sexta-feira, 13 de agosto de 2010

"Além do mais" - perguntou-se o repórter pela enésima vez -, "para quê?... Que
sentido teria entrar alguém do povoado, de madrugada, na Câmara e divertir-se a fazer
soar o sino... 66 vezes? Talvez a solução desse enigma irritante" - disse a si mesmo - "já
esteja ao alcance da mão... É questão de subir e ter abertos os olhos."
E, lentamente, Sinuhe foi retirando as fitas adesivas.
Definitivamente, faltava a Sinuhe muita perspicácia para tornar-se um bom
detetive...
Retirados os "selos" rudimentares, usou a lanterna para iluminar a porta que
tentava abrir. Mas ela foi resistindo, por alguns segundos... Ulla, às suas costas, lembroulhe
que, logicamente, só podia abrir-se para dentro e não para fora, como pretendia o
ofuscado "detetive". Resolvido o momentâneo contratempo, Sinuhe empurrou a
rangedora porta, enfrentando total escuridão.
À luz frouxa da lanterna, descobriu um quarto pequenino e desnudo. Tudo calmo.
Silencioso. Morto. Sinuhe sentiu instantaneamente o conhecido bafo que uma habitação
longamente desabitada exala e, voltando-se para as companheiras, sugeriu-lhes que, se o
desejassem, ainda era tempo de regressar. As mulheres, segurando as velas acesas,
negaram-se redondamente. Só Joana, conhecendo o centenário casarão como conhecia,
apoiou-o timidamente, avisando que o lugar podia estar infectado de ratos.
As mulheres não se intimidaram; foi Sinuhe quem estremeceu ante a possibilidade
de tropeçar com os repulsivos e perigosos roedores. Mas, para dizer a verdade, ele não
tinha alternativa. Fora ele quem havia promovido aquela incursão; agora não podia voltar
atrás. Assim pois, tendo inspirado profundamente, rumou para os degraus localizados a
um dos cantos do quarto e que provavelmente conduziam ao primeiro andar. As mulheres
o seguiram de perto; com exceção de Joana, que - horrorizada com a perspectiva de ratos
-- preferiu mudar de sapatos. Mas, apesar dos seus gritos enfurecidos pedindo que a
esperassem, fizeram todos ouvidos moucos e continuaram a subida até o desvão.
O primeiro lance da escada, até o andar que abriga as diferentes dependências
municipais, foi vencido rapidamente e sem novidade. Sinuhe, sempre no comando, queria
chegar o quanto antes à torre e examinar a maquinaria do relógio. Sabia que a escuridão
da cabina devia ser total e que isso iria dificultar muito a exploração. Mas também sentia
que "algo" inesperado o aguardava ao final daquele percurso e a curiosidade já se tornava
insustentável.
Quando alcançou o primeiro andar, Sinuhe parou. Foi iluminando lenta e
progressivamente cada uma das portas e paredes, ao mesmo tempo que apurava os
ouvidos. Os lamentos de Joana haviam cessado e, envoltos nas trevas, o único som
perceptível era o das respirações ofegantes dos decididos aventureiros.
Convencido em parte de que aquele primeiro andar estava deserto, Sinuhe encetou
um registro consciencioso das peças. As mulheres, já mais animadas, imitaram-no. Mas,
como lhe havia anunciado o alcaide, essa ala da Câmara estava em obras e suas diversas
dependências, desmanteladas.
Dentro de instantes nosso homem atacava o último lance da escada: aquele que o
levaria, sem dúvida, ao ático.
Com o coração martelando-lhe o peito, ascendeu até uma pequena porta que lhes
vedava a passagem.
Passeou o círculo de luz pelo batente e pela maçaneta e, esforçando-se por
dominar-se, preparou-se para abri-la.
Entretanto, alguma coisa perturbadora e impensável naqueles instantes chegou a
paralisá-los...
Sinuhe apoiou a mão direita na portinhola que presumivelmente os separava do
desvão e, quando estava para empurrá-la, um toque súbito quebrou o silêncio. Era o sino!
O golpe do martelo no bronze propagou-se vertiginosamente, furando as trevas e a
minguante coragem do investigador. Fulminante descarga de adrenalina secou-lhe a
garganta, provocando-lhe tremores da cabeça aos pés. Perdeu o controle por alguns
segundos. A lanterna escorregou entre seus dedos suados e se precipitou escada abaixo. E
as débeis chamas amarelo-azuladas bruxulearam com o nervosismo das portadoras das
velas.
Faltou muito pouco para que o grupo desse meia-volta e se lançasse em fuga
frenética.
Em instantes, Sinuhe conseguiu recuperar-se em parte e, tendo pedido calma,
recolheu a lanterna, enfrentando outra vez a portinhola.
- Isso - sussurrou para as mulheres com um fio de voz - deve ter sido o vento...
Mas a piedosa mentira nem sequer foi escutada e, muito menos, aceita. Todas elas
sabiam que naquela noite não havia vento e que o relógio já estava parado havia semanas.
Quem ou o que havia levantado o pesado martelo? Um animal, talvez? Um
morador? Ou se tratava, como havia sugerido o amigo de Glória, de "uma alma penada"?
Esse vendaval de interrogações foi passando pela mente de Sinuhe e de suas não
menos inquietas amigas, enquanto lutavam por recuperar um mínimo de coragem.
Quando se achavam no difícil transe, alguém, tendo consultado o relógio, fez um
comentário que finalmente levantou aqueles ânimos desalentados:
- Curioso! O sino soou à meia-noite em ponto... Glória acaba de completar 49
anos.... Não será um sinal?
Sinuhe não compreendeu bem as segundas intenções daquela sugestão. Mas
agradeceu o fugaz desafogo e, dominado por violenta curiosidade, esmurrou a porta,
abrindo-a de par em par.
- Seja o que for - gritou com raiva -, já o veremos... Num salto, enveredou na
mansarda escura.
Sem poder dissimular o nervosismo, os pés firmemente assentados no chão de
madeira, fez girar o feixe de luz em um raio de 180 graus. Foi uma primeira e anárquica
exploração do lugar, em busca, sobretudo, de algum rosto ou movimento suspeito.
Prudentemente postou-se no umbral da porta, impedindo a passagem das
companheiras e procurando, ao mesmo tempo, cortar a possível fuga do não menos
hipotético indivíduo que teria tocado o sino.
Com o coração descontrolado pelo medo, Sinuhe foi iluminando um a um os
cantos da mansarda. Era uma espaçosa sala quadrada, repleta de móveis, velhos, pacotes
de papéis empoeirados amontoados em pilhas informes e um não acabar de cacarecos,
entre os quais, em uma primeira vista d'olhos, distinguiu latas, utensílios agrícolas e
ferramentas enferrujadas.
Em meio àquele silêncio tenso, o foco de luz foi recuperando pouco a pouco sua
estabilidade, passeando agora com mais nitidez pelas fantasmagóricas silhuetas dos
trastes abandonados por ali.
À primeira vista, tudo parecia tranqüilo. Mas não era uma calma normal. "O
lógico" - ia meditando o investigador - "é que nossa presença fosse afugentando pelo
menos algumas das muitas ratazanas que se devem aninhar aqui, neste esconderijo sujo..."
Então, por que não haviam topado com uma que fosse, por todo o caminho?
"Algo" ou "alguém" as teria assustado... antes que eles chegassem?
Súbito pressentimento invadiu Sinuhe.
O espesso silêncio e o inesperado toque do sino trouxeram à mente de Sinuhe
aquela outra experiência, vivida ou sofrida - de acordo com o ponto de vista - no interior
do pequeno bosque que cerca o casarão em que penetraram impensadamente. E o pêlo
tornou a eriçar-se-lhe diante de um desconfortável pressentimento:
"E se o responsável por essa nova badalada tiver sido a monstruosa criatura que vi
na clareira? Se assim for" - meditou enquanto procurava com a lanterna o acesso à torre -,
"talvez se encontre ainda junto à maquinaria ou, quem sabe, junto ao sino... Mas não, não
é possível."
Alienado graças às suas lucubrações, Sinuhe nem percebeu que por duas vezes já
iluminara uma pequena porta, situada ao fundo da mansarda e a um metro,
aproximadamente, do nível do soalho que ele pisava. Foi em um terceiro repasse que o
feixe de luz enfocou, primeiro meia dúzia de degraus de madeira e, finalmente, uma porta
desconjuntada maltratada pelos anos e que se manteria, quase por milagre, em tais e
improvisadas escadas.
Sinuhe descobriu afinal, encostada ao muro principal do casarão, a cabina que
devia abrigar a almejada maquinaria do relógio.
Lentamente foi caminhando até àqueles últimos degraus. Mal dera três passos,
porém, um golpear distante o deteve. Ao girar sobre os calcanhares e iluminar a porta que
acabava de empurrar, constatou que as mulheres também se haviam voltado para a
direção de onde provinha o ruído mais e mais atroante.
Sem nem sequer pensar, abriu passagem entre elas, postando-se na escadinha
estreita de onde tinham ouvido o lúgubre tanger do sino. Levou o dedo índice aos lábios,
pedindo silêncio.
Aquele golpear continuava chegando nítido e ameaçador, misturado às vezes com
o próprio eco.
Sinuhe e suas companheiras não precisaram de muitos segundos para deduzir, com
pavor crescente, que aquele atropelado "martelar" vinha da parte baixa do casarão e que, a
julgar pelos cada vez mais claros e poderosos estampidos, subia rapidamente até eles.
Os corações, vítimas de pavor incontrolável, voltaram a disparar. O de Sinuhe,
então, parecia a ponto de saltar pela boca.
"Que está acontecendo nesta casa maldita?", se perguntou, incapaz de identificar o
estrondo que se aproximava sempre.
De repente, desapareceu aquele ruído seco. Os últimos golpes soaram no andar de
baixo. Sinuhe, tentando que não gemessem os degraus sob seus pés, desceu dois ou três,
empenhando-se em perceber algum sinal - quem sabe uma sombra - que.delatasse ou
identificasse o responsável por aquele escândalo aterrorizador. A luz da lanterna perfurou
as trevas, explorando o final daquele lance e o cotovelo que formava o passadiço. A única
resposta, o silêncio.
Nesse instante uma das moças conseguiu articular uma frase que arruinou a já
debilitada coragem do detetive:
- Pareciam passos...
"Passos?" - repetiu Sinuhe para si mesmo - "Passos que ressoam como tiros de
canhão?... Não!" - argumentou, contra suas próprias dúvidas. - "Nenhuma pessoa humana
provocaria semelhante estrépito..."
Nem bem haviam desaparecido de sua mente essas reflexões e aquela série de
golpes reapareceu, congelando-lhe o sangue.
O estrondo era agora infinitamente mais violento e próximo. Soava justamente no
andar onde se achavam as dependências municipais!
Sem poder evitá-lo, o detetive recuou ante a evidente proximidade daquela
tormenta de golpes rotundos e decididos.
Em sua precipitação, porém, tropeçou, estatelando-se de costas nos degraus. E a
lanterna escapou-lhe da mão pela segunda vez...
A espalhafatosa queda de Sinuhe e o simultâneo repicar da lanterna, rolando de
degrau em degrau e mergulhando - ao apagar-se - os desmoralizados expedicionários na
mais desastrosa escuridão, abriram finalmente as comportas do medo e várias das
senhoras gritaram, amortecendo por alguns momentos as frenéticas pancadas com uma
barulheira assustadora.
Então, foi como um milagre. Ou talvez como uma estocada mortal. O "fantasma",
ou o que quer que fosse, ao escutar os gritos deteve-se. Pelo menos os golpes tinham
cessado. E entre respirações ofegantes Sinuhe conseguiu levantar-se, apalpando os
degraus na busca desesperada da lanterna. Na realidade, embora suas mãos tateassem às
cegas e nervosamente a madeira, seus olhos se mantinham fixos no final do lance da
escada e, mais precisamente, no cotovelo que levava ao andar inferior. Mas as trevas eram
ainda suficientemente densas para que se não pudessem distinguir vultos ou silhuetas.
Ao cabo de uns segundos, que a Sinuhe pareceram intermináveis, a pessoa, animal
ou "fantasma" prosseguiu em sua marcha, mas agora, passo a passo. Os golpes no lance
de escada, que morria exatamente no pedaço em que Sinuhe lutava para encontrar a
lanterna, fizeram-se definidos e angustiantes. Já não havia dúvida: aquele estrondo era
provocado por "alguém" ou "alguma coisa" que estava a poucos metros dos
arrependidíssimos "aventureiros"...
Meio paralisado pelo terror, de joelhos e com a vista empanada por um suor frio,
lançou-se para o último degrau, maldizendo sua má estrela. A lanterna não aparecia e
"aquilo" - seja lá o que fosse - continuava subindo, provocando-lhe tal arritmia cardíaca
que esteve a ponto de desembocar em coisa pior.
As moças, mais sensatas, haviam retrocedido, perdendo-se atropeladamente no
desvão escuro. Uma das velas, de chama já bruxuleante, acabara por estatelar-se nos
degraus, iluminando frouxa e milagrosamente o recinto.
Finalmente, tal presente dos céus, Sinuhe deu com a lanterna e a agarrou como um
possesso.
Procurou nervosamente o interruptor e, quando se dispunha a acioná-lo, fez-lhe o
instinto que levantasse a cabeça. À sua frente, a cerca de um metro, distinguiu um vulto
imenso.Uma vaga de sangue se lhe precipitou das entranhas...
