sexta-feira, 13 de agosto de 2010

- Que aparência tinham?
- Aparentemente não eram muito diferentes dos demais primatas pré-humanos que
compunham seu círculo inicial ou tribo. Uma de suas grandes diferenças físicas estava em
que, ao passo que seus companheiros deslocavam-se a quatro patas, eles se mantinham
erectos. Seus cérebros, como já vimos, eram mais desenvolvidos, mais bem dotados. A
incipiente inteligência colocou-os rapidamente entre os membros mais vivos da tribo,
sendo eles os primeiros a aprender o lançamento de pedras, assim como a utilização de
paus em combates. E não levaram muito tempo para descobrir a utilidade dos seixos
agudos, do sílex e do osso.
"Quando ainda vivia com seus pais, Andon, usando tendões de animais, fixou um
pedaço de sílex bem afiado à ponta de estaca. Assim nasceu a primeira raça da
humanidade. E estes documentos contam que o jovem gêmeo chegou a utilizá-la pelo
menos uma dúzia de vezes, salvando a própria vida e a da irmã que, tão aventureira e
curiosa quanto ele, o acompanhava em todas as suas incursões.
"Mas, "alguma coisa", no mais íntimo daqueles gêmeos, os compelia a uma vida
nova e independente, distante da simiesca
e bestial família de que nasceram. Enquanto a inteligência de Andon e Fonta se ia
clarificando, seus congêneres caminhavam em progressiva degeneração, miscigenando-se
com as diferentes espécies de primatas.
"A chegada, até eles, dos respectivos harmonizadores de pensamento, foi decisiva.
A partir de então, os gêmeos começaram a tomar uma vaga mas sólida consciência de si
mesmos e da tremenda barreira que os separava e diferenciava dos outros animais,
incluídos seus próprios "pais" e "irmãos". Nascera. neles uma tímida e incipiente
personalidade.
"E chegou o grande dia. Aquele em que Andon e Fonta tomaram a decisão
inabalável de fugir...
- Muito antes que se realizasse a fuga dos gêmeos - retomou Sinuhe ante a mirada
atônita da senhora da Casa Azul -, Andon e Fonta já vinham alimentando essa
possibilidade. Porém, o temor à sua própria tribo foi atrasando a efetivação do plano.
Temeram, mesmo, possíveis ataques de outras tribos ou das feras que povoavam aqueles
bosques africanos.
"A família, além do mais, já estava sentindo ciúmes. Quando meninos, os gêmeos
passavam a maior parte do tempo juntos, provocando sem querer sentimentos hostis entre
seus primos e irmãos, todos eles primatas. O fato de terem construído em outra árvore o
seu abrigo, que, além do mais, era muito superior aos outros, em nada contribuiu para
melhorar o relacionamento com a tribo. Eles o sabiam, e o medo de morrer em mãos dos
parentes foi crescendo.
"E foi nesse lar, no mais alto da mais alta das árvores, que, uma noite, quando
dormiam ternamente abraçados, foram despertados por violenta tempestade de vento e
água. Nesse momento, Andon e Fonta deslizaram copa abaixo, empreendendo sua
histórica fuga; a que marcaria a senda de toda uma humanidade.
"Arrumaram outro refúgio no alto de uma árvore, a uma meia jornada de caminho
para o norte. Ali, naquele esconderijo secreto, os irmãos viram transcorrer seu primeiro
dia fora do bosque e território natal. Embora partilhassem ainda do medo ancestral dos
primatas de permanecer em terra durante a noite, ao entardecer daquele primeiro dia de
liberdade, Andon e Fonta retomaram sua fuga, sempre rumo ao norte. Necessitaram de
excepcional coragem
para empreender aquelas viagens noturnas, sempre debaixo da ameaça dos animais
e de outros possíveis grupos de símios. E, ajudados pela lua cheia, os gêmeos
conseguiram afastar-se o suficiente para que seus "familiares" não os pudessem alcançar.
"No decorrer da viagem, descobriram uma jazida de sílex a céu aberto; fizeram boa
provisão de pedras. Alguma coisa vital e surpreendente ocorreu para os gêmeos. Quando
Anton trabalhava com uma daquelas peças, tentando dar-lhe forma adequada para as lidas
de caça, observou, estupefato, como do sílex brotavam umas "luzes" diminutas. E a idéia
de fabricar o fogo surgiu pela primeira vez no cérebro daquele humano. Mas no momento
não foi posto em prática. A benignidade do clima tampouco estimulou a necessidade.
Entretanto, como lhe digo, a semente fora lançada e o fogo, como tal, não tardaria a
aparecer de uma forma consciente e artificial.
"Apenas quando o Sol do outono começou a esconder-se mais rapidamente e as
noites, à medida que ascendiam em direção ao norte, foram tornando-se mais frias, os
gêmeos começaram a sentir a necessidade de um abrigo permanente e eficaz. E assim
nasceram os primeiros vestuários, à base de peles de animais.
- Como e quando fizeram eles o primeiro fogo?
- A "Quinta Revelação" garante que foi antes que tivesse transcorrido a primeira
lua, desde a fuga do lar familiar. Andon disse à irmã que acreditava ser capaz de fazer
fogo, à base das pedrinhas de sílex. Mas, por dois meses foram inúteis suas tentativas. As
pedras produziam chispas, é verdade, mas o casal não conseguia inflamar a madeira.
Afinal, quase sem querer, Fonta encontrou a solução. Uma tarde, ao pôr-do-sol, ela subiu
ao alto de uma árvore, tentando apoderar-se de um ninho abandonado. O ninho estava
seco, e por isso inflamável. Quando uma das chispas escapadas do sílex o alcançou, por
casualidade, o material pegou fogo. O susto dos gêmeos foi tanto, que por pouco não
deixaram que se apagasse a tímida chama. Mas reagiram a tempo, acrescentando material
combustível em abundância. Era a primeira fogueira da humanidade...
"E durante horas e horas Andon e Fonta permaneceram junto ao fogo, como que
hipnotizados pela ondulante e vivificante dança das chamas. E daí, começou a busca de
madeira e de toda classe de materiais que pudessem sustentar e alimentar a sagrada
descoberta. Foram, aqueles, alguns dos momentos mais alegres da sua breve mas intensa
vida.
"Assim permaneceram a noite toda, intuindo vagamente que aquele achado lhes
mudaria a vida, permitindo-lhes desafiar os rigores do clima e ajudando-os a uma
definitiva independência.
"Antes deles, naturalmente, outros antepassados haviam alimentado os fogos e
deles se servido, porém fogos provocados por raios em bosques e pastagens, mas até esse
dia criatura alguma terrestre dispusera de um método para provocá-lo à vontade.
Entretanto, necessitaram os gêmeos de muito tempo ainda para aprender que o musgo
seco, por exemplo, era material mais acessível que ninhos de pássaros e, como estes,
prático na hora de provocar o fogo.
"E três dias passados o primeiro casal humano reencetou sua peregrinação.
- Dois anos haviam transcorrido, desde que os gêmeos decidiram partir do bosque
natal, quando, finalmente, Fonta deu à luz seu primeiro filho. E, segundo consta da
"Quinta Revelação", deram-lhe o nome de Sontad. Aquela foi a primeira criatura humana
que, ao nascer, recebeu um leito protetor e foi abrigada e cuidada de forma permanente
pelos progenitores. Esse incipiente instinto maternal seria vital para a multiplicação de
uma espécie que, ao contrário dos seus "primos", os primatas, nascia frágil e
desamparada, como é natural entre os seres humanos evolucionários, cuja essência e
finalidade não é a força bruta, mas o raciocínio.
"Depois de Sontad, outros dezoito filhos vieram. E o casal viveu o bastante para
ver à sua volta cerca de cinqüenta netos e meia dúzia de bisnetos. O "clã" assentou-se
definitivamente em quatro abrigos rochosos ou semicavernas, dos quais três se
comunicavam através de galerias abertas na macia rocha calcárea, abertura essas
praticadas pelos filhos dos gêmeos com ferramentas de sílex. E assim nasceu a primeira
grande raça humana: a "andônica" ou "andonita", em homenagem a Andon.
Sinuhe estava consciente do insólito de sua narração, que talvez pudesse empanar a
tradicional idéia cristã de uns primeiros pais - Adão e Eva - criados "do barro e de uma
das costelas de Adão", tal como menciona o Gênese. Por isso, antes de prosseguir, pediu a
opinião de Glória. 0
Mas a senhora da Casa Azul se limitou a responder com esta frase lacônica:
- Possível e belo... Por que não?
E quando o amigo reencetava a leitura, exprimiu em voz alta:
- Sempre acreditei que a Bíblia utiliza símbolos. Especialmente nessa parte da
criação do homem e do próprio Cosmos... Além do mais, até agora não achei nada que vá
contra a essência dos planos divinos... Talvez, depois que você me tenha explicado como
e de que forma foi levada a termo a "semeadura" da Vida sobre o planeta, eu possa
entendê-lo melhor.
O investigador não respondeu. Após uns instantes de dúvida, em que esteve a
ponto de voltar atrás nas páginas da "Quinta Revelação" para informar a amiga sobre a
"semeadura", optou por seguir o que já havia planejado antes.
- Os primeiros "andonitas", como lhe dizia, demonstraram alto espírito de clã.
Caçavam em grupo e nunca se distanciavam do lar. Davam-se conta, ao que parece, da
diferença que os separava do resto das tribos simiescas e que não deviam cruzar-se com
elas sob nenhum pretexto. E cumpriram-no. Essa idéia tão íntima e quase incompreensível
para os gêmeos e sua descendência era o fruto, na realidade, da progressiva intensificação
da presença, em todos eles, de seus respectivos harmonizadores -de pensamento.
"Andon e Fonta labutaram sem descanso para alimentar e proteger os filhos.
Viveram até a idade de 42 anos; morreram durante um terremoto. Uma rocha precipitouse
sobre eles, esmagando-os. Como você vê, nasceram e morreram juntos. Outros cinco
filhos e onze netos pereceram no sismo e uma vintena de descendentes sofreu ferimentos
graves.
"Sontad, apesar de um pé dilacerado, assumiu imediatamente a chefia do clã,
ajudado por sua hábil mulher, a irmã mais velha. Seu primeiro trabalho como dirigente da
família "andonita" foi exatamente amontoar pedras sobre os corpos sem vida dos pais,
irmãos e filhos...
- Eles rendiam culto aos mortos? - interrompeu Glória, quase não acreditando no
que estava ouvindo.
- Não. Suas idéias a respeito da vida além da morte eram muito confusas e mal
definidas. Era muito cedo ainda... Talvez não se deva dar tanta importância a esse ato de
sepultar seus mortos. Tão só em seus sonhos fantásticos apareciam imagens que poderiam
associar-se a uma concepção de sobrevivência além da morte.
"Mas entendo que chegou o momento de passar a outro capítulo, aliás sumamente
atraente: qual o aspecto físico desses primeiros "andonitas", e que foi feito deles?
Naqueles dias, Sinuhe intensificou seus ensinamentos, proporcionando ao mesmo
tempo, à filha da raça azul, prazos maiores para reflexão. Era decisivo que ela assimilasse
tudo aquilo ou, pelo menos, a essência da informação, para que seu comportamento,
enquanto durasse a missão, fosse o mais frutífero possível.
Em vários daqueles descansos obrigatórios, o irmão da Loja surpreendeu-se ao pé
do velho casarão da Câmara Municipal. Suas andanças terminavam sempre no mesmo
lugar. Mas só no final, quando a intensa preparação se concluiu, teve a coragem
necessária para aproximar-se da torre solitária.
- A família de Andon e Fonta se conservou unida até a vigésima geração. Daí por
diante, em conseqüência da luta pelos alimentos e das crescentes e assíduas rivalidades
tribais, a primeira raça humana se dispersou.
"Não, não creia que essa atomização dos "andonitas" tenha constituído uma
rachadura nos planos das personalidades celestes que vigiavam atentamente a evolução
desses humanos. Como você verá dentro em pouco, tudo estava previsto. Bom... quase
tudo...
"Aqueles homens primitivos tinham olhos negros e tez escura.
- Eram negros?
- Não. A aparição das diversas raças de cor foi um fato posterior, sumamente
complexo e premente; mas falaremos disso em momento oportuno. Os "andonitas" tinham
uma coloração comparável à que se poderia derivar do cruzamento de um amarelo com
um vermelho. A melanina (esse pigmento que dá coloração à pele) achava-se já na
epiderme andônica. Entretanto, a julgar pelo seu aspecto geral e o colorido da pele,
lembravam um pouco os esquimós de hoje. Como também, creio haver-lhe dito, foram os
primeiros seres humanos a utilizar peles de animais para proteger-se do frio, apesar de
terem epiderme muito mais povoada de pêlo do que a nossa.
- Alguma coisa não se encaixa - interveio a senhora da Casa Azul -. Ficou
demonstrado que o antiqüíssimo gênero dos Australopithecus, muito anteriores a esse
milhão de anos, já dispunha de certas regras sociais, e já sabiam usar os pedregulhos e o
sílex. Por que então diz a "Quinta Revelação" que foram os "andonitas" que começaram a
cobrir-se de peles?
- Em parte você tem razão. Esta documentação esclarece que os ascendentes de
Andon e Fonta manipulavam toscas ferramentas de pedra e às vezes se aproveitavam do
fogo. Mas, até agora, a paleontologia moderna não logrou descobrir entre estas três
espécies que parecem formar o gênero dos Australopithecus (o africanus, o robustus e o
boisei) um vestígio sequer que demonstre que se cobriam com peles. Os achados
registrados nessa época, há um milhão de anos, época em que a "Quinta Revelação"
assegura que nasceram os gêmeos, não são ainda convincentes. Na atual divisão
estratigráfica do Quaternário, entre os anos 600 000 e 2 000 000 antes de nossa Era (quer
dizer, no Pleistoceno inferior), os descobrimentos paleontológicos mais relevantes foram,
precisamente, os dos Australopithecus dos tipos africanus e robustus na África do Sul, e
boisei no famoso barranco de Olduwai e no Vale da Greta, a leste do continente africano.
Algumas escavações mais recentes, levadas a efeito por Richard Leakey nos primeiros
anos da década de setenta, vieram demonstrar que a leste do lago Rodolfo, em Kenya,
viveu uma numerosa colônia desses Australopithecus ou pré-humanos, possivelmente
entre dois e três milhões de anos. Porém, o mais curioso, é que Leakey Jr. chegou a
insinuar que, junto aos restos desses quase primatas havia também vestígios de
verdadeiros humanos, contemporâneos e muito próximos dos Australopithecus... Você
percebe o que significa a asserção de Leakey?
"Se é que a "Quinta Revelação" está correta, Richard Leakey poderia estar
mencionando alguns dos exemplares "andonitas" que, realmente, conviveram com seus
"primos distantes", os pré-humanos. Você terá notado, também, que há alguma coisa que
não está de acordo: enquanto a "Quinta Revelação" afirma que os gêmeos nasceram há
um milhão de anos, uma das descobertas de Leakey em 1 972 (um crânio completo de
aspecto humano e grande capacidade craniana) situa a presença desses misteriosos
humanos africanos para além dos dois milhões de anos. Quem tem razão? Pode Leakey
ter-se enganado na hora de datar a antigüidade desses restos de verdadeiros humanos
contemporâneos dos pré-humanos? Mas creio que me desviei da sua pergunta inicial...
Sinuhe recapitulou.
- Sim, falávamos das regras sociais... Os achados de uma certa "indústria lítica"
entre os Australopithecus ou pré-humanos confirma o que nos diz a "Quinta Revelação".
Os antepassados e, também, contemporâneos dos "andonitas" souberam manejar algumas
armas muito rudimentares, arrojadiças (pedras, por exemplo) ou manipuladas
diretamente: paus, talvez... Jamais, porém, teriam sido capazes de talhar machadinhas de
mão, como as encontradas em Sterkfontein, perto de Johannesburgo, em quartzo,
oblongas, brilhantes e com catorze faces! E, no entanto, esse sensacional achado do
doutor Brain, em 1 956, em um habitat do Australopithecus africanus, vem demonstrarnos
que, se não pôde ser aquele primitivo pré-humano quem teria fabricado tais utensílios
de pedra, o autor, necessariamente, deve ter sido um verdadeiro humano, contemporâneo
do africanus! Como você vê, pouco a pouco, a Paleontologia vai desembocando em uma
hipótese única e revolucionária, apontada já pela "Quinta Revelação": houve verdadeiros
humanos na África, em convivência com outros seres quase simiescos (os
Australopithecus) de que se foram distanciando mais e mais. O que, no momento, não
pode ser descoberto nem provado pela ciência moderna é como e por que se deu esse
"salto" dos primatas para os autênticos humanos...
"Para a "Quinta Revelação", foi a progressiva expansão da capacidade craniana
dos "andonitas" que favoreceu esse enriquecimento das emoções, dos hábitos sociais e a
própria tomada de consciência individual e coletiva daqueles clãs. E tudo isso redundou
afinal na ruptura do tronco primigênio que os gêmeos haviam formado. Mas passemos a
analisar alguns dos principais traços sociais desse grande clã, antes da cisão definitiva...
