-se para o seguir mas o Nazareno,
dirigindo-se a João, pousou a mão na cabeça do discípulo, fazendo-lhe um
pedido:
- João, nada podes fazer por mim... Vai e traz minha mãe, para que
me veja antes de morrer.
Civilis também escutou aquelas dolorosas palavras e, tendo a
intuição do desenlace, animou João Zebedeu para que cumprisse a última
vontade do Galileu sem perda de tempo. Soltei o rapaz e, dissimulando a
minha angústia, assenti com a cabeça, ratificando a nobre intenção do
oficial. João atravessou o umbral do pretório, perdendo-se entre a
multidão. Previamente, o oficial ordenou a um dos seus homens que
acompanhasse o apóstolo até às portas da muralha, ajudando-o a
transpô-la sem dificuldades. De volta ao terraço, Pilatos – muito mais
animado pelas palavras do Prisioneiro – tinha começado a falar à
multidão.
O tom da sua voz denotava o firme desejo de libertar Jesus. O
rosto de José de Arimateia voltou a iluminar-se pela esperança e, até
Judas, que fora um dos poucos que não se unira aos gritos de
crucificação, pareceu aliviado pela atitude resoluta do procurador. ..
Estou convencido de que este Homem – anunciou Pilatos apenas cometeu
falta quanto à religião, pelo que deve ser preso e submetido às vossas
próprias leis... Porque esperais que O condene à morte, por estar em
conflito com as vossas tradições?
A inesperada mudança do governador de Roma exasperou os ânimos
dos saduceus, que formaram um círculo, discutindo acaloradamente.
Pilatos, extremamente satisfeito com a irritação geral dos saduceus,
sentou-se no cadeirão transportável, dando uma piscadela de olho a
Civilis. Mas, antes que o procurador pudesse saborear aquele efémero
triunfo, Caifás, pálido e com os olhos injectados de sangue, voltou a
subir as escadas e, ameaçando Pilatos com a mão esquerda, atirou-lhe à
queima-roupa: - Se soltas esse Homem, não és amigo de César...
A cólera do sumo sacerdote era tal que o seu ventre volumoso
começou a subir e a descer, agitado pela respiração. À sentença do sumo
sacerdote Pilatos empalideceu.
.. Tentarei por todos os meios – rematou o astuto genro de Anás –
que o imperador tenha conhecimento disto.
Conhecendo o procurador como conhecia a vaga de denúncias,
prisões e execuções que inundava naqueles últimos meses o império, o
fulminante ultimato de Caifás acabou por desarmá-lo. Sem dúvida
alguma, foi um golpe baixo. Tibério, e mais concretamente o temido
Sejano, já haviam tido notícia das duas revoltas provocadas pela
intransigente posição de Pilatos (uma, motivada pela colocação dos
emblemas e insígnias do imperador no centro de Jerusalém, e a segunda
pela expropriação ilegal do tesouro do Templo para a construção de um
aqueduto) e ambos os acontecimentos tinham valido admoestações ao
procurador. Se o inflexível general da guarda pretoriana, que ocupava o
lugar de César, voltasse a receber notícias inquietantes sobre a conduta
do seu homem de confiança naquela província, a carreira política de
Pilatos podia ver-se seriamente ameaçada. De facto, pouco tempo depois
da morte de Jesus de Nazaré, o procurador cometeu novo erro político
que precipitou o seu fim.
Além disso, o sumo sacerdote tinha-se referido intencionalmente ao
seu título de amigo de César o que abateu ainda mais a vontade do juiz
romano. (Embora Pôncio Pilatos, sem dúvida alguma, fosse conhecido e
amigo de Tibério, a alusão de Caifás era explosiva.) O Chefe dos
sacerdotes sabia que o governador era membro da ordem equestre,
ostentando o título de aeques illustrior e a dignidade de amigo de César
quer dizer, uma distinção muito especial. Era precisamente aquele
privilégio que tornava ainda mais delicada a situação de Pilatos perante a
cúpula do Império.