Em fração de segundo, pela mente de Sinuhe desfilou, ou melhor, "estalou", um
caótico tropel de possibilidades, cada qual mais ameaçadora...
Por Jesus Cristo!... Que era aquilo que tinha diante dos olhos?
O vulto, negro e imenso, parecia arquejar e oscilava levemente da esquerda para a
direita. Por instantes aquela silhueta, com seu movimento rítmico, pareceu-lhe um gorila.
Em meio aos calafrios o investigador levantou-se de um salto, esgrimindo a lanterna num
gesto defensivo, incapaz de raciocinar friamente.
Deve ter sido aquele gesto - lanterna levantada - que afinal precipitou o desenlace
daquela história angustiosa.
De repente, daquele vulto surgiu uma voz entrecortada:
- Tonto!... Mas sou eu!...
Atônito, Sinuhe baixou lentamente a lanterna e, trêmulo, mexeu no interruptor,
projetando o feixe luminoso na parte superior do vulto.
Ante os olhos perturbados do repórter apareceu um rosto pálido e contraído pelo
medo.
- Joana!
Quando escutaram aquele nome, as moças se aglomeraram na porta do ático,
passando do terror para a risada meio histérica.
- Joana!... Mas é claro - balbuciou a recém-chegada -, quem diabo ia ser? Seus
malnascidos, por que não me esperaram?
Sinuhe, boca aberta de surpresa, não acreditava ainda no que via.
- Mas - conseguiu articular finalmente - e esses estrondos?
- Estrondos? Mas que estrondos? - perguntou Joana.
A lanterna do estupefato detetive focalizou os pés de Joana e, ao compreender, foi
ele quem caiu na gargalhada. Joana calçava uns enormes e velhos tamancos, trazidos anos
atrás de sua querida terra das Astúrias.
Aqueles estampidos tinham sido provocados, em realidade, pela batida do calçado
de madeira no soalho e nas escadas do casarão silencioso.
Sinuhe, abatido pela risada e por profundo sentimento de ridículo, deixou-se cair
nos degraus, reprovando-se com a cabeça;
- Não estou preparado, simplesmente não estou... Foram as amigas que o
arrancaram daquele abatimento. Uma delas, já passado o susto, interrogou Joana sobre a
misteriosa badalada.
- Sim, eu ouvi! Vocês são muito engraçados! Que susto me deram!
No mesmo instante Joana compreendeu que o silêncio com que foi acolhido seu
comentário escondia qualquer coisa em que não havia reparado.'.. até aquele momento.
Foi, pois, com um fio de voz que perguntou:
- Ah, meu Deus!... Não foram vocês?! Como resposta, o silêncio eloqüente.
- Ah, Virgem Santíssima!.. Quem foi então o patrício...
Joana nem chegou a acabar a frase. Sinuhe, recuperado, retomou a iniciativa,
abandonou as escadas e enveredou com passos decididos pela mansarda escura. Nenhuma
das companheiras chegou a notar o ricto de raiva que lhe ia endurecendo a expressão.
Sinuhe era assim. Podia, do mais espantoso sentimento de ridículo e vergonha, saltar, em
um piscar de olhos, para mal contida ira. Ira contra si mesmo, por sua aparente fraqueza e
temor. Aquele incidente, definitivamente, havia terminado por exasperá-lo.
"Isto tem de acabar" - repetia-se, enquanto caminhava para a pequena porta da
torre -. "Este mistério absurdo já durou demais."
Até mesmo esquecendo as amigas, que lhe acompanhavam os passos de perto,
saltou sobre os degraus, disposto a irromper pela sala onde jazia a antiga maquinaria do
relógio. Com presença de espírito pouco comum - conseqüência, sem dúvida, de sua
momentânea e renascida coragem - Sinuhe empurrou violentamente a portinhola. As
dobradiças rangeram e uma pestilência a graxa seca ou estragada escapou do tenebroso
recinto.
Sem hesitações, galgou os últimos degraus, postando-se no umbral daquilo que, a
julgar pela primeira e rápida exploração da lanterna, não era senão um mísero quartinho
de quando muito dois ou três metros.
As moças acompanharam aqueles primeiros movimentos do amigo desde o pé das
breves escadas, em um silêncio reverente.
Sinuhe, sem pronunciar palavra, permaneceu por alguns segundos no retângulo da
porta, tentando identificar as coisas que se viam no centro da cabina.
Sua obsessão, naqueles primeiros momentos, não era examinar a maquinaria do
relógio, mas reconhecer e enfrentar - se necessário - a pessoa ou, mesmo, aquela criatura
monstruosa que, segundo seus angustiados pensamentos, poderia ser a responsável pela
badalada.
Seus olhos, ajudados pelo nervoso cone de luz, foram acostumando-se às trevas.
A primeira coisa que distinguiu foi uma sólida armação de um pouco mais de um
metro de altura, com robustos pés de madeira.
Sobre ela descansava uma empoeirada máquina retangular, semeada de
indecifrável labirinto de rodinhas dentadas, alavancas e contra-alavancas, todas elas
imóveis e lambuzadas com uma graxa tão azeviche como malcheirosa. Era a maquinaria,
efetivamente adormecida, do misterioso relógio da Câmara Municipal de Sotillo.
O lugar estava aparentemente deserto. Sinuhe, um pouco mais confiante, procurou
com a lanterna o fio metálico que, necessariamente, devia pôr em comunicação aquele
vetusto mostrengo com o martelo situado na torre exterior. Descobriu-a logo. Saía do
extremo direito da maquinaria, subindo até o teto e atravessando-o por um orifício feito
ali para isso.
"Puxando-se aquele fio para baixo" - deduziu Sinuhe - "o dispositivo exterior
levantará o martelo, fazendo com que ele caia e golpeie, assim, a superfície do sino..."
Decidido a experimentar ele próprio a lógica teoria, avançou um passo, quase
colando-se à maquinaria.
Passou a lanterna para a mão esquerda e, quando estava a ponto de agarrar a corda
metálica e comprovar sua hipótese sobre o funcionamento do sino e a quantidade de força
necessária para levantar o martelo, acreditou ver "algo" estranho à sua esquerda. Foi uma
imagem meio esfumada, fugazmente captada pelo rabo do olho; isso sacudiu-lhe
mortalmente a coragem recuperada havia pouco.
Por longos segundos ficou com o braço direito no ar, incapaz de reagir.
Lenta, lentamente, foi girando a cabeça para a esquerda, procurando aquilo que
acreditava ter entrevisto.
Ao olhar para a frente, a pele do investigador se arrepiou e tremeram-lhe as pernas.
Naquele muro esquerdo da torre, colada ao vidro da única janelinha ali existente,
estava a volumosa cabeça de um ser que parecia olhá-lo fixamente.
Com os cabelos da nuca eriçados pelo terror, esforçou-se por gritar avisando as
companheiras. Mas o medo o estrangulava; só conseguiu tartamudear.
O luar, caindo obliquamente sobre aquele crânio enorme, contribuía - e não pouco
- para realçar sua monstruosidade. Dois pontos negros - parecendo vazios e que Sinuhe
associou a olhos - estavam espetados nele. Os calafrios se sucediam, agora em ritmo
frenético.
Em meio àqueles segundos angustiantes, o nosso homem esgrimiu todos os seus
recursos, mas não conseguiria senão direcionar a lanterna para a janelinha. Um décimo de
segundo: ao projetar o jorro de luz na vidraça, e na horrível cara do lado externo, Sinuhe
descobriu que o feixe luminoso atravessava materialmente aquela cabeça, chegando a
iluminar os galhos das árvores situadas imediatamente atrás e a pequena distância da
torre.
E antes que ele reagisse, a criatura desapareceu. E o fez tal qual aquele outro "ser"
que o detetive vira esfumar-se no bosquezinho. Esse tempo infinitesimal, entretanto, foi
suficiente para que o perturbado jornalista pudesse detectar um par de detalhes que lhe
pareceram "familiares": aquela criatura carecia de nariz e de boca e, como observara em
seu primeiro encontro na clareira, dava a sensação de transparência!
Quando comprovou que aquele ser repulsivo já não se achava à janela, num
derradeiro e repentino arranque (Sinuhe jamais entendeu como e de onde pôde sacar
aquele último rasgo de valentia) precipitou-se para a vidraça, aferrando-se com todas as
forças ao trinco do postigo. Fê-lo girar, empurrou-o bruscamente, escancarando a janela.
Em um de seus inexplicáveis impulsos, Sinuhe atreveu-se a botar para fora a
cabeça e parte do tronco, investigando, pela abertura estreita, o esconderijo da criatura.
Com mão trêmula focalizou o telhadinho construído ao pé da janelinha e também os
galhos e os muros vizinhos. Mas estava tudo deserto. Nenhum rastro do estranho ser. Ao
levantar para o céu o olhar interroga-dor, as estrelas refletiram o medo dele com
ininterruptos pestanejos brancos e azuis que, naquele momento, pareceram a Sinuhe tão
mordazes quanto extemporâneos...
- Que é que está acontecendo?
Ao ouvir as companheiras, desistiu da busca inútil e, fechando a janela, conservouse
silencioso, tentando acalmar-se e pôr em ordem seus pensamentos em tropel.
Foram precisos mais de dez minutos para que recobrasse seu ritmo cardíaco
normal. E, enquanto as senhoras passeavam as velas pelo recinto e pela maquinaria do
relógio, vasculhando tudo, recostou-se à parede correspondente à janela.
Pouco a pouco, em sua mente, além da imagem do rosto sem rosto da criatura, uma
idéia se ia gravando a fogo:
"Aquele ser" - o mesmo talvez que ele vira no bosque - "tinha de ter sido o
responsável por aquela badalada solitária... Mas como? E, sobretudo, por quê?"
Sinuhe nem suspeitava, então, que as brumas não tardariam a dissipar-se-lhe do
cérebro...
- Que aconteceu? -- repetiu uma das amigas, aproximando-se de um Sinuhe muito
pálido.
Ele, porém, prudentemente, preferiu não revelar o que vira. Deixando a parede,
juntou-se ao grupo, fazendo grande esforço para aparentar serenidade.
- Por aqui não há ninguém - opinou uma das expedicionárias, insinuando, sem
pausa, que talvez o toque do sino tenha sido por pura casualidade.
Sinuhe, sem despregar os lábios, enfrentou a corda metálica pela segunda vez, e
puxou-a com força. Tal como supusera, esse puxão levantou o martelo de ferro, que tirou
do sino, com o golpe, uma vibração solene. As moças, surpresas primeiro e divertidas
depois, imitaram-no, repetindo as badaladas.
"Do que já não há dúvida alguma" - meditou o repórter - "é de que, para fazer soar
o sino, é preciso levantar o martelo e deixá-lo cair. Mas isso, já que a maquinaria do
relógio encontra-se evidentemente paralisada, só se pode levar a efeito do interior da
cabina onde estamos, ou no exterior, na torre metálica..." A aparente paz, que reinava na
torre, estimulou a confiança das moças, que chegaram até mesmo a abrir a janelinha e por
ela sondar a. escuridão de lá de fora. Nesse momento, quando Sinuhe escutou o gemido
agudo da janela, sentiu um novo sobressalto. Mas o comportamento tranqüilo das amigas
tornou evidente que a misteriosa criatura desaparecera... ao menos por enquanto... Um
tanto mais confortado, dedicou-se à leitura e meticuloso exame das placas apostas à
maquinaria do relógio. Numa delas, lia-se: "Gregorio Revuelto BENITO. 8-setembro-l
907". Na segunda, Sinuhe distinguiu apenas três palavras: "MOISÉS DÍEZ. PALENCIA".
O primeiro nome, segundo lhe adiantara o prefeito em uma de suas inúmeras
entrevistas, correspondia a um magnânimo habitante de Sotillo, doador do relógio em 1
907. Quanto ao segundo, Sinuhe concluiu tratar-se do relojoeiro e construtor da complexa
maquinaria. E, sem conceder maior importância à essas duas inscrições, passou a explorar
a parte baixa da estrutura de madeira sobre que descansava o pesado mostrengo de
relojoaria.
Pôs-se de cócoras, inspecionando com seu feixe luminoso os ensebados suportes
de madeira da armação. Mas, ao iniciar essa investigação, os olhos de Sinuhe agarraram
"algo" insólito.
A luz da lanterna enfocava um disco de ferro de uns vinte e cinco centímetros de
diâmetro. A peça pendia de uma haste igualmente metálica; era o pêndulo do relógio.
Sinuhe não percebeu logo, devido à espessa camada de pó que cobria o disco e a
gravação inscrita nele.
Ele não saberia apontar qual de suas amigas teve a feliz idéia de inclinar-se como
ele entre os suportes da armação e, ajudada por uma vela, encetar uma primeira limpeza
do alto-relevo que adornava o disco do pêndulo. Talvez fosse Joana... Mas isso, na
realidade, pouco importava. A verdade é que, ao livrar do pó a face do disco, Sinuhe ficou
atônito.
Duvidando da imagem focalizada pela lanterna, fechou os olhos por três ou quatro
segundos. Ao abri-los, a desconcertante realidade daquele alto-relevo continuava ali,
oscilando levemente ainda, ao impulso da improvisada limpeza.
No mesmo instante, o membro da Escola da Sabedoria reconheceu, ou acreditou
reconhecer, a forma ondulante de uma serpente enroscada entre dois círculos: o da
esquerda, sensivelmente maior que o da direita.