- Em um contraste singularmente profundo em relação a seus "primos", os préhumanos
(ou os Australopithecus, se você o preferir) Andon e Fonta e as gerações que se
lhes seguiram foram avançando em sua evolução a ritmo vertiginoso. Desde o princípio
as regras sociais, para dar-lhes algum nome, distanciaram-se eloqüentemente dos
costumes puramente instintivos de muitos dos seus ancestrais. Os varões eram capazes de
lutar heroicamente para proteger a companheira e a prole, e as fêmeas, diversamente das
pré-humanas, essas sim, foram capazes de superar o mero impulso animal da
maternidade, substituindo-o por sólido e real sentimento de afeto. Porém, essa lealdade
incipiente circunscrevia-se unicamente ao clã. A "Quinta Revelação" afirma que aqueles
primeiros "andonitas" não eram ainda capazes de conceber um mundo melhor. O
altruísmo seria um sentimento ulterior.
"Apesar disso, esses homens primitivos carregavam a semente do afeto e da
amizade. E o praticavam, embora de maneira bem rudimentar. Mais tarde, terá sido
habitual o espetáculo, nas batalhas com outras tribos inferiores, de os leais "andonitas"
lutarem com uma só mão, protegendo com a outra um companheiro ferido.
Glória formulou uma de suas típicas e certeiras perguntas:
- Sabiam brincar?
- Pelo que sei, não exatamente. Eram muito propensos a imitar, mas o senso do
brincar era neles pouco desenvolvido. O mesmo acontecia com o humor. . .
A senhora da Casa Azul lembrou-se de uma coisa de que jamais havia cogitado: de
quando data o senso de humor entre os homens? É inato ou aprendido?
- Pode parecer-lhe incrível, mas o homem primitivo mal sorria e, ao que parece,
não conheceu a risada nem a gargalhada. Essa condição humana que precisamente nos
distingue dos animais foi um legado muito posterior...
- Um legado? De quem?
- Não fica muito claro na "Quinta Revelação". Já lhe lembrei que há grandes
lacunas nestas informações... Mas tudo parece indicar, como responsáveis por essa
ascensão, homens de outra raça: a "adâmica".
"Definitivamente, aqueles "andonitas" primitivos não eram muito sensíveis à dor
nem a situações desagradáveis que, com o passar do tempo e da evolução, aí sim,
começaram a afetar os restantes seres humanos. Dar-lhe-ei um exemplo: Fonta e as
"andonitas" que lhe sucederam jamais pariram com dor. Essa circunstância, hoje tão
diferente, teve outras raízes... das quais já falaremos.
"E assim foram transcorrendo os anos. O clã original conservou sempre uma linha
ininterrupta de chefes, até que, na vigésima sétima geração, o fato de não se ter dado o
nascimento de filho varão na descendência direta de Sontad provocou revoltas internas
pela chefia "andonita", a cargo de duas facções rivais.
"Explicavelmente, à medida que passava o tempo, os clãs "andônicos" foram
crescendo em número e o contato entre as famílias em expansão acabou sendo inesgotável
fonte de rixas e mal-entendidos. É preciso compreender que o espírito desses primeiros
povos achava-se dominado por dois princípios básicos: a caça e a guerra. O primeiro,
fundamental para a conservação e desenvolvimento dos seus membros. O segundo, para
vingar-se das injustiças ou insultos (reais ou imaginários) lançados por tribos vizinhas. É
praticamente impossível que seres primitivos cheguem a viver juntos, em paz. O humano,
não nos esqueçamos, descende de animais combativos, e quando seres tão rudimentares
convivem tão estreitamente, ofensas e agressões são inevitáveis.
"No caso dos primeiros "andonitas", as guerras não tardaram a eclodir entre as
diferentes tribos. E houve muitas e irreparáveis perdas entre os membros mais valiosos e
promissores. Tão trágicos foram os sucessos, e lamentáveis, que, afirma a "Quinta
Revelação", algumas linhas genéticas dotadas de mais aptidões e inteligência perderam-se
para sempre. Como se se tratasse de sombrio presságio - ponderou Sinuhe - aquela
belicosidade ampliou-se de tal forma que a raça "andônica" atravessou momentos graves,
chegando até mesmo ao risco de extinção total.
"Os "Portadores de Vida" conhecem essa tendência nas criaturas evolucionárias e
adotam disposições para dividir finalmente os humanos, ao menos em três raças
diferentes e separadas e, geralmente, em seis.
- Foi assim que nasceram as raças humanas e as diversas línguas?
- Os "Portadores de Vida" raramente atuam de forma drástica. Um de seus
princípios básicos, que teria encantado Darwin - comentou Sinuhe com seu senso de
humor -, é o progresso pela evolução e não pela revolução. Antes da sua dispersão, os
"andonitas" tinham uma linguagem comum e bastante aperfeiçoada. Essa língua
continuou enriquecendo-se, através de contribuições cotidianas, novos inventos e
progressivas adaptações ao meio. Este testemunho afirma que aquela foi a primeira língua
de IURANCHA, que prosperou até o ulterior aparecimento das raças de cor. Raças de que
lhe falarei amanhã...
A lua nova se aproximava. E Sinuhe, cada vez mais tenso, preocupava-se em
ultimar aquele trasfego de informações. Glória teria de conhecer, mesmo que apenas
superficialmente, o panorama do planeta naqueles primeiros tempos e, sobretudo, a
verdadeira origem dele. Assim pois, não sem algum remorso, decidiu concluir o
treinamento ainda naquela quarta-feira, 25 de julho.
- Como lhe referia, aquela série de batalhas acabou por mobilizar os clãs
"andonitas". E começou a grande dispersão. As sucessivas gerações introduziram-se na
África, mas não excessivamente. A geografia daqueles tempos os conduzia sempre para o
norte. E a grande viagem prosseguiu sempre nessa direção, até que foram detidos pelo
avanço lento da terceira glaciação.
"Mas, antes que o imenso manto de gelo os tivesse feito presa nas terras do que
hoje são a França e as ilhas Britânicas, os descendentes de Anton e Fonta haviam
avançado e progredido para o oeste, através da Europa atual. E ali levantaram mil
povoados, ao longo dos grandes rios que desembocam no mar do Norte, cujas águas,
então, eram cálidas.
Sinuhe alterou o tom da voz e, com certa emoção, anunciou para a companheira
"algo" que os paleontólogos ignoram ainda.
- Segundo a "Quinta Revelação" os membros dessas tribos "andônicas" foram os
primeiros povoadores das margens dos rios da França de hoje. Viveram, por dezenas de
milhares de anos, junto ao Somme. É o único rio que em seu curso não foi afetado pelas
geleiras. Naquelas épocas distantes corria para o mar, quase com a mesma trajetória de
hoje. Eis porque os achados paleontológicos ao longo do seu leito contam-se na
atualidade aos milhares... O triste -- refletiu Sinuhe - é que os cientistas não sabem que
tais restos humanos pertencem, nada mais nada menos, aos descendentes daqueles
gêmeos históricos... Os verdadeiros pais da humanidade, se não nos enganamos.
"Esses primeiros povoadores de IURANCHA - continuou lendo - já não habitavam
as copas das árvores, embora tivessem conservado o hábito de se refugiar nelas nos
momentos de perigo. Viviam, em geral, ao abrigo dos penhascos, quase sempre sobre os
rios ou em covas naturais nos alcantilados. Isso lhes garantia uma perfeita visibilidade dos
acessos e os protegia dos elementos. Dessa forma, podiam desfrutar do calor das
fogueiras sem que fossem incomodados pela fumaça...
- Eram os conhecidos trogloditas ou cavernícolas?
- Não exatamente. Só com o passar das idades e a chegada dos gelos, os
descendentes daqueles "andonitas" Viram-se impelidos a buscar refúgio nas covas. A
princípio, porém, preferiam acampar nos limites dos bosques e nas proximidades dos rios.
"Foram notáveis construtores de choças de pedra, em forma de domo ou cúpula,
que camuflavam habilmente, e em cuja habitação dormiam e se resguardavam. Fechavam
a entrada fazendo rolar uma grande pedra, que colocavam no interior antes de rematar o
teto.
"Os "andonitas" eram caçadores hábeis e intrépidos. A dieta baseava-se na carne,
complementada às vezes com bagas e frutos silvestres. E, assim como Andon foi o
inventor da machadinha de pedra, seus sucessores criaram e utilizaram a lança e o arpão,
tornando-se igualmente peritos no manejo de novas e cada vez mais refinadas
ferramentas.
"Sob muitos aspectos, essas tribos "andônicas" deram excelentes provas de
inteligência e progresso. Mais e melhores do que as que nos ofereceriam seus sucessores
em quase meio milhão de anos. Mas... é outra história...
Aquela revelação de uns "primeiros pais" da humanidade, diferentes da tradição
adâmica, cativou a senhora da Casa Azul. Glória teve de reconhecer, com Sinuhe, que
aquela parecia mais "lógica" e natural que a de um Adão subitamente nascido do barro
vermelho. Ambos haviam, desde crianças, feito a mesma pergunta: "Será que antes da
criação de Adão e Eva, não havia outros seres humanos sobre a Terra?"
- Mas, se aceitamos a "Quinta Revelação" - esgrimiu a filha da raça azul -, onde e
quando encaixamos Adão e Eva? Ou não terão existido?
- Vai aí uma opinião pessoal. Apesar de seus simbolismos, confusões, lacunas e, às
vezes, acréscimos inoportunos, a Bíblia tem razão. Pelo pouco que sei, Adão e Eva
existiram. Mas nem foram nossos primeiros pais (no sentido físico da expressão), nem sua
história foi escrita e transmitida com fidelidade. Nesses arquivos secretos de
IURANCHA, que você e eu devemos encontrar, está a verdade. A "verdade" (segundo a
"Quinta Revelação", claro) sobre quem foram Adão e sua companheira e sobre os
sucessos que protagonizaram...
Glória exclamou, sem poder conter-se:
- Então, que é que estamos esperando?
Sinuhe mostrou o céu, ao mesmo tempo que lhe pedia calma.
Lembre-se... a lua nova.
E o porta-voz da Escola da Sabedoria enveredou de novo por aquelas últimas
páginas, nas quais se recolhia a definitiva dispersão da raça "andônica"...
- Ao mesmo tempo em que os descendentes dos famosos gêmeos povoavam a
Europa e as terras da Ásia, o nível cultural e espiritual das tribos retrocedeu
lamentavelmente. Suas lutas e diferenças não tardaram a reativar-se, prolongando-se pelo
espaço de mais dez mil anos. Aquela tenebrosa Era iria finalizar-se com a aparição de um
humano excepcional: Onagar.
"A "Quinta Revelação" diz que esse "andonita" nasceu faz agora (1984) 983 373
anos. Assumiu a chefia da maior parte dos clãs e, à maneira do primeiro profeta e guia
espiritual da Humanidade, pacificou-os, fazendo com que adorassem, pela primeira vez
em IURANCHA, "Aquele que dá alento aos homens e aos animais".
- Eu pensei que Andon e Fonta adorassem a Deus...
- Não. Foi muito confusa a filosofia dos gêmeos. Andon terminou adorando o
fogo, pelo bem-estar que lhes proporcionava. A razão o compelia para a adoração do Sol,
mas tratava-se de uma "fonte" demasiado distante e aquele humano primigênio, como
tantos outros, caiu na veneração do fogo.
"Desde os primeiros tempos de sua existência como humanos, os "andonitas"
experimentaram um temor profundo pelas forças da Natureza. Não compreendiam o
trovão nem o raio nem tampouco o vento ou a chuva. Mas a fome, verdadeiro motor das
vidas, os levaria finalmente à adoração de determinados animais. Para Andon e seus
filhos, a carne dessas criaturas foi um símbolo da potência criativa e da fertilidade. E de
vez em quando estabeleciam o costume de designar alguns desses animais como objeto de
veneração. Naquelas épocas, o animal eleito era pintado, em geral toscamente, nas
paredes das cavernas. Mais avançado o tempo, esses deuses-animais eram representados
com maior perfeição e sensibilidade. Logo, esses povos "andônicos" renunciaram a comer
a carne do animal venerado pela tribo. Para criar impressões fortes no espírito dos jovens,
chegaram a estabelecer toda uma série de ritos e cerimônias em torno desses animais
sagrados. E mais tarde essas celebrações primitivas transformaram-se em autênticos
sacrifícios. Esta, nem mais nem menos, é a origem da introdução de sacrifícios rituais e
cruentos nos cultos. A idéia foi sustentada, inclusive por Moisés, e conservada por São
Paulo sob a forma da "doutrina de resgate por efusão ou derramamento de sangue".
Sinuhe valeu-se dos Evangelhos e leu em Hebreus (9,22):
- Diz Paulo: "Além do mais, segundo a Lei, quase tudo é purificado com o sangue,
e sem derramamento de sangue não há remissão."
"Mas continuemos com os "andonitas" e esse curioso personagem, Onagar. O
alimento, como eu lhe dizia, tinha importância capital para aquela gente. Hoje, talvez,
custe-nos compreendê-lo. E no entanto, segundo a "Quinta Revelação", esse capítulo vital
nas vidas dos primeiros humanos levaria Onagar (o grande instrutor) à elaboração da
primeira oração de que se tem notícia na Terra. Diz assim: "Oh, sopro de Vida! Dá-nos
hoje nosso alimento diário. Livra-nos da maldição do gelo. Salva-nos dos nossos inimigos
dos bosques e recebe-nos com misericórdia no Grande Além."
- A primeira oração humana! - sussurrou Glória.
- A primeira, sim. Mas aquele Onagar, providencial, levaria adiante outras muitas e
memoráveis ações.
- Onagar - prosseguiu Sinuhe - tinha seu quartel-general em Obar, uma colônia
situada na orla setentrional do antigo mar Mediterrâneo, que hoje é a região do mar
Cáspio. Era um ponto estratégico, pois a rota procedente da Mesopotâmia meridional em
direção ao norte cruzava com os caminhos do oeste, rumo à Europa. E dali Onagar foi
enviando educadores a todas as tribos, com a missão de propagar sua fé em uma Deidade
única e em uma vida futura que ele chamava o "Grande Além". Foram, em realidade, os
primeiros "missionários" de IURANCHA. Graças também a Onagar, os "andonitas"
passaram a cozer a carne. Assavam-na sobre pedras previamente aquecidas ou na ponta
dos seus bastões. Esse costume saudável, entretanto, acabou por perder-se e os
descendentes retornaram à ingestão de carne crua e sanguinolenta, com os conseqüentes
riscos sanitários.
"Esse grande mestre, filósofo e chefe espiritual da raça "andônica", foi o primeiro
artífice disso que hoje poderíamos definir como progresso. Instituiu um governo tribal e
pioneiro na Terra, organizando os homens de acordo com autênticas pautas sociais. Ele
morreu aos 69 anos, legando à humanidade toda uma
promissora "Idade de ouro". A primeira de IURANCHA. Desgraçadamente, após
esse florescer humano, os novos povos foram olvidando os ensinamentos de Onagar e
caindo em caos progressivo, em idolatria e bestialidade.
"E relata ainda a "Quinta Revelação que, embora Andon e Fonta e muitos
descendentes recebessem seus respectivos harmonizadores de pensamento, foi a partir de
Onagar que inumeráveis harmonizadores e anjos da guarda chegaram à Terra.
"Mas, como eu lhe dizia, aquela primitiva humanidade, longe de progredir tal
como estava previsto, retrocedeu. E durante quase 500 000 anos, até o momento em que
IURANCHA recebeu seu primeiro príncipe planetário (o nefasto Caligastia), os homens
se espalharam pelo mundo, cegados pelas trevas espirituais mais tétricas que possamos
imaginar.
"E a "Quinta Revelação" finaliza a trepidante história dos gêmeos, com as
seguintes palavras: "Andon e Fonta, os admiráveis fundadores da raça humana
primigênia, receberam a consagração do próprio valor no momento do julgamento de
IURANCHA, depois da chegada de Caligastia. E no momento conveniente emergiram do
mundo de 'Moroncia ou das Casas', com a categoria de 'cidadãos de Jerusem'. Embora
jamais tenham sido autorizados a regressar à Terra, conhecem a raça que fundaram,
sofreram angústia pela traição do príncipe planetário e entristeceram-se com o malogro de
Adão e Eva. Mas encheram-se infinitamente de gáudio com a notícia de que Micael
escolhera o mundo deles para cenário de sua encarnação última.