O Sinédrio tinha meios para fazer chegar a Sejano e a Tibério, na
ilha de Capri, as suas queixas sobre o que consideram uma nova
irregularidade do procurador, e Pilatos sabia-o.
Em minha opinião, esta astuta manobra final desmoralizou o romano,
que não possuindo um rigoroso sentido de justiça e sem tempo para
reflectir friamente, acabou por ceder. Confuso e fora de si levantou-se
da cadeira curul e, apontando Jesus, disse sarcasticamente:
- Aqui está O vosso rei!
Caifás e os juízes hebreus sabiam que acabavam de ferir de morte
os propósitos do romano e, animando novamente a multidão, responderam
a Pilatos:
- Acaba com ele!... Crucifica-o!... Crucifica-o! O governador deixouse
cair na cadeira e, praticamente sem forças, exclamou:
* Poucos anos depois da morte de Cristo. Numerosos samaritanos se
uniram em torno de um pretenso messias, que lhes prometeu descobrir
os vasos sagrados enterrados por Moisés num dos montes de Samaria.
Pilatos soube desta manifestação popular no monte Garizim e cercando
com as suas tropas os samaritanos, carregou sobre eles, provocando
grande mortandade. Samaritanos e judeus dirigiram-se então a Vitélio,
supremo governador da província da Síria, acusando Pilatos do horrível
assassínio de milhares de samaritanos. Vitélio não tinha autoridade para
julgar o procurador de Israel e enviou-o a Roma, para que comparecesse
perante o imperador. Mas, durante a viagem, Tibério morreu. Assumindo
o império Caio, aliás Caligula. Este, ao conhecer os factos, desterrou
Pilatos e a familia para as Gálias, onde, segundo parece, morreu.
(Algumas tradições apontam para o facto de Pilatos ter acabado por
se refugiar na que hoje conhecemos como Lausana, na Suíça, suicidandose.)
(N. Do M.)
- Vou crucificar O vosso rei?
Um dos saduceus subiu para o segundo degrau e gritou, apontando
para a fachada do pretório:
- Só César é o nosso rei!
Pilatos tinha consciência de que aquela afirmação era hipócrita, mas
não se atreveu a replicar. Chamou Civilis e, depois de trocar algumas
frases com o primeiro-oficial, anunciou aos judeus a sua intenção de
soltar Barrabás. O populacho aplaudiu a decisão do governador, mas
Pilatos, alheio a este reconhecimento, pediu que lhe trouxessem uma
bacia com água. Ao ouvir Pilatos, o centurião manifestou a sua
estranheza. Mas obedeceu ordenando a um dos legionários que se
apressasse a cumprir os desejos do procurador. Creio que, salvo Pilatos e
eu, nenhum dos presentes sabe qual a intenção daquele pedido do
romano. Com a cabeça inclinada e cheio de febre, Jesus assistiu em
silêncio àquela última parte do combate dialéctico entre os judeus e o
representante de César.
Quando o soldado voltou ao terraço, trazendo uma grande bacia de
barro, transbordante de água, pôs-se na frente de Pilatos e esperou. O
procurador introduziu as mãos gorduchas no recipiente, esfregando-as
durante uns segundos. Depois, perante o olhar atónito do centurião, dos
legionários e da multidão, ordenou ao soldado que se retirasse.
Levantando os braços acima da cabeça, gritou, de modo que todos o
pudessem ouvir com clareza: - Estou inocente do sangue deste Homem!
Estais decididos a que morra? Pois bem pela minha parte, não O
considero culpado...
A multidão voltou a aplaudir, ao mesmo tempo que se ouvia a voz de
um dos homens do Sinédrio:
- Que o Seu sangue caia sobre nós e os nossos filhos! Como um só
homem, a multidão fez coro com a trágica sentença, ignorante das
gravíssimas horas que a Cidade Santa viveria quarenta anos depois e em
que, justamente, o sangue de muitos daqueles hebreus e o de seus filhos
seria derramado pelas legiões de Tito.
