quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Sendo permitida a poligamia, a esposa tinha de suportar a presença
da ou das concubinas.
Quanto ao divórcio, o direito estava única e exclusivamente da
banda do marido. Isto dava lugar, logicamente, a constantes abusos.
Naturalmente, do ponto de vista religioso, a mulher israelita também não
estava equiparada ao homem. Via-se submetida a todas as prescrições da
Tora e ao rigor das leis civis e penais – incluída a pena de morte – não
tendo acesso, em contrapartida, a nenhum tipo de ensino religioso. Mais:
uma sentença de R. Eliezer dizia que quem ensina a Tora (a lei) a sua
filha, ensina-lhe a libertinagem. Este eminente doutor – que viveu até ao
ano 90 depois de Cristo – dizia também: Mais vale queimar a Tora que
transmiti-la às mulheres.
Na casa, a mulher não era contada no número das pessoas
convidadas – tal como tivera oportunidade de verificar no banquete
oferecido por Simão, o Leproso – e também não tinha o direito de
prestar testemunho num julgamento. Simplesmente, era considerada
como mentirosa... por natureza. Era muito significativo que o nascimento
de um varão fosse motivo de alegria, e o de uma menina se visse
acompanhada pela indiferença, mesmo pela tristeza. Os escritos
rabínicos Qiddushin (82 b) e até o Nidda (31 b) afirmavam: Desgraçado
daquele cujos filhos são meninas! Só conhecendo este deplorável quadro
social em que tão mal vivia a mulher judia, alguém podia entender na sua
justa medida a coragem de Jesus ao rodear-se de mulheres, conversar
com elas e instruí-las e tratá-las como os homens. Fiquei muito
surpreendido ao verificar que o Rabi da Galileia não só tinha escolhido
doze varões, como também procurara rodear-se de outro grupo de
mulheres (cheguei a contar dez), que seguiam o Mestre para onde ele ia.
Este facto, como outros que pouco a pouco iria descobrindo não fora
incluído com clareza nos Evangelhos canónicos que conhecemos.
Tal como me anunciara Eliseu na última ligação auditiva, aquela
manhã de domingo, 2 de Abril, amanheceu enevoada. Uma chuva ligeira
refrescou sensivelmente a temperatura, dando um brilho especial às
campinas e perfumando Betânia com um agradável cheiro a terra
molhada.
Assim que me foi possível, fui a casa de Simão. O Mestre,
madrugador, chamara os Seus homens e mulheres, com eles se reunindo
no jardim. Ali, o Gigante – que apresentava um semblante mais sério que
no dia anterior – deu-lhes imstruções concretas, em relação à próxima
celebração da Páscoa. Insistiu especialmente em que não levassem a cabo
manifestação pública alguma enquanto permanecessem dentro da Cidade
Santa e que, principalmente, não saíssem de junto dEle. Uma vez mais, os
discípulos associaram aquelas medidas de precaução à ordem de captura
ditada pelo Sinédrio. Jesus, como julgo ter mencionado, sabia que alguns
dos Seus homens andavam permanentemente armados. No entanto, não
fez alusão alguma às suas espadas. Quando Jesus Cristo começou a
fazer uma recapitulação do que fora o Seu ministério, desde a Sua
ordenação em Cafarnaum, até aquele dia, observei como Judas
Iscariotes, sem prestar atenção, dedicava todos os seus cuidados à
conferência da bolsa comum. Pouco depois, abandonou o grupo, entrando
em casa. Naquela mesma manhã, muito de madrugada, David Zebedeu lhe
entregara os fundos conseguidos pela venda do acampamento instalado
semanas antes na cidade de Péla, na margem oriental do Jordão, a umas
quarenta milhas do mar Morto.
A bolsa comum devia ser suficientemente importante para que
Judas a confiasse naquela mesma manhã ao velho anfitrião.
Segundo parecia, a iminente entrada de Jesus em Jerusalém não
aconselhava que o administrador do grupo levasse consigo tanto dinheiro.
Na realidade, era naquela data da Páscoa que os Israelitas eram
obrigados por uma antiquíssima lei a satisfazer aquilo a que chamava o
segundo dízimo. Por outras palavras; uma vez postas de lado a
importância da oferenda que se fazia no templo e o primeiro dízimo (1),
cada hebreu tinha a obrigação de consumir ou gastar em Jerusalém –
isto era imprescindível – o citado segundo dízimo, de acordo com as suas
possibilidades económicas. Se o judeu vivia longe da Cidade Santa podia
converter o segundo dízimo em dinheiro e levá-lo para Jerusalém, onde
tinha a obrigação de o gastar em alimentos e bebidas, precisamente
durante a festa da Páscoa.
(A Misná dedica cinco capítulos ao que se pode e ao que não se pode
fazer com o referido imposto.)
Judas conhecia perfeitamente esta obrigação e, provavelmente, ao
fazer o balanço dos fundos gerais, tinha separado já o dinheiro que devia
ser gasto em Jerusalém, na acepção de segundo dízimo. No entanto, uma
vez que se punha de parte e se entregava ao sacerdote a oferenda
(teruma gedola) que, segundo a disposição rabínica, devia ser, em média,
cinquenta avos da produção obtida no campo do restante tinha de pôr de
lado um dízimo, que era destinado aos levitas (guardas do Templo), e que
era chamado primeiro dízimo ou dos dízimo dos levitas. O Pentateuco
refere-o em várias passagens: Toda a décima parte da terra, tanto das
sementes da terra como dos frutos da árvores, é do Senhor, é coisa
sagrada ao Senhor. (Levítico, 27-30). E dou como herança aos filhos de
Levi todos os dízimos pelo serviço que prestam, pelo serviço ao
tabermáculo da reunião. (Números, 18 21). A Misná dedica mais cinco
capítulos aos pormenores deste primeiro dízimo,: Que frutos estão
sujeitos ao dízimo: em que momento tem de fazer-se; em que casos
podem comer-se frutos sem ter separado o dízimo e aplicação do dízimo
em casos de replantio, venda, aproveitamento do subproduto e plantas
livres da obrigação do pagamento do dízimo. (N. Do M.)
o facto de o deixar nas mãos de Simão dava a entender que Jesus e
os Seus homens tardariam ainda uns dias antes de ida a Jerusalém para
celebrar a tradicional ceia pascal. Embora se tratasse apenas de uma
presunção muito pessoal – que nunca tentei averiguá-la – é possível que
Jesus tivesse já trocado impressões com Judas, como responsável pelo
dinheiro, marcando mesmo o dia para o referido rito.
Ao visitar Jerusalém nos dias seguintes, pude aperceber-me da
grande importância que tinha para os residentes da Cidade Santa a
presença daqueles milhares de peregrinos – chegados de todas as
províncias e do estrangeiro – e, principalmente, o benefício económico
que para eles representava o facto de cada hebreu ter de gastar
durante a Páscoa uma parte dos seus ganhos anuais. Um dinheiro que era
sempre considerável, se tivermos em consideração que esse segundo
dízimo era retirado dos ganhos globais das vendas do gado, dos pomares
e dos vinhedos de quatro anos, além dos trabalhos artesanais. O
Nazareno terminou o seu colóquio prometendo-lhes que ainda lhes
deixaria muitas instruções e lições... antes de voltar ao Pai. Porém os
discípulos acabaram por não compreender o que ele dizia.
No final, nenhum se atreveu a fazer uma só pergunta.
Uma vez concluída a conferência, chamando de parte Lázaro, que me
acompanhara a casa de Simão, Cristo recomendou-lhe que fizesse os
preparativos necessários para deixar Betânia.
Jesus, o ressuscitado e todos nós sabíamos que – depois do milagre
– o Sinédrio discutira e chegara à conclusão de que Lázaro devia ser
também eliminado. De que servia prender e executar o Galileu se ficava
com vida o seu amigo, testemunha de excepção do milagroso
acontecimento? Este pensamento – não destituído de lógica – levara os
sacerdotes a planear uma acção paralela, que culminasse com a prisão de
Lázaro.
O meu amigo obedeceu e uns dias depois fugia para a povoação de
Filadelfia, na zona mais oriental da fértil Pereia. Quando os guardas do
Sinédrio vieram para o prender, só Maria, Marta e os seus criados
estavam em casa. Na parte restante da manhã – até à uma e meia da
tarde, altura em que se deu ordem de partida para Jerusalém -, o Rabi
preferiu retirar-se para a zona mais frondosa do jardim de Simão. Na
mesma noite, de regresso a Betânia, tive a coragem de lhe perguntar
porque escolhera aquela maneira de entrar na cidade Santa. O Mestre,
perfeito conhecedor das Escrituras, respondeu abertamente: Assim era
preciso, para que se cumprissem as profecias...
Efectivamente, tanto no Génese (29, 11) como em Zacarias (9, 9 se
diz que o Messias libertador de Jerusalém viria do monte das Oliveiras,
montado num burrinho. Zacarias, concretamente, disse: Alegrai-vos
muito, ó filha do Sião! Gritai, ó filha de Jerusalém!, Olhai, o vosso rei
veio até vós. É justo e traz a salvação. Vem como o mais humilde,
sentado num burrinho, a cria de um burro.
Pela hora sexta (o meio-dia), depois de um frugal almoço, Jesus –
que tinha recuperado o excelente bom humor do dia anterior – pediu a
Pedro e a João que seguissem à frente até à povoação de Betfagé. -
Quando chegardes à encruzilhada dos caminhos – disse-lhesencontrareis
presa a cria de um asno.
Soltai o burrinho e trazei-o.
- Mas, Senhor – argumentou Pedro com razão -, e que devemos dizer
ao dono?
- Se alguém vos perguntar a razão por que o fazeis, dizei
simplesmente: O Mestre tem necessidade dele. Pedro, muito habituado
já a estas situações desconcertantes, encolheu os ombros e partiu para
Betfagé. O jovem João – um rapazito silencioso, quase taciturno (deveria
andar pelos dezasseis ou dezassete anos), magro como um caniço e de
olhos pretos como o carvão – permaneceu ainda uns instantes
contemplando o seu ídolo. No seu olhar adivinhava-se a surpresa e um
certo temor.
Que estava planeando o Mestre? De repente, reparou que Pedro já
se encaminhava para a saída e, dando um pulo, correu em perseguição do
amigo.
Por essa altura, David Zebedeu – um dos mais activos adeptos de
Cristo -, sem nada dizer ao Mestre nem aos doze, tivera a genial ideia de
se meter a caminho de Jerusalém e, na companhia de outros crentes,
começou a avisar os peregrinos da iminente chegada de Jesus de
Nazaré. Aquela iniciativa – como depois ficou demonstrado – ia
contribuir decisivamente para a entrada triunfal do Mestre na Cidade
Santa. Além das centenas de hebreus que, como todos os dias, tinham
acorrido a Betânia, milhares de habitantes de Jerusalém e dos recémchegados
para a Páscoa tiveram conhecimento da presença daquele
galileu – que fazia milagres – e com coragem para fazer frente aos sumos
sacerdotes. Não foi preciso esperar muito tempo. Pela uma e meia da
tarde, Pedro e João reuniram-se à comitiva, que os esperava, já fora da
aldeia de Lázaro. Tal como o Mestre dissera, quando o voluntarioso
Pedro chegou a Betfagé, lá estavam os animais: um asno e a sua cria. A
verdade é que, conhecemos a povoação e a sua gente – todos fervorosos
adeptos de Jesus – encontrar nas suas ruas os mencionados jumentos e
convencer o dono a que emprestasse um deles ao Rabi não podia ser
considerado como um acto milagroso. Aquela, pelo menos, foi a minha
impressão. Se nalguma coisa Betânia e Betfagé se distinguiam das
restantes povoações de Israel era precisamente naquilo: no profundo
afecto e na férrea fé dos seus habitantes por Cristo. Lázaro confessoume
que estava convencido de que aquele milagre do Nazareno –
possivelmente um dos mais extraordinários de quantos levou a cabo
durante a sua vida pública – tivera por palco Betânia, não para que as
pessoas das suas aldeias acreditassem, mas antes porque já acreditavam.
A teoria não era má. Cidades e povoações muito mais importantes – casos
de Nazaré, Cafarnaum, Jerusalém, etc. - tinham repelido Jesus... O caso
é que, segundo contou Pedro, quando este se dispunha a soltar o
jumento, apareceu o dono. Ao perguntar-lhe porque fazia aquilo, o
discípulo explicou-lhe para quem era e o hebreu, sem querer saber mais,
respondeu:
- Se o vosso mestre é Jesus de Galileia, levai-lhe o burrinho. Ao ver
o pequeno asno – de pêlo pardo, apenas com um metro de estatura e
possivelmente da chamada raça silvestre (muito vulgar em África e no
Oriente) -, quase todos os presentes fizeram a mesma pergunta. Para
que precisaria o Mestre daquela dócil cria de asno? Jesus sempre
trilharia os caminhos com a única ajuda das suas fortes pernas, que hoje
seriam invejadas por muitos corredores de maratona... Pouco depois, ao
vê-lo caminhar entre a multidão que se apinhava no caminho e nas ruas
de Jerusalém – no lombo do burrinho – comecei a suspeitar de quais
podiam ser as verdadeiras razões que tinham impelido Jesus a procurar
o auxílio daquele pequeno animal.
O Mestre, sem mais demora, deu ordem de partida para Jerusalém.
Os gémeos, num gesto que Jesus agradeceu com um sorriso, estenderam
os mantos por cima do burro, agarrando-o pelo cabresto enquanto aquele
gigante montava escarranchado, o Nazareno agarrou a corda que fazia
as vezes de rédeas e bateu levemente no asno com os joelhos, incitandoo
a avançar. A considerável estatura do Rabi obrigava-o a flectir as
compridas pernas para trás, a fim de não arrastar os pés no pó do
caminho. Com todo o meu respeito pelo Senhor, a Sua figura, cavalgando
daquela maneira o jumento, era um espectáculo meio ridículo meio
cómico. Pouco a pouco, fui-me apercebendo que aquele, precisamente,
era um dos efeitos que o Mestre parecia pretender. A tradição – tanto
oriental como romana – estabelecia que os reis e heróis entrassem
também nas cidades montados em garbosos corcéis ou em engalanados
carros. Algumas das profecias judaicas falavam, mesmo, de um rei – um
messias - que entraria em Jerusalém como aguerrido libertador,
sacudindo de Israel o jugo da dominação estrangeira. Mas, que género de
sentimento podia provocar no povo um homem de semelhante estatura,
no lombo de um burrinho? Sem dúvida, uma das razões para entrar assim
na Cidade Santa tinha de ser procurada numa ideia intencional de
ridicularizar o poder puramente temporal. E Jesus ia consegui-lo...
De início, tantos os homens do Seu grupo como as dez ou doze
mulheres escolhidas por Jesus – e que se tinham unido à comitiva –
ficaram desconcertados. Mas o Mestre era assim imprevisível, e eles
amavam-No acima de tudo. E assim aceitaram o facto com resignação. O
próprio Jesus, com as Suas constantes brincadeiras, contribuiu – não
pouco – para desfazer os receios dos Seus fiéis adeptos. Eu próprio me
vi surpreendido ao observar, como o Nazareno se ria da Sua própria
sombra.
Aquele ambiente festivo foi-se intensificando à medida que nos
afastávamos de Betânia. Uma multidão que não se poderia calcular forase
juntando de ambos os lados do caminho, saudando, vitoriando e
reconhecendo Cristo como o profeta da Galileia. Os doze, que rodeavam
estreitamente o Rabi (tanto Pedro, como Simão, o Zelota, Judas
Iscariotes e mesmo o próprio André, tinham tomado precauções, e as
suas espadas tinham voltado às faixas), estavam estupefactos. O seu
medo inicial pela segurança do chefe e do resto do grupo foi-se
dissipando à medida que avançávamos.
Centenas – talvez milhares – de peregrinos de toda a Judeia, da
Pereia e até da Galileia pareciam ter-se tornado repentinamente loucos.
Muitos homens se despojavam dos seus roupões e estendiam-nos no pó
do caminho, sorrindo e mostrando-se encantados à passagem do
burrinho. Como uma só pessoa, mulheres, crianças, velhos e adultos
gritavam e repetiam sem cessar: Bendito o que vem em nome do divino!...
Bendito seja o reino que vem do céu!...
Tal como supunha, as pessoas não gritavam os conhecidos hosanna
pela simples razão de que esta exclamação era um sinal ou pedido de
auxlio, segundo a etimologia original da palavra judaica.
Quero crer que aquele mesmo calafrio que me percorreu as costas e
me fez tremer foi também experimentado pelos apóstolos quando,
espontaneamente, muitos daqueles hebreus cortaram ramos de oliveiras,
saudando o Mestre, lançando à Sua passagem as flores violetas dos
cinamonos e queimando, mesmo, os ramos desta árvore, de modo que um
fragrante aroma se espalhou pelo ambiente.
Sinceramente, nenhum dos adeptos de Cristo podia esperar uma
recepção como aquela. Onde estavam as ameaças e a ordem de captura
do Sinédrio?
Algumas mulheres erguiam os filhos, pondo-os nos braços do
Nazareno, que os afagava sem cessar. O coração de Jesus, sem nenhum
género de dúvidas, estava alegre.
Mas, para minha surpresa, quando tudo fazia pensar que a comitiva
seguiria pelo caminho habitual – aquele por onde fora, para me dirigir a
Betânia -, Jesus e os doze viraram à direita, iniciando a subida da ladeira
oriental do monte das Oliveiras. Eu não tinha reparado naquela íngreme e
pedregosa vereda que, efectivamente, servia para encurtar caminho.
Poucos metros depois, Jesus saltava agilmente do burrinho,
continuando a pé a subida até ao cimo da montanha das azeitonas. A
chuva havia muito que tinha passado, embora o céu continuasse com umas
negras e ameaçadoras nuvens.
Enquanto o grupo se adelgaçava, caminhando praticamente em fila,
um atrás do outro, por entre as plantações de oliveiras, senti um
sobressalto no coração. Embora o módulo se encontrasse na cota mais
alta do monte das Oliveiras e em cima de uns penhascos onde não
tínhamos visto vereda alguma, havia sempre a possibilidade de os
participantes naquela agitada manifestação de júbilo poderem penetrar
na faixa de segurança do berço. Instintivamente, afastei-me do caminho
e avisei Eliseu da aproximação da comitiva. Ao chegar ao cume, o Mestre
parou. Respirei, aliviado, ao verificar que o ponto de contacto do módulo
se encontrava muito mais à direita e a uns trezentos pés do ponto onde
tínhamos parado. Jerusalém, daquela posição privilegiada, aparecia em
todo o seu esplendor. As torres da Fortaleza Antónia, do palácio de
Herodes e, principalmente, a cúpula e as muralhas do Templo tinham-se
tingido de amarelo com o entardecer, destacando-se de um mosaico de
casas e vielas brancas-acinzentadas. Um repentino silêncio pairou sobre
a comitiva, apenas quebrado pelo rumor de pintalgados grupos de
israelitas, que corriam, vindos das portas da Fonte e das Telhas – ao sul
das muralhas -, avisados da chegada do Profeta.
A inclusão dos familiares Hosanna ao filho de David!, que aparecem
nos evangelhos canónicos, parece ser uma concessão posterior da Igreja
primitiva, baseada no Salmo 118, 25, e que servia como profissão de fé.
Tal como indicou muito acertadamente Leonardo Boff. (N. Do lIT.)
Subitamente, o semblante de Cristo mudou. Daquele aberto e
contagiante bom humor tinha passado a uma extrema gravidade.
Os discípulos aperceberam-se disso, mas, simples como eram, não
entendiam as razões do Rabi. Tudo estava a sair melhor do que teriam
podido imaginar. O silêncio tornou-se definitivamente total, quase
angustiante, quando os que ali se reuniam verificaram como Jesus de
Nazaré, avançando até à crista da ladeira ocidental do monte das
Oliveiras, começava a chorar. Foi um choro suave, sem estridência
alguma. As lágrimas correram tranquilamente pela face e pela barba do
Nazareno. Eu senti um estremecimento e na minha garganta formou-se
um nó áspero. Com os braços descaídos ao longo da túnica, Cristo, sem
poder evitar a sua comoção, e com a voz entrecortada, exclamou:
- Ó Jerusalém, bastava que soubesses, mesmo tu, pelo menos neste
teu dia, das coisas respeitantes à tua paz e que tão livremente poderias
ter... Mas, agora, essas glórias estão prestes a ficar escondidas dos teus
olhos... Tu preparas-te para repudiar o Filho da Paz e voltar as costas ao
evangelho da salvação... Não tardam os dias em que os teus inimigos
farão uma trincheira ao teu redor e te sitiarão por todos os lados.
Destruir-te-ão completamente, a tal ponto que não ficará pedra sobre
pedra. E tudo isto acontecerá porque não conhecias o tempo da tua
divina visita... Preparas-te para repudiar a oferta de Deus e todos os
homens te repudiarão.
Obviamente, nenhum daqueles que escutaram aquelas frases podia
ter sequer a intuição do trágico fim que o Rabi acabava de profetizar.
Trinta e três anos mais tarde, de 66 a 70, o general romano Tito Flávio
Vespasiano cairia primeiro sobre Israel com três legiões de elite e
numerosas tropas auxiliares do Norte. Seu filho Tito terminaria a
destruição do Templo e de boa parte de Jerusalém, no meio de um banho
de sangue. Mais de oitenta mil homens, formando as legiões reforçadas
pela cavalaria, chegariam pouco antes da lua cheia da Primavera do ano
70 diante das muralhas da Cidade Santa. Em Agosto daquele mesmo ano,
e depois de encarniçados combates, os romanos cravaram as suas
insígnias no sagrado recinto dos Judeus. Em Setembro, tal como Jesus
tinha avisado, não restava pedra sobre pedra da que fora a cidade
umbigo do Mundo. Segundo os cálculos de Tácito, naquelas datas se
tinham reunido em Jerusalém – com o fim de celebrar a tradicional
Páscoa – à volta de seiscentos mil judeus. Pois bem, o historiador Flávio
Josefo afirma que, durante o assédio, o número de prisioneiros – sem
contar os crucificados e os que conseguiram fugir – se elevou a noventa
e sete mil. E acrescenta que, no decorrer de três meses, só por uma das
portas da cidade passaram cento e quinze mil cadáveres de israelitas. Os
que sobreviveram foram vendidos como escravos e dispersos.
As lágrimas e os lamentos do Nazareno estavam mais que
justificados...
O jovem João, um dos discípulos mais queridos de Jesus – sem
dúvida pela sua inocência e generosidade – aproximou-se do Mestre e,
com a alma comovida ofereceu-lhe, um lenço, dos que habitualmente se
usavam para enxugar o suor do rósto e que era costume levar atado num
dos braços. Cristo, sem pronunciar uma palavra mais, limpou as lágrimas e
voltou a montar no jumento, iniciando assim a descida para a cidade.
O rio de gente que tínhamos visto de cima subia já a encosta,
soando sempre mais alto os seus gritos de alegria.
Jesus, fortemente escoltado pelos Seus homens, correspondia
àquelas manifestações de afecto, avançando sempre com maior
dificuldade. O gentio que saía em caudal pelas muralhas de Jerusalém
não se contentava só em aclamá-lo de ambos os lados do caminho.
Muitos, especialmente os meninos e os adolescentes, faziam remoinho
em volta do burrico, obrigando os discípulos a abrir passagem aos
empurrões e gritos. Era o delírio.
O alvorotamento entusiasmara de tal modo os hebreus da cidade e
dos acampamentos montados à sua volta que, dali a pouco, quando a
comitiva tentava passar por baixo do arco da Porta da Fonte, no vértice
sul de Jerusalém, um grupo de fariseus e levitas – alertados pelo
tumulto, e que, segundo os indícios, saía precipitadamente com a ideia de
prender o impostor – fez a sua aparição entre a multidão. Os guardas do
Templo, armados com espadas e maças, permaneceram na expectativa,
esperando pela ordem dos sacerdotes. Mas o entusiasmo e o clamor
daqueles milhares de judeus eram tais que tiveram de o pensar com mais
calma e, prudentemente, deixaram passar Jesus e os Seus adeptos. O
Rabi, com uma invejável astúcia, evitara a Sua tumultuosa entrada pela
zona norte-oriental de Jerusalém. Do cume do monte das Oliveiras, a
entrada na Cidade Santa fora muito mais rápida, passando o leito seco
do Cédron e penetrando pela chamada Porta Probática ou pela do
Oriente, no lado oriental das muralhas. Aquela manobra, no entanto,
tinha em si um perigo latente: passar muito perto da Fortaleza Antónia,
sede e quartel-general das forças romanas de ocupação. Por outro lado,
ao planear a entrada triunfal pela zona mais meridional, Jesus via-se
obrigado a passar por algumas das ruas mais populosas da parte baixa e
velha da capital. Ainda que também nunca chegasse a perguntar-lho, ao
contemplar aquela imponente manifestação do povo judeu, feita a Jesus,
tive a certeza de que o Mestre quis encaminhar os Seus passos para
aquele sector de Jerusalém, precisamente com uma dupla intenção:
permitir assim um mais prolongado e caloroso acolhimento que – de
passagem
* O nosso computador central, com base nos cálculos feitos na
tlisná. Tinha-nos prevenido quanto à afluência de judeus que`poderíamos
encontrar naqueles dias, na Páscoa, em Jerusalém.
De acordo com as medidas dos diferentes Átrios do Templo, o Pai
Natal fixara em cerca de dezoito mil os Israelitas que podiam ter
acesso ao recinto sagrado, em três turnos, e que representava o
sacrifício de outros tantos cordeiros pascais.
Tendo em conta que cada vítima podia ser consumida por uma média
aproximada de dez pessoas, isso significava um volume de uns cento e
oitenta mil assistentes à festa. Destes, vinte mil eram habitantes da
própria cidade de Jerusalém e talvez cinco ou dez mil mais estivessem
acampados fora das muralhas. Em suma, os peregrinos chegados naqueles
dias à Cidade Santa podiam andar à volta dos cem mil ou cento e vinte e
cinco mil.
Isto dá-nos uma ideia bastante aproximada do que realmente
constituiu a multidão à passagem de Jesus e dos seus discípulos, naquela
tarde de domingo, 2 de Abril. (N. Do L1).
- O protegeria e aos Seus homens contra a ordem de captura
passada pelo Sinédrio. Aquela explosão foi tão sincera e clamorosa que,
como já mencionei, os sacerdotes não se atreveram a consumar a decisão
tomada. Ao entrar nas ruas de Jerusalém, a multidão tornou-se tão
expressiva que muitos jovens e mulheres, ao chegarem ao roseiral (único
jardim pennitido na Cidade Santa), arrancaram dezenas de flores,
lançando-as à passagem de Cristo.
Aquele gesto enfureceu os perturbados espíritos dos fariseus e
escribas que tinham vindo ao encontro do impostor e alguns - os mais
audazes – abriram caminho a cotoveladas e empurrões, cortando a
passagem ao Nazareno. Elevando as vozes por cima do tumulto, os
sacerdotes gritaram a Jesus:
- Mestre, deverias repreender os teus discípulos e exortá-los a que
se portem com mais decoro! Mas o Rabi, sem perder a calma, respondeu-
Ihes:
- É conveniente que estes meninos acolham o Filho da Paz, que os
sacerdotes principais repeliram. Seria inútil mandá-los calar... Se assim
fizesse, no seu tugar poderiam falar as pedras da calçada.
Os fariseus, desanimados e enraivecidos, deram meia volta e com a
mesma violência se perderam na multidão, sem dúvida a caminho do
Templo, onde – segundo pude verificar pouco depois- o Sinédrio
celebrava um dos seus habituais conselhos. Estes sacerdotes infonnaram
os seus colegas do que estava a acontecer nas ruas do bairro velho de
Jerusalém. José de Arimateia, membro deste Sinédrio e bom amigo de
Jesus, relataria na manhã seguinte a André e aos outros apóstolos como
os fariseus tinham entrado de rostos transtornados na sala das pedras
talhadasH (lugar das sessões do Sinédrio) exclamando: Olhai, tudo o que
fazemos é mútil! Fomos confundidos por esse galileu. As pessoas ficaram
loucas por ele... Se não detemos esses ignorantes, toda a gente o
seguirá!
A triunfal comitiva prosseguiu a sua marcha pelas estreitas e
íngremes vielas da cidade. As gentes assomavam às janelas ou saudavam-
No dos terraços e muitos – que, na realidade, viam o Nazareno pela
primeira vez – perguntavam: Quem é este homem? A própria multidão e
os discfpulos se encarregavam de responder gritando: Este é o profeta
da Galileia! Jesus de Nazaré! Pelas três e meia ou quatro da tarde,
chegámos à longa parede õeste do hipódromo. Uma vez ali, ao sul do
grande recinto do Templo, Jesus desceu definitivamente do jumento,
pedindo aos gémeos Alfeu que regressassem a Betfagé e devolvessem o
burrico ao dono. Atraídos pela incessante gritaria dos judeus, alguns dos
membros do Sinédrio apareceram entre os altos arcos do aqueduto que
unia o vértice sul-ocidental do Templo à zona alta da cidade,
contemplando atónitos como a multidão solicttava, gritando, que Jesus
falasse e fosse proclamado rei. No ãnimo geral – incluindo os mais
fntimos do Nazareno – flutuava a crença de que era ele o libertador
esperado. Por um instante, deixei-me arrastar pela fantasia e imaginei o
que poderia acontecer se o Rabi tivesse acedido aos incessantes pedidos
do povo...
Mas não eram essas – nem nada que se parecesse – as intenções do
Galileu. Muito pelo contrário. Não se importando com as sugestões dos
próprios discfpulos, que lhe suplicavam que se dirigiç à multidão, Jesus
de Nazaré, em silêncio e com o seu peculiar passo rápido, deixou-os,
entrando no grande terreiro do Templo pela chamada cPorta Duplan. Os
apóstolos e as mulheres recordaram as ordens de Cristo de não se
dirigirem publicamente aos Hebreus e, de má cara e pior humor,
aoompanharam o Mestre até ao interior do Templo, observando como
parte dos que o tinham vindo aclamando se dispersava, enquanto outras
centenas se decidiam, finalmente, por acompanhar o Mestre. Ao
penetrar no grande terreiro que rodeava o santuário – e apesar de ter
visto aquele fonnidatel rectângulo do ar -, fiquei impressionado pela
magnificência da obra. Herodes jogara tudo por tudo na construção
daquele Templo. Enonnes blocos de pedra – meticulosamente
esquadriados e unidos (os maiores de 4,80 mx3,90 m) – constitufam as
fileiras inferiores dos stlhares. O imenso Átrio dos Gentios, que rodeava
totalmente o santuário propriamente dito, fora cercado por uma soberba
colunata. Uma balaustrada isolava o Templo da zona destinada aos que
não eram judeus (o mencionado Átrio dos Gentios). Por cima de duas das
suas treze portas de acesso ao interior, e nas quais montavam guarda os
levitas ou guardas, comandados pelos sete guardas pennanentes, pude ler
advertências – em grego – que, naturalmente, respeitei a todo o
momento. Diziam textualmente: Knenhum estrangeiro pode penetrar na
cerca e muralha em torno do santuário. Todo aquele que for
surpreendido violando esta ordem será responsável da pena de morte
que daf lhe virá.
Realmente, os historiadores, como Josefo e Tácito, não tinham
exagerado ao descreverem aquela maravilha. Ao entrar no gigantesco
KrectânguloH – fosse qual fosse o acesso que se utilizasse – ficava-se
deslumbrado pelo luxo. Todas as portas
- tanto a Probática como a Dourada ou os pórticos Duplo, Triplo e o
Real – tinham sido cobertos por placas de ouro e de prata. (Só havia uma
excepção, ainda que não me fosse possfvel verificá-la, pois que se
encontrava mesmo no centro do Templo.
Era a chamada Porta de Nicanor. Segundo Josefo e a Misná, todas
as portas que ali havia eram douradas, excepto a Porta de Nicanor, pois
nela acontecera um milagre; segundo outros, porque o seu bronze
brilhava como ouro.
O arquivo contido no computador central do módulo afirmava
- segundo o escrito rabtnico Middot II, 3 – que a referida Porta de
Nicanor, sitLr 1a entre o Atrio das Mulheres e o dos Israelitas (todo ele
no interior do Templo) era e bronze de Corinto. Segundo Josefo, Knove
portas do Templo, juntamente com dintóis e ombreiras, estavani
completamente revestidas de oum e de prata. Só uma era de bronze de
Corinto, a qual superava muito as outras em valor. Ao incendiar as portas
para conquistar o Templo, fundiu-se o revestimento e as chamas
alcançaram, assim, as partes de madeira. Continuando a descrever esta
sumptuosidade, Flávio Josefo assegurava que o vestibulo estava
inteiramente forrado por placas de oum de cem c8vados quadrados e da
grossura de um denário de ouro. Das vigas do vestfbulo pendiam
correntes de ouro. Havia ali duas mesas; uma de mármore e outra de
ouro; ouro maciço. Por cima da entrada que dava para o vestíbulo e deste
ao Santuário estendia-se uma parreira, também de ouro a qual crescia
constantemente com as doações de sarmentos de ouro, que os
sacerdotes se encarregavam de pendurar. Além disso, por cima desta
entrada pendia quelas horas do entardecer, com a luz solar incidindo
obliquamente sobre Jerusalém, as agulhas que sobressaíam do telhado –
inteiramente banhadas em ouro – reluziam e cintilavam -, dando ao
conjunto um halo quase mágico e fascinante.
O átrio dos Gentios – em especial toda a zona próxima das colunatas
do chamado Pórtico Régio – apresentava um movimento fora do vulgar.
Boa parte desta área do grande rectângulo do Templo encontrava-se
cheia de barraquinhas, mesas e gaiolas com pombas. Tendo em conta que
o referido terreiro media, na sua parte mais estreita (justamente ao pé
da colunata do Pórtico Régio), 735 pés, é fácil fazer uma ideia do volume
de postos de venda que, em três ou quatro filas, ali tinham sido
montadas. Não cheguei a contá-las na sua totalidade, mas duvido muito
que as bancadas dos vendedores fossem menos de trezentas ou
quatrocentas.
Na sua maioria tratava-se de intermediários, que negociavam com os
animais que deviam ser sacrificados na Páscoa. Ali se vendiam cordeiros,
pombas e até bois. Em muitas das barracas, que não eram mais que
simples tabuleiros de madeira montados sobre as próprias gaiolas ou,
quando muito, munidos de pernas ou suportes com dobradiças, se
ofereciam e cantavam ao público muitos dos produtos necessários ao rito
do sacrifício pascal: azeite, vinho, sal, ervas amargas, nozes, amêndoas
tostadas e até marmelada. E em metade daquele mercado ao ar livre
pude distinguir também uma comprida fileira de mesas dos chamados
cambistas – gregos e fenícios, na sua maioria -, que se dedicam ao câmbio
de moedas. A circunstância de muitos milhares de peregrinos serem
judeus residentes no estrangeiro quase tornara obrigatória a presença
de tais banqueiros. Ali vi moedas gregas (tetradracmas de prata,
didracmas áticos, dracmas, óbolos, calcos e leptons ou caldeirinhas de
bronze), romanas (denários de prata, sestércios de latão, dispôndios,
asses ou assarius, semis e quadrantes) e, naturalmente, todas as
variantes da moeda judaica (denários, maas e pondios – todas elas de
prata – e asses, musmis, kutruns e perutas, de bronze, entre outras).
Além disso, estes cambistas ofereciam um importante serviço aos
hebreus, já que lhes proporcionavam - in situ – o câmbio necessário para
poderem satisfazer o tributo obrigatório ou contribuição ao tesouro do
Templo. A sua presença no local, portanto, era tão antiga quanto um
espelho de ouro, que reflectia os raios do Sol nascente através da porta
principal (que não tinha batentes). Fora uma doação da rainha Helena de
Adiabena. No Santuário, que ficava atrás do vestíbulo. Encontravam-se
singulares obras de arte, que constituíram os troféus de Tito na sua
entrada triunfal em Roma; o candelabro maciço de sete braços, de dois
talentos de peso (cada talento equivalia a 34 quilos e 272 gramas) e a
mesa maciça dos pães da oração, também de vários talentos de peso.
Finalmente. O sanctasanctorum devia encontrar-se vazio e as suas
paredes totalmente cobertas de ouro.
Uma vez dentro do Átrio das Mulheres, o ouro resplandecia também
por toda a parte. Havia candelabros de ouro, com quatro cálices nos
vértices. As tesourarias do Templo estavam a abarrotar de objectos de
prata e de ouro. Segundo Josefo, ao registar-se a destruição do Templo
pelos Romanos, a província da Síria viu-se inundada por uma gigantesca
oferta de ouro.
Que trouxe como consequência a queda da libra de ouro.
E dou previamente todos estes pormenores porque, no dia seguinte,
segunda-feira – 3 de Abril – ia ser testemunho excepcional de um facto
histórico – impropriamente designado por expulsão dos vendilhões do
Templo por Jesus – que, a julgar pelo que pude ver, não tinha sido
descrito correctamente pelos evangelistas. Enquanto o Mestre e os Seus
discípulos passeavam por entre os postos de venda, contemplando os
preparativos para a Páscoa, eu aproveitei para trocar algumas das
minhas pepitas de ouro por moeda romana e hebraica, em partes iguais.
No total, e depois de não pouco regatear com um daqueles malditos
especuladores fenícios, obtive quatrocentos denários de prata e várias
centenas de asses, ou moeda fraccionária, por quase metade da minha
bolsa.
Ao contemplar o Rabi da Galileia, rodeado pelos Seus amigos,
falando pacificamente com aquelas centenas de mercadores, assaltou-me
uma inquietante dúvida: como podia mostrar-se Jesus tão tranquilo e
natural com aqueles cambistas e intermediários quando o Evangelho
afirma que, numa das suas múltiplas visitas ao Templo, se lançou contra
eles com um chicote, atirando pelos ares as mesas? A explicação – lógica
e simples – chegaria, como disse, no dia seguinte...
Pouco a pouco, a multidão que O tinha seguido até ao grande
terreiro que rodeia o Santuário foi esquecendo o Nazareno, e o Mestre,
na companhia dos Seus discípulos, entrou no Templo pelo Pórtico
Coríntio, perdendo-se lá dentro. Eu não tive outro remédio senão
esperar no Átrio dos Gentios. Esta circunstância ia impedir-me de estar
presente no conhecido episódio da viúva, que, naqueles instantes, devia ir
a um dos mealheiros onde os Judeus depositavam a sua contribuição para
o Templo. Quando o grupo saiu, André falou-me da lição que Jesus
acabava de lhes dar e que, no essencial, foi correctamente narrada pelos
evangelistas. O que eu não sabia é que aqueles mealheiros, em número de
treze, estavam estrategicamente situados numa sala que rodeava o Átrio
das mulheres. (As hebreias não podiam sair daquele recinto e entrar-se
nos pátios dos homens ou dos sacerdotes.) Eram recipientes em forma
de trombeta – estreitos na boca e largos no fundo -, para os proteger
dos ladrões. O terceiro mealheiro estava confiado a um tal Petajia,
responsável pelos sacrifícios das aves e que controlava o dinheiro
depositado no terceiro mealheiro. (Em vez de realizar a oferenda dos
animais, o Judeu podia entregar o equivalente em dinheiro.) Pois bem,
Petajia – cujo verdadeiro nome era Mardoqueu – recebera este apodo
por causa da sua extraordinária facilidade como poliglota: conhecia
setenta línguas! (A palavra pataj significa abria; quer dizer, abria as
palavras, ao interpretá-las. ) Aquela alusão de André ia ser muitíssimo
vantajosa para mim, uma vez que – dias depois – o tal Petajia ia jogar um
importante papel numa das negações de Pedro...
Enquanto esperava a saída do grupo do Santuário, sentei-me muito
perto dos mercadores e pude assistir a um fenómeno que, segundo
parece, era frequente na compra e na venda. Muitos dos intermediários
abusavam cruelmente dos hebreus mais humildes, chegando a venderlhes
uma rola por nove ou dez asses. (Se tivermos em conta que em
Jerusalém, o preço normal destas aves era de um oitavo de denário ou
três asses, os lucros destes usurários eram exagerados.)
Contudo o mais irritante é que aquele negócio, isento de encargos,
era propriedade da poderosa família de Anás, ex-sumo sacerdote. Isto,
sim, explicava a tolerância do comércio de animais para o sacrifício
naquele lugar, apesar da sua santidade. (Também aquela observação ia
ser importante para compreender o que iria acontecer no dia seguinte.)
Indignado com a atitude miserável dos intermediários, procurei distrairme,
fixando o maior número de pormenores de quanto tinha ao meu
redor. Contei, até, o número de colunas do Pórtico Régio: 162 esbeltas
colunas de estilo coríntio. As balaustradas tinham sido trabalhadas em
pedra. Uma delas – de três côvados de altura (157,5 centímetros) –
separava o átrio interior e o exterior, que nos era acessível, a nós,
pagãos.
Nalgumas zonas desta balaustrada exterior tinham sido também
gravados os mesmos avisos que eu lera nalgumas das portas de acesso ao
Templo. Os pórticos que rodeavam este imenso adro – cuidadosamente
lajeado com pedras de diferentes cores – estavam cobertos com ornatos
de madeira de cedro, trazida, possivelmente, dos bosques do Líbano.
Quando vi aparecer os primeiros discípulos, um grupo de gregos que
chegara naqueles dias a Jerusalém e que, naturalmente, tinha ouvido
falar de Jesus, aproximou-se de Filipe e expôs-lhe o desejo de conhecer
o Mestre. Jesus ainda não tinha saído do Templo e o discípulo foi
consultar o apóstolo que, mesmo depois da ressurreição do Galileu,
representaria a autoridade moral do grupo: André, o irmão de Pedro.
Desde o primeiro momento que este pescador me tinha chamado a
atenção, pela sua seriedade. Aparecia quase sempre silencioso, como que
preocupado e distante. Talvez aquela introversão fosse devida à sua
cultura rudimentar ou à sua acentuada timidez. Era um pouco mais magro
que o irmão, de estatura semelhante (1 metro e 60, aproximadamente),
cabeça pequena e cabelo fino e abundante, diferindo de Pedro, que
sofria de uma extrema calvície. Aparecia sempre cuidadosamente
barbeado. É de supor que fosse um pouco mais velho que Pedro, ainda
que a calvície deste o fizesse parecer mais idoso.
André escutou em silêncio a mensagem do seu companheiro e, depois
de observar o grupo de gregos, regressou com Filipe ao interior do
Santuário. Dali a pouco apareceu Jesus, que, com satisfação, conversou
com aqueles gentios.
Alguns dos gregos sabiam do misterioso anúncio do Rabi sobre a Sua
morte e interrogaram-No sobre isso. Jesus respondeu-lhes:
- Em verdade, em verdade vos digo que se o grão de trigo arrojado à
terra não morre, fica só; mas, se morre, produz muito fruto... - Será que
é preciso morrer para viver? - perguntou um dos gentios, visivelmente
intrigado com as palavras do Mestre.
Quando interroguei André sobre o dinheiro que a viúva metera no
mealheiro do Templo, este disse-me que lhe pareceu ver um total de dois
lepta, ou quarto de asse. Por outras palavras, pura caldeirinha. (Uma
ração diária de pão custava em Jerusalém um par de asses. O normal é
que com um asse se pudessem comprar dois pássaros.) (N. Do M.)
- Quem ama a sua vida – respondeu-lhe Jesus – perde-a. Quem a
odeia neste mundo, conservá-la-á para a vida eterna.
- E que nos acontecerá a nós – perguntaram novamente os gregos –
se Te seguirmos?
- O que se aproxima de Mim, aproxima-se do fogo. Quem se afasta
de Mim, afasta-se da vida.
Um dos que ouviam interrompeu o Galileu, replicando-lhe que aquelas
palavras eram semelhantes às de um velho aforismo grego, atribuído a
Esopo: Quem está perto de Zeus, está perto do raio.
- Diferindo de Zeus – comentou o Mestre -, Eu, sim, posso dar-vos o
que olho algum viu, o que ouvido algum escutou, o que mão alguma tocou e
o que nunca entrou no coração do homem.
Se algum de vós quer servir-Me – concluiu -, que Me siga. Onde Eu
estiver, estará também o Meu servidor. Se alguém Me serve, Meu Pai o
honrará... Mas os gregos não pareciam muito dispostos a porem-se às
ordens do Rabi e acabaram por se afastar.
Jesus, sem poder dissimular a Sua tristeza, comentou entre os seus
discípulos: Agora, a minha alma está perturbada... Que direi? Pai, livra-
Me desta hora!... No entanto, Cristo pareceu arrepender-se de imediato
daqueles pensamentos em voz alta e acrescentou, de modo a que todos
os Seus adeptos o pudessem ouvir: - Mas para isto vim Eu a esta hora...
E, erguendo o rosto para o céu enevoado de Jerusalém, gritou: - Pai,
glorifica o Teu nome!
O que aconteceu imediatamente é algo que não saberia explicar com
exactidão. Mal tinha o Mestre pronunciado aquelas comovedoras
palavras, quando, na base ou no interior das nuvens que cobriam a cidade
(e cuja altura média, segundo Eliseu me confirmou, era de,
aproximadamente, seis mil pés) se deu uma espécie de relâmpago ou
labareda. Se não fosse a voz forte e metálica que logo a seguir se ouviu,
eu explicaria o fenómeno por uma possível descarga eléctrica, tão vulgar
neste tipo de nuvens tempestuosas. Mas, quase em uníssono com aquela
chama, as centenas de pessoas que se encontravam no grande terreiro
ouviram uma voz que, em aramaico, dizia:
- Já glorifiquei e glorificarei de novo.
A multidão, os discípulos e eu próprio ficámos aterrorizados. Por
fim, as pessoas começaram a reagir e a maioria procurou tranquilizar-se,
afirmando que aquilo fora apenas um trovão. Mas todos, no íntimo dos
corações, sabíamos que um trovão não fala...
Os Hebreus voltaram a apinhar-se em volta do Mestre, que lhes
anunciou:
- Esta voz veio não por Mim, mas por vós. É agora o juízo deste
mundo; agora vai ser expulso o príncipe deste mundo. E Eu, levantado da
terra, atrairei a Mim todos os homens...
Mas, tal como eu temia, aquela turba não entendeu uma única
palavra. Os próprios discípulos se entreolhavam, como que dizendo: Por
que está a falar?
Alguns dos sacerdotes que tinham saído do santuário, ao escutarem
aquela enigmática voz, replicaram-lhe que sabiam pela lei que o messias
viveria sempre. Jesus, sem se perturbar, voltou-se para os recémchegados
e respondeu-lhes:
- Apenas um pouco mais de tempo estará a luz entre vós.
Caminhai enquanto tiverdes a luz e que não vos surpreenda a
escuridão: o que caminha na escuridão não sabe para onde vai. Enquanto
tiverdes luz, acreditai na luz, para que sejais filhos da luz...
- Somos nós, os sacerdotes – atacaram os representantes do
Templo, procurando ridicularizar Jesus -, que temos o poder de ensinar a
luz e a verdade a estes...
O Rabi, apontando a multidão com a mão direita, replicou:
- Cegos!... Vedes o argueiro no olho do vosso irmão, mas não a trave
no vosso. Quando tiverdes conseguido tirar a trave vereis com clareza e
podereis tirar o argueiro dos olhos destes...