"Jesus Cristo!... Como é possível?..."
Com o pulso novamente acelerado, Sinuhe tornou a examinar a gravação.
Sim, não havia dúvida: aquele era o emblema da Loja secreta a que ele pertencia:
uma serpente enroscada entre dois "olhos".
"Como pode ser?... Aqui? Em uma aldeia perdida? E precisamente no lugar das 66
badaladas... e da filha da raça azul?"
Na verdade, aquela surpreendente descoberta afetou a Sinuhe de maneira mais sutil
e duradoura que as anteriores. Era como se mão e inteligências superiores tivessem
preparado aquela cadeia de incríveis e comovedoras "causalidades", muito antes, mesmo,
que eles nascessem... Senão, como explicar a presença, ali, daquele disco fabricado em 1
907 ou antes, com a insígnia da Ordem?
Mas a noite estava fértil em surpresas. Ao desviar a luz à esquerda e à direita do
emblema, Sinuhe levou o susto final.
Perfeitamente nítidas e em maiúsculas, pôde ler duas letras que fizeram
transbordar seu caos mental:
"RA".
Tornou a fechar os olhos e, ao abri-los, leu outra vez:
"Sim... 'RA' ", repetiu mentalmente, presa ao mesmo tempo de alegria, comoção e
cansaço. Foram demasiadas e intensas emoções e aquela - que Sinuhe acreditava ser a
última - ultrapassara suas próprias e minadas limitações mentais.
" 'RA'? Mas não entendo..."
Aquele disco negro tinha gravado, também em alto-relevo e desde há mais de 77
anos, o nome do astro "intruso" que se aproximava da Terra, e- do qual partira a
mensagem sobre as "66 badaladas", "a filha da raça azul" e "o julgamento de Lúcifer"...
Com a razão praticamente bloqueada, Sinuhe deixou-se ficar por longo momento a
olhar fixamente aquelas letras que não esperava. Parecia hipnotizado.
"Deus meu! Como é possível?... "
Ao final, em uma última e absurda tentativa de ratificar o que tinha a dois palmos
do nariz, pediu às suas companheiras que lessem o que aparecia no pêndulo. E as moças -
todas - foram repetindo o que Sinuhe já sabia:
"RA"...
Algumas o interrogaram sobre a enigmática inscrição. Mas ele não respondeu.
Pouco depois, quando a comitiva atravessava a praça da Lastra rumo à Casa Azul,
o investigador deteve-se junto à murmurante água da fonte e, buscando com a alma
aquele firmamento incomensurável, lembrou-se de um fato de que se havia esquecido
durante a acidentada visita ao velho casarão municipal: no último momento, os céus
escutaram a prece que formulara na serra. É que, sem dúvida, o "sinal" solicitado chegara,
junto com aquelas duas letras significativas e familiares:
"RA".
Sinuhe foi o último a acomodar-se no salão acolhedor da Casa Azul. O coração lhe
batia ainda com dificuldade; procurou manter-se à margem das inevitáveis perguntas e da
hilaridade geral, quando Joana e as outras expuseram a seqüência de "estrondos" e o
cômico desenlace.
Definitivamente, excetuando o achado das letras "R" e "A" no pêndulo do relógio,
as valentes companheiras de Sinuhe não puderam reportar muitos detalhes interessantes
da convulsiva "aventura". O toque solitário não sofreu mais que algum fugaz comentário,
mas foi prontamente relegado diante do insólito lance dos tamancos asturianos. Somente
Glória captou a transcendência do enigmático alto-relevo no disco de ferro. Ao ouvir o
nome de "RA", empalideceu, cruzando com Sinuhe um olhar inquietante e inquisidor.
Mas o amigo limitou-se a responder-lhe com um sorriso não menos significativo. Não era
oportuno o momento para falar-lhe da descoberta na torre do casarão; a filha da raça azul
soube compreendê-lo.
Já avançada a madrugada, e vencendo a resistência de alguns dos convivas, Sinuhe
retirava-se para repousar.
Naquela noite, assim como nas seguintes, o membro da Escola da Sabedoria viu-se
assaltado por uma maré de pesadelos, diretamente relacionados com a visita ao interior da
Câmara Municipal, com o nome de "RA" e, muito especialmente, com aquela
criaturazinha que tivera a chance de ver no pequeno bosque e na janelinha da cabina.
Oprimido e cansado, Sinuhe deixou passar o aniversário de Glória. E só quando o
último convidado disse adeus à senhora da Casa Azul, decidiu-se a expor-lhe o que vira
no velho casarão. Uma parte. Omitiu novamente o encontro com o ser que parecia espiálo
do lado de fora, mas entretendo-se em torno da teoria cada vez mais firme de que as 66
badaladas e aquela que se dera à meia-noite de segunda-feira, 16, tinham de ter sido
causadas por "alguém" pouco comum... Mas o que verdadeiramente conturbou o espírito
da filha da raça azul foi o inesperado achado de "RA", no relógio. Dessa vez Sinuhe não
eludiu a resposta. Simplesmente, não sabia qual. A única pista - tentou demonstrar a
Glória - estaria em uma das placas parafusadas à maquinaria: "MOISÉS DIEZ". Quem era
esse sujeito? Se tivesse sido o relojoeiro que desenhou e montou o relógio, por que teria
incluído no pêndulo o selo secreto da Ordem da Sabedoria? Pertenceria à Loja? E, mais
que nada, por que teria incluído o nome de "RA"?
O investigador se dispunha, é claro, a aclarar essas novas incógnitas...
Antes, porém, era mister completar a instrução da filha da raça azul. Uma pergunta
ficara pairando no ar - "que era a raça azul?" - e Sinuhe atacou aquela última fase da
exposição com brios renovados.
Sinuhe consultou seus documentos e hesitou. Devia falar a Glória sobre a origem
da nebulosa de Andronover que foi, por sua vez, o "berço" de IURANCHA?
Se se estendesse por esse capítulo apaixonante da "Quinta Revelação", o objetivo
primordial desta última fase informativa poderia atrasar-se. Assim, pois, mais uma vez
deixou-se arrastar pela intuição.
- Antes de começar a relatar-lhe tudo o que sei sobre a raça azul, quisera fazer
alguns breves esclarecimentos sobre como se formou nosso mundo.
Então mostrou a Glória o volumoso maço de laudas em que se detalhavam tais
questões, dando a entender que se via obrigado a mutilá-las a favor desse fim prioritário.
Glória, tal como ele imaginara, não parecia conformar-se muito com essa decisão. Mas,
sabiamente, deixou que o companheiro fizesse como queria.
- ... Segundo reza este pedaço da "Quinta Revelação", a presente informação foi
proporcionada aos humanos por um "Portador de Vida", quer dizer, por uma dessas
criaturas celestes de que já a informei, membro, ainda, do chamado "Corpo Original de
IURANCHA" e, atualmente, "observador residente" em nosso planeta.
"Pois bem, em essência, IURANCHA tem sua origem em nosso Sol. E o Sol, por
sua vez, "é um dos múltiplos produtos da nebulosa de Andronover que foi, outrora, como
parte constituinte do poder material e da matéria física do universo local de Nebadon..."
De explicação em explicação, Sinuhe foi citando textualmente algumas das
passagens que lhe pareceram mais importantes.
- E essa grande nebulosa originou-se da carga de força universal do espaço no
superuniverso de 'Orvonton. O nosso, como você sabe. Em época remota, os chamados
"Mestres Organizadores de Força Primária do Paraíso" possuíam já o controle completo
das energias espaciais que foram organizadas mais tarde sob a forma da referida nebulosa
de Andronover. E diz a "Quinta Revelação":
"Há 987 000 milhões de anos, o "Organizador de Força Associado" (que então era
o "inspetor-adjunto" número 811 307
da série de Orvonton) viajou para fora de Uversa (capital do nosso superuniverso),
prestando contas aos Anciãos dos Dias que as condições do espaço apresentavam-se
favoráveis para inaugurar fenômenos de materialização em certo setor do segmento, então
oriental, de Orvonton.
"E, de acordo com estes documentos, foi registrada, há 900 000 milhões de anos,
nos arquivos de Uversa, uma autorização, expedida por seu Conselho de Equilíbrio,
expedida ao governo do superuniverso, que permitiria o envio de um "Organizador de
Força" com o seu pessoal para a região designada pelo inspetor 811 307.
"As autoridades de Orvonton encarregaram, ao primeiro explorador desse universo
potencial, a execução da ordem dos Anciãos dos Dias pela qual devia iniciar-se a
organização de uma nova criação material. Após longa viagem, faz 875 000 milhões de
anos, o Organizador de Forças e seu séquito empreenderam a formação daquela que seria
a gigantesca nebulosa de Andronover, registrada nos arquivos do superuniverso com o
número 876 926. E aqueles seres celestes desencadearam um torvelinho de energia, que
desembocaria nesse vasto ciclo espacial.
"Logo em seguida, uma vez em marcha essas rotações nebulosas, - continuou
lendo Sinuhe - os Organizadores de Força Vivente retiraram-se perpendicularmente ao
plano do imenso disco em rotação. E a partir daí, as qualidades inerentes à energia
garantiram a evolução progressiva e ordenada do novo sistema físico. E a nova criação
caiu sob o controle das personalidades do superuniverso.
"Em suma - concluiu -, era o verdadeiro nascimento de nossa História.
Sinuhe perguntou então à filha da raça azul se desejava conhecer também o que a
"Quinta Revelação" qualifica de "estados nebulares" de Andronover ou se, ao contrário,
preferia que se pulasse aquele capítulo.
Glória, sempre sedenta de conhecimento, pediu-lhe, quase exigindo, que se
aprofundasse mais no relato daquelas críticas e ignoradas épocas da "pré-história" de
Andronover.
- Diz esta documentação secreta - reatou a leitura, aceitando com prazer a saudável
curiosidade da companheira -, todas as criações materiais evolucionárias nascem de
nebulosas gasosas e circulares. E todas essas nebulosas primárias são circulares durante a
primeira fase de sua existência gasosa. À medida que envelhecem transformam-se,
geralmente, em espirais e, quando sua função geradora de sóis terminou, tomam a forma
única de cúmulos ou aglomerados estelares, rodeados de número variável de planetas,
satélites e outras formações materiais inferiores. Qualquer coisa muito semelhante ao
nosso sistema solar. Mas, prossigamos com esse curioso cômputo: há 800 000 milhões de
anos a criação havia tomado forma, e Andronover aparecia como uma das mais belas
nebulosas do superuniverso de Orvonton.
"Há 700 000 milhões de anos, Andronover alcançou dimensões tão gigantescas
que muitos Controladores Físicos Suplementares foram enviados a nove criações
materiais vizinhas, com o objetivo de proporcionar apoio e concurso aos centros de poder
do novo sistema material de evolução tão rápida. Naquela época longínqua, Andronover
assemelhava-se a uma imensa roda espacial. Quando alcançou seu diâmetro máximo, as
matérias que a conformavam iniciaram um processo progressivo de condensação e
contração e o giro da "roda" se foi tornando cada vez mais rápido.
"Há 600 000 milhões de anos, Andronover, com um máximo de massa, era uma
incomensurável nuvem de gás em forma de esferóide aplanado. A gravidade e outros
fatores iniciaram a conversão dos gases em matéria "organizada". A nebulosa entrou,
então, no chamado "estágio nebular secundário". Foi adquirindo a forma de espiral, e os
astrônomos de outros universos começaram a percebê-la. Vocês, em IURANCHA
chamam a essa fase de "fenômenos espirais".
"E quando Andronover havia alcançado sua massa máxima, o controle de
gravidade do conteúdo de gases começou a debilitar-se, a que se seguiu uma etapa de
fuga de gases. Brotando em dois braços gigantescos e diferenciados que arrancavam de
dois lados opostos da massa mater, esses gases fugiram. A veloz rotação do enorme
núcleo central deu a seguir um aspecto de espiral a essas duas correntes de gases. O
resfriamento e a condensação posteriores de determinados lances de ambos os braços
acabou por dar-lhes uma forma "nodosa". Essas porções mais densas eram, em realidade,
vastos sistemas e subsistemas de matéria física aglomerada no espaço, envolta na nuvem
gasosa da nebulosa.
"Mas Andronover começara a contrair-se e o aumento da velocidade de rotação
reduziu ainda mais o controle da gravidade. E as regiões gasosas exteriores começaram a
escapar da influência do núcleo nebular, saltando para o espaço e seguindo circuitos
irregulares para regressar às regiões centreis, voltar novamente ao exterior e assim
sucessivamente. Esta, entretanto, foi apenas uma fase temporal. A crescente velocidade
do redemoinho acabaria depressa por derramar pelo espaço enormes sóis, que seguiriam
circuitos independentes. Era o princípio da "grande deslocação".
"Há 500 000 milhões de anos nasceu, finalmente, o primeiro sol propriamente dito.
Esse "raio" chamejante escapou à influência da "mãe", voando para uma aventura
"pessoal". E sua órbita ficou determinada pelo rastro de sua própria fuga. Os jovens sóis
desse tipo transformam-se rapidamente em esféricos, passando por diversos períodos
evolutivos e de serviço universal. Em Orvonton, no nosso superuniverso,a maioria dos
sóis nasceu e nasce de maneira semelhante.
"Há 400 000 milhões de anos, Andronover entrou em seu período de "recaptação".