"Em Jerusem, Andon e Fonta se fundiram com seus respectivos harmonizadores
mentais, como o fizeram também muitos dos seus filhos, Sontad incluído. Entretanto, a
maior parte dos descendentes, entre os quais muitos imediatas, só conseguiram a fusão
com o Espírito. Pouco depois de chegados a Jerusem, os gêmeos receberam do Soberano
do sistema autorização para voltar ao Primeiro Mundo de Moroncia e, dali, servir os
'peregrinos ascendentes' de IURANCHA. Foram agregados a essa missão por tempo
indeterminado. Por ocasião das presentes revelações, Andon e Fonta tentaram fazer
chegar seus melhores votos para IURANCHA, mas a petição foi sabiamente rejeitada.
"Este (conclui a 'Quinta Revelação') é o capítulo mais heróico e apaixonante da
história de IURANCHA: o relatório da luta pela vida, da morte e da sobrevivência eterna
dos 'pais' extraordinários de toda a humanidade."
Sinuhe tornara a mencionar um nome que intrigava poderosamente a filha da raça
azul: Caligastia, o príncipe do planeta IURANCHA. Perguntou por ele.
O amigo repetiu-lhe o que ela já sabia:
- Há vários momentos na "Quinta Revelação" em que a informação é mais detida.
Este é um deles...
"Sabemos que o primeiro príncipe planetário da Terra foi o tal Caligastia. Sabemos
também que apareceu em IURANCHA há cerca de 500 000 anos. Isto é, exatamente
quando os descendentes de Andon e de Fonta haviam caído, já o lembramos, em uma Era
de trevas. Sabemos igualmente que esse ser celeste e seu Estado-Maior (permita-me a
licença) desempenharam papel decisivo no ressurgimento da humanidade. Mas "algo" não
deu certo. E eis que é esse "algo" o que nós (você e eu) devemos verificar. Minhas
informações acusam a Lúcifer como responsável direto por esse "problema", ou seja lá o
que for, de tão nefastas repercussões, passadas e presentes, para o planeta.
"Posso dizer-lhe unicamente que a "Quinta Revelação" deixa entrever que esse
"fracasso" do príncipe de IURANCHA poderia estar relacionado com a rebelião. Mas, se
devo ser sincero, tudo são especulações. A verdade, não a conhecemos. A verdade está
escondida nesses arquivos que temos de encontrar...
"500 000 anos? Caligastia? Um Estado-Maior celeste? Um fracasso? Lúcifer e seu
motim?"
Eram perplexidades demais para a filha da raça azul e também para Sinuhe. Mas a
irritante situação, em lugar de intimidá-los, avivou-lhes a curiosidade. Sim, era preciso
localizar esses malditos arquivos secretos e saber que foi que aconteceu naquela obscura e
remota época da humanidade.
- E nisso tudo - insistiu Glória - onde figura a chamada "raça azul"?
- Já chegamos lá. Segundo consta desta documentação secreta, justamente nos
tempos em que Caligastia foi enviado para IURANCHA (há meio milhão de anos, você
sabe), surgiram no planeta os primeiros indivíduos de cor. E, diz a "Quinta Revelação",
esses indivíduos nasceram do mesmo pai e da mesma mãe: dois exemplares de
inteligência notável, assentados, então, em uma tribo do nordeste da índia atual. Essa
família foi conhecida como Sangik. Tiveram dezenove filhos: cinco vermelhos, dois
alaranjados, quatro amarelos, dois verdes, quatro azuis e dois violáceos. E deles
germinariam todas as raças de cor conhecidas na Terra.
Glória, estupefata, fitou o amigo com benevolência meio irônica.
- Já sei - antecipou-se Sinuhe, adivinhando o fundo ceticismo da interlocutora -, sei
o que você está pensando. Mas permita que eu cumpra com a primeira parte da minha
tarefa: informá-la sobre o que diz textualmente essa "revelação"...
"A extraordinária miscigenação que se deu em IURANCHA (prossegue o texto)
em virtude das migrações e das guerras, ocasionou uma situação nada fácil de estudar e
definir. Digamos simplesmente que as raças alaranjada e verde foram praticamente
exterminadas. Que a vermelha, escorraçada da Ásia pela amarela, emigrou para a atual
América pela ponte terrestre de Bering. Que as raças de tipo negróide originam-se da
índigo ou violácea e que a branca descende daqueles primeiros indivíduos de pele
azulada."
- A raça azul! Então, não compreendo... Se o homem branco atual procede dessa
primitiva raça azul, por que você diz que sou a filha da raça azul?
A perturbação que aquela passagem provocou na senhora da Casa Azul era
compreensível. Então Sinuhe tratou de deixar as coisas no devido lugar.
- Não se precipite. Há alguma coisa que você ainda ignora...
- Você tem razão em um ponto. Eu, um homem de raça branca, como tantos e
tantos milhões no mundo, provavelmente procedo dessa suposta raça azul de que fala a
"Quinta Revelação". Mas seu caso é diferente...
Glória fulminou-o com o olhar.
- Que é que você quer dizer?
- A partir de informações, corroboradas por mim e por outros... digamos "amigos",
dos quais não lhe posso falar agora, você, Glória, é uma das últimas representantes de
outra raça azul. Uma raça de que não lhe falei ainda, entre outras razões porque não
disponho quase de informação.
Glória fez um trejeito que lhe refletia o desalento diante de semelhante galimatias.
- Houve, diz aqui, uma raça azul primigênia - continuou Sinuhe, com uma
parcimônia de paquiderme - nascida dessa família chamada Sangik, há uns 500 000 anos.
E, desses supostos quatro indivíduos azuis, derivaram os homens brancos. Porém, muito
tempo depois... Insisto: sempre segundo a "Quinta Revelação"...
- Pelo amor de Deus! Quer ir ao núcleo?
- Sim, perdão...
Sinuhe compreendeu a impaciência da "aluna". Tentou não cair em novos rodeios
ou circunlóquios.
- ... Muitos anos mais tarde (não lhe posso precisar a data), quando os primeiros
indivíduos "azuis" já haviam desaparecido para dar lugar aos brancos, IURANCHA viveu
outro sucesso extraordinário: a chegada de uns seres alheios à Humanidade (preste muita
atenção nisso) de cor azul ou talvez violeta. Isto também não aparece claro na "Quinta
Revelação". E esses seres, talvez celestes, procriaram novos humanos, que também se
multiplicaram e se estenderam pelo globo terrestre. E, pelas informações que tenho, você
(é isso, você) seria a última, ou uma das derradeiras, representante ou "filha dessa
segunda raça azul"...
Glória guardou silêncio. Mal teve forças para murmurar:
- Eu?... Mas quem eram esses "pais" da segunda raça azul?
Sinuhe não respondeu.
Glória sabia que o amigo ocultava - como quase sempre - muito mais do que
contava. Fez então o impossível para pressioná-lo. O investigador, porém, conservava-se
impenetrável. Entretanto, ali ele foi sincero:
- Eu a enganaria se não lhe dissesse que tenho (ou temos) uma suspeita
mortificante sobre quem foram, em realidade, esses progenitores da última e
transcendental raça azul... Mas foi-me terminantemente proibido difundir o que
verdadeiramente só é uma suposição. Confie em mim. Essa, querida amiga, é outra razão
por que estou aqui, com você: devemos desvendar o mistério que vem envolvendo esses
"pais" da segunda raça azul.
- Por quê? - esgrimiu Glória, tentando que o amigo mordesse a isca -. Por que é tão
importante saber quem foram esses forasteiros?...
Sinuhe limitou-se a esboçar um interminável sorriso. A senhora da Casa Azul teve
de resignar-se.
A instrução intensiva da filha da raça azul estava praticamente terminada. Foi o
que Sinuhe lhe fez ver, fechando a volumosa e misteriosa fonte de informação: aquela
que ele denominava "Quinta Revelação".
- Se bem compreendi - recapitulou Glória - nossa missão consiste em localizar os
arquivos secretos de IURANCHA, em poder dos rebeldes desde que eclodiu a rebelião de
Lúcifer. Correto?
Sinuhe moveu a cabeça silenciosa e afirmativamente.
- Se não me engano - continuou a companheira, que recuperara seu equilíbrio
habitual -, nesses arquivos está a informação completa sobre as causas da rebelião, sobre
suas conseqüências na Terra e sobre a identidade desses seres que procriaram, em
IURANCHA, a raça azul, da qual eu faço parte...
- Você se está esquecendo de alguma coisa. Nesses arquivos encontra-se também a
possível explicação de por que Caligastia teria fracassado e sobre quem foram na verdade
Adão e Eva. E qual pode ter sido a natureza do seu histórico erro...
- E você por acaso pretende que nós dois descubramos esses arquives? Você está
louco?
- De qualquer forma - corrigiu-a com afeto - maravilhosamente loucos!
Glória assentiu.
- Mais perguntas? - interveio Sinuhe, por cuja mente voltava a rondar a idéia de
visitar a torre do velho casarão da Câmara Municipal. Faltavam 48 horas para a lua nova,
e o tempo corria.
- Mais perguntas? Milhares, eu diria! Mas neste instante só quisera propor uma...
Ou talvez não passe de uma simples reflexão...
- Você dirá...
- Se o nascimento ou "semeadura" da Vida em nosso mundo foi obra dos
chamados "Portadores de Vida", e se esses seres celestes se movem e atuam segundo
planos e padrões perfeitamente estudados, por que a humanidade de IURANCHA teria
fracassado?
Sinuhe respondeu à pergunta direta e dura; no início, com grave silêncio. Depois,
retomando a "Quinta Revelação", buscou-lhe entre as páginas.
- Podemos falar de "fracasso"... em parte. Mais: adianto-lhe que boa dose dessa
falha relativa dos homens pode ter tido suas raízes em outros seres... não humanos. Como
você percebe, voltamos a um dos objetivos da nossa missão. Mas, já que você tocou no
assunto, deixe-me que lhe exponha algumas das noções que, neste sentido, dizem terem
sido transmitidas pelos próprios "Portadores de Vida", e que constam destas "revelações".
Para começar, IURANCHA, como você sabe, é um planeta decimal. Em conseqüência,
sujeito a maiores problemas de indisciplina e alterações do que parece ser o "plano
cósmico universal"...
- Em outras palavras - Glória simplificou - não passamos de "porquinhos da
índia"...
- Se a "Quinta Revelação" estiver certa, essa expressão (embora com certa base),
soaria, pelo menos, irreverente...
- Desculpe! Você sabe que não é minha intenção... Sinuhe, no fundo, também
pensou nisso uma que outra vez.
Porém, mudava quando se tinha acesso àquela parte da informação secreta.
Continuou:
- Vimos como Andon e Fonta, os gêmeos e nossos "primeiros pais", surgiram de
um tronco, que teve duas grandes ramificações: uma regressiva, que deu origem aos
macacos, e outra progressiva, da qual floresceu o ser humano propriamente dito. E esse
"tronco comum", de acordo com a "Quinta Revelação" e a ciência hodierna, pôde ter sido
formado por uma espécie de seres "hominídeos" ou pré-humanos. Quem sabe? Talvez
esses Australopithecus, cujos restos se encontraram na África...
"Quero, com isso, conduzi-la a uma questão-chave: você crê que a súbita aparição
dos gêmeos em uma "família" de pré-humanos ou primatas deveu-se a uma casualidade?
Ou pode ter sido fruto de uma evolução... inteligentemente conduzida?
A senhora da Casa Azul, como já o supunha o membro da Escola da Sabedoria,
não se pronunciou. Quem poderia e quem poderá, contando apenas com a razão, iluminar
semelhante enigma?
Sinuhe, tendo advertido a companheira sobre a dificuldade de alguns dos termos
que lhe desvelaria, arremeteu com a que seria a última "informação" antes da grande
partida.
- Em relação ao que "eles" (os "Portadores de Vida") chamam o "supercontrole da
evolução", estes documentos dizem, entre outras coisas, que "a vida material
evolucionária" (vida anterior à aparição da inteligência propriamente dita) redunda de
uma colaboração entre os Mestres Controladores Físicos e o ministério de Transmissão de
Vida, através dos sete Espíritos Mestres em conjunção com os ativos cuidados dos
Portadores de Vida responsáveis. Em conseqüência do funcionamento coordenado dessa
tríplice atividade criadora, desenvolve-se uma aptidão físico-orgânica para pensar
mecanismos materiais, destinados a reagir inteligentemente aos estímulos do meio
exterior e, posteriormente, aos que chegam do próprio órgão pensante. De acordo com
isso, são três os níveis de geração e evolução da vida:
"1. O nível físico-energético, ou produção da aptidão mental.
"2. O ministério de inteligência dos espíritos agregados, procedendo e preparando
a aptidão espiritual.
"3. A dotação espiritual da inteligência humana, que culmina com a concessão dos
"harmonizadores de pensamento".
"Os níveis, não passíveis de serem ensinados, de reação maquinai do organismo
em torno, constituem o domínio dos Controladores Físicos. Os Espíritos Mentais
Agregados ativam e regulam os tipos de inteligência adaptáveis ou não-maquinais
(mecanismos de reação de organismos capazes de aprender por experiência). E da mesma
forma que os Agregados Espirituais manipulam as potências da mente, os Portadores de
Vida exercem um controle discricional considerável nos aspectos ambientais dos
processos revolucionários, até o momento em que aparece a vontade humana, a aptidão
para conhecer a Deus e a faculdade de escolher adorá-lo.
"É a atividade integrada dos Portadores de Vida, dos Controladores Físicos e dos
Agregados Espirituais a que condiciona o curso da evolução orgânica nos mundos
habitados...
Sinuhe levantou a vista e percebeu como Glória, obviamente, tornou a perder o fio
daquelas palavras indecifráveis.
- Talvez possamos resumir tudo o que foi dito com uma frase tão singela quanto
transcendental: a evolução, em IURANCHA ou em qualquer outro planeta, é sempre
premeditada, nunca acidental.
- Isso não agradará a cientistas e racionalistas - sussurrou Glória, divertida.
- Não, evidentemente... Mas para você e para mim é tranqüilizador.
- Pelo que vejo, e como suspeitava, esses curiosos "Portadores de Vida" -
comentou Glória - exerceram papel importantíssimo na "semeadura" da Vida..,
- Na "semeadura" e em qualquer coisa mais... - retificou Sinuhe -. Observe o que
se diz a seguir: "Esses seres (os Portadores) são dotados de potenciais de metamorfose da
personalidade. Poder que poucas categorias de criaturas celestes possuem..."
Após uma pequena pausa, baixando o tom de voz, o investigador confessou à
companheira:
- Se é verdade que algum dia vamos ressuscitar nesses Mundos de Moroncia, sabe
que papel ou nova "profissão" me agradaria mais?
A filha da raça azul conhecia bem as idéias peregrinas do velho amigo. Assim,
aguardou algum disparate.
- Portador de Vida... Fosse tudo isso certo, e supondo-se que se pode escolher, eu
ficaria encantado por dedicar "meu tempo" à "semeadura" da Vida por outros mundos...
Glória não percebeu se ele falava sério ou de brincadeira.
- Mas continuemos. O que acontece quando esses Portadores de Vida se preparam
para uma nova "semeadura", assim como parece ser que aconteceu em IURANCHA?
- Uma vez eleito o lugar ideal para a "semeadura", os Portadores (diz a "Quinta
Revelação") convocam a chamada Comissão Arcangélica de Transmutação. Integram
esse grupo dez ordens de personalidades diversas, compreendendo os Controladores
Físicos e seus associados. Preside a Comissão o chefe dos arcanjos, atuando por ordem de
Gabriel e com a autorização dos Anciãos dos Dias. Quando esses seres se encontram "em
circuito", podem efetuar nos Portadores de Vida modificações que lhes permitirão operar
de imediato ao nível físico da eletroquímica.
"Formulados os arquétipos de vida (note como isso é importante), devidamente
complementadas as organizações materiais, as forças supramateriais implicadas na
propagação da Vida ativam-se, e a Vida "nasce": manifesta-se.
"Nesses momentos, os Portadores de Vida são imediatamente recolocados no
estado "mediano" habitual (quase "moroncial") de sua personalidade. Nesse segundo
nível os Portadores podem manipular os elementos viventes e manobrar os organismos
em evolução, mas atenção: já não podem criar nem organizar novos arquétipos ou formas
de matéria vivente. Ainda mais: quando a evolução orgânica segue já determinado curso e
o discernimento ou livre arbítrio (de tipo humano) faz sua aparição nos organismos mais
elevados, esses Portadores são constrangidos a sair do planeta ou a prometer renúncia...
Glória, cheia de curiosidade, perguntou:
- E se falham esses planos evolutivos dos Portadores?
- Então, nesse caso, a sabedoria das personalidades celestes chega a um extremo tal
que, pelo que tenho entendido, existem outras "medidas" de correção. Por exemplo, uns
seres cósmicos chamados...
Sinuhe hesitou^ Devia pronunciar aqueles nomes, se nem sequer tinha certeza?
- ... uns seres cósmicos chamados Adão e Eva - concluiu finalmente.
A senhora da Casa Azul, sorte para Sinuhe, não se deu conta do que acabava de
ouvir. Ele, rápido e vivo, aproveitou o lapso da companheira, enfronhando-se de novo nó
tema dos Portadores de Vida.