Jesus atravessou então as muralhas do Templo, seguido pelos Seus
mais chegados.
A noite não tardaria a cair e o Mestre, tal como tinha por costume,
atravessou o bairro velho de Jerusalém, em direcção à Porta da Fonte,
com o fim de descansar em Betânia.
Durante a entrada triunfal do Nazareno na cidade, a multidão fora
tal que, francamente, mal tive oportunidade para reparar nas ruas e
construções. Agora, em compensação, era diferente. Ao deixar para trás
os 195 metros de parede exterior do hipódromo, o grupo meteu-se pelas
estreitas vielas – quase todas em declive – da cidade velha. Jerusalém
dividia-se, então, em dois grandes núcleos: este sector por onde agora
circulávamos (conhecido também como sug-ha-tajtôn ou Akra) e a zona
alta ou sug-ha-elyon, localizada a noroeste. Ambas as cidades estavam
separadas por uma depressão ou vale: o Tiroppeon. Aquela raiz -
súgdesignava a natureza de ambos os lugares. Esta palavra significa
bazar. E foi isto que pude ver neste e nas seguintes caminhadas por
Jerusalém: uma infinidade de bazares, em que se vendia de tudo.
Cada um dos sectores da cidade era atravessado por ruas principais,
adornadas com colunatas: a grande rua do mercado, na zona alta. E a
pequena rua do mercado, na cidade velha. Estas duas artérias comerciais
estavam unidas por um enxame de ruas transversais, que constituíam um
labirinto. Nesta rede de vielas – a maioria por empedrar e mergulhadas
num cheiro pestilento, mistura de azeite queimado, má comida e urinas
atiradas para o centro das ruas – amontoavam-se milhares de casas,
quase todas de um só piso e com as paredes escalavradas.
Mas o grupo, sempre com Jesus na frente, evitou as vielas
incómodas e escuras, dirigindo os seus passos por uma das calçadas mais
largas da parte baixa de Jerusalém. Para minha surpresa, entrámos, de
repente, numa rua de quase oito metros de largura, perfeitamente
calcetada, que desembocava junto da piscina de Siloé.
Os archotes e lanternas – estrategicamente colocadas nas paredes
das casas – começavam já a iluminar a noite da Cidade Santa. No
entanto, e apesar das súbitas trevas, o trânsito de peões era constante.
Às portas Esta corresponde à actual Rua el-Wad. (N. Do IT. )
Dos edifícios daquela rua, de mais de duzentos metros de
comprimento, observei numerosos artesãos, empenhados inteiramente
nos seus trabalhos ou em intermináveis regateios com eventuais
compradores. Naquela zona baixa ou velha tinham-se estabelecido as
profissões mais nobres e consideradas de Jerusalém. Os pagãos,
prosélitos e impuros, em contrapartida, tinham os seus domínios na parte
alta. O fanatismo dos Judeus neste ponto chegara a tal extremo que,
por exemplo, o escarro de um habitante da cidade alta era considerado
como impuro; o que não acontecia com as expectorações dos residentes
nesta zona da cidade.
André explicou-me que, no fundo, tudo tivera raiz na instalação dos
pisoeiros ou branqueadores de tecidos na referida área alta. Estes
apareciam entre as profissões desprezadas da comunidade israelita.
Junto das mais variadas tendas ou janúyôt alinhavam-se sempre na
rua – alfaiates, barbeiros, médicos ou sangradores, fabricantes de
sandálias, carpinteiros, sapateiros, vendedores de lanternas e de
utensílios de cozinha, artesãos do cobre e até fabricantes de vestidos
de Tarso, sem esquecer os solicitados vendedores de perfumes e de
unguentos.
Aquilo, em absoluto, constituía um espectáculo único, em que os
pregões das mercadorias, gritos infantis, risos e o cheiro dos fritos
acabavam por envolver uma pessoa, cativando-a.
Foi numa daquelas lojas ao ar livre que, subitamente, resolvi
comprar um formoso frasco de essência de nardo. Sem esconder a sua
estranheza, o bom André – que me servia de oportuno intermediário
conseguiu um substancial abatimento, pagando um total de duzentos e
cinquenta denários pela jarra preciosa. O recipiente em questão fora
primorosamente lavrado, pelo antiquíssimo processo a que os Hebreus
chamavam decantação de líquidos, de polimento circular. O
revestimento e o brunido tinham reduzido a porosidade dos vasos, com
um polimento tão brilhante que, à primeira vista, dava a impressão de um
processo de vidrado.
Alcançámos o Mestre e os restantes discípulos quando passavam por
baixo da Porta da Fonte, no extremo meridional de Jerusalém.
Eu sabia que a cidade, em especial naqueles dias antes da Páscoa,
era um ninho de mendigos, mas, ao passar junto das muralhas, fiquei
impressionado. Dezenas de leprosos se dispunham a passar ali a noite,
envoltos nos seus mantos e farrapos, enquanto uma legião de coxos,
aleijados, corcundas e cegos nos saíram ao caminho, suplicando-nos uma
esmola.
Se não fosse André, que me arrancou sem contemplações, o mais
provável é que os meus restantes cento e cinquenta denários tivessem
ido parar às mãos daqueles supostos infelizes. E digo supostos porque –
segundo o irmão de Pedro – a imensa maioria eram simuladores
profissionais, que aproveitavam a festa para comover os corações dos
forasteiros e dar-lhes o golpe...
Creio que só me apercebi realmente da desilusão geral dos
discípulos de Cristo quando tínhamos já andado pouco mais de um
quilómetro, em direcção a Betânia. O Mestre, silencioso, ia na frente do
grupo, puxando pelos dez com as suas características passadas.
Nem um só abriu a boca em todo o trajecto. Aqueles galileus
pareciam confusos, deprimidos e até mal-humorados. Não tardei a
deduzir a razão. Depois da apoteótica e inesperada recepção prestada
ao Mestre, os apóstolos não tinham compreendido por que razão Jesus
não aproveitara aquela magnífica oportunidade para se proclamar rei e
instalar, definitivamente, o seu reino na Judeia, estendendo-o depois às
restantes províncias. Ao ver os seus rostos não era difícil imaginar quais
fossem os seus pensamentos.
André, preocupado com as sua responsabilidade como chefe do
grupo ou talvez o que menos valorizava aquela explosão popular em torno
do Mestre.
A verdade é que, nos dias seguintes, alguns dos íntimos – em
especial Pedro, Tiago, João e Simão, o Zelota – tiveram de fazer
consideráveis esforços para assimilar tantas emoções...
Simão Pedro foi, possivelmente, um dos mais afectados pela
manifestação popular. E, mais que pelo acolhimento excitante, pelo facto
incompreensível de o Mestre não se ter dirigido à multidão ou, pelo
menos, ter permitido que o fizessem eles.
Para Pedro, aquela fora uma magnífica oportunidade... perdida.
Enquanto caminhava para Betânia senti-o angustiado e triste.
No entanto, a sua paixão por Cristo era tal que soube aceitar o
estranho comportamento do Nazareno sem a menor censura ou sinal de
desgosto.
Os sentimentos de Tiago, o Zebedeu, eram muito parecidos com os
de Simão Pedro. O seu medo inicial fora-se desvanecendo à medida que
iam descendo pela encosta do monte das Oliveiras. À vista daquela
multidão que aclamava o Mestre, concebera esperanças de poder e de
influência. Mas tudo viera abaixo quando Jesus desceu do burrinho,
perdendo-se no Templo. Como podia renunciar assim, tão
perdulariamente, a uma oportunidade de ouro como aquela?
Por seu lado, João Zebedeu fora o único a ter a percepção das
intenções de Jesus. Recordava que, em certa altura, o Mestre lhes
falara da profecia de Zacarias e, não sem dificuldade, associou aquela
entrada triunfal com as verdadeiras intenções de Jesus. Aquilo salvou-o,
em boa medida, da depressão geral que o traumatizante final provocou.
Além disso a sua juventude e amor cego pelo Nazareno impediam-no,
de suspeitar ou imaginar sequer que o Mestre se tivesse enganado...
Filipe, o intendente e homem prático do grupo, tinha sofrido outro tipo
de preocupação. Ao ver aquele rio humano pensou por um momento que
Jesus podia pedir-lhe – como fizera noutras alturas – que lhes desse de
comer. Por isso, ao vê-lo abandonar a procissão e passear tranquilamente
no recinto do templo, sentiu um alívio profundo.
Quando aqueles temores desapareceram da sua mente, Filipe uniuse
aos sentimentos de Pedro, compartilhando o critério de que fora uma
pena não ter Jesus aproveitado a ocasião para instalar definitivamente o
reino. Naquela noite, afundado em dúvidas, para si perguntou muitas
vezes que poderiam querer dizer todas aquelas coisas. Porém, a sua fé no
Galileu era sólida e não tardou em esquecer as incertezas.
Mateus, o homem cauteloso, ainda que de uma fidelidade extrema,
ficou maravilhado com aquela explosão colorida em redor do Rabi. No
entanto, o seu natural cepticismo sobrepôs-se e não tardaria em
esquecer aquelas emoções da tarde de domingo. Só houve um momento
em que Mateus estava prestes a perder a sua calma habitual.
Aconteceu em plena explosão popular, quando um dos fariseus
troçou publicamente de Jesus, dizendo: Olhai todos, vede quem vem: o
rei dos Judeus em cima de um asno. Estava quase a sair dos eixos e
pouco faltou segundo me confessou dias depois – para que se atirasse ao
sacerdote. Na manhã seguinte, como disse, Mateus superara a crise
geral, mostrando-se tão alegre como sempre. Depois de tudo aquilo,
sabia perder e encarar a vida com filosofia...
Tomás, como Pedro, continuava aturdido. O seu profundo coração
não conseguia encontrar razões para aquele festejo, absolutamente
infantil em sua opinião: Nunca vira Jesus numa situação como aquela e
isso desorientara-o. Por momentos, o prático e frio Tomás chegou a
supor que todo aquele alvoroço só podia obedecer a um motivo: confundir
os membros do Sinédrio, que – como toda a gente sabia -, tencionavam
prender o Mestre. E não lhe faltava razão.
Outro dos grandes confundidos por aquele acontecimento foi Simão,
o Zelota. O seu sentido do patriotismo levara-o a conceber todo o
género de sonhos em relação ao futuro político do seu país. Alimentava a
ideia de libertar Israel do jugo romano e devolver ao povo a sua
soberania. E Jesus, naturalmente, devia ocupar o trono derrubado de
David.
Ao assistir à entrada triunfal em Jerusalém, o seu coração tremeu
de emoção e viu-se no comando das forças militares do novo reino.
Ao descer o monte das Oliveiras imaginou, até, os sacerdotes a
simpatizantes do Sinédrio executados ou desterrados. Foi, sem dar
lugar a dúvidas, o apóstolo que gritou mais alto e animou constantemente
a multidão. Por isso, ao cair da noite, era também o homem mais
humilhado, silencioso e desiludido. Tristemente, não se recomporia
daquele golpe, mesmo muito depois da ressurreição do Mestre.
Com os gémeos Alfeu não houve problema algum. Para eles,
descuidados e brincalhões, foi um dia perfeito. Gozaram intensamente e
recordaram aquela experiência como um dia em que mais perto estiveram
do céu. A sua superficialidade evitou que neles germinasse a tristeza.
Simplesmente, naquela tarde culminaram todas as suas aspirações.
Quanto a Judas Iscariotes, nunca cheguei a saber com exactidão
quais foram os seus verdadeiros sentimentos. Nalguns momentos
pareceu-me notar no seu rosto sinais evidentes de desacordo e repulsa.
É possível que tudo aquilo lhe parecesse infantil e ridículo. Como os
Gregos e Romanos, considerava grotesco e desprezível todo aquele que
consentisse em cavalgar num asno. Não creio enganar-me ao pensar que
esteve quase para abandonar ali mesmo o grupo. Mas, possivelmente,
deteve-o o facto de ser ele o administrador dos bens. Aquilo significava
uma permanente possibilidade de dispor de dinheiro e Judas sentia uma
especial inclinação pelo ouro.
Talvez um dos momentos mais dramáticos para o vingativo Judas se
desse pouco antes de chegar às muralhas de Jerusalém. De repente, um
importante saduceu – amigo da família de Jesus – aproximou-se dele e,
dando-lhe uma palmadinha nas costas, disse-lhe: Qual a razão desse ar
de desorientação, querido amigo? Anima-te e une-te a nós, enquanto
aclamamos este Jesus de Nazaré, o rei dos Judeus, que entra pelas
portas da cidade no lombo de um burro.
A zombaria deve tê-lo ferido muito fundo. Judas não podia suportar
aquele sentimento de vergonha e isso pode ter sido mais uma razão de
peso para apressar o seu plano de vingança contra o Mestre. O apóstolo
tinha tão enraizado o sentido do ridículo que ali mesmo se converteu num
desertor.
Salvo bem poucas excepções, os discípulos de Cristo demonstraram
naquele histórico acontecimento – apesar dos seus três longos anos de
aprendizagem e convivência com o Mestre – que não tinham entendido
nada de nada.
Compreendi e respeitei o duro silêncio de Jesus, na frente daqueles
homens acabrunhados e perplexos. Encontrava-se a um passo da morte e
ninguém parecia captar a sua mensagem...
3 DE ABRIL, SEGUNDA-FEIRA
Segundo soube, foram muito poucos os discípulos que conseguiram
conciliar o sono naquela noite de domingo para segunda-feira, 3 de Abril.
À excepção dos gémeos, os outros continuaram a ruminar os seus
pensamentos. Era tal a sua perturbação que nem sequer estabeleceram
os habituais turnos de guarda às portas da casa de Simão, onde se
alojavam Jesus, Pedro e João.
Ao desp edirem-se, cada um foi em silêncio para o respectivo
refúgio.
Também o Rabi não abriu a boca. Como era natural, devia conhecer o
estado de alma dos Seus amigos e, possivelmente, com o objectivo de
evitar maiores tensões, preferiu jantar na casa de Lázaro.
Apesar da hora tardia, Marta e Maria de novo se desvelaram
connosco. Lavaram-nos as mãos e os pés e, na companhia de seu irmão,
comemos um pouco de queijo e de fruta. Nem o Mestre nem eu tínhamos
muito apetite.
Durante um bom espaço de tempo Jesus esteve encerrado num
mutismo hermético, com os olhos postos nas chamas ondulantes da
chaminé.
Antes que se retirasse para descansar pedi a Maria que aceitasse o
frasco de essência de nardo que eu tinha comprado naquela mesma tarde
na companhia de André. Resistiu muito, mas, por fim, aceitou-o.
Aquele gesto pareceu animar o Mestre, que saiu do seu enigmático
isolamento, unindo-se plenamente à tranquila conversa em que eu e
Lázaro estávamos.
Durante a frugal refeição eu fora explicando ao ressuscitado e a
suas irmãs o esplêndido acontecimento que tínhamos vivido poucas horas
antes. Lázaro, contrariamente aos apóstolos, apercebeu-se
imediatamente da transcendência do acto de Jesus. Sem esquecer a
simbologia, aquela multidão não fizera mais que proteger o Rabi das
garras do Sinédrio.
Não me cansarei de repetir este aspecto da questão. Nos
Evangelhos que eu tinha estudado, em momento algum se falava disso, e
sinceramente, qualquer pessoa de bom senso e um mínimo de informação
sobre o que estava a acontecer naquelas últimas semanas não poderia
passar por alto que a referida manobra foi uma jogada magistral do
Galileu. Como se diz no nosso tempo, matou dois coelhos de uma
cajadada.
Ao verificar que Jesus de Nazaré se oferecia com gosto para o
diálogo, aproveitei o momento e perguntei qual era a sua opinião sobre
aquela tarde.
- Estive no meio das gentes e a elas Me revelei na carne. A todos
encontrei ébrios. Não encontrei um sedento. A Minha alma sofre
pelos filhos dos homens, porque estão cegos no seu coração: não vêem
que vieram vazios ao mundo e que tentam sair vazios do mundo.
Agora estão ébrios. Quando vomitarem o vinho se arrependerão... -
São palavras muito duras – disse-lhe. - Tão duras como as que
pronunciaste no monte das Oliveiras, à vista de Jerusalém...
- Talvez os homens pensem que vim trazer a paz ao mundo. Não
sabem que estou aqui para lançar na terra divisão, fogo, espada e
guerra... Pois haverá cinco numa casa: três contra dois e dois contra
três; o pai contra o filho e o filho contra o pai. E eles estarão sós.
- Muitos no meu mundo – acrescentei fazendo que as minhas
palavras não fossem excessivamente estranhas para Lázaro poderiam
associar essas Tuas frases sobre o fim de Jerusalém com o fim dos
tempos.
Que dizes a isso?
- As gerações futuras compreenderão que a volta do Filho do
Homem não se dará pela mão do guerreiro. Esse dia será inesquecível:
depois da grande tribulação – como não houve desde o princípio do mundo
– o Meu estandarte será visto nos céus por todas as tribos da Terra.
Será essa a Minha verdadeira e definitiva volta: sobre as nuvens do
céu, como o relâmpago que sai pelo Oriente e brilha até ao Ocidente...
- O que será a grande atribulação?
- Podereis chamar-lhe um parto de toda a Humanidade...
Jesus não parecia muito disposto a revelar-me pormenores.
- Pelo menos, diz-nos quando terá lugar.
- Desse dia e dessa hora, ninguém sabe. Nem os anjos nem o Filho.
Só o Pai. Unicamente posso dizer-te que será tão inesperado que
muitos serão apanhados no meio da sua cegueira e iniquidade.
- O meu mundo, aquele de onde venho – tentei pressioná-lo
distingue-se precisamente pela confusão e pela justiça... - O teu mundo
não é melhor nem pior que este. Só falta a ambos o princípio que rege o
Universo: o Amor.
- Dá-me, ao menos, um sinal para que saibamos quando Te revelarás
aos homens pela segunda vez...
- Quando vos desnudardes sem ter vergonha, quando pegardes nas
vossas roupas e as pisardes com os pés como as crianças, então vereis o
filho do Vivente e não o temereis.
Felizmente, Lázaro continuava a identificar o meu mundo com a
Grécia. Isso permiti-me continuar a fazer perguntas ao Mestre,
com uma certa margem de amplitude.
- Então – continuei -, o meu mundo está muito longe desse dia.
Por lá os homens são inimigos dos homens e até do próprio Deus...
Jesus não me deixou continuar.
- Estais então enganados. Deus não tem inimigos.
Aquela incisiva frase do Nazareno trouxe-me à memória muitas das
crenças sobre um Deus justiceiro, que condena ao fogo do inferno os que
morrem em pecado. E assim lho expus.
Cristo sorriu, movendo a cabeça negativamente.
- Os homens são hábeis manipuladores da Verdade. Um pai pode
sentir-se aflito perante as loucuras de um filho, mas nunca condenaria os
seus a um mal permanente. O inferno – tal como acreditam no teu mundo
– significaria que uma parte da Criação tinha fugido das mãos do Pai... E
posso garantir-te que isso é não conhecer o Pai.
- Porque falaste então em certa altura do fogo eterno e do ranger
de dentes?
- Se falando por parábolas não me entendeis, como posso então
ensinar-vos os mistérios do Reino? Em verdade, em verdade vos digo que
aquele que aposta forte, e se engane, sentirá como rangem os seus
dentes.
- Será que a vida é uma aposta?
- Tu o disseste, Jasão. Uma aposta pelo Amor. É o único bem em
jogo desde que se nasce.
Fiquei pensativo. Aquelas palavras eram novas para mim.
- Que te preocupa? - perguntou Jesus.
- Sendo assim, que podemos pensar dos que nunca amaram?
- Não existe tal gente.
- Que me dizes dos sanguinários, dos tiranos?...
- Também eles, amam à sua maneira. Quando passaram para o outro
lado apanharão um bom susto...
- Não compreendo.
- Verão que – ao deixarem este mundo – ninguém lhes perguntará
pelos seus crimes, riquezas, poder ou beleza. Eles próprios e só eles se
aperceberão de que a única medida válida no outro lado é a do Amor.
Se não amaste aqui, no teu tempo, só tu te sentirás responsável.
- E que acontecerá com os que não souberam amar?
- Queres dizer, com os que não quiseram amar.
Novamente me senti confuso.
. Esses, amigo – prosseguiu o Rabi captando as minhas dúvidas -,
serão os grandes enganados e, consequentemente, os últimos no Reino de
meu Pai.
- Então, o Teu Deus é um Deus de amor...
Jesus pareceu aborrecer-se:
- Tu és Deus!
- Eu, Senhor?
- Em verdade te digo que todos os nascidos levam o sinete da
Divindade.
- Mas não respondeste à minha pergunta. É Deus um Deus de amor?
- Se não fosse assim, não seria Deus.
- Nesse caso, devemos excluir da Sua mente qualquer tipo de
castigo ou prémio?
- E a nossa própria injustiça que se manifesta contra nós próprios.
- Começo a ter a intuição, Mestre, de que a tua missão é muito
simples. Engano-me se Te disser que todo o Teu trabalho consiste em
deixar uma mensagem?
O Nazareno sorriu, satisfeito. Pôs-me a mão no ombro e replicou:
- Não o podias resumir melhor...
Lázaro, sem fazer o menor comentário, teve um aceno afirmativo de
cabeça.
- Tu sabes que o meu coração é duro – acrescentei. Poderias
repetir-me essa mensagem? - Diz ao teu mundo que o Filho do Homem
veio apenas para transmitir a vontade do Pai: que sois Seus filhos!
- Isso já sabemos...
- Tens a certeza? Diz-me, que significa para ti ser filho de Deus?
Senti-me outra vez confuso. Sinceramente, não tinha uma resposta
válida. Nem sequer estava convicto da existência daquele Deus. - Eu te
direi – interveio o Mestre com grande doçura. - Ter sido criado pelo Pai
pressupõe a máxima manifestação de amor. A vós se deu por inteiro, sem
nada pedir em troca. Eu recebi o encargo de vos vir recordar isso. É essa
a minha mensagem.
- Deixa-me pensar... Então, façamos o que fizermos, estamos
condenados a ser felizes?
- É questão de tempo. O necessário para que o mundo entenda e
ponha em prática que o único meio para isso é o Amor.
Tive de meditar muito bem a minha pergunta seguinte.
Naqueles instantes a presença do ressuscitado podia representar
um certo problema.
- Se a tua presença no mundo obedece a uma razão tão elementar,
como a de deixar uma mensagem para toda a humanidade, não achas que
a tua igreja está a mais?
- A minha igreja? - perguntou por sua vez Jesus que, em minha
opinião, compreendera perfeitamente. - Eu não tive nem tenho a
menor intenção de fundar uma igreja, tal como pareces entendê-la.
Aquela resposta deixou-me estupefacto.
- Mas tu disseste que a palavra do Pai deverá ser espalhada até aos
confins da Terra...
- E em verdade te digo que assim será. Porém, isso não implica
condicionar ou submeter a Minha mensagem à vontade do poder ou das
leis humanas. Um homem não pode montar dois cavalos nem disparar dois
arcos ao mesmo tempo. E não pode um criado servir dois amos.
Porque honrará um e ofenderá o outro. Ninguém que beba um vinho
velho deseja naquele momento beber um vinho novo. Não se trasfega
vinho novo para odres velhos, para que não se rasguem, nem se trasfega
vinho velho para odres novos para que não se estrague. Nem se cose um
remendo velho num vestido novo porque se faria um rasgão.
Do mesmo modo te digo: a minha mensagem só necessita de
corações sinceros que a transmitam: não de palácios ou falsas dignidades
e púrpuras que a cubram.
- Tu sabes que não será assim...
- Ai dos que interponham a sua permanência à Minha vontade!
- E qual é a tua vontade?
- Que os homens se amem como Eu os amei. Mais nada.
- Tens razão – insinuei -, para isso não é preciso montar novas
regras nem códigos nem chefias... No entanto, muitos dos homens do
meu mundo desejariam fazer-te uma pergunta...
- Vamos – animou-se o Galileu.
- Poderíamos chegar a Deus sem passar pela igreja? O Rabi
suspirou.
- Será que precisas dessa igreja para entrares no teu coração?
Uma confusão extrema me apertou a garganta. E Jesus percebeu.
- Muito antes de existir a tribo de Levi, irmão Jasão, muito antes
de o homem ser capaz de se erguer sobre si mesmo, o meu Pai tinha
semeado a beleza e a sabedoria na Terra. Quem está primeiro, portanto,
Deus ou essa igreja?
- Muitos sacerdotes do meu mundo – repliquei -, consideram essa
igreja como santa.
- Santo é o meu Pai. Santos sereis vós no dia em que me ameis.
- Então – e peço-Te que me perdoes pelo que vou dizer-te -, essa
igreja está a mais...
- O Amor não precisa de templos ou de religiões. Um homem retira o
bem ou o mal do seu próprio coração. Um só mandamento vos dei e tu
sabes qual é... No dia em que os meus discípulos dêem a saber a toda a
humanidade que o Pai existe, a sua missão estará concluída.
- É curioso: esse Pai parece não ter pressa.
O Gigante fitou-me, condoído.
- Em verdade te digo que Ele sabe que acabará triunfando. O homem
sofre de cegueira mas Eu vim abrir-lhe os olhos. Outros seres
descobriram já que vive mais quem vive no Amor.
- Que acontece então connosco? Porque não acabamos por encontrar
essa paz?
- Eu disse que vomitarei os tbios da minha boca, mas não procures
aborrecer os teus irmãos pela moleza ou pela pressa. Deixa que cada
espírito encontre o seu caminho. Ele próprio, no final, será seu juiz e
defensor.
- Então, tudo isso do juízo final...
- Porque vos preocupa tanto o final, se nem sequer conheceis o
princípio? Já te disse que no outro lado vos espera a surpresa... - Tenho
a impressão de que Tu serias excessivamente liberal para as igrejas do
meu mundo.
- Deus como dizes, é tão liberal, que permite mesmo que te enganes.
Ai daqueles que se arrogam o papel de salvadores, respondendo ao erro
com o erro e à maldade com a maldade. Ai daqueles que monopolizem
Deus!
- Deus... Estás sempre a falar de Deus. Poderias explicar-me Quem
ou O que é?
O fogo daquele olhar voltou a trespassar-me. Duvido que exista
parede, coração ou distância que não pudesse ser atingido por
semelhante força.
- Podes tu explicar a estes homens de hoje de onde vens e como?
Pode o homem prender as cores entre as mãos? Pode uma criança
guardar o oceano entre as pregas da sua túnica? Podem alterar os
doutores da Lei o curso das estrelas? Quem tem o poder para devolver a
fragrância à flor que foi pisada pelo boi? Não me peças que te fale de
Deus, sente-o. Isso basta...
- Vou bem se te disser que o sinto como uma... energia? Não me dava
por vencido e Jesus sabia-o.
- Vais por bom caminho.
- E que existe por baixo dessa energia?
- É que não há por cima nem por baixo – atalhou o Nazareno, indo ao
encontro dos meus embrulhados pensamentos. - O Amor, quer dizer, o
Pai. É Tudo.
- Porque é tão importante o Amor?
- É a vela do navio.
- Permite-me que insista: que é o Amor?
- Dar.
- Dar? Mas o quê?
- Dar. Desde um olhar até à tua vida.
- Que podemos nós dar, os angustiados?
- A angústia.
- A quem?
- À pessoa que te queira...
- E se não tiver ninguém?
O Mestre fez um gesto negativo.
- Isso é impossível... Mesmo os que não te conhecem podem amar-te.
- E que me dizes dos teus inimigos? Também deves amá-los?
- Esses principalmente... Aquele que ama os que o amam, já recebeu
a sua recompensa.
A conversa prolongar-se-ia ainda muito pela madrugada. Sei agora
que o meu cepticismo em relação àquele Homem começara a quebrar-se...
Quatro horas mais tarde, com a alvorada, Eliseu despertou-me. Na
véspera, o Mestre tinha dado ordens precisas aos Seus discípulos para
partirem cedo para Jerusalém. Pelas sete (duas horas antes da
terceira), apresentei-me em casa de Simão, o Leproso. Jesus e os doze
encontravam-se reunidos no jardim. Desta vez, as indicações do Rabi
foram muito mais concisas: nada de ostentações e manifestações em
público. Os apóstolos, salvo os gémeos Alfeu, não se tinham recomposto
da experiência do dia anterior. Continuavam mudos, absortos. Com
sinceridade, nenhum conhecia as intenções de Jesus e este, por seu lado,
também não se mostrava excessivamente explícito. Ir à Cidade Santa
naquela altura era uma caixa de surpresas. O Sinédrio continuava de
emboscada e os íntimos do Galileu não sabiam o que o destino lhes podia
reservar.
Pelas oito da manhã, metemo-nos a caminho. Jesus, como sempre, ia
na frente.
Enquanto subíamos a encosta do monte das Oliveiras, procurei
sondar os discípulos. Que diferente foi aquela caminhada! A alegria e
entusiasmo do domingo anterior tinham-se transformado em temor,
expectativa e confusão. Havia um pensamento comum naqueles homens:
Que devia fazer: acompanharem o Mestre ou renunciarem e retiraremse?
Mas nenhum tinha a coragem suficiente para enfrentar Jesus e
expor-lhe as suas inquietações.
Por volta das nove, o grupo entrava em Jerusalém. A julgar pelo
movimento dos peões, o núcleo de peregrinos aumentara
consideravelmente. O Mestre, sem perda de tempo, encaminhou-se para
o Templo. A proximidade da Páscoa mantinha o Átrio dos Gentios em
plena ebulição. As bancas e barracas pareciam muito mais concorridas
que na tarde de domingo. Centenas de judeus, de todas as classes
sociais, esforçavam-se por comprar ou trocar as suas moedas,
preparando-se assim para as oferendas obrigatórias, para o pagamento
do tributo ao tesouro do santuário ou, simplesmente, escolhendo uma
vítima sem mácula para a ceia pascal. Gradualmente, por causa dos
abusos dos sacerdotes, a gente vulgar acabara por acorrer àqueles
intermediários, ali comprando os seus cordeiros e aves. A astúcia e a
avareza dos servidores do Templo tinham chegado a tais extremos que
qualquer animal comprado fora daquele recinto podia ser recusado, por
causas técnicas. Por outras palavras, os encarregados dos sacrifícios -
que tinham a obrigação de examinar previamente cada uma das suas
vítimas – podiam pôr de parte um anho ou um par de rolas, pelo simples
facto de considerarem que a cor do animal não era a mais adequada. Isto
representava a vergonha pública e, o que era pior, ter de comprar uma
nova vítima. Indo pelo seguro, os Hebreus acorriam a este mercado,
procurando, assim, animais de total garantia. Como já afirmei
anteriormente, esta manha era sempre acompanhada por um aumento de
preço, que era tão desonesto quanto ruinoso para as famílias mais
humildes.
Para cúmulo, o imposto ou tributo que cada hebreu tinha de
satisfazer fora fixado numa moeda comum: o siclo (uma moeda do
tamanho de dez centavos, mas com uma espessura dupla). Um mês antes
da Páscoa, os cambistas oficiais instalavam as suas mesas nas diferentes
cidades da Palestina, proporcionando assim aos peregrinos o dinheiro
necessário para tal mister. Nem é preciso dizer que, em cada operação,
estes banqueiros ficavam com uma comissão, que oscilava entre cinco e
quinze por cento do valor do câmbio. Se a moeda objecto de troca era
mais alta, estes usurários podiam ficar com uma dupla comissão.
Finalmente, quando a festa era já iminente, os cambistas dirigiam-se a
Jerusalém, estabelecendo o seu quartel-general no Átrio dos Gentios.
Este negócio dava grandes lucros aos verdadeiros proprietários do
gado, das mesas de câmbio e da multidão de ingredientes e de utensílios
que tinham de ser utilizados no sacrifício pascal. Estes proprietários não
eram senão os sacerdotes e, muito especialmente os filhos de Anás.
Jesus conhecia esta situação e também as pessoas do povo.
Mas o poder e a tirania destes indivíduos era tal que ninguém ousava
levantar a sua voz contra aquela profanação da Casa de Deus.
Neste ambiente, entre gritos, discussões, regateios e o incessante
ir e vir de centenas de hebreus, o Nazareno – tal como tinha por
costume – dispôs-se, naquela manhã de segunda-feira, 3 de Abril, a
dirigir a palavra aos numerosos crentes e adeptos que se iam juntando
perto das lojas dos vendedores e cambistas
O Mestre começou a Sua pregação mas, dali a pouco, a Sua poderosa
voz viu-se abafada por dois incidentes que iam precipitar os
acontecimentos. Numa das mesas de câmbio, muito próxima da escadaria
onde se sentara o Rabi, um judeu de Alexandria começou a discutir
acaloradamente com o responsável do câmbio. O peregrino, com razão,
protestava pela abusiva comissão que o cambista pretendia cobrar-lhe. A
coisa subiu de tom e foi-se apinhando gente à volta dos hebreus
vociferantes.
E, como não bastasse aquele tumulto, nesse momento o terreiro foi
invadido por uma manada de bois – bem mais de uma centena que era
levada pelo átrio, até aos currais situados na ala norte, junto da Porta
Probática. Os animais, propriedade do Templo, estavam destinados a ser
queimados nos próximos sacrifícios e, por consequência eram
habitualmente encerrados em estábulos, anexos ao Átrio dos Gentios.
Confrontado com aqueles mugidos e a cada vez mais exaltada conduta do
cambista, do judeu e de quantos o apoiavam, Jesus optou por fazer uma
pausa e esperar. A quinze ou vinte passos, os discípulos permaneciam
afastados e em silêncio. Mas aquela situação violenta, longe de amainar,
piorou. A densa multidão fazia que fosse quase impossível ao pastor
manter domínio nos bois, que se tinham espalhado por entre as mesas. E
aqui, enquanto o Nazareno esperava, impassível, um terceiro incidente
veio provocar a faísca final. Entre os judeus que pretendiam ouvir Jesus
encontrava-se um galileu, velho amigo do Mestre (soube depois que se
tinha encontrado com o Rabi durante a sua passagem por Iron). Este
humilde lavrador tinha começado a ser maltratado por um grupo de
peregrinos da Judeia. Entre empurrões e cotoveladas, aqueles
orgulhosos indivíduos riam-se dele pela sua incredulidade.
Quando o Gigante se apercebeu desta última cena, ante o assombro
dos Seus discípulos e de quantos ali estavam presentes, soltou o manto
e, deixando-o cair na escada foi ao encontro do pastor, arrebatando-lhe
o látego de cordas. Com uma segurança inaudita, o Galileu foi reunindo os
bois tresmalhados, tirando-os do Templo entre os sonoros gritos secos e
fortes chicotadas no ladrilhado do Atrio. Quando a multidão viu o
Mestre guiar o gado ficou electrizada. Porém, não se quedou por ali.
Uma vez concluída a operação de limpeza, Jesus de Nazaré, em
silêncio, abriu majestosamente passagem entre a multidão,
encaminhando-se a grandes passadas e com o chicote na mão esquerda
para os currais, situados no outro lado do Átrio dos Gentios, junto da
Fortaleza Antónia.
Aquilo era novo para mim e corri atrás dEle. Ao chegar aos
estábulos, o Mestre – com uma firmeza que me deixou sem fala – foi
abrindo um após outro, todos os portões, incitando os bois, machos,
carneiros e cabritos a saírem dos seus recintos.
Num instante, centenas de animais irromperam no átrio. E o Rabi,
com a mesma decisão e destreza com que tirara do Templo a primeira
manada, dirigiu aqueles assustados animais na direcção das mesas dos
cambistas e intermediários.
Como era de prever os animais espantados provocaram o pânico dos
hebreus que, na sua fuga desordenada para os pórticos de saída,
derrubaram uma infinidade de barracas. Os bois, por seu lado, acabaram
por espezinhar as mercadorias, derramando numerosos cântaros de
azeite e de sal.
A confusão foi aproveitada por um grande grupo de peregrinos, que
se vingaram virando as poucas mesas que ainda estavam de pé.
Em questão de minutos, aquele comércio fora literalmente varrido,
com o consequente regozijo dos milhares de judeus que odiavam a
profanação permanente. Quando apareceram os soldados romanos tudo
estava tranquilo e em silêncio.
Jesus de Nazaré, que não tocara com o látego num só hebreu nem
derrubara mesa alguma – de tal posso dar testemunho, pois estive muito
perto do Mestre – voltou então para o alto da escadaria e, dirigindo-se à
multidão, gritou:
- Haveis sido testemunha neste dia do que está escrito nas
Escrituras: A Minha casa será chamada uma casa de oração para todas
as nações, porém, dela haveis feito um covil de ladrões.
A minha surpresa chegou ao cúmulo quando, ainda o Rabi não
concluíra as Suas palavras, um grupo de jovens judeus se destacou da
multidão aplaudindo Jesus e cantando hinos de agradecimento pela
audácia e coragem do Galileu.
Este acontecimento, como se vê, nada tinha a ver com o que se
conta nos Evangelhos e onde – seja dito de passagem – o Messias surge
como um colérico, capaz de bater e de chicotear pessoas.
Como já mencionei, Jesus pregara muitas outras vezes naquele
mesmo terreiro do Templo e nunca se comportara daquele modo.
Conhecia perfeitamente as trapaças e os roubos feitos diariamente no
Átrio dos Gentios e, não obstante, nunca se manifestou violentamente
contra tal situação. Se, na manhã daquela segunda-feira, provocou a
debandada do gado foi, em minha opinião, como consequência de uma
situação muito concreta e insustentável.
Os que não poderiam faltar, obviamente, eram os responsáveis pelo
Templo. Quando os sacerdotes tiveram conhecimento do incidente
acorreram, pressurosos, ao local onde se encontrava Jesus,
interrogando-o com severidade:
- Não ouviste o que dizem os filhos dos levitas? Mas Jesus
respondeu-lhes:
- Nas bocas dos meninos e das crianças se aperfeiçoam os louvores.
Os jovens intensificaram então os seus cânticos e aplausos,
obrigando os fariseus a afastarem-se do local. A partir daquele
momento, grupos de peregrinos colocavam-se junto das portas de acesso
ao Templo, impedindo que pudesse restabelecer-se o câmbio de moedas
e a venda normal dos intermediários. Os jovens não consentiram que
fosse transportada uma única vasilha para o terreiro.
Talvez o mais triste e desconsolador daquele acontecimento fosse a
atitude dos doze. Durante a fogosa intervenção do Mestre, o grupo
permaneceu encolhido num canto, sem levantar uma mão para ajudar ou
proteger Jesus. Esta nova e surpreendente acção do Galileu lançara-os
numa desorientação total.
Mas se grande era a confusão dos discípulos de Cristo, a dos chefes
do Templo, escribas e fariseus não era menor. Aquilo fora a gota de água
que lhes esgotou a paciência. Aproveitando a ausência de José de
Arimateia, Nicodemo e outros amigos de Jesus, o Sinédrio convocou uma
reunião de emergência, para análise da situação. Era preciso prender o
impostor sem perda de tempo. Mas como e onde? Os escribas e os
restantes sacerdotes viam que a multidão estava do lado do Galileu.
Havia, além disso, outro facto que não podiam perder de vista: a
presença do procurador romano Pôncio Pilatos em Jerusalém.
Se a prisão de Jesus se materializasse à luz do dia e à vista dos
milhares de peregrinos vindos de todos os cantos da Palestina e do
estrangeiro, a captura podia dar lugar a uma revolta generalizada. Isso
significaria, com toda a certeza, uma violenta repressão das forças
romanas aquarteladas na Torre Antónia e no acampamento provisório,
montado pelos soldados na zona noroeste da cidade, nas imediações das
piscinas de Bézatha. Que podiam, então, fazer?
Durante horas, os membros do Sinédrio discutiram quanto à maneira
ideal de prender Jesus. Mas acabaram por não chegar a um acordo.
A única solução válida foi criar cinco grupos de peritos
especialmente escribas e fariseus -, que seguiram os passos do Galileu e
tentaram confundi-lo e ridicularizá-lo em público, destruindo assim o
Seu prestígio e influência entre a gente simples.
Obedecendo a esta orientação, pelas duas da tarde, um destes
grupos pôs-se a caminho do lugar onde Jesus fazia a Sua pregação. E,
com o seu estilo característico – soberbo e autoritário -, perguntaram ao
Mestre:
- Com que autoridade fazes estas coisas? Quem Te deu tal
autoridade?
Eles sabiam que o Nazareno não tinha passado pelas obrigatórias
escolas rabínicas e que, portanto, os Seus ensinamentos e até o título de
rabi, que muitos lhe atribuíam, não eram correctos, segundo o rigoroso
ponto de vista legal e jurídico.
Mas Jesus – com aquela rapidez de reflexos que o caracterizava
respondeu-lhes com outra interrogação:
- Também me agradaria fazer-vos uma pergunta. Se me
responderdes, eu vos direi igualmente com que autoridade faço estes
trabalhos.
Dizei-me: o baptismo de João, de onde partiu? Conseguiu João esta
autoridade pelo céu ou pelos homens? Os escribas e fariseus formaram
círculo e começaram a deliberar em voz baixa, enquanto Jesus e a
multidão esperavam em silêncio.
Tinham pretendido encurralar o Galileu e eram eles que se viam A
grande diferença entre os escribas e o restante sacerdócio – fariseus,
levitas, chefes do Templo, etc. - baseava-se no saber. Os escribas eram
os depositários da ciência e da iniciação. Para chegar a fazer parte das
chamadas corporações de escribas”, o aspirante via-se obrigado a
frequentar numerosos estudos, que começavam nos seus anos de
juventude. Quando o talmid ou aluno conseguia dommar a matéria
tradicional e o método da halaja (determinadas secções da literatura
rabínica de argumento legal), até ao ponto de ser considerado como
pessoa capacitada para tomar decisões
pessoais em questões de legislação religiosa e de direito penal,
então e só então, era designado como doutor não ordenado, ou talmid
hakan.
Depois, chegado aos quarenta anos – idade canónica para ü
ordenação – o aspirante a escriba podia entrar na corporação, como
membro de pleno direito ou hakan. A partir desse momento, o novo
escriba estava autorizado a conciliar por si mesmo as questões de
legislação religiosa ou ritual, a ser juiz nos processos criminais e a tomar
decisões nos juízes de carácter civil, fosse como membro de um tribunal
de justiça ou, então, individualmente.
Tinha direito a ser chamado rabi. As suas decisões tinham o poder
de atar” e desatar, para sempre os judeus do mundo inteiro. Nicodemo,
por exemplo, amigo de Jesus, era um destes prestigiados escribas, a
cuja passagem deviam levantar-se todos os filhos de Israel, com
excepção de determinadas profissões artesanais. Porém, o que mais
poder e influência lhes proporcionou entre os seus compatriotas foi o
facto de serem portadores da ciência secreta,: a tradição esotérica. Um
dos seus textos dizia: Não devem ser explicadas publicamente as leis
sobre o incesto na frente de três ouvintes, nem a história da criação do
mundo na frente de dois, nem a visão do carro de fogo na frente de um,
a não ser que este seja prudente e de bom senso. A quem considere
quatro coisas, mais lhe valera não ter vindo ao mundo a saber: (em
primeiro lugar) o que está em cima (em segundo lugar) o que está em
baixo (em terceiro lugar) o que era antes (em quarto lugar) o que será
depois. (Escrito rabínico flagíga II,1 e 7).
É fácil compreender a audácia de Jesus quando, em muitas das suas
pregações públicas, se lançou contra os escribas, acusando-os de terem
tomado para si as chaves da ciência, fechando aos homens o acesso ao
reino de Deus. Nunca os escribas lhe perdoariam tal afirmação. (N. Do
M. )
agora numa situação embaraçosa. Por fim, voltando-se para Jesus,
replicaram:
- Em relação ao baptismo de João, não podemos responder. Não
sabemos...
A razão daquela negativa era bem clara. Se afirmassem que fora do
céu, Jesus poderia responder-lhes: Então porque não haveis acreditado
nele? Além disso neste caso o Mesíre podia acrescentar que a Sua
autoridade vinha de João. Se, pelo contrário, os escribas dissessem que
fora dos homens, aquela multidão – que considerara João como um
profeta poderia atacar os sacerdotes...
A estratégia de Cristo, mais uma vez, fora brilhante e vencedora. E
o Rabi, olhando-os fixamente, acrescentou:
- Pois também eu não vos direi com que autoridade faço estas
coisas.
Os Hebreus soltaram ruidosas gargalhadas, ante a impotência dos
mestres máximos de Israel vermelhos de ira e de vergonha.
Jesus dirigiu então o olhar para os que tinham querido perdê-Lo e
disse-lhes:
- Uma vez que estais em dúvida sobre a missão de João e em
inimizade com o ensinamento e os actos do Filho do Homem, prestai
atenção enquanto vos conto uma parábola. Certo grande e respeitado
agrário - começou o Galileu a sua história – tinha dois filhos.
Desejando que o ajudassem na administração das suas terras,
dirigiu-se a um deles e disse: Filho, vem trabalhar hoje na minha vinha. E
este filho, sem pensar respondeu a seu pai: Não quero ir. Mas logo se
arrependeu e foi
Quando o pai encontrou o segundo filho disse-lhe: Filho, vem
trabalhar na minha vinha. E este filho, hipócrita e desleal, respondeu:
Sim, pai, vou. Mas, quando o pai se afastou, não foi.
Deixai que vos pergunte: qual destes filhos fez realmente a vontade
de seu pai?
Todos, como um só homem, responderam:
- O primeiro filho.
Jesus replicou então, olhando para os sacerdotes:
- Pois assim Eu declaro que os tabemeiros e prostitutas, embora
pareçam recusar o apelo ao arrependimento, verão o erro do seu caminho
e entrarão no reino de Deus antes de vós que tendes grandes pretensões
de servir o Pai do Céu, mas que recusai os trabalhos do Pai. Não haveis
sido vós, escribas e fariseus, os que acreditaram em João, mas os
tabemeiros e pecadores. Também não haveis acreditado nos Meus
ensinamentos, mas a gente simples escuta com gosto as minhas palavras.
Aquela segunda crítica pública obrigou os escribas e fariseus a dar
meia volta entrando no santuário. E o Mestre continuou pregando em
paz, fazendo as delícias da multidão.
Por José de Arimateia soubemos que a cólera dos sacerdotes
chegara a tal paroxismo que pouco faltou para que os levitas cercassem
Jesus naquela mesma manhã, procedendo à sua captura. Mas a entrada
em jogo dos saduceus (1) – que constituíam maioria no Sinédrio – atrasou.
Naqueles tempos, o Sinédrio encontrava-se, basicamente, dividido
em dois grandes grupos: os fariseus e os saduceus. Estes últimos
formavam um partido organizado, integrado, fundamentalmente, pela
nobreza laica e sacerdotal, pelos anciães ou notáveis do povo e pelos
sacerdotes-chefes. (O sumo sacerdote em funções naqueles dias,
novamente os planos dos inimigos de Cristo. Esta casta sacerdotal
aceitara pessimamente o desmantelamento dos cambistas e
intermediários e, pela primeira vez, apoiou os planos dos fariseus e
escribas para eliminar Jesus. Isto significou maioria absoluta na hora de
decidir e condenar o Rabi da Galileia.