Quer dizer, muitos pequenos sóis vizinhos foram novamente absorvidos em conseqüência
do progressivo incremento da condensação do núcleo central da nebulosa. Dentro de
pouco, deu-se o começo da fase inicial de condensação nebular que precede, sempre, o
fracionamento último desses imensos agregados espaciais de energia e matéria...
Sinuhe distraiu a vista do documento e observou Glória. Apesar da terminologia,
ela continuava atenta.
E, tal como ele esperava, ao encetar a leitura da passagem seguinte, a filha da raça
azul estremeceu...
- Um milhão de anos depois (recorde-se que falávamos de 400 000 milhões de
anos atrás) um dos Filhos Criadores do Paraíso elegeria esta nebulosa em desintegração
para cenário de uma prodigiosa aventura pessoal: a construção de um universo local de
que chegaria a ser Soberano.
"Como você já terá adivinhado, esse Filho Criador era o nosso Micael. O chamado
Jesus de Nazaré durante sua sétima e
última "encarnação" ou efusão em seu universo local de Nebadon ou, mais
concretamente, na Terra ou IURANCHA.
"E quase imediatamente encetou a criação dos mundos ou esferas "arquiteturais"
ou artificiais de que já lhe falei, bem como a preparação do planeta-capital, daquele que
brevemente seria Nebadon, e dos correspondentes grupos planetários, sedes de cem
constelações...
Glória interrompeu-o, intrigada:
- Qual é essa esfera ou planeta-capital de nosso universo local?
- Salvington. É a residência permanente do Soberano Supremo de Nebadon.
- Nesse caso, Jesus ou Micael vive ali... - disse, incrédula.
- É o que afirma a "Quinta Revelação" - respondeu, compartilhando com ela o
ceticismo.
- É engraçado! Se isso estiver correto, Jesus (perdão, Micael) não está no Paraíso
ou no Céu, como dizem...
- São conceitos ambíguos, que poderíamos considerar válidos. Em realidade,
atendo-nos estritamente ao escrito, Salvington é a "residência" desse Filho Criador.
Suponho, porém, isso não lhe impede visitar a Ilha Eterna do Paraíso.
Sinuhe aguardou algum novo comentário ou pergunta; mas, como nada viesse,
continuou:
- E diz a "Quinta Revelação" que foi necessário quase um milhão de anos para
completar a criação e organização desses grupos de mundos artificiais de Nebadon. Os
planetas capitais dos sistemas locais correspondentes foram construídos em um lapso de
tempo que se estende desde aquela época, até uns 5 000 milhões de anos antes da Era
Cristã de IURANCHA.
"Há 300 000 milhões de anos, as órbitas solares de Andronover achavam-se bem
definidas e o sistema nebular vivia um período de relativa estabilidade física. Por aquele
tempo, o Estado Maior de Micael tomou posse de Salvington e o governo de Uversa,
capital do superuniverso de Orvonton, reconheceu oficialmente a existência física do
novo universo local. Nascia nosso Nebadon...
"Há 200 000 milhões de anos, a contração e a condensação de Andronover se
incrementaram, gerando imensas vagas de calor a partir do núcleo central, afetando ainda
regiões vizinhas da "roda-mater". As imensas áreas exteriores já eram mais estáveis e
alguns planetas haviam começado a girar à volta de sóis, alcançando um resfriamento
progressivo, que os tornou aptos para a "semeadura" da Vida. Os mais velhos planetas de
Nebadon datam exatamente dessa época: 200 000 milhões de anos. O mecanismo
completo desse universo local começava, assim, seu funcionamento, e a maravilhosa
criação de Micael foi registrada em Uversa, sede capital do superuniverso, como um
"novo universo habitável e de ascensão humana progressiva". Era o que, com nossas
pobres palavras, poderíamos chamar "nosso particular princípio dos tempos"...
Sinuhe, à margem de suas dúvidas, pronunciou as últimas frases com velada
emoção.
- O princípio dos tempos... - sussurrou Glória -. Um princípio em que já
existíamos... Ao menos na mente desse Filho Criador...
Sinuhe foi compreendendo que aquela aparentemente árida exposição de dados,
datas e complexos processos do "nascimento" e evolução de Andronover tinha também
sua importância. Descobrir e entender que Micael era o Criador de um universo local,
mas não de toda a Criação, poderia ferir e causar estranheza; porém, no fundo, uma
cabeça aberta e racional como a de Glória acabaria por aceitar a perfeição do "grande
responsável" e maravilhar-se ante ela: essa perfeição, o Pai Universal. Deus raras vezes
atua diretamente. Seus "intermediários" são os que participam dos planos divinos e com
eles colaboram. E este, a criação de Nebadon, era outro exemplo sublime. Assim o
entendia Sinuhe e, por isso, animou-se a aventurar-se um pouco mais nos tempos
primigênios da história de IURANCHA.
- E faz 100 000 milhões de anos, a tensão de condensação em Andronover
alcançou seu apogeu. A tensão calorífica chegou ao seu zênite. Porém, mais cedo ou mais
tarde, a batalha entre o calor e a gravidade se resolve sempre em benefício do calor. E
desencadeou-se uma espetacular dispersão de sóis.
Sinuhe fez parênteses, resumindo os primeiros estágios nebulosos :
- O primeiro, como já citei, é circular. O secundário toma forma de aspirai e o
terceiro provoca essa fuga ou dispersão de sóis. Quanto ao estágio quaternário, a nebulosa
tenta uma segunda "fuga" de massas solares. No fundo é o final da massa central ou
"mater", que acaba com uma acumulação globular ou como um velho e solitário sol...
"Há 75 000 milhões de anos, Andronover achava-se no período terciário. Foi o
ponto culminante da primeira dispersão solar. A partir de então, esses sóis quase todos
formaram seus respectivos cortejos planetários, "agarrando" em suas órbitas um não
acabar de cometas, satélites, ilhas escuras, meteoros e nuvens de pó cósmico.
"Esse primeiro período de fuga de sóis em Andronover terminou há 50 000
milhões de anos. Então já se haviam formado 876 926 sistemas solares. É o que consta,
pelo menos, da "Quinta Revelação".
"O epílogo desse estágio terciário ocorreu há 25 000 milhões de anos. Mas os
fenômenos de contração física e de crescente produção de calor não haviam terminado no
interior do coração de Andronover. E, há 10 000 milhões de anos o quarto ciclo
começava. A temperatura da massa nuclear experimentou sua quota máxima e o núcleo
original da nebulosa passou a sofrer fortes convulsões sob a pressão da condensação do
seu próprio calor interno e a atração gravitacional cíclica e progressiva do enxame de
sistemas solares, liberados. Estava na iminência de produzir-se a grande cadeia de
erupções nucleares que inaugurariam essa segunda e definitiva "fuga" de massas solares
e, com isso, o período quaternário de Andronover.
"E há 8 000 milhões de anos explodiu a nossa nebulosa. Foi uma assustadora
erupção final. Só os sistemas solares exteriores salvaram-se dessa magna perturbação
cósmica. Era o fim do "berço" do nosso universo local. Isso que os astrônomos de
IURANCHA chamaram o "big-bang' ou grande explosão primigênia, que teria dado lugar
ao nascimento do universo. Eles têm razão, em parte. Na realidade, como você vê, não se
tratava da origem ou nascimento do universo, mas de um gigantesco porém simples
universo local...
"Por causa desse estalo (como se se tratasse de um último e múltiplo parto) a
nebulosa "pariu" centenas de milhares de novos sóis. E, entre eles, o nosso, que nos
ilumina ainda. Essa expulsão final de sóis, antes da agonia definitiva de Andronover,
prolongou-se por quase 2 000 milhões de anos.
- Quando nasceu o nosso Sol?
Sinuhe esperava a pergunta. Sorrindo, procurou entre os documentos.
- A "Quinta Revelação" fixa esse momento justamente com a morte da nebulosa:
há uns 6 000 milhões de anos. Nos arquivos celestes, nosso Sol figura com o número 56
antes da aparição do último sol dessa segunda geração ou família de estrelas fugidas de
Andronover. E se diz que essa erupção última do núcleo nebular engendrou 136 702 sóis
ou estrelas, a maior parte globos solitários. No total, portanto, a nebulosa de Andronover
"deu à luz" 1 013 628 sistemas solares. O nosso, chamado Monmacia, figura com o
número 1 013 572. Fomos, em conclusão, um dos últimos. Assim como os "benjamins" de
Nebadon...
- Quer dizer que, se foi assim, nós, os humanos de IURANCHA, somos na verdade
uns "bebês" dentro da grande família cósmica de Andronover...
- Com efeito, uns "bebês"! - concluiu seu companheiro. Glória, sem saber por quê,
começava a experimentar uma singular mistura de amor e de tristeza por aquela "mãe",
capaz de autoaniquilar-se contanto que seus "filhos" pudessem viver. Então, perguntou
por Nebadon, a "mãe nebulosa".
- Morreu. Mas - prosseguiu ele com seriedade - continua vivendo, em seus
milhares de sóis e sistemas planetários. E conta esta história celeste que o último rescaldo
dessa magnífica nebulosa continua aceso no coração de Nebadon, aquecendo com sua luz
avermelhada uma humilde família de 165 planetas que giram em torno da venerável
"velha-mãe", origem de duas poderosas gerações de "monarcas de luz".
Glória animou o amigo a que lhe falasse de Monmacia. As perguntas se
atropelavam umas às outras em seu coração...
- Como nasceu o nosso Sol? Quando e como o fez IURANCHA? Quem ou quais
foram os responsáveis pelo surgimento da Vida em nosso mundo?...
Sem querer, a filha da raça azul começava a aproximar-se à quase esquecida
pergunta inicial: que era a raça azul?
- Há 5 000 milhões de anos - retomou Sinuhe - nosso Sol era um globo
incandescente, relativamente solitário, que foi recolhendo a seu redor resíduos da recente
comoção cósmica da qual, precisamente, nascera. Hoje, é um astro praticamente estável.
As manchas solares que surgem, cada onze meses e meio, lembram-nos que, em sua
juventude, o Sol que dá nome a Monmacia foi uma estrela inquieta e variável. Em suas
primeiras fases de vida a contínua contração e a elevação gradual de sua temperatura
provocaram-lhe imensas convulsões na superfície. Convulsões e ciclos que duravam três
dias e meio. Essas pulsações periódicas contribuíram decisivamente para que o nosso Sol
se visse afetado por determinadas influências exteriores, que para sempre o marcariam...
"Em resumo, nosso Sol estava preparado para colaborar com a aparição disso que
hoje conhecemos como sistema solar. Monmacia ia nascer. Mas o grupo de mundos que
giram hoje ao seu redor não teve nascimento comum e corrente. A "Quinta Revelação"
afirma que menos de um por cento dos sistemas planetários do superuniverso de
Orvonton tiveram origem igual à nossa.
- Nisso, também, somos diferentes? Sinuhe assentiu com certo ar de satisfação.
- Conta-se aqui que, há 4 000 milhões de anos, um enorme sistema chamado
Angona, começou a aproximar-se do nosso solitário Sol. O "coração" desse grande
sistema era um gigante do espaço, escuro, sólido, poderosamente carregado e com
poderosa força de atração gravitacional. À medida que Angona viajava em direção ao
nosso Sol, suas pulsações solares iam derramando torrentes de matéria gasosa, que eram
projetadas no espaço como línguas gigantescas. Esses jorros solares iam finalmente cair
de novo sobre o colosso de Angona. Entretanto, à medida que se ia aproximando, as
cataratas de gás incandescente se foram quebrando, e só as raízes retornavam ao corpo do
visitante. Imensas áreas exteriores das línguas se desprenderam para formar corpos
materiais independentes; quer dizer, meteoritos solares que passaram a girar ao redor do
Sol, seguindo órbitas elípticas próprias.
"Tal situação se prolongou pelo espaço de 500 000 anos, aproximadamente.
Quando Angona alcançou a posição mais próxima ao nosso Sol, e coincidindo com uma
das convulsões internas periódicas dele, aquela série de fenômenos conduziria a uma
deslocação da massa solar do astro que hoje nos ilumina. Dois enormes volumes de
matéria escaparam do nosso Sol. Cada qual nas antípodas. Uma dessas formidáveis
línguas (a que se achava mais perto do sistema intruso) foi atraída por Angona,
separando-se definitivamente da massa solar. As duas extremidades dessas colunas de
gases eram afiladas e o centro, muito inflado. Depois, a língua evoluiu, formando os doze
planetas de Monmacia.
"Quanto ao gás ejetado pelo lado oposto, terminaria por condensar-se, dando lugar
aos meteoros e à poeira espacial do sistema solar. Apesar disso, e à medida que Angona ia
distanciando-se rumo às profundidades siderais, nosso Sol acabou recapturando boa parte
dessa matéria.
"Angona, em conclusão, não passara suficientemente perto para roubar um mínimo
de matéria solar. Entretanto, seu vôo providencial pelas cercanias do Sol solitário
permitiu atrair para o espaço intermediário toda a matéria que hoje compõe o sistema
planetário. Os cinco planetas interiores nasceram dos núcleos, em vias de resfriamento e
condensação, das referidas e afiladas extremidades da língua de gás, que Angona
conseguira levantar no Sol. Saturno e Júpiter, em compensação, formaram-se a partir das
porções centrais e mais volumosas. A poderosa atração gravitacional desses pois planetas
gigantes não demorou a capturar a maior parte dos materiais desprendidos do sistema
intruso, como o testemunha o movimento retrógrado de alguns de seus satélites.