- Em outras palavras: que esses incríveis seres celestes (os Portadores), uma vez
terminada sua tarefa, têm de comprometer-se a não interferir na evolução orgânica. Seja
qual for o resultado.
"Se os Portadores não abandonam o mundo (ouça até que extremo existe um
controle da Vida) e, como segunda alternativa, decidem fazer voto de renúncia,
permanecendo assim no planeta, para aconselhar no futuro àqueles que terão a missão de
proteger as criaturas recentemente evolucionadas, convoca-se uma comissão de doze
membros, presidida pelo chefe das "Estrelas da Tarde". Essas doze personalidades atuam
a mando do Soberano do sistema em questão, e com a devida autorização de Gabriel.
Nesse caso, os citados Portadores de Vida são transmudados ao terceiro nível ou fase de
sua existência: o chamado semi-espiritual. O Portador de Vida de Nebadon, que divulgou
esta parte da "Quinta Revelação", diz de si mesmo, neste sentido: "Sempre atuei em
IURANCHA debaixo dessa terceira fase ou forma de existência, depois da época de
Andon e Fonta. Esperamos com satisfação o momento em que o universo ancore na luz da
Vida, talvez um quarto estado de existência, em que seremos totalmente espirituais; mas a
técnica que nos proporcionará esse superior e desejável estado ou natureza, essa, nunca
nos foi revelada".
- Três ou quatro níveis ou fases de existência? - perguntou Glória, pensando ter
entendido mal.
- Três estados, sim, para esses Portadores de Vida. Primeiro: o físico da
eletroquímica. Segundo: a fase "mediana" ou quase "moroncial", que (diz aqui), seria uma
matéria "entre o físico e o espiritual". A "matéria" que constituirá nosso "suporte físico"
ou "corpo", uma vez ressuscitado... E terceiro, o nível semi-espiritual avançado, que é o
estado em que se encontra nestes momentos o mencionado Portador de Vida. E ainda
deve existir um quarto nível ou fase... Mas prossigamos com nossa história: como surgiu
o homem na Terra e como atuaram esses Portadores de Vida?
- A história da ascensão dos humanos (reza a "Quinta Revelação"), desde o estado
de alga marinha até o domínio das criações terrestres, não é mais que uma epopéia de
combates biológicos e de sobrevivência mental...
- Quem foram, concretamente, os primeiros e autênticos antepassados do homem?
- Embora nos pese, procedemos do barro e do limo (literalmente) depositados no
fundo dos mares interiores e das lagoas de águas cálidas e estancadas nas costas desses
mares. Aí, de acordo com estes dados, estabeleceram os Portadores as três implantações
de Vida. Mas, daqueles tipos primitivos de vegetais marinhos, que proporcionaram as
históricas mutações e delas participaram até dar lugar à vida animal, pouquíssimos
subsistem ainda hoje. As esponjas, por exemplo, constituem um desses heróicos
sobreviventes... Os animais monocelulares de tipo primitivo não tardaram a formar
colônias, como ocorre com os corais e as famílias da medusa. Mais tarde apareceram, por
evolução, as estrelas do mar, crustáceos, holotúrias, ouriços, insetos, aracnídeos etc, assim
como os grupos mais próximos às minhocas e sanguessugas, seguidos, depois, por
moluscos, ostras, polvos e caracóis. Centenas de espécies surgiram e se extinguiram. As
que mencionamos (diz ainda a "Quinta Revelação") são aquelas que sobreviveram mas
que, tal como a família dos peixes, aparecida mais tarde, representam na atualidade os
tipos de animais estacionários que não conseguiram progredir...
"O cenário achava-se preparado, pois, para a aparição dos primeiros animais
vertebrados: os peixes. E destes, com o passar de milhões de anos, derivaram duas
modificações excepcionais: a rã e a salamandra...
Sinuhe virou-se para Glória, e comentou com uma ponta de ironia:
- E aqui se diz, definitivamente, "que o homem é homem graças à rã". Como já
vimos, foi ela que, parece, inaugurou a longa série de diferenciações que desembocariam
no ser humano propriamente dito...
- A rã? Quem o diria...
- Sim, segundo isto, trata-se de um dos mais antigos sobreviventes dentre os
ancestrais da raça humana.
A filha da raça azul lembrou-se então - talvez por associação de idéias -, daquele
velho conto infantil, em que um príncipe é presa de encantamentos malignos e
transformado em sapo ou rã e vice-verso. Perguntou-se o porquê da existência de tal
conto. Será que no mais íntimo dos genes humanos palpita ainda algum tipo de
informação que nos lembre esse remoto pretérito?
- A rã - foi continuando o investigador - é o único antecessor da raça humana que
ainda vive sobre o planeta. Todas as espécies intermediárias entre a rã e o esquimó
desapareceram. As rãs permitiram o nascimento dos répteis (muitas famílias também já se
extinguiram) e estes, por sua vez, propiciaram a aparição das aves e de ordens de
mamíferos. O marco maior de toda a evolução pré-humana se deu quando o réptil voou
como pássaro.
"No total, apareceram em IURANCHA catorze phylum (espécie celular, mãe de
uma série de seres que formam um ramo zoológico)...
- Não são muitos - desafiou Glória.
- Não, é verdade. Os peixes formam o último e nenhuma classe nova se
desenvolveu depois dos pássaros e mamíferos. E você continuará perguntando-se como
terá sido a manipulação desses Portadores de Vida para que terminassem por arrancar
nossa espécie humana. Foi a partir de um pequeno e ágil dinossauro. De um réptil de
costumes carnívoros, mas dotado de um cérebro relativamente importante...
- Procedemos de um dinossauro? - exclamou a filha da raça azul.
- Não de todo. Foram os primeiros mamíferos placentários os que, segundo estes
papéis, nasceram desse dinossauro. E tais mamíferos placentários (dos quais é um
exemplo a família do canguru) desenvolveram-se vertiginosamente e por caminhos bem
diferentes. Não só deram origem às variedades comuns e conhecidas hoje em dia, mas
também a formas marinhas, como é o caso da foca e da baleia. Registraram-se ainda
variantes "aéreas", como, por exemplo, o morcego.
"O homem evoluiu, portanto, a partir dos mamíferos superiores, derivados
principalmente da implantação levada a efeito nas áreas ocidentais do planeta; sobretudo
naquela efetuada nos antigos mares abrigados e com uma orientação este-oeste. Quanto
aos grupos oriental e central de organismos viventes, estes progrediram favoravelmente
no seu princípio em direção aos níveis pré-humanos de existência animal. Mas, à medida
que se passaram as Eras, esse foco oriental de vida foi incapaz de alcançar um nível
satisfatório frente a um possível Estatuto Pré-humano de Inteligência. Sofreu perdas
irreparáveis em seus tipos mais promissores e de maior elevação em seu plasma
germinativo, de tal forma que acabou por desaparecer.
"Como a qualidade de aptidão mental em desenvolvimento fosse claramente
inferior no grupo oriental, em comparação com os outros grupos, os Portadores de Vida
(com o consentimento de seus superiores) manipularam o meio ambiente de forma a
proporcionar vantagens às tendências pré-humanas inferiores da vida evolutiva. E,
segundo as aparências exteriores, a eliminação dos grupos inferiores de criaturas foi
acidental. Foi outra a realidade: esteve tudo perfeitamente premeditado.
"Em data ulterior ao desdobramento evolucionário da inteligência, os antecessores
lemurianos da espécie humana estavam muito mais avançados na América do Norte do
que nas demais regiões. Foi por essa razão (fala a "Quinta Revelação") que se lhes
induziu a deixar o espaço da implantação da vida no Ocidente de IURANCHA para
passar pela ponte de Bering, ao longo da costa, até o sudoeste da Ásia, como você já sabe.
Ali, continuaram evolucionando, beneficiando-se de certas tendências trazidas pelo grupo
central de vida. O homem, pois, evolucionou a partir de certas linhas vitais do centrooeste,
mas nas regiões do centro-leste do mundo.
"E assim, chegamos à Era glacial: época em que pela primeira vez surge uma
parelha humana: os gêmeos Andon e Fonta...
- E por que justamente nesse momento, por que não em outro?
- Aparentemente, os Portadores de Vida fixaram essa Era por uma razão básica:
"Os rigores e a severidade climatológica (diz aqui) da Era glacial estavam perfeita e
minuciosamente programados para obter um fim: estimular a produção de um tipo robusto
de ser humano, dotado de prodigiosa aptidão para sobreviver."
Contemplando a amiga, Sinuhe acrescentou:
- Estranho. Muito estranho...
- Mas não é menos estranho o que vem a seguir - afirmou o membro da Escola da
Sabedoria, emendando com outro capítulo não menos polêmico -. No dia em que essa
"Quinta Revelação" se torne definitiva e oficialmente pública em todo o mundo, não será
fácil explicar aos pensadores como se produziram alguns dos sucessos, aparentemente
grotescos, que cercaram a evolução humana. A despeito das teorias e hipóteses em moda,
todas essas evoluções dos seres vivos perseguiram plano preconcebido. "Entretanto
(narram os Portadores de Vida), quando esses arquétipos viventes começam a funcionar
por si mesmos, nós não temos o direito de arbitrar sobre o desenvolvimento deles."
- Que quer dizer essa última assertiva?
- Que os Portadores podem utilizar todos os meios naturais possíveis e todas as
circunstâncias fortuitas susceptíveis de contribuir para o progresso evolutivo da
experiência de vida, mas não lhes é permitido intervir mecanicamente na evolução vegetal
ou animal, nem tampouco obrar a bel-prazer no curso e orientação dessa experiência vital.
- E se aquela famosa rã - veio Glória, com sua acuidade - tivesse sofrido algum
acidente lamentável? De acordo com isso, adeus humanidade!...
Sinuhe desaprovou com a cabeça.
- Nada disso. O Portador de Vida de Nebadon, residente em IURANCHA e autor
destas páginas da "Quinta Revelação", sai precisamente de encontro a esse argumento, e
diz: "Vós aprendestes que os mortais de IURANCHA desenvolveram-se por evolução, a
partir de uma rã primitiva, e que essa linha ascendente iniciou-se potencialmente pela
única rã que escapou, por pouco, à destruição. Não devemos deduzir daí que a evolução
da humanidade se tivesse detido por semelhante acidente e naquele momento crítico..."
Sinuhe interrompeu a leitura e pediu à companheira que meditasse sobre a
passagem que já ia ler.
- ... "Naqueles tempos (diz o Portador de Vida), observávamos e também
cuidávamos de pelo menos um milhar de linhas de vida: mutantes, diversificadas e muito
afastadas umas das outras, que teriam podido ser dirigidas para diversos arquétipos de
desenvolvimento pré-humano. A rã ancestral em pauta representava nossa terceira
seleção. As duas primeiras linhas malograram, apesar dos nossos ingentes esforços por
conservá-las."
- Quer dizer - concluiu a senhora - que já estava tudo previamente estabelecido e
programado...
-É incrível; e até que extremo - disse Sinuhe, com um laivo de fatalismo -. Está
dito aqui: "Nem mesmo a perda dos gêmeos, antes que tivessem procriado descendência,
teria podido impedir a evolução humana. Quando muito, atrasado."
- Em outras palavras, se não tivéssemos partido da rã, tê-lo-íamos feito do
crocodilo ou do cavalo...
Sinuhe não deu muita atenção às ironias de Glória. Continuou:
- Depois da aparição de Andon e Fonta, e antes que os potenciais mutantes
humanos da vida fossem esgotados, não evolucionaram menos que 7 000 linhas
favoráveis, que teriam podido alcançar algum tipo humano de desenvolvimento. Muitas
dessas boas linhas foram ainda assimiladas, mais tarde, pelos diferentes ramos da raça
humana, em plena expansão.
Fez-se silêncio. Os dois trocaram um olhar significativo. Olhar que talvez se
tivesse podido traduzir nos seguintes termos:
"Nascerá em algum futuro um novo tipo de homem, partindo, precisamente, de
qualquer dessas linhas de animais com capacidade de mutação?"
"A Divindade e seus 'intermediários' podem ter previsto, inclusive, a extinção da
raça humana atual e o nascimento, em épocas vindouras, de um novo homem?"
Foi Glória, uma vez mais, quem se atreveu a formular em voz alta os seus
pensamentos.
O amigo, embora sob esse ponto de vista não se achasse muito de acordo com a
"Quinta Revelação", fez um gesto de impotência e continuou a leitura:
__ A humanidade deve resolver seus problemas de desenvolvimento mortal sobre
IURANCHA com a ajuda dos recursos humanos de que dispõe. "Nenhuma raça nova" -
leu, ruminando cada palavra - "evoluirá no futuro a partir de fontes pré-humanas!" Você
está percebendo? Segundo isto, não haverá novas nem futuras "humanidades" sobre a
Terra. Somos os últimos...
"Isso não descarta (ainda a "Quinta Revelação") de modo algum a hipótese de que
o homem consiga níveis muito mais altos de desenvolvimento, se mantiver
inteligentemente os potenciais evolucionários que subsistem ainda dentro das raças
humanas. O que nós, os Portadores de Vida, fazemos por conservar e promover, antes que
a vontade humana apareça nessas linhas viventes, devem os homens consegui-lo por si
mesmos, já que nós nos retiramos de qualquer participação ativa na referida evolução."
"Em outras palavras - resumiu Sinuhe - diz que, a partir de determinado momento
da existência humana, o destino do homem repousa única e exclusivamente em suas
próprias mãos.
"... E a inteligência científica, cedo ou tarde, deve substituir o caótico
funcionamento de uma seleção natural não controlada e de uma sobrevivência... submersa
no acaso."
Na mente da filha da raça azul agitavam-se sempre as perguntas. Uma delas, já a
ponto de esfumar-se entre tantas outras, reapareceu-lhe quando do comentário do repórter.
- Se não me engano, IURANCHA foi um dos últimos mundos do nosso universo
local em que se "semeou" a Vida.
- Correto.
- Bem, nesse caso é natural imaginar que nossa forma física é similar à de outros
habitantes de milhões de planetas...
- Embora a "Quinta Revelação" esclareça que IURANCHA constituiu um ensaio
(um planeta decimal), em que os Portadores de Vida efetuaram sua tentativa número 70
para modificar e melhorar "a adaptação ao sistema de Satânia dos arquétipos de vida de
Nebadon", é evidente que somos nós, os humanos, que nos parecemos com os
extraterrestres e não eles conosco... Entre outras razões porque, se tudo isso for verdade,
"eles" são muito mais velhos ou antigos no tempo.
"Com relação a esse tema, os próprios Portadores dizem: "Reconhece-se que
realizamos numerosas mudanças benéficas nos tipos padrões de vida. Para sermos
precisos, elaboramos sobre IURANCHA, com resultados satisfatórios, no mínimo vinte e
oito pormenores de modificação de vida, que em tempos futuros serão úteis para todo
Nebadon. Entretanto (e com isso respondo também à sua pergunta), nunca, em planeta
algum, pratica-se um ensaio de vida que não tenha sido estudado previamente. A
evolução da vida é sempre uma técnica progressiva, diferenciada e variável, embora
nunca seja utilizada às cegas, sem controle, nem em uma direção experimental que se
possa ver subitamente alterada por algo acidental.
"Numerosos traços da vida humana (afirmam os Portadores) provam fartamente
que o fenômeno da existência mortal foi inteligentemente concebido e preparado; que a
evolução orgânica não é um simples acidente cósmico. Uma célula ferida é capaz de
elaborar certas substâncias químicas, por exemplo, que têm o poder de estimular e ativar
as células sãs e vizinhas, de forma que estas segreguem imediatamente outros produtos
que facilitam os processos de cura da ferida. Ao mesmo tempo, as células normais e
intactas começam a proliferar, criando novas células capazes de tomar o lugar das que se
destruíram.
"Essa série de ações e reações químicas, que promovem definitivamente a cura das
feridas e a reprodução das células, representa a eleição (feita pelos Portadores de Vida) de
uma fórmula que abarca mais de cem mil fases e reações químicas, com todas as suas
repercussões biológicas possíveis. Mais de meio milhão de experiências científicas foram
efetuadas pelos Portadores de Vida em seus laboratórios, antes que adotassem a fórmula
definitiva para a experiência de vida em IURANCHA.
"Quando os sábios deste planeta conhecerem tais substâncias químicas.curativas,
poderão tratar as feridas mais eficazmente e, de forma indireta, controlarão também certas
enfermidades graves... Depois do estabelecimento da vida em IURANCHA, nós, os
Portadores de Vida, melhoramos a técnica curativa, introduzindo-a em outro planeta do
sistema de Satânia. E agora, representa grande alívio para a dor, permitindo que seus
habitantes exerçam melhor o controle sobre a capacidade de proliferação das células
normais associadas..."
- Ouvindo esses documentos - lamentou-se Glória - parece assim como se a
totalidade do universo vivesse em paz, na beleza e no progresso. E nós, ao contrário, não
progredimos... Por quê? Será que nós, descendentes de Andon e Fonta, cometemos algum
pecado especial?