Entretanto, Jesus começara a contar uma segunda parábola – a do
rico proprietário que chegou a enviar o próprio filho para convencer os
trabalhadores rebeldes da sua vinha a que lhe pagassem a renda -,
perguntando aos que assistiam que deveria fazer o dono da vinha com
aqueles arrendatários malvados.
- Destruir esses homens miseráveis – respondeu a multidão e
arrendar o seu vinhedo a outros lavradores honestos, que lhe dêem os
seus frutos em cada estação.
Muitos dos presentes compreenderam o sentido da parábola de
Jesus e exprimiram-se em voz alta!
- Deus perdoe a quem continue fazendo coisas destas! Mas alguns
fariseus não se davam por vencidos e voltaram ao local
onde Jesus pregava. O Mestre, ao vê-los, disse-lhes:
- Sabeis como vossos irmãos repudiaram os profetas e bem sabeis
que estais resolvidos a repelir o Filho do Homem. - Depois de alguns
instantes de silêncio, o Seu olhar tornou-se mais agudo e acrescentou:
- Nunca lestes na Escritura sobre a pedra que os construtores
recusaram e que, quando o povo a descobriu, dela fez a pedra angular?...
Mais uma vez vos aviso. Se continuais repudiando o Evangelho, o
reino
de Deus será levado para longe de vós e entregue a outra gente,
desejosa de receber boas novas e de levar em frente os frutos do
espírito. Eu digo-vos que existe um mistério nessa pedra: quem cai sobre
ela, ainda que fique partido aos pedaços, salvar-se-á. Mas aquele sobre
quem caia esta pedra angular, será moído até ficar em pó e as suas
cinzas serão espalhadas aos quatro ventos.
Nesta altura, os escribas e chefes nem sequer tentaram replicar. E
o Mestre prosseguiu nos Seus ensinamentos, contando uma terceira
parábola: a do festim das bodas.
Quando terminou, Jesus pôs-se de pé e preparou-se para se
despedir da multidão. Nesse instante, um dos crentes levantou a voz e
interrogou o Rabi:
- Mas, Mestre, como saberemos essas coisas? Que sinal nos darás
para que saibamos que és Tu o Filho de Deus? Houve um novo e pesado
silêncio. Mas quando os fariseus, muito atentos, consideravam que o
impostor caíra na Sua própria armadilha, o Galileu – com voz sonora e
apontando com o indicador esquerdo o próprio peito – afirmou:
- Destruí este Templo e em três dias o erguerei.
José, conhecido por Caifás, era saduceu). A sua teologia, era
diferente da dos fariseus. Cingia-se rigorosamente ao texto da Tora, em
especial no que se referia às prescrições relativas ao culto e ao
sacerdócio. A sua oposição aos fariseus e a sua halaká ou tradição oral
era completa e, até, furiosa. Dispunham, além disso, do seu próprio
código penal, de uma severidade extrema. Como é evidente, houve muitos
escribas que praticavam a doutrina saduceia. (N. Do M.)
Deu Jesus por terminada a Sua pregação e, descendo a escadaria,
convidou os discípulos a que o seguissem.
A multidão começou a dispersar-se, trocando uma infinidade de
comentários. Evidentemente – pelo que pude escutar – não tinham
compreendido o verdadeiro significado daquela última e lapidar frase de
Cristo.
- Quase cinquenta anos esteve este templo em construção – diziam
uns aos outros -, e diz que o destruirá e o erguerá em três dias? Como
era natural, também os apóstolos não entenderam a intenção do Rabi. Só
depois – muito depois da Sua ressurreição – se fez luz nos seus
corações.
Pelas quatro da tarde, o grupo saía novamente de Jerusalém, rumo a
Betânia.
Enquanto subíamos pela encosta ocidental do monte das Oliveiras,
encurtando assim o caminho para a aldeia de Lázaro, Jesus deu
instruções a André, Tomás e Filipe para que, a partir do dia seguinte,
terça-feira, os discípulos preparassem um acampamento nas cercanias da
Cidade Santa. Aquilo significava que o Nazareno tinha a intenção de
instalar o seu local habitual de repouso – até àquele momento em Betânia
– nos arrabaldes de Jerusalém. Mas, para quê? Que nos reservava o
destino naqueles dois dias – terça e quarta-feira -, tão escassamente
conhecidos, no que às actividades do Mestre se refere?
A inesperada decisão de Jesus – que, logicamente, não estava
prevista no nosso plano de trabalho, uma vez que os textos canónicos e
apócrifos não mencionam este acampamento – ia precipitar o meu
regresso ao módulo, fixado por Cavalo de Tróia para o entardecer de
terça-feira, 4 de Abril.
Poucas horas depois, precisamente pelo anoitecer da referida
terça-feira, e à vista do que aconteceu, comecei a compreender a razão
por que o Rabi de Galileia dera aquela ordem...
Pela segunda vez, enquanto caminhávamos para Betânia, tive
oportunidade de verificar como a quase totalidade dos doze homens de
confiança de Jesus não entendera a mensagem nem as intenções do
Nazareno. Os seus comentários e, principalmente, os seus silêncios
reflectiam uma profunda confusão. A majestosa acção do seu Mestre ao
longo daquela manhã de segunda-feira, arruinando o sacrílego comércio
dos cambistas e intermediários do Templo, tinha-lhes devolvido as
esperanças de um Jesus poderoso, capaz de instaurar um reino terrenal
e político em Israel. Porém, ao chegar a tarde, o repúdio dos sacerdotes
judeus dos Seus ensinamentos de novo os fez cair na incerteza. Aqueles
homens pressentiam qualquer coisa. Apesar do seu escasso nível cultural,
o permanente contacto com a tensa realidade daqueles dias e as
repetidas advertências de Jesus de Nazaré sobre o Seu fim próximo
fazia-os ter a intuição de uma catástrofe. Estrangulados pelo medo e
pelas dúvidas, os discípulos encaminharam-se para os seus respectivos
locais de repouso, ainda que – conforme verifiquei na manhã seguinte –
muito poucos fossem os que conseguiram dormir.
E, naquela noite de segunda-feira, 3 de Abril do ano 30, depois de
me despedir temporariamente de Lázaro e de sua família, abordei o
berço, iniciando os preparativos da segunda fase da exploração. Sem
dúvida a mais trágica e apaixonante de quantas algum homem tenha
empreendido.
A escuridão era total quando comecei a subir o monte das Oliveiras
pelo lado oriental. Tinha já avisado Eliseu do meu iminente regresso ao
módulo, como consequência da alteração de planos do Mestre da Galileia.
Estive tentado a arranjar um archote, a fim de caminhar com maior
segurança pela vereda que passava por entre os olivais. Mas um
elementar sentido de prudência fez-me desistir.
O eco do microtransmissor colocado na fivela do meu manto chegava
nitidamente ao berço. Aquilo tranquilizou-me. Naquele momento, o meu
objectivo era alcançar a cota superior do monte das azeitonas, situada à
direita da vereda. Uma vez localizada a clareira pedregosa onde estava
pousado o módulo, Eliseu encarregar-se-ia de me guiar, mediante a
ligação auditiva. Uma hora antes, quando regressávamos a Betânia, eu
tinha ficado para trás, atando a um dos ramos de um zambujeiro
- justamente no cimo do monte das Oliveiras – o pequeno lenço
branco que me servia para enxugar o suor e que, como os Hebreus,
sempre trazia atado no pulso esquerdo.
Tal como esperava e, com o consequente alívio da minha parte, não
cheguei a cruzar-me com nenhum caminhante. Ao distinguir o pano
ondulando suavemente ao vento, apressei o passo. E, depois de o tirar da
oliveira brava deixei o caminho, metendo-me por entre o mato na
direcção norte. À minha esquerda, avistavam-se as luzes amarelas e
pestanejantes de Jerusalém, ao longe. Uma meia lua aparecia de quando
em quando entre as compactas faixas de nuvens, facilitando
consideravelmente a minha aproximação da nave. Poucos minutos depois,
entrava na clareira, localizando o suave promontório pedregoso sobre o
qual devia estar pousado o módulo. Eliseu, em ligação permanente, fora
orientando os meus passos, corrigindo, através do écran do radar, alguns
dos meus inevitáveis desvios de rumo. Ao penetrar na zona de segurança
do módulo – a cerca de cento e cinquenta pés do ponto de contacto -, o
meu companheiro anunciou-me que ia desligar parcialmente a barreira
infravermelha, com o fim de tornar visíveis as bases de sustentação do
berço, tornando assim mais fácil a minha entrada na nave.
De repente, a meio da escuridão e como que cravados nas rochas,
apareceram quatro largos tubos, apontando como fantasmas azulados
para a imensidão dos céus.
Simultaneamente, e com um suave resfolegar, o sistema hidráulico
fez descer a pequena escada de alumínio. Sem perda de tempo introduzime
no trem de aterragem do berço, subindo ao interior do módulo.
Suponho que se alguém pudesse ver-me naquele momento, subindo por
uma escadinha que, aparentemente, não dava para parte alguma, e
desaparecendo progressivamente – primeiro a cabeça, ombros e braços e
depois o resto do tronco, ventre, pernas, o susto teria sido considerável,
acreditando talvez que estava presenciando uma visão divina... O meu
encontro com Eliseu foi especialmente tenso e emotivo. Uma vez no
berço, o meu companheiro voltou a levantar o painel sobre a base de
sustentação e, depois de verificar que tudo continuava calmo em redor
da nave, preparámo-nos para a revisão e execução da segunda fase da
operação.
A minha entrada no módulo foi registada pelas vinte horas e cinco
minutos. Isto significava que ainda dispunha de umas nove horas antes
do meu regresso ao grupo de Jesus, previsto, segundo Cavalo de Tróia
para as seis e trinta da manhã do dia seguinte, terça-feira, 4 de Abril.
Depois de me lavar e mudar de roupa – o calçado, não – Eliseu
entregou-me aquilo que, familiarmente, conhecíamos por a vara de
Moisés: o único instrumento usado fora do berço e que ia desempenhar
um papel fundamental na minha exploração seguinte, em especial a partir
da prisão do Nazareno, na noite de quinta-feira, 6 de Abril. Obviamente,
numa viagem> daquela natureza, os homens do general Curtiss tinham
previsto – pelo menos para as horas de máxima tensão – a filmagem dos
principais acontecimentos: noite da chamada Quinta-feira Santa sextafeira
e domingo de Ressurreição.
Além da citada filmagem, Cavalo de Tróia tinha especial interesse
na sequência exaustiva – minuto a minuto – das torturas que o Nazareno
ia sofrer, bem como das Suas horas na Cruz. A sequência de uma dupla
fonte: por um lado, o meu testemunho pessoal e, por outro, sem dúvida
mais importante, através de um sofisticado equipamento técnico, capaz
de simultaneamente, filmar e analisar, de um ângulo estritamente
médico.
Como é natural, estas delicadas operações não podiam efectuar-se
abertamente. Isso iria contra os princípios básicos do Projecto. Era
inviável, portanto, que eu andasse com uma câmara de cinema ou com os
complexos aparelhos de rastreio das funções vitais de Jesus de Nazaré.
E como, naturalmente, também não era possível a implantação de fios ou
dispositivos electrónicos no corpo do Mestre da Galileia que nos
permitiriam um controlo das suas funções orgânicas, tensão arterial
ritmo cardíaco, etc., Cavalo de Tróia desenhou e fabricou um complexo
sistema, minuciosamente camuflado no que chamávamos a vara de
Moisés.
Este engenho – que irei pormenorizando de forma
progressivaconsistia num simples cajado de madeira de pinheiro de um
metro e oitenta de comprimento por três centímetros de diâmetro, com
o correspondente remate superior, em forma de arco (1). Para o
observador
* O remate do cajado ou vara de Moisés” - em forma de asa
encurvada – fora estudado meticulosamente pelo Projecto Cavalo de
Tróia, na base de uma das minhas missões, em que tinha de desempenhar
o papel de áugure” ou adivinho,. Estes astrólogos” distinguiam-se,
precisamente, pelo seu lituus: uma pequena vara com uma parte curva.
comum, alheio às nossas intenções, não deveria apresentar maior
interesse que o de qualquer vara vulgar, como as usadas habitualmente
pelos caminhantes e peregrinos. No seu interior, no entanto, fora
colocado um delicadíssimo equipamento. A um metro e sessenta –
contando sempre a partir da base do bastão – encontravam-se quatro
canais de filmagem simultânea, com as objectivas distribuídas em cruz,
de forma a poderem filmar, ao mesmo tempo, quanto sucedia nos
trezentos e sessenta graus à nossa volta. As quatro bocas de filmagem –
de quinze milímetros de diâmetro cada uma – tinham sido dissimuladas
mediante um anel de três centímetros de largura, formado por um
cristal semi-reflexo, de modo a que só permitisse a visão de dentro para
fora. Esta espécie de braçadeira, primorosamente trabalhada pelos
nossos técnicos, de modo a parecer uma simples faixa de tinta preta
sobre a madeira branca, fora reforçada e adornada com duas filas de
pregos de cobre, que a prendiam firmemente. Estes pregos de cabeça
larga tinham sido trabalhados de acordo com as antiquíssimas técnicas
da indústria metalúrgica descobertas por Nelson Glueck no vale de
Arabá, ao sul do mar Morto, e em Esyón-Guéber, o lendário porto
marítimo de Salomão, no mar Vermelho. Evitando possíveis problemas, os
homens de Curtiss tinham seguido rigorosamente as normas de Misná ou
tradição oral judaica que, na sua Ordem Sexta – dedicada às prescrições
entre purezas e impurezas -, especifica que um bastão pode ser
susceptível de impureza se não for adornado com três filas de pregos.
Um destes pregos, de cor esverdeada, mais intensa do que o restante, e
ligeiramente separado da superfície do cajado, podia ser premido
manualmente, iniciando-se, assim – de maneira automática -, a filmagem
simultânea. Bastava uma nova pressão para que o prego voltasse à
posição inicial, interrompendo-se a gravação.
Também por altura da grande viagem, Cavalo de Tróia prescindiu
das objectivas habitualmente usadas nas câmaras de filmagem,
ajustando nas bocas de cinema um sistema revolucionário que, estou
certo, se imporá, um dia, na actual técnica fotográfica. Dada a extrema
miniaturização dos sistemas, tornava-se muito difícil a mudança de
objectivas nas câmaras, que permitiria a tomada de planos diferentes.
Mediante uma técnica extremamente complexa, as lentes de vidro
foram substituídas pelo que poderíamos chamar lentes gasosas,
susceptíveis de se transformarem (sem necessidade de substituição de
objectivas) em grandes-angulares, teleobjectivas, lentes de
aproximação, etc.
Superior enroscada ou dobrada, em forma de asa curvada ou fraca
espiral, tal como tínhamos observado num baixo-relevo famoso,
existente no Museu de Florença, em Itália.
O facto de ter escolhido, precisamente, a madeira de pinho para o
fabrico da vara de Moisés” teve uma justificação puramente
sentimental: desta madeira – reza a lenda – se fez precisamente o Cavalo
de Tróia”, que o exército helénico colocou em frente das portas de
Tróia. (N. Do M.) Embora não pretenda alongar-me na legião de factores
técnicos que formavam o recentíssimo sistema das lentes gasosas”,
quero oferecer algumas das suas características mais gerais, consciente
de que talvez possa servir de pista aos investigadores e profissionais do
mundo da fotografia, já que, como temo, este magnífico processo não
seja dado a conhecer ao mundo de imediato. A chave ou fundamento
encontra-se no 172
Este dispositivo de lentes gasosas ia ser de extrema utilidade. Ao
longo das tensas e dramáticas quinta e sexta-feiras, a substituição
instantânea de uma grande-angular por uma teleobjectiva, por exemplo,
permitir-me-ia filmar pormenores de extrema importância,
especialmente durante as horas que durou a crucifixão. Embora prefira
referir-me a isso mais adiante, o processo de filmagem encontrava-se
intimamente ligado a outro sistema, de exploração médica: a emissão
infravermelha, igualmente colocada na vara de Moisés, embora num
mecanismo alojado na zona superior do cajado, a um metro e setenta da
base. Tanto o equipamento de filmagem como o de infravermelhos eram
fenómeno de refracção da luz. Toda a gente sabe que, quando um raio de
luz passa de um meio transparente a outro de diferente natureza ou
densidade sofre uma mudança de direcção. Toda a teoria óptica
geométrica tende para a análise destas mudanças no caso de dióptricos,
e lentes ou diferentes tipos de superfícies reflectoras ou espelhos. Por
outras palavras: os técnicos conseguem integrar a imagem visual de um
objecto luminoso qualquer refractando os raios de luz por meio de um
objecto de perfil estudado cuidadosamente, e composição química
definida, a que chamam lente,, embora de estrutura rígida. No entanto, o
fenómeno de refracção também é provocado num meio elástico, como é o
caso de um gás. As lentes gasosas, partem, em suma, deste princípio, que
recorda, em parte, o mecanismo fisiológico do olho, em que a lente, - o
cristalino- não é rígida, mas elástica. Pois bem, as nossas câmaras
substituíram estes meios – rígido (vidro) ou semielástico (gelatina) – por
um meio gasoso de refringência variável.
Comentemos outro exemplo: num recipiente cheio de ar, aquecido na
sua parte inferior e arrefecido na superior, as camadas inferiores serão
menos densas que as superiores. Neste caso, e devido à dilatação
térmica do gás, um raio de luz sofrerá sucessivas refracções, curvandose
para cima. Se invertermos o processo, o raio curvar-se-á para baixo.
Baseando-se nestes princípios, Cavalo de Tróia conseguiu um controlo de
temperaturas muito exacto nos diversos pontos de uma massa sólida,
líquida, gasosa ou de transição. Isto conseguiu-se emitindo dois feixes
de ondas ultracurtas, que esvaziaram o gradiente de temperatura num
ponto concreto p de uma massa de gás; quer dizer, obteve-se o
aquecimento de uma pequena massa de gás nessa zona. Por este processo
se pôde aquecer, por exemplo, a totalidade de um recipiente, deixando
no interior uma massa de gás frio, que adopta uma forma lenticular que,
por sua vez, pode ser alterada, conseguindo-se uma alteração na sua
espessura e forma óptica. A luz que atravessa essa massa, previamente
trabalhada, de gás frio seguirá direcções definidas, de acordo com as
leis ópticas universais. Esta foi a chave para substituir, definitivamente,
as lentes tradicionais de vidro pelas de natureza gasosa. Estas lentes
revolucionárias são criadas no interior de um cilindro transparente de
paredes muito delgadas, cheio de gás nitrogénio. Uma série de
radiadores de ultrafrequência (em número de mi1 e duzentos)
distribuídos perifericamente, aquecem à vontade e a diferentes
temperaturas os diversos pontos da massa gasosa, conseguindo-se assim
o que pode ir de um simples menisco lenticular de luminosidade f:32 a um
complexo sistema equivalente, por exemplo, a uma teleobjectiva ou uma
grande-angular de cento e oitenta graus. Estas câmaras não dispõem de
diafragma, para que a luminosidade da óptica” varie à vontade.
O filme, de selénio, carregado electrostaticamente, regista uma
imagem eléctrica, que substitui a imagem química. Esta película é
formada por cinco lâminas transparentes sobrepostas, cuja
sensitometria está calculada para outras tantas imagens de diferentes
comprimentos de onda. Além de uma segunda câmara de gás xénon, para
um novo complicado tratamento óptico das imagens (criando,
instantaneamente, uma espécie de prisma de reflexão), as nossas
câmaras de lentes gasosas são alimentadas por um minúsculo computador
nuclear, que constitui o cérebro do aparelho.
Este microcomputador, munido também de memória de titânio, rege
o funcionamento de todas as suas partes, programando os diversos tipos
de sistemas ópticos no cilindro de gás e tendo em conta todos os
factores físicos que intervêm: intensidade e brilho de imagem,
distâncias focais, distância do objecto para a sua correspondente
apoiados pelo já referido microcomputador nuclear, estrategicamente
encerrado na base da vara.
A sua complexidade era tal que, além das funções de controlo
automático das filmagens, acumulação de película (com capacidade para
cento e cinquenta horas de filmagem), regulação das emissões, recepção
e processamento das ondas ultra-sónicas e radiação infravermelha,
traduzindo-as por imagens e sons, alimentação dos geradores de
ultrafrequência, etc., a sua memória de titânio (1) permitia-lhe, até,
controlar, a cada instante, os movimentos de turbulência em cada um dos
pontos das quatro câmaras gasosas de cinema, corrigindo-as e
conseguindo uma perfeita estabilidade óptica.
4 DE ABRIL, TERÇA-FEIRA
Na madrugada daquela terça-feira, 4 de Abril, pelas cinco horas e
quarenta e dois minutos desci do módulo, iniciando o caminho de
regresso a Betânia. O céu recuperara o seu formoso azul-celeste e a
temperatura, ainda que ligeiramente mais baixa que nos dias anteriores,
no momento de me despedir de Eliseu (o berço registou onze graus
centígrados), era suportável.
Além de me permitir um breve mas profundo repouso e uma limpeza
completa, aquele breve período no módulo servira para satisfazer um
pequeno capricho, intensamente desejado durante os cinco primeiros
dias de exploração: poder tomar o pequeno-almoço à maneira antiga
(embora neste caso tão especial devesse talvez dizer-se à maneira
futura...) tal como tinha por costume nos Estados Unidos. Assim, diante
dos olhos divertidos do meu companheiro, eu mesmo preparei os ovos *
focagem profundidade do campo, filtragem cromática, ângulo do campo
visual, etc. (N. Do M.)
É possível que muitas pessoas se perguntem como se pode conseguir
um microcomputador nuclear de dimensões tão reduzidas, que seja
possível meter dentro de uma vara de pinheiro de trinta milímetros de
diâmetro. Embora não esteja autorizado a descrevê-las inteiramente,
tentarei esboçar algumas das suas características essenciais.
Em geral, os dispositivos amplificadores de voltagem ou de
intensidade dos computadores actuais estão baseados nas propriedades
da emissão catódica no vácuo, controlada por um electrão auxiliar, ou nas
características do estado sólido, como no caso dos díodos e transístores
de germânio e de silício. Mas os referidos circuitos não amplificam a
energia.
Mais ainda: a potência de saída é sempre menor que a de entrada
(rendimento menor que a unidade). Apenas amplificam a tensão à custa
de energia gerada numa fonte energética auxiliar: pilha ou rectificador
de corrente alterna. Pelo contrário, os elementos dos computadores de
Cavalo de Tróia (amplificadores nucleicos) têm características distintas.
Em primeiro lugar, a base não é electrónica – também não é de vácuo
ou de estado sólido (cristal) – mas sim nucleica. Uma débil energia de
entrada (neutrões ou protões unitários incidindo sobre uns quantos
átomos) provoca, por fissão do núcleo, grande energia. O rendimento,
portanto, é muito maior que a unidade. À saída do amplificador
elementar obtemos esta energia, não eléctrica mas sim térmica, embora,
num processo posterior, o calor se transforme em energia eléctrica.
E sendo a base destes elementos puramente atómica – e entrando
em jogo, não triliões de átomos, mas umas quantas unidades -, o grau de
miniaturização é extraordinário, conseguindo armazenar complexíssimos
circuitos em volumes reduzidíssimos. (N. Do M.
Mexidos, o bacon, as torradas com manteiga e as generosas
chávenas de café fumegante.
E, com ânimo retemperado, agarrei o meu novo e inseparável
companheiro – a vara de Moisés -, guardando na bolsa de borracha um
diminuto microfone, as lentes de contacto, duas esmeraldas, uma corda
colorida e a carta do suposto amigo da Tessalonica. Tudo isto, como
iremos vendo, de extrema importância para o desenvolvimento da minha
missão...
À medida que me aproximava de Betânia, seguindo a mesma vereda
que tomara na noite anterior para o meu regresso ao berço, uma
crescente curiosidade se foi apossando de mim. Que me reservaria o
destino naqueles dois dias – terça e quarta-feiras -, dos quais mal se fala
nas crónicas evangélicas? Que faria Jesus de Nazaré durante as horas
que antecederam a Sua prisão?
Aquela inquietação fez-me apressar o passo.
Quando me encontrava a uma pedrada do caminho que vai de
Jerusalém a Jericó, e que atravessava Betânia, um cerrado matagal
atraiu-me a atenção. Tratava-se de belos racimos de junco – da espécie
sultão -, muito apreciados pelas mulheres judias. Eu sabia que as
hebreias gostavam de adornar os cabelos com feixes destas aromáticas
flores, extraindo também dos seus pequenos tubérculos ovóides (um
pouco menores que avelãs) uma espécie de licor refrescante, de sabor
muito semelhante à orchata.
Contente com a minha descoberta, arranquei um ramo abundante e
prossegui a marcha.
Ao chegar à aldeia, o ruído familiar da moenda do grão pôs-me de
sobreaviso: os habitantes de Betânia esforçavam-se nos seus afazeres
e, provavelmente, o Mestre da Galileia – consumado madrugador – teria
iniciado já o Seu dia. Não tinha tempo a perder.
Ao entrar na casa de Lázaro, a família saudou-me com vivas
manifestações de alegria, oferecendo-me o tradicional beijo na face.
Marta, em especial, parecia muito mais nervosa e feliz que os outros pela
minha nova visita.
Porém, a sua perturbação atingiu o cúmulo quando, inesperadamente,
lhe pus nas mãos o cacho de junças. Os seus profundos olhos negros
afundaram-se nos meus. E logo, num dos seus peculiares impulsos, se
afastou do grupo, em corrida, refugiando-se numa das casas do pátio
central. Maria e Lázaro não puderam conter o riso. Mas os meus
pensamentos estavam em Jesus e de imediato interroguei Lázaro quanto
ao paradeiro do Mestre. Aquele meu interesse pelo Galileu deve tê-lo
enchido de satisfação e, atendendo o meu pedido, ofereceu-se para me
acompanhar à casa de Simão, o Leproso.
Pela posição do Sol deviam ser sete da manhã quando, depois de
atravessar o jardim, me juntei ao grupo de discípulos que conversavam
com o Rabi junto das escadarias onde eu tivera a minha primeira
conversa com o Mestre.
Prudentemente, mantive-me afastado daquela grande reunião,
observando que, além dos doze homens de confiança, assistia uma
dezena de mulheres – eleitas igualmente por Jesus no princípio do seu
magistério – bem como vinte ou vinte e cinco discípulos, todos eles muito
amigos do Galileu, além do proprietário da casa, o velho Simão.
Pelo tom da Sua voz, mais grave que o habitual, compreendi que
aqela reunião tinha um sentido muito especial. Não me enganei. Jesus,
ante os olhos atónitos dos Seus amigos, foi-lhes dizendo adeus. Naquele
instante, premi dissimuladamente o prego de cobre activando a filmagem
simultânea.
Ninguém se apercebeu da manobra. No entanto, e acredito assim
que o devo registar em honra da verdade, no momento em que iniciei a
gravação, o Gigante – que se encontrava de costas e conversando com o
grupo de mulheres – virou subitamente a cabeça, lançando primeiro o
olhar para mim e, logo a seguir, para a vara que eu empunhava com a mão
direita. Uma onda de sangue me subiu ao rosto. Mas o Mestre, em
questão de segundos, acabou por esboçar um largo sorriso, a que julgo
ter correspondido, ainda que não esteja muito certo... Por um momento,
julguei que tudo se ia perder.
Os apóstolos e discípulos, quedos e cada um dos gestos do Mestre,
associaram aquele olhar e o imediato sorriso à minha presença, não lhe
concedendo mais transcendência que a de uma calorosa saudação a um
gentio que demonstrava aberto e sincero interesse pela doutrina do
Rabi. Depois, Jesus dirigiu-se aos seus doze discípulos, dedicando a cada
um deles umas calorosas palavras de despedida.
E começou por André, o verdadeiro responsável e chefe do grupo
dos apóstolos.
Num dos seus gestos favoritos, pôs as mãos nos ombros do irmão de
Pedro dizendo-lhe:
- Não desanimes com os acontecimentos que estão para se dar.
Mantém a mão firme entre os teus irmãos e esforça-te para que não
te vejam cair em desânimo.
Depois, dirigindo-se a Pedro, exclamou:
- Não ponhas a tua confiança no braço de carne nem nas armas de
metal. Apoia-te nos alicerces espirituais das rochas eternas.
Aquelas frases deixaram-me perplexo. Quase inconscientemen-te,
associei as palavras de Jesus com as outras, postas pelo evangelista
Mateus no capítulo dezasseis, onde, depois da confissão de Pedro sobre
a origem divina do Mestre, Este afirma textualmente: Bem-aventurado
és ó, Simão BarJona... e Eu te digo a ti que tu és Pedro, e sobre esta
pedra edificarei a minha Igreja...
Ao estudar os Evangelhos canónicos, durante a minha preparação
para a Operação Cavalo de Tróia, tinha detectado um dado – repetido em
diferentes passagens – que me causou certa confusão. Algumas frases
do Nazareno, ou acontecimentos relacionados com o seu nascimento e
vida pública, só eram recolhidos por um dos evangelistas enquanto os
outros três não se davam por informados. Este era o caso do citado
parágrafo de São Mateus que alimenta a crença entre os católicos de
que Jesus de Nazaré quis fundar uma Igreja, tal como hoje a
entendemos.
E desde o primeiro momento nasceu em mim uma dúvida: como era
possível que uma afirmação assim decisiva de Jesus não fosse igualmente
registada por Marcos, Lucas e João? Alguma vez o Mestre da Galileia
teria pronunciado aquelas palavras sobre Pedro e a Igreja? Seria esta
confissão de Pedro uma deficiente informação parte da chamada do
evangelista? Ou encontrava-me perante uma manipulação muito posterior
à morte de Cristo, quando os ensinamentos do Rabi tinham começado a
ser canalizados segundo a terrível legião própria que exigiam a
justificação – da sua existência? Os acontecimentos que ia ter
oportunidade de presenciar na tarde e na noite daquela mesma terçafeira,
4 de Abril confirmariam as minhas suspeitas sobre a péssima
recepção, por parte dos apóstolos, qe muitas das coisas que Jesus fez e
que, principalmente, disse. E ainda qe nunca eu negue a possibilidade de o
Galileu ter pronunciado essas palavras sobre Pedro e a Sua Igreja ao
escutar aquela despedida pessoal do Mestre a Pedro, no jardim de
Simão, o Leproso, a minha dúvida sobre uma possível confusão de São
Mateus aumentou consideravelmente.
Pedro, ao escutar aquelas comovidas palavras – e num movimento
reflexo que o traiu -, procurou ocultar com o roupão o punho da espada,
que escondia entre a túnica e a faixa. Mas Jesus, simulando não ter
visto, pôs-se na frente de Tiago, dizendo-lhe:
- Não desfaleças com as aparências. Mantém-te firme na tua fé e
depressa conhecerás a realidade daquilo em que crês.
Passou a Nataniel e, no mesmo tom de doçura, afirmou:
- Não julgues pelas aparências. Vive a tua fé quando tudo pareça
desvanecer-se. Sê fiel à tua missão de embaixador do reino.
Ao imperturbável Filipe – o homem prático do grupo – fez a sua
despedida com estas palavras:
- Não te intimides com os acontecimentos que se vão dar.
Permanece tranquilo, mesmo quando não possas ver o caminho. Sê
leal ao teu voto de consagração.
Em seguida, a Mateus, falou assim:
- Não esqueças a graça que recebeste do reino. Não permitas que
ninguém te roube na tua recompensa eterna. Assim como resististe às
tuas inclinações de natureza mortal, deves permanecer resoluto.
Quanto a Tomé, a sua despedida foi esta:
- Não importa quão difícil possa ser: agora tens de caminhar pela fé
e não pelos olhos. Não duvides que Eu possa terminar o trabalho que
comecei.
Aquelas palavras a Tomé – o grande céptico – foram especialmente
proféticas – Não consinteis que o que não compreendeis vos esmague –
disse aos dois gémeos. - Sede fiéis aos
afectos dos vossos corações e não tenhais fé nos grandes homens
ou na atitude volúvel das gentes. Permanecei entre os vossos irmãos.
Depois, na frente de Simão, o Zelota, o discípulo mais politizado,
prosseguiu: - desorientação te esmague, porém – Simão, pode acontecer
que o teu espírito se erguerá contra todos aqueles que venham contra ti.
O que não soubeste aprender de Mim, o Meu Espírito te ensinará.
Procura as verdadeiras realidades do espírito e deixa de te sentir
atraído pelas sombras irreais e materiais. O penúltimo apóstolo era o
jovem João. O Mestre, envolvendo as mãos dele nas suas, disse-lhe:
- Sê suave. Ama mesmo os teus inimigos. Sê tolerante. E lembra-te
que acreditei em ti...
João, com lágrimas nos olhos, reteve as mãos de Jesus, ao mesmo
tempo que exclamava num fio de voz:
- Mas, Senhor, vais-te embora?
A julgar pelas expressões dos seus rostos, tenho a certeza de que
todos para si tinham feito a mesma pergunta. No entanto, os seus ânimos
estavam tão magoados e confusos que nenhum, excepto o sincero e
valente João, se atreveu a exprimi-la em voz alta. Por último, o Mestre
aproximou-se do esgrouviado Judas Iscariotes. Desde o primeiro
momento, a complexa e atormentada personalidade daquele homem me
tinham atraído de forma especial. Na medida das minhas possibilidades,
procurei não o perder de vista. E posso já dizer que as motivações que o
levaram a trair Jesus não foram - como se insinua nos Evangelhos – as do
dinheiro. Para um homem como ele, a consideração dos outros e a glória
pessoal estavam muito acima da avareza...
- Judas – disse-lhe o Galileu -, amei-te e rezei para que ames os
teus irmãos. Não te sintas cansado de fazer bem.
Aviso-te para que tenhas cuidado com os escorregadios caminhos da
adulação e com os dardos venenosos do ridículo. Jesus, evidentemente,
conhecia muito bem o carácter do traidor.
Quando acabou de se despedir, o Mestre, com uma certa sombra de
tristeza no rosto, puxou Lázaro pelo braço e afastou-se do grupo,
entrando no jardim. Só depois da sua morte, quando faltavam poucas
horas para o meu regresso ao módulo, Marta me confessaria qual fora o
tema daquela conversa privada entre Jesus de Nazaré e seu irmão.
Jesus recuperou bem depressa o seu habitual bom humor. E depois de
ordenar aos discípulos que levantassem naquela mesma manhã o
acampamento no monte das Oliveiras, pediu a Pedro, André, João e Tiago
que fossem com ele a Jerusalém.
A minha escolha não oferecia dúvida e na companhia de um reduzido
grupo de discípulos segui os passos daqueles cinco homens.
Como já era costume, o Nazareno, com uma invejável forma física,
trepou a íngreme vertente oriental do monte das Oliveiras em pouco
mais de meia hora. Quando, por fim, chegámos ao cimo, Jesus e os
apóstolos – longe de pararem e descansarem – afastavam-se já, colina
abaixo, em direcção ao leito seco do Cédron.
Mas, contrariamente ao que eu imaginava, o Mestre não parecia ter
excessiva pressa em entrar na Cidade Santa, e parou na encosta
ocidental do monte das Oliveiras, num terreiro onde se apertavam
dezenas de tendas, na sua maioria ocupadas por peregrinos da Galileia
bem como por comerciantes de lãs e vendedores de animais para os
sacrifícios rituais.
Pelo que me foi possível comprovar, algumas daquelas famílias
conheciam há muito o Galileu e pediram-lhe que se sentasse junto delas.
O Mestre aceitou com gosto, acariciando as crianças e mostrando-se
encantado quando uma das hebreias lhe apresentou uma tigela de barro
com leite de cabra recém-ordenhada, segundo disse. Logo outra mulher
colocava em cima da esteira de palha em que o Rabi se sentara, uma
bandeja de madeira com uma mancheia de tâmaras e uma espécie de
torta branca-amarelada, que, segundo um dos meus companheiros de
jornada, era conhecida por pão de figos.
Sorridente, o Nazareno sacudiu com a mão esquerda as numerosas
moscas que tentavam pousar no leite, pegando no recipiente com ambas
as mãos, bebendo lentamente e com prazer.
Pouco depois, tendo-se despedido dos seus anfitriões, fez mais duas
visitas. Era a terceira hora (as nove da manhã) e o grupo continuou o seu
caminho para Jerusalém. Foi então que Pedro e Tiago, que havia dias
andavam em polémica sobre os ensinamentos do Mestre quanto ao
perdão dos pecados, resolveram tirar as dúvidas. E Pedro tomou a
palavra: - Mestre, Tiago e eu não estamos de acordo sobre os teus
ensinamentos quanto à redenção do pecado. Tiago afirma que tu ensinas
que o Pai nos perdoa, mesmo antes de Lho pedirmos. Eu defendo que o
arrependimento e a confissão devem vir antes do perdão. Qual de nós
tem razão?
Um pouco surpreendido pela pergunta, Jesus parou em frente da
muralha oriental do Templo e, fitando intensamente os quatro,
respondeu: - Meus irmãos, errais nas vossas opiniões porque não
entendeis a natureza das íntimas e amantes relações entre a criatura e
o Criador, entre os homens e Deus. Não conseguis compreender a
simpatia compreensiva que os pais sábios têm pelos filhos não
amadurecidos e por vezes em erro.
É, verdadeiramente duvidoso que um pai inteligente e amante se
ponha alguma vez a perdoar um filho normal. Relações de compreensão,
associadas com o amor, impedem, efectivamente, essas desavenças, que,
mais tarde, precisam de reajuste e arrependimento do filho e perdão do
pai.
Digo-vos que uma parte de cada pai vive no filho. E o pai goza de
prioridade e superioridade de compreensão em todos os assuntos
relacionados com seu filho. O pai pode ver a imaturidade do filho por
meio da sua própria maturidade: a experiência mais amadurecida do
velho. Pois bem, com os filhos pequenos, o Pai celestial possui uma
infinita e divina simpatia e compreensão amorosa.
O perdão divino, portanto, é inevitável. É inerente e inalienável à
infinita compreensão de Deus e ao Seu perfeito conhecimento de tudo o
que respeita aos Juízos errados e escolhas enganosas do filho. A divina
justiça é tão eternamente justa que inclui, inevitavelmente, o perdão
compreensivo.
Quando um homem sábio entende os impulsos íntimos dos seus
semelhantes, amá-los-á. E quando amas o teu irmão, já lhe terás
perdoado. Esta capacidade para compreender a natureza do homem e
perdoar os
Nota – Numa posterior ligação a Eliseu, o nosso computador central
confirmou que os figos, juntamente com as tâmaras, proporcionavam ao
povo judeu o maior índice de açúcar.
Geralmente, eram postos a secar, sendo armazenados na forma de
tortas. Este pão de figos era utilizado, inclusivamente, como fármaco
para sarar úlceras. O Pai Natal ampliou a minha informação, revelando
que aquela torta de figos, que fora oferecida a Jesus, podia ser formada
pela variedade chamada figo do sicómoro, muito frequente na Palestina
do século I.
Este alimento, de baixíssima qualidade, sofria uma punçáo quando
ainda se encontrava na árvore. Obtendo-se assim. Um amadurecimento
mais rápido. (N. Do M.)
seus aparentes equívocos é divina. Em verdade, em verdade vos digo
que se sois pais sábios, esta deverá ser a forma com que ameis e
compreendeis vossos filhos, com que lhes perdoareis até quando uma
falta de compreensão momentânea vos tenha separado.
O filho, sendo imaturo e falho de plena compreensão sobre a
profunda relação pai-filho, terá, frequentemente, uma ideia de
separação quanto a seu pai. Porém, o verdadeiro pai nunca está
consciente desta separação.
O pecado é a experiência da consciência da criatura; não é parte da
consciência de Deus.
A vossa falta de capacidade e de desejo de perdoar aos vossos
semelhantes é a medida da vossa imaturidade e a razão dos fracassos no
momento de alcançar o amor. Conservais rancores e alimentais vinganças
na razão directa da vossa ignorância sobre a natureza interna e os
verdadeiros desejos de vossos filhos e próximos. O amor é o resultado
da divina e íntima necessidade da vida. Baseia-se na compreensão,
alimenta-se no serviço generoso e aperfeiçoa-se na sabedoria.
Os quatro amigos de Jesus ficaram em silêncio. Possivelmente Tiago
e João compreenderam parte das explicações do Mestre.
Não os dois irmãos pescadores. Pedro, coçando nervosamente a
calva bronzeada, seguiu os passos do Galileu, mergulhado numa infinidade
de reflexões.
Pelas nove e meia da manhã, Cristo e os Seus discípulos passaram
por baixo da Porta Oriental, na muralha leste do Templo, encaminhandose
para as escadarias do Átrio dos Gentios, lugar habitual dos Seus
discursos e ensinamentos.
Os cambistas e vendedores de cordeiros e mais produtos próprios
da Páscoa tinham voltado a instalar as suas mesas e barracas,
aproveitando os primeiros alvores da madrugada. Tudo parecia tranquilo.
Nenhum daqueles intermediários fez o menor gesto de desaprovação ao
ver entrar o Rabi da Galileia e o reduzido grupo de adeptos. Jesus
apercebeu-se perfeitamente de que aquele comércio sacrílego voltava a
exercer-se. Mas, tal como acontecera noutras alturas, não lhe prestou
grande atenção. Aquela atitude do Mestre confirmou a minha convicção
de que o sucedido na manhã do dia anterior fora devido,
fundamentalmente, a uma situação limite.
Muitos habitantes de Jerusalém bem como peregrinos, que de dia
para dia iam engrossando a população da Cidade Santa e arredores,
esperavam já, impacientes, o aparecimento do Rabi da Galileia. A maior
parte, movida por uma curiosidade doentia, dados os graves
acontecimentos registados na manhã de segunda-feira no adro do
Templo e pela actuação do Sinédrio.
Não era segredo para ninguém que Caifás e todo o grande conselho
de justiça judeu tinham tomado a decisão de prender e executar Jesus.
Mas, atrever-se-iam a fazê-lo em público? O próprio Rabi, por
intermédio dos anciãos e fariseus que tinham apresentado a sua
demissão no Sinédrio, estava ao corrente destas intrigas e da negra
ameaça suspensa sobre Ele. Por isso, muitos dos hebreus aplaudiam em
segredo a coragem do Nazareno, que não manifestava temor ou
nervosismo, apresentando-se e avançando serena e majestosamente
entre os levitas ou guardas do Templo e, principalmente, à vista dos
sacerdotes.
Sem mais preâmbulos, e no meio daquela expectativa, Jesus
começou as Suas palavras. Mas, mal tinha ainda começado quando um
grupo de alunos das escolas de escribas, destacando-se da multidão,
interrompeu o Mestre, perguntando-lhe:
- Rabi, sabemos que és um professor, que estás certo, e sabemos
que proclamas os caminhos da Verdade e que serves a Deus, pois não
temes homem algum. Sabemos também que não Te importa quem sejam
as pessoas. Senhor, somos apenas estudantes e gostaríamos de conhecer
a verdade sobre um assunto que nos preocupa. É justo para nós dar
tributo a César? Devemos ou não devemos dar?
Naquele instante, um dos serventes de Nicodemo – que professava
havia algum tempo a doutrina de Jesus – fez um comentário em voz
baixa, lembrando-nos que aquela impertinente interrupção fazia parte do
plano estabelecido na fatídica reunião do Sinédrio do dia anterior. Os
fariseus, escribas e saduceus, com efeito, tinham unido os seus votos
para, em princípio, formarem grupos especializados, que procurassem
ridicularizar e desprestigiar publicamente o Galileu.
Aquele silêncio peculiar – próprio dos momentos de grande tensão –
foi quebrado pelo Nazareno que, em tom irónico – como se conhecesse
perfeitamente a falsa ignorância daqueles rapazes, entre os quais se
encontrava uma especial representação dos herodianos perguntou. -
Porque vindes assim provocar-Me?
E, imediatamente, estendendo a mão esquerda para os estudantes,
ordenou-lhes em voz firme: - Mostrai-me a moeda do tributo e eu vos
responderei.
O porta-voz dos alunos entregou-lhe um denário de prata (*) e o
Mestre, depois de olhar para ambas as faces, recomeçou:
- Que imagem e inscrição tem esta moeda? Os jovens entreolharamse
com estranheza e responderam, dando como certo que o Rabi
conhecia perfeitamente a resposta:
- A de César.
- Então – respondeu Jesus, devolvendo-lhes a moeda -, dai a César o
que é de César, a Deus o que é de Deus e a Mim o que é Meu... A
multidão, maravilhada ante a astúcia e sagacidade de Jesus, rompeu em
aplausos, enquanto os aspirantes a escribas e seus cúmplices, os
herodianos, se retiravam, envergonhados.
Instintivamente, enquanto Jesus contemplava aquele denário, tirei
da bolsa uma moeda semelhante e examinei-a atentamente.
Aquele grupo era partidário da dinastia de Herodes e, entre outras
missões, cabia-lhe denunciar à autoridade romana qualquer movimento ou
ataque – mesmo verbal – contra César.
(N. do M.) z O denário de prata era uma moeda que corria
legalmente naquele tempo. Segundo Pai Natal, equivalia a pouco menos do
soldo de dois dias de um legionário romano. Nos tempos de César, o
estipêndio anual de um soldado romano (legionário) era de cento e
cinquenta denários. Augusto acrescentar-lhe-ia um reforço de soldo,
atingindo os duzentos e vinte e cinco denários de prata ou três mil e
seiscentos asses. Esta importância foi confirmada por Tácito em tempos
de Tibério (Ann. 1, 17: denis in diem assibus animam et corpus aestimari).
Os centuriões, por seu lado, recebiam dois mil e quinhentos denários/ano
e os chamados primi ordines cinco mil (N. Do M.)
Numa das faces tinha a imagem de César, sentado de perfil numa
cadeira. À sua volta podia ler-se a seguinte inscrição: Pontif Maxim. Na
outra face a efígie de Tibério coroada de louros, com outra legenda à
volta: Ave Augustos Ti Caesar Divil.
Aquela nova armadilha pública fora muito bem planeada. Toda a
gente sabia que o denário era o máximo tributo que a nação judaica tinha
de pagar, inexoravelmente, a Roma, como sinal de submissão e
vassalagem. Se o Mestre tivesse negado o tributo, os membros do
Sinédrio teriam corrido imediatamente ao procurador romano, acusando
Jesus de sedição. Se, pelo contrário, se tivesse mostrado partidário de
acatar as ordens do Império, a maioria do povo judeu ter-se-ia sentido
ferida no seu orgulho patriótico, com excepção dos saduceus, que tinham
gosto em pagar o tributo.
Foram estes últimos os que, poucos minutos depois deste incidente,
e seguindo a estratégia preparada pelo Sinédrio, se encaminharam para
Jesus – que tentava continuar com os seus ensinamentos – preparandolhe
uma segunda armadilha: - Mestre – disse-lhe o porta-voz do grupo -,
Moisés disse que, se um homem casado morresse sem deixar filhos, seu
irmão devia aceitar a esposa e lançar semente pelo irmão falecido.
Aconteceu, então, este caso: certo homem, que tinha seis irmãos,
morreu sem descendência. Seu irmão seguinte aceitou a esposa, mas
também morreu cedo e sem filhos. E o mesmo fez o segundo irmão, que,
igualmente, morreu sem prole. E assim até os seis irmãos terem aceitado
a esposa e todos faleceram sem filhos. Então, depois de todos eles,
também a esposa morreu.