Embora, à primeira vista, a autojustificação do saduceu e do
populacho pudesse parecer uma simples manifestação emocional própria
daqueles momentos de ódio e de cegueira, a verdade é que a afirmação
encerrava um significado muito mais profundo e transcendente. Os
juízes – ignoro se acontecia o mesmo com aquela massa humana, inculta e
vociferante – conheciam muito bem o que dizia a lei mosaica a este
respeito. A Misná, na sua Ordem Quarta, especifica textualmente que
em processos de pena capital, o sangue do réu e o sangue de toda a sua
descendência penderá sobre a falsa testemunha até ao fim do mundo.
Outra das tradições judaicas afirma também que todo aquele que
destruir uma só vida em Israel, é considerado pela Escritura como se
tivesse destruído todo um mundo e todo aquele que deixar subsistir uma
pessoa em Israel, a Escritura o considerará como se deixasse subsistir
todo um mundo.
Portanto, o Sinédrio estava plenamente consciente do valor e da
gravidade da sua sentença, pedindo que o sangue de Jesus caísse sobre
eles e os descendentes.
Pilatos enxugou as mãos na orla do manto e, virando as costas a
Caifás e à multidão, saudou o Nazareno com o braço levantado. Logo a
seguir, ao mesmo tempo que se encaminhava para a porta do Pretório,
voltou o rosto para Civilis, dizendo-lhe:
- Fica a teu cargo.
E os legionários, com o centurião à frente, seguiram as passadas do
procurador, retirando-se do terraço.
A sorte estava lançada.
A partir daquele momento os factos sucederam-se no meio de
grande confusão. Por um lado, perdi de vista João Zebedeu e José de
Arimateia e, como era natural, todos os adeptos e simpatizantes do
Mestre. Só depois de abandonar a Fortaleza Antónia conseguiria
encontrar-me de novo com José e animá-lo a que acompanhasse de perto
a decisiva visita de Judas Iscariotes à sede do Sinédrio. E disse decisiva
porque, como terei oportunidade de relatar, as circunstâncias que
cercaram e encurralaram o traidor foram mais complexas e extensas do
que aquilo que nos levam a crer os evangelistas.
A escolta que rodeava Jesus seguiu o caminho do túnel,
desembocando novamente no pátio com pórtico. Para minha surpresa
Pilatos estava presente quando os legionários pararam junto da fonte. O
procurador estava com pressa de acabar com aquele aborrecido assunto
e apressou Civilis para que Jesus fosse transferido sem demora para o
local da execução. Segundo parecia, e depois da derrota pública sofrida
pelo governador diante dos dignitários do Sinédrio, o seu propósito de
regressar a Cesareia quase se convertera numa obsessão.
Pilatos estava consciente de ter cometido um atropelo e nem sequer
teve coragem para encarar Jesus.
O centurião trocou impressões com vários dos oficiais e, finalmente,
foi nomeado um tal Longino, soldado veterano, natural de Túsculo, cidade
encravada nos montes Albanos, conterrâneo e amigo daquele que fora
senador do imperador Augusto, Sulpicius Quirinius.
Com ele combatera, precisamente na guerra contra os
Homonadenses, uma tribo rebelde que habitava a cordilheira do Tauro,
na actual Ásia Menor. A julgar pelos seus modos, era homem de poucas
palavras, de olhar afectuoso e directo e bom conhecedor das gentes e
da terra. Naquele momento – graças à sua coragem e provada lealdade –
fora promovido ao posto de Quartus princips posterior ou centurião da
segunda centúria, do segundo manípulo da quarta coorte. Pela sua idade –
possivelmente andaria pelos cinquenta e cinco, ou sessenta anosdevia
estar prestes a deixar o serviço. Nos cabelos viam-se numerosas
* O famoso governador Cirino” como é conhecido através dos
escritos romanos, desempenhou um papel importante às ordens de
Augusto, sendo o responsável pelos dois censos efectuados durante o
mandato daquele César na então província romana da Síria. O primeiro
destes censos teve lugar entre os anos 10 e 7 antes de Cristo, e foi,
precisamente, o que levou José e Maria a Belém. O segundo censo deu-se
entre os anos 6 e 7 da nossa Era. Nesta segunda ocasião, Sulpicius
Quirinius ou Cirino” foi enviado por Roma na companhia de Copónio,
primeiro procurador da Judeia. (N. Do M. )
cãs e no pómulo e sobrancelha uma funda cicatriz, fruto, sem
dúvida, de alguma das batalhas que travara desde a juventude.