"Júpiter e Saturno, por terem saído da zona central e super aquecida da língua,
continham verdadeiros materiais solares, que brilhavam com luz ofuscadora, derramando
enormes quantidades de calor. Foram, por um tempo, sóis secundários. E continuam
sendo praticamente gasosos, pois não conquistaram o resfriamento definitivo e a
solidificação.
"No que tange aos dez planetas restantes, a solidificação foi rápida, iniciando um
processo de atração de enormes e crescentes quantidades de matéria meteórica que
circulava no espaço próximo.
- A Terra, portanto, como os demais planetas frios, tem dupla origem...
- É verdade: primeiro, como núcleo de fixação gasosa e, finalmente, como
"lixeiro" de matéria meteórica. Lembre-se de que os planetas não giram ao redor do Sol
no plano equatorial.' Assim teria acontecido se os planetas se tivessem desprendido como
conseqüência da força centrífuga. Giram, isso sim, no plano da protuberância solar que
provocou Angona... Um plano que forma um ângulo acentuado com o do equador solar.
"Pouco depois do derramamento dessa massa ancestral que deu lugar ao
nascimento de Monmacia, e enquanto Angona se encontrava ainda nas proximidades do
Sol, três planetas maiores do sistema de Angona passaram muito perto de Júpiter. Sua
atração gravitacional, incrementada pela do Sol, foi suficiente para arrancá-los do
domínio gravitacional do intruso. Originariamente, todos os materiais que formavam
nosso sistema solar circulavam em órbitas de direção homogênea. E, não fora pela captura
desses três mundos estranhos, todo esse cortejo planetário teria mantido sempre a mesma
direção em seus movimentos orbitais. Porém, o impacto dos três tributários de Angona
provocou no jovem sistema solar de Monmacia, novas direções, aparecendo os chamados
"movimentos retrógrados".
"Mas permita-me que, antes de prosseguir com essas revelações (todas elas
ignoradas ainda por nossos astrônomos), eu leia para você o que poderíamos qualificar de
"profecia fatídica..."
Sinuhe tranqüilizou Glória.
- Não se alarme. Tal "profecia" (se é que podemos dar-lhe esse nome) não é para o
século XX. Tampouco para um futuro imediato. Mas vamos a ela...
"Reza a "Quinta Revelação" que, na Era da formação dos planetas do nosso
sistema, os mais próximos ao Sol foram os que primeiro sentiram a desaceleração da sua
velocidade de rotação, conseqüência dos atritos cíclicos. Essas influências gravitacionais
contribuíram também para estabilizar as órbitas planetárias, reduzindo esse ritmo de
rotação dos mundos sobre si mesmos. Eis porque os planetas giram cada vez mais
devagar, até que se detenha a sua rotação axial. O que faz, sem mais nem menos, que um
dos hemisférios do planeta em questão fique permanentemente de frente para o Sol, como
acontece com Mercúrio ou com a Lua com respeito a IURANCHA. Apresentam sempre a
mesma face.
"Pois bem; quando os atritos cíclicos da Lua e os do nosso planeta se virem
igualados, a Terra apresentará o mesmo hemisfério ao nosso satélite natural. O dia lunar
equivalerá então ao mês lunar, com a duração aproximada de 47 dias terrestres.
"No momento em que se alcance esse equilíbrio em ambas as órbitas, as fricções
cíclicas atuarão em sentido inverso: a Terra atrairá progressivamente a Lua...
A filha da raça azul fez um trejeito, expressando alarma:
- Então a Lua pode estatelar-se contra a Terra?
- Segundo isto - e Sinuhe apontou para a documentação que manuseava -, não. Em
futuro remoto, nosso satélite se aproximará de IURANCHA até uns 18 000 quilômetros.
Hoje, como você sabe, encontra-se muito além: a distância máxima da Lua.à Terra é de
384 400 quilômetros, aproximadamente. Mas a força gravitacional de IURANCHA
provocará a deslocação da Lua.
- Que significa isso?
- Que nosso satélite natural explodirá, ficando reduzido a pequenas partículas.
Silenciaram os dois. Mas seus pensamentos foram os mesmos. "A Lua, nossa
querida Lua, tem também os dias ou os milênios contados..."
- E esses restos - reatou Sinuhe - irão reunir-se finalmente ao redor da Terra,
formando uma série de anéis, semelhantes aos de Saturno e de Urano. Outras porções
lunares serão atraídas pela gravidade de IURANCHA, caindo sobre o planeta como
imensa e espetacular chuva de meteoros.
Aquela descrição trouxe à lembrança de Glória uma conhecida passagem da Bíblia
em que, referindo-se à segunda vinda de Cristo, escreve o evangelista Lucas (21,25-27):
"Haverá sinais no Sol, na Lua e nos astros; as nações estarão angustiadas na Terra e
perplexas com o estrondo do mar e das ondas; e os homens, mortos de terror e de
ansiedade pelo que sobrevém no mundo, pois as colunas do céu oscilarão. Então, verão o
Filho do Homem vindo em uma nuvem com grande poder e majestade."
A filha da raça azul procurou o parágrafo e, mostrando-o a Sinuhe, perguntou-lhe:
- Se a Lua explodisse, as marés causariam grandes transtornos?
- E muito especialmente durante a sua terrível aproximação...
- Então, poderíamos interpretar essa "profecia" ou o que quer que seja, como uma
confirmação do Evangelho?
Sinuhe não respondeu. Limitou-se a dar de ombros. Glória, que sabia do irritante
ceticismo do amigo, optou por não ir adiante. Entretanto, desde esse anúncio, a queda e a
posterior explosão da Lua, a 18 000 quilômetros da Terra, ficaram-lhe associadas no
coração com a advertência evangélica.
- ... Quando os corpos espaciais têm um mesmo tamanho e densidade - continuou
Sinuhe, tratando de justificar a "profecia" anterior -, pode produzir-se uma colisão física.
Mas, se dois astros são comparáveis em densidade e de tamanho relativamente desigual, o
menor se desintegra quando se aproxima do maior. Observa-se essa deslocação quando o
raio da órbita do corpo menor é inferior duas vezes e meia ao raio do maior. De fato, são
muito raros os choques entre gigantes do espaço. As explosões cíclicas gravitacionais dos
astros inferiores, ao contrário, são freqüentes.
"Os anéis de Saturno, por exemplo, são fragmentos de um dos seus satélites que se
desintegrou. E, segundo a "Quinta Revelação", uma das luas de Júpiter acerca-se hoje de
forma perigosa ao que poderíamos chamar sua "zona crítica de deslocação". Dentro de
alguns milhares ou milhões de anos, essa lua se espedaçará também, tal como aconteceu
com esse quinto e desaparecido planeta do nosso sistema solar.
- Como aconteceu? - Glória sempre se perguntava o que poderia ter acontecido a
esse enigmático mundo, reduzido hoje a um cinturão de esteróides.
- Há muito, muito tempo, esse quinto planeta percorria uma órbita irregular,
acercando-se periodicamente, de Júpiter. Em uma dessas incursões, acabou por penetrar
na "zona crítica de deslocação cíclico-gravitacional", explodindo em milhões de
fragmentos.
"E chegamos ao tempo em que nosso sistema solar foi definitivamente "batizado".
"Há 3 000 milhões de anos, o sistema funcionava já mais ou menos como na
atualidade. O volume de seus planetas e satélites continuava avolumando-se, graças às
seguidas capturas de matéria meteórica. Nessa época, como lhe digo, nosso jovem sistema
solar foi inscrito no "Registro Físico" de Nebadon, recebendo o nome de Monmacia. E é
assim que nos conhecem no universo local regido por Micael e em todo o superuniverso
de Orvonton.
"Mais tarde, faz agora 2 000 milhões de anos, o tamanho dos planetas havia
crescido prodigiosamente. E nosso mundo, IURANCHA, era uma esfera bem
desenvolvida, com uma massa que crescia sempre e que, então, era a décima parte da
atual. Eram os preâmbulos do espetáculo de um milagre prodigioso: a "semeadura" da
Vida...
A "semeadura" da Vida!
A filha da raça azul, ansiosa, pediu a Sinuhe que fosse adiante:
- Há tanto que aprender!...
- Sim, mas essa Vida não surgiu em IURANCHA da noite para o dia... Durante
milhões de anos, a superfície no nosso futuro "lar" viu-se""incessantemente bombardeada
por pequenos corpos siderais. E tais impactos mantiveram mais ou menos quente o solo
da Terra. Este fenômeno, somado à ação da crescente gravidade do planeta, em
conseqüência do seu ininterrupto aumento de volume, desembocou em outro sucesso não
menos importante: a acumulação, no centro do planeta, de elementos pesados como o
ferro.
"Eis porque a Terra passou a levar vantagem sobre a Lua, sua companheira. Isso,
há 2 000 milhões de anos. IURANCHA foi sempre maior que o seu satélite, mas a
diferença, naquelas remotas épocas, não era tanta como a que chegou a alcançar e hoje
facilmente comprovável. Pouco a pouco suas dimensões foram ganhando, logrando reter a
atmosfera primitiva, que havia nascido em conseqüência do conflito entre o calor exterior
e a crosta, em plena fase de resfriamento.
"A atividade vulcânica propriamente dita remonta àqueles tempos. O calor interno
da Terra continuou subindo, a partir da integração (sempre mais profunda) de elementos
radioativos trazidos do espaço pelos meteoros. Algum dia (diz a "Quinta Revelação") o
estudo desses corpos radioativos revelará ao homem que a superfície de IURANCHA tem
mais de 1 000 milhões de anos. O "relógio" do rádio é o indicador infalível para avaliar
cientificamente a idade do planeta. No momento, porém, esses materiais radioativos de
que se dispõe procedem da casca terrestre e não do interior.
"Há 1 500 milhões de anos, a Terra havia já conseguido dpis terços do seu
tamanho atual. A Lua, essa, aproximava-se de sua massa de agora. Essa rápida "engorda"
do nosso mundo em relação à Lua permitiu-lhe "roubar" lenta, mas inexoravelmente, do
seu satélite natural, a pouca atmosfera que possuía desde o princípio.
"A atividade vulcânica achava-se em seu apogeu. A Terra inteira era um inferno.
Entretanto, muito lentamente, se foi forjando uma crosta, integrada basicamente por
granito. Uma crosta que seria o suporte preparatório para essa "semeadura" celeste da
Vida...
Intencionalmente, Sinuhe deixara escapar uma "pista", que Glória agarrou no ato.
- "Semeadores celestes?" Sinuhe pediu paciência.
- A atmosfera planetária continuou evoluindo. Continha já certa quantidade de
vapor de água, de oxido de carbono, de gás carbônico e clorídrico. Porém o oxigênio e o
hidrogênio livres ainda eram escassos. O espetáculo da Terra deve ter sido aterrador e ao
mesmo tempo fascinante: imensas colunas de gases venenosos levantavam-se para o
espaço, enquanto a superfície do planeta era sacudida por implacável chuva de
gigantescas "pedras" cósmicas, que provocavam terríveis estampidos e terremotos.
"Logo, essa atmosfera incipiente se foi fazendo mais estável e fria o suficiente para
inaugurar as primeiras chuvas sobre a enrugada e ardente superfície de IURANCHA. E
durante milhares de anos, nosso mundo (como Vênus, hoje) permaneceu envolto em um
encouraçado manto de vapor de água. Por todas essas idades, jamais o Sol brilhou sobre a
Terra...
"Grande parte do carbono da atmosfera foi subtraído para formar os carbonatos
dos diferentes metais que abundam nos estratos superficiais do planeta. Mais tarde,
quantidades enormes desses gases carbônicos foram consumidas pela prolífica vida dos
primeiros vegetais.
"E, em períodos posteriores, as correntes de lava e a queda de meteoros esgotaram
quase completamente o oxigênio do ar. Os primeiros sedimentos do oceano primitivo, que
logo apareceu, não continham, inclusive, nem pedras nem xistos coloridos. IURANCHA
foi, durante imensos períodos de tempo, um mundo "morto", sem oxigênio. Mas o mar
veio "ressuscitá-la". Foram as algas marinhas e outras formas de vida vegetal que
restituíram à atmosfera ingentes volumes de oxigênio. E continuam presenteando o
planeta com o elemento vital.
"Esse enriquecimento de oxigênio foi tornando mais "espessa" a envoltura de
IURANCHA e, os meteoros, cada vez mais intermitentes. Agora, a fricção os aniquilava.
"E chegamos, finalmente, ao "ponto zero" da História da "Terra"...
- A data do "nascimento" ou partida da história do nosso mundo, do ponto de vista
geológico - esclareceu Sinuhe -, situa-se há 1 000 milhões de anos. O planeta tinha um
tamanho comparável ao atual e nessa época, segundo a "Quinta Revelação", foi inscrito
nos arquivos do universo local de Nebadon com o nome de IURANCHA.
"As contínuas precipitações aquosas e a atmosfera facilitaram o resfriamento
paulatino da crosta terrestre. A ação vulcânica equilibrou a pressão calorífica interna,
assim como as violentas contrações do envoltório. Os vulcões se foram tornando menos
ativos e apareceram os tremores de terra. E chegou, como lhe digo, o "ponto zero",
geologicamente falando, de IURANCHA. Ao resfriar-se a crosta, surgiu o primeiro e
imenso oceano. Um mar que cobriu a Terra por completo, com profundidade média de
quase dois quilômetros. As marés manifestavam-se mais ou menos como na atualidade,
porém aquele oceano primigênio levava uma diferença: não era salgado...