Sinuhe atribuiu aquela divagação da amiga ao intenso bombardeio de informações
que há dias a alvejava. Compreensivelmente sobreviria o cansaço mental. Embora o
membro da Loja acreditasse já ter respondido a essas questões, lembrou à Glória que
IURANCHA era um mundo "decimal" e, por conseguinte, sujeito a múltiplas peripécias,
entre as quais o risco de desordens.
- Conforme o que diz a "Quinta Revelação", o fato de a raça "andônica" aparecer
antes dos humanos de cor e que estes, por sua vez, nascessem no planeta de uma só
família, demonstra que vivemos em um astro bem singular... Nosso mundo parece ter sido
o primeiro do sistema de Satânia em que essas seis raças de cor constituíram descendência
direta de uma única família humana. O habitual deve ser que essas raças surjam em linhas
diversificadas e como conseqüência de mutações independentes no ramo ou tronco animal
pré-humano. A "Quinta Revelação" afirma que aparecem uma a uma e sucessivamente,
no curso de prolongados períodos, começando pelo homem vermelho. A última raça é
quase sempre a índiga, que dá o negro. Além do mais, já lhe informei sobre outro "fator"
que fez com que se frustrasse (ou pelo menos freasse) a evolução normal da humanidade:
Caligastia.
A filha da raça azul foi rememorando...
- Na opinião desses Portadores de Vida, o habitual em um mundo que nasce é que
o que poderíamos definir como a "vontade humana" não surja e se fortaleça só muito
tempo depois da aparição das raças de cor...
- E aqui, em IURANCHA - antecipou-se Glória - aconteceu o inverso.
- É o que dizem nossas informações.
- Foi também um acontecimento premeditado?
Ele respondeu com um parágrafo textual da "Quinta Revelação":
"Foi nossa intenção (referem os Portadores) produzir precocemente uma
manifestação da vontade na vida evolucionária de IURANCHA e o conseguimos."
- Andon e Fonta...
- Sim, Glória querida. Segundo esses Portadores, a "vontade humana" emerge
normalmente quando as, raças de cor progridem. E, em geral, o primeiro a ostentá-la é o
tipo superior de homem vermelho.
- Os que chamamos depreciativamente "peles-vermelhas"?
- É isso. Como você vê, essa informação está repleta de surpresas.
- Não nos desviemos do assunto: Caligastia. Que mais você pode dizer?
- Pouco, muito pouco... Nós é que temos de preencher essa lacuna. Entretanto,
observe um detalhe significativo: esse príncipe planetário não viajou para IURANCHA
quando realmente devia, quer dizer, há um milhão de anos: no tempo em que os gêmeos
desenvolveram a vontade. Era o que teria sucedido em um mundo normal. Mas o nosso
era e é "decimal" e Caligastia dele tomou posse com 500 000 anos de atraso.
- Não consigo entender...
- Eu tampouco, embora possa existir uma justificativa. A "Quinta Revelação"
adianta que, por ser IURANCHA um mundo "decimal" ou qualificado como
"modificador de Vida", acordo anterior previra uma espécie de "experiência-piloto". Esse
plano estabelecia que, durante um longo período, fossem enviados à Terra doze
Melchizedeks na qualidade de observadores e conselheiros dos Portadores de Vida. Essa
"comissão" vigiaria a marcha de IURANCHA e da primeira raça humana, até a ulterior
chegada do príncipe planetário.
- Durante meio milhão de anos a raça "andônica" e o planeta em geral viveram sob
a "custódia" de doze Melchizedeks. Então, por que era necessária a chegada de um
príncipe planetário?
- E que assim o estabelece a organização administrativa dos universos. Não se
esqueça. Esses príncipes, além do mais, parecem ter outras funções importantíssimas.
- Por exemplo?
- Melhorar as raças humanas, tanto desde o ponto de vista puramente físico, como
intelectual e social, de acordo sempre com os planos divinos. Mas, repetimos, Caligastia
fracassou. E nós até hoje estamos sofrendo as conseqüências desse fracasso... ou seja lá o
que for.
- E porque você não conhece a natureza dessa falha... - insinuou a senhora da Casa
Azul, tentando ainda surpreender o hermético informante.
__ Se o soubesse, que sentido teria embarcarmos nessa missão? Só o que sei é que
Caligastia e seu séquito fizeram "algo" grave o bastante para arruinar o processo normal
evolutivo da nossa humanidade.
- Um "processo evolutivo" - expressou Glória com melancolia - desesperadamente
lento...
- Suponho que tudo depende.
A filha da raça azul pediu-lhe uma explicação com o olhar.
- Tudo depende do conceito que se tenha desse "tempo".
- Nós pelo menos só temos um.
- Sim, mas não há por que ser o único. E não serei eu a responder-lhe. Um desses
Portadores de Vida o fará em meu lugar. Assim escreve, falando precisamente do que
você propõe: "Se estais surpresos de que seja necessário tanto tempo para efetuar as
mutações evolucionárias no desenvolvimento da Vida, responder-vos-ei que nós não
podemos conseguir que os processos caminhem mais depressa. Não temos controle algum
sobre a evolução geológica. Se as condições físicas o permitem, estamos preparados para
completar a evolução total da vida em prazo muito menor do que esse milhão de anos que
foi preciso para IURANCHA. Mas, como sabeis, encontramo-nos debaixo da jurisdição
dos Dirigentes Supremos da Ilha Eterna do Paraíso, e, ali, o tempo não existe.
"A medida do tempo de um indivíduo é sempre a duração da sua própria vida.
Assim, todas as criaturas estão condicionadas ao tempo e por isso consideram a evolução
um processo interminável. Para aqueles como nós que, ao contrário, não têm a vida
limitada por uma existência temporal, a evolução não aparenta ser tão lenta. No Paraíso,
onde o tempo não existe, todas essas coisas são 'presente' no pensamento da Infinidade.
"E da mesma forma que a evolução da mente depende do lento desenvolvimento
das condições físicas (que a atrasam), assim também o progresso espiritual condiciona-se
à expansão mental. O atraso intelectual infalivelmente o freia..."
Glória pediu ao investigador que se detivesse um instante.
- Você quer, por favor, explicar-me essa última parte?
- Em suma, o Portador de Vida quer dizer que a evolução espiritual não depende
da educação, da cultura, ou da sabedoria. A alma pode evolucionar, independentemente
dessa cultura, mas não com ausência da faculdade mental e do desejo de fazer a vontade
do Pai Universal; em outras palavras: escolher a super-vivência para além da morte física
ou primeira morte e buscar a perfeição progressiva. "Embora a supervivência (dizem os
Portadores) possa não depender da posse do conhecimento e da sabedoria, o progresso,
sim, necessita disso."
- Vejamos se entendi. Se o indivíduo humano sente a necessidade de encontrar
Deus, e luta por isso, sua ressurreição está garantida...
No olhar de Sinuhe brilhou uma luz diferente. E a companheira soube o que ia
responder.
- A "Quinta Revelação" é o que melhor o define. Nos laboratórios cósmicos a
mente domina sempre a matéria. E o espírito encontra-se vinculado a essa mente. Se esses
diferentes dotes não chegam a sincronizar-se e coordenar-se, podem registrar-se atrasos
nessa evolução. Porém, tudo isso é circunstancial. A chave está nesse desejo, nessa busca,
nesses anelos de descobrir a Verdade. Nem as limitações físicas da nossa humanidade,
nem a perversidade mental podem apagar essa maravilhosa realidade que supõe (ou
suporá) a realização espiritual de cada ser humano.
A centelha nos olhos de Sinuhe tornou-se penetrante como uma adaga.
- Você e tantos outros o sabem: a Verdade não é outra coisa senão uma busca
tenaz. A Verdade não é realmente um fim, mas o próprio caminho... Concluo meus
modestos ensinamentos com algumas palavras do Portador de Vida de Nebadon, residente
em IURANCHA: "Quando as condições físicas são maduras, podem dar-se evoluções
mentais repentinas".
Sinuhe fez outra breve pausa, cruzando olhares de cumplicidade com a filha da
raça azul.
- Quando o estatuto da inteligência é propício, podem ocorrer transformações
espirituais... súbitas. Quando, por último, os valores espirituais recebem a consideração
devida, o humano começa a discernir e desentranhar as formosas e profundas realidades
cósmicas.
E Sinuhe fechou de vez aquela "Quinta Revelação", concluindo:
- Então, querida Glória, só então, a personalidade surge progressivamente liberada
das limitações do Tempo e do Espaço.
4. RA: O DISCO
Os derradeiros raios daquele entardecer envolveram de bronze a longa e sedosa
cabeleira da filha da raça azul. Sentados frente a frente, Glória e Sinuhe observavam-se
em silêncio. Ela, profundamente consternada com tudo o que ouvira naqueles dias e,
especialmente, ante duas incógnitas que lhe roíam a curiosidade: "quem era na realidade
este amigo?" e "como entender que ela fosse uma descendente dessa misteriosa raça,
chegada à Terra em tempos tão remotos?"
Sinuhe, por sua vez, não podia afastar a idéia de que aquele "adestramento" em
torno da organização administrativa que rege os universos e sobre os primeiros tempos de
IURANCHA fora superficial e precipitado. Teria ela assimilado aquela montanha de
novos e desconcertantes conceitos? Em virtude do seu caráter - raivosamente meticuloso
e racionalista - o investigador teria desejado e necessitado período mais prolongado de
tempo. Mas a sorte estava lançada e o membro da Loja sabia disso. A lua nova não
tardaria a aparecer e muitas daquelas dúvidas - refletia ele -, talvez se esvaziassem. Era
questão de paciência.
- Muitas felicidades... Com atraso, filha da raça azul!
A voz de Sinuhe arrancou Glória de seus pensamentos. E a senhora observou que o
companheiro procurava alguma coisa nos bolsos das calças. Em poucos segundos
colocava sobre a mesa um pequeno frasco de vidro. Divertido, animou-a a abri-lo.
- É para você - exclamou ao olhar interrogativo de Glória -. Aceite-o. Não é grande
coisa, mas é meu presente de aniversário.
A senhora da Casa Azul tomou-o delicadamente, mas examinou-o com avidez. Ao
incliná-lo, a areia branco-acinzentada que continha girou, e os corpúsculos emitiram
levíssimos lampejos.
Surpresa, fixou o amigo com o olhar.
- Que é?
Sinuhe quisera ter respondido. Entretanto, não havia chegado a esperada
informação do seu Kheri Heb sobre a amostra da estranha areia recolhida na clareira do
bosquezinho. E, deixando-se arrastar pela intuição, quis que a sua companheira na
iminente busca dos arquivos de IURANCHA participasse assim de um de seus segredos.
- Pode abri-lo; sem medo.
Glória atendeu sem vacilar. Despejou parte do conteúdo na palma da mão esquerda
e, como o esperava o investigador, os corpúsculos transformaram-se em centenas ou
milhares de pontos luminosos.
- Santo Deus!
A inesperada e súbita metamorfose dos grãos de areia em miríades de reflexos
apanhou tão desprevenida a filha da raça azul, que ela, assustada, sacudiu a mão,
deixando cair aquela alva e luminosa "nuvem" sobre a polida mesa de carvalho.
- Mas que é isso? - perguntou pela segunda vez e com a voz tão descomposta
quanto o ânimo.
- Não lhe saberia explicar com exatidão. Sei apenas que pode considerá-lo como
uma espécie de "antecipação" disso que nos aguarda...
Um pouco mais confiante, a senhora voltou a explorar o montinho de areia. Ao
cair sobre a madeira da mesa, os grãozinhos perderam novamente a luminosidade. Glória,
tal como fizera Sinuhe no claro do bosque, brincou durante algum tempo com seu insólito
presente. Pegava um punhado com seus longos dedos e, vivamente emocionada,
contemplava-o a cair lentamente, convertido em um mágico repuxo de luz.
- Onde e como? - interpelou-o atropeladamente, sem desviar o olhar das diminutas
estrelas luminosas -. Quem lho deu?
Sinuhe decidiu-se, então, a revelar-lhe o estranho achado da clareira do bosque,
assim como o primeiro e desconcertante encontro com aquela criatura pequenina e de
corpo transparente.
Quando ele terminou seu relatório, a filha da raça azul, entusiasmada, pediu-lhe
que a levasse até a clareira. Mas Sinuhe, fiel às ordens do Mestre, pediu à amiga
impulsiva que dominasse sua ansiedade.
- Prometo-lhe que você lá estará... assim que chegue a lua nova.
No dia seguinte, ainda aurora, Sinuhe atravessou a praça da Lastra, disposto a
estudar aquele perturbador hieróglifo que descobrira no pêndulo do relógio... A Casa
Azul, como a maior parte da aldeia, não despertara ainda para o dia luminoso e promissor.
O inquieto investigador, armado com suas câmaras fotográficas, uma brocha e alguns
trapos velhos, empurrou o portão da casa solitária de Joana, cuidando para não derramar a
gasolina que o ajudaria a concretizar aquela tarefa.
Essa segunda visita à Câmara Municipal de Sotillo foi um pouco mais sossegada.
A claridade do dia ajudou, e não pouco, a que ele conservasse sua presença de espírito.
Apesar de tudo, a lembrança dos sucessos daquela noite e a imagem da monstruosa
cabeça colada à vidraça da torre provocaram nele, enquanto subia pausadamente, um ou
outro sentimento de inquietação. Desta vez, achava-se sozinho e isso, de alguma forma, o
tranqüilizou. Sinuhe, "o que é solitário", preferia esta situação à de um possível risco ou
perigo compartilhados.
Mas, ao empurrar a portinhola que permitia o acesso ao ático, o jornalista não pôde
reprimir um calafrio. As ferragens das dobradiças protestaram; Sinuhe, imóvel no umbral
por uns segundos, deu uma rápida olhadela no recinto desmantelado.
"Deveria ter-me munido de uma lanterna..."
O pensamento do nosso homem justificava-se fartamente. Os fios de luz que
penetravam pelos dois olhos-de-boi praticados na fachada do edifício - um de cada lado
da cabina onde descansava a maquinaria do relógio - mal quebravam a escuridão.
O lugar, não obstante, estava tranqüilo. O silêncio era absoluto. Impelido pela
curiosidade, avançou sobre o empoeirado chão de madeira, fazendo-o ranger
lastimosamente. Seu objetivo era sempre a porta situada ao fundo do ático. Mas, talvez
ajudado pela tênue penumbra ou movido por um desejo inconsciente de atrasar tanto
quanto possível sua inevitável entrada na torre, o investigador, tendo deixado a bolsa das
câmaras e os utensílios que transportava no chão, dirigiu-se até o fundo escuro do lugar.
Que procurava ali? Ele mesmo não sabia. Talvez alguma pista, algum indício que o
ajudasse a compreender por que o nome de "RA" figurava no disco metálico ou, quem
sabe, talvez um resto esquecido do momento, em 1 907, em que foi instalado o relógio.
Pouco a pouco, apalpando e tateando, foi abrindo caminho entre os móveis sujos e
carcomidos, latas e irreconhecíveis ferramentas de lavoura empilhadas.
"Se eram corretas as informações de Joana, e aquilo era um ninho de ratos, o
normal seria que, uma vez desaparecida a misteriosa criatura que ele vira e que sem
dúvida, os havia espantado, os roedores tivessem voltado ao seu habitat..."
Para comprová-lo, a única solução seria invadir o território e os possíveis refúgios
deles.
Os olhos de Sinuhe não tardaram a acostumar-se à escuridão e os ouvidos se
apuraram ao máximo, pendentes da menor roça-dura ou crepitação.
Continuou avançando até um dos cantos escuros, mas, de repente, uma espécie de
estalido o deteve. Ao apurar os sentidos, involuntariamente percorreu-lhe pela pele um
calafrio. Apertou os olhos para afiar mais a visão e descobriu, a pouco mais de dois
metros, um vulto enorme. Ao observá-lo compreendeu, com certo alívio, que se tratava de
uma antiga poltrona, ensebada, destripada e com mil feridas por onde haviam saltado
umas molas ameaçadoras.
Tentou tranqüilizar-se, dizendo a si mesmo que talvez aquele estalo tivesse sido
produzido por passos seus. Mas tais raciocínios não eram muito sólidos...
Após alguns segundos tensos de espera, optou por continuar avançando. Desta vez,
diretamente para o lado da desconjuntada e grande poltrona. Porém, ao dar o segundo
passo, alguma coisa se interpôs em seu caminho. Uma maranha de densos, pegajosos e
invisíveis fios enredou-se-lhe entre os cabelos e o rosto, obrigando-o a retroceder. Bateu
com as mãos, desesperadamente, lutando por desvencilhar-se daquela repugnante teia de
aranha. Um par de minutos depois, ofegante e pálido, conseguia livrar-se dos últimos
restos.
Inspirou profundamente, e, estendendo os braços para o lado da escuridão, golpeou
o ar em busca de outros possíveis restos de teias de aranha. E justamente quando rasgava
uma daquelas rodas, o coração do aventureiro sofreu novo sobressalto. Um segundo
estalo, agora mais claro e mais próximo, petrificou-o.