Eis o que Te queríamos perguntar: quando ressuscitarem, de quem
será a esposa?
Ao escutar a dissertação do saduceu, alguns dos discípulos de Jesus
moveram negativamente a cabeça, em sinal de desaprovação. Segundo me
explicaram, as leis judaicas, nestes aspectos, havia muito que eram letra
morta para o povo. Além de que aquele caso tão concreto era muito
difícil de se tornar realidade. Só algumas comunidades de fariseus – os
mais puristas – continuavam a respeitar e a praticar o chamado
matrimónio de levirato (2).
Sumo Pontífice” e Salve, Divino Tibérico César Augusto!,
respectivamente. As inscrições vinham abreviadas. Na realidade,
deveriam dizer: Pontifex Maximus e Ave Augustus Tiberius Caesar
Divinus (N. Do M.)
O computador central do módulo proporcionou-me naquela mesma noite
uma extensa e exaustiva informação sobre este curioso tipo de
matrimónio. A tradição oral hebraica – recolhida na Misná (Ordem
Terceira), dedicada às yebamot ou cunhadas, e segundo as leis contidas
no Deuteronómio (25, 5-10) – estabelecia que, quando dois irmãos viviam
um junto do outro e um deles morria sem deixar filhos, a mulher do
morto não se casaria com um estranho: Seu cunhado irá ter com ela e a
tomará por mulher. O primogénito que dela tenha terá o nome do irmão
morto, para que o seu nome não desapareça de Israel.
Porém, se o irmão se negasse a tomar por mulher a cunhada, viria
esta à porta dos anciãos e dir-lhes-ia: Meu cunhado nega-se a perpetuar
em Israel o nome de seu irmão, não quer cumprir a sua obrigação de
cunhado tomando-me por mulher.” Então, os anciães da cidade
mandavam-no chamar e falavam com ele. Se persistisse na negativa, a
cunhada aproximava-se dele na presença dos anciãos, tirava-lhe um
sapato do pé e cuspia-lhe na cara, dizendo: Faz-se isto a um homem que
não mantém a casa de seu irmão., E a sua casa será chamada em Israel a
casa do descalçado. Este matrimónio, que é obrigatório, denomina-se
yibbum, quer dizer, de levirato, (de levir: cunhado). Quando a cunhada
ficava com sucessão, este matrimónio era proibido. A partir da chamada
cerimónia do sapato”, a cunhada ficava livre para contrair matrimónio
com quem quisesse. Com o passar dos séculos, esta norma foi-se
perdendo e em tempos de Jesus quase não era praticada, encerrando, no
melhor dos casos, um carácter puramente simbólico ou de trâmite legal.
(N. Do M.)
O Rabi, embora sabendo a falta de sinceridade daqueles saduceus,
transigiu em responder. E disse-lhes:
- Errais todos ao fazer tais perguntas porque não conheceis as
Escrituras nem o poder vivente de Deus. Sabeis que os filhos deste
mundo podem casar-se e ser dados em matrimónio, mas não pareceis
compreender que os que se tornam merecedores dos mundos vindouros
através da ressurreição dos justos não se casam nem são dados em
matrimónio. Os que experimentam a ressurreição de entre os mortos são
mais como os anjos do céu e nunca morrem. Estes ressuscitados são
eternamente filhos de Deus. São os filhos da luz. Mesmo vosso pai,
Moisés, compreendeu isto. Ante a sarça ardente ouviu o Pai dizer: Sou o
Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacob. E assim,
juntamente com Moisés, Eu declaro que Meu Pai não é o deus dos
mortos, mas dos vivos. Nele, todos vós reproduzis e possuís a vossa
existência mortal.
Os saduceus retiraram-se em grande confusão, enquanto os seus
seculares inimigos, os fariseus, respondiam gritando: Verdade, verdade,
verdade, Mestre! Respondeste bem àqueles incrédulos.
Fiquei novamente surpreendido, tal como aquela multidão, pela
sagacidade e reflexos mentais daquele gigante. Jesus conhecia a
doutrina desta seita, que só aceitava como válidos os cinco textos
chamados os Livros de Moisés. E recorreu precisamente a Moisés na Sua
resposta, desarmando os saduceus.
Mas, do meu ponto de vista, os fariseus que aplaudiram o Mestre
também não entenderam a profundidade da mensagem do Nazareno,
quando aludiu com voz vibrante aos que experimentam a ressurreição de
entre os mortos. Os santos ou separados – como popularmente eram
conhecidos os fariseus – acreditavam que, na ressurreição, os corpos se
levantavam fisicamente. E Jesus, nas suas afirmações, não se referiu a
este tipo de ressurreição...
O Mestre parecia resignado a suspender temporariamente a sua
pregação e esperou em silêncio uma nova pergunta. A verdade é que
chegou pouco depois, dos lábios daquele mesmo grupo de fariseus que
simulara tão calorosos elogios ao Rabi. Um deles, apresentando-se a
Jesus, expôs um tema que novamente comoveu a multidão:
- Mestre – disse -, sou advogado e gostaria de te perguntar qual é,
em tua opinião, o maior mandamento.
Sem conceder um segundo sequer à reflexão – e elevando mais ainda
a sua poderosa voz – o Gigante respondeu:
- Não existe mais que um mandamento e é ele o maior de todos. É
este: Ouve, ó Israel! O Senhor, nosso Deus, o Senhor é uno. E amá-lo-ás
com todo o teu coração e com toda a tua alma, com toda a tua mente e
com toda a tua força. Este é o primeiro e o grande mandamento. E o
segundo é como este primeiro. Na realidade, sai directamente dele é:
Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Não existe mandamento maior
do que estes, neles se baseiam toda a Lei e os profetas. Aquele homem
de leis, comovido pela sabedoria da resposta de Jesus, inclinou e louvou
abertamente o Rabi:
- Verdadeiramente, Mestre, disseste bem. Deus, bendito seja! É uno
e nada mais há senão Ele. Amá-lo com todo o coração, entendimento e
força e amar o próximo como a si mesmo é o primeiro e o grande
mandamento. Estamos de acordo em que este grande mandamento tem
de ser considerado muito mais em conta que todas as oferendas e
sacrifícios que se queimam.
Ante semelhante resposta, o Nazareno sentiu-se satisfeito e
sentenciou, ante o espanto dos fariseus:
- Meu amigo, noto que não estás longe do reino de Deus...
Jesus não se enganava. Naquela mesma noite, em segredo, aquele
fariseu veio ao acampamento sttuado no horto de Getsémani, sendo
instruído por Jesus e pedindo para ser baptizado. Aquela sucessão de
fracassos dialécticos acabou por dissuadir os restantes grupos de
escribas, saduceus e fariseus, que começaram a retirar-se
dissimuladamente. Ao ver que não havia mais perguntas, o Galileu
levantou-se e, antes de os venenosos sacerdotes desaparecerem, lançoulhes
esta questão:
- Uma vez que não fazeis mais perguntas, gostaria Eu de vos fazer
uma: Que pensais do Libertador? Quer dizer: de quem é filho.
Os fariseus e seus sequazes ficaram como que electrizados,
enquanto um murmúrio percorria aquela zona do terreiro.
Os membros do Templo deliberaram durante alguns minutos e,
finalmente, um dos escribas, apontando um dos papiros que trazia atado
ao braço direito e que continha a Lei respondeu:
- O Messias é o filho de David.
Mas o Nazareno não se contentou com esta resposta. Ele sabia que
existia uma azeda polémica sobre se era ou não o filho de David – mesmo
entre os seus próprios adeptos – e reforçou:
- Se o Libertador é na verdade o filho de David, como é que no
salmo que atribuís a David ele próprio, falando com o espírito, disse: O
Senhor disse ao meu senhor: senta-te à minha direita até que faça dos
teus inimigos o escabelo dos teus pés. Se David lhe chama Senhor, como
pode ser Seu filho?
Os fariseus e responsáveis do Templo ficaram tão confusos que não
se atreveram a responder.
Pela hora quinta (as onze da manhã, aproximadamente), Jesus deu
por concluída a sua estada no Templo e, dado ser tempo de almoçar,
encaminhou-se com os discípulos para a Porta Tripla com o fim – segundo
me comentou o próprio Pedro – de se dirigir a casa de José de
Arimateia, na cidade baixa. Ao descobrir que eu ficava para trás,
disposto a não incomodar, na medida do possível, a intimidade do grupo,
André voltou atrás e convidou-me a partilhar com eles a segunda
refeição do dia. Entretanto, Jesus, e os outros tinham já atravessado
por entre as mesas dos cambistas e mercadores, desaparecendo na
soberba Porta Sul do Templo.
Estava quase a aceitar, naturalmente, quando um tumulto
proveniente do lado mais oriental do Santuário nos fez olhar para lá.
Entre gritos desesperados, uma mulher estava praticamente a ser
arrastada pelas escadarias de acesso ao Pórtico Coríntio.
Uma patrulha da guarda do Templo (os levitas), possivelmente dos
destacados para o Átrio das Mulheres, encaminhavam-se, através do
terreiro onde nos encontrávamos, na direcção do Pórtico de Salomão e,
mais concretamente, para a Porta Oriental. Dois dos levitas desta
guarda de dia agarravam a hebreia pelas axilas, enquanto um terceiro lhe
pegava nos pés, aguentando com muita dificuldade os violentos sacões da
rapariga. Atrás meio escondidos num enxame de curiosos, caminhavam
um dos guardas de turno do Templo e vários sacerdotes.
A multidão que se encontrava entre os lugares dos vencedores
correu naquele instante para a patrulha, lançando gritos de adúltera....
adúltera!, como se aquele acontecimento fosse algo de vulgar e até
festejado pela turba.
Interroguei André com os olhos e o chefe do grupo com expressão
grave, lamentou aquela sombria coincidência, resumindo o lamentável
espectáculo com a seguinte frase:
- São águas amargas.
Recordei naquele instante que numa das minhas investigações nos
textos bíblicos – em Números (5 11-31), Yavé especificava a atitude a
ter com a mulher suspeita de adultério. Quando o marido acreditava que
a esposa lhe era infiel levava-a ao sacerdote obrigando-a a confessar. Se
se negava a reconhecer a sua culpa, a infeliz tinha de passar ela
Diz assim o citado texto biblico: “Falou Yavé a Moisés, dizendo Fala
aos filhos de Israel e diz-lhes: Se a mulher de um homem fornicar e lhe
for infiel, dormindo com outro em concubinato de sémen, sem que tenha
podido vê-lo o marido nem haja testemunhas, por não ter sido
encontrada no leito, e por se ter apoderado do marido o espírito dos
ciúmes e ter ciúmes dela, tenha-se ela maculado na realidade ou não se
tenha maculado, levá-la-á ao sacerdote, e oferecerá por ela uma oblação
da décima parte de um efa de farinha de cevada, sem derramar azeite
sobre ela nem lhe pôr incenso por cima, porque é minjá de ciúmes, minjá
de memória para trazer o pecado à memória.
O sacerdote fará que se aproxime e se apresente ante Yavé;
deitará água santa numa vasilha de barro e apanhando um pouco de terra
do solo do tabernáculo o lançará na água. Depois, o sacerdote, colocando
a mulher diante de Yavé, lhe descobrirá a cabeça e lhe colocará nas mãos
a minjá de memória, a minjá dos ciúmes, tendo ele na mão á água amarga
da maldição, e a conjurará dizendo: Se ninguém dormiu contigo e se não
e raste, contaminando-te e sendo infiel ao teu marido, indemne sejas à
água amarga da maldição; mas se erraste e fornicaste e foste infiel a
teu marido, contaminando-te e dormindo com outro [...]. Aqui o sacerdote
a conjurará com o juramento de execração, dizendo: Faça-te Yavé
maldição e execração no meio do teu povo, e sequem-se os teus músculos
e inche o teu ventre entre esta água de maldição nas tuas entranhas
para fazer com que o teu ventre inche e apodreçam os teus músculos. A
mulher responderá: Ámen, ámen. O sacerdote escreverá estas maldições
numa folha e as diluirá na água amarga e fará que a mulher beba a água
amargada e a llevará ao altar, e pegará a mão da mulher a minjá dos
ciúmes e a agitará
Pegando num punhado da oferenda da memória o queimará no altar,
fazendo depois que a mulher beba a água. Dar-lhe-á a água a beber; e se
ela se contaminou sendo infiel ao seu marido, a água da maldição nela
entrará com a sua amargura, e inchar-lhe-á o ventre, secar-lhe-á os
músculos e será maldição no meio do povo. Se, pelo contrário, não se
contaminou e é pura, ficará ilesa e será fecunda... Assim o marido ficará
livre de culpa e a mulher sobre si levará o seu pecado.
[...].” (N. Do M.)
O sacerdote preparava uma beberagem especial – composta,
segundo reza a Bíblia, por terra do Tabernáculo e pela tinta com que
escrevia o ritual das maldições, previamente diluída em água – e, entre
cerimónias religiosas, dava a beber a referida poção à suspeita. A crença
judaica ensinava que, se a mulher fosse realmente culpada, o misterioso
líquido lhe atacava as entranhas, matando-a. Pelo contrário, se estivesse
inocente, as águas amargas não alteravam o seu organismo (1).
Para uma mente racional, aquela prova deixava muito a desejar
quanto à sua possível objectividade. Mas o que despertou a minha
curiosidade foi a fórmula da poção. Que poderia conter? Estava perante
uma oportunidade única e supliquei a André que me acompanhasse.
Queria presenciar a execução da sentença e, se fosse possível, arranjar
uma amostra da tinta utilizada para a fabricação das águas amargas.
André não compreendeu bem o meu, aparente, doentio desejo e,
contrariado, consentiu em conceder-me uns minutos.
Passámos por baixo do arco de pedra da Porta Oriental, abrindo
caminho pela multidão que já rodeava a patrulha. Vários levitas tinham
formado um círculo ou cordão de segurança de cerca de dez metros de
diâmetro. No centro, a mulher, sempre segura pelos guardas do Templo,
permanecia de pé, soluçando.
Tinham-na vestido com uma túnica negra e fora despojada de todos
os seus adornos.
O meu companheiro explicou-me que aquela era a última fase de um
processo que se tinha iniciado na manhã da passada segunda-feira. (Os
juízes do Grande ou do Pequeno Sinédrio reuniam-se precisamente às
segundas e quintas-feiras de cada semana, para despachar os assuntos
pendentes.)
Este caso de provável adultério fora levado ao Pequeno Sinédrio,
formado por vinte e três juízes. A pedido do marido, a suspeita – uma
jovem que não teria mais de vinte anos – fora conduzida naquela manhã
de segunda-feira, 3 de Abril, perante o tribunal de Justiça e ali,
interrogada e atemorizada com fórmulas como a seguinte: Minha filha,
muito pecado traz o vinho, muito o riso, muito a juventude, muito os
maus vizinhos; fá-lo (reconhece a verdade) em nome de Deus, que está
escrito com santidade, para que não seja apagado pela água.
Mas, a julgar pelo que lhe estava a acontecer, a infeliz tinha-se
declarado inocente e o Pequeno Sinédrio sentenciou que devia ser
submetida à prova das águas amargas.
Quando interroguei André sobre a sorte daquela hebreia, no caso
de se ter declarado culpada, o apóstolo deu-me a entender que não
saberia o que podia ser pior. Se a mulher judia dissesse perante o
tribunal sou impura, era obrigada a assinar a renúncia ao seu dote,
procedendo-se então à consumação do libelo de divórcio.
Como bem afirmava André, nestas circunstâncias, a esposa ficava na
mais absoluta miséria, tinha de abandonar o lar e os seus filhos.
O Pai Natal, o nosso computador, completou a minha informação
sobre as águas amargas”, acrescentando que já no Código de Hammurabi
existia um precedente semelhante. Se uma mulher era suspeita de
adultério, era atirada à corrente do Eufrates. Se escapava com vida era
considerada inocente. Se perecia, a sua culpabilidade era manifesta. (N.
Do M.)
sendo desprezada para toda a vida. Aquelas leis estabeleciam o
direito ao divórcio, única e exclusivamente por parte do homem. Isto
prestava-se a constantes abusos, caprichos e injustiças. Se o marido
desejava ficar com o dote que a mulher trazia ao casamento e, ao mesmo
tempo, recuperar o celibato, tinha apenas de acusar a mulher de
infidelidade. Das duas uma: ou a mulher falecia por causa das águas
amargas ou assumia a suposta culpa, com as consequências já referidas.
Tal como suspeitava, era extremamente raro que a vítima
sobrevivesse à ingestão daquela beberagem. Em suma, aquela
desgraçada, depois de declarar que era pura, fora levada pela Porta de
Nicanor – tal como estabelecia a tradição – ao estreito terreiro
existente ao pé da muralha oriental do Templo, ao mesmo lugar onde
eram levadas a cabo as cerimónias de purificação de leprosos e de
parturientes. Um dos sacerdotes saiu então da turba e, com passo
decidido, pôs-se em frente da jovem, puxando-lhe a túnica com a mão
esquerda e à altura do ventre.
Depois de um forte puxão, rasgou-lhe a roupa, deìxando a
descoberto uns seios brancos e pequenos. O grito da esposa foi abafado
pelo bramido da multidão, excitada ante a contemplação daquele formoso
peito. Imediatamente, o mesmo sacerdote se colocou nas costas da
mulher, soltando-lhe a sua comprida cabeleira negra.
André, nervoso e desgostoso, fez um movimento para se retirar.
Procurando então ganhar tempo e aproveitar aquele desejo lógico do meu
amigo de evitar tão lamentável acontecimento, peguei na minha bolsa de
borracha e meti-lhe na mão dois denários de prata. André olhou-me sem
compreender.
- Desejo pedir-te um novo favor – disse-lhe. - É importante para
mim adquirir uma amostra da tinta com que foi escrita essa maldição... O
galileu ficou perplexo. E, antecipando-me ao seus pensamentos,
acrescentei:
.. Confia em mim. Sabes que não posso entrar no Santuário e tentar
comprá-la pessoalmente. Bastará uma pequena quantidade: talvez seja
suficiente uma décima de log.
Continuei olhando fixamente para André, tentando transmitir-lhe
um mínimo de confiança. A sorte voltou a sorrir-me e o discípulo,
encolhendo os ombros, concordou pedindo-me que não saísse dali.
Enquanto André tornava a entrar no recinto do Templo, voltei a
acompanhar os acontecimentos. O sacerdote que rasgara a túnica da
mulher encontrava-se agora a deliberar com os outros membros do
Templo. De vez em quando voltavam a cabeça para a infeliz, envolvendose
em novas e calorosas polémicas. Um deles deixou
(1)
A mulher judia só tinha direito a pedir o divórcio se seu marido
exercesse uma destas três profissões: apanhasse esterco de cão
(lixeiro), fosse fundidor de cobre ou curtidor.
(Lista tirada do escrito rabínico Ketubot VII.lOs.) E isso era
devido, unicamente, ao mau cheiro provocado pelas referidas
actividades. A Lei estipulava também que a esposa podia solicitar o
divórcio se, a partir dos treze anos, o marido a obrigasse a fazer votos,
abusando da sua dignidade, ou se padecesse de lepra ou pólipos (N. Do
M.) (2) Um log – medida usada para líquidos e secos – equivalia a meio
litro aproximadamente. (N. Do M.)
o grupo e deu uns passos, ficando a um palmo da suspeita de
adultério. Sem se comover com as lágrimas da mulher, inclinou-se
ligeiramente, inspeccionando de perto os pequenos e morenos mamilos.
Ao cabo de uns minutos voltou ao centro da reunião, iniciando-se nova e
ainda mais áspera controvérsia.
No final, e depois de chegar a um acordo, um outro sacerdote pegou
num cinturão egípcio – formado por cordas entrelaçadas – e encaminhouse
para a rapariga. Tapou-lhe o torso cingindo o pano por cima do peito,
de modo que a túnica não pudesse cair.
A uma ordem do guardião do Templo e chefe da patrulha de levitas,
um dos hebreus que permanecia junto dos sacerdotes, e era o marido,
avançou até ao centro do círculo, depositando aos pés de sua mulher um
cesto de palha com três ou quatro quilos de farinha de cevada. Depois,
com a mesma frieza, retirou-se. Por um momento, acreditei que o
querelante ia pôr o pequeno cesto nas mãos da condenada, mas, por
indicação de um dos levitas que segurava a mulher, acabou por colocá-lo
no chão. No meu regresso ao módulo, na manhã de domingo, o
computador esclareceria este ponto: a tradição bíblica especificava que
a oferenda do marido – a efá de farinha de cevada – devia ser posta nas
mãos da vítima. O sacerdote, então, colocava a mão por baixo das da
mulher, agitando o recipiente de forma ritual. Depois, aproximava-o do
altar, tirava um punhado e queimava-o. O resto era destinado à
alimentação dos sacerdotes do Templo.
A forte resistência da infeliz – que não podia ser libertada do firme
controlo dos guardas – aconselhou que, neste caso, o sacerdote passasse
por alto aquela parte do ritual. Não tardou, que os judeus fossem
abrindo um corredor, pela zona mais próxima da muralha dando passagem
a outro sacerdote, bem escoltado por seis levitas. Um murmúrio
percorreu a multidão, ao ver-se que aquele sacerdote trazia qualquer
coisa nas mãos.
O objecto em questão – bastante leve, a ajuizar pelo pouco esforço
feito pelo hebreu – vinha coberto com um lenço branco.
Logo imaginei que devia tratar-se do recipiente que continha as
águas amargas. Infelizmente, não tive de esperar muito tempo para tirar
dúvidas. A recém-chegada escolta acercou-se da mulher e dos guardas
que a agarravam, formando um segundo cordão de segurança.
O sacerdote retirou o lenço e apareceu aos olhos dos presentes uma
pequena tijela de barro avermelhado, com a capacidade aproximada de
um litro. Ao vê-lo, a esposa sofreu um novo ataque de desespero, com
convulsões violentas e soltando gritos que fizeram com que numerosas
pombas pousadas nos torreões e na cúpula do Templo levantassem voo.
Um silêncio total – quebrado unicamente pelos gritos da prisioneira –
abateu-se pouco a pouco sobre o local. O sacerdote que tinha a vasilha
de barro levantou então a voz, incitando a mulher, pela última vez, a que
se declarasse culpada ou inocente.
A multidão aguardou, ansiosa. Porém, a hebreia, entre gemidos cada
* Uma efá – medida judaica de capacidade – equivalia a setenta e
dois log. Neste caso, a Bíblia considerava que devia oferecer-se um
décimo de efá, quer dizer, 7,2log ou, o que é o mesmo, 3 quilos e 600
gramas, aproximadamente. (N. Do M.) 188 vez mais apagados, só
conseguiu pronunciar duas palavras fatídicas: Sou pura.
O membro do Templo, que parecia ter uma pressa incompreensível,
voltou a cabeça para um dos levitas, murmurando-lhe qualquer coisa ao
ouvido. Então, o guarda saiu do seu lugar, unindo-se aos três colegas que
agarravam a jovem. E, pondo-se atrás da vítima, agarrou-a pela espessa
cabeleira, puxando os cabelos para baixo e obrigando-a a ficar com o
rosto voltado para o céu. Os gritos aumentaram. Enquanto a patrulha
fincava os pés no terreno áspero, prendendo com novas forças os braços
e as pernas da mulher, mais guardas se colocaram a poucos centímetros
dela, cada um do seu lado. Como se aquela operação tivesse sido
demoradamente estudada ou praticada, enquanto o levita do flanco
esquerdo apertava com os dedos o nariz da adúltera, o do lado direito
colocou as mãos a pouca distância da cara, esperando que a asfixia
obrigasse a judia a abrir a boca. Entre soluços e ofegos mal contidos, a
rapariga acabou por aspirar.
Como que movidas por uma mola, as mãos do guarda enfiaram-se-lhe
na boca, separando violentamente o maxilar inferior. Em décimos de
segundo, o sacerdote que trazia a malga deu um passo em frente,
vertendo o seu conteúdo na boca da vítima. Apesar dos seis guardas que
tomavam parte na imobilização da hebreia, esta conseguiu voltar
levemente a cabeça, fazendo com que parte do líquido escuro lhe
corresse pela cara, pescoço e túnica.
Uma vez engolida a beberagem, o sacerdote recuou, ao mesmo
tempo que os levitas dos flancos deixavam livres o nariz e a boca. O que
puxava o cabelo, no entanto, tal como os três que lhe aprisionavam os
braços e as pernas continuaram nos seus lugares.
Apesar de ter sido preparado para esta missão, uma onda de
indignação me percorreu dos pés à cabeça. No entanto, tal como fora
estabelecido pelo Cavalo de Tróia, não podia fazer mais que assistir
impassível àquele trágico acontecimento. Agora reconheço que foi uma
prova decisiva para suportar a minha missão e poder assistir – com toda
a frieza às não menos dramáticas horas da Sexta-Feira Santa...
Não teriam decorrido sequer cinco minutos quando a mulher
começou a sofrer uma série de espasmos. Os joelhos vergaram, enquanto
os levitas procuravam mantê-la de pé. (Depois, ao analisar a amostra de
tinta, compreendi que aquela atitude dos guardas tinha como único e bem
estudado objectivo evitar que, ao cair no chão, se vergasse e pudesse
vomitar as águas amargas, anulando assim os seus efeitos.) Lentamente,
a jovem esposa foi perdendo força. O seu rosto ganhou um tom
amarelado e os olhos – muito abertos e fitos naquele azul infinito do céu
de Jerusalém – abriram-se mais, ao mesmo tempo que as grandes
artérias do pescoço inchavam de forma alarmante.
Evidentemente, o veneno fizera efeito. Os sacerdotes sabiam-no e,
ao notarem aqueles sintomas, ordenaram à patrulha que soltasse a
mulher. Ao libertarem-na, ela caiu por terra desamparada, enquanto as
dezenas de curiosos começavam a passar em silêncio, atravessando de
novo a muralha ou afastando-se encosta abaixo, para o Cédron.
Foi a voz de André, chamando-me do arco da Porta Oriental, que me
arrancou à triste contemplação daquele corpo desmaiado, ou talvez já
sem vida, rodeado pela guarda do Templo.
O meu amigo devia ter notado logo a minha desolação e puxando-me
pelo braço, levou-me pelo ttrio dos Gentios em direcção à Cidade Baixa.
Uma vez fora do Templo, o discípulo, tirou dissimuladamente de entre a
roupa um pequenino jarro (cerca de dezassete centímetros de altura),
munido de uma só asa e com a reduzida boca circular perfeitamente
tapada com um tampão de pano. Sem mais explicações, colocou o
recipiente de barro vermelho nas minhas mãos, tal como um dos denários
que eu lhe tinha entregado. André não fez uma só pergunta e eu
agradeci duplamente a sua eficácia e discrição.
Dias mais tarde, quando foi possível analisar o conteúdo daquele
recipiente, as minhas suspeitas foram confirmadas. A tinta em questão
continha quatro substâncias principais: anil, carbonato de potássio, ácido
arsenioso e cal viva. Tudo isto diluído em água vulgar. A circunstância
chave de – segundo o Antigo Testamento – a tinta ser susceptível de se
dissolver na água, reduziu consideravelmente o conjunto de tintas
utilizadas provavelmente no século I em Israel. Este importante
requisito da dissolução da tinta na água, e o não menos decisivo facto de
provocar no ser humano os já referidos efeitos, conduziu-nos quase
irremissivelmente à chamada tinta azul.
Os nossos técnicos descobriram igualmente que um dos seus
ingredientes – o ácido arsenioso – na realidade não fazia parte das
substâncias originais e necessárias para a composição da tinta. Junto ao
anil, o carbonato de potássio e a cal viva aparecia o Ifureto de arsénio,
mas nunca o ácido arsenioso. Como podia ser isto? A explicação era
elementar: os Israelitas utilizavam o tipo denominado sulfureto amarelo
de arsénio, que se formava espontaneamente na Natureza em massas
compostas de lâminas semitransparentes, amarelo-ouro, inodoras,
insípidas insolúveis na água e voláteis ao fogo.
Este sulfureto amarelo de arsénio não é tóxico. Isso explicava que
pudesse ser manipulado sem problema. No entanto, no seu interior
albergava-se um veneno muito activo: o ácido arsenioso puro, de efeitos
enérgicos. Os Judeus conseguiam a dissolução deste veneno (insolúvel na
água, como já anteriormente citei), mercê de outras substâncias que
apareciam na composição da tinta azul: o carbonato de potássio e a cal
viva, ambos de forte poder alcalino 2.
* Provavelmente, o sacerdote encarregue da fabricação das águas
amargas fervia as quatro primeiras substâncias – anil, carbonato de
potássio, sulfureto amarelo de arsénio e cal viva -, conseguindo uma
dissolução total. A seguir, depois de filtrar o líquido resultante,
acrescentava uma pequena porção de goma-arábica pulverizada –
encontra Este sulfureto – diferindo do chamado sulfureto vermelho de
arsénio, que se encontra abundantemente na Boémia, é fácil de
encontrar na Pérsia. Daí que os Israelitas pudessem ter mais acesso ao
amarelo,. Ambos, no entanto, reúnem caracteristicas parecidas, quanto
ao facto de serem solúveis em soluções alcalinas. No entanto, o amarelo,
ao conter ácido arsenioso, torna-se muito mais tóxico que o Hvermelho”.
Era também muito mais abundante no comércio daquela época, sendo
conhecido mesmo por Teofrasto que viveu trezentos anos antes de
Jesus Cristo. (N. Do M.)
O carbonato de potássio, em especial é fortemente alcalino em
contacto com a água, gozando, além disso de um forte poder caustico ou
corrosivo, que poderia conter tinta (n. Do n.
A desintegração das lâminas de sulfureto de arsénico e a dissolução
dada pelos nossos especialistas na tinta azul e numa proporção idêntica à
da cal viva -, dando origem a um líquido duplamente útil: como tinta e
como veneno.
Quanto ao sabor amargo, que deu o nome à poção, poderia dever-se
à presença do carbonato de potássio, de forte sabor acre.
Dado o carácter sagrado desta tinta o mais lógico é que só fosse
composta pouco antes da sua utilização. A Mrsná na sua Ordem Terceira
(dedicada às mulheres), explica que o sacerdote enchia uma malga nova
de barro com uma quantidade que oscilava entre um quarto e meio Iog de
água do tanque (quer dizer, entre 125 e 250 gramas de água vulgar). Em
seguida, entrava no Santuário e dirigia-se para a direita, onde havia um
lugar de um côvado quadrado cerca de quarenta e cinco centímetros
quadrados), com uma mesa de mármore e um anel fixado nela. Depois de
a levantar, colhia a cinza que tinha por baixo e punha-a na malga, de tal
modo que se tornasse perceptível na água, tal como está escrito: Da
cinza que haja no pavimento do santuário tomará o sacerdote e a porá na
água.
Por último, o sacerdote fazia a tinta e escrevia as fórmulas rituais.
Yavé ordenava que se escrevesse num livro. Por outras palavras, num
rolo. Também não devia ser utilizada goma, nem vitríolo nem qualquer
outra substância fixante. Logicamente, se o que se pretendia era que a
acusada bebesse veneno contido na tinta, esta tinha de ser
perfeitamente solúvel na água.
Depois daquelas verificações, uma série de dúvidas – mais intensas e
fascinantes, se é possível – ficaram a flutuar no espírito dos homens do
projecto Cavalo de Tróia.
Em primeiro lugar, se a saída dos Judeus do Egipto se registou pelo
ano 1290 antes de Cristo, como é possível que o povo hebreu conhecesse
o ácido arsenioso e a sua funesta acção sobre o organismo humano, se as
primeiras notícias sobre o referido ácido começaram a difundir-se pelo
mundo no século ix da nossa Era 2? E, se não foram eles os
descobridores ou criadores de tal fórmula, quem foi? A conclusão
imediata só pode ser uma: Yavé.
Mas aceitando esta hipótese, quem era este Yavé, capaz de
transmitir fórmulas químicas tão precisas, antecipando-se, além disso
aos tempos? E, principalmente, por que razão um ser que se autodefinia
como Deus estabelecia processos tão injustos e horrendos na altura de
decidir quanto à culpabilidade de uma pessoa? Segundo os especialistas
em toxicologia e medicina legal, a mulher que ingerisse uma substância
com as características das águas amargas sofreria um quadro clínico
gastrenterítico.
Na realidade, com uma dose de cento e vmte miligramas de ácido
arsenioso poderia provocar-se a sua morte. Poucos
* Contrariamente à crença popular, o ácido arsenioso não tem um
sabor amargo, mas sim levemente açucarado. (N. Do M.) 2 Ainda que os
Gregos e os Romanos conhecessem os sulfuretos de arsénio naturais,
parece não se ter tido conhecimento do ácido arsenioso – pelo menos na
Europa – antes da época de Geber (século ix). O mesmo metal, embora já
citado por Paracelso, só foi bem definido nas suas propriedades e
natureza em 1732, pelo famoso alquimista Brand. (N. Do M.)
minutos depois, apareciam os sintomas típicos: sede muito intensa,
vómitos, desinteria, cãibras e crispação das feições, provocando a morte
por asfixia. Outros técnicos em venenos foram de opinião que talvez as
águas amargas pudessem conter, em vez do ácido arsenioso, outro
poderoso tóxico, extraído da víbora do deserto conhecida por Gariba.
Neste caso, e para tornar activo tão mortífero veneno, os sacerdotes
introduziam na poção a cal viva, que queimava e dilacerava as mucosas
internas da infeliz, activando o veneno da víbora, inócuo por via oral. Se
as Háguas amargas eram preparadas com este último veneno, sempre
existia a possibilidade de se dar o milagre. Bastava suprimir o tóxico
produzido pela Gariba ou Echis Carinatus – muito frequente nos desertos
da península do Sinai – para que a suposta adúltera não sofresse dano
algum.
Naturalmente, este truque – também ensinado pelo suspeito Yavé -
prestava-se a numerosas manipulações da multidão ignorante e - porque
não? - à possível chantagem dos responsáveis pelas águas amargas. Um
assunto digno de um estudo em profundidade...
Com certa pressa, justificadíssima, como é natural, André foi-me
guiando pelas estreitas vielas daquela parte baixa de Jerusalém, até
chegar a uma casa situada entre a Sinagoga dos Libertos e a piscina de
Siloé, na ponta meridional da Cidade Santa. A fachada, inteiramente de
pedra lavrada, ostentava sobre um pétreo dintel um escudo circular com
estrela de cinco pontas. No formoso alto-relevo, gasto pela passagem do
tempo, pude ler a palavra Jexusni.n.t, formada pelas cinco letras
hebraicas, cada uma delas situada entre as pontas da famosa estrela de
David.
José, o de Arimateia, nobre decurião (uma espécie de assessor do
Sinédrio, dada a sua riqueza e nobre estirpe: a sua família vinha, como a
de Jesus, do mítico rei David), era uma personagem de grande prestígio
na Cidade Santa. A sua tendência liberal, fruto, sem dúvida, das suas
viagens pela Grécia e pelo Império Romano, tinham-no arrastado desde o
começo para os ensinamentos de Jesus de Nazaré. E ainda que tivesse
nascido na aldeia de Arimateia (hoje Rantis, a nordeste de Lida), a sua
infância e juventude tinham decorrido quase por completo em Jerusalém.
Aquela casa – segundo me contou, ao longo do almoço – fora erguida pelos
seus antepassados, justamente sobre o que restava da antiga Cidade de
David, no promontório chamado Ofel.
A sua considerável fortuna – amontoada, principalmente, com os
negócios da construção – tinha-lhe permitido preparar aquela mansão
com o mais requintado dos luxos notando-se em toda a sua decoração
uma clara influência helenística. A sua profissão – e este foi um dos
aspectos que mais me atraiu em José – permitira-lhe ainda um estreito
contacto com o procurador romano, Pôncio Pilatos. A sua chegada à
Judeia, por ordem do imperador romano Tibério, Pilatos desenvolveu
* O professor E. Kochva, do Departamento de Zoologia da
Universidade de Telavive, Israel, manifestou-se também de acordo com
esta última hipótese. Se as mucosas que protegem as paredes internas
do intestino são rasgadas, as águas amargas podem converter-se num
veneno activo. (N. Do M.)
grande actividade. Uma das suas primeiras obras foi a construção
de um aqueduto com cerca de trezentos estádios (quase cinquenta
quilómetros). Pois bem, José de Arimateia foi um dos principais
administradores de obras públicas. André conhecia bem a casa e guioume
directamente para o espaçoso pátio – a céu aberto – onde se
encontravam o Mestre, os discípulos, uma trintena de gregos (os mesmos
que abordaram Jesus nas primeiras horas da tarde de domingo e que,
pelo que parecia, tinham reconsiderado, procurando de novo o Mestre) e
José, o de Arimateia, com os dezanove membros do Sinédrio que tinham
apresentado a sua demissão, perante as graves irregularidades do
supremo tribunal para com Jesus. A comída, consistindo,
fundamentalmente, de caça e de legumes, ia já no terceiro prato quando
me sentei numa ponta da mesa. .
O Nazareno, em tom fatigado, parecia dirigir-se àqueles
estrangeiros de Alexandria, Roma e Atenas: Sei que a Minha hora se
está aproximando e estou angustiado.
Percebo que a Minha gente está decidida a desdenhar o reino,
porém, alegro-me, ao receber estes gentios, que procuram a Verdade,
que vêm aqui hoje perguntar-me pelo caminho da Luz.
No entanto – prosseguiu Jesus -, o coração dói-me pela Minha gente
e a Minha alma entristece-se com o que está diante de Mim... O Mestre
fez uma pausa e os convivas entreolharam-se, desorientados perante a
ideia obsessiva, que o Rabi manifestava, desde há dias. Ao entrar no
pátio, eu tinha procurado encostar a minha vara a uma das paredes de
mármore branco, carregando no prego que punha a filmagem em
funcionamento. E, para dizer a verdade, no tempo que permaneci em casa
de José, a minha atenção esteve mais dependente do cajado – não fosse
ele ser derrubado pela infinidade de servos que entravam e saíam com as
iguarias – que do meu anfitrião e dos seus convidados.
Que posso dizer – continuou Jesus – quando olho em frente e vejo o
que Me vai acontecer?
Pedro cravou os olhos azuis no seu irmão André, mas, a ajuizar pelas
expressões dos rostos de ambos, nenhum conseguia compreender. .. Devo
dizer: salvai-Me dessa hora horrorosa? Não! Para este fim vim ao mundo
e, justamente, para esta hora.
Mas direi e rogarei que vos unis a Mim: Pai, glorificai o seu nome. A
tua vontade será cumprida.
Ao terminar a refeição, alguns dos gregos e discípulos levantaramse,
rogando ao Mestre que lhes explicasse mais claramente o que
significa e quando teria lugar a hora horrorosa. Mas Jesus iludiu
qualquer resposta.
* Efectivamente, na sua obra Guerras dos Judeus, Flávio Josefo,
fala deste aqueduto, que constitui outro dos graves erros de Pilatos.
Sem o menor tacto político, o procurador mandou utilizar o tesouro que
os Judeus chamavam «Corboman» para trazer água. Aquilo provocou uma
revolta, mas Pilatos actuou com energia, ordenando que os seus soldados
espancassem os manifestantes com bastões e paus, dando lugar a uma
grande mortandade. Recentes descobertas arqueológicas demonstraram
que o aqueduto em questão ia até ao monte dos Francos, nas cercanias
de Belém, Sobre o qual se apoiava a fortaleza do Herodium. (N. Do M.)
Enquanto empunhava a minha vara, chamou-me a atenção um
esplêndido copo de cristal, fechado juntamente com uma reduzida
colecção de pedras ovóides e esféricas numa vitrina.
José deve ter-se apercebido do meu interesse por aquelas peças e,
aproximando-se, explicou-me que se tratava de um valioso copo de
diatreta, coberto com filigrana de prata. Fora encontrada na Germânia e
constituía um exemplar único na difícil arte do vidro, tão magistralmente
praticada pelos Romanos. Quanto às pedras – de uns cinco centímetros
cada -, faziam parte de outra singular colecção. Eram antigos projécteis
de funda – pederneira e calcário – utilizados, segundo os antepassados
de José, pelas tropas especiais de setecentos soldados benjaministas
canhotos, capazes de disparar contra um cabelo sem falhar o tiro, tal
como cita o Livro dos Juízes (20, 16).
- É muito possível – insinuou José – que David utilizasse uma pedra
semelhante contra Golias. Aquele breve encontro com o venerável José –
que deveria rondar já pelos sessenta anos – foi de grande utilidade para
os planos que Cavalo de Tróia traçara para mim. Um dos meus objectivos,
antes do anoitecer de quinta-feira, era, justamente, estabelecer
contacto com o procurador romano em Jerusalém. Quando expus o meu
desejo de ter uma entrevista com Pôncio Pilatos, José mostrou-se
indeciso. Procurei então ganhar a sua confiança, explicando-lhe que
trabalhara como astrólogo ao serviço de Tibério e que, aproveitando a
minha curta passagem por Israel, seria de extremo interesse para
Pilatos que pudesse conhecer os graves acontecimentos assinalados nos
astros.
José, tal como eu esperava, manifestou uma enorme curiosidade e
prometeu obter a entrevista para a manhã do dia seguinte, quarta-feira,
mas desde que pudesse estar presente.
Concordei, encantado.
Pelas duas da tarde, Jesus despediu-se de José, o de Arimateia,
subindo pelas empedradas ruas até à parede sul do Templo. Pelo caminho
avisou os Seus amigos de que aquele ia ser o Seu último discurso público.
Mas os Seus homens de confiança não fizeram qualquer comentário. Na
realidade, os seus corações encontravam-se mergulhados numa profunda
confusão. Seria que o Mestre, que sempre tinha escapado das garras do
Sinédrio, ia permitir que O capturassem? Uma vez no Átrio dos Gentios,
o Rabi sentou-se no Seu lugar habitual – as escadarias que rodeavam o
Santuário – e, num tom extremamente carinhoso, começou a falar: -
Durante todo este tempo estive convosco, indo e vindo por estas terras,
proclamando o amor do Pai para com os filhos dos homens.
Muitos vieram à luz e, pela fé, entraram no reino do céu.
Apoiando este ensinamento e pregação, o Pai fez coisas
maravilhosas, incluindo a ressurreição dos mortos. Muitos doentes e
aflitos foram curados porque acreditavam. Porém, toda esta proclamação
da Verdade e cura das enfermidades não serviram para abrir os olhos
dos que recusaram a luz e dos que estão decididos a recusar o evangelho
do Reino.
Eu e todos os Meus discípulos fizemos o possível para viver em paz
com os nossos irmãos, para cumprir os sensatos mandamentos das leis de
Moisés e as tradições de Israel.
Procurámos persistentemente a paz, mas os dirigentes desta nação
não a podem ter. Repelindo a verdade de Deus e a luz do céu colocam-se
do lado do erro e da escuridão. Não pode haver paz entre a luz e as
trevas, entre a vida e a morte, entre a verdade e o erro. Muitos de vós
vos haveis atrevido a crer nos Meus ensinamentos e já haveis entrado na
alegria e liberdade da consciência de ser filho de Deus. Sereis
testemunhas de que ofereci a mesma filiação em Deus a todo o Israel.
Até a estes mesmos homens que hoje procuram a Minha destruição. Mas
digo-vos mais: mesmo agora receberia Meu Pai estes mestres cegos,
estes dirigentes hipócritas, se voltassem, o seu rosto para Ele e
aceitassem a Sua misericórdia...
Jesus fora indicando com a mão os diferentes grupos de escribas,
saduceus, fariseus, que se foram juntando às centenas de judeus que
desejavam escutar o Rabi da Galileia.
Alguns dos discípulos, especialmente Pedro e André, empalideceram
ao escutar os audazes ataques do Mestre.
.. Mesmo agora não é demasiado tarde – continuou Jesus – para que
essa gente receba a palavra do céu e dê as boas-vindas ao Filho do
Homem.
Um dos membros do Sinédrio, ao escutar estas expressões, irritouse
visivelmente, arrastando os outros elementos do seu grupo a que
saíssem do terreiro. Jesus apercebeu-se perfeitamente do facto e,
levantando o tom de voz lançou-se contra eles: .. Meu Pai tratou com
clemência aquela gente.
Geração após geração enviámos os Nossos profetas para que os
ensinassem e avisassem. E, geração após geração, eles mataram os
Nossos enviados. Agora, os vossos poderosos sumos sacerdotes e
casmurros dirigentes continuam fazendo o mesmo.
Tal como Herodes assassinou João, vós, igualmente, vos preparais
para destruir o Filho do Homem.
Enquanto houver uma possibilidade de os Judeus voltarem o seu
rosto para Meu Pai e procurarem a sua salvação, o Deus de Abraão,
Isaac e Jacob manterá as Suas mãos estendidas para vós. Mas, uma vez
que tiverdes transbordado a taça da vossa impertinência, esta nação
será abandonada aos seus próprios conselhos e irá rapidamente para um
final pouco glorioso...
O arraigado sentimento de patriotismo dos Hebreus ficou
visivelmente impressionado com aquelas sentenças de Jesus. E a
multidão que O escutava, sentada sobre as lajes do Átrio dos Gentios,
agitou-se, inquieta, entre murmúrios de desaprovação.
Mas o Nazareno não se impressionou. Aquele Homem, na verdade,
era valente.
- Esta gente tinha sido chamada para ser a luz do mundo e para
mostrar a glória espiritual de uma raça que conhecia Deus... Mas, até
hoje, haveis-vos afastado do cumprimento dos vossos privilégios divinos
e os vossos dirigentes preparam-se para cometer a loucura suprema de
todos os tempos...
Jesus fez uma brevíssima pausa, mantendo o auditório ansioso. -
Digo-vos Eu que estão prestes a recusar a grande oferta de Deus a
todos os homens e a todas as épocas: a revelação do Seu amor. Em
verdade, em verdade vos digo que, uma vez que tenhais repelido esta
revelação, o reino do céu será entregue a outras gentes.
Em nome do Pai que Me enviou, Eu vos aviso: estais a um passo de
perder o vosso lugar no mundo como sustentáculos da eterna verdade e
como custódias da lei divina. Justamente agora vos estou oferecendo a
vossa última oportunidade para que entreis, como crianças, pela fé
sincera, na segurança da salvação do reino do céu. Meu Pai trabalhou
durante muito tempo pela vossa salvação, e Eu desci a viver entre vós
para vos mostrar pessoalmente o caminho. Muitos dos judeus e
samaritanos e, até, gentios, acreditaram no evangelho do reino. E vós, os
que deveríeis ser os primeiros a aceitar a luz do céu, haveis recusado a
revelação da verdade de Deus revelado no homem e do homem elevado a
Deus.
Esta tarde, os Meus apóstolos estão ante vós em silêncio.
Mas depressa escutareis as suas vozes, clamando pela salvação.
Agora vos peço que sejais testemunhas, discípulos meus e crentes
no evangelho do reino, de que, uma vez mais, ofereci a Israel e seus
dirigentes a liberdade e a salvação. De todas as formas vos advirto que
estes escribas e fariseus se sentam ainda na cadeira de Moisés e,
portanto, até que os poderes mais altos que dirigem o reino dos homens
os desterrem e destruam Eu vos ordeno que coopereis com estes
grandes de Israel.