Glória estranhou vivamente tal afirmação:
- Quem o teria suposto! - limitou-se a comentar.
- Sim, aquele manto imenso formava uma envoltura de água doce. Em tal Era, a
maior parte do cloro encontrava-se combinado com diversos metais, embora também seja
verdade, segundo esta documentação, que havia o suficiente de cloro mesclado com
hidrogênio, para emprestar ao oceano primitivo um ligeiro tom de cor acidulado.
"Com o passar do tempo, profundas correntes de lava derramaram-se pelo fundo
do atual oceano Pacífico, que ficou consideravelmente rebaixado.
"A primeira massa de solo continental emergiu daquele oceano mundial,
restabelecendo o equilíbrio e compensando o aumento de espessura da crosta terrestre.
"Há 950 milhões de anos, IURANCHA já oferecia a imagem de' um mundo com
um imenso e único continente, rodeado de um oceano não menos considerável. Os
vulcões eram numerosos e os tremores de terra, freqüentes e violentos. A "chuva" de
meteoros, embora decrescesse, importava muito ainda. Entretanto, a atmosfera continuava
purificando-se, apesar dos ainda excessivos volumes de gás carbônico.
Sinuhe fez outra pausa e pediu à filha da raça azul que prestasse a máxima atenção
ao que estava prestes a ler.
- Foi nesse tempo que IURANCHA foi agregada ao sistema de Satânia, em face da
sua futura administração planetária, e inscrita nos "Registros de Vida" da constelação de
Norladiadek à que, como você sabe, pertence o citado sistema de Satânia. Iniciou-se então
o "reconhecimento administrativo" daquela esfera pequena e insignificante, destinada a
ser o mundo ao qual se lançaria Micael de Nebadon, para a sua última e fascinante
"aventura pessoal" de encarnação, participando de experiências conhecidas de todos e que
fariam que IURANCHA outro nome: "o Mundo da Cruz".
- Um "reconhecimento" do planeta?
A expressão ficara firmemente gravada na mente de Glória. E imediatamente fez
uma segunda pergunta a Sinuhe.
- "Reconhecimento" de IURANCHA, mas por parte de quem?
- A primeira chegada de seres, digâmo-los "celestes", ao nosso mundo deu-se, há
900 milhões de anos. Formavam um grupo expedicionário e pioneiro, procedente de
Jerusem, planeta-capital de Satânia. A missão dele era a seguinte: examinar o planeta e
apresentar um relatório sobre as possibilidades de nele adaptar-se uma "estação
experimental de vida". Essa comissão, dizem os documentos, era integrada por 24
membros. Entre eles, "Portadores de Vida", "Filhos Lanonandeks", "Melchizedeks",
"Serafins" e outras personalidades da vida celeste, dedicadas à organização e
administração inicial dos mundos evolucionários.
"E, segundo a "Quinta Revelação", depois de minucioso exame de IURANCHA, o
grupo regressou a Jerusem, apresentando ao Soberano do sistema um relatório favorável e
aconselhando a inscrever o planeta no "Registro da Experiência da Vida". A partir daí,
IURANCHA figurou nesses registros como um mundo "decimal"...
Sinuhe reparou na estranheza da filha da raça azul.
- Imagino que você se pergunte que quer dizer "planeta decimal". Parece que,
dentro da "ordem administrativa" dos superuniversos, em cada dez mundos ou planetas
habitáveis, os chamados "Portadores de Vida" elegem um, em que a "semeadura" das
primeiras células viventes pode ser manipulada, tendo em vista ensaiar certas novas
combinações mecânicas, elétricas, químicas e biológicas destinadas a modificar,
eventualmente, os arquétipos de vida do universo local previstos para o sistema. Nos
outros nove planetas, os tipos viventes são mais "normais"...
. - Quer dizer então que nós, os humanos da Terra, somos fisicamente diferentes
dos "humanos" de outros mundos habitados?
- Não necessariamente. Essa "manipulação" da Vida, à que se refere a "Quinta
Revelação", provoca nos mundos "decimais" como IURANCHA certas combinações
inéditas que os
criadores observam, a fim de beneficiar, se for o caso, aos demais mundos do seu
universo local. A grande "diferença", porém, não parece residir aí, mas na anarquia e nos
perigos de rebelião que freqüentemente resultam desses "ensaios" nos planetas "decimais"
e que, portanto, não se dá habitualmente no resto dos mundos evolucionários...
A filha da raça azul começava a compreender o porquê da agitação, das trevas e
das guerras constantes que assolaram e assolam a Terra. Expressou-o ao companheiro.
Ele fez um gesto negativo...
- Não creia que essa caótica situação das diferentes humanidades que foram
desfilando por IURANCHA se deve, única e exclusivamente, a essa condição de "mundo
decimal". Aí entra precisamente, e em cheio, outra razão: a revolta liderada por Lúcifer e
que, você sabe, tem muito que ver com a nossa missão...
- Uma vez inscrito nosso jovem planeta nos arquivos de Jerusem, capital do
sistema, os "Portadores de Vida" (uma das hierarquias celestes responsáveis por essa
"semeadura" da Vida) foram informados de que, com efeito, receberiam permissão para
experimentar novos modelos de mobilização mecânica, química e elétrica em
IURANCHA, com ordem expressa para transplantar e implantar a Vida. Foi, sem dúvida -
comentou Sinuhe com certo regozijo - uma boa nova.
"No momento oportuno (disse a "Quinta Revelação"), a chamada comissão mista
dos Doze, em Jerusem, dispôs as medidas oportunas para a ocupação do planeta. Tais
medidas foram previamente aprovadas pela comissão planetária dos Setenta de Edência,
sede, como lhe disse, de nossa constelação de Norladiadek. Esses planos, propostos pelo
conselho consultivo dos "Portadores de Vida", foram definitivamente aceitos em
Salvington, capital de Nebadon e residência de Micael. Imediatamente, as "teledifusões"
do universo local transmitiram a notícia de que IURANCHA passaria a ser o cenário da
sexagésima experiência dos "Portadores de Vida" em Satânia, orientada para ampliar e
melhorar o tipo "sataniano" dos arquétipos de vida de Nebadon. IURANCHA não tardou
a receber o estatuto completo de Nebadon, sendo registrada também nos arquivos celestes
de Ensa (nosso setor menor) e de Splandon (setor maior). Por último, nosso mundo
figurou nos registros da vida planetária em Uversa, capital do superuniverso de
Orvonton...
Com ar esgotado, Glória "lamentou tanta burocracia"...
- Sim - respondeu o amigo -, excessiva também para o meu gosto. Mas talvez essa
ingente hierarquização possa explicar a incrível e matemática ordem do Cosmos...
"Essa Era - reatou Sinuhe, prometendo que estavam perto do fim de tais
prolegômenos -, caracterizou-se por freqüentes e violentos furacões. O envoltório
terrestre achava-se ainda em estado de fluidez e o resfriamento superficial se alternava
com imensos rios de lava. Em parte alguma da superfície do nosso planeta (diz a "Quinta
Revelação") pode encontrar-se o menor vestígio dessa crosta primitiva, que se foi
misturando com lavas e matérias vulcânicas, ejetadas desde as grandes profundidades, e
com ulteriores depósitos do oceano mundial primigênio.
"Quanto aos resíduos modificados das antigas rochas pré-oceânicas, o atual
noroeste do Canadá (ao redor da baía de Hudson) é o ponto onde eles mais abundam, em
todo o planeta. Sua imensa plataforma granítica é formada por uma rocha pertencente a
essas idades pré-oceânicas.
"Ao longo das idades oceânicas, enormes mantos rochosos estratificados e
desprovidos de fósseis depositaram-se no fundo desse oceano mundial (o calcário pôde
formar-se como conseqüência de precipitações químicas; nem todos os calcários antigos
têm sua origem em depósitos da vida marinha). Não se encontraram restos de vida nessas
antigas formações rochosas, a não ser que depósitos posteriores (de idades aquáticas) se
tivessem mesclado, por casualidade, com essas capas mais antigas, anteriores à Vida.
"A casca terrestre primitiva era bastante instável, embora ainda não houvessem
surgido as primeiras montanhas. O planeta inteiro se comprimia sob a pressão da
gravidade, à medida que se formava.
"A massa continental daqueles tempos cresceu até cobrir aproximadamente dez por
cento da superfície da Terra. Os tremores começaram justamente quando essa massa
continental emergiu muito acima do nível da água. E os sismos, cada vez mais intensos,
prolongaram-se pelo espaço de milhões de anos. Diminuíram depois, embora ainda hoje
IURANCHA sofra uma média de quinze por dia.
"Há 850 milhões de anos produziu-se a primeira estabilização da crosta terrestre. A
maior parte dos metais pesados fora atraída para o centro do globo e o envoltório, em vias
de resfriamento, parou de derreter. Sob esse envoltório, a lava se estendia por quase o
mundo inteiro, contribuindo para a sua compensação e estabilização. A freqüência e a
violência dos sismos continuavam decrescendo e a atmosfera, apesar do gás carbônico,
não cessou de depurar-se. As perturbações elétricas, tanto em terra como no céu,
tornaram-se menos freqüentes e as correntes de lava transportaram para a superfície de
IURANCHA uma mescla de elementos que isolaram o planeta contra certas energias
espaciais. Tudo isso contribuiu para facilitar o controle da energia terrestre e regularizarlhe
o fluxo, como o testemunha o funcionamento dos pólos magnéticos.
"Há 800 milhões de anos assistimos (afirmam as personalidades celestes que
asseguram ter escrito esta "Quinta Revelação") à inauguração da primeira grande Era
terrestre: a Idade do ressurgimento dos continentes. Depois da condensação da hidrosfera
de IURANCHA, primeiro no oceano mundial e depois no Pacífico, convém ter presente
que esta última massa de água cobria as nove décimas partes da superfície do mundo. O
fundo do oceano ficava cada vez mais pesado, tanto pelos milhões de meteoros caídos,
como pelo peso da água que, em algumas áreas, alcançava até dezessete quilômetros de
profundidade.
"E assim se forjou o nascimento dos continentes. A Europa 3 a África surgiram do
Pacífico, ao mesmo tempo que as massas hoje denominadas Austrália, América do Norte
e do Sul e mais o continente Antártico. Ao final do período, as massas emersas
representavam quase um terço da superfície do mundo, formando um só continente.
"Tal elevação das terras implicou nas primeiras diferenças climáticas. Elevação do
solo, nuvens cósmicas e influências oceânicas (dizem estes documentos) são os principais
fatores das flutuações do clima.
"A borda da massa continental asiática, por exemplo, atingiu perto de 15 000
metros de altura. Se naquela Era tivesse existido muita umidade no ar dessas grandes
altitudes, o gelo teria aparecido, formando-se precocemente as glaciações.
"Há 750 milhões de anos apareceram as primeiras brechas nesse único continente.
Grandes brechas. Foi um enorme afundamento, de norte a sul, que no fim foi invadido
pelas águas. As falhas prepararam o caminho d! deriva do que mais tarde seriam a
América do Norte e a do Sul e a Groenlândia em direção ao oeste.
"Outra imensa fissura, agora de este a oeste, separou p que, no futuro,
chamaríamos África e Europa, arrancando a Austrália, a Antártida e as ilhas do Pacífico
do continente asiático.
"E estamos chegando ao final. Ou ao princípio, de acordo com a perspectiva. Faz
agora 700 milhões de anos, IURANCHA se aproximava, a passos gigantescos, do que
deveriam ser as condições ideais para a "semeadura" da Vida. A saber: a deriva
continental prosseguia incessante, o oceano penetrava mais e mais nas terras, como
longos braços, proporcionando águas pouco profundas & baías abrigadas, tão necessárias
para o assentamento da vida marinha.
"E assim nos situamos nos 650 milhões de anos. Essa Era foi testemunha de uma
nova cisão das massas continentais. A partir daí, os mares se estenderam muito mais e
suas águas rapidamente alcançaram o teor de salinidade necessário para o nascimento da
Vida em IURANCHA.
"E a "Quinta Revelação" conclui este capítulo da história geológica do nosso
mundo com as seguintes palavras: "Foram esses mares, e aqueles que lhes sucederam, que
fixaram os anais da Vida, tal como o homem aprende a lê-los nas páginas de pedra bem
conservadas, volume por volume, enquanto as Eras sucedem às Eras e as Idades às
Idades. Foi nesses mares interiores onde, finalmente, apareceu a Vida".
Visivelmente esgotados, Glória e Sinuhe interromperam ali a leitura dos estranhos
documentos. Na realidade, já restava pouco para finalizar aquele adestramento,
imprescindível, da filha da raça azul. Entretanto, acontecimento não previsto por Sinuhe
viria alterar-lhe boa parte dos planos...
Durante as horas que se sucederam à acidentada visita à Câmara Municipal, Sinuhe
não conseguiu afastar da cabeça a imagem daquelas duas letras - RA - no disco metálico
do pêndulo. E, ao passo que instruía Glória sobre os universos, sua organização e a
história de IURANCHA, tomou uma decisão: na primeira oportunidade regressaria -
dessa vez sozinho - à torre do casarão. Precisava examinar minuciosamente o alto-relevo.