Por frações de segundo permaneceu imóvel, os braços erguidos e submersos na
escuridão. O sangue lhe corria pelas artérias a velocidade inusitada, impelido por uma
nova descarga de adrenalina. O medo, uma vez mais, invadira o esforçado investigador.
Imediatamente, movido por um reflexo puramente animal, levou os braços ao rosto. Se
aquele estalido tivesse sido causado por um rato, ele teria de ser de tamanho considerável
e haveria o risco de que, sentindo-se encurralado, saltasse sobre o hipotético inimigo.
Mas, nos seguintes e intermináveis segundos, nada aconteceu. Sinuhe, lentamente,
foi descobrindo os olhos. Perfurou a silhueta negra da poltrona em busca do roedor,
explorando também o contorno. Tudo em vão.
Seu cérebro, submetido a violenta tensão, dizia-lhe que aquele estalo não parecia
emitido por um rato. Na realidade, lembrava melhor o ruído de duas tábuas chocando-se
uma contra a outra. Mas, nesse caso, que ou quem o provocara?
Tentando não fazer o menor ruído, inclinou-se sobre o assoalho, empunhou o cabo
do que outrora devia ter sido uma enxada. Um pouco mais confortado com a posse
daquela arma improvisada, sentiu-se disposto a superar o angustioso lance.
Na ponta dos pés fez o metro e meio que o separava da grande poltrona, brandindo
o robusto cabo da enxada.
E foi nesse momento, com os joelhos a poucas polegadas do assento, que um
terceiro estalo soou. Desta vez Sinuhe manteve-se firme junto à poltrona, com o cabo
levantado acima da cabeça, preparado para ser catapultado contra o primeiro que se
movesse.
O ruído, muito mais nítido que nas ocasiões anteriores, parecia brotar do interior
do maltratado encosto do cadeirão. Cravou o olhar naquele labirinto de brechas por onde
surgiam e se esparramavam molas e feixes informes de enchimento.
Subitamente, na escuridão de uma daquelas fendas profundas, o investigador
pensou ver qualquer coisa que lhe gelou o sangue: dois minúsculos pontos luminosos.
Desfiou-lhe pela mente vertiginosa série de hipóteses. Sem dúvida, eram dois
olhos: de quê? Quem sabe um rato? Um gato talvez?
Seu primeiro impulso foi retroceder e interpor o maior espaço possível entre eles.
Mas pela enésima vez a curiosidade venceu.
E nervosamente remexeu nos bolsos, até dar com o isqueiro. Pensou em mudar o
cabo para a outra mão, para manusear o acendedor com maior precisão, mas o instinto de
sobrevivência foi mais forte; então, devagarinho, foi estendendo o braço esquerdo em
direção ao escuro espaldar. Apertou nervosamente o isqueiro, tentando levar seu punho
até a parte inferior da greta, em cujo interior continuavam chispeando os supostos olhos.
Ao mesmo tempo fez oscilar o cabo, tentando concentrar-se. Ao menor movimento
suspeito, a maça improvisada cairia sobre o buraco da poltrona e seu possível inquilino.
Com o coração disparado, acariciou com a ponta do polegar esquerdo o acendedor
da mecha, preparando-se para a iminência de acioná-lo. E, sem pensar duas vezes, fez
girar a rodinha.
"Maldição!"
O dedo, suado, resvalara, provocando apenas uma breve faísca.
Mecanicamente, Sinuhe repetiu a manobra. Uma breve chama amarelada apareceu
na terceira ou quarta tentativa. A partir dessa fração de segundo, tudo se precipitou, ficou
confuso e desagradável.
À luz da chama, Sinuhe, o rosto a pequena distância da fenda, descobriu, com
efeito, dois pontinhos brancos, pontiagudos e enterrados em uma massa peluda. Ao
perceber o que tinha diante dos olhos, tentou retroceder. Mas a criatura foi mais rápida:
antes que o repórter pudesse mover um músculo, saltou na direção de seu rosto.
Foi uma dor aguda o que devolveu os sentidos a Sinuhe. Primeiro, apalpou à sua
volta, verificando, alarmado, que estava estendido no chão do sótão, boca para cima e
meio prisioneiro de um informe castelo de móveis.
"Que aconteceu?"
Antes que pudesse organizar seus pensamentos confusos, lutou com aquele
enredado de cadeiras e carteiras escolares que lhe tinham caído sobre o peito. Um dos pés
se lhe havia incrustado entre as costelas, provocando-lhe uma dor pungente. Quando,
finalmente, conseguiu desembaraçar-se de entre os trastes que o imobilizavam, o
maltratado repórter se levantou. Seus olhos 'deram então com a figura do cadeirão e
tremeu com calafrios. Na realidade, só tinha consciência de pouca coisa do sucedido.
"Sim... o culpado do desastre foi esse maldito morcego."
Quando a mecha foi acesa, com efeito, o mamífero se assustou e fugiu
precipitadamente de sua guarida, dentro da poltrona. Mas o animal acabara por estatelarse
contra o rosto do não menos aterrorizado membro da Escola da Sabedoria, entre estalos
e um aparatoso bater de membranas.
Na lembrança de Sinuhe, gravada a fogo, lá estava a imagem da pequena e peluda
cabeça do morcego, com suas brancas e pontiagudas presas que, nos primeiros momentos,
ele confundira com uns brilhantes olhos, desconhecidos para ele.
Depois, em conseqüência do impacto e do susto, perdera o equilíbrio, caindo de
costas sobre os móveis.
A partir desse momento, tudo ficou escuro e distante. A cabeça, a julgar pelo
fiozinho de sangue que lhe escorria por detrás da orelha direita e pela pontada dolorosa
que sofria na região occipital, deve ter-se chocado contra algum daqueles velhos trastes,
provocando-lhe a perda dos sentidos.
Quanto tempo permanecera inconsciente?
Consultou seu relógio, mas aqueles dígitos, marcando 8h00, tampouco
esclareceram-lhe as dúvidas. E, preocupado com a insistente dor no lado esquerdo das
costas, não atinou com outro detalhe inexplicável. O jornalista subira ao ático pouco antes
das 7 horas. Se sua catastrófica exploração havia sido coisa de cinco ou dez minutos, por
que seu relógio marcaria as 8? Teria estado inconsciente todo esse tempo? Ou teria
acontecido algo mais? Providencialmente, o desastrado investigador não se aperceberia
dessa curiosa circunstância senão bem avançada a manhã, quando, estimulado por aquelas
dores nas costas, decidiu despir-se e examinar o torso. Mas essa será outra questão a
considerar mais adiante...
Aborrecido consigo mesmo por suas tolices contínuas, recuperou seu
aparelhamento e, dizendo impropérios, abriu a portinhola da torre. A luz jorrava pela
janelinha; depois de percorrer o olhar pelo recinto, hesitou entre inspecionar a fundo a
maquinaria e o disco do pêndulo, ou realizar a série de fotografias que tinha planejado.
Finalmente, como lhe era habitual, decidiu-se por uma terceira tarefa: a limpeza do
misterioso alto-relevo em que apareciam o emblema de sua Ordem e o nome de "RA".
Como digno representante do signo zodiacal de Virgem, preparou o recipiente de
gasolina, os trapos e o pincel, colocando-os meticulosa e estrategicamente entre os
suportes de madeira da armação que sustentava a maquinaria do relógio. O único acesso
ao pêndulo era através desses pés e, se o investigador desejasse executar conscienciosa
limpeza do disco metálico, tinha só uma alternativa: escorregar para baixo daquela
armação e, sentado ou de cócoras entre os quatro suportes, levar adiante a operação.
É óbvio que a maquinaria e, conseqüentemente o pêndulo, continuavam imóveis.
Foi com certa dificuldade que se arrastou entre os pés da armação. Uma vez
debaixo da maquinaria, pressionou com a mão o lado esquerdo das costas, buscando
alívio para a dor aguda, agravada agora com a brusca flexão. Sem mais demora, pegou um
dos trapos, disposto a uma primeira remoção daquela espessa camada de pó, talvez velha,
de 77 anos, que semi-ocultava o enigmático alto-relevo.
Porém, ao tentar segurar o disco com a mão esquerda, algo ocorreu que o deixou
perplexo...
- Jesus Cristo!...
O "soror" da Escola da Sabedoria, agachado, praticamente aprisionado entre os
suportes da armação, não podia crer no que estava vendo.
Ao aproximar do pêndulo a sua mão, os dois "olhos" do alto-relevo iluminaram-se
subitamente.
Hipnotizado, Sinuhe não chegou a tocar o disco. Retirou assustado a mão
esquerda. Ao fazê-lo, aquele fulgor avermelhado foi apagando-se, até desaparecer. E o
pêndulo recuperou seu aspecto original.
- Estarei sonhando?
Outra dolorosa pontada, porém, convenceu-o de que não. "Aquilo", fosse o que
fosse, era absolutamente real.
Repentino frio invadiu-o dos pés à cabeça. Mas, com um incipiente tremor nos
dedos, repetiu a manobra. Sua mão esquerda foi aproximando-se do emblema da Grande
Loja e, prodigiosamente, os "olhos" foram mudando a tonalidade metálica enegrecida
para aquele resplendor de granada.
Sem conseguir compreendê-lo, sentiu quanto desaparecia o seu medo, substituído
por doce sensação de bem-estar. Então, maravilhado, atreveu-se a tocar o disco.
Mas nada de novo aconteceu. Os "olhos" continuaram emitindo aquela viva luz
avermelhada, que tornou a esfumar-se no momento em que a mão do investigador se
separou, apenas uma polegada, da superfície do pêndulo.
Atônito, não sabia o que fazer. Que era tudo aquilo? Que tinha que ver com "RA"
e com a missão que estava a ponto de encetar?
Depois de longa meditação e de comprovar à saciedade como se iluminava parte
do alto-relevo cada vez que ele tocava o pêndulo ou dele aproximava as mãos, o
investigador deixou-se levar pela intuição. Começou a desparafusá-lo, retirando o disco
da barra de ferro que o atravessava e segurava ao resto da maquinaria do relógio.
Nesse instante, ao liberá-lo, o companheiro da filha da raça azul foi novamente
surpreendido: o disco, cujo peso real não devia ser inferior a um ou dois quilos, flutuava,
levemente, entre suas mãos!
Sinuhe escapou como pôde de entre os pés da armação e, perplexo, começou a dar
curtos e nervosos passos pela reduzida cabina, com os olhos fixos naquela peça mágica.
De repente parou. E lenta, lentamente, passou a separar as mãos das bordas do
disco. A luz vermelha se foi apagando, mas o pêndulo continuou flutuando no espaço.
Sinuhe retrocedeu um par de passos e, para seu assombro, o disco, como que
movido por mão invisível, seguiu-o suavemente. Quando se deteve, o pêndulo fez outro
tanto, mantendo-se flutuante à altura do seu peito, e com uma levíssima oscilação.
- Não é possível!
Sinuhe repetiu aquela espécie de jogo. Foi caminhando de costas, até topar com a
parede da torre. O disco fez outro tanto. Mas, em lugar de bater no tronco do abismado
jornalista, permaneceu imóvel a poucos centímetros do seu corpo, como se fosse dotado
de inteligência...
Embora não entendesse o que estava acontecendo, começou a sentir-se feliz com
aquele jogo. E decidiu levar adiante uma nova prova. Foi deslizando até o chão, com a
espádua colada à parede, até ficar sentado. O disco, como ele supunha, foi descendo,
quase junto. Mas, ao tocar no solo, por causa da nova posição, Sinuhe recebeu outra
chicotada. Aquela dor nas costelas fez que suspeitasse de uma fratura.
Aturdido com aquela mordida dolorosa, crispou-se a face do "soror"; ele cerrou os
olhos. Mas dali a poucos segundos a punhalada cessou. Foi uma desaparição tão repentina
que, desorientado, levantou as pálpebras, chegando a ver o que, sem dúvida, seria a causa
do brusco e repentino alívio da sua dor: do disco, que modificara sua posição habitual,
colocando-se "de viés" no ar, partia um finíssimo e quase imperceptível feixe de luz. Esse
fio luminoso brotava do centro geométrico do pequeno "olho", colocado, como já disse,
entre a serpente e a letra maiúscula "A".
Aquela espécie de laser, cujo arranque do disco não fora captado pelo investigador,
já que tinha fechado os olhos, morria justamente no seu costado esquerdo.
Concretamente, no ponto onde surgira e depois desaparecera a aguçada dor.
Aterrado, ele não se moveu. Mas mentalmente formulou algumas perguntas:
"Quê ou quem é você? Que quer de mim?"
Mas, ao contrário do que ocorreu na clareira do bosque com aquela pequena e
transparente figura, desta vez não houve resposta mental... Entretanto, as perplexidades
do membro da Loja não seriam ignoradas.
E imediatamente após ter desaparecido a dor, o raio celeste - como se soubesse que
cumprira sua missão - desapareceu. E fê-lo de forma tão fulminante que Sinuhe,
sobressaltado, cruzou os braços, protegendo o rosto. O pêndulo, então, retomou sua
posição inicial, paralelo ao solo. E ali se manteve, a trinta ou trinta e cinco centímetros do
peito do nosso homem: majestoso e diáfano como uma bolha de sabão...
Convencido de que aquele estranho "companheiro" não parecia desejar-lhe mal
algum, relaxou. Passou a dedicar seu tempo a nova exploração do mágico disco.. A dor
passara totalmente e, à sua maneira, o repórter soube ser agradecido. Aproximou suas
mãos do misterioso objeto, cujos "olhos" se iluminaram imediatamente. E, com uma
simpatia que começava a invadir-lhe o espírito, levou-o até os lábios, beijando-o.
Não é que pudesse estar muito seguro de nada, mas Sinuhe intuía que aquele
"achado" guardava íntima relação com a missão que lhes fora confiada. No entanto, um
não acabar de dúvidas voejava-lhe na mente: que sentido teria a dócil presença daquele
disco? Quais os seus poderes? Deveria conservá-lo consigo? E, sobretudo, quem o
dirigia?
O investigador respondeu a esta última, com outra pergunta: "E não terá vida
própria?"
Sinuhe o acariciou, fascinado ante a fantástica possibilidade. E desde esse
momento, sem nem mesmo saber por quê, tomou a firme decisão de não se separar dele.
Como se tivesse escutado aqueles pensamentos, o disco vibrou por uns segundos,
estremecendo-se e estremecendo o "amo". Indescritível emoção apoderou-se do
investigador.
A partir desse instante, Sinuhe surpreendeu a si mesmo a falar com o disco como
se se tratasse de um íntimo amigo.
- Temos de encontrar-lhe um nome - comentou em voz alta.
O pêndulo reagiu, fazendo com que transbordasse a já saturada capacidade de
surpresa de Sinuhe. Como se quisesse significar que não precisava concluir o comentário,
e quisesse colaborar com a procura do abençoado nome, as letras do disco se iluminaram.
As mãos do "soror" se separaram do objeto, que continuou estático no ar, exibindo um
refulgente e branco "RA".
- Claro! - exclamou cheio de alegria -. Como não me ocorreu?... Ra!
Ao pronunciar o nome, as letras se apagaram. E Sinuhe, ainda sentado no canto da
torre, beliscou a coxa direita, resistindo a crer em tudo aquilo que estava vendo. Mas,
assim que retirou os dedos da perna, Ra - permita-me o leitor que passe a chamar assim a
esse "personagem" singular - emitiu um novo e fulminante feixe de luz, também celeste,
que incidiu sobre a zona maltratada pelo próprio investigador. E a dor se dissolveu no
mesmo instante.
Sinuhe sentiu que o rosto se lhe enrubescia de vergonha. E, dirigindo-se ao
"amigo", improvisou uma desculpa:
- Sinto muito... Não era minha intenção, mas você tem de reconhecer que isso é
coisa de loucos...
O fio de luz desapareceu; nosso homem, depois de prolongado e embaraçoso
silêncio, resolveu continuar aquele incrível "diálogo":
- Alguma coisa me diz que você, Ra, deve acompanhar-nos na busca dos arquivos
de IURANCHA. Mas com que missão?
O disco continuou imóvel e silencioso.
- Está bem. Como posso sabê-lo, se nem sequer sei a que lugar nos devemos dirigir
nem que vamos encontrar...? No entanto - animou-se Sinuhe, tentando expressar uma
súbita idéia -, há uma coisa que poderíamos esclarecer.
Pôs-se de pé e, apontando o pincel abandonado no chão, perguntou a Ra:
- Você pode erguê-lo?
Foi formular a pergunta, e Sinuhe se sentiu contrafeito. "Não obstante, soliloquiou,
é preciso averiguar até onde chega o seu poder e, sobretudo, se realmente está a nosso
serviço."