Não vos é pedido que vos unais a eles nos seus planos para destruir
o Filho do Homem mas sim em qualquer outra coisa relacionada com a paz
de Israel. Nestas questões, fazei o que vos ordenarem e observai a
essência das leis, mas não retireis exemplo das suas acções. Recordai
que é este o seu pecado: dizem o que é bom, mas não o fazem. Bem
sabeis vós como estes dirigentes vos fazem suportar pesadas cargas
sem levantarem um dedo para vos ajudarem. Oprimiram-vos com
cerimónias e escravizaram-vos com as tradições.
E ainda vos direi mais: estes sacerdotes, só pensando em si
próprios, se deleitam fazendo boas obras, de modo a serem vistos pelos
homens. Aumentaram as suas faixas e alargaram as orlas dos seus trajos
oficiais. Solicitam os lugares principais nos festins e pedem as primeiras
cadeiras nas sinagogas. Cobiçam as saudações e louvores nos mercados e
desejam que todos os homens lhes chamem rabis. E, até, enquanto
procuram todas estas honras, tomam secretamente posse das viúvas e
beneficiam dos serviços do Templo sagrado. Por ostentação, estes
hipócritas fazem grandes orações em público e dão esmolas para chamar
a atenção dos seus semelhantes.
Naqueles momentos, quando Jesus lançava os Seus primeiros e
fatais ataques contra os sacerdotes e membros do Sinédrio, os
apóstolos que se tinham encarregado da instalação do acampamento na
encosta do monte das Oliveiras apareceram no terreiro, unindo-se ao
grupo dos discípulos. Foi pena que não tivessem escutado a primeira
parte do discurso de Jesus. Em especial, Judas Iscariotes. A título
pessoal, creio que se o traidor tivesse sido testemunha daquelas
primeiras frases, oferecendo misericórdia, talvez tivesse mudado de
parecer.
Mas, pelo que pude deduzir na tarde de quarta-feira, a última
metade do discurso do Mestre no Templo foi decisiva para que
desertasse do grupo. O seu sentido do ridículo e o seu negativo
condicionamento, ao que dirão, estavam muito mais acentuados na sua
alma do que eu acreditava.
- E assim é como deveis honrar os vossos chefes e reverenciar os
vossos mestres – continuou o Rabi – não deveis chamar a nenhum homem
pai no sentido espiritual. Só Deus é vosso Pai. Também não deveis tentar
dominar os vossos irmãos do reino. Recordai: Eu ensinei-vos que aquele
que for maior entre vós deve ser servo de todos. Se vos pretendeis
exaltar a vós próprios ante Deus, certamente sereis humilhados; porém,
o que se humilha sinceramente, certamente será exaltado: Procurai na
vossa vida diária, não a própria glória, mas a de Deus. Subordinai
inteligentemente a vosssa própria vontade à do Pai do Céu.
Não confundais as Minhas palavras. Não tenho malícia para com
estes sacerdotes principais, que pretendem mesmo a Minha destruição.
Não tenho maus desejos contra estes escribas e fariseus, que repudiam
os Meus ensinamentos. Sei que muitos de vós acreditais em segredo e
sei que professareis abertamente a vossa lealdade quando chegar a hora.
Mas, como se justificarão a si mesmos os vossos rabis se dizem falar
com Deus e pretendem repudiá-lo e destruir O que vem ao mundo para
revelar o Pai? Ai de vós, escribas e fariseus! Hipócritas!...
Fechais as portas do reino dos céus aos homens sinceros porque são
incultos. Recusais entrar no reino e, ao mesmo tempo, fazeis tudo o que
está na vossa mão para evitar que entrem os outros. Permaneceis de
costas para as portas da salvação e lutais com todos aqueles que querem
entrar.
Ai de vós, escribas e fariseus! Sois hipócritas Abarcais o céu e a
terra para fazer prosélitos e, quando o conseguis, só ficais contentes
quando os fazeis duas vezes piores do que aquilo que eram como filhos
dos gentios.
Ai de vós, sacerdotes e chefes principais. Dominais a propriedade
dos pobres e exigis pesados tributos aos que querem servir Deus. Vós,
que não tendes misericórdia, podeis esperá-la dos mundos vindouros?
Ai de vós, falsos mestres! Guias cegos. Que pode esperar-se de uma
nação em que os cegos guiam os cegos? Cairão todos no abismo da
destruição. Ai de vós, que dissimulais quando prestais juramento Sois
trapaceiros mais que Ensina um homem! Pode jurar ante o Templo e
quebrar o seu juramento, mas o que jura ante o ouro do Templo
permanecerá ligado. Sois todos cegos e loucos.
Jesus pusera-se de pé. O ambiente, pesado por aquelas verdades
como punhos que toda a gente conhecia mas que ninguém se atrevia a
proclamar em voz alta e muito menos na presença dos dignitários do
Templo, ficava cada vez mais tenso.
Ninguém se atrevia sequer a respirar. Os discípulos, cada vez mais
acobardados baixavam o rosto ou olhavam com temor para os grupos de
sacerdotes.
Mas o Nazareno parecia estar disposto a tudo...
.. Nem sequer sois consequentes com a vossa desonestidade. I
Quem é maior: o ouro ou o Templo?
Ensinais que se um homem jura ante o altar, nada significa.
Mas se jurar ante a oferenda que está em frente do altar, então,
prmanece como devedor. Sois cegos à verdade! Quem é maior: a
oferenda ou o altar que santifica a oferenda? Como podeis justificar
tanta hipocrisia e desonestidade?
Ai de vós, escribas e fariseus! Certificai-vos de que trouxeram
dízimos, hortelã e cominhos e, ao mesmo tempo, não quereis saber das
questões mais importantes da fé, misericórdia e justiça. Com razão
deveis fazer uma coisa, mas sem esquecer a outra. Sois certamente
mestres cegos e surdos! Espantais os mosquitos e suportais o camelo...
Ai de vós, escribas, fariseus e hipócritas! Sois escrupulosos a limpar a
parte de fora da taça e das travessas, mas por dentro continua a
ferrugem da extorsão e dos excessos e da decepção.
Sois espiritualmente cegos. Reconhecei Comigo que melhor seria
limpar por dentro da taça. Então, o que dela transbordasse limparia por
fora. Malvados réprobos! Fazeis que os actos exteriores da vossa
religião estejam conformes à letra, quando as vossas almas estão
impregnadas de iniquidade e assassínios.
Ai de vós, de todos vós, que recusais a verdade e desdenhais a
misericórdia! Muitos de vós sois como sepulcros caiados. Por fora
parecem formosos mas, por dentro, estão cheios de ossos de homens e
de toda a espécie de porcaria. Mesmo assim, vós, os que repelis
conscientemente o conselho de Deus, apareceis ante os homens como
santos e rectos, porém, por dentro, os vossos corações estão doentes de
hipocrisia. Ai de vós, falsos guias da nação! Com o tempo haveis
construído um monumento aos profetas martirizados pelos antigos,
enquanto vós conspirais para destruir Aquele de quem eles falaram.
Adornais os túmulos dos rectos e louvais-vos a vós próprios dizendo
que, se tivésseis vivido no tempo de vossos pais, não teríeis morto os
profetas. E com este pensamento tão justo vos preparais para
assassinar Aquele de quem os profetas falaram: o Filho do Homem. Em
frente, pois, e enchei até aos bordos a taça da vossa condenação! Ai de
vós, filhos do pecado! João, com verdade, vos chamou filhos das víboras.
E perguntou-Me: como podeis escapar à sentença que João pronunciou
contra vós? O Nazareno conservou-se uns segundos em silêncio,
enquanto os membros do Sinédrio – vermelhos de ira – iam tomando
notas nos rolos ou livros que costumavam trazer nos braços. Aquele
facto trouxe-me à mente outra realidade, que, tal como ia verificando,
seria lamentável. Nenhum dos apóstolos ou adeptos de Jesus tomava
alguma vez uma só nota de quanto fazia e, principalmente, de quanto
dizia o seu Mestre. Dados os múltiplos ensinamentos do Rabi da Galileia
e a Sua considerável extensão – como o discurso que pronunciava naquele
momento -, ia ser quase impossível que as Suas palavras pudessem ser
recolhidas no futuro, na sua integridade e total fidelidade.
Era lamentável que nenhum daqueles homens tivesse chamado a si a
importantíssima missão de ir recolhendo os discursos e factos que o
Nazareno protagonizou. Naquela mesma noite, no acampamento do monte
das Oliveiras, teria ocasião de verificar que não estava enganado nas
minhas apreciações pessoais... .. Porém, Eu vos ofereço, em nome do Meu
Pai, misericórdia e perdão. Mesmo agora – acrescentou Jesus num tom
mais suave e conciliador -, vos ofereço a Minha mão. Meu Pai vos enviou
os profetas e os sábios. Haveis matado os primeiros e haveis perseguido
os segundos.
Então, apareceu João, proclamando a vinda do Filho do Homem, e
também o haveis destruído, apesar de muitos terem acreditado nos seus
ensinamentos. E agora preparais-vos para derramar mais sangue
inocente. Compreendeis que chegará um dia terrível em que o Juiz de
toda a terra vos pedirá contas pela forma como haveis recusado,
perseguido e destruído estes mensageiros do céu? Compreendeis que
tereis de prestar contas por todo este sangue honrado, desde o primeiro
profeta, assassinado nos tempos de Zacarias entre o Santuário e o
altar? E mais Eu vos digo: se prosseguirdes com esta malvada conduta,
essas contas podem ser exigidas, mesmo nesta geração.
Ó Jerusalém e filhos de Abraão! Vós, que haveis apedrejado os
profetas e assassinado os mestres, mesmo agora reuniria vossos filhos
como a galinha reúne os seus pintos debaixo das suas asas... Mas não
quereis! Vou deixar-vos agora. Haveis ouvido a minha mensagem e
tomado a vossa decisão. Os que acreditaram no Meu evangelho estão
salvos. Os que recusam a oferenda de Deus Me verão ensinar no Templo.
O Meu trabalho está feito.
Tende cuidado, agora! Eu sigo com os Meus filhos e a vossa casa fica
deserta. .
As cruas denúncias de Jesus de Nazaré tinham fechado toda a
possibilidade de reconciliação com os dirigentes do Sinédrio e da classe
sacerdotal de Jerusalém. Ao terminar as suas palavras, o Mestre
ordenou aos discípulos que O seguissem, e todos saímos do Templo, em
direcção ao acampamento do monte das Oliveiras. Mas no ambiente da
Cidade Santa ficou, flutuando, esta pergunta: Que sorte aguardaria o
Rabi da Galileia?
Quando nos preparávamos para sair, um dos doze – Mateus, que
recordava a profecia do seu Mestre no cimo do monte das
Oliveirasaproximou-se de Jesus e, apontando os pesados silhares da
muralha do Templo, comentou com evidente incredulidade:
- Mestre, repara de que forma isto está construído. Olha as pedras
maciças e os formosos adornos. Como podem estas edificações ser
destruídas? O Rabi, sem abrandar a Sua marcha pelas ruas da cidade,
rumo à Porta da Fonte, disse-lhe:
- Haveis visto aquelas pedras e aquele templo maciço? Pois em
verdade, em verdade vos digo que muito próximos estarão os dias em que
não ficará pedra sobre pedra. Todas serão deitadas abaixo.
E o Gigante calou-se. O grupo entrou, então, em intermináveis
polémicas, considerando que era muito difícil que aquela fortaleza
pudesse ser demolida. Nem sequer o fim do mundo, chegaram a insinuar
alguns dos apóstolos, poderia originar a destruição do Templo. O dia
encaminhava-se para o ocaso e Jesus, procurando evitar a multidão de
peregrinos que iam e vinham pelo vale de Kidrón, sugeriu aos seus
discípulos que deixassem o caminho que ia para Betânia, indo por um dos
atalhos que percorria a encosta sul do monte das Oliveiras, na direcção
norte.
Ao alcançar um dos cumes, Jerusalém surgiu de repente à nossa
esquerda, majestosa e banhada em ouro pelos últimos raios solares. No
santuário e nas vielas tinham começado a acender-se as primeiras
candeias
de azeite. Aquele espectáculo deteve o grupo. Então, um dos
discípulos – indicando a Cidade Santa – perguntou a Jesus:
- Diz-nos, Mestre, como saberemos que esses acontecimentos estão
para acontecer?
O grupo acabou por sentar-se na erva e o Rabi, de pé e sem pressa,
foi-lhes dizendo:
- Sim, contar-vos-ei alguma coisa sobre os tempos em que esta
gente terá enchido a taça da sua iniquidade e a justiça cairá sobre esta
cidade de nossos pais... Quando vos – Estou prestes a deixar-vos. Vou
para junto de Meu Pai. - deixar, tende cuidado em que nenhum homem
vos engane. Muitos virão como libertadores e levarão muitos pelo mau
caminho. Quando ouvirdes rumores sobre guerras, não vos consterneis.
Ainda que tudo isso aconteça, o fim de Jerusalém não terá ainda
chegado. Também não vos deveis preocupar quando fordes entregues às
autoridades civis e perseguidos pelo evangelho...
Os apóstolos entreolharam-se, com o medo reflectido nos
semblantes.
Sereis expulsos da Sinagoga e feitos prisioneiros por Minha causa.
E alguns de vós morrerão. Quando fordes levados aos governadores e
dirigentes será como testemunho da vossa fé e para que mostreis
firmeza no evangelho do reino. E quando estiverdes perante juízes, não
tenhais antecipadamente angústia quanto ao que deveis dizer: o Espírito
vos ensinará nesse mesmo momento o que deveis responder aos vossos
adversários. Nesses dias de dor, até os vossos parentes, sob a direcção
daqueles que repeliram o Filho do Homem, vos entregarão à prisão e à
morte. Por algum tempo sereis odiados por Minha causa mas até nessas
perseguições, vos não abandonarão, não duvideis dos que o evangelho
deixará desamparados. Sede pacientes, o meu reino triunfará de todos
os inimigos e, a seu tempo, será proclamado por todas as nações.
O Mestre calou-se, enquanto contemplava a cidade. E eu, sentado
como os outros, fiquei maravilhado ante a precisão daquelas frases.
Certamente, quarenta anos mais tarde, quando as legiões de Tito
cercaram e assolaram Jerusalém, nenhum dos apóstolos se encontrava na
cidade. Se não tivessem sido avisados pelo Mestre, teria sido mais que
provável que alguns, talvez, tivessem perecido ou sido aprisionados.
O silêncio foi quebrado por André:
- Mas, Mestre, se a Cidade Santa e o Templo vão ser destruídos e
se Tu não estás aqui para nos dirigires, quando deveremos abandonar
Jerusalém? Jesus, então procurou ser extremamente claro e preciso:
- Podeis ficar na cidade depois de Eu ter partido, mesmo naqueles
tempos de dor e amarga perseguição. Mas, quando finalmente virdes
Jerusalém cercada pelos exércitos romanos, depois da revolta dos falsos
profetas, sabereis então que a sua desolação está à porta. Deveis então
fugir para as montanhas. Não deixeis que ninguém vos detenha nem que
outros entrem. Haverá uma grande aflição. Serão os dias da vingança dos
gentios. Quando tiverdes fugido da cidade, essa gente desobediente
cairá pelo gume das espadas dos gentios.
Entretanto vos aviso: não vos deixeis enganar. Se algum homem vier
dizer-vos: Olha, este é o Libertador, aqui o tens, não acrediteis. Virão
muitos falsos mestres e oútros serãolevados por mau caminho. Não vos
deixeis enganar. Como podeis ver, avisei-vos de antemão.
Como soaram claras e proféticas aquelas palavras aos meus ouvidos!
Os apóstolos e discípulos não podiam querer que tenha estudado, ainda
que parte daquela profecia. Para quem só sumariamente, a aproximação
dos exércitos romanos de Jerusalém pouco antes da lua cheia da
Primavera do ano 70 o aviso do Mestre só pode ser lapidar. Tal como
acabava de anunciar o Galileu, Israel converter-se-ia num inferno, entre
os anos 66 e 70. Naquele tempo, o partido dos zelotas, os fanáticos,
armados até aos dentes, acabou por sublevar toda a comunidade judaica.
Em Maio de 66, a guarnição romana é derrotada, em consequência do
pedido do procurador Floro, que exigiu dezassete talentos do tesouro do
Templo. Os Judeus tomam Jerusalém e proíbem o sacrifício diário em
honra do Imperador. Aquilo esgotou a paciência de Roma que envia uma
legião às ordens do governador da Síria, Céstio Galo. Mas as revoltas
tinham incendiado o país e os romanos vêem-se obrigados a retirar.
A nação judaica prepara-se para a guerra e saque das suas cidades,
(1) sendo nomeado generalíssimo dos seus exército o que depois seria
historiador, Flávio Josefo.
E, efectivamente, Nero confia três legiões a Tito Flávio Vespasiano,
que, acompanhado por seu filho Tito, cai sobre a Galileia, chacinandoa.
Mas Nero suicida-se e Tito Flávio tem de regressar precipitadamente a
Roma. Seu filho se encarregaria de completar a grande vingança de
Roma.
Os Hebreus ficam aterrorizados ao verem passar a caminho de
Jerusalém milhares de soldados pertencentes às 5.a, l0.a 12.a e 15.
legiões, acompanhados por forças de cavalaria e tropas auxiliares, bem
como um pesado equipamento de assalto e demolição. No que foram
tomando homens, que – como Jesus profetizara no ano 30, - metiam nas
prisões e cercando a Cidade Santa. Jerusalém, cheia de peregrinos, viuse
submetida a fortes tensões internas, pela loucura de súbitas
aparições de libertadores que procuravam arrastar as massas, e pelo
medo. Porém quando os homens de Tito começam os ataques, os
apóstolos de Jesus, que recordaram aquelas palavras pronunciadas na
tarde de terça-feira, 4 de Abril de 30, diante de Jerusalém, já tinham
fugido da cidade. Poucos meses depois, a artilharia romana – capaz de
arremessar pedras de um quintal de peso a 185 metros de distância –
arrasaria Jerusalém sem deixar pedra sobre pedra.
Pedro, apesar da sua boa vontade, não parecia compreender o que
Jesus lhes estava anunciando. Pelos seus comentários, deduzi que
associava aquela destruição com o fim do mundo e não com a queda de
Jerusalém. Ao formular a sua pergunta ao Rabi, convenci-me por
completo:
- Mas, Mestre – disse Pedro -, todos sabemos que estas coisas se
darão quando os novos céus e a nova terra apareçam. Como saberemos
então que Tu vens para trazer tudo isto?
O Gigante olhou-o com infinita compaixão, compreendendo que o seu
fogoso amigo não entendera a mensagem. E disse-lhe:
- Pedro, erras sempre porque sempre procuras relacionar o novo
ensinamento com o velho. Estás condenado a interpretar mal o Meu
ensinamento. Insistis em interpretar o evangelho, de acordo com as
vossas crenças estabelecidas. No entanto, tentarei explicar-vos. Porque
continuas tentando que o Filho do Homem se sente no trono de David e
esperas ver cumpridos os sonhos materiais dos Judeus? As coisas a que
agora dás valor vão acabar e será um novo começo, a partir do qual o
evangelho do reino chegará a todo o mundo. Quando o reino chegue ao
seu pleno cumprimento, estai certos de que o Pai do céu não deixará de
vos visitar. E assim continuará meu Pai, manifestando a Sua misericórdia
e mostrando o Seu amor, mesmo a este escuro e malvado mundo.
E assim, depois de Meu Pai Me ter investido com todo o poder e
autoridade, também Eu acompanharei os vossos destinos, guiando-vos
nas questões do reino com a presença do Meu espírito, que não tardará a
ser vertido sobre toda a carne. Estarei, portanto, presente entre vós em
espírito, e prometo que voltarei ainda a este mundo, onde vivi esta . vida
da carne e tive a experiência de revelar simultaneamente Deus ao
homem e levar o homem a Deus. Bem cedo tenho de vos deixar e realizar
a obra que o Pai em minhas mãos confiou, mas tende coragem: voltarei
um dia.
Entretanto, o Meu Espírito de Verdade vos confortará e guiará.
! Sem que eu o esperasse, Jesus passara da profecia sobre a
destruição de Jerusalém a um tema que profundamente me interessava e
de que já falara com ele: a Sua anunciada e confusa segunda vinda à
Terra. E, assim, todos os meus sentidos se concentraram naquelas
palavras, tão mal interpretadas, e transmitidas pior ainda, no futuro,
pelos Seus adeptos. .. Agora Me vedes na debilidade e na carne.
Mas, quando voltar – acentuou o Rabi, voltando os Seus olhos para
mim -, será com poder e espírito. O olho da carne vê o Filho do Homem
em carne, mas só o olho do espírito contemplará o Filho do Homem
glorificado pelo Pai e Ì aparecendo na Terra com o Seu próprio nome.
Mas os tempos da reaparição do Filho do Homem só são conhecidos
pelos conselhos do paraíso. Nem sequer os anjos sabem quando isto
acontecerá. No entanto, deveis compreender que, quando este evangelho
do reino tenha sido proclamado por todo o mundo para a salvação dos
homens e quando a plenitude da época tiver chegado, o Pai vos enviará
outra outorga de designação divina, ou o Filho do Homem voltará I .: para
encerrar a época.
Í Ao escutar aquelas revelações fiquei perplexo. E tentado estive a
tomar a palavra e interrogar Jesus sobre este misterioso encerramento
de uma época. No entanto, a minha condição de simples observador
manteve-me à margem do diálogo.
E agora, relacionado com a dor de Jerusalém, em verdade vos digo
que esta geração passará sem que se cumpram as minhas palavras.
Quanto à nova vinda do Filho do Homem, ninguém na terra ou no céu de
tal pode ter pretensões a falar.
Como se o Rabi tivesse lido os meus pensamentos, prosseguiu com
estas palavras: Deveis ser sábios em relação à maturidade de uma época.
Deveis estar alerta para discernir os sinais dos tempos. Sabeis que
quando a figueira mostra os seus tenros ramos e estende as suas folhas
o Verão está perto.
De igual forma, quando o mundo tiver passado o longo Inverno da
mentalidade material e virdes a chegada da Primavera espiritual, deveis
então saber que chegou o Verão para a Minha nova visita. De todos estes
conhecimentos do Nazareno, nenhum, em minha opinião, nenhum, como
este, foi mais confuso para as mentes dos apóstolos e simpatizantes.
Quando alguem lê o que foi escrito, lustros depois da Sua morte, em
relação a esta segunda vinda e sobre a destruição de Jerusalém, e
conhece, como eu, o verdadeiro sentido do discurso de Jesus naquele
entardecer de terça-feira, só pode sentir uma grande tristeza. Pelo
menos nesta parte, os evangelhos canónicos foram pessimamente
construídos. Porém, infelizmente, não ia ser esta a única passagem
ignorada ou mal interpretada pelos evangelistas...
Uma lua quase cheia se erguia já a leste quando o grupo retomou o
caminho. Jesus, na frente, continuou pelo acidentado cume do monte das
Oliveiras, sempre em direcção a norte. Ao chegar às proximidades do
acampamento público, onde se tinham instalado os peregrinos vindos da
Galileia, o Mestre desviou-se para a direita, procurando rodear as
tendas e a infinidade de fogueiras que se avistavam a curta distância, na
encosta ocidental do monte.
Evidentemente, o Rabi não desejava um novo encontro com os seus
patrícios e amigos. Minutos mais tarde, quando nos encontrávamos em
frente do santuário do templo, começámos a descer para o Cédron,
atravessando uma das veredas, que vai de Jerusalém a Betânia. A
escuridão não me permitia distinguir bem as cercanias, mas deduzi que
não me devia encontrar longe do ponto de contacto, onde se encontrava
o módulo. (Talvez fossem mil ou mil e quinhentos pés o que nos separava
de Eliseu.)
O grupo penetrou então numa das plataformas naturais que tão
abundantes eram na encosta Oeste do monte das Oliveiras.
Embora na manhã seguinte pudesse explorar o terreno com maior
comodidade, observei que se tratava de um espaço com cerca de setenta
metros de comprimento por trinta a quarenta de largura,
aproximadamente, cercado, por completo, de um pequeno muro de pedra,
com a escassa altura de um metro. Num dos lados do rectângulo, e muito
próxima da cancela de entrada, distingui uma enorme cuba de pedra de
metro e meio de altura.
Ao fundo, confundidas com a escuridão, perfilavam-se oliveiras de
grossos e torturados troncos.
Jesus e os discípulos dirigiram-se directamente para a direita do
olival. Bem poucos passos, e aproveitando o muro, os homens do
Nazareno tinham montado duas rudimentares tendas ou abrigos. Várias
peças de pano embreado e presas à base de cordas constituíam o
telhado. As barracas, de quatro metros de fundura por três de largura,
estavam escoradas por dois ramos fugosos de conífera, na sua parte
frontal, e por um terceiro, situado no centro da tenda. O telhado
terminava na cerca de pedra. Ali, as lonas tinham sido esticadas e presas
por meio de grandes pedras. Os lados, por sua vez, eram formados por
outras faixas de pano e peles de cabra, pessimamente cosidas entre si.
A entrada, de dois metros de altura, no terreno avermelhado e
poeirento, carecia de protecção. À luz da fogueira que se fizera à frente
dos dois refúgios pude observar que o chão das tendas fora coberto com
mantos e esteiras. Ao fundo, vi alguns volumes, que pensei fossem
utensílios de cozinha. Mas, a escuridão era tão cerrada que preferi adiar
para o dia seguinte um mais exaustivo reconhecimento do terreno e de
quanto fazia parte daquele horto, propriedade do velho Simão, o
Leproso.
O reencontro com os restantes discípulos levantou os ânimos
decaídos dos homens que acompanhavam Jesus. E bem depressa nos
vimos sentados em redor do fogo. A temperatura tinha baixado
consideravelmente e os apóstolos, apertados uns contra os outros,
tinham-se envolvido nos seus pesados roupões.
Ali, entre os reflexos avermelhados dos ramos de nogueira e de
figueira (de que Filipe, o encarregado dos abastecimentos, fizera
abundante provisão) largando fagulhas por baixo de um céu estrelado,
conheci pela primeira vez um rapazito de doze ou treze anos, de cabeça
rapada e olheiras acentuadas, que não pronunciou uma só palavra e seguia
os ensinamentos e gestos do Mestre com um interesse e devoção como
ainda não vira até àquele momento. O seu nome era João Marcos e ia
desempenhar um importante papel nas próximas horas de quinta-feira.
A conversa de Jesus com os apóstolos, enquanto regressávamos ao
acampamento de Getsémani, divulgou-se imediatamente entre os
discípulos e, muito contra a vontade do Rabi, o assunto da Sua partida
não tardou a surgir em metade daqueles homens rudes e lentos de
pensamento. Tomé, usando a palavra, dirigiu-se ao Mestre, perguntando-
Lhe: - Uma vez que vais voltar para terminar o trabalho do reino, qual
deve ser a nossa atitude enquanto estejas fora, nas questões do Pai?
Jesus, sentado do outro lado da fogueira, brincava com um pau, a avivar
o fogo.
Aquelas labaredas altas davam ao Seu rosto uma majestade
estranha. Com uma paciência invejável, o Nazareno olhou Tomé por cima
do fogo, respondendo-lhe: - Nem sequer tu, Tomé, consegues
compreender o que estive a dizer.
Não vos ensinei que a vossa relação com o reino é espiritual e
individual? Que mais tenho de vos dizer? A queda das nações, a ruína dos
impérios, a destruição dos judeus não crentes, o fim de uma época e,
mesmo, o fim do mundo, que têm a ver com alguém que acredita neste
evangelho e conseguiu a sua vida na segurança do reino eterno? Vós, que
conheceis Deus e acreditais no evangelho, haveis recebido já a certeza
da vida eterna. Uma vez que as vossas vidas estão nas mãos do Pai, nada
vos deve preocupar. Os cidadãos dos mundos celestiais, os construtores
do reino, não devem preocupar-se com os sacões temporais ou
perturbar-se com os cataclismos terrestres.
Que vos importa se as nações se afundam, as épocas terminem ou
todas as coisas visíveis caiam, se sabeis que a vossa vida é uma oferenda
do Filho e que está eternamente segura no Pai? Tendo vivido a vida
temporal com fé e tendo entregue os frutos do espírito como prova de
serviço pelos vossos semelhantes, podeis olhar em frente com confiança.
Cada geração de crentes tem de levar para a frente a sua obra,
tendo em vista o regresso possível do Filho do Homem, exactamente
como cada crente particular conduz a sua vida, tendo em vista a
inevitável, e sempre certa, morte natural. Quando vos tiverdes
estabelecido como filhos de Deus, nada mais vos deve preocupar. Mas
não vos enganeis! Esta fé viva exige – cada vez mais – os frutos daquele
divino espírito que foi inspirado pela primeira vez no coração humano. O
terdes aceitado ser filho do reino não vos salvará de conhecer o repúdio
persistente daquelas verdades que têm a ver com os progressivos frutos
espirituais dos filhos encarnados de Deus.
Vós, que haveis estado comigo nos assuntos do Pai na terra, podeis,
até, abandonar agora esse reino. Se virdes que não vos agrada a forma
do serviço da humanidade ao Pai, como indivíduos e como crentes,
escutai-Me enquanto vos conto uma parábola... Sem querer, ao escutar
aquelas últimas frases de Jesus, desviei o meu olhar para Judas
Iscariotes.
O homem que, no seu coração, já desertara, seguia as palavras do
seu Mestre com uma frieza que me deu arrepios. .. Houve um homem –
continuou o Nazareno – que, antes de começar uma longa viagem até
outro país, chamou todos os seus servos de confiança e lhes entregou
todos os bens. Deu a um cinco talentos (1), a outro dois e ao terceiro,
um. A todos confiou os seus bens, consoante as suas diferentes
capacidades. Quando o senhor se foi, puseram-se os seus servos a
trabalhar para retirar lucro da fortuna que lhes confiara.
Imediatamente, o que recebera cinco talentos começou a negociar com
eles e bem depressa realizou um lucro de mais cinco talentos.
De igual modo, o que tinha recebido dois talentos ganhou outros
dois. E assim fizeram os servos, acumulando novos ganhos para o seu
amo, excepto o terceiro. Este foi-se embora e na sua terra fez uma
cova, onde escondeu o dinheiro. Porém, o senhor voltou inesperadamente
e chamou os seus criados. O que recebera cinco talentos dirigiu-se ao
seu senhor e, entregando-lhe dez, disse-lhe: Senhor, deste-me cinco
talentos e dá-me alegria apresentar-te mais cinco. Então, disse-lhe o
senhor: Bem fizeste, bom e fiel servo. De ti farei mordomo de muitos.
Então, o que tinha recebido dois talentos, adiantou-se e disse:
Senhor, entregaste nas minhas mãos dois talentos. Olha, ganhei mais
dois. E seu senhor lhe disse: Bem fizeste, bom e fiel servo. Tu também
foste fiel e agora te colocarei acima dos outros. Por último, chegou para
prestar contas o que só tinha recebido um talento. Senhor disse-lhe,
conhecia-te e dei-me conta de que és um homem astuto porque
esperavas ganhos quando tu, pessoalmente, não tinhas trabalhado.
Portanto, eu temia arriscar o que me tinhas confiado. Guardei o teu
talento a salvo na terra e aqui o tens. Tens agora o que te pertence.
Mas o seu senhor respondeu: És um criado indolente e preguiçoso.
Pelas tuas próprias palavras confessaste que sabias que te ia pedir
contas com lucro razoável, como os teus colegas fizeram. Sabendo isto,
deverias, pelo menos, ter colocado o meu dinheiro nas mãos dos meus
banqueiros para que, à minha volta, eu pudesse receber o meu dinheiro
com juros.
Então, o senhor disse ao chefe dos criados: Tirai o talento a este
servo e dai-o ao que tem 10. A todo o que tem lhe será dado muito mais e
terá abundância. Mas, ao que não tem, até o pouco que tenha lhe será
tirado. Não podeis ficar quietos nos assuntos do reino eterno. Meu Pai
exige que todos os Seus
* Um talento valia seis mil denários. Portanto. Os oito talentos eram
uma considerável fortuna. (N. Do M.)
filhos cresçam em graça e em conhecimento da Verdade. Vós, que
conheceis estas verdades, deveis produzir o incremento dos frutos do
espírito e manifestar uma devoção crescente no generoso serviço aos
vossos companheiros servos. E recordai que o que derdes ao mais
pequeno dos Meus irmãos o tereis feito em Meu serviço.
E assim deveis fazer a obra de Meu Pai, agora e mais tarde.
Continuai até que Eu volte.
A Verdade é a vida. O Espírito da Verdade sempre dirige os filhos
da luz para novos reinos de realidade espiritual e serviço divino. Não vos
é dada a verdade para que a cristalizeis em formas feitas, seguras e
honrosas. Que pensarão as gerações futuras daqueles depositários da
verdade, se os ouvirem dizer: Aqui, Mestre, está a verdade que nos
confiaste há centenas ou milhares de anos. Nada perdemos.
Defendemos fielmente quanto nos deste. Não permitimos
alterações no que nos ensinaste. Aqui está a verdade que nos deste.
Livremente haveis recebido. Portanto, livremente deveis dar a
liberdade do céu. Em verdade, em verdade vos digo que, então, essa
verdade se multiplicará e irradiará nova luz.
Mesmo quando a administrais vós. Já bem avançada a noite, o grupo
levantou-se, distribuindo-se pelas tendas. Jesus, no entanto, continuou
sozinho, em frente da fogueira, mergulhado em pensamentos. Eu
instalei-me perto de uma das velhas oliveiras, envolvendo-me no manto. E
antes que o Nazareno se retirasse para descansar numa das tendas, o
sono acabou por me vencer.
5 DE ABRIL, QUARTA-FEIRA
Pouco antes das madrugadoras andorinhas despertarem o
acampamento com os seus negros e tumultuosos voos, Eliseu alertara-me
já, mediante a ligação auditiva, da proximidade do amanhecer.
O berço regista nove graus centígrados. Ligeira baixa da humidade
relativa... Segundo parece, o vento aumentou.
Prevêem-se algumas rajadas de vinte a quarenta nós, especialmente
durante a tarde... Sorte! Eliseu não se enganava. Aqueles primeiros
momentos do dia pareceram-me especialmente frios. O azul-celeste do
meu manto estava salpicado por uma infinidade de gotinhas de orvalho. O
mesmo acontecia com a erva rala que conseguia despontar junto de
algumas oliveiras. Conforme foi clareando, um distante e misterioso som
de castanholas começou a intrigar-me. Parecia nascer nalgum lado, ao
fundo do campo onde me encontrava.
Levantei-me e, depois de lançar uma olhadela ao acampamento,
verifiquei que tudo estava calmo. Os discípulos dormiam nas tendas.
Outros, embrulhados nos seus roupões, descansavam junto do muro de
pedra ou, como eu, debaixo da primeira fila de oliveiras. Em frente dos
abrigos, na pequena clareira existente à entrada do horto distinguiam-se
as cinzas da fogueira. O Mestre – pensei – devia estar a dormir.
Mas aquele som de castanholas continuava a encher a manhã, cada
vez mais luminosa, quebrando o profundo silêncio de Getsémani. Não
hesitei mais. Agarrei a vara de Moisés e dirigi-me para o interior da
quinta, seguindo pela vedação de pedra. Aquela propriedade de Simão, o
vizinho de Betânia, era dedicada exclusivamente à cultura da oliveira. Do
lugar onde tinham sido montadas as tendas, o terreno ia-se elevando
ligeiramente. Ao chegar ao fundo do horto tinha contado meia centena
de velhas oliveiras, alinhadas quatro a quatro.
Algumas daquelas árvores impressionaram-me pela sua envergadura.
Uma delas, em especial, devia abranger uns oito metros de
circunferência. Dos seus ramos nodosos fluía uma substância pardoavermelhada,
formando regueirinhos brilhantes ao sol nascente, que
avançava já para além do cume do monte das Oliveiras.
Os últimos metros do rectângulo que o horto das Oliveiras formava
– onde ia ter lugar a famosa oração de Jesus – tinham uma elevação mais
acentuada. O misterioso ruído tornava-se mais claro e intenso. Deixei
para trás o olival e, a pouco mais de dez metros, apareceu na minha
frente uma massa pétrea de cerca de cinco metros de altura, com uma
entrada mais larga que alta (tive de me inclinar para entrar), que dava
para o interior de uma gruta natural. Em frente da caverna viam-se
outras formações de calcário branco, que muito tinha sofrido a erosão
da chuva e do vento. A presença da mole rochosa e das pedras – com uns
escassos trinta ou quarenta centímetros de altura – que ocupavam aquele
extremo do horto explicavam por que motivo Simão não pudera
aproveitar a estrema norte para o cultivo do olival. À direita da caverna,
e quase unido à rocha, crescia uma árvore corpulenta.
Ao levantar os olhos, o insólito som de castanholas ficou explicado.
Tratava-se de uma canafístula. Aquele belíssimo exemplar – muito
parecido com uma nogueira – estava a ser agitado incessantemente pelo
vento, e os seus longos frutos, ao chocarem entre si, provocavam o som
penetrante de castanholas. Entre a árvore e o pequeno muro de pedra
encostado naquele ponto à parede oriental da caverna, descobri uma
pequena plantação de gálbano e tragacanto, ambos de reconhecidas
virtudes medicinais.
A gruta, praticamente mergulhada no escuro, tinha uns vinte
metros de profundidade por dez de largura. O tecto, muito baixo nos
primeiros metros da entrada, era mais alto no interior. As paredes
tinham sido caiadas. Na parede oriental apareciam dois prolongamentos
ou grutas mais pequenas. Numa delas havia uma prensa de madeira,
destinada, sem dúvida, à trituração da azeitona, a julgar pelo cheiro e
pelos restos de azeite que, meio seco, ainda impregnavam o interior da
rudimentar máquina. Uma comprida viga, que fazia as vezes de braço da
prensa, encravava-se numa pequena cavidade situada a pouco mais de um
metro, na parede meridional da gruta.
Ao fundo, no lado norte, em cima de uma esteira, estavam vários
sacos. Dois continham trigo e os três restantes figos secos, legumes de
diferentes tipos, cebolas, alhos, etc. (Soube depois que se tratava dos
abastecimentos que Filipe comprara na manhã do dia anterior, e
constituía a dieta básica dos homens do acampamento.) Inspeccionei
também a parte exterior da gruta, verificando como, pelo seu lado norte
– no extremo oposto ao da entrada -, fora aberto um pequeno canal que
descia até uma espécie de pia de depuração. Simão escavara o cimo da
enorme rocha, aproveitando assim as águas da chuva, que desceriam pela
conduta até à pia.
Dali, uma vez filtrada, a água era acumulada numa concavidade
inferior, feita também na rocha. Uma vez satisfeita a minha curiosidade,
regressei ao acampamento, indo desta vez pelo muro ocidental. Ao
chegar à entrada do horto, algumas das mulheres do grupo de Jesus
azafamavam-se já em volta de uma pequena fogueira. Enquanto duas
moíam o trigo, preparando a farinha, outras traziam água, enchendo
vários alguidares.
À direita da cancela e unida ao muro, encontrava-se a grande cuba
de pedra que eu tinha visto na noite anterior. Tratava-se de um velho
lagar ou moinho de azeite de, aproximadamente, quatro metros de
diâmetro, perfeitamente circular e com um parapeito de cerca de um
metro de altura. Estava vazia. Um pesado tronco, totalmente enegrecido
e cravado, numa das extremidades, num nicho aberto no muro de pedra,
apoiava-se no centro geométrico da cuba. Aquela viga fora munida de
grandes lajes circulares e lisas, presas à segunda extremidade por meio
de grossas sogas, que as atravessavam por orifícios centrais.
Pelo que pude deduzir, quando o lagar se enchia de azeitonas, aquele
enorme peso da ponta do madeiro devia actuar como prensa, esmagando
o fruto. No fundo da cuba amontoavam-se também grandes cabazes de
esparto, usados, possivelmente, no transporte da azeitona.
Estava ainda a inspeccionar a cuba quando, pelas sete, vi aparecer
na clareira Jesus de Nazaré. Era o primeiro a sair da tenda destinada
aos homens. Fiquei quieto. O Gigante, que se desembaraçara do manto,
estava descalço. Deu uns passos até à fogueira e, depois de saudar as
mulheres, aproximou as palmas das compridas mãos do fogo, procurando
aquecê-las.
Depois, erguendo o rosto para o azul do céu, fechou os olhos,
fazendo uma profunda inspiração. A sua pele bronzeada iluminou-se com
o afago daqueles fracos raios solares. Uma das mulheres arrancou o
Mestre daqueles agradáveis momentos, indicando-lhe que tinha pronto o
alguidar de barro com a água para as suas lavagens. Jesus correspondeu
à discípula com um sorriso e, com toda a naturalidade, arrancou a sua
túnica branca pela larga gola, despindo-a pela cabeça. Por baixo, o Rabi
cobria as nádegas e o baixo ventre com uma espécie de tanga, também
branca.
A tanga consistia numa simples faixa de pano – possivelmente de
algodão – de uns trinta centímetros de largura e cosida numa das pontas
a um cordão que era atado em volta da cintura. Esta parte (a que estava
cosida ao delgado cinto), tapando as nádegas, passava depois entre as
pernas para terminar em dois cordões mais curtos, cada um deles preso
a uma ponta do pano. Esta última franja era atada ao cordão da cintura,
tapando, assim, os órgãos genitais e parte do ventre de Jesus.
Uma vez nu, o Galileu ajoelhou-se junto da ampla vasilha.
Meteu as mãos na água e começou a banhar o rosto, o peito, axilas e
braços. Em questão de segundos, aquele corpo musculoso – sem um grama
de gordura – ficou coberto pela água.
A seguir, o Gigante lançou mão de uma pastilha quadrangular cor de
osso e começou a esfregar-se com energia. Não tardou a aparecer uma
fraca espuma branca.
Quando o Mestre considerou que estava suficientemente
ensaboado, de novo se inclinou para o alguidar, a fim de se enxaguar.
Minutos depois, o Galileu levantava-se e a mesma mulher que lhe
preparara a água entregava-lhe um lenço muito semelhante ao que eu
vira em casa de Lázaro e com que Marta me enxugara as mãos e os pés.
Jesus pegou naquela espécie de toalha e foi secando o corpo. Ao
terminar, lançou a cabeça para trás sacudindo o cabelo. Mas, antes de
vestir novamente a túnica, o Rabi estendeu as mãos.
E a mulher verteu-lhe nas palmas umas gotas de um líquido oleoso.
Tal como era hábito naquela época, o Nazareno aplicou a essência nas
axilas, pescoço, torso e cabelo, vestindo-se a seguir. Por fim,
arregaçando a túnica, entrou no alguidar para lavar os pés.
Enquanto Jesus calçava as sandálias com tiras de couro, Filipe,
André e outros discípulos começaram a sair da tenda.
Naquele instante, vi aparecer no acampamento o pequeno João
Marcos, trazendo uma cesta. Sem dizer palavra, entregou-a a uma das
mulheres, sentando-se depois junto da fogueira. Os seus olhos não
perderam Jesus de vista. Alguns dos apóstolos imitaram o Mestre e,
depois das abluções, ocuparam também um lugar em redor das chamas,
dispostas a quebrar o jejum.
As mulheres começaram a distribuir leite quente. Uma delas retirou
o pano que tapava o cesto de João Marcos e, com vivos sinais de alegria,
mostrou aos discípulos dois pães enormes.
Filipe tomou-os a seu cargo e, depois de os cortar às fatias,
repartiu-as. Eu aproveitei aqueles momentos para me aproximar do
alguidar onde se tinha lavado o Senhor e os seus homens e examinei a
pastilha quadrangular de sabão. Ao cheirar, notei de imediato um
agradabilíssimo perfume a alecrim. Uma das mulheres, ao ver-me tão
absorto no sabão, encaminhou-se até onde eu estava e, soltando uma
gargalhada, avisou-me: - Jasão, isso não se come...
A boa mulher não viu inconveniente em me dar todos os pormenores
quanto à maneira de confeccionar aquele sabão.
Quando não tinham à mão sebo, usavam tutano de vaca. Uma vez
derretido em água quente misturavam-no com azeite, juntando-lhe
essência de alecrim – como neste caso – ou diferentes perfumes, tais
como tomilho, flor de laranjeira ou sumo de limões. Depois, tudo era
questão de verter o líquido em rudimentares moldes de madeira ou de
ferro e esperar.
Quando o grupo tinha tempo e dinheiro, as mulheres preferiam
perfumar o sabão com láudano. Alguns pastores dedicavam-se à sua
venda. Pelo que parecia, conseguiam obtê-lo com bastante facilidade:
bastava que tivessem paciência para pentear as barbas das cabras que
pastavam nos estevais. A resina em questão impregnava as mechas de
pêlo dos animais e os pastores apenas tinham de a retirar.
Atento às explicações da mulher, não me apercebi de que alguém se
encontrava atrás de mim. Ao voltar-me, tive nova surpresa. Era Jesus.
Aquele líquido oleoso. Segundo me explicou uma das discípulas. Era
fabricado em Jerusalém, partindo, precisamente. Daquela substância
pardo-avermelhada que eu tinha visto exudar das oliveiras. O Pai Natal
confirmaria que a referida matéria – denominada goma-laca – é formada
por uma substância branca e cristalina que é conhecida pelo nome de
Olivila,. (N. Do M.)
Trazia uma fumegante malga de leite na mão esquerda e uma fatia
de pão na direita. Ao ver a minha cara de espanto, sorriu maliciosamente,
fazendo-me uma nova piscadela de olho e convidando-me a aceitar a
refeição. Ao receber o pão e o recipiente, os meus dedos roçaram pela
Sua pele e notei, alarmado, como o meu coração multiplicava as
pulsações. Como era difícil conservar a objectividade perante Aquele
extraordinário exemplar humano...!
Não o podia entender muito bem. Porque estavam os discípulos de
Jesus de Nazaré tão silenciosos? Aquele pequeno-almoço foi tenso.
Ninguém parecia disposto a abrir a boca. Certamente, os acontecimentos
dos últimos dias e, principalmente, o fantasma do decreto do Sinédrio
contra a pessoa do Mestre, pairavam sobre os corações daqueles
homens.
No entanto, era impressionante que fosse o Nazareno o menos
atormentado do grupo. As espadas continuavam no cinto de alguns dos
doze e naquela noite, como na anterior, se estabeleceria o rotineiro
serviço de guarda às portas do acampamento. Judas Iscariotes foi o
último a sair da tenda. Pelos olhos avermelhados e pelo rosto macilento
tive a impressão de que não dormira grande coisa. Recebeu a sua ração e,
como os companheiros, permaneceu sentado, como que distraído. O
Mestre, por fim, rompeu o silêncio, dizendo:
- Hoje, quero que descanseis. Gastai este tempo a meditar sobre
tudo o que aconteceu desde que viemos a Jerusalém.
Reflecti sobre o que está prestes a chegar...
A decisão de Jesus surpreendeu um pouco os que ali estavam.
Todos acreditavam que o Rabi entraria novamente no Templo para
se dirigir ao povo. No entanto, o Galileu – que se pusera de pé –
confirmou a decisão, dando a saber ao chefe do grupo que pensava
retirar-se durante todo o dia e que, a pretexto algum, deveriam
transpor as portas da Cidade Santa. André fez um movimento afirmativo
de cabeça e Jesus retirou-se para o interior da tenda. Aquilo –
confesso-o – desorientou-me tanto ou mais que aos discípulos, embora
por razões bem distintas.