Foi naquela última pausa - ao encerrar o capítulo sobre a criação do universo local
de Nebadon, a partir da nebulosa de Andronover - que o "soror" da Ordem da Sabedoria
acreditou que chegara o momento. Conseguiu uns trapos velhos, um recipiente com
gasolina, uma brocha fininha e, naturalmente, a máquina fotográfica.
A amarga experiência sofrida no casarão fez com que refletisse e programasse essa
segunda exploração à luz do dia. Para ele, as trevas só serviram para complicar as coisas.
No fundo, porém, a verdadeira razão por que Sinuhe preferia subir ao ático da Câmara
durante o dia era outra. Ele próprio sabia que, apesar da curiosidade, só o pensamento de
voltar à cabina já lhe causava tremores nos joelhos. Ele nunca foi um valente - já o
dissemos.
Tudo preparado. Sinuhe propôs à amiga o congelamento, por algumas horas, das
instruções. Ela e ele necessitavam disso. E a senhora respeitou os íntimos desejos do
sempre desconcertante jornalista. No fundo, a filha da raça azul intuía que pela mente do
"irmão" esvoaçava mais que um simples descanso.
Mas quando o investigador, com a desculpa de relaxar os músculos com um
passeio pelos arredores, caminhava já para a saída, alguém empurrou a porta, fazendo
soar o alegre cacho de campainhas da Casa Azul.
Ao ver a figura do carteiro, deteve-se. Glória correu para atender e, após
cumprimentar o funcionário e velho amigo, ele lhe entregou a correspondência,
perguntando-lhe por um tal...
- Sou eu - apressou-se Sinuhe ao escutar seu verdadeiro nome e sobrenomes.
- Este telegrama é para o senhor. Assine aqui, por favor.
O investigador cruzou um olhar de estranheza com a amiga. Quem poderia saber,
com exceção da família e do seu Kheri Heb, que se encontrava naquela aldeia recôndita?
Sinuhe nunca gostou de telegramas. É que quase sempre anunciam problemas ou
perdas irreparáveis. Por isso, de má vontade, estampou a assinatura no livro do carteiro e
apanhou o inoportuno envelope azul.
Quando ficaram a sós, Glória pôs-se a observar o amigo. Em vez de abrir o
telegrama e conhecer-lhe o conteúdo, com irritante hesitação limitava-se a virá-lo de lá
para cá entre os dedos, parecendo querer adivinhar o texto.
Após segundos de silêncio sufocante, a senhora da Casa Azul,
compreensivelmente intrigada, apontou o telegrama e com incontida curiosidade
perguntou:
- Você não pretende abri-lo?
Desta vez, o membro da Escola da Sabedoria não se enganou. A intuição lhe
anunciava "algo" importante...
Ao escutar a senhora, regressou ao presente, desculpando-se por sua tolice.
Sem poder nem querer ocultar seu nervosismo, abriu o telegrama, fixando um
olhar vago nas tiras brancas de papel coladas sobre o impresso azul.
Glória fez menção de afastar-se, mas Sinuhe, sem pronunciar palavra nem desviar
os olhos do papel, pediu-lhe com a mão que esperasse. E a filha da raça azul obedeceu.
No final, desprendeu-se do texto e, com súbita palidez, convidou a companheira a
que regressassem ao salão. O coração dela sem querer acelerou. Intuía que os
acontecimentos estavam a ponto de precipitar-se.
Ela sentou-se. Sinuhe, estendendo-lhe o telegrama, dirigiu-se em seguida até a
grande janela, por onde entrava a generosa luz daquela manhã de 19 de julho. Calado, de
braços cruzados, deixou-se ficar submerso em pensamentos inexpugnáveis.
Dali a instantes, sentia no ombro a mão reconfortante da filha da raça azul. Ao
voltar-se, o atormentado investigador respirou aliviado. Uma luz intensa fulgia nos olhos
da amiga. Sinal inequívoco de que Glória compreendera e, mais transcendente, aceitara
definitivamente a missão.
Um vivificante sorriso aflorou aos lábios da senhora da Casa Azul, ao mesmo
tempo que, com a voz banhada pela emoção, repetia de cor o texto do telegrama:
"O momento chegará com a lua nova. Recorde-se do sinal de Micael. 'Ra' fará
descer então seu mensageiro solitário, Lúcifer. Repito. Lúcifer. Que o seu harmonizador e
o da filha da raça azul guiem seus passos".
Contagiado pelo olhar estimulante, correspondeu com outro sorriso.
A mensagem, com efeito, marcava o início da "contagem regressiva" para a grande
missão. Vinha assinado por duas singelas palavras - "O Mestre" - que, é claro, não
passaram despercebidas para Glória. E uma vez sossegados os ânimos, a senhora da Casa
Azul pediu a Sinuhe que lhe desse detalhes. Por exemplo: quem era esse "Mestre"? Por
exemplo, que queria dizer a palavra "Lúcifer", repetida, aliás?
O membro da Loja secreta começou pelo fim. Sem fazer alusão alguma à sua
categoria de irmão da Escola da Sabedoria, informou à amiga que, há alguns dias já, tinha
em seu poder uma série de informações confidenciais, organizada para aqueles momentos
prévios à iniciação da misteriosa aventura. Recomendações e dados, incluídos pelo seu
Kheri Heb no envelope lacrado que continha os textos da "Quinta Revelação". E a palavra
"Lúcifer" fora incorporada como uma contra-senha que deveria colocar o investigador em
alerta total. Afortunadamente, o Mestre depurara a informação, revelando o momento
exato para a arrancada da missão: a lua nova.
Ao mencioná-lo, Sinuhe estremeceu. Quanto faltaria para esse dia? Glória não
soube precisar.
Mas logo em seguida, depois de vertiginosa consulta a um calendário,
tranqüilizaram-se. Não haveria lua nova antes do dia 28 daquele mês de julho.
Dispunham, portanto, de pouco mais de uma semana. Oito dias, dentre os quais Sinuhe
teria de completar a bagagem informativa da companheira a respeito da "Quinta
Revelação" e tornar a inspecionar a velha maquinaria do relógio da Câmara Municipal.
Glória quis aprofundar-se nos preparativos para a grande missão, mas o
companheiro, esquivo, limitou-se a lembrar-lhe o texto do telegrama:
- Não se inquiete. Está tudo previsto. Quando chegar o momento, conclui-se, um
Mensageiro Solitário (dessas personalidades celestes de que já lhe falei) descerá para
"abrir-nos o caminho"...
- E por que nos devemos lembrar do sinal de Micael? Para Sinuhe estava claro. A
provável "descida" ou "aparição" do Mensageiro Solitário teria lugar na clareira do
bosque onde aquela enigmática criatura gravara a fogo os três círculos concêntricos, sinal
e emblema de Micael, o Soberano do universo local de Nebadon. Aquele, portanto, devia
ser o ponto onde a filha da raça azul e seu companheiro teriam de estar quando apontasse
a lua nova.
Após segundos de silêncio sufocante, a senhora da Casa Azul, Mas, obedecendo ao
instinto, preferiu não compartilhar a suposição com a amiga curiosa. Desviando o assunto
suplicou-lhe que mantivesse tudo aquilo no fundo do coração e que, sob nenhum pretexto,
chegasse a manifestá-lo a quem quer que fosse.
Sinuhe conhecia a delicada discreção da senhora da Casa Azul. Assim, por esse
lado, ficou tranqüilo. O que realmente lhe flagelava a inteligência era não saber, não
intuir sequer o que os aguardava uma vez iniciada a missão... E foi melhor assim. Se o
suspeitasse, talvez se tivesse rendido, abandonando imediatamente a aldeia com todos os
seus enigmas.
É evidente que aquela mensagem do seu Kheri Heb em Madri veio alterar-lhe os
planos. Glória, com sobeja razão, em vista do curso que tomavam os acontecimentos,
acabou por formular-lhe uma pergunta para a qual, ao contrário do que acontecia consigo
mesmo, ele tinha sim uma resposta:
- Diga-me, por que eu? Por que fui eleita?
Sinuhe sorriu com ternura. E, acariciando-lhe os cabelos louros, retrucou:
- Glória querida, o segredo e a resposta encontram-se nesta "Quinta Revelação".
Tornamos, pela terceira vez, à sua dúvida inicial: que é a raça azul?
- Sim, que é essa raça azul e que tenho eu que ver com ela? O "soror" voltou a
abrir seus documentos, enquanto advertia à amiga expectante que, dada a premência do
tempo, via-se obrigado a contornar aquelas informações sobre os primeiros tempos do
estabelecimento de Vida em IURANCHA, as respectivas Eras da Vida marítima e
terrestre, como também o relato fascinante dos primeiros homens primitivos na Era
Glacial e de seus precursores: os inteligentes animais de Lemúria. Sinuhe tranqüilizou a
"aluna", assegurando-lhe que tais conhecimentos - embora apaixonantes - não eram vitais
para o seu adestramento e a iminente missão.
- Falar-lhe-ei, portanto, daquilo que, isso sim, você deve saber, necessariamente... -
concluiu ele.
Glória protestou, apesar das razões. Aquela referência do amigo sobre os tipos
primitivos de lêmures e sua relação com os primeiros homens literalmente a cativara.
Mas Sinuhe, com a rigidez que lhe era característica, passou por alto os desejos da
filha da raça azul, prometendo-lhe, isso sim, que, "se o tempo não os atraiçoasse, satisfarlhe-
ia a curiosidade..."
E, dessa forma, começou a última fase da preparação da filha da raça azul.
- Antes de mais nada, devo adiantar-lhe que algumas das revelações que você já
vai escutar podem ferir-lhe a sensibilidade...
- Não sei a que você se refere.
- Talvez as passagens desta "Quinta Revelação" que, você o notará, acham-se em
franca oposição ao que sempre foi nosso credo ou nos haviam ensinado sobre a origem do
homem e, mais exatamente, sobre o que nos diz o Gênese...
A advertência ativou todas as "antenas" da filha da raça azul.
- É tão grave assim?
- Se focalizado de um ponto de vista desapaixonado e racional, não...
- Pois vamos lá!
- Bem, vamos lá... Segundo estes documentos, "as raças são o resultado de
individualidades humanas, aparecidas em IURANCHA por mutação"...
Sinuhe estudou a expressão de Glória, à espera de alguma reação. Aquela primeira
assertiva chocava violentamente com um princípio estabelecido na Bíblia, em que se
insinua que o homem foi criado diretamente por Deus. Ela, no entanto, permaneceu em
silêncio.
- Antes, muito antes do aparecimento, em IURANCHA, do primeiro par
verdadeiramente humano - retomou Sinuhe, aliviado ante a aparente docilidade da atenta
receptora -, o mundo achava-se povoado por um sem fim de famílias de primatas préhumanos.
Estes, por sua vez, procediam dos lêmures.
- Os o quê...?
Sinuhe moveu a cabeça, com desalento. Depois, mostrando o vultoso maço de
documentos, comentou:
- Não dispomos de tempo para nos determos e aprofundarmo-nos nessa parte da
"Quinta Revelação". Terei de saltar, necessariamente, por cima das fascinantes descrições
daquelas primeiras idades de IURANCHA, nas quais a Vida tomou posse do planeta,
propagando-se em seqüências maravilhosas... Porém - acrescentou, enquanto procurava a
informação sobre os lêmures - tratarei de sintetizar esse capítulo, decisivo para a posterior
aparição do homem.
"Aqui diz que, faz aproximadamente um milhão de anos, os antepassados
imediatos da humanidade apareceram em três mutações sucessivas, partindo do ramo
primitivo do chamado tipo lemuriano de mamífero placentário. Sua origem, em que não
vamos entrar, esteve em um grupo americano ocidental.
"Os lêmures primitivos tinham certa semelhança com os antepassados da espécie
humana, muito embora não guardassem parentesco algum com as tribos preexistentes de
gibões e macacos, que viviam então na Eurásia e na África do Norte e cuja descendência
sobrevive até hoje. Enquanto aqueles lêmures primitivos evolucionavam no hemisfério
ocidental, os mamíferos (antepassados diretos da Humanidade) assentaram no sudoeste da
Ásia, na zona originária de implantação central da Vida. Vários milhões de anos antes, os
lêmures de origem americana haviam emigrado para o oeste, pela ponte terrestre de
Bering. E haviam avançado para o sudoeste, ao longo da costa asiática. Essas tribos
chegaram finalmente às regiões que se estendiam entre o mar Mediterrâneo (então muito
maior) e as regiões montanhosas, em vias de levantamento, da península da Índia. E
nessas terras do oeste da índia as referidas tribos fundiram-se com outras, preparando,
assim, a ascendência definitiva da raça humana.
"Com o passar do tempo, o litoral situado ao • sudoeste da índia foi submergindo a
pouco e pouco e a vida naquela região ficou isolada. A península mesopotâmica ou Pérsia
não dispunha ainda de qualquer via de acesso ou saída, salvo pelo norte. Mas esta foi,
repetidas vezes, ocupada pelas invasões glaciais. Foi, pois, nessa região paradisíaca, e a
partir de alguns descendentes superiores desse tipo de mamíferos lemurianos, onde
nasceram dois grandes grupos: as tribos simiescas que vêm proliferando até os nossos
dias e a espécie humana.
"Aqueles descendentes dos lêmures americanos (afincados nas áreas
mesopotâmicas) eram criaturas pequenas, de um metro de altura, muito ativas e que, em
geral, caminhavam com as quatro patas, embora tivessem já a faculdade de permanecer
erguidos sobre suas extremidades traseiras. Eram muito peludos e ágeis. Pairavam como
os monos, mas, ao contrário das restantes tribos simiescas, eram carnívoros. Dispunham
de um polegar oponível muito primitivo e também de uma unha grossa, muito útil.