Civilis, em minha opinião, acertou ao escolher Longino como capitão e
responsável pela escolta que devia acompanhar o Mestre até ao Gólgota.
Tremi por momentos, receando que a missão fosse atribuída, por
exemplo, ao cruel Lucilio, aliás Cedo alteram.
No total foram nomeados quatro legionários e um optio, ou oficial
subalterno, como patrulha encarregue da custódia e posterior execução.
Foi grande a minha surpresa ao verificar que o optio ou lugar-tenente do
Longino era precisamente Arsenius, o romano que dirigira a prisão do
Nazareno no monte das Oliveiras.
Tudo parecia resolvido. Longino encarregou um dos seus homens de
medir a envergadura de Jesus, enquanto outro se encaminhou para o
posto de guarda da entrada ocidental, em busca de um objecto cujo
nome não consegui ouvir. Pilatos estava já preparado para se retirar
quando Civilis, depois de consultar o responsável pela escolta, lhe sugeriu
alguma coisa que, em princípio, não estava prevista: porque não
aproveitar a oportunidade para crucificar também os dois terroristas,
companheiros de Barrabás? O procurador hesitou. Segundo parecia, a
execução daqueles assassinos fora marcada inicialmente para os dias
seguintes à celebração da Páscoa.
Pilatos fez uma careta de desagrado, mas o centurião-chefe
insistiu, fazendo-lhe ver que – tal como as coisas estavam – a crucifixão
colectiva simplificaria os riscos que sempre vinham com a morte de
zelotas. Boa parte do povo judeu protegia e encorajava os
revolucionários e era muito possível que a sua condenação provocasse
alteração da ordem pública.
Depois da implacável insistência dos sacerdotes na promulgação da
pena capital para o Galileu, era de duvidar que se registassem protestos
se a execução dos membros do movimento independentista se realizasse
ao mesmo tempo que a do pretenso rei dos Judeus. O procurador
escutou em silêncio as razões do comandante e, movendo as mãos
displicentemente, deu a entender a Civilis que tinha a sua aprovação, mas
que actuasse com rapidez.
Com um simples movimento de cabeça, o centurião indicou a
Arsenius que tratasse da transferência dos Zelotas. Naquele momento,
Pilatos reparou na minha presença e, enquanto os oficiais esperavam a
chegada dos novos réus, o gordo procurador chamou-me de parte,
dizendo-me:
- Jasão, que diz a tua ciência de tudo isto? Não tive tempo para te
perguntar com vagar sobre esse augúrio que prognosticaste para hoje...
Fala-me com clareza... Ordeno-te.
A curiosidade e o medo consumiam Pilatos em partes iguais. E assim
não tive outro remédio senão improvisar.
- Ontem, à meia-noite – menti-lhe -, quando me encontrava no monte
das Oliveiras, pressenti qualquer coisa... E depois de procurar um lugar
puro, um augurale, voltei-me para o Setentrião, traçando na terra com o
meu cajado o templum ou quadrado. Depois, como sabes, peguei neste
lituus – indicando-lhe a minha vara de Moisés – e fiz o ritual da descrição
das regiões. Uma vez situado, implorei aos deuses um sinál...
Contendo a respiração, Pilatos animou-me a que prosseguisse.
O céu, estimado procurador, tinha-se tornado sereno e
transparente como os olhos de uma deusa. Felizmente – voltei a mentirlhe.
O vento tinha parado. Tudo parecia pressagiar uma resposta... E
subitamente, as infernais aves inferae surgiram à minha esquerda. O seu
voo rasante e a sua direcção foram determinantes...

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