Que pretendia o Nazareno? Onde pensava ir? A minha missão era
seguir os passos de Jesus de Nazaré, onde fosse e estivesse, e sempre e
quando a minha presença não motivasse uma alteração dos factos
históricos. Por outro lado, Cavalo de Tróia tinha-me confiado a difícil e
inadiável tarefa de contactar o procurador romano. Era vital que Pôncio
Pilatos soubesse de mim: que me conhecesse pessoalmente. Isso
facilitaria a minha entrada na Torre Antónia na manhã da próxima sextafeira.
Além disso, aquele encontro – nas mãos de José, o de Arimateia –
estava marcado inicialmente para aquela mesma manhã de quarta-feira.
Que devia fazer? Para cúmulo, um pensamento começou a fustigar-me:
Que maquinava o cérebro de Judas?
Alguma coisa na profundidade do meu ser me dizia que aquela
quarta-feira seria decisiva nos planos e decisões do traidor.
E eu tinha de estar ao corrente. Judas, como já disse noutras
alturas, atraía-me especialmente. No fundo, era o único que se revoltava
contra tudo aquilo. Encontrava-me mergulhado nestas graves dúvidas
quando Jesus se apresentou à porta da tenda. Tinha pegado no manto e
atado em volta da cabeça um lenço grande ou sudário. Aquilo significava
que pretendia caminhar, e muito. Naquele momento, David Zebedeu – um
dos discípulos mais corpulentos e rápidos de pensamento, e que
desempenharia um papel extraordinariamente prático e eficaz diante
das terríveis jornadas de sexta-feira, sábado e domimgo – saiu ao
caminho do Gigante, expondo-lhe o seguinte: - Bem sabes, Mestre que os
fariseus e dirigentes do Templo procuram destruir-te. Apesar disso,
preparas-te para ir sozinho às colinas. É uma loucura. Portanto, mandarei
contigo três homens armados, para que te protejam.
O Galileu olhou primeiro para David Zebedeu e, a seguir, os três
corpulentos servos do impulsivo discípulo, que esperavam a alguma
distância. E num tom que não admitia réplica ou discussão alguma,
respondeu de forma a que todos pudéssemos ouvi-lo:
- Tens razão, David. Mas também te enganas nalguma coisa: o Filho
do Homem não precisa que ninguém O defenda. Nenhum homem Me
porá as mãos em cima até àquela hora em que tenha de dar a Minha
vida, tal como Meu Pai deseja. Estes homens não vão acompanhar-Me.
Quero ir e estar só para que possa comunicar com Meu Pai.
Ao escutar Jesus, David Zebedeu e os seus guardas retiraram-se e
eu, sentindo que algo se quebrava dentro de mim, compreendi também
que não podia seguir o Protagonista da minha exploração. Por alguma
razão que não quisera explicar, o Mestre tinha de permanecer sozinho.
Mas, quando dava já por perdida aquela parte da minha missão,
aconteceu uma coisa que me fez voltar a esperança e que, por sorte, me
permitiria reconstruir parte do que Jesus fez naquela quarta-feira.
Quando o Rabi se dirigia já para a entrada do horto, disposto a
encaminhar-se sabe-se lá em que direcção, o rapaz que tinha trazido o
cesto com os pães apareceu entre os discípulos e correu atrás do
Mestre. Ao vê-lo, o Rabi parou.
João Marcos tinha enchido aquele mesmo cesto com água e comida e
lembrou-Lhe que, se pensava passar o dia no monte, levasse ao menos
umas provisões. Jesus sorriu-lhe e baixou-se, em jeito de quem fosse
pegar no cesto. Mas a criança antecipou-se ao Galileu, agarrou a cesta
com todas as suas forças, ao mesmo tempo que insinuava com timidez:
- Mas, Senhor, e se te esqueces da cesta quando fores rezar...? Eu
irei contigo, e levarei a comida. Assim, estarás mais livre para a tua
devoção. Antes que Jesus pudesse replicar, o rapazito tentou
tranquilizá-lo: - Estarei calado... Não farei perguntas... Ficarei sentado
junto da cesta quando Te afastares para orar..
Os discípulos que presenciavam a cena ficaram atónitos com a
audácia de João.
E o Mestre voltou a sorrir. Afagou a cabeça da criança e disse-lhe: -
Já que o desejas com todo o teu coração, não te será negado. Iremos
sozinhos e faremos uma boa viagem. Podes perguntar-me quanto saia da
tua alma. Vamos confortar-nos e consolar-nos juntos. Podes levar o
cesto. Quando te sentires cansado, Eu te ajudarei. Segue-me...
E ambos desapareceram, encosta acima.
Ninguém fez o menor comentário. Os rostos dos apóstolos
reflectiam consternação total. Era doloroso que uma simples criança lhes
tivesse ganho. Suponho que quantos ali estavam presentes – exceptuando
o Iscariotes – ardiam em desejo de acompanhar o seu Mestre. No
entanto, nenhum fora capaz de abrir o coração e falar a Jesus com a
sinceridade de João Marcos. E da surpresa foram passando a um mal
dissimulado desgosto. Poucos minutos depois, alguns dos íntimos estavam
já a travar uma azeda discussão sobre a conveniência de o Rabi se pôr a
caminhar pelos montes da Judeia sem escolta e com um rapazinho dos
recados por única companhia.
Aquela discussão começava a fascinar-me. Todos contribuíam com
argumentos mais ou menos válidos mas nenhum parecia disposto a
reconhecer a verdadeira causa por que tinham ficados sós. A discussão
estava a aquecer pouco a pouco quando, de repente, vi Judas sair da
tenda. Sem fazer ruído, encaminhou-se para a entrada do horto,
afastando-se em direcção ao barranco do Cédron. Não hesitei. Depois de
lembrar a André o meu encontro com José de Arimateia, anunciando-lhe
que regressaria assim que pudesse, passei o muro de pedra, procurando
não perder de vista o Iscariotes. Este tinha descido por uma das
estreitas veredas que iam dar à pontezinha sobre o leito seco do Cédron
e que unia o adro oriental do Templo ao monte das Oliveiras. Com passo
resoluto, Judas atravessou o local onde eu tinha assistido à prova das
águas amargas, parando debaixo do concorrido arco da porta Oriental do
Templo. Confundido entre os numerosos peregrinos que iam e
vinham,,pude ver como o traidor beijava outro hebreu. E ambos entraram
no átrio dos Gentios.
Tomando todo o género de precauções, também eu entrei no
Templo. Cheguei mesmo a tempo de verificar como Judas e aquele que o
acompanhava subiam as escadarias do santuário, desaparecendo pela
entrada do Pórtico Coríntio.
Amaldiçoei a minha má estrela. Aquele, justamente, era um dos
poucos lugares de Jerusalém onde não podia entrar um gentio. O
santuário era sagrado. Ali não havia estratagema que valesse. E muito
menos com o meu aspecto de mercador estrangeiro...
Que podia fazer para seguir os passos de Judas?
Deixei-me cair nas escadarias onde habitualmente se sentava o
Mestre, e tentava encontrar uma maneira para descobrir a razão que
tinha levado o apóstolo ao interior do santuário, quando um dos saduceus,
amigo de José de Arimateia, e que participara no almoço oferecido por
aquele a Jesus na manhã de terça-feira, veio dar solução aos meus
problemas. O homem reconheceu-me, interessando-se pela minha saúde
e perguntando-me a que razões obedecia o meu ar tão preocupado.
Depois de medir as possíveis consequências da ideia que acabava de
me surgir, decidi-me a falar-lhe. Depois de lhe pedir que mantivesse
quanto ia contar-lhe no mais rigoroso segredo – ao qual o amigo de José
de Arimateia acedeu, num tom que me parecia sincero -, expliquei-lhe
que tinha fundamentadas suspeitas sobre a falta de lealdade de um dos
discípulos
do Rabi da Galileia. Acrescentei que acabava de ver Judas entrar no
santuário e que temia pela segurança de Jesus. O antigo membro do
Sinédrio (aquele saduceu era um dos dezanove que tinham apresentado a
demissão a Caifás) procurou tranquilizar-me, assegurando-me que aquilo
não era novo. Somos muitos, continuou os que sabemos que Judas, o
Iscariotes, não partilha a maneira de ser e de actuar do Mestre.
Apesar das suas palavras, simulei não ficar satisfeito e supliquei-lhe
que entrasse no Templo e procurasse informar-se sobre os planos de
Judas. Mas, antes de responder ao meu pedido, o sacerdote – que
partilhava em segredo a doutrina de Jesus – interrogou-me, por sua vez,
procurando uma explicação para a minha estranha conduta.
- Eu também acredito no Mestre – menti-lhe – e não desejo que seja
destruído.
As minhas palavras devem ter soado com tal firmeza que o saduceu
sorriu e, dando-me uma palmadinha nas costas, acedeu aos meus desejos.
Antes de nos separarmos, anunciei-lhe naquela mesma manhã, que tinha
de me encontrar, com José de Arimateia e que, se estivesse de acordo,
poderíamos voltar a ver-nos antes do pôr do Sol, na casa do nosso amigo
comum.
- Acima de tudo – insisti com veemência -, e por elementares razões
de segurança, isto tem de ficar entre nós. O meu novo amigo concordou
e eu, um pouco mais descansado, recomecei o meu caminho para a Cidade
Baixa. Mas, enquanto me aproximava da casa de José, assaltou-me uma
dúvida incómoda: tinha realmente mentido ao saduceu ao afirmar que
também eu acreditava em Jesus de Nazaré?
José de Arimateia recebeu-me com alguma inquietação. Os
incidentes no acampamento de Getsémani e as minhas investigações para
conhecer a intenção de Judas atrasaram um pouco a minha chegada a
casa do ancião. Sem perda de tempo, o magro amigo de Jesus envolveuse
num luxuoso manto de lã, tingido em vermelho-fogo, levando uma
ânfora de tamanho médio (aproximadamente um oitavo de efa, ou 5,6
litros).
A entrevista com o procurador romano fora marcada para a hora
quinta (por volta das onze da manhã) e, tal como eu, José não gostava de
esperar nem de fazer esperar. Ao sair da mansão pedi ao venerável
membro do Sinédrio que me permitisse levar aquele jarro. José
consentiu com satisfação e, embora tivesse curiosidade em saber o seu
conteúdo, o mutismo do meu acompanhante inclinou-me a não formular
pergunta alguma sobre o assunto.
O caminho até à Fortaleza Antónia, situada a noroeste da cidade,
era relativamente longo. Embora o quartel-general romano dispusesse de
uma entrada pela esquina mais ocidental do Templo (como julgo ter já
citado na devida altura, esta fortificação encontrava-se encostada ao
imenso rectângulo que o Santuário e o seu átrio constituíam), José de
Arimateia – penso que por simples prudência – evitou a todo o instante o
recinto do Templo. Deixámos para trás o intrincado labirinto de vielas da
Cidade Baixa, atravessando depois a breve depressão do vale do
Tirapéon, separação natural dos dois grandes e bem diferenciados
bairros de Jerusalém: o Baixo e o Alto.
O grande teatro apareceu à nossa esquerda e, pouco depois,
desembocámos na rua principal daquela zona alta de Jerusalém.
Tal como a que vira na cidade baixa, esta calçada – que ia do palácio
de Herodes, no extremo mais ocidental da urbe, até à parede Oeste do
Templo, nas proximidades da esplanada de Sixto-adornada com grossas
colunas (1). Nos seus pórticos alinhavam-se os bazares dos vendedores
considerados impuros: desde fabricantes de todo o tipo de objectos
artísticos (oleiros, ferreiros, perfumistas, etc.) até alfaiates,
comerciantes de lã, etc. A gritaria, confusão e sinfonia de cheiros eram
idênticos ao do bairro baixo ou Akra.
José apressou o passo ao passar por baixo da Porta do Peixe, na
intersecção da segunda muralha setentrional com a depressão ou vale do
Tiropéon. Nunca soube se aquela pressa do ancião era devida à presença,
junto à citada porta, de um grupo de comerciantes que vendiam todo o
género de peixe ou da proximidade da Fortaleza Antónia.
O caso é que, por fim, ambos nos encontrámos diante do muro de
pedra de metro e meio de altura que cercava integralmente o
impressionante castelo, sede de Pôncio Pilatos enquanto durassem as
festas da Páscoa.
Ainda que eu tivesse tido a oportunidade de contemplar a uma certa
distância os legionários enviados, juntamente da Torre Antónia, para
estabelecer a ordem no Átrio dos Gentios, quando Jesus de Nazaré
espantou os bois, a presença das sentinelas romanas às portas daquele
muro impressionou-me.
José dirigiu-se em aramaico a uma delas. Mas o soldado não
compreendia a língua do israelita. Um tanto contrariado, o de Arimateia
falou-lhe então em grego. No entanto, o legionário continuou sem
perceber. Dada a dificuldade da situação, o jovem romano – suponho que
não teria mais de vinte ou vinte e cinco anos – fez-nos um sinal para que
esperássemos e, dando meia volta, encaminhou-se para o interior. A
segunda sentinela permaneceu muda e impassível, impedindo a passagem
com o seu comprido pilum ou lança. Por baixo do brilhante capacete
esverdeado, de ferro e de bronze, os olhos do legionário não nos
perdiam de vista.
O soldado vestia a habitual farda de campanha: uma cota
entrançada por malhas de ferro, vestida como se fosse uma túnica curta
(até metade da coxa) e que protegia a totalidade do tronco, ventre e
começo das extremidades inferiores.
Esta couraça, de grande flexibilidade e solidez, encontrava-se em
contacto directo com um gibão de couro de idênticas dimensões e forma
da cota de malha. Por último, o pesado vestuário cobria uma túnica
vermelha, munida de mangas curtas e sobressaindo dez a quinze
centímetros por baixo da armadura, mesmo acima dos joelhos.
Durante o meu treino para esta missão, Cavalo de Tróia tinha-me
preparado uma réplica da planta de Madaba: um mosaico do século vI da
nossa Era, e que ainda se conserva na igreja grega do mesmo nome. No
referido mapa aparecem estas duas ruas principais e munidas de
colunatas, autênticas colunas vertebrais” dos dois bairros ou zonas de
Jerusalém. (N. Do M.)
Umas sandálias de grossas solas de couro protegiam os pés com um
complicado sistema de tiras – também de couro -, perfeitamente cosidas
a todo o perímetro do calçado. (Numa posterior oportunidade, ao
examinar uma daquelas sandálias, contei até cinquenta tiras de pele de
vaca curtida.) O soldado apertava estes cordões pela parte superior do
pé e à altura das canelas. Mas foi depois, já no pátio da fortaleza, que
teria ocasião de descobrir uma das temidas características desta peça.
Completava a farda um cinturão de couro, de uns cinco centímetros
de largura, revestido com uma infinidade de cabeças de prego. Do centro
caíam oito franjas, igualmente de couro, cobertas por pequenos círculos
metálicos. Este adorno tinha, principalmente, a missão de proteger o
baixo ventre do legionário. Da sua ilharga direita pendia a famosa
espada, tipo Hispanicus, de cinquenta centímetros, metida numa bainha
de madeira, com protectores de bronze.
Na outra ilharga, a semispatha ou punhal, de comprimento
aproximado a metade do gladius Hispanicus. Observei os escudos das
duas sentinelas, encostados a uma das esquinas da porta da muralha.
Eram rectangulares e tinham, aproximadamente, oitenta centímetros de
altura. Apresentavam uma ligeira convexidade e, no centro, o ungon, ou
protuberância circular de metal, decorado com uma águia amarela, que
sobressaía no fundo vermelho do escudo.
Eram ornamentados com uma orla metálica e primorosamente
pintados na sua zona central com quatro quadrados concêntricos (do
menor para o maior: preto, amarelo, preto e amarelo). Os cantos do
maior tinham sido substituídos por suásticas ou cruzes gamadas, também
de preto. As empunhaduras eram formadas por duas correias: uma para
o braço e outra para a mão.
Mas o que, sem dúvida, me fascinou daquele equipamento de
combate foi a lança. Aquele pilum devia medir pouco mais de dois metros,
dos quais pelo menos metade correspondia ao ferro e o resto ao fuste
de madeira muito leve, e diâmetro à volta de três centímetros. A haste
fora embutida no ferro.
Na zona média da arma reparei num reforço cilíndrico, muito curto,
que servia de punho e, possivelmente, para regular o centro de gravidade
do dardo. Conforme fui conhecendo a vida e a organização daquele
exército compreendi como e por que chegara tão longe nas suas
conquistas... O legionário notou-me o olhar – absorto no aço reluzente da
ponta de flecha em que a sua lança terminava – e, com um sorriso
malicioso, inclinou o pilum até a extremidade afiada me ficar a um palmo
do peito.
José assustou-se. Por um instante, procurei imaginar o que
aconteceria se o soldado tivesse tentado cravar-me a arma.
Provavelmente, o susto da sentinela, ao ver que o seu pilum se
quebrava ou que não penetrava no meu torso, teria sido maior que o meu.
A pele de serpente que me cobria o corpo estava perfeitamente
preparada para resistir a um embate deste tipo.
Longe de me atirar para trás ou de mostrar inquietação,
correspondi ao sorriso do legionário com outro mais aberto, dando-lhe a
entender que sabia tratar-se de um gracejo.
Aquele gesto, que o soldado interpretou como um sinal de coragem,
e me valeu o seu respeito, ia ser – sem que eu o premeditasse – de
extrema utilidade durante a prisão do Galileu, na noite do dia seguinte.
Naquele momento, a sentinela que entrara na fortaleza reclamou a
nossa presença do portão da torre. José e eu atravessámos os dez ou
quinze metros de terreno baldio que separava o muro ou parapeito
exterior, de um fundo fosso de cinquenta côvados (22,50 metros),
escavado quando Herodes mandou reedificar uma antiga fortaleza dos
Macabeus e à qual deu o título de Antónia, em honra de Marco António.
Este fosso, seco, naquela altura, rodeava a residência do procurador
romano em todo o seu perímetro, com excepção do lado sul, que, como já
expliquei, se encontrava encostado à muralha norte do Templo. Os
alicerces eram um gigantesco penhasco, alisado inteiramente no cimo e
nos lados. Herodes, na previsão de possíveis ataques, cobrira-os com
enormes placas de ferro, de modo a que o acesso por ali fosse
impraticável. E por cima desta sólida base levantava-se um magnífico
baluarte, construído com grandes pedras rectangulares. Ali teriam lugar
os sucessivos interrogatórios de Pilatos a Jesus, bem como o selvático
castigo da flagelação.
Ao passar a ponte levadiça – de cinco metros de comprimento,
construída à base de grossos troncos sobre os quais se colocara uma
espessa cobertura de metal -, não pude resistir à tentação de levantar
os olhos. A pétrea fachada cinzento-azulada, de quarenta côvados de
altura, estava dividida em duas secções simétricas e perfeitamente
ameadas.
Cada um destes blocos, de cinquenta metros de comprimento,
apresentava três filas de janelas (as correspondentes ao primeiro andar,
em forma de frestas). E no centro, entre as duas alas que formavam a
fachada, uma espécie de terraço, ou mirante, de vinte metros, com os
prismas das ameias um pouco mais pequenos que os das zonas superiores.
As quatro esquinas do castelo tinham sido reforçadas por outras tantas
torres, igualmente fortificadas. Eu conhecia, por Flávio Josefo, as suas
dimensões (1), mas, ao contemplá-las a tão curta distância, pareceramme
muito mais esbeltas.
Na boca do túnel, que era a entrada principal da fortaleza,
esperava-nos a sentinela que tínhamos encontrado junto do muro
exterior e um oficial.
Ao descobrir na sua mão direita um bastão de madeira de vide,
compreendi que me encontrava perante um centurião. A sua estatura era
um pouco superior à média dos legionários, mas talvez fosse devido ao
penacho de penas vermelhas que lhe adornava o capacete.
Depois de o saudar, José identificou-se ao comandante de centúria,
dizendo-lhe que era amigo do procurador e que fora marcada uma
audiência para aquela manhã. O centurião – também em grego –
correspondeu à saudação e pediu-me que me identificasse. Depois,
dirigindo-se a um dos soldados de guarda à porta de uma quadra, situada
à direita do túnel, pediu-lhe qualquer coisa. O legionário apressou-se a
entrar no que parecia ser a casa da guarda e regressou de imediato
* Na sua obra Guerra dos Judeus (Livro Sexto), Josefo assegura
que três das torres tinham cinquenta côvados (22,50 metros) e a quarta
– a que se encontrava encostada ao Templo – setenta côvados (31,50
metros). Estes dados aproximam-se bastante das nossas medições
feitas do módulo. (N. Do M.)
com uma tabuinha encerada. Naquela espécie de ardósia tinham sido
escritos alguns nomes. Do canto superior esquerdo da muldura da
tabuinha estava pendente uma pequena corda, muito gasta, a que estava
atado um prego de bronze de uns oito centímetros de comprimento e
que, a julgar pelos riscos na superfície encerada, fazia as vezes de buril.
O centurião leu e devolveu a tabuinha ao legionário, que desapareceu
novamente no interior da quadra. Entretanto, alguns dos soldados que
formava a excubiae, ou guarda de dia, naquele sector da fortaleza – e
que descansavam num dos bancos de madeira dentro de casa – tinham
assomado à porta, observando-nos com curiosidade.
- Que há dentro desta jarra? - perguntou, de repente, o centurião.
Graças aos céus, José antecipou-se:
- É vinho das adegas subterrâneas de Gabaon... Sei que o procurador
o aprecia... - Terão de a abrir – respondeu o oficial, ao mesmo tempo que
fazia sinal a um dos soldados que contemplava a cena.
Lancei um rápido olhar a José e este, sem se perturbar, pegou na
ânfora retirando a tampa de barro que a tapava. O legionário apoderouse
do recipiente, enchendo uma caneca de latão. Depois de cheirar o
conteúdo, levou o rosado líquido aos lábios, bebendo.
O centurião deu por boa a verificação e pediu-nos que
entregássemos as armas. O de Arimateia explicou-lhe que éramos
homens de paz e que não usávamos espada. Mas o oficial, sem prestar
muita atenção às palavras do velho, ordenou a duas das sentinelas que
passassem busca ao nosso vestuário. Depois de nos apalparem costas,
cintura, peito e braços, os legionários moveram negativamente as
cabeças. Naquele instante, o consciencioso oficial olhou para a minha
vara. - Terás de a deixar ao cuidado da guarda – disse-me.
E, antes que eu pudesse reagir, um dos romanos arrebatou-me a
vara de Moisés. O coração deu-me um salto no peito. Não estava à
espera daquilo. E ainda que o cilindro de madeira estivesse preparado
para suportar os mais violentos movimentos e encontrões, só o
pensamento de que pudesse danificar-se ou extraviar-se lançou-me numa
inquietação profunda. Além disso, aquilo significava que não ia poder
filmar a entrevista com Pôncio Pilatos. Por outro lado, saltava aos olhos
que o centurião não estava disposto a deixar-me passar com o cajado.
Se realmente queria levar em frente o projecto do Cavalo de Tróia
tinha de me resignar e confiar na fortuna. Fiquei em silêncio, procurando
não conceder demasiada importância à minha vara. O contrário teria
despertado receios e suspeitas nada desejáveis naquela oportunidade,
que não voltaria a repetir-se. O centurião fez-nos um sinal com a mão,
indicando-nos que o acompanhássemos. Saímos do túnel abobadado e
encontrámo-nos num espaçoso pátio quadrangular – a céu aberto – de uns
cinquenta metros de lado, pavimentado com lajes de calcário duro, cada
uma delas com um metro quadrado.
Uma infinidade de portas, coroadas por dintéis de madeira –
formando arcos semicirculares – alinhavam-se dos lados, por baixo de
outros tantos pórticos, sustentados por colunatas.
Aquela fortaleza, como pude verificar, à medida que nela penetrava,
fora edificada com todo o cuidado.
Por aquele grande pátio, onde desembocavam as casernas, as
cavalariças e alguns armazéns, iam e vinham numerosos legionários.
Muitos – livres de serviço – vestiam apenas a curta túnica vermelha de
lã, cingida por um cinturão muito leve. O centurião que nos guiava
atravessou o pátio, rodeando uma fonte circular, em cujo centro se
erguia uma estátua de pedra da deusa Roma, de túnica com pregas
múltiplas, que lhe deixava a descoberto o seio direito. Na dextra
empunhava uma lança e na palma da mão esquerda tinha uma esfera de
onde jorrava um jacto de água. Esta vertia para o tanque circular que
constituía a parte inferior da fonte.
Vários soldados da cavalaria romana lavavam e escovavam meiadúzia
de cavalos. Diferindo dos infantes, os cavaleiros vestiam jaqueta
cor de amora, de manga larga, e calças vermelhas, muito justas, que se
prolongavam até à canela.
Contrariamente ao que acontece, por exemplo, com os nossos
exércitos ocidentais, nenhum daqueles soldados se perfilou ou fez a
continência à passagem do centurião. Este, sempre, com o seu tuitis, ou
vara de sarmento, na mão direita, e anepanhando a folgada toga ou capa
púrpura com o braço esquerdo, prosseguia o seu caminho para o fundo do
pátio.
À direita e à esquerda, e especialmente por baixo dos pórticos,
outros soldados tratavam da limpeza das armas ou das sandálias. A um
canto, grande grupo de soldados formava círculo em volta de qualquer
coisa que se desenrolava no chão.
Apesar da minha curiosidade, não pude aproximar-me. O oficial, que
não voltou a cabeça nem uma vez, continuava com boa passada para as
escadarias, que já se avistavam na zona oriental do pátio.
Antes de abandonar aquele recinto, chamou-me a atenção outra
cena. À nossa direita, e imóvel no lajedo, um dos legionários carregava
em cima da nuca e dos ombros pesado saco. A carga obrigava o infante a
manter o tronco e a cabeça ligeiramente inclinados para o chão. Junto
dele, outro legionário – com o seu vestuário e armas regulamentaresnão
perdia de vista o companheiro. No meu regresso da entrevista com o
procurador romano ia ter completa explicação de tudo aquilo...
Bastou-me pisar a polida escadaria de mármore branco, que partia
do fundo do pátio, para compreender que entrávamos na parte nobre do
edifício. Aquelas escadas – de pequena inclinação – levaram-nos a uma
espécie de vestíbulo rectangular, todo ele revestido de finíssimos
mármores, que – a julgar pelos subtis veios cinzentos e azulados – deviam
ter sido importados por Herodes, o Grande, do Chipre e de Carrara.
Em frente da escadaria que dava para aquele primeiro andar da
Torre Antónia abria-se uma dupla porta de quase cinco metros de
largura, primorosamente trabalhada com palmeiras, flores e querubins
em talha. Ali se via, mais uma vez, a mão dos artesãos e construtores
fenícios, que, possivelmente, se encarregaram da construção da
fortaleza.
De ambos os lados da porta montavam guarda dois infantes,
cruzando os piluns em aspa. O centurião dirigiu-se a um deles,
informando-o – suponho – que estávamos na lista das audiências de
Pôncio Pilatos.
Segundos depois, dava meia volta e, levantando o braço em sinal de
saudação, desceu a escadaria e desapareceu. Era evidente que tínhamos
de esperar.
José dirigiu-se então a um dos lados do vestíbulo, sentando-se numa
das cadeiras em forma de X, sem encosto e com assento de couro, em
cima de um esponjoso tapete babilónico.
Nas suas costas, por duas estreitas janelas nuas entrava a claridade
e a fria brisa do Norte. Procurei imitar o meu acompanhante, enquanto
tentava fixar na memória os pormenores mais importantes daquele
recinto. De ambos os lados da porta alinhavam-se quatro grandes
esculturas (duas em cada uma das paredes). As mais próximas das
sentinelas eram simples bustos de mármore, igualmente branco. As
outras, pude reconhecê-las: tratava-se de uma réplica das amazonas, que
se encontram actualmente no Museu Capitolino, de Roma.
Em contrapartida, não fui capaz de reconhecer os bustos. E, sem
poder conter a minha curiosidade, perguntei a José que significado
tinham aquelas cabeças, colocadas em magníficos pedestais cilíndricos. O
de Arimateia, teve um gesto de desgosto. E, quase contrariado, explicoume
que eram os bustos do César. Um, à esquerda da porta, representava
Tibério Adolescente. O outro, o imperador. Essas estátuas – continuou
José – foram motivo, há já alguns anos, de grandes lamentos e dor para o
meu povo.
Assim que Pôncio Pilatos chegou à Judeia – segundo o testemunho do
ancião – colocou as referidas imagens em Jerusalém, aproveitando a
escuridão da noite. O povo judeu não aceitava a presença de imagens –
nem sequer as do imperador romano – e aquilo provocou uma revolta.
Milhares de hebreus acorreram a Cesareia, a capital dos invasores,
suplicando ao procurador que retirasse as estátuas e respeitasse assim a
tradição e as crenças da nação judaica. Mas Pilatos não lhes deu atenção,
negando-se a tirar as imagens de Tibério. Durante cinco dias e cinco
noites, os Judeus permaneceram em redor da casa do procurador. Em
vista da situação, Pilatos convocou a multidão e, quando todos
acreditavam que o governador romano se preparava para ceder, as
tropas rodearam os hebreus. O procurador avisou-os então que, se não
recebessem as imagens, aqueles três esquadrões os despedaçariam. E, a
uma ordem de Pilatos, os legionários desembainharam as espadas. A
multidão, desorientada, lançou-se de rosto para o chão, gemendo e
gritando que preferiam morrer a ver profanada a sua Cidade Santa.
Pilatos, comovido e maravilhado com aquela atitude, acabou por
consentir, ordenando que os bustos de César fossem retirados de
Jerusalém e transferidos para o interior do quartel-general romano: a
Torre Antónia. Sem o poder evitar, levantei-me do banco e,
pausadamente, aproximei-me do primeiro busto. Mas aquele rosto
acriançado, com uma madeixa perfeitamente recortada na testa, nada
me disse. Dirigi-me então à segunda efígie. Ao passar em frente dos
legionários, ambos me acompanharam com o olhar. Aquele segundo busto
representava um Tibério adulto, à volta de cinquenta anos (o imperador
foi designado César no ano 14 da nossa Era, quando contava cinquenta e
cinco anos de idade), mas extremamente favorecido. No meu treino
prévio para esta missão, e dada, principalmente, a entrevista que estava
prestes a celebrar com Pôncio Pilatos, tinha recebido informação
exaustiva sobre a figura e a personalidade de Tibério (1).
Ali – seguindo logicamente as normas dos artistas da época que
ocultavam os defeitos das pessoas que imortalizavam em pedra ou
bronze – não apareciam as múltiplas úlceras que lhe cobriam o rosto nem
a sua calvície, nem o ligeiro desvio para a direita do nariz ou o defeito da
orelha esquerda, mais saída que a do outro lado. (Estes dois últimos
defeitos surgem com clareza no chamado busto de Mahin, realizado
quando Tibério ainda não era imperador.)
Em contrapartida observava-se a boca descaída, como consequência
da perda de dentes.
Exceptuando estas concessões, o artista moldara com exactidão a
cabeça daquele César polémico e introvertido: um rosto triangular, de
testa larga e barbicha pontiaguda e curta. No seu conjunto transmitia o
ar filantrópico, ressentido e fugidio que caracterizou Tibério e que ia
desempenhar um papel decisivo na vontade do seu procurador na Judeia,
chegado o momento de salvar ou de condenar Jesus de Nazaré. (Mas
deixemos que os próprios acontecimentos falem por si.)
De repente, abriu-se a grande porta. José como eu, correu
apressado para o umbral. Como se nelas tivesse actuado uma mola
mecânica, os soldados afastaram as lanças, dando passagem a um
indivíduo que vestia a toga romana dos plebeus. Mal tive tempo para o
olhar. Do outro lado, um centurião segurava o batente da porta. Na mão
esquerda tinha uma tabuinha encerada, idêntica à que vira no posto da
guarda. Pronunciou os nossos nomes e, com um sorriso, convidou-nos a
entrar.
Aquele salão, mais amplo que o vestíbulo, deixou-me perplexo. Era
ovalado e com as paredes totalmente forradas de cedro. O soalho, de
madeira de cipreste, rangeu debaixo dos nossos pés, enquanto nos
aproximávamos – sempre na companhia do oficial – do extremo da sala,
onde nos esperava um homem de baixa estatura: Pôncio Pilatos.
Ao ver-nos, o procurador levantou-se de onde estava sentado,
saudando-nos com o braço levantado, tal como, séculos mais tarde, o
fariam os alemães de Hitler. Ao chegar junto da mesa, José inclinou
ligeiramente a cabeça, apresentando-me depois. Instintivamente repeti
aquela ligeira reverência sentindo como o governador da Judeia me
perfurava com os seus olhos azuis e salientes (2). Pilatos voltou a
sentar-se e convidou-nos a que fizéssemos o mesmo. O centurião, pelo
contrário, continuou de pé, a um lado da mesa, com o tampo de cedro e
pernas de
(1)
A minha documentação sobre Tibério baseou-se, fundamentalmente, em
três fontes: os Anais, de Tácito, o livro Os Doze Césares, de Suetónio, e
as Histórias de Roma, de Dione Cássio e Veleio Patérculo. A esta
bibliografia sobre a vida pública e privada de Tibério tive de
acrescentar uma infinidade de documentos, dados e livros de F. Josefo,
Fñon, Juvenal, Ovídio, dos Plínios, Séneca, Henting, Bernouilli,
Barbagallo, Baring-Gould, Ferrero, Marsh, Ciaceri, Mommsen, Maranon
Homo, Pippidt, Axel Munthe, Ramsay, Tarber, Tuxen e um longo et
caetera. (N. Do M.)
(2)
Diante daqueles olhos salientes bem como do conjunto das restantes
características de Pilatos – obesidade, baixa estatura, inchaço da cara,
etc. - qualquer médico suspeitaria de uma alteração da glândula tiróide
(possivelmente, hipertiroidismo). (N. Do M.)
marfim. Não estava de capacete mas trazia as armas
regulamentares: espada, na ilharga esquerda (ao contrário da tropa), um
punhal e, com certeza, a cota de malha. O seu vestuário era muito
semelhante ao dos legionários, à excepção da capa e do capacete.
Enquanto o ancião de Arimateia lhe falava em grego, oferecendo-lhe
a ânfora de vinho, Pilatos não tirava os olhos de mim. Tive de confessar
que a curiosidade era mútua.
Sinceramente, a imagem que eu concebera daquele homem distava
muito da realidade. A sua baixa estatura – talvez metro e meio -
desorientava-me. Era atarracado, com um ventre proeminente, que o
procurador tentava dissimular por baixo das pregas da toga de seda de
um esfumado tom violeta e que lhe caía do ombro esquerdo, envolvendo e
enfaixando o abdómen e parte do tórax.
Por baixo deste manto, Pilatos vestia uma túnica branca igualmente
de seda que lhe chegava aos artelhos, e com delicados brocados de ouro
a toda a volta de um pescoço curto e grosso.
Desde o primeiro momento, a cabeleira do procurador romano foi
para mim motivo de surpresa. Não o poderia garantir, mas estou quase
certo de que tinha recorrido a um postiço para esconder a calva. A
disposição da cabeleira – caindo exagerada e estudadamente para a
testa – e o claro contraste com os compridos cabelos que lhe pendiam,
em forma de crina, para a nuca, denunciavam a existência de uma peruca
loura. Pouco a pouco, conforme fui conhecendo o procurador observei o
cuidado quase doentio de imitar em tudo o seu Imperador. O postiço
parecia ser outra prova. A calvície – segundo todos os historiadoresera
uma das características dos claudios. Tibério tinha perdido o cabelo
ainda muito novo, usando, ao que parece, perucas louras, confeccionadas
– segundo Ovídio – a partir de cabeleiras das escravas e prisioneiras dos
povos bárbaros. Outros imperadores, como Júlio César e Calígula,
apresentavam esta enfermidade. Séneca descreve magistralmente o
grave complexo de Calígula, como consequência da sua calvície: Olhar-lhe
para a cabeça, disse o espanhol, era um crime... Naturalmente, e por
cautela, tentei olhar o menos possível para o postiço de Pilatos...
Uma cárie galopante dizimara-lhe a dentadura, salpicando-a de
pontos pretos que tornavam ainda mais desagradável o rosto branco,
inchado e redondo como um escudo. Consciente do problema, Pilatos
tentara remediar os estragos, colocando dois dentes de ouro no maxilar
superior e outro no inferior. As próteses denunciavam, além do mais, a
sua privilegiada situação económica. Pilatos sabia-o e observei que –
embora não tivesse grande motivo para isso – lhe agradava sorrir e
mostrar os seus poderes (1).
* Contrariamente ao que chegaram a opinar alguns investigadores. O
procurador Pôncio Pilatos nunca foi um escravo liberto. Vinha de uma
família nobilíssima e muito antiga, ligada, quatro séculos antes de Cristo,
à ordem equestre” romana. Um antepassado seu, Pôncio Comínio,
participou na guerra de Camilo contra os Galos. Com grande arrojo, este
antepassado de Pilatos conseguiu penetrar em Roma escondido numa
barquinha de cascas de árvore. A origem de Comínio, como o seu próprio
nome nos assinala, era samnita.
Duzentos anos depois surgem na História de Roma mais dois
Pôncios” famosos: Caio Pôncio Telesino e seu pai, Caio Pôncio Herénio,
amigo de Platão. A família de Pôncio Pilatos, segundo todos os
historiadores, dividia-se em quatro grandes ramos: os telesinos, os
cominianos. Os fregelanos e os anfidianos.
Apesar de cuidadosamente barbeado e do perfume que usava, o seu
aspecto, em geral, era pouco agradável. Também – creio eu
- a descrição física de Pôncio Pilatos estava de acordo com a
classificação tipológica de Ernest Kretschmer. Pelo menos na aparência
física coincidia com o chamado tipo pícnico. Mas o que realmente me
interessava era a sua maneira de ser. Era vital poder mergulhar no seu
espírito, a fim de lhe compreender melhor as motivações e retirar
conclusões sobre o seu comportamento na manhã de sexta-feira, 7 de
Abril.
O procurador agradeceu o obséquio de José e, dirigindo-se a mim,
perguntou-me, entre risos:
- E como vai o velhinho?
Eu sabia que o carácter áspero e a extrema seriedade de Tibério –
já desde a sua juventude – lhe tinham originado esta alcunha. E logo
respondi, sem perder a calma: - Na minha viagem a esta província
oriental tive a honra de o ver no seu retiro na ilha de Capri. A sua saúde
continua a piorar tão rapidamente quanto o seu humor... - Ah! - exclamou
o procurador, simulando conhecer a notícia.Mas, será que voltou a Capri?
Aquilo acabou por me alertar. Pilatos, com aquelas perguntas e as
seguintes, procurava averiguar se eu fazia parte do grupo de astrólogos
que rodeava Tibério e que anos mais tarde, Juvenal qualificaria
ironicamente como rebanho caldeu. A sorte estava lançada. Procurei,
assim, seguir-lhe a corrente...
Como medida de precaução, Cavalo de Tróia estabelecera que,
enquanto durasse a minha reunião com Pilatos, a ligação auditiva com o
módulo fosse praticamente permanente. A informação auxiliar do Pai
Natal, o nosso computador, poderia ser de grande utilidade. Daí que,
durante toda a entrevista eu ficasse com a mão direita junto da orelha.
Todos eles tomavam o nome do lugar de precedência de sua família.
O ramo mais distinto e nobre foi, sem dúvida, o dos telesinos, de que
procedia Caio Herénio, lugar-tenente de Mário nas guerras de Espanha,
no tempo de Sila. Contudo, mais famoso ainda foi Pôncio Telesino, que
colocou Sila em imensa dificuldade e cuja morte foi, para Mário, o sinal
da sua derrota. Desde então, os Pôncios Telesinos desaparecem da
História de Roma, ainda que dois poetas importantes – Marcial e Juvenal
– falem deles.
Do primeiro, mal, e, do segundo, que os tinha em grande apreço,
bem. É difícil precisar a qual dos dois ramos importantes pertenceu
Pôncio Pilatos, embora tudo leve a supor – dada a sua posição e cargo –
que foi ao dos telesinos. Pilatos” não era mais que um sobrenome ou
apodo, como acontecia com outras personalidades ilustres: Cícero,
Torquato, Corvino, etc.
Significava homem de lança” e, provavelmente, tinha relação com
algum importante feito de armas acontecido na familia dos Pôncios. Na
guerra civil de César e Pompeu, por exemplo, os Pôncios foram
partidários do primeiro, deles se contando alguns feitos heróicos, que
lhes valeram grande amizade com César. Outros membros da familia, no
entanto, permaneceram fiéis à República, como foi o caso de Lúcio Pôncio
Aquila, amigo de Cícero.
Nos tempos de Tibério aparecem os fasces consulares nas mãos de
um tal Caio Pôncio Negrino e nas bancadas do Senado temos outro Pôncio
Fregelano, caído mais tarde em desgraça, por se unir ao temido general
Sejano. Mas nenhma destas circunstâncias fez perder prestígio à família
dos Pôncios. E, durante o império de Nero, encontramos outro Pôncio
Telesino exercendo o consulado com Suetónio Paulino.
Quer dizer: Pôncio Pilatos” pertencia à ordem equestre” romana, ou
seja à nobreza de segundo grau. (N. Do M.) simulando dificuldade em
ouvir o meu interlocutor. Na realidade, como já expliquei, esta habilidade
permitia que as vozes dos ali reunidos pudessem chegar com clareza a
Eliseu...
- Compreendo que as notícias te cheguem com demora – fingi – e que
ainda não estejas informado do retiro voluntário do imperador em Capri.
Lá continua actualmente, na companhia do seu amigo e mestre de
astrólogos, o grande Trasilo.
Pôncio não se dava por vencido. Aquela delicada situação parecia
diverti-lo. - Então – continuou o procurador, sem abandonar o falso
sorriso -, terá levado consigo o seu médico pessoal, Musa... A nova
armadilha de Pilatos também não deu fruto. Eu sabia que António Musa
fora o galeno do seu antecessor, Augusto. Mas, como podia emendar o
supremo chefe das forças romanas na Judeia sem ferir a sua retorcida
alma?
- Não, procurador. Sei que Tibério admirou os cuidados de Musa
com seu padrasto, porém, o imperador preferiu levar consigo o não
menos prudente e eminente Charicles. Segundo as minhas notícias,
Tibério chama-o, de vez em quando, a qualquer das doze vilas de Capri
onde mora.
Pilatos começou a brincar com o pequeno falo de marfim que trazia
ao pescoço. Aquele adorno – tão vulgar na Roma imperial - veio provar-me
uma coisa de que já suspeitava: aquele romano era profundamente
supersticioso. A presença de falos em todo o tipo de adornos, colares,
anéis, móveis, quadros, etc, era motivada pelo cuidado dos cidadãos
romanos em atrair a fortuna e evitar a desgraça.
- Sim – murmurou, com certo desprezo nas suas palavras -, Tibério
sempre foi um homem adoentado... E todos sofremos por vezes a sua
irritabilidade. Suponho, Jasão, que a sua fraqueza será cada vez maior...
Naqueles comentários havia parte de verdade. Mas entre aquelas
meias verdades também se ocultavam novos ataques à minha suposta
profissão de astrólogo e, enfim, ao meu conhecimento de César. - Posso
garantir-te – respondi – que Tibério conserva toda a sua força. É capaz,
como muito bem sabes, de furar uma maçã verde com um dedo.
A sua velhice (no ano 30 Tibério contava mais de setenta anos não
Naquele tempo a profusão de falos-amuleto chegou a tais extremos
que podiam ser encontrados nas portas das casas ou dos dormitórios.
Quando colocados nos jardins e nos campos, deviam proteger contra as
sombras nocivas. Se os punham nas encruzilhadas, o falo assinalava ao
caminhante o rumo certo.
Pendiam também dos carros vitoriosos dos imperadores (fascinus) e
do pescoço das mulheres grávidas que desejavam um parto fácil. Os
Romanos chegaram a acreditar que o seu poder aumentava se dessem ao
falo a forma de um animal dotado de garras ou de asas. Também foram
encontrados badalos com forma fálica. A superstição romana acreditava
que, desta forma, o som dos sinos afugentava os bruxedos e todo o tipo
de seres fantasmagóricos. Só quando o Império decaiu, degradando-se
os seus costumes, o falo se converteu num símbolo de prazer.
Entretanto, nos primeiros tempos de Roma, as jovens casadas
ofereciam a virgindade a Hermes Priapo, como prova das suas devotas
intenções. Mais tarde o falo do deus serviu de consolador a muitas
mulheres viciosas (N. Do M.)
diminuiu a sua força, mas a sua vista, sim... E nalguma coisa estou de
acordo com a tua sábia opinião. O imperador é um homem atormentado
com o seu destino. Não soube elevar-se acima das adversas
circunstâncias do divórcio que Augusto lhe impôs.
Nunca esquecerá o seu grande amor: Vipsania. Isto, o carácter
possessivo e a ambição de sua mãe, L= ivia, e aquelas repulsivas úlceras
que o desfeiam, acabaram por transformá-lo num homem tímido,
ressentido e fugidio. (Neste instante interveio Eliseu, comunicando-me
que, segundo Plínio, o Velho, na sua História Natural, Tibério era um dos
homens com melhor vista do mundo. Era capaz de ver nas trevas – como
as corujas -, embora durante o dia sofresse de miopia. Foi esta –
segundo Dione na História de Roma – uma das razões que alegou para não
aceitar o império.) ..Tímido, ressentido, fugidio e cruel – rematou Pilatos,
com gesto grave, ao mesmo tempo que trocava um olhar com o seu
centurião. Em minha opinião, o procurador dava-se por satisfeito com a
minha representação. A partir desse momento, as suas perguntas e
comentários já não foram tão venenosos. No entanto, aquelas afirmações
tinham começado a revelar o comportamento de Pilatos em relação ao
imperador e, especialmente, o seu critério pessoal em relação a Tibério e
suas acções.
Por um lado, como tive oportunidade de verificar, Pôncio Pilatos
gostava de imitar o seu César. Por outro, odiava-o e temia-o com a
mesma intensidade. Aqueles últimos anos de Tibério, desde um pouco
antes da sua ida para Capri, foram de autêntico terror. Suetónio
descreve-o, assegurando que o furor das denúncias que se desencadeou
com Tibério, mais que todas as guerras civis, esgotou o país em plena
paz. Todos se espiavam e tudo podia ser motivo de secreta delação ao
César.
O carácter desconfiado de Tibério alimentou – e não pouco – esta
vaga de denúncias. E quando algum homem corajoso – como Calpúrnio
Pison – levantava a sua voz protestando por esta situação, o César
encarregava-se de o aniquilar.
Tibério via traidores e traições até nos seus mais íntimos amigos e
colaboradores. O terror tiberiano chegou a tais extremos que, segundo
conta Suetónio, se espiava até uma palavra saída num momento de
embriaguez e o gracejo mais inocente podia constituir um pretexto para
denunciar.
Esta gravíssima situação – de enorme transcendência, em minha
opinião, na altura de julgar o comportamento de Pilatos com Jesus de
Nazaré – fica perfeitamente demonstrada com o acontecimento
protagonizado por Paulo, um pretor que assistia a uma refeição. Séneca
conta-o na sua obra A Beneficiência: Paulo tinha um anel de camafeu,
onde estava gravado o retrato de Tibério César. Pois bem, o pobre Paulo,
apertado por uma necessidade fisiológica, cometeu a imprudência de
pegar num urinol com aquela mão.