Decorrido tempo, o polegar oponível foi adquirindo perfeição, enquanto a unha ia
perdendo sua capacidade de agarrar.
"Esses mamíferos precursores do homem atingiam a idade adulta aos três ou
quatro anos e a duração média de vida era de uns vinte anos. O habitual era que tivessem
um único filho em cada parto, embora também houvesse casos de gêmeos. Os membros
dessa nova espécie possuíam cérebro mais volumoso que o normal, em proporção ao seu
tamanho. E, à diferença dos símios, experimentavam alguns sentimentos...
- Quais, por exemplo?
- Eram extremamente curiosos, manifestando, inclusive, evidentes e singulares
reações, que talvez pudéssemos definir como "de alegria". O apetite sexual era igualmente
muito desenvolvido e eram capazes de lutar ferozmente por sua prole. Gregários, tinham
muito apego a associações de tipo familiar è de clã. E, de acordo com a "Quinta
Revelação", possuíam também apurado sentido de humildade. Isso desemboca em outros
sentimentos, como a vergonha e o remorso.
"A inteligência aguda lhes permitia compreender os graves perigos a que estavam
expostos naquele meio florestal. E daí nasceu outro sentimento, não menos importante: o
medo. Isso os levou a adotar prudentes medidas de segurança, que acabaram sendo
transcendentes para o futuro deles. Assim surgiram os primeiros refúgios nas copas das
árvores. E, segundo se afirma nesta revelação - comentou Sinuhe -, o ancestral e
permanente sentimento de medo que o ser humano padece origina-se, precisamente,
daquelas remotas épocas. É algo genético, perfeitamente lógico e compreensível.
"Graças ao seu sentido de clã, aqueles lêmures primitivos acabaram aniquilando as
tribos simiescas mais próximas, dominando assim as criaturas menores.
"Durante mais de mil anos, esses pouco menos que insignificantes e agressivos
lêmures multiplicaram-se e invadiram toda a península mesopotâmica. Setenta gerações
depois deu-se um fato de suma importância: a súbita diferenciação dos antepassados da
etapa vital dos lêmures. O acontecimento se materializou com a aparição de dois gêmeos,
um macho e uma fêmea, nascidos na copa de uma das gigantescas árvores. Comparados
com o resto dos lêmures de sua tribo, eram menos peludos e sensivelmente maiores que
os progenitores. Logo alcançaram 1,20 metros de altura; pernas mais longas e braços mais
curtos. Os polegares, quase perfeitos. Caminhavam praticamente eretos e os cérebros
eram mais volumosos que os dos antepassados. Os gêmeos demonstraram logo uma
inteligência superior e foram aceitos como chefes da tribo. Chegaram mesmo a instituir
uma certa forma de organização social. Os dois se uniram e procriaram um total de vinte e
um filhos, muito parecidos com eles. E assim surgiu o núcleo dos chamados mamíferos
intermediários.
"Quando os membros desse novo núcleo se tornaram numerosos, a guerra tornou a
eclodir. E ao final, seus ancestrais e a multidão de tribos de macacos tinham sido
aniquilados. Por mais de 15 000 anos (cerca de 600 gerações), os conquistadores
converteram-se no terror daquela parte do mundo. Comparados com os lêmures
primitivos, esses mamíferos intermediários significaram um grande progresso. A média
de vida aumentou, chegando aos vinte e cinco anos e apareceram, até mesmo, dardos e
flechas. O instinto de armazenamento de víveres fez-se mais acurado, assim como a
provisão de pedregulhos e de pedras, que utilizavam como projéteis. Foram esses
mamíferos os primeiros a manifestar tendência inata para o combate, revelada, por
exemplo, em contínuas escaramuças na hora de construir seus refúgios, quer nas copas
das árvores, quer em túneis subterrâneos. Durante o dia viviam no chão e se refugiavam
no alto das árvores ao cair da tarde.
"Entretanto, a grande proliferação de indivíduos dessa espécie acabaria por
provocar uma dura concorrência na hora de partilhar o alimento ou de eleger o par. E a
guerra, uma vez mais, fez seu papel. As batalhas foram prolongando-se, até que não
restou mais que uma centena de sobreviventes.
"Vós (diz a "Quinta Revelação") mal podeis imaginar quantas vezes vossos
antepassados pré-humanos estiveram a ponto de roçar e alcançar a destruição total. Se a
rã, antepassado da humanidade, tivesse, em algum momento, dado um salto cinco
centímetros menor do que o necessário, toda a evolução teria mudado."
"A mãe lemuriana imediata da. espécie dos mamíferos precursores escapou da
morte por um triz, pelo menos cinco vezes, antes de parir o "pai" da nova ordem de
mamíferos superiores. O último acidente deu-se quando um raio atingiu a árvore em que
dormia a futura mãe dos gêmeos primatas. Os dois mamíferos intermediários ficaram
gravemente feridos e três dos sete filhos dela morreram. Eram animais muito
supersticiosos: quando esse casal se retirou da região para construir novos abrigos, a três
quilômetros do primitivo acampamento, metade da tribo seguiu-lhe o exemplo. Pouco
depois de concluído o novo assentamento, aquela veterana e inteligente parelha
converteu-se em pais de outra transcendental parelha de gêmeos. No mesmo momento em
que nasciam esses gêmeos, outro par do grupo (bastante mais atrasado) deu à luz outros
gêmeos: macho e fêmea. Estes, porém, ao contrário dos primeiros, não se interessaram
por conquistas, limitando-se a comer frutos. E assim surgiu o grande tronco das tribos
modernas de macacos. Seus descendentes saíram em demanda de climas mais suaves e de
abundância de frutos. E assim se perpetuaram até nossos dias.
"Em síntese, com os anos, aqueles primatas evolucionaram por mutação em duas
direções: uma regressiva, que deu os monos de que lhe acabo de falar e outra,
progressiva, da qual surgiu esse primeiro par de gêmeos... Realmente, os "primeiros pais"
da humanidade.
- Adão e Eva? - Glória tentava adiantar-se à leitura. Sinuhe negou com a cabeça.
- Segundo a "Quinta Revelação", negativo. E faço um parêntese para dizer-lhe algo
mais: parte da nossa missão consistirá em averiguar quem foram realmente Adão e Eva,
sua companheira, quando se estabeleceram em IURANCHA e qual terá sido o erro
deles...
Glória captou a sutileza do companheiro e voltou a perguntar:
- Por que você diz "estabeleceram-se em IURANCHA"? Não eram humanos?
- A isso, sinceramente, não lhe posso responder. Simplesmente não o sei. Intuímos
que Adão e Eva foram muito mais que meros seres humanos... Mas continuemos.
"Como vê, o homem, portanto, não descende do macaco, como sustentam as
teorias evolucionistas. Entretanto, ambos (homem e macaco) sim, têm origem ou tronco
comum: os primatas primigênios. Depois, a mutação (e nisso Darwin acertou) fez o resto.
"Esse grande acontecimento (o nascimento da primeira parelha humana) ocorreu
há um milhão de anos, em conseqüência de um "acidente cromossômico". Estes dois seres
foram gêmeos (homem e mulher) e se chamaram Andon e Fonta. Nasceram de um
primata...
- Que se pode entender por "acidente cromossômico"?
- O biólogo Jean de Grouchy, diretor das investigações do CNRS francês e
responsável pelo laboratório de citogenética do hospital Necker, foi, entre os sábios, um
dos que mais se aproximou - sem sabê-lo - desta "Quinta Revelação". Pois bem; na
opinião desse especialista, a aparição do homem, entendido como tal, sobre o planeta,
pôde dever-se ao encontro de uma fêmea e um varão que portavam número aberrante de
cromossomos (47, no caso). Isso sim, pôde desembocar na aparição de uma nova linha: a
nossa. Como você sabe, as células sexuais têm a metade de cromossomos que as demais
do organismo. O macaco, que desfruta de 48 cromossomos, produz células sexuais com
24 cromossomos. O homem por outro lado, que tem 46 cromossomos, produz células
sexuais de 23 cromossomos cada uma. Em todos' os óvulos encontra-se um cromossomo
sexual propriamente dito, sempre o mesmo, que determina o sexo do novo ser. É chamado
"cromossomo X". Nos espermatozóides, entretanto, o cromossomo sexual é "X" (fêmea)
ou então "Y" (macho). Por isso, ao fecundar-se um óvulo (sempre "X"), dará lugar ao
nascimento de uma fêmea ou de um macho, dependendo de ser, o espermatozóide,
portador de um "X" ou de um "Y".
"Que o número de cromossomos das células sexuais fique reduzido à metade
consegue-se, tanto nos testículos como nos ovários, graças a duas divisões consecutivas
ou "meioses" das células sexuais originárias. Além disso, durante essa fase de "meiose"
podem dar-se acidentes que redundem em células sexuais com um cromossomo de menos.
Esse "acidente cromossômico", segundo o doutor Grouchy, pode ter sido a chave do
"salto" ou "passagem" dos macacos ou primatas (48 cromossomos) ao ser humano (46
cromossomos)... por meio de gêmeos que teriam 47 cromossomos. Dou-lhe um exemplo:
imagine um símio macho que tivesse uma "meiose" que lhe ocasionasse esse tipo de
acidente. Normalmente ele emite dois tipos de espermatozóides: um com "X" e outro com
"Y". Nessa hipótese, e por causa desse acidente, uns terão 23 cromossomos e os outros,
24. Da parelha formada por esse símio macho com outra fêmea normal de primata,
poderia nascer uma filha que tivesse herdado a tara do pai. Quer dizer, que fosse capaz de
produzir alternativamente óvulos de 23 e de 24 cromossomos.
"Suponhamos agora que nessa nova fêmea se apresente outra "meiose"; em outras
palavras, que o chamado glóbulo polar (que é uma espécie de minióvulo), em vez de
degenerar e ser abandonado, como normalmente ocorre, permanecesse no interior do
óvulo. Se este e o glóbulo polar são fecundados por um símio normal, nasceriam,
possivelmente, dois gêmeos de sexos diferentes...
"Para o doutor Grouchy, tais gêmeos teriam sido Adão e Eva. Cada um desfrutaria
de 47 cromossomos. No caso de se acasalarem entre si, poderiam ter dado lugar ao
"nascimento" do homem atual. Para tanto, teria bastado que um óvulo de 23 cromossomos
tivesse sido fecundado por um espermatozóide que também tivesse 23 cromossomos.
Sinuhe suspendeu sua exposição científica. Glória se havia perdido.
Compreensivelmente.
- Quero dizer com tudo isto - resumiu o jornalista - que já em 1 978 um eminente
biólogo aventou uma teoria que coincide (e de que forma!) com o que nos conta a "Quinta
Revelação". Uma "revelação" que remonta a muitíssimos anos antes...
"De um ponto de vista puramente científico, pois é perfeitamente viável que os
gêmeos Andon e Fonta pudessem ter existido. Obviamente, porém, não conhecendo a
"Quinta Revelação", o doutor Grouchy associou esse par com os mal chamados
"primeiros pais".
E Sinuhe entrou em cheio na curiosa e acidentada vida daqueles primeiros e
extraordinários gêmeos...
- Você se perguntará por que os gêmeos foram chamados Andon e Fonta.
IURANCHA foi registrada como um mundo "habitado" quando esses dois primeiros seres
humanos alcançaram a idade de onze anos e antes que chegassem a ser pais do primeiro
nascido da segunda geração de verdadeiros humanos. Um milhão de anos atrás, repito.
Aproximadamente.
"Naquela ocasião solene, a hierarquia celeste estabelecida em Salvington (capital
do nosso universo local), remeteu uma mensagem arcangélica que se encerrava assim - e
o investigador leu o texto concernente na "Quinta Revelação" -: "... A inteligência
humana apareceu no 606 de Satânia (nosso mundo), e os pais dessa nova raça serão
denominados Andon e Fonta. Todos os arcanjos rezam para que essas criaturas possam
ser rapidamente dotadas da presença pessoal do dom do espírito do Pai Universal".
Refere-se a esse harmonizador do pensamento ou presença pré-pessoal do Pai.
Glória assentiu.
- Pois bem, Andon é um nome "nebadoniano", que significa "a primeira criatura
semelhante ao Pai e que demonstra sede de perfeição humana". Fonta, por sua vez, quer
dizer "a primeira criatura semelhante ao Filho e que mostra sede de perfeição humana".
"Esses nomes lhes foram dados pela hierarquia celeste no momento em que se
realizou o ingresso de seus respectivos harmonizadores de pensamento. Ao longo de sua
encarnação em IURANCHA, Andon e Fonta, entretanto, batizaram-se a si mesmos com
outros nomes. Anton se denominou Sonta-An ou "o amado da Mãe" e sua companheira,
Sonta-En ou "a amada do Pai". Escolheram tais nomes como prova de mútuo afeto e
respeito. Em muitos aspectos (conta a "Quinta Revelação"), Andon e Fonta constituíram a
dupla de seres humanos mais notáveis que jamais tenha vivido sobre a face de
IURANCHA. Estes seres incríveis - os verdadeiros primeiros pais da Humanidade -
foram, sob muitos pontos de vista, muito superiores, inclusive, aos seus descendentes.

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