Ra oscilou ligeiramente, pondo-se em posição vertical. A brocha, os trapos e o
recipiente de gasolina continuavam no assoalho, entre os pés da armação. Perplexo,
Sinuhe observou como, do menor dos "olhos", fluía uma cadeia de reduzidos círculos ou
aros de apenas um centímetro de diâmetro e de belíssimo azul-celeste. Essa sucessão de
argolas luminosas projetou-se em linha reta até tocar o cabo do pincel. E, como um
milagre, o primeiro dos circulozinhos projetados por Ra volteou o negro feixe de pêlos.
Nesse momento, os vinte ou trinta aros que compunham os dois metros do "braço"
mágico se esfumaram. Só ficou o círculo que abraçava o pincel. E instantaneamente,
como se obedecesse a uma vontade encerrada no disco, o aro elevou-se do assoalho,
arrastando a brocha consigo. Mas, não satisfeito com aquela demonstração, Ra atraiu para
si aro e pincel, tirando-os lindamente de entre os pés da armação. E ali permaneceram,
flutuando no ar, a metro e meio do solo e a dois palmos de um Sinuhe boquiaberto.
Recuperado do primeiro sobressalto, o membro da Escola da Sabedoria pensou em
apalpar aquele brilhante aro azul. Mas conteve-se.
- Ma-ra-vi-lho-so! - soletrou com emoção. E uma segunda idéia lhe surgiu à mente.
- Diga-me... Quem é você?
Sinuhe nem bem concluíra sua nova pergunta, e o círculo celeste se diluiu no ar e o
pincel, liberado da força que o mantinha, precipitou-se para o chão.
O disco girou então em direção a Sinuhe e, conservando a mesma postura -
perpendicular ao solo - desandou a iluminar suas letras.
- Ra... Sim, isso eu já sei - exclamou com certa decepção -. Mas quem é você na
verdade?
O nome de Ra continuou a brilhar por breves espaços. Finalmente, depois de
rápida série de pulsações, o "R" e o "A" se escureceram.
Quando o investigador começava a acreditar que o enigmático "amigo" escolhera o
silêncio como resposta, Ra voltou a surpreendê-lo...
O disco recuperou a horizontalidade e, animado por suave bamboleio, rumou para
o teto da torre. Sinuhe seguiu-lhe os movimentos com o coração na mão. Que pretendia
Ra?
Uma vez no alto da cabina, o desconcertante "camarada" efetuou uns curtos
deslocamentos - à direita e esquerda -, como se procurasse alguma coisa.
Quando Ra ficou definitivamente imóvel, Sinuhe, baixando os olhos, reparou que
o disco se achava sobre a vertical da antiga maquinaria de que fora parte durante
decênios. Intrigado, esperou.
O pêndulo - a verdade é que não sei se deveria continuar a chamá-lo assim -
experimentou então uma daquelas intensas vibrações. E os atônitos olhos da solitária
testemunha escancararam-se: a superfície que dava para o relógio começara a emanar, ela
inteira, uma densa "chuva" de luz... negra!
- Jesus Cristo! - exclamou maravilhado, enquanto milhares de raios azeviches
partiam lenta e majestosamente da face inferior de Ra.
Naqueles momentos críticos, o "soror" não prestou atenção a uma circunstância
não menos surpreendente. Foi mais tarde, ao regressar à Casa Azul que, friamente,
rememorou como aqueles raios se propagavam, não à velocidade normal da luz, mas
pausada e quase trabalhosamente. E assim, centímetro por centímetro, aquela cascata
negra foi absorvendo ou anulando a luz natural, mergulhando o quartinho em densas
trevas.
Sinuhe, escaldado pela amarga experiência vivida durante a visita noturna ao
casarão, retrocedeu, buscando a porta com a mão esquerda. Ra, porém, que parecia captar
até o mais singelo sentimento do nosso protagonista, "acendeu" seu pequeno "olho" e, no
mesmo instante, o já familiar raio azul destacou-se dentre a "luz negra" incidindo, com
milimétrica precisão, sobre a mão que com tanto afã tateava a parede. Embasbacado, o
repórter assistiu, impotente, à transformação daquele finíssimo laser em outro aro,
também azul, que lhe enlaçou os cinco dedos. E o investigador viu e sentiu como o
círculo luminoso o puxava, delicadamente, em direção à maquinaria.
Não era preciso ser muito esperto para entender que Ra desejava que ele se
aproximasse. É claro que acedeu.
Uma vez diante da armação, o aro celeste desapareceu. O sobressaltado
investigador sentiu um formigamento breve e superficial nos nós dos dedos e em parte da
palma da mão. Levantou os olhos e distinguiu a negra silhueta do convincente "amigo",
recortada contra o alvo teto da cabina. Inexplicavelmente, a face superior de Ra não
difundia aquela "luz negra", razão por que o teto e uma lâmina delgada situada entre
ambos conservavam a claridade natural.
- Que é que você pretende?
A pergunta ia conseguir uma imediata e inimaginável resposta.
Em poucos minutos, e quando o "soror" parecia ter recuperado algum do seu
dizimado equilíbrio emocional, de um dos "olhos" de Ra partiu um cone de luz branca,
bastante mais amplo que os feixes anteriores, que iluminou instantaneamente uma das
placas parafusadas em um dos lados da quase invisível maquinaria.
Sinuhe, instintivamente, leu a inscrição:
GREGORIO REVUELTO
BENITO SETEMBRO-8-1 907
- E então?... - perguntou a Ra, levantando o rosto até o lugar onde flutuava o disco.
Do círculo escuro brotou um novo feixe, gêmeo do anterior, que incidiu sobre a
segunda placa, nacarada. Dela constava a legenda:
MOISÉS DIEZ PALENCIA
Satisfeito o aparentemente absurdo desejo de Ra, Sinuhe passou a testemunhar
outro prodígio de que não se esquecerá enquanto viver...
De repente, uma das letras da segunda placa deslocou-se do seu lugar original e -
ante inevitável exclamação de assombro de Sinuhe -, começou a ascender pelo interior do
cone luminoso, indo deter-se à altura dos olhos do investigador. Era o "S"...
Imediatamente atrás veio o "O" de "MOISÉS", que se estabilizou junto ao "S".
Sinuhe tinha a garganta seca. Entretanto, não podia reagir. Em seguida uma
terceira letra - o "U" - saído da outra placa, foi colocar-se junto às anteriores.
Com emoção indescritível, o jornalista, que já ia vislumbrando a intenção do
"amigo", sussurrou aquela palavra... "flutuante":
"SOU..."
- Quem, quem?... - animou com voz entrecortada.
E, enquanto aquelas três letras se mantinham em aéreo e inconcebível equilíbrio,
no cone que iluminava a primeira placa se deram outros desprendimentos. Como em um
sonho, o "T" e o "E" escaparam da velha legenda, subindo pela coluna luminosa com a
leveza de rolhas emergindo do fundo de um lago. A estas letras se juntou o reflexo do
"U", anteriormente desprendido.
"TEU"...
- Sim, compreendo... SOU TEU... Que mais?
Com desesperante lentidão, as duas primeiras letras voltaram à sua placa,
ajustando-se à palavra MOISÉS, com precisão matemática. No outro cone, entretanto,
flutuava a palavra TEU.
E, subitamente, uma após outra, cinco das oito letras que formavam PALENCIA
repetiram a operação, formando um terceiro conceito - mas incompleto:
"... ENLAC..."
Sinuhe, sem conseguir entender, repetiu o termo em tom interrogativo:
- ENLAC?...
Mas sua dúvida se resolveria na hora. O "E" de DIEZ acabava de unir-se ao resto.
- Sim, sim, eu entendo: "SOU TEU ENLACE". Continue, continue! Meu enlace,
mas com quem?
Ra, evidentemente, não parecia escravizado a impaciência alguma. Com uma
calma que a Sinuhe pareceu irritante, fez que voltassem a seus lugares de origem todas as
letras que flutuavam nos fachos de luz. Só então apareceu uma nova palavra. Uma palavra
que o sacudiu:
"... MEDIANO..."
Sinuhe, fascinado pelo quase imperceptível e leve vaivém das espigadas e
brilhantes letras, repassou tudo quanto Ra lhe havia transmitido até o momento:
"... SOU TEU ENLACE MEDIANO..."
Mas, ao contrário do que supunha, a mensagem não estava concluída.
A palavra MEDIANO caiu docemente sobre a placa, e segundos mais tarde foi
substituída, naquele mesmo feixe de luz, por outras três letras:
"... COM..."
Uma vez estabilizadas, como nas ocasiões anteriores, a pouco mais de dois quartos
da placa, algo inesperado aconteceu. De Ra partiu um terceiro raio luminoso.
Avermelhado e sensivelmente mais fino..Perfurou as trevas como uma exalação, indo
pousar sobre um dos "O" da placa contígua. O fio luminoso recolheu-se sobre si mesmo,
arrastando na ponta a letra referida. E, parecendo manipulado inteligentemente, o feixe
granada efetuou um movimento pendular, depositando aquele "O" em continuação às
letras que flutuavam diante dos olhos perplexos do repórter, formando assim uma nova
palavra: "COMO".
Sinuhe moveu negativamente a cabeça.
- SOU TEU ENLACE MEDIANO COMO... Mas isso não tem sentido!
As três primeiras letras desta última palavra foram fundindo-se suavemente, até
incorporar-se à inscrição. Ao mesmo tempo, o laser avermelhado - que permanecia
imóvel na penumbra e como que cortado por navalha - avançou até o "O". Banhou-o com
sua luz e, depois de colocar-se novamente sobre a vertical da placa de que extraíra a letra,
avançou sem pressa, até fazê-la chegar ao seu posto original. Depois dobrou-se sobre si
mesmo, até desaparecer no interior do disco.
E Sinuhe, sem fôlego quase, presenciou a que seria a seqüência definitiva daquela
"comunicação" insólita com seu poderoso "companheiro".
Da primeira placa, como um enxame negro, subiu um desordenado punhado de
letras. Sinuhe somou até oito. Porém, por mais que se esforçasse, não conseguiu decifrarlhe
o significado. Brotou de Ra, pela segunda vez, aquele finíssimo feixe avermelhado.
Passeou pela segunda legenda e, apoderando-se de outras duas letras, incorporou-as ao
primeiro grupo.
E o irmão da Loja, à beira da vertigem, contemplou maravilhado como as dez
novas letras oscilavam e se chocavam entre si, até compor a sexta palavra da
"mensagem":
"... RESERVISTA..."
- SOU TEU ENLACE COMO RESERVISTA...
Sinuhe repetiu algumas vezes a estranha resposta de Ra. Mas, entorpecido e
esgotado, só pôde encolher os ombros.
"SOU TEU ENLACE MEDIANO COMO RESERVISTA"?
"Que diabos significavam aquelas seis palavras? Certamente, outra vez se repete o
6..."
Ra, desde que finalizada a "transmissão", iniciou o que poderíamos qualificar de
volta à normalidade: as últimas letras retornaram às suas respectivas placas, os feixes se
extinguiram, a escuridão artificial foi retrocedendo. Ao ser absorvida pelo disco, a luz
"negra" foi deixando passagem - lenta e gradativamente - para a claridade diurna. Como
em uma fantasmagoria, a diáfana luminosidade daquele 26 de julho foi aparecendo,
primeiro a rés do chão. Depois, ao passo que Ra puxava a angustiante massa negra, a
cabina foi tornando-se visível.
Quando o disco "colheu" o último facho de raios azeviche, o repórter, em pé junto
à armação, fez por adivinhar qual seria o movimento seguinte do seu "enlace". Ra porém
não deu sinal de vida. Continuou estático sobre sua cabeça. Sinuhe, arrastado por um
sentimento (cada vez mais fraco) de incredulidade, acariciou as placas. As letras não se
tinham trocado ou estragado. Continuavam gravadas - solidamente enterradas - em suas
respectivas e brancas superfícies metalizadas. E estas, naturalmente, bem parafusadas à
madeira da armação.
- Como pôde?...
Passando as pontas dos dedos sobre as inscrições, percebeu tão só um ligeiro
aquecimento das placas.
"... SOU TEU ENLACE MEDIANO COMO RESERVISTA..."
O jornalista levantou o olhar e interrogou Ra:
- Que foi que me quis dizer? Será você uma criatura "mediane"? Que significa
"reservista"? Sou, por acaso, um "reservista"?
Entretanto, o disco não respondia. Em contraste com o crescente desespero de
Sinuhe, Ra parecia surdo e alheio às suas dúvidas e até mesmo à sua presença.
A "Quinta Revelação" quase não falava dos "medianos". Como já comentara com a
filha da raça azul, este era exatamente um dos compromissos dentro da missão de busca
dos arquivos secretos do planeta: averiguar a natureza desses seres e o papel que tiveram
na rebelião de Lúcifer. De repente, teve medo:
"E se Ra fosse um dos 'medianos' rebeldes?... Um inimigo, talvez, posto em nosso
caminho por sabe lá que forças do Mal?"
A sinistra hipótese turvou o olhar de Sinuhe. A figura do disco, leve "e suspenso
no alto, pareceu-lhe pela primeira vez fosca e ameaçadora.
"Por que fica em silêncio?... Será que tenho razão?"
E presa de pânico fulminante, começou a caminhar de costas, sem apartar os olhos
do hipotético mensageiro ou enviado de Lúcifer.
Absorvido por aquele sentimento e obcecado pelo medo, tropeçou na portinhola da
cabina, que cedeu facilmente. Mas o investigador, ávido por fugir, não se deu conta dos
imediatos degraus de acesso à torre, e seus pés - impelidos pela inércia - passaram
vertiginosamente do solo da cabina para o vazio...
Tarde demais para evitar a queda. Não encontrando terreno debaixo dos pés, o
corpo de Sinuhe precipitou-se de costas, em direção ao piso do sótão, a um metro de
desnível. O infortunado repórter compreendeu que em uma fração de segundo poderia ter
quebrado o pescoço e a coluna. Mas seu erro de cálculo fora tão inesperado, tão rápida a
precipitação escada abaixo, que nem tempo teve de gritar.
Instintivamente, fechou os olhos. E, quando não lhe restava senão receber o
impacto final, "algo" freou-lhe a queda. Questão de décimos de segundo. Ele percebeu
forte sensação de calor no peito e, quase simultaneamente, um puxão lancinante ao longo
do corpo. Era como se invisível e gigantesca mão o tivesse agarrado no ar...
Abriu os olhos, confuso; compreendeu que se achava tombado a coisa de um
palmo do assoalho do ático. Mas qualquer impressão se apagaria diante do outro fato:
flutuando no alto da escada, a poucos centímetros do umbral da portinhola traiçoeira,
distinguiu Ra. Do "olho" menor partia um daqueles já familiares "jorros" de círculos
azuis. Uns aros com um dedo de diâmetro, que lhe caíam sobre o tórax, banhando-lhe as
roupas com uma intensa coloração celeste.
Em poucos segundos Sinuhe era suavemente depositado sobre o piso. Ra fez com
que desaparecessem os círculos que, sem dúvida haviam contribuído para remediar o
desastre e, no mesmo instante, extinguiram-se o calor do seu peito e aquela radiação
azulada.
Sinuhe moveu os braços. Esfregou os olhos e, convencido de que continuava vivo,
levantou-se de um salto. O disco não se moveu. O jornalista, envergonhado, baixou os
olhos. Um sentimento incontido - misto de agradecimento a Ra e amarga reprovação de si
mesmo - começava a aflorar-lhe no coração. E uma lágrima solitária rolou-lhe pela face.
Pouca gente o vira chorar, a esse repórter infatigável, curtido nas mil batalhas de
sua profissão. Entretanto, embora possa aparentar frieza, os que o conhecem sabem que,
debaixo da couraça, palpita um temperamento densamente emotivo, capaz de vibrar ante
o sofrimento, ante a beleza ou, como neste caso, ante um nobre gesto de amor e
generosidade.
Mas as surpresas não se tinham esgotado ainda naquela manhã inolvidável.
De repente, ele teve uma estranha sensação. Levantou a vista e viu, à sua frente, a
não mais que meio metro do seu rosto, o salvador e amigo: Ra flutuava de viés. Seu nome
estava iluminado. E o abatido investigador soube que a aproximação do disco e o brilho
de suas letras tinham muito que ver com um possível e bondoso gesto de "reconciliação e
estímulo".
Aquele sentimento-suspeita ver-se-ia confirmado quando, inesperadamente, sobre
o negro e áspero relevo da face de Ra surgiu "algo" que Sinuhe, comovido, verificou ser
uma lágrima...
A minúscula e brilhante gota havia surgido pela linha inferior do pequeno "olho" e
deslizava, lenta, entre as rugosidades que formavam o ondulante alto-relevo da serpente
enroscada entre ambos os "olhos". Curiosamente, aquela única "lágrima" vertida pelo
disco brotara do "olho" à esquerda do que poderíamos começar a considerar como a "face
de Ra". E digo que era "curioso" porque a solitária lágrima de Sinuhe também lhe
escapara do olho esquerdo...
Com um nó na garganta, ele estendeu a mão trêmula até tocar a superfície muito
fria do disco, e enxugou a incrível lágrima. Esboçando um breve sorriso de amizade,
levou aos lábios as pontas úmidas dos dedos.
Sinuhe não entenderia jamais como poderia a poeirenta peça de um relógio antigo,
chegar a cobrar vida e a converter-se ainda em fiel, mágico e inquebrantável companheiro
de viagem e de fadigas... A verdade é que o irmão secreto da Ordem ou Loja da Sabedoria
estava apenas começando - apenas! - a descobrir o ilimitado poder dos Céus...
- Cristo!... Mas é salgada!
Sinuhe retirou os dedos dos lábios e contemplou, atônito, os restos da "lágrima"
que Ra derramara.
Se ainda adejavam dúvidas no espírito do repórter, ali estava aquela nova
confirmação da natureza do humor vertido pelo misterioso disco. Já não cabia vacilação
alguma: Ra era capaz de sentir e de demonstrar sentimentos humanos...
- Obrigado, amigo!
Aquelas duas únicas e contundentes palavras de Sinuhe encontraram no
companheiro uma resposta igualmente direta. Ra apagou e iluminou seu nome três vezes,
demonstrando-lhe assim que o entendera. E, ato contínuo, recuperou a horizontalidade, e
moveu-se em direção à porta da cabina. O jornalista seguiu-o intrigado.
- Que me quer dizer você?
Ra não tardaria a "explicar-se". Postou-se sobre a bolsa preta das câmaras
fotográficas, projetando um fino raio azul sobre uma das extremidades do fecho.
Delicadamente, aquele fio luminoso foi abrindo-a. Ao terminar, o disco dissolveu o
mágico "braço" celeste, e o substituiu pela outra projeção, também familiar, de pequenos
círculos da mesma cor. As argolinhas penetraram no interior e, num instante, Sinuhe,
estupefato, contemplava como Ra extraía da bolsa uma das Nikon. A câmara flutuava no
espaço, misteriosa e perfeitamente segura pelo último dos círculos azuis.
O aro se ajustara ao diâmetro da teleobjetiva curta - uma "105" - que o repórter
montara na caixa dias atrás.
Maravilhado, observou como o "amigo" mantinha a câmara em posição horizontal
e abraçada pelo ponto do anel de conexão das lentes. Justamente pelo lugar onde ele
costumava suspender suas câmaras. Sem dúvida, Ra parecia conhecer muito bem os
costumes do repórter...
O disco ganhou altura e se dirigiu até ele, pondo-lhe a "alada" máquina ao alcance
das mãos. Quando o nosso homem dela se apoderou, o fluxo de círculos desvaneceu-se e
Ra voou, então, para a janela da torre. Após segundos de aparente indecisão, sua face
voltou-se para- o expectante amigo. E depois, muito devagarinho, foi descendo até apoiarse
na estreita cornija interior da janela. Ficou imóvel, em posição vertical, ligeiramente
inclinado e apoiado entre a vidraça e o batente esquerdo. Nessa posição - tão só nessa - o
disco metálico recebia o máximo de luz. Sorrindo, Sinuhe entendeu os desejos de Ra.
Por sinal que, muito antes de visitar o casarão pela segunda vez, ele planejara
fotografar o enigmático pêndulo e os detalhes do alto-relevo. Mas aqueles intensos e
múltiplos acontecimentos acabaram por apagar-lhe as primeiras intenções. O disco, agora,
encarregava-se de fazer com que se lembrasse.
Sinuhe ajoelhou-se no assoalho, levando a câmara aos olhos. Foi quando, ao fazer
girar a roda da 105 milímetros, buscando perfeita focalização da face de Ra, deu-se conta
de outro "detalhe", tão gentil quanto demonstrativo da "inteligência" do "amigo". Na
bolsa estavam duas câmaras: a que Ra acabara de tirar e uma Nikkormat, armada com
uma 24 milímetros; quer dizer, com um grande ângulo. Esta câmara encerrava um filme a
cores, com sensibilidade de 100 ASA. A Nikon, por outro lado, dispunha de um em
branco e preto, de mais alta velocidade - 400 ASA - muito mais apropriado que o anterior
para um lugar como aquele, com pouca luz natural, relativamente. O jornalista, além do
mais, odiava flash. Pois bem, para Ra essas circunstâncias não passaram despercebidas,
pois escolheu a câmara e, inclusive, a objetiva mais adequada para o caso. Se Sinuhe
desejava tomar sobretudo os detalhes e a configuração do alto-relevo, o lógico seria que
se tivesse utilizado da "tele" curta ou uma "macro" e não a grande angular. A precisão na
escolha da câmara, portanto, fora absoluta...
E o investigador tremeu quando a "105" abriu ante seu olho a face claro-escura de
Ra. - Deus!... Que é isso!?
Ao enfocar, Sinuhe ficou estupefato. Baixou a câmara e cravou os olhos em Ra.
- Não pode ser... - murmurou, confuso.
É que vira, através da teleobjetiva, que a figura da serpente fora escamoteada. Em
seu lugar, rodeando os "olhos", aparecia outro alto-relevo: um complexo enredado de
linhas grossas, tudo em relevo também. Onde estaria o sinuoso corpo da serpente?
Sinuhe, preocupado, passou a culpar seu cansaço, a achar que tudo não passava de
fruto de sua imaginação, uma alucinação ou alguma deformação ótica.
"A melhor prova" - monologou - "é que, ao baixar a câmara, tornei a ver o "rosto"
de Ra: a serpente enroscada nos dois círculos..."
E, convencido de que talvez tivesse focalizado incorretamente a superfície do
disco, voltou com a câmara para os olhos. Acertou a objetiva e...
- Jesus Cristo!
Não manipulara mal a objetiva; tampouco fora vítima de lapso mental. Mas a
serpente desaparecera, transformando-se ou ocupando-lhe o lugar aquela gravação
incompreensível.
Tremeram-lhe as mãos. Hesitou, por um instante: baixava novamente a Nikon? Ou
disparava? Inspirou profundamente e, segundos depois, achando que seu pulso recobrara
um mínimo de equilíbrio, disparou. O "clic" tranqüilizou-o. Baixou a câmara e, tal como
supunha, o punhado de linhas fora nova e misteriosamente substituído pela serpente
inicial.
- É incrível!
Sinuhe aproveitou a extrema docilidade do "amigo", imortalizando a superfície do
pêndulo em uma demorada dúzia de imagens. E, cada vez que mirava através da
teleobjetiva, a "face" que ele havia visto, e que continuaria vendo no futuro, sofria
igualmente deformações. (Quando essas fotografias foram reveladas, depois de concluída
a missão, ele comprovaria que aquela "mudança" fora real. Hoje constituem uma das
poucas provas de que Ra existe...)
Por alguma razão que escapava ao conhecimento do investigador, seu singular
"companheiro" não desejava que o filme captasse o seu "rosto". Ou será que a serpente
enroscada tampouco era a sua verdadeira face?
Hoje, já de regresso daquela fascinante aventura, nem a filha da raça azul nem
Sinuhe lograram desvendar a sibilina incógnita.
Mas tentarei não cair em um dos meus defeitos habituais: adiantar
acontecimentos...
Quando o membro da Escola da Sabedoria considerou satisfeita sua curiosidade
pessoal e a jornalística - que no caso vinham a dar no mesmo -, devolveu a câmara ao
estojo, permanecendo com a vista como que distraída, à espera de alguma outra mudança
no alto-relevo. Mas a serpente que ondulava entre os "olhos" não se alteraria. E Sinuhe
propôs a Ra uma questão que, à primeira vista, não parecia fácil, mas que o vinha
atormentando desde que soubera ou intuíra que seu circular "amigo" teria de unir-se a eles
na "grande busca".
- Diga-me, como vou levá-lo comigo?
Sinuhe estremeceu só de pensar na possibilidade de que Ra pudesse segui-lo pela
aldeia, voando como um pássaro... A cena teria sido simplesmente catastrófica.
Enquanto aguardava uma resposta, chegou a pensar, mesmo, em uma drástica e
talvez pouco delicada solução: envolvê-lo em uma das toalhas que protegiam as câmaras
fotográficas e ocultá-lo na bolsa. Porém, como digo, não tardou a desistir de semelhante
iniciativa, convencido de que não era o tratamento mais correto para com um "amigo"...
E a solução, uma vez mais, correu por conta de Ra.
O disco, que sem dúvida acompanhava as reflexões de Sinuhe, abandonou o
batente da janela, imobilizando-se a metro e meio do piso. O investigador pôs-se de pé e
esperou. Que aconteceria agora?
E do pequeno "olho" brotou aquele fluxo de círculos celestes pequeninos.
Dirigiram-se então para a mão direita do repórter. Ele experimentou uma cocegazinha
fina, mas deixou que o "amigo" atuasse. O aro da extremidade e em contato com a mão se
havia introduzido no dedo anular como se fora um anel. E, docemente, Ra puxou o dedo.
O braço, até ali caído ao longo do corpo, foi tomando a posição horizontal. Sinuhe,
embora fizesse por adiantar-se e compreender a manobra, acabou por render-se.
- Que é que você pretende? - chegou a perguntar-lhe, com um começo de
intranqüilidade.
Ra porém parecia cativo daquele dedo e, é claro, nada respondeu.
A aliança de Sinuhe perdeu por instantes seu reluzente dourado, e ele chegou a
temer pela integridade física da jóia.
Então, aconteceu o inesperado...
De repente o disco sofreu uma daquelas características e intensas vibrações. Ele
todo se iluminou de um vermelho escarlate e, ante o olhar atônito de Sinuhe, que
continuava com o braço estendido, desmaterializou-se. Perplexo, Sinuhe viu como, um
décimo de segundo depois da súbita desaparição de Ra, o jorro de círculos azuis seguiu o
mesmo destino. O dedo anular ficou então liberado da tênue mas enérgica pressão.
- Oh!
A exclamação não foi só por causa da incrível cadeia de acontecimentos que
acabava de testemunhar. No seu dedo, no mesmo lugar que ocupara o aro azul, apareceu
um anel de um centímetro e meio de largura, todo em ouro lavrado.
Tremeram-lhe as pernas pela enésima vez. Devagarinho, foi abrindo e fechando a
mão direita. Não; não se tratava de um sonho. Ali, em seu dedo anular, junto à aliança,
reluzia um selo amarelo, coroado por delicado relevo quadrangular.
Distinguiu na palma da mão microscópicas gotículas de suor. Seu tremor inicial foi
acentuando-se. Durante uns poucos minutos sentiu-se incapaz de tocar o misterioso anel.
Finalmente, devorado pelo medo e pela curiosidade, roçou com um dedo a figura que
rematava o selo.
Nada aconteceu. O anel era, no mínimo parecia ser, absolutamente normal. Estirou
os dedos e procurou decifrar o significado da figurazinha que ocupava e decorava todo o
remate superior. Desde o primeiro momento, aquela gravação em ouro lhe parecera
familiar. Mas onde a vira anteriormente?
Seus pensamentos, no entanto, iam entrecruzando-se sem conceder-lhe trégua.
- Que terá acontecido com Ra?... Por que terá desaparecido?... Ou não
desapareceu?...
Sinuhe sentiu uma chicotada nas entranhas.
-, Terá mudado de forma, assumindo agora a deste anel?
À guisa de resposta - e contundente - uma onda de sangue subiu-lhe do ventre,
intensificando generosamente o suor que já lhe havia brotado pelos poros.
- E por que não? - murmurou, disposto a crer em qualquer coisa que viesse de Ra -.
Minha pergunta sobre "como iria levá-lo comigo" pode ter sido atendida com esta
concreção... Mas como posso ter certeza?
E o investigador, ingenuamente, ficou aguardando algum sinal. Porém, o formoso
anel - supondo-se que, com efeito, se tratasse do pêndulo - não parecia detectar suas
inquietações. Assim pois, um tanto decepcionado, aproximou-se à luz que jorrava do
postigo da janela, disposto a explorar minuciosamente o selo. A figura do relevo
representava um estranho ser, de cabeça quadrada e provido de dois olhos enormes. Mas
Sinuhe não conseguiu distinguir naquela face nem nariz nem boca. E, levantando os olhos
até a vidraça, lembrou-se imediatamente da monstruosa cabeça que descobrira, dias atrás,
naquela mesma janela, também desprovida de nariz e de lábios. Um estremecimento
percorreu-lhe a coluna vertebral.
"Por que a nova coincidência?"
O ser em questão aparecia agarrado ao umbral de uma espécie de porta. Com
exceção daquela "face" quadrada, o resto do corpo achava-se oculto sob um atavio ou
proteção difícil de descrever. Sinuhe teria jurado que se tratava de uma couraça flamífera.
Porém, dadas as reduzidas dimensões - formando um quadrado de um centímetro de lado
-, qualquer hipótese seria arriscado formular. Não obstante, o cérebro do investigador
fazia por recordar.
"Onde vi esta figura? Onde?"...
Finalmente, decidiu-se a pôr em prática uma idéia que o assaltava desde logo, mas
que o medo foi retardando. Pegou o selo com dois dedos e o foi retirando da mão. Nesse
instante, assim que o anel acabou de deslizar para a ponta do anular, súbito fogaréu o
deixou meio cego.
- Meu Deus!...
Foi tão súbito que Sinuhe soltou a jóia, cegado pela inesperada e silenciosa
explosão fulgurante.
- Oh, Deus!...
O repórter levou as mãos aos olhos, tentando recuperar a visão. Seus temores
porém eram infundados. Embora a luminosidade lhe tivesse, efetivamente,
sobrecarregado as pupilas, ao baixar as mãos, seus olhos - apenas irritados - perceberam
normalmente o seu contorno.
Suspirou aliviado. Olhou para o chão, esperando que o anel estivesse talvez sobre
o assoalho, mas, por muito que procurasse, não havia nem sombra do selo.
E, de repente, experimentou uma sensação conhecida. Não saberia como defini-lo,
mas "algo" ou "alguém" se achava às suas costas, a observá-lo. Tratava-se de um
sentimento ou de uma sensação muito freqüente, dessas que muitas pessoas já viveram
alguma vez.
Ao voltar-se, passada a primeira surpresa, Sinuhe não pôde deixar de sorrir. No
centro da peça flutuava Ra, negro e majestoso como sempre. Suas suspeitas viram-se
assim confirmadas: o "amigo", com o propósito de acompanhá-lo sem ser percebido,
havia-se transformado em anel e este, ao ser retirado do dedo, recuperara sua primigênia
forma habitual...
- Está bem - comentou Sinuhe aproximando-se do disco e levantando o braço
direito -, já o compreendi... Pode voltar ao dedo, se você não se importa... Devemos
regressar para junto da filha da raça azul.
Ra então repetiu sua emissão de círculos celestes, desintegrando-se e
reincorporando-se ao dedo anular em forma de anel.
Apesar de tudo, o "soror" estremeceu. Não era nada fácil acostumar-se a tantas e
tão vertiginosas emoções e, muito menos, a levar na mão um ser "vivo" e praticamente
onipotente...
Mas, depois de acariciar o anel, preferiu esquecer tudo aquilo. E, carregando o
material fotográfico e os utensílios emprestados, deixou o casarão.
Um Sol cálido, caminhando já para o zênite, saudou-o quando ele pisou o branco e
tosco calcetado da praça da Lastra. Sinuhe, agradecido, levantou o rosto, para que sua
pele se carregasse de energia.
"Quem acreditaria em mim?" - meditou, cerrando as pálpebras -. "Embora, no
fundo, que importa isso?... Não é a vida, realmente, uma fantasia e a mais prodigiosa das
aventuras?"
O resto daquela inesquecível jornada decorreu em paz. Glória não fez perguntas
demais, embora, ao vê-lo, tivesse sentido que o irmão e amigo guardava algum novo
segredo no coração. Indeciso » preocupado, deixou que passassem as horas. Durante o
almoço e o aprazível passeio que encerrou aquele 26 de julho, sentiu-se tentado a
confidenciar à companheira tudo o que vira e vivera no ático e cabina. Mas, a cada vez
que se propunha falar, de Ra partia uma espessa e nítida onda de calor que lhe inundava e
chegava quase a adormecer a mão direita. O primeiro "aviso" do camuflado "amigo"
pilhou-o tão de surpresa, que esteve a ponto de trair-se. Ao senti-lo, levantou
involuntariamente a mão, deixando escapar uma interjeição seca. Glória olhou-o
admirada, e Sinuhe viu-se em apuros para justificar o gesto tão inexplicável.
Afortunadamente, porém, a filha da raça azul não percebeu o anel. Os problemas,
entretanto, não haviam terminado.
Essa noite, ao recolher-se, o irmão da Loja secreta sofreria outra surpresa.
Foi ao despir-se. Embora, ao passar pela fonte da Diana Caçadora, no seu regresso
à Casa Azul, Sinuhe, sempre meticuloso, tivesse tentado limpar do pescoço aquele
fiozinho de sangue seco, pensou que o mais prudente ainda seria tomar um banho
relaxante. Eliminaria qualquer