O facto foi observado por um tal Maro, um dos mais conhecidos
delatores da altura. Mas um escravo de Paulo apercebeu-se de que o
delator espiava o amo e, rapidamente, aproveitando-se da sua
embriaguez tirou-lhe o anel do dedo, justamente no momento em que
Maro dava os convidados como testemunha da injúria que se ia fazer ao
imperador, aproximando a sua efígie do urinol.
Nesse instante, o escravo abriu a mão e mostrou o anel. Aquilo
salvou o imprudente Paulo da morte certa e da perda total dos seus bens
que – segundo a lei de Tibério – iam sempre parar às mãos do delator.
Isto e velhos ódios eram as causas mais vulgares em todas as denúncias.
Pôncio Pilatos, naturalmente, conhecia estes factos e temia
- como qualquer outro cidadão de Roma – ser o alvo dos muitos
delatores, profissionais ou amadores, que então pululavam. No escasso
tempo que permaneci perto dele tive a intuição de que Pilatos não era
exactamente um cobarde. O facto de representar César numa província
tão difícil e turbulenta como Israel pressupunha que, pelo menos em
teoria, se tratava de um homem de certa têmpera (1). Embora fosse mau
político, como demonstrou, negando-se a retirar as imagens de César em
Jerusalém, ou apropriando-se do tesouro do Templo para a construção
de um aqueduto, creio, em abono da verdade, que o procurador podia
sentir medo da situação pela qual, naqueles anos, passava o Império, mas
não da verdade, quando esta surgia límpida e directamente entre os
homens. Assim acontecia na Sexta-Feira.
Pilatos apresentava-se para mim como um homem instável
emocionalmente, mas não como um cobarde, tal como sempre se
pretendeu. (Este, como veremos, mais adiante, deveria ser outro
conceito a rever, em especial pela Igreja Católica.)
- Tímido, ressentido, fugidio e cruel – repetiu o procurador,
mergulhado em pensamentos inescrutáveis. O silêncio caiu pesadamente
na sala. José, que parecia não acreditar em quanto estava ouvindo,
agitou-se nervoso na sua cadeira de couro. Justamente aquele violento
silêncio deve ter arrancado Pilatos às profundidades da sua mente e,
adoptando um tom mais conciliador, perguntou de novo: - Mas, conta-me,
Jasão: a que se dedica agora o imperador? Que faz...?
- Como já comentei, entendo que Tibério fugiu de Roma... fugindo de
si próprio.
Intencionalmente, fiz uma pausa. Os olhos de Pôncio faiscaram. E
com a cabeça fez um aceno afirmativo...
O seu inimigo mortal – prossegui – é o seu ressentimento ou a sua
falta de generosidade. E os astros – insinuei intencionalmente anunciam
factos que agitarão o Império.
Dedica-se agora a passear solitário, como sempre, pelas abruptas
escarpas de Capri. Não fala com ninguém, à excepção dos seus
astrólogos, e posso garantir-te que a sua desconfiança e instabilidade
são tais que chega a assassinar os meus colegas.
- Está a matar os seus astrólogos? - interrompeu-me o governador,
com expressão de incredulidade. Aquela notícia, pelo que parecia, ainda
não tinha chegado à remota Palestina.
E procurei tirar partido disto. - Assim é, procurador. A sua
demência está a comprometer quantos o conhecem. Todas as tardes,
Tibério recebe um astrólogo. Fá-lo na
(1)
Sobre Pilatos escreveu Filon: De carácter inflexível e duro, sem
nenhuma consideração. Segundo o escritor de Alexandria, a procuradoria
de Pilatos caracterizava-se pela sua corruptibilidade, roubos, violências,
ofensas, brutalidades, condenações constantes sem processo prévio e
uma crueldade sem limites,. (N. Do M.)
mais alta das doze vilas que mandou construir na ilha e que, como
sabes, estão dedicadas a doze deuses. Pois bem se o imperador acredita
que o astrólogo de turno não lhe disse a verdade nos seus presságios,
ordena ao robusto escravo que o acompanha para, no regresso ao palácio,
atirar o caldeu pelos despenhadeiros...
Pilatos sorriu maliciosamente e, apontando-me com o indicador,
perguntou sem rodeios: - E tu...? Como é que continuas com vida?
- Procurei seguir os conselhos do meu mestre Trasilo e aqueles que
o meu próprio coração me ditou. Quer dizer, disse a verdade ao
Imperador... (Eliseu transmitiu-me então o texto de uma lenda que
circulou naquela época e que – por ser verdadeira – põe em evidência a já
citada dureza de carácter de Tibério. Quando Trasilo foi chamado por
César para que lhe anunciasse o seu futuro, aquele, empalidecendo,
avisou-o corajosamente de que o ameaçava um grande perigo. Tibério,
confortado com a sua lealdade, beijou-o, promovendo-o a primeiro dos
seus astrólogos. ) Pilatos não pôde conter a sua curiosidade e lançou:
- E quais são esses factos que – em tua opinião – agitarão todo o
Império?
- Lemos nos astros e estes auguram um gravíssimo acontecimento,
que afectará, principalmente, o imperador...
Naquele momento, eu gozava da imensa vantagem de conhecer a
história. Estávamos no ano 30 e procurei concentrar as minhas predições
no futuro imediato.
- Continua! Continua! - incitou-me Pôncio, empurrando-me
simbolicamente com as mãos curtas e gordas, em cujos dedos rosados se
destacava o selo de ónix da sua procuradoria. - Sejano...
Ao ouvir aquele nome, por mim pronunciado com uma bem estudada
teatralidade, o procurador empalideceu. Naquele tempo - e
especialmente desde que o César se retirara para Capri (ano 26) – Aélio
Sejano, comandante-chefe das forças pretorianas de Roma e homem de
confiança de Tibério era o autêntico imperador. A mal dissimulada
ambição deste general e a sua influência sobre Tibério tinham-no
convertido num segundo horror para os cidadãos do Império. O seu
poder era tal que a sua imagem chegou a figurar, junto à de César, nos
locais de honra da cidade, nas insígnias das legiões e até nas moedas (1).
As suas verdadeiras intenções – substituir Tibério - levaram-no a todo o
tipo de desmandos, intrigas e assassínios. Tentou mesmo, casar-se com
uma das netas de Tibério (possivelmente com Júlia Lívila, filha de
Germânico), mas César contrariou-o truncando assim as esperanças de
Sejano de
(1)
Cavalo de Tróia verificou este extremo, encontrando, efectivamente, a
imagem de Sejano em moedas que apareceram na cidade espanhola de
Bilbilis (actual Catalayud, na província de Saragoça). Segundo Suetónio,
algumas legiões estacionadas na Síria não aceitaram esta glorificação de
Sejano. Quando o homem-forte caiu, Tibério recompensou-as, apesar de
ter sido ele próprio quem ordenara esta glorificação do seu lugartenente.
(N. Do M.)
apagar a origem obscura e humilde do seu berço. Homem frio e
calculista, o lugar-tenente de Tibério foi eliminando os possíveis
sucessores do Imperador, dando início a uma brutal ofensiva contra
Agripina (neta de Augusto) e seus filhos (Nero I Druso III, Caio – mais
conhecido por Calígula – Agripina II, Drusila e Júlia Lívila). Os ataques
de Sejano começaram por dois prestigiados representantes do partido
de Agripina: Stlio e Sabino.
O suicídio do primeiro, grande militar, no ano 24, para não ser
executado e o processo e posterior assassínio do segundo (ano 28)
mergulharam Roma e as suas províncias na angústia. Tácito confirma
estes factos: Nunca, disse a consternação e o medo reinaram como
então em Roma. Pôncio Pilatos e o centurião que nos acompanhava sabia
muito bem quem era Sejano e qual o seu poder.
A história, e muito especialmente a Igreja Católica, deveriam ter
explicado ao mundo – ou, pelo menos, aos que se dizem crentes – a
funesta influência que exercia sobre todo o Império (principalmente
naqueles anos cruciais) o primeiro-ministro de Tibério.
Só assim – conhecendo o férreo e despótico governo de Sejano e a
não menos cruel atitude do César – se pode começar a ter a intuição do
motivo pelo qual Pilatos ia lavar as suas mãos no processo contra o
Mestre da Galileia. Todos os governadores romanos de províncias – e não
apenas Pilatos – sabiam que os seus cargos e vidas estavam suspensos
por um fio.
O menor escândalo, murmúrio ou denúncia os levava
irremediavelmente à destituição, desterro ou execução. Como veremos
na altura própria o procurador romano em Israel – ante a ameaça de os
Judeus o acusarem perante César de ter permitido que um de entre eles
se proclamasse rei – preferiu submeter-se, evitando assim um choque
com o implacável Sejano ou com Tibério, qual deles mais intransigente...
Considero, portanto, que dadas as circunstâncias sociais, políticas e
de governo do império naquele ano 30, o acto de Pilatos não foi de
cobardia, mas sim de prevenção diplomática. Entre ambos os termos,
creio, existe uma clara diferença, que – embora não justifique a
determinação do representante de César (ou de Sejano, neste caso) –
ajuda a compreender melhor a sua atitude.
- Que tem a ver esse – perguntou Pilatos em tom depreciativocom
os teus augúrios? Cavalo de Tróia sopesara minuciosamente aquela
minha entrevista com o procurador romano. E, embora estivesse
previsto que eu tentasse ganhar a sua confiança e amizade – visando,
principalmente, obter maior facilidade de movimentos no interior da
Torre Antónia, na manhã de Sexta-Feira – os homens do general Curtiss
tinham considerado não ser recomendável avisar Pôncio Pilatos da
trágica queda de Sejano no ano 31. Se o procurador chegasse a crer
plenamente nesta profecia (que se cumpriria, efectivamente, a 18 de
Outubro desse ano) o seu medo de Sejano podia desaparecer em parte,
podendo alterar assim a sua decisão de executar Jesus. Isto,
logicamente, ia contra a mais elementar ética do projecto.
Éramos simples observadores e qualquer manobra que pudesse
provocar uma alteração da história estava-nos rigorosamente proibida.
Assim, limitei-me a expor-lhe uma parte da verdade.
- Os astros mostraram-se propícios – disse-lhe, adoptando um ar
solene – a Sejano. O seu poder será aumentado com a nomeação de
cônsul...
Pilatos, tal como eu supunha, concedeu crédito aos meus augúrios.
Ao escutar o vaticínio abandonou a mesa, voltando-se para a grande
janela que fechava aquele arco do salão. Assim permanceu durante uns
minutos com as mãos atrás das costas e a cabeça ligeiramente inclinada
para a frente.
- Cônsul... - murmurou de repente. E, sem se voltar, pediu-me que
continuasse.
- Mas não é isto o mais grave – acrescentei, fixando o olhar no do
centurião. - Os astros assinalam uma grave conjura contra o Imperador...
Não pude continuar. Pilatos voltou-se, fulminando-me com o olhar. -
Tibério sabe?
- O meu mestre, Trasilo, encarregou-se de lho anunciar pouco antes
da minha partida de Capri.
- Bom – replicou o procurador -, as coortes da Síria estão inquietas
por culpa de Sejano... Mas não é preciso ser astrólogo para esperar que
mais dia menos dia...
- É que os astros – interrompi-o, utilizando todas as minhas
capacidades de persuasão – indicaram um nome... Pilatos nada disse.
Arrepanhou a sua ampla túnica e sentou-se muito lentamente, sem deixar
de me observar.
Eu olhei para o centurião, simulando uma certa desconfiança por
aquele oficial, mas Pilatos – compreendendo a minha atitude – apressouse
a tranquilizar-me: - Não temas.
Civilis é o meu primipilus. Toda a legião está sob o seu comando. Fala
com inteira liberdade... Aqui – respondeu Pilatos, indicando o salão onde
nos encontrávamos – não há buracos artificiosamente preparados, como
aconteceu com o ingénuo Sabino...3
* Tibério. Efectivamente, anunciou a nomeação de Sejano como
cônsul naquele mesmo ano de 30. Mas, segundo parece, as notícias
precisavam de mais de três meses para ir de Roma à Palestina. A
nomeação fora prevista para o ano seguinte, 31, ainda que o homem duro
do César morresse antes de assumir o cargo. Naquele momento, Pilatos
ignorava tudo isto. Daí a sua surpresa. (N. Do M.)
(2)
Aquele centurião, segundo a defimição utilizada por Pilatos. Era o
primeiro” dos sessenta que uma legião tinha.
Nesta perfeita hierarquização do exército romano, os chamados
primorum ordinum centuriones ou, abreviadamente, primi ordines, eram
os centuriões de mais alta categoria de uma legião. O primipilus, ou
eleito em prìmeiro lugar entre as sessenta centúrias, participava, até
nos conselhos de guerra.
(N. do M.)
3 O procurador estava a par das armadilhas utilizadas pelos
colaboradores do temido Sejano para acusar Tito Sabino, homem leal a
Agripina e executado, como já disse, no ano 28. Quatro pretores que
aspiravam ao consulado planearam com o fim de ganhar as graças de
Sejano apanhar Sabino in fraganti.
Tratava-se de Latino Laciano, Fórcio Cato, Petélio Rufo e Opsio. O
primeiro fingiu-se amigo e confidente do infeliz Sabino e com as suas
críticas contra Sejano e Tibério, atiçou a profunda aversão que o amigo
de Germânico (marido de Agripina) sentia pelo César e pelo seu ministro.
No dia combinado,
Laciano levou a vítima a sua casa, provocando a loquacidade desta
contra o César e o seu favorito. Sabino ignorava que os outros três
cúmplices o escutavam de um sótão e por buracos que tinham feito no
soalho. Pouco depois, as violentas opiniões de Sabino eram do
conhecimento de Tibério e de Sejano, que ordenaram a sua execução. (N.
Do M.)
Fingi uma completa confiança nas frases do meu interlocutor e
prossegui. - Sejano...
- Esse bastardo? - interrompeu o procurador, soltando uma sonora
gargalhada (1).
E, numa daquelas bruscas mudanças de disposição, Pilatos bateu na
mesa com o punho, fazendo saltar alguns pergaminhos e papiros,
perfeitamente enrolados e empilhados numa bandeja de madeira. Alguns
daqueles documentos ou mapas de pele de cabra, vitela ou borrego – a
que os Romanos chamavam membrana – rolaram pelo tabuleiro, caindo aos
pés do oficial. Este apressou-se a apanhá-los, enquanto o procurador,
nervoso e evidentemente confuso, se agarrava ao seu amuleto fálico de
marfim. - Tens a certeza? - balbuciou Pilatos.
Mas, antes que tivesse oportunidade para lhe responder, olhou para
o centurião, interrogando-o por sua vez:
- Que sabes tu?
O oficial negou com a cabeça sem sequer abrir os lábios.
- Uma conjura contra Tibério...
Pilatos falava consigo mesmo. Levou os dedos à cara, afagando o
queixo numa atitude pensativa e, por fim, levantando os olhos para o
tecto, perguntou-me, como se acabasse de me apanhar num erro: -
Vamos a ver se entendi...
A astrologia diz que os deuses estão do lado de Sejano... Mas
também acabas de anunciar que se prepara uma conjura contra César...
Se fosse assim, e uma vez que dizes que Tibério está informado, como é
possível que o chefe dos pretorianos goze a confiança do Imperador?
Responde: Pilatos voltara a olhar-me de frente. E com uma ferocidade
que fez tremer José de Arimateia.
Mas aguentei-lhe o olhar. Tal como prevíramos, o procurador romano
mordera o anzol.
Com toda a calma de que era capaz, fui directamente em busca do
que realmente ali me levara.
- Existe um plano...
Reconheço que aquela exclamação. E a atitude do procurador a
respeito de Sejano nos confundiu. Tanto Eliseu como eu sabíamos que
Pôncio Pilatos fora designado, possivelmente, pelo general e favorito de
Tibério, com a intenção premeditada de provocar o povo judaico. Sejano
fora um dos homens que mais se tinham distinguido pelo seu ódio contra
os hebreus que viviam em Roma.
Pouco tempo antes da morte de Cristo, o imperador ordenou a
expulsão de quatro mil judeus, que foram levados para a ilha de
Sardenha, com a missão de eliminar as quadrilhas de bandidos que por ali
tinham os seus quartéis-generais. Este desterro em massa fora
originado, em boa parte, por conselho de Sejano, tendo por motivo um
desvio de fundos cometido por quatro hebreus, encarregues por Fúlvia,
mulher do senador Saturnino, recém-convertida ao judaísmo, da
transferência de oferendas valiosas para o templo de Jerusalém.
Porém, estes judeus ficaram com as oferendas e o comandante da
guarda pretoriano, Sejano, aproveitou este acontecimento para informar
Tibério. Este enfureceu-se e, ordenou que todos os judeus e prosélitos
fossem expulsos de Roma. Esta foi, precisamente, a primeira
perseguição aos Judeus no Ocidente. (N. Do M.)
Pilatos serenou. Tenho agora a certeza de que a minha
imperturbável serenidade o desarmou!
- Fala!...
- Mas antes – respondi -, gostaria de solicitar de ti um pequeno
favor...
- Concedido! Mas fala. Fala!
- Sabes que, além dos meus estudos como astrólogo, me dedico ao
comércio de madeiras. Pois bem, um rico cidadão romano de Tessalonica
soube do maravilhoso sistema de aquecimento subterrâneo que Augusto
mandou construir por baixo do chão do seu triclinium casa de jantar
imperial. Roma inteira está informada do teu requintado gosto e de que
mandaste colocar por baixo do teu triclinium outro sistema idêntico.
Recebi a tarefa expressamente de um amigo meu da Grécia, que tem
muito empenho em consultar-te – se considerares prudente – e obter
alguns pormenores técnicos sobre a tua instalação. Sou portador de uma
carta, em que te roga que me permitas fazer algumas consultas a esse
respeito...
E imediatamente tirei da minha bolsa de borracha o pequeno rolo de
pergaminho, meticulosamente lacrado e confeccionado pelos homens do
Cavalo de Tróia. Entreguei-o a Pilatos que, para dizer a verdade, não saía
do seu assombro.
Depois de ler a mensagem do meu inexistente amigo, deixou-a cair
em cima da mesa, visivelmente satisfeito com tanta adulação. - Não sabia
que em Roma conheceram...
Com um sorriso, concordei.
- Bem, concedido. Amanhã mesmo poderás fazer todas as perguntas
que julgues conveniente...
- Amanhã, estimado procurador – interrompi-o – não poderei vir à
Fortaleza Antónia. Mas se na sexta-feira...
- Não se fala mais nisso: sexta-feira.
- Não desejo abusar da tua consideração – forcei -, porém, sabes
quanto é difícil o acesso à tua residência. Poderias proporcionar-me uma
ordem ou um salvo-conduto, que facilitasse o meu trabalho? Pilatos
começava a perder a paciência. E, com um gesto de enfado, pediu ao
centurião que lhe trouxesse um dos rolos que se alinhavam numa ampla
estante fixa à parede, nas costas do oficial, e que devia conter uma
larga centelha de rolos. O procurador alisou o papiro e, pegando numa
pena de ave, rabiscou uma série de frases em latim, com letra quase
quadrada.
- Aqui tens – comentou um tanto irritado, enquanto me entregava a
ordem. - Na sexta-feira, quando apresentares esta autorização, deverás
perguntar por Civilis... E agora, por todos os deuses, fala de uma vez!
Cavalo de Tróia tinha fabricado aquele pergaminho seguindo as
antigas técnicas dos especialistas de Pérgamo, no Noroeste da Ásia
Menor. Utilizou-se uma certa quantidade de pele de cordeiro. Depois de
eliminado o pêlo, foi raspada e macerada em água de cal para eliminar a
gordura. Depois de seca, e sem ser curtida, foi esfregada com pó de
gesso, e polida com pedra-pomes. A escrita, em latim, foi realizada
seguindo a técnica chamada capitalù rustica, em letras esbeltas e
elegantes. (N. Do M.)
Bravo! A exclamação do meu companheiro Eliseu, do módulo, deu-me
alma nova.
- Quanto vou contar-te – continuei, baixando a voz – é
extremamente secreto. Só o imperador e alguns dos seus íntimos em
Capri, entre os quais se encontra o meu mestre, Trasilo, o sabem. Espero
que a tua proverbial prudência saiba guardar e usar devidamente quanto
vou revelar-te.
Tibério, como te disse, não é alheio a esta conjura. Ele sabe, como
tu, das intrigas de Sejano e da sua responsabilidade nas mortes e
desterro de Agripina e dos seus filhos. Mas deu ordens secretas para
que Antónia e o seu neto Calígula viajem até Capri e se ponham sob a sua
protecção...
Pôncio Pilatos permaneceu boquiaberto, como se estivesse a ver um
fantasma. Por fim, quase tartamudeando, conseguiu dizer:
- Calígula... Claro, o bisneto de Tibério... O Botinhaz!...
Então, se os planos de César se cumprirem – comentou, dirigindo-se
ao seu chefe de centuriões -, já podemos imaginar quem será o
sucessor... Depois, como se tudo aquilo fosse extremamente confuso
para a sua mente, voltou a interrogar-me:
- Mas, que dizem os astros sobre a vida de Tibério? Durará muito?
A minha resposta – tal como pretendia – esfriou o incipiente entusiasmo
do procurador, que parecia sonhar com o desaparecimento do rígido e
cruel Tibério. - O suficiente para que ainda corra muito sangue...
(Eu sabia, obviamente, que a morte do César não se daria antes do
ano 37.)
A súbita entrada no salão oval de um dos servos do procurador –
anunciando que o almoço estava servido – veio interromper aquela
conversa. Eu, sinceramente, respirei aliviado.
Mas Pilatos, entusiasmado e grato pelas minhas revelações, rogounos
para compreender melhor estas lutas intestinas, que fustigaram.
Principalmente, aqueles últimos anos do império de Tibério, quero
recordar os principais componentes da chamada família dos Cláudios:
Primeira geração: Tibério Cláudio Nero, casado com Lívia, da qual
teve Tibério (imperador) e Druso I, suspeito de ser filho de Lívia e do
imperador Augusto. Segunda geração: filhos de Tibério Cláudio Nero e
de Lívia (enteados de Augusto): Tibério (imperador), que se casou com
Vipsania, da qual teve Druso I.
Casar-se-ia depois com Júlia I, que lhe deu um filho morto.
Druso I: casou-se com Antónia II, da qual teve Germânico, Cláudio
(que foi imperador) e Lívila.
Terceira geração (filhos de Tibério e de Vipsania); Druso II: casouse
com Lívila, da qual teve Júlia III, Germânico Gémeo e Tibério Gémeo.
Terceira geração (II) (filhos de Druso I e de Antónia II, portanto,
sobrinhos de Tibério e sobrinhos-netos de Augusto): Germânico, Cláudio
(imperador) e Lívila. Quarta geração (filhos de Druso II e de Lívila,
portanto, netos de Tibério e sobrinhos-bisnetos de Augusto): Júlia III,
Germânico Gémeo e Tibério Gémeo. Quarta geração (II) (filhos de
Germânico e de Agripina I, portanto, sobrinhos-netos de Tibério e
bisnetos de Augusto): Nero I, Druso III, Caio (mais conhecido por
Calígula), Agripina II, Drusila e Júlia Lívila. (Antónia II,
consequentemente, era mãe de Germânico e avó de Calígula.) (N.
Do M.)
2 Assim chamavam familiarmente Calígula os soldados com que se
tinha criado na Germânia, pelo calçado que usava, de tipo militar. (N. Do
M.)
que o acompanhássemos. José e eu olhámo-nos, e o de Arimateia -
não abrira a boca em toda a entrevista – acedeu com gosto.
(Eu não podia suspeitar que, nessa mesma tarde, teria oportunidade
de presenciar um facto que seria extremamente elucidativo para
compreender melhor o obscuro acontecimento da fuga dos guardas do
túmulo onde ia ser sepultado Jesus de Nazaré.)
Um pouco mais descontraídos, encaminhámo-nos os quatro para a
extremidade oposta daquela sala onde tivéramos a entrevista.
O procurador, adiantando-se ligeiramente, foi-nos conduzindo para
um recolhido triclinium, separado do despacho oficial por cortinas de
musselina semitransparente.
A rapidez com que tínhamos sido introduzidos naquele salão oval e a
circunstância de ter permanecido todo aquele tempo no sector norte, de
costas para o restante, tinham-me impedido de o observar com atenção.
A minha missão na manhã de sexta-feira próxima obrigava-me a
conhecer o mais exactamente possível a sua distribuição. Aproveitei
assim aqueles momentos para – simulando especial interesse por um
busto alojado num amplo nicho aberto no centro da parede, que abrigava
também a biblioteca de Pilatos – fotografar mentalmente quantos
pormenores pude.
Pilatos parou ao ver que tinha ficado para trás. Inclinei-me
ligeiramente para aquele pequeno busto de bronze, reconhecendo com
surpresa que se tratava de uma efígie idêntica (talvez fosse a mesma) à
que eu tinha contemplado durante o meu treino no Gabinete de Medalhas
da Biblioteca de Paris. Neste busto do imperador Tibério distinguia-se
na boca a característica expressão de amargura do César.
- Belo! - exclamei.
O romano, com um irónico sorriso perguntou:
- Quem? O César ou o busto?
- A escultura, naturalmente. Em minha opinião – acrescentei,
apontando a forma da boca -, é um dos poucos que lhe fazem certa
justiça...
- Agrada-me a tua sinceridade, Jasão – respondeu o procurador,
aproximando-se de mim e dando uma palmadinha nas costas. - Sabes.”
Gostaria de adivinhar o que dirá a história deste tirano...
-Isso – respondi-lhe -, precisamente isso: Aqui jaz um déspota cruel
e um tirano sanguinário...
Pôncio Pilatos não podia suspeitar sequer que eu lhe anunciava o
epitáfio que os seus biógrafos escreveriam no seu túmulo no ano 37.
Embora também seja verdade – e nisto partilho a opinião do grande
historiador Wiedermeister – que, se Tibério tivesse nascido no ano 6
antes de Cristo, a história ter-lhe-ia dedicado uma frase muito
diferente: Aqui jaz um grande estratego.
- Eu, em contrapartida, mandaria cinzelar a sua frase favorita:
Depois de mim, que o fogo faça desaparecer a Terra! Pilatos tinha razão.
Tal como afirmam Séneca e Dione, era aquela a frase mais repetida por
Tibério.
À direita e à esquerda do busto do César, cravadas em pés de
madeira, tinham sido colocadas a insígnia da legião e o signo zodiacal de
Tibério, respectivamente. A primeira: uma águia metálica (provavelmente
de bronze dourado), com as asas abertas e um feixe de raios entre as
garras. O segundo, um escorpião, igualmente metálico e com um intenso
brilho dourado. Estas sagradas insígnias romanas estavam montadas em
hastes de mais de dois metros de comprimento e munidas de ponteiras
metálicas, para que pudessem ser cravadas na terra, ou como neste caso,
numa base quadrangular, de madeira avermelhada.
Continuando naquela parede, o salão apresentava uma porta muito
mais sóbria e pequena do que a de acesso ao vestíbulo.
Por ali entrara o servo e por ali – pensei – se poderia chegar aos
aposentos íntimos do procurador.
O resto do salão encontrava-se praticamente vazio. No total,
contando com a reduzida sala de jantar, que encerrava aquela quadra
elipsoidal, o local devia medir cerca de dezoito metros de diâmetro
superior e mais nove de diâmetro inferior, ou largura máxima. O tecto,
de uns treze metros, totalmente abobadado, pareceu-me mais uma prova
do vaidoso e consciencioso trabalho levado a cabo por Herodes na
fortaleza.
Mas a minha surpresa foi ainda maior quando, ao afastar as cortinas
que dividiam o tricclinium do despacho, uma cascata de luz nos inundou a
todos. Em vez de uma grande janela, gémea da existente no outro
extremo do salão, os arquitectos tinham aberto no tecto uma clarabóia
rectangular com mais de três metros de lado, fechada com uma única
chapa de vidro.
O sol, no zénite, entrava em vagas, proporcionando à acolhedora sala
uma luz e um suave calor que agradeci profundamente. No centro estava
posta uma mesa circular – de apenas quarenta centímetros de altura -,
coberta com uma toalha de linho branco, e presidida por um centro de
fragrantes flores de laranjeira, cidreira e limoeiro. Em redor da mesa, e
espalhados pelo soalho, amontoava-se um bom número de coxins ou
almofadões, cheios de penas, que serviam habitualmente para assento ou
reclinatório. A abside que formava a parede do triclinium – também
revestido a madeira de cedro – apresentava meia-dúzia de candeias ou
lâmpadas de azeite (então apagadas).
E na zona que não era mais que o prolongamento da parede onde eu
contemplara o busto de César, descobri uma estreita porta,
magistralmente dissimulada entre os veios dos painéis de cedro. Por ali,
precisamente, foram aparecendo quatro ou cinco escravos, todos eles
vestidos com curtas túnicas cor de marfim. Segundo parecia, eram da
Síria, excepto um gaulês, de comprida cabeleira loura. Durante a
refeição, Pilatos confessar-me-ia que aquele belo mancebo era uma jóia.
Depois de muito regatear tinha conseguido comprá-lo no mercado de
escravos de Jerusalém, pela nada subestimável quantia de mil sestécios
(uns duzentos e cinquenta denários de prata). Cada um daqueles servos
era portador de um alguidar ou lava-pés de cobre, tendo dentro um
pequeno apoio de madeira que servia para assentar a planta do pé,
tornando assim mais cómoda a lavagem. Depois do ritual obrigatório,
Pilatos sugeriu-me que não calçasse as sandálias. Ele e o centurião
tinham feito o mesmo. De início, não compreendi, mas Pilatos, sorrindo e
apontando o sobrado do pavimento, esclareceu o motivo daquela
sugestão: - Terás, assim, oportunidade de experimentar por ti mesmo as
excelências do meu sistema subterrâneo de aquecimento, que tanto te
preocupa... Ao pisar a madeira de cipreste comecei a sentir,
efectivamente, um calor muito subtil e reconfortante.
Sinceramente, fiquei maravilhado. A canalização de água quente que
passava por baixo do pavimento transmitia ao soalho a energia calorífica
suficiente para aquecer a sala, sem necessidade de chaminés ou de
incómodas estufas.
Naturalmente, e conhecendo um pouco a especial psicologia do meu
anfitrião, não hesitei em fazer grandes elogios àquele revolucionário e
engenhoso invento, prometendo falar dele a quantos dignitários e
cortesãos tivesse oportunidade de conhecer. E, enquanto os escravos
iam colocando sobre a mesa os diferentes pratos, aproveitei aqueles
primeiros instantes do almoço para – tal como tinham por costume os
cidadãos romanos – oferecer a Pilatos e a Civilis as pequenas esmeraldas
obtidas por Cavalo de Tróia das minas de Muzol.
O Projecto, como já expus na devida altura, planeara simplificar o
meu acesso ao procurador romano, mediante esta oferta. Em princípio, a
Missão fizera-me a entrega das duas únicas pedras de fulgor verde –
como as definiu Plínio -, que deveriam ser oferecidas a Pilatos. Mas,
suspeitando que a minha liberdade de movimentos na jornada de sextafeira
pela Torre Antónia se veria muito condicionada pela vontade do
chefe dos centuriões, decidi ganhar, à margem do plano, também o seu
apreço. E nada melhor do que fazer-lhe entrega de uma daquelas
belíssimas esmeraldas, as pedras mais apreciadas pelo mundo romano
depois dos diamantes e das pérolasz.
Foi a primeira – e a única – vez que vi desenhar-se um fugaz sorriso
no rosto quase pétreo de Civilis. Pilatos, em contrapartida, mostrou-se
generoso nos agradecimentos, jurando-me pelos seus antepassados que
não esqueceria o meu rosto nem o meu nome. (Na realidade, bastava-me
que aquele espírito volúvel me recordasse, pelo menos, até sexta-feira...
) E embora o procurador tentasse imitar César em muitas das 1
Devo fazer constar que os homens do Cavalo de Tróia procuraram por
todos os meios conseguir as esmeraldas nas jazidas dos Urales, em
território soviético.
Estas minas foram já citadas pelo historiador Plínio, o Velho (que
viveu de 23 a 79 da nossa Era) na sua obra Tratado sobre as Pedras
Preciosas. Isso teria proporcionado à acção um carácter mais puro e
objectivo. Porém, os obstáculos levantados pelos Russos foram tais que o
general Curtiss decidiu alterar a origem das esmeraldas, recorrendo
então às não menos famosas minas colombianas de Muzo, cerca de cento
e cinquenta quilómetros a norte da cidade de Santa Fé de Bogotá. A cor
destas esmeraldas é mais sedosa, oleosa e aveludada que as russas, com
uma birrefringência (0,0006) e uma densidade (2,71) menores que as dos
Urales.
Cavalo de Tróia adquiriu, portanto, duas peças em forma de prisma
hexagonal, de vinte e sete gramas de peso cada e de uma belíssima cor
verde. O Projecto considerou que, embora as pedras procedessem de um
continente ainda não descoberto no ano 30, as pessoas a que iam ser
dirigidas não dispunham dos meios técnicos precisos para o averiguar.
(N. Do M.)
2 Suspeitando em alto grau de superstição do povo romano, o Cavalo
de Tróia quis oferecer precisamente as esmeraldas, já que esta gema
gozava na Antiguidade de um carisma especial. Atribuíam-lhe
propriedades curativas contra as febres permiciosas e as picadas de
animais venenosos, tão comuns nos bosques e desertos da Palestina
naqueles tempos.
(N. do M.)
suas formas e actuações – especialmente naquelas que tinham uma
ressonância pública -, no momento de comer, distava muito da extrema
sobriedade de Tibério.
A refeição leve que os escravos tinham começado a servir era
constituída, entre outras ninharias, por ouriços do mar e ostras trazidas
expressamente dos viveiros artificiais do lago Lucrina; galinhas
engorduradas sobre empadas de ostras e outros mariscos, como aqueles
a que Pilatos chamava bolotas do mar (negras e brancas). E tudo isto
como entrada.
O quarto, quinto e sexto pratos foram ainda mais sofisticados:
lombinho de corço, pássaros fritos em farinha e qualquer coisa que nunca
eu tinha visto: teta e empadas de teta de porca. E, como final, moreia,
proveniente do estreito de Gades (Cádis) e tâmaras mergulhadas numa
negra e doce calda siciliana. Aquele banquete foi permanentemente
regado com o vinho que José trouxera, bem como por outros não menos
apreciáveis, de Lesbos e Chios.
Dada a época do ano e a longa viagem que tinham suportado as
ostras e os restantes mariscos, procurei não os comer, desculpando-me
perante Pilatos com uma imaginada e aguda enfermidade gástrica. Como
contrapartida, vi-me na penosa obrigação de saborear aquelas tetas de
porca...
Entre gargalhadas e gracejos, Pilatos perguntou-me se tivera
oportunidade para saborear manjares como aqueles na mesa de Tibério,
em Capri. Naturalmente – e com grande regozijo da sua parte – comentei
que a frugalidade de César estava a matar à fome os seus amigos e
astrólogos.
Numa oportuna e rápida intervenção do módulo, Eliseu completou a
informação, recordando-me alguns dos pratos favoritos de Tibério e que
o Pai Natal tinha extraído da História Natural, de Plínio, o Velho (XIX,
23 e 28): Quase exclusivamente vegetais e, em especial, uns espargos e
pepinos que o seu hortelão cultivava em caixotes com rodas, para as pôr
ao sol ou à sombra, conforme o tempo. Também comia rábanos, que
mandava vir da Germânia. Estes vegetais foram motivo de frequentes
disputas com seu filho Druso II, porque este se negava a comê-los.
O imperador era igualmente um fanático da fruta. As pêras eram as
suas favoritas. Tibério vangloriava-se de ter na sua vila do Tibre a
árvore mais alta do Mundo. A sua sobriedade chegava ao extremo de
beber – já na sua velhice – um vinho ácido de Sorrento, parecido com o
chacoli basco.) Depois de lhe ter exposto estes pormenores da dieta
diária do César, Pôncio Pilatos – que não estava muito bem informado
quanto a este ponto – exclamou, depois de largar um longo e cavernoso
arroto: - Por Júpiter!... Tibério bebe vinagre. Compreendo agora porque
não precisa de médicos. Eu tinha ouvido falar do seu sentido de humor,
mas não imaginava que, além disso, gostasse de sofrer...
E servindo-se de uma daquelas gordurentas empadas de teta de
porca, começou a rir às gargalhadas, ao mesmo tempo que fazia um sinal
ao escravo gaulês para que lhe trouxesse um gomil. O mancebo esperou
que o seu amo lavasse as mãos e, como se se tratasse de um costume
natural, inclinou-se para o procurador, oferecendo-lhe a sua comprida e
sedosa cabeleira. Pilatos, sem sequer o olhar, foi-se enxugando com o
cabelo do escravo.
José e eu trocámos um olhar de repugnância.
Mas Pilatos centrara o tema da conversa no conhecido sentido de
humor do seu imperador e pediu-me que lhe contasse alguns dos últimos
gracejos e anedotas protagonizadas por Tibério.
Aquilo apanhou-me tão de imprevisto que por pouco não me custava
um sério percalço com o procurador. E, embora sabendo que o que ia
contar-lhe mais se devia à lenda e invenção popular que ao rigor
histórico, recorri a uma anedota que circulou por Capri naqueles anos de
desterro voluntário do César. - Conta-se – comecei, esperando que Eliseu
me oferecesse nova documentação – que, ainda não há muito tempo, o
imperador muito se assustou com um pescador da ilha, quando este se
aproximou dele para lhe oferecer um peixe.
Tibério, com a crueldade que o caracteriza, mandou que lhe
esfregassem o peixe na cara. E, entre os ais de dor, o pescador – que
devia ter um humor tão especial como o do César – felicitou-se por não
lhe ter oferecido uma lagosta... Ao ouvir isto, o imperador – cumprindo o
humorístico comentário do seu súbdito
- pediu que lhe trouxessem uma lagosta com uma carapaça eriçada
de espinhos e esfregou-lha na cara. - Pilatos assentiu com a cabeça,
exclamando:
-Tibério é assim!...
Por aquela altura, o Pai Natal memorizara já outros casos; alguns,
reflexos fiéis do profundo desprezo que Tibério sentia pelos seus
semelhantes. E, embora correndo o risco de que Pilatos os conhecesse,
comecei a relatá-los:
- Também se conta, admirado procurador, que, em certa altura, o
imperador recebeu uns embaixadores de Tróia que tinham vindo
exprimir-lhe os pêsames pela morte do filho de César. Como estes
troianos chegassem com bastante atraso, Tibério respondeu-lhes: Eu,
pela minha vez, vos dou os pêsames pela morte do vosso gloriosíssimo
cidadão Heitor...
Pilatos bebeu a sua milésima taça de vinho, recostando-se mais
ainda nos fofos almofadões de penas, fazendo-me um sinal para que
continuasse. - Em Roma corre também outra história.
Certa vez, Tibério deu um banquete, e os convidados, ao entrarem
no triclinium observaram que em cima da mesa só havia meio javali.
César, então, observou-lhes que meio javali tinha o mesmo sabor de um
javali inteiro.
Tal como começava a pensar, os vapores do vinho e a comezaina não
tardaram a fazer efeito. E subitamente Pilatos, que tentava aguentar a
cabeça na palma da mão direita, começou a cabecear.
Em tom mais baixo, contei o que seria a última história:
- Houve vezes em que aquele humorismo disfarçava uma terrível
crueldade. Foi este o caso de um acontecimento ocorrido pouco depois
de ser nomeado imperador. Como sabeis – prossegui, sem perder de vista
os cabeceios do governador -, quando Augusto morreu deixou no
testamento um importante legado económico que Tibério foi
distribuindo pouco a pouco. Pois bem, certo dia calhou passar um enterro
em frente do Capitólio. E um dos presentes aproximou-se do cadáver,
fingindo falar-lhe ao ouvido. Tibério estranhou, e perguntou-lhe porque
fizera aquilo. O brincalhão disse-lhe que pedira ao morto que
transmitisse a Augusto que ele ainda não recebera. Tibério ficou
vermelho de fúria e deu ordem para que o matassem, para que fosse ele
próprio a levar o recado ao falecido imperador Augusto (1).
Ao concluir a minha narrativa, já Pôncio Pilatos jazia – de barriga
para cima – mergulhado num profundo sono.
E silenciosamente, a conselho do centurião, abandonámos a sala de
jantar, enquanto um dos servos – cumprindo, segundo parecia, outra
obrigação rotineira – iniciava uma mais que penosa tarefa: esgravatar
com uma pena nas fauces do seu senhor, a fim de lhe provocar o vómito...
e, assim, poder desfrutar as delícias da refeição seguinte.
Já no vestíbulo, e quando nos dispúnhamos a despedir-nos de Civilis,
um outro centurião nos saiu ao caminho. Em latim, e quase ao ouvido,
comunicou-lhe qualquer coisa. O chefe dos centuriões não respondeu às
palavras do seu companheiro.
Hesitou um instante e, por fim, voltando-se para nós, procurou
desculpar-se, informando-nos de que o tribuno da legião – destacado
também com ele e os seus homens desde Cesareia – o aguardava para
proceder à execução de uma sentença. Aquilo era igualmente novo para
mim, e senti uma grande curiosidade.
Mas, sem que chegasse sequer a abrir a boca, Civilis – que parecia
ler os pensamentos de quantos o rodeavam – deve ter captado os meus
desejos e, dirigindo-se a José, disse-lhe, com ar de ironia e desprezo
pela sua condição de judeu: - Se assim o desejardes, podereis agora
presenciar mais uma prova da justiça do povo romano...
Nem o ancião nem eu tínhamos ideia do que fosse. Mas a voz do
centurião soara quase como uma ordem e apressámo-nos a segui-lo. Na
companhia do outro oficial, desceu a escadaria de mármore, dirigindo-se
para a direita do pátio com arcada. Este encontrava-se deserto, com
excepção daquele legionário que continuava a carregar um pesado saco
em cima do pescoço e dos ombros e da sentinela que continuava a seu
lado. Onde estava o resto da tropa?
Não tardei a esclarecer as minhas dúvidas.
Ao passar por uma das portas da ala norte do pátio encontrámo-nos
de repente num terreiro de pouco mais de trezentos pés de
comprimento por cento e cinquenta de largura.
Aquele lugar, totalmente coberto de areia branca muito fina,
encontrava-se dentro do recinto da fortaleza, ocupando boa parte do
seu lado norte. O recinto estava perfeitamente cercado pelo muro
exterior da Torre Antónia e pelo conjunto de edifícios da sede romana,
nas suas restantes alas. No extremo mais oriental estavam alinhadas
umas dez tendas de campanha, ocupando a totalidade
* Algumas destas histórias foram introduzidas no computador do
módulo acompanhando os textos de Suetónio (Os Doze Césares), Tácito
(Tibère ou les six premiers livres des Annales, Paris, 1768) e Dione
Cássio (História de Roma, LVI,4).
(N. Do M.)
daquele lado do rectângulo a que nos conduzira o oficial, e que – de
acordo com o que me foi explicado – não era mais que um campo de
exercícios. As tendas, confeccionadas com pele de cabra e tingidas num
amarelo terroso, apresentavam um tecto com duas vertentes (1). Por
baixo destas tendas notava-se uma série de ripas que formavam a
armação de cada uma delas.
Segundo Civilis, a afluência daqueles milhares de hebreus à festa
anual da Páscoa obrigava-os a reforçar a guarnição de Antónia. Aquelas
tendas de campanha satisfaziam perfeitamente as necessidades dos
legionários que com ele vinham desde Cesareia. Em frente dos papilio
(nome dado a estas tendas pela semelhança das cortinas da porta de
entrada com as asas das borboletas), o exército romano tinha espetado
meia-dúzia de postes de pouco mais de metro e meio de altura. Todos
eles cheios de mossas, consequência das cutiladas que choviam nestes
troncos durante os exercícios. Algumas das espadas e lanças, com um
peso que era o dobro do dos pilum e gladius normais, encontravam-se
cravados na areia. Os escudos e capacetes nelas apoiados descansavam.
Várias centenas de legionários – todos eles de folga, a ajuizar pela
indumentária - tinham-se juntado no terreiro, formando grupos e
trocando impressões em voz baixa. Ao verem Civilis, os soldados
apressaram-se a abrir-lhe passagem, num respeitoso silêncio.
O chefe dos centuriões parou diante dos postes de treino, saudando
o tribuno e os centuriões ali reunidos. O primeiro, muito mais novo que
Civilis e de que os restantes oficiais, representava um comando
intermédio, responsável, mais que do comando táctico da legião (que era
da alçada do chefe dos centuriões), da chefia do seu regime interno.
Naquela época, no entanto, a sua importância decrescera
consideravelmente.
Uma das suas funções era, precisamente, a de iniciar a execução de
uma pena capital. O seu vestuário era praticamente o mesmo dos
centuriões, se bem que a sua toga ou capa fosse violácea e, geralmente,
não trouxesse armas. Os oficiais reuniram-se num brevíssimo conselho e,
logo a seguir, um deles deu ordem para que o réu fosse conduzido à
arena. De repente, os legionários começaram em remoinho em volta dos
dois soldados que acabavam de entrar no campo de treino. Cada um deles
carregava nos braços um bom número de paus de um metro de
comprimento. Entre empurrões, protestos e todo o tipo de imprecações,
meia centena de romanos armou-se, por fim, com os bastões. E o silêncio
caiu novamente sobre aquela massa de valentões.
Pouco depois, e pela mesma porta por onde tínhamos entrado no
terreiro, vimos aparecer um homem novo, vestido com a típica túnica dos
legionários, escoltado por duas sentinelas.
Ao chegar em frente dos centuriões, Civilis saudou-o com o braço
levantado. O condenado correspondeu à saudação e, sem mais
preâmbulos, o chefe das centúrias ordenou à custódia que o despojasse
da roupa.
* No calão popular. O facto de viver ou permanecer num
acampamento com estas características – com tendas de pele de cabra –
era conhecido entre os soldados romanos como sub pellibus esse: estar
debaixo das peles”. (N. Do M.)
De onde eu estava, atrás dos oficiais, observei como Civilis
entregava o seu bastão ao tribuno.
Enquanto uma das sentinelas segurava a lança do seu companheiro,
este, agarrando o decote da túnica, deu um forte puxão, rasgando-o até
à cintura. Imediatamente, o soldado agarrou o pano pela parte de baixo
do rasgão, abrindo-a na sua totalidade com outro puxão. Arremessou a
túnica para a areia, tratando depois de despojar o infeliz da sua tanga.
Uma vez nu a guarda e os centuriões recuaram uns passos deixando o réu
a meio do círculo formado pelos quarenta ou cinquenta legionários que
tinham conseguido uma daquelas varas. Para minha surpresa, o
desgraçado nem sequer se mexeu. O rosto empalidecera e os olhos,
muito abertos por um terror crescente, pareciam ausentes.
O tribuno aproximou-se então do sírio, tocando-lhe suavemente com
o sarmento que Civilis lhe cedera. E imediatamente, como que
empurrados por um ódio selvagem e irracional, os legionários caíram
sobre a vítima, ferindo-a entre gritos e insultos.
O jovem levou instintivamente os braços à cabeça, mas a saraivada
de golpes era tal que não tardou em vergar os joelhos, com a testa,
rosto e orelhas pisados e cobertos de sangue. Uma vez caído, aquelas
feras humanas, a suar e ofegantes, só pararam com as pauladas quando o
legionário se enrolou, num ovo, enterrando o rosto na areia.
Nesse instante, Civilis fez um sinal a um dos centuriões. E aquele
colosso – de quase dois metros de altura e com a envergadura de um urso
– abriu passagem aos empurrões entre a enlouquecida chusma. Ao veremno,
os legionários pararam nas suas arremetidas.
E o silêncio, quebrado apenas pelas agitadas respirações dos
caceteiros, reinou novamente no local. Aquele centurião – chamado
Lucílio e a quem as legiões de Pannonia tinham baptizado com o apodo de
cedo alteraml, porque mal quebrava uma vara nas costas de um soldado
pedia outra e mais outra, dizendo sempre cedo alteram -, cuja imagem já
seria difícil de apagar da minha mente, desempenharia um destacado
papel na flagelação do Mestre da Galileia...
Lucílio colocou-se a um metro do réu. Arrebatou o pau a um dos
soldados e, levantando-o acima da cabeça, vibrou um golpe seco e preciso
na nuca do condenado. Ao receber aquela pancada, a cabeça do legionário
vergou e o corpo, já sem vida, descaiu para um dos lados. O apaleamento
– fórmula habitual de execução nas legiões romanas – estava terminado.
Muitos soldados devolviam os bastões e retiravam-se lentamente do
campo de exercícios e um dos médicos ajoelhou-se diante da vítima,
apalpando-lhe o pulso.
Mas o golpe de misericórdia do gigantesco Cedo Alteram fora
decisivo, encurtando, sem dúvida, os sofrimentos do desertor. Civilis,
que não parecia absolutamente nada impressionado com aquele sangrento
espectáculo, respondeu à minha pergunta sobre a causa da execução
explicando-me que aquele legionário cometera um dos piores delitos em
que pode incorrer um soldado: o abandono do seu posto de
* A expressão cedo alteram significa passo a outra,.
guarda (1). Depois de um conselho sumaríssimo, os tribunos e
oficiais tinham decretado a sua morte. Aquele trágico acontecimento –
como já anteriormente referi – fez-me pensar sobre o que tinha lido, em
relação ao suposto abandono da guarda pelos legionários que vigiavam o
túmulo de Jesus.
E um pressentimento começou a flutuar no meu cérebro... Se as
sentinelas romanas sabiam o que as esperava, caso desistissem da missão
que lhes fora confiada, como conciliar então aqueles comentários de
numerosos exegetas católicos que afirmam que as sentinelas fugiram,
aterrorizadas? (Mais uma vez, os factos registados naquele amanhecer
de domingo não iam coincidir com estas justificações teológicas, tão
apressadas quanto falhas de rigor.) Ao passar novamente pelo pátio com
arcadas e ao ver aquele legionário com o pesado fardo às costas, não
pude resistir à tentação e interroguei o centurião, que nos acompanhava
já até ao túnel de saída da Torre Antónia. Civilis esclareceu-me que se
tratava da ignominia ou castigo menor.
Por causa de alguma falta – que o oficial não me pormenorizou -
aquele soldado fora castigado a permanecer durante todo um dia com
uma carga de terra em cima das costas. (Eliseu confirmaria que aquele
tipo de penalizações tinha sido inventado pelo anterior imperador
Augusto.) A soldadesca voltara às suas tarefas habituais. Alguns,
sentados em bancos de pinho, debaixo das arcadas, esforçavam-se na
limpeza dos cinturões e espadas ou consertavam as sandálias. Recordo
que, ao ver o calçado de um daqueles soldados, chamou-me à atenção a
sola. Peguei numa das sandálias e, ante o olhar atónito do seu
proprietário contei os pregos que nela estavam cravados.
Catorze! Faziam um S partindo do calcanhar e enchendo
praticamente a totalidade da sola. (Como também registei, aquele
mortífero calçado ia originar dolorosas lesões no corpo de Jesus de
Nazaré.)
Deviam ser três da tarde quando, depois de recuperar a minha vara
de Moisés e saudar Civilis, José e eu atravessámos a ponte levadiça,
dando por concluída aquela agitada e instrutiva visita à residência oficial
de Pôncio Pilatos.
Ao ver-nos entrar na mansão de José, o saduceu a quem eu pedira
que seguisse os passos de Judas o Iscariotes, e que nos esperava desde
um pouco depois da hora sexta (as doze do meio-dia), beijou-nos na face
em sinal de boas-vindas.
Ismael ben Phiabi I, descendente daquele que fora sumo sacerdote
Simão e também saduceu2 – a quem nunca poderei agradecer todas as
* O apaleamento ou castigario era uma execução solene, quc se
aplicava mesmo a oficiais. Nela incorriam todos aqueles que
abandonassem o seu posto de guarda, os que se entregavam à pilhagem
nas casas e povoações por onde passava a legião, os que se revoltavam
contra os seus chefes, os homicidas, ladrões, os que perdiam as suas
armas, os que reincidiam pela terceira vez na mesma falta, os que
atentavam contra o pudor ou os que eram responsáveis de negligência
nos postos de sentinela da noite. (N do M.)
2 Simão. Filho de Boetos. Fui sumo sacerdote em Jerusalém, entre
os anos 22 a antes de Cristo. Um irmão de Ismael – também do poderoso
e abastado grupo dos Saduceus – seria sumo sacerdote por volta de 61
depois de Cristo. (N. Do M.)
informações e toda a sua lealdade – acomodou-se no pátio onde
tivera lugar o almoço com Jesus e os gregos e, depois de falar a José
nos antecedentes da missão que lhe confiara, começou a contar-nos o
que acontecera no templo. (O de Arimateia – tal como me dissera Ismael
no Átrio dos Gentios – era mais um dos amigos e discípulos de Jesus que,
como era natural, conhecia as irregularidades de Judas como
administrador do grupo, bem como a sua cada vez mais aberta oposição
às ideias sobre a natureza do reino que o Mestre pregava.) No fundo,
reconheceu Ismael, aquele encontro comigo fora obra da Providência.
Enquanto se dirigia para o interior do Templo, em busca de informação o
saduceu foi amadurecendo um plano que, ao expô-lo a José, este
imediatamente aprovou.
A demissão daqueles dezanove membros do Sinédrio – entre os
quais se encontrava – fora, talvez, uma medida muito precipitada. Os
adeptos do Mestre conheciam o deereto de perseguição e captura de
Jesus e não tardaram em lamentar aquele abandono em massa do
supremo órgão de Justiça.
Sem um homem de confiança que pudesse vigiar de dentro os passos
do Sinédrio, a segurança do Rabi da Galileia e de todo o grupo via-se
gravemente comprometida. Era preciso que alguém simulasse o regresso
ao conselho dos setenta e um, actuando como espião. E aquela – meditou
Ismaelpodia ser a melhor altura para apertar a vigilância a José, o
Caifás, e aos seus partidários.
- Assim, enchendo-me de coragem – prosseguiu Ismael – dirigi-me
aos aposentos do sumo sacerdote, solicitando uma entrevista com ele, e,
conhecendo como conheço a extrema vaidade e cobiça de Caifás, fui
buscar uma taça de ouro e prata (1).
Não foi muito difícil – principalmente, pôr nas suas mãos aquele rico
presente – convencer Caifás das minhas honestas intenções de voltar ao
seio do Sinédrio. Depois de profundas reflexões, disse-lhe, acabei por
compreender que estás com a razão: é blasfemo que este galileu ande
pregando a ressurreição dos mortos... O sumo sacerdote alegrou-se com
esta minha decisão, recomendando-me que advogasse junto dos outros
dissidentes para que me seguissem o exemplo. Graças a tal astúcia,
queridos amigos, pude ter acesso nesta mesma manhã a uma reunião
informal de Caifás com o Sinédrio e em que, sem que o suspeitasse,
Judas ia ser um dos protagonistas...
Ismael fez uma pausa e, agarrando-me as mãos entre as suas,
acrescentou: - E tudo te devemos, irmão Jasão. Que Deus, bendito seja
o Seu nome, te abençoe. No mais íntimo do meu ser começou a nascer, no
entanto, uma incómoda incerteza. Que acontecera naquela manhã no
Templo? Porque me agradecia Ismael tão efusivamente a minha ideia de
seguir Judas? - Uma hora depois da terceira (pelas dez da manhã), como
vos dizia,
* Eu sabia, pela documentação de Flávio Josefo (Antiguidades,
XIII), que os saduceus utilizavam e comiam em utensilios de ouro e de
prata. Uma vez que negavam a ressurreição dos
mortos, procuravam gozar ao máximo a vida terrena. Nesta atitude
se notava uma clara influência helenística. Por seu lado, Caifás tinha ou
compartilhava as ideias dos Saduceus.
(N. do M.)
a quase totalidade do Sinédrio reuniu na sala das pedras talhadas.
Durante um bom momento, os ali reunidos discutiram a natureza das
acusações contra Jesus e, especialmente, a forma de prisão e o processo
a seguir para o conduzir junto da autoridade romana e garantir a
execução da sentença de morte.
Este último ponto é o que ainda preocupa Caifás e os escribas e
fariseus. Sabem que o procurador não é homem fácil e não conseguiram
estabelecer acordo sobre os argumentos jurídicos que deviam
apresentar-lhe. Segundo averiguara Ismael, na noite anterior – a de
terça-feira enquanto Jesus e os seus discípulos regressavam de
Getsémani – o Sinédrio voltara a reunir, analisando o último discurso do
Galileu no adro do Templo. Todos – por este ou aquele motivo –
ratificaram as anteriores decisões do conselho, pressionando Caifás
para que procedesse de imediato e sem mais demoras à prisão de Jesus
de Nazaré.
Suspeitando que o Rabi da Galileia não se apresentasse no Templo
no dia seguinte, quarta-feira, o sumo sacerdote e os conselheiros
prepararam uma nova e mais preciosa ordem aos levitas para que a
captura tivesse lugar antes de sexta-feira.
No entanto, uma pergunta ficou no ar: como prender o impostor sem
excitar as massas e, principalmente, sem provocar a guarnição romana,
responsável pela ordem em Jerusalém? O grupo dos saduceus mostrouse
muito mais radical que o dos escribas e fariseus: votaram pelo
assassínio do Rabi. Contudo, os fariseus recusaram a proposta por a
considerarem muito arriscada. - Dizes que na assembleia desta manhã –
interrompi o saduceuvoltaram a ser expostas as acusações contra o
Mestre... - Assim foi.
- Poderias concretizar-mas?
- Para os fariseus, os motivos são diferentes dos apresentados
pelos saduceus. Baseiam-se no seguinte: primeiro, temem Jesus porque
são muito conservadores e não desejam que as pessoas lhes retirem o
seu velho prestígio como mestres em religião segundo, defendem que
Jesus é transgressor da lei e afirmam que violou o sábado e muitas
outras cerimónias sagradas; terceiro, consideram uma blasfémia que se
autoproclame Filho do Divino; quarto e último, sentem-se ofendidos pela
última denúncia do Rabi no Templo. Quanto aos saduceus.
Os seus desejos de ver morto o nosso Mestre baseiam-se nisto:
primeiro, temem que a crescente simpatia do povo por Jesus ponha em
grave perigo a existência da nação porque os Romanos, dizem, nunca
aceitarão um movimento revolucionário como aquele que Jesus parece
pregar; segundo, a estranha doutrina do Rabi da Galileia, que prega a
irmandade entre todos os homens, parece-lhes um insulto. São eles os
únicos responsáveis pela ordem social e temem perante tal corrente
filosófica; terceiro, a limpeza do Templo que o Mestre levou a cabo,
provocando o derrube das mesas dos cambistas e a sua retirada do átrio
esgotou-lhes a paciência.
Segundo as minhas notícias, as suas perdas económicas foram muito
avultadas... Como calculo que saibas, tanto Caifás como seu sogro, Anás,
têm parte no negócio dos intermediários e cambistas de moedas...
Mesmo que o Mestre fosse o autêntico libertador de Israel, o sumo
sacerdote tem o seu coração afogado pelo ódio e pelo ressentimento e
não descansará enquanto não o eliminar.
Ismael fitou José com profunda tristeza e acrescentou:
- A Sua sorte está lançada.
Tentei que a conversa não se desviasse e supliquei ao saduceu que
nos informasse quanto ao que se passara naquela manhã.
- Já vereis: segundo as minhas averiguações, durante a terça-feira,
Judas teve uma reunião com alguns dos seus amigos e parentes. Entre os
primeiros encontravam-se saduceus, íntimos da família de seu pai. E
foram estes os que o animaram a dar o passo que, fatidicamente, acaba
de dar. O Iscariotes tinha-lhes dito que, depois de muito meditar,
chegara à conclusão de que a sua permanência no grupo de Jesus tinha
sido um erro.
- Porquê? - voltei a interrompê-lo, ardendo em desejos de conhecer
as verdadeiras razões que tinham levado Judas ao seu acto. - Segundo
disse, o Mestre era apenas um idealista, um sonhador bem-intencionado,
mas não o esperado libertador de Israel. E acrescentou que a sua
obsessão era encontrar maneira de se retirar daquele movimento de
modo honroso.
Esta confissão de Judas foi habilmente aproveitada pelos saduceus,
que lhe falaram ao coração, garantindo-lhe que a sua renúncia seria
muito bem acolhida pelos dignitários sacerdotais. E chegaram a
prometer-lhe, mesmo, grandes honras e reconhecimento público,
bastante para elevar o seu prestígio entre os Hebreus e apagar aquela
infeliz associação com os pouco cultos galileus...
(Aquela armadilha foi a perdição de Judas. Conhecendo o seu agudo
sentido do ridículo e a sua ambição irrefreável, as promessas de honras,
dignidades e reconhecimento público desencadearam irreversivelmente a
sua já antiga decisão de desertar do grupo de Jesus. Curiosamente – e
creio que este ponto é de extrema importância -, Judas não pensou no
ouro na altura de vender o seu Mestre.
Aquilo foi uma mera consequência. Se pensarmos com
objectividade, que importância poderiam ter para ele trinta moedas de
prata quando, justamente, era o tesoureiro do grupo e dispunha e
administrava o dinheiro de todos havia três anos? Devo lembrar a este
respeito que, antes da entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, na
manhã de domingo, o Iscariotes – num gesto de perfeita honradez – pôs
a bolsa comum nas mãos de Simão, o Leproso. Se Judas tivesse o
dinheiro como única razão para trair, o mais lógico seria que, com a sua
fuga, se tivesse apoderado de todo – ou parte – do fundo económico do
movimento, de que era administrador.
Como iremos vendo, as motivações do apóstolo eram muito
diferentes e muito mais profundas.)
.. Judas confessou aos seus parentes e amigos estar convencido de
que a missão do seu Mestre não poderia prosperar. Enfrentar assim os
poderosos membros do Sinédrio só podia acontecer com um louco e ele,
segundo as suas próprias palavras, não queria perecer às mãos da justiça
judaica ou romana.
- No fundo – comentou Ismael, que conhecia muito bem a tortuosa
personalidade do traidor -, o que Judas não parece suportar é que seja
identificado um dia com um movimento fracassado...
A estas manifestações do saduceu atrevi-me a acrescentar um
facto – já comentado por mim anteriormente – que, também, na opinião
dos meus amigos, fora decisivo para compreender o comportamento de
Judas. Referi-me ao incidente do frasco de perfume que Maria
derramou sobre Jesus e a dura crítica que o Mestre lhe fez, e tanto
José como
Ismael – repito – concordaram que, logo nessa altura, a mente do
susceptível discípulo começara a maquinar a forma da sua vingança.
.. Sim – respondeu José -, Judas é um homem vingativo. Em minha
opinião, nunca perdoará ao Mestre que não o distinguisse dos restantes,
tal como fizera com João, Pedro e Tiago. É provável
- lamentou o ancião – que os tortuosos ressentimentos de Judas se
dirijam tanto contra Jesus como contra esses três companheiros.
- O caso é que, depois da reunião do Sinédrio – continuou o saduceu
– Caifás ordenou a entrada na sala de Judas e de um dos seus familiares.
Segundo entendi, tratava-se de um primo seu. Este, a pedido do
Conselho, foi o primeiro a falar. Apresentou Judas, aborrecendo-nos a
todos com uma longa discursata, em que quis justificar a decisão de seu
primo de abandonar o grupo do Galileu. Afirmou que Judas tinha
descoberto o erro e desejava fazer uma renúncia pública da sua
associação com Jesus. Em troca, solicitava o perdão, a confiança e a
amizade dos altos dignitários ali reunidos. E, como prova da sua
sinceridade, o porta-voz de Judas explicou que o seu parente estava
disposto a facilitar a prisão silenciosa e secreta do Nazareno, evitando
assim o perigo de uma revolta da multidão e um novo e possível atraso na
sua captura, como consequência da iminente festa da Páscoa.
Aquelas últimas afirmações do primo de Judas animaram
extraordinariamente os membros do Sinédrio, que viam assim uma nova
luz para proceder à prisão do impostor.
Caifás, então, convidou Judas a que ratificasse o que acabávamos de
ouvir. E o traidor, dando uns passos na direcção da presidência,
respondeu com tanta firmeza quanto frieza. Farei o que prometi a meu
primo. Quero que Jesus fique sob a vossa custódia. Em troca, peço-vos
um reconhecimento público...
(Aquela palavra – custódia – repetida várias vezes por Ismael, ia
ser de extrema transcendência para Judas. A sua insistência no
momento de exigir a custódia do Mestre não era gratuita. Como veremos
na altura própria, além da profunda desilusão do traidor em relação aos
sacerdotes, Judas nunca pensou que o seu Mestre fosse executado, mas
sim simplesmente encarcerado ou posto sob custódia.) . Creio que o
traidor – prosseguiu Ismael, visivelmente desiludido – não notou o olhar
de desprezo de Caifás. Se Judas se tivesse apercebido da armadilha que
lhe preparavam, provavelmente não teria aceitado aquela situação...
Mas o astuto Caifás não deixou transparecer as suas verdadeiras
intenções e, evitando as propostas de Judas, respondeu-lhe: Tu terás de
combinar com o chefe dos levitas a maneira de trazermos esse Galileu
ainda esta noite ou, no máximo, amanhã, quinta-feira, depois do pôr do
Sol. Quando nos for entregue, receberás a tua recompensa.
Ao escutar as palavras do sumo sacerdote, os olhos de Judas
brilharam com uma luz especial. Sentia-se satisfeito e assim o
manifestou publicamente. Depois saiu da sala, para ter uma longa
entrevista com o chefe da guarda do Templo. Eu não pude retirar-me do
conselho do Sinédrio, mas, dali a pouco, soube que os levitas, seguindo as
instruções do traidor, tinham marcado a prisão do Mestre para a noite
de quinta-feira, uma vez que os peregrinos e habitantes de Jerusalém se
retirariam para suas casas. Pelo próprio Judas, os levitas tinham sabido
que o Nazareno se encontrava ausente do acampamento de Getsémani e
que, por consequência, não podendo conhecer com exactidão o momento
do regresso do Mestre, a sua captura fora adiada para a noite seguinte.
Com o fim de combinar melhor os pormenores sobre o local e
momento adequados da prisão, o chefe da guarda judaica pedira a Judas
que se apresentasse no Templo durante a manhã do dia seguinte.
Preparada a captura secreta de Jesus, os sacerdotes ali reunidos
respiraram aliviados, felicitando-se mutuamente pela inesperada e
providencial presença daquele renegado. E ali mesmo, depois de uma
breve discussão, Caifás estabeleceu o preço da compra de Jesus: trinta
seqel de prata (1). Alguns dos saduceus, acreditando que o Sinédrio ia
cumprir a sua promessa de glorificar Judas, consideraram que aquele
dinheiro era excessivo. Porém, o sumo sacerdote fez-lhes ver e
compreender que não eram essas as suas intenções...
Um silêncio desolador pôs ponto final àquela reunião em casa de
José de Arimateia.
Como muito bem dissera Ismael, a sorte do Mestre estava traçada...
a não ser, claro, que aqueles dois homens actuassem de imediato.
Antes de seguirem para o acampamento de Getsémani, José e
Ismael travaram uma discussão que me fez tremer. Pela primeira vez no
decorrer da minha missão, a minha intervenção – apesar de todas as
precauções – estava prestes a provocar algo de irremediável. Tanto o de
Arimateia como o saduceu consideravam que era preciso desmascarar
Judas e alertar todo o grupo. A sua preocupação era totalmente
compreensível. No entanto, e num último esforço para não alterar os
acontecimentos, tentei dar-lhes a entender que aquela não era a atitude
mais inteligente.
- Estou de acordo – disse-lhes – com o vosso honrado desejo de
avisar o Mestre, mas, que ganhais em tornar pública a traição de
Iscariotes?
Nem o ancião nem Ismael pareciam compreender-me. E vi-me
obrigado a recorrer a um argumento que acabou por ser aceite por
ambos.
- Sabeis da velha inimizade e dos ciúmes de Judas para com homens
como João, Pedro e Tiago. Se estes chegassem sequer a suspeitar do que
o seu companheiro acaba de planear, que pensais que aconteceria?...
Os meus amigos concordaram em silêncio.
- Falai em segredo com o Mestre – prossegui -, se assim o achais,
mas não sobrecarregueis o já tenso ambiente do grupo. Deixai que seja
Jesus – concluí – que fale com Judas, se o considerar prudente. O Rabi
ama também o Iscariotes e saberá o que deve fazer-se... Depois de uma
acalorada discussão, Ismael e José aceitaram a minha 1 Quero chamar a
atenção para a palavra compra, porque, tal como veremos mais adiante, o
seu significado pode ter aberto uma via de solução ao problema da
captura de Jesus e ao desespero de Judas. (N. Do M.)
proposta e os três, aproveitando a última claridade do dia,
encaminhámo-nos para a encosta do monte das Oliveiras. O ancião e o
saduceu, apenas com a finalidade de falar com Jesus de Nazaré e eu,
com a alma
apertada ante a possibilidade de que o meu excesso de zelo a seguir
os passos de Judas pudesse provocar uma catástrofe.
Quando entrámos no acampamento, as mulheres tinham preparado
uma reconfortante fogueira. Jesus ainda não tinha voltado e os
discípulos, inquietos e mal-humorados, iam e vinham, censurando-se
mutuamente pela sua falta de decisão por não terem escoltado o Mestre.
Pedro, mais agitado que os outros, chegou a alvitrar que um grupo de
homens armados saísse à sua procura. Mas André – com a sua habitual
serenidade – lembrou-lhes as palavras do Rabi, fazendo-lhes ver que se
ele dissera que nenhum homem lhe poria as mãos em cima antes de ter
chegado a sua hora, assim deveria ser.
Enquanto esperávamos o regresso de Jesus e João Marcos David
Zebedeu uniu-se ao grupo que José de Arimateia, Ismael ben Phiabi e eu
formávamos e, em grande sigilo, comunicou-nos que os seus agentes em
Jerusalém o tinham informado já da conjura que se preparava para
acabar com a vida do Mestre. Olhámo-nos sem saber que fazer.
Mas José conhecia de há muito a especial discrição que distinguia
aquele astuto discípulo e tranquilizou-nos. Com grande alívio da minha
parte, a reunião de Judas com o Sinédrio fora transpirando e os homens
que trabalhavam para Zebedeu não tardaram em informá-lo. Havia anos
que o grupo de Jesus dispunha de uma curiosa rede de correios ou
emissários – organizados e dirigidos por David Zebedeu -, cujo trabalho
era a transmissão de notícias. Desta forma, os numerosos amigos,
familiares e simpatizantes do movimento estavam a par das mensagens e
ensinamentos que emanavam de Jesus ou dos seus homens. David fora
vendo como as relações do seu Mestre com os membros do Sinédrio se
deterioravam gradualmente e, por sua iniciativa, naquela quarta-feira
decidira montar no acampamento de Getsémani um corpo especial de
mensageiros. Tal como Lázaro e suas irmãs, aquele judeu de pensamento
claro e grande valentia parecia ter entendido muito melhor que os
apóstolos qual ia ser o fim de Jesus. No entanto, nunca o vi expor estes
temores perante os restantes íntimos do Nazareno. E, seguindo esta
mesma discreta conduta, David comunicou-nos as suas impressões
pessimistas, dando-nos igualmente a saber que – na previsão de males
maioresum dos seus correios, enviado por ele uns dias antes à povoação
de Betsaida (ao norte do lago de Genazaré), dera recado a sua mãe e a
Maria, mãe de Jesus, para que viessem imediatamente a Jerusalém.
O mensageiro voltara pelas quatro da tarde de quarta-feira,
comunicando a Zebedeu que as mulheres e parte da família do Galileu
vinham já a caminho e talvez entrassem no acampamento naquela mesma
noite ou, o mais tardar, pela manhã de quinta-feira. José agradeceu em
nome de todos a confiança que David demonstrara ao pôr-nos ao
corrente destes pormenores e, em compensação e suplicando-lhe que
mantivesse a boca fechada, confirmou as notícias do Zebedeu sobre a
traição de Judas.
Mas a nossa conversa viu-se subitamente interrompida por uma
crescente agitação entre os discípulos que deambulavam pelo horto.
André precipitou-se para nós, lançando-nos num grito:
- Correu a notícia de que Lázaro fugiu de Betânia.
David sorriu, ironicamente. E quando André se afastou, comentou
com tristeza:
- Não vos alarmeis. Foi um dos meus mensageiros quem levou a
notícia a Lázaro de que o Sinédrio se preparava para o prender ainda
hoje.
Tem ordem para se dirigir a Filadelfia e refugiar-se em casa de
Abner.
Não achei oportuno perguntar quem era Abner, embora imaginasse
tratar-se de um dos adeptos de Jesus na Pereia, do outro lado do
Jordão.
José ficou muito impressionado. Considerava muito o ressuscitado e,
ao conhecer o sucedido, começou a avaliar – em toda a sua dimensão – a
gravíssima resolução de Caifás e dos seus sacerdotes de prender o
Mestre. Mas, dominando-se, esperou pacientemente pela chegada de
Jesus.
Ia bem adiantada a noite quando o Gigante e João Marcos voltaram
ao acampamento, tão sós quanto tinham ido. Jesus desatou o lenço que
atara em volta da cabeça e, apresentando um excelente humor saudou os
amigos, sentando-se junto do fogo tal como era seu hábito.
Mas o acolhimento não foi muito caloroso. Aqueles homens estavam
demasiado assustados e confusos para apreciarem os gracejos do
Mestre. No fundo, tinham-se habituado à Sua presença e aquele dia, sem
ele, fora-lhes extremamente longo e vazio. Jesus notou imediatamente o
ambiente tenso e as caras aborrecidas. No entanto, ninguém se atreveu
a perguntar-lhe. Nem um só teve coragem para Lhe contar o que se dizia
sobre a precipitada fuga de Lázaro...
Apesar disso, o Galileu procurou por todos os meios desfazer aquele
ambiente carregado e, durante um bom pedaço, interessou-se pelas
famílias dos discípulos. Ao chegar a David Zebedeu, Jesus foi muito mais
concreto, interrogando-o quanto a sua mãe e irmã mais nova.
Mas David, baixando os olhos para o chão, não respondeu. Era
evidente que o chefe dos correios – que não paravam de entrar e de sair
do acampamento – não queria afligir Jesus, anunciando-lhe que dera
ordens para que Maria e a sua restante família viessem a Jerusalém.
Naquele instante, ao observar a extrema delicadeza do discípulo,
senti uma grande simpatia por ele. Aquele sentimento acabaria por se
transformar em admiração, ao ver o seu comportamento nas duras horas
que se seguiram à prisão de Jesus. Aquele homem, precisamente, e o seu
corpo de mensageiros, iam constituir durante os negros dias que se
aproximavam o cérebro e o coração do atormentado grupo...
Vendo que as últimas horas não estavam a ser tão íntimas e
familiares como desejava, o Mestre, fazendo uso da palavra, disse-lhes:
- Não deveis permitir que as grandes multidões vos enganem.
As que nos ouviram no Templo e pareciam acreditar nos nossos
ensinamentos, essas, precisamente, escutam a verdade superficialmente.
Muito poucos permitem que a palavra da verdade lhes atinja com força o
coração, lançando raízes de vida. Os que só conhecem o evangelho com a
mente e não o experimentam no coração não podem ser de confiança
quando chegam os maus momentos e os verdadeiros problemas.
Quando os dirigentes dos Judeus chegarem a um acordo para
destruir o Filho do Homem, e quando seguirem uma só orientação, vereis
então como essas multidões fogem consternadas ou se afastam para um
lado em silêncio.
Então, quando a adversidade e a perseguição descerem sobre vós,
ireis ver como outros (que pensáveis que amavam a verdade) vos
abandonam e renunciam ao evangelho. Haveis descansado hoje como
preparação para estes tempos que se avizinham. Vigiai, portanto, e rogai
para que, pela manhã, possais estar fortalecidos.
Ao ouvir aquelas últimas palavras, Judas – que tinha regressado ao
acampamento pouco antes de nós – levantou o olhar e fitou Jesus
fixamente. Mas, com excepção de David Zebedeu e de nós os três,
nenhum dos discípulos associou aquela advertência com a iminente
deserção do Iscariotes.
Pela meia-noite, o Galileu convidou os seus amigos para que fossem
descansar.
- Ide dormir, meus irmãos – disse-lhes com especial doçura -, e
conservai a paz até que nos levantemos amanhã... Um dia mais para
fazer a vontade do Pai e experimentar a alegria de saber que somos
Seus filhos.
6 DE ABRIL, QUINTA-FEIRA
Passada já a meia-noite, um a um, os discípulos foram-se levantando
e abandonando o fogo. Enquanto procuravam refúgio nas tendas ou se
enrolavam nos seus mantos, junto do muro de pedra, André tratou de
designar o primeiro turno de guarda, dois homens armados com espadas.
Um postou-se a sul, à entrada do horto, e outro a norte, nas
proximidades da gruta. A rendição seria de hora a hora.
Mas Jesus não se moveu. Sentado a metro e meio da fogueira e de
costas para o olival – permaneceu uns minutos com o olhar fito nas
ondulantes e vermelhas línguas de fogo, que soltavam fagulhas por causa
de alguns troncos um pouco mais húmidos que os restantes.
Não tardou que ficasse só, na frente dele e com a fogueira, como
única testemunha, quase muda, do que ia ser a minha terceira e última
conversa com o Mestre. Os Seus braços descansavam sobre as pernas,
cruzadas uma sobre a outra. O Nazareno abrira as mãos, recolhendo o
calor nas palmas. Tinha a cabeça ligeiramente inclinada para a frente e
os cabelos e rosto iluminavam-se e escureciam, ao capricho do agitar das
chamas. A sua expressão, acolhedora e tranquila durante toda a noite,
tornara-se grave.
De repente, o coração bateu-me mais depressa. Brilhante, tímida e
sem pressas, uma lágrima apareceu na Sua face direita. Era a segunda
vez que via chorar Aquele estranho homem...
Não respirei sequer, comovido e intrigado por aquele sereno e
súbito choro do Galileu. Mas Jesus parecia totalmente ausente. E,
poucos minutos depois, lançando a cabeça para trás, inspirou
profundamente, pondo-se de pé. Na minha mente agitavam-se uma
infinidade de hipóteses sobre o estado de alma de Galileu, mas não me
atrevia a mover-me.
Vi-o afastar-se para o interior do olival e parar a trinta ou quarenta
passos de onde me encontrava. E assim permaneceu – de pé e de cabeça
baixa – durante uma hora. A Lua, quase cheia, solitária entre milhares de
estrelas, encarregou-se de O banhar numa luz prateada, oscilando por
vezes a uma brisa que entrava lentamente entre as folhas verdesbrancas
das oliveiras.
Sem saber exactamente por que motivo, esperei. A temperatura
baixara consideravelmente, fazendo tremeluzir os astros, envoltos por
halos brancos, azuis e vermelhos. Durante um espaço de tempo que não
saberia precisar, fiquei com o rosto perdido naquele negro e soberbo
firmamento. Vénus, em conjunção com o Sol, por aquela data, não estava
visível. Por seu lado, Júpiter, com um brilho cada vez mais fraco
(grandeza 1,6, aproximadamente) levantava-se com muita dificuldade a
oeste, a pouca distância do esplêndido cacho estelar das Pleiâdes. E, no
mais alto, disputando entre si a primazia, as refulgentes estrelas Régulo,
Capela, Aldebarã, Betelgeuse e Arcturo, envolvidas pelas constelações
de Leão, Áuriga, Touro, Oríon e Bootes, respectivamente.
Jesus surpreendeu-me, quando alimentava a fogueira com nova
carga de lenha.
- Jasão – disse-me – não dormes? Sabes como vão ser duras as
próximas horas. Devias descansar como todos os outros...
Sentado junto do fogo olhei-O com curiosidade, ao mesmo tempo
que O convidava a responder a uma pergunta que estava em mim desde
que O vira afastar-se para o olival:
- Mestre, por que razão um homem como Tu necessita da oração?
Porque, se não estou enganado, foi o que disseste durante este
tempo...
O Galileu hesitou. E antes de responder, voltou a sentar-se, mas
desta vez junto de mim.
- Dizes bem, Jasão. O homem, enquanto padece a sua condição de
mortal, procura e precisa de respostas. E em verdade te digo que essa
sede de verdade só Meu Pai a pode serenar. Nem o poder, nem a fama,
nem sequer a sabedoria, conduzem o homem ao verdadeiro contacto com
o reino do Espírito. É pela oração que o homem procura aproximar-se do
infinito. O meu espírito começa a estar aflito e também eu necessito do
consolo de Meu Pai.
- Será que a verdadeira sabedoria está no reino de Teu Pai?
- Não... Meu Pai é a sabedoria.
Jesus acentuou a palavra é com uma força que não admitia qualquer
discussão.
- Então, se eu rezar, posso saciar a minha curiosidade e iluminar o
meu espírito?
- Sempre que essa oração nasça realmente no teu espírito.
Nenhuma súplica recebe resposta, se não vier do espírito. Em
verdade, em verdade te digo que o homem se engana quando tenta
canalizar a sua oração e os seus pedidos para o benefício material
próprio ou alheio.
Essa comunicação com o reino divino dos seres de Meu Pai só obtém
a devida resposta quando obedece a uma ânsia de conhecimento ou
consolo espiritual. O restante – as necessidades materiais, que tanto vos
preocupa – não são consequência da oração, mas sim do amor de Meu Pai.
- Por isso insististe tanto em procurar o reino de Deus e a sua
justiça... ?
- Sim, Jasão. O resto sempre vos é dado por acréscimo...
- E como devemos pedir?
- Como se já vos tivesse sido concedido. Recorda que a fé é o
verdadeiro suporte dessa súplica espiritual.
- Dizer que a oração – assim formulada – sempre obtém resposta.
Mas eu sei que isso nem sempre foi assim...
O Galileu sorriu com benevolência.
- Quando as orações provêm, em verdade, do espírito humano, por
vezes são tão profundas que não podem receber resposta enquanto a
alma não entra no reino de Meu Pai.
- Não compreendo...
- As respostas, não o esqueçais, sempre consistem em realidades
espirituais. Se o homem não alcançou o grau espiritual necessário e
aconselhável para assimilar esse conhecimento emanado do reino deverá
esperar – neste mundo ou noutros – até que essa evolução lhe permita
reconhecer e compreender as respostas que, aparentemente, não
recebeu no momento do pedido.
- Isso explicaria aquele angustioso silêncio que em certas alturas
parece constituir a única resposta à oração?
- Sim. Mas não confundas. O silêncio não significa esquecimento.
Como te disse, todas as súplicas que nascem do espírito obtêm
resposta.
Todas... Deixa-me que te explique com um exemplo: o filho está
sempre no direito de perguntar a seus pais, porém, estes podem
demorar as respostas, à espera que o infante adquira a maturidade
suficiente para as entender.
A grande diferença entre os pais humanos e o nosso Pai verdadeiro
está em que aqueles esquecem por vezes que são obrigados a responder,
ainda que seja ao cabo dos anos.
- Se é assim, quando morrermos, todos seremos sábios...
- Insisto que a única sabedoria válida no reino de Meu Pai é a que
brota do amor. Depois de passar pela morte, ninguém será sábio se antes
não o tiver sido em vida...
- Devo então pensar que a demora na resposta à minha súplica é
sinal do meu progressivo avanço no mundo do espírito? Jesus olhou-me
com complacência.
- Existe uma quantidade de respostas indirectas de acordo com
a capacidade mental e espiritual daquele que pede. Mas, quando uma
súplica fica temporariamente em branco, é frequente presságio de uma
resposta que encherá, no devido dia, um espírito enriquecido pela
evolução.
- Porque é tudo tão complexo?
- Não, querido amigo. O amor não é complicado, é a vossa natural
ignorância que vos precipita na escuridão e vos faz pender para uma
permanente justificação dos vossos erros.
Fiquei em silêncio. Aquele homem tinha razão. Só os homens tentam
desesperadamente justificar-se e justificar os seus fracassos...
Levantei os olhos para as estrelas e, apontando-lhe aquela
maravilha, disse-lhe:
- Que sentes perante esta beleza?
O Galileu elevou também os olhos para o firmamento e respondeu
com melancolia:
- Tristeza...
- Porquê?
- Se o homem não é capaz de receber na sua alma a grandeza desta
obra, como poderá captar a beleza dAquele que a criou?
- É Deus tão imenso quanto dizes?
- Mais do que acreditar na imensidade de Meu Pai, deves acreditar
na imensidade da promessa divina. Transborda o espírito do homem e
chega a originar vertigem nas legiões celestiais...
- Já me explicaste, mas, realmente o acesso ao reino do Teu Pai
está ao alcance de todos os mortais?
- O reino de nosso Pai – corrigiu-me Jesus – está no coração de
todos e em cada um dos seres humanos. Só os que despertam para a luz
do evangelho o descobrem e nele penetram.
- Então, todas as religiões, credos ou crenças podem levar-nos à
verdade?
- A verdade é uma e o nosso Pai reparte-a gratuitamente. É possível
que o gosto e a beleza possam ser tão caros quanto a vulgaridade e a
fealdade, porém não acontece o mesmo com a verdade: esta é um dom
gratuito que dorme em quase todos os humanos, sejam ou não gentios,
sejam ou não poderosos, sejam ou não instruídos, sejam ou não
malvados...
- A quem aborreces mais?
- No coração de Meu Pai não há lugar para o ódio... Deverias sabê-lo.
Defende-te só dos hipócritas, mas nunca vertas neles o veneno da
vingança.
- Quem é hipócrita?
- Aquele que prega o caminho do reino celestial e, em troca, se
instala no mundo. Em verdade te digo que os hipócritas enganam os
simples de coração e não satisfazem mais que os medíocres.
- Quem estimais mais: um homem espiritual ou um revolucionário?
O Mestre sorriu, um tanto surpreendido com a minha pergunta.
E, pousando a mão esquerda no meu ombro, respondeu com firmeza:
- Prefiro o homem que actua com amor...
- Mas quem pode conseguir amar mais?
- Pergunta melhor, quem pode conseguir compreender mais? -
Quem?
- Aquele que é capaz de amar tudo. Mas, cautela, Jasão, aquele que
ama de verdade não coloca a palavra amor por cima da sua porta,
procurando justificar-se perante o mundo. E o que dá, também não
escreve a palavra caridade para que todos o reconheçam.
Quando alguma vez vires essas palavras, desavergonhadamente
exibidas no mundo, não duvides de que têm a única finalidade de
enriquecer e enaltecer quantos a esgrimem e desfraldam.
O reino de Meu Pai é semelhante a uma mulher que levava o cântaro
cheio de farinha. Enquanto seguia por um caminho afastado partiu-se-lhe
a asa e a farinha derramou-se atrás dela pelo caminho. A mulher não
notou e não soube da sua infelicidade. Quando chegou a casa pousou o
cântaro na terra e encontrou-o vazio.
- Aquele que é capaz de amar tudo!... - repeti, com um ligeiro
movimento de cabeça. - Como isso é difícil...
- Nada existe de difícil para aquele que aprendeu a ceder.
- Mas, que me dizes das injustiças? Também devemos aprender a
amar os que nos humilham ou tiranizam?
- Quando assim acontecer, pede explicações ao teu irmão, mas
nunca o odeies. Só quando olhardes vossos irmãos com caridade podereis
sentir-vos contentes.
- Começo agora a compreender – comentei, quase só para mimporque
o meu mundo se sente infeliz... - O maior erro do teu mundo – respondeu
Jesus – é a sua falta de generosidade. O que conhece e pratica o amor
não costuma ter necessidade de perdoar: está sempre disposto a
compreender tudo. - É possível que estejas certo, mas sempre pensei
que o grande erro do nosso mundo era o seu enfartamento tecnológico...
O Nazareno olhou-me com uma infinita afabilidade.
- Deveis ter paciência e confiar. A humanidade, por vezes,
embriaga-se e embota com as suas próprias descobertas e triunfos,
esquecendo que o seu autêntico estado natural reside na serenidade do
espírito. No dia em que desperte de tão pesada letargia voltará os olhos
para o caminho do amor: o único que conduz à verdadeira sabedoria. O
cansaço começava a apoderar-se de ambos e, de mútuo acordo,
decidimos descansar as escassas horas que faltavam já até à madrugada.
Enquanto me envolvia no manto, acomodando-me o melhor que pude
debaixo de uma oliveira, uma estrela fugaz – uma lírida passou diante das
estrelas Kappa Lyrae e Nu Herculis, rasgando o véu do firmamento e o
da minha profunda melancolia.
Sem que tivesse intenção, começara a amar aquele homem...
Pelas cinco horas e quarenta e dois minutos daquela quinta-feira 6
de Abril de 30, o sol começou a abrir caminho sem especiais
dificuldades.
Eliseu tratou de me acordar, facilitando-me o habitual boletim
meteorológico. O dia prometia ser magnífico. Temperatura média
avaliada nuns dezassete graus centígrados, baixa humidade relativa e
céu limpo.
... No entanto, acrescentou o meu companheiro, o rawinl do módulo
está a captar uma alteração nos altos níveis da atmosfera. Localização:
vertical da fronteira do Iraque com a Arábia Saudita. Os sistemas
electrónicos confirmam que se trata de uma corrente em jacto de leste
(tipo equatorial), com a velocidade máxima aproximada de setenta nós e
entre níveis de cem a cento e cinquenta milibares (entre os catorze e os
dezassete quilómetros de altura)...
Atenção, Jasão! O Pai Natal está a verificar os dados
meteorológicos e tudo parece assinalar que, no decorrer das próximas
vinte e quatro ou quarenta e oito horas, esta alteração pode provocar
fortes ventos de leste, com arrastamento de bancos de areia
provenientes dos desertos arábicos de Nafud e de Dahna.
A possibilidade desta tempestade de areia, ou siroco, sobre
* Cavalo de Tróia dotara o nosso módulo, entre outros aparelhos
meteorológicos. Com um rawin (tipo laser de baixa energia) – com
retorno “interno, - e de elevada sensibilidade que pode medir a força e
direcção do vento com erro de poucos metros por segundo. (N. Do M.)
a Palestina está a começar a confirmar-se, igualmente pela louca
subida dos barómetros de Tonnelot e do aneróide. É possível que, se
tudo continuar assim, amanhã tenhas de despedir o manto...
Aquela informação tornava-se particularmente interessante.
Na manhã do dia seguinte, sexta-feira deveria ter lugar um
estranho fenómeno - assim o tinha lido pelo menos nas Sagradas
Escrituras (S. Lucas 23, 44-46, Marcos 15, 33-34 e Mateus 27, 45-46) –
da hora sexta à nona (do meio-dia às três da tarde, aproximadamente),
cobrindo as trevas a totalidade da Terra, segundo palavras textuais dos
evangelistas. E, embora não quisesse tirar conclusões antecipadas, o
aviso de Eliseu sobre aqueles ventos alísios és-sudeste, com a
possibilidade de um forte arrastamento de areia do deserto arábico
próximo, deu-me de imediato uma ideia sobre a verdadeira natureza do
acontecimento narrado no Novo Testamento..
Pouco a pouco, algumas mulheres foram saindo da tenda e
preparando o fogo.
Pelas seis, e quando dava um pequeno passeio pelos arredores do
acampamento, procurando desentorpecer os músculos vi sair Judas pela
cerca de pedra. Ia sozinho e, a julgar pelos seus passos, com uma certa
pressa. Seguiu pela mesma vereda do dia anterior, desaparecendo em
baixo na colina, na direcção do Templo ou talvez das portas da zona sul
da cidade. Por um instante pensei em segui-lo. Mas acabei por desistir.
Os planos do Cavalo de Tróia eram outros. O mais provável é que o
Iscariotes fosse encontrar-se com o chefe dos guardas do Sinédrio, tal
como lhe fora recomendado na quarta-feira. Por outro lado, Ismael, o
saduceu que conseguira infiltrar-se no conselho dos sacerdotes,
prometera informar-nos de todos e cada um dos passos do traidor, bem
como dos movimentos dos levitas que tinham por missão prender o
Mestre.
Isto tranquilizou-me e regressei imediatamente ao horto. Jesus e
os discípulos continuavam a dormir.
Tanto quanto mo permitiram, ajudei as mulheres a atiçar a fogueira
e a transportar as canecas de leite, fornecido naquele momento por duas
cabras que Filipe, segundo parecia, conseguira na quarta-feira e que
tinham presas dentro da gruta.
Enquanto preparávamos o pequeno-almoço, e quase à mesma hora
que no dia anterior, entrou no acampamento o jovem João Marcos.
Chegou com uma cesta pouco maior que a da véspera e, também sem
pronunciar palavra, entregou-a às mulheres, sentando-se depois junto do
fogo. Ali permaneceu com o queixo apoiado nos joelhos, como que
hipnotizado pelo frágil baile das chamas.
Alguns dos discípulos começaram a dar sinais de vida,
espreguiçando-se sem o menor pudor. Dois deles, ao descobrirem a
criança, aproximaram-se e tentaram que Marcos lhes contasse o que
tinham feito durante aquele longo passeio de quarta-feira. Mas o
rapazito, com os olhos baixos e as sobrancelhas franzidas, não
despregava os lábios. E quando as pressões dos homens de Jesus
chegaram ao máximo, João negou com a cabeça, com visível e crescente
irritação. Algumas das mulheres protestaram contra aquele
interrogatório e pediram aos discípulos que deixassem a criança em paz.
Outros membros do grupo tinham-se unido aos inquisidores curiosos
pedindo e suplicando-lhe que lhes dissesse, pelo menos, onde tinham
estado e se podiam ter sido espiados pela guarda do Sinédrio. No final –
suponho que aborrecido já por tanta
pergunta -, Marcos abriu a boca e deu por encerrado o assunto com
uma explicação que muito bem conheciam os adeptos do Mestre: - O Rabi
pediu-me que nada dissesse a ninguém...
E ali, como disse, terminou o interrogatório. Em diversas ocasiões,
Jesus fizera confidências aos discípulos, pedindo-lhes que nada
dissessem. E todos, de um modo geral, tinham sabido respeitar o pedido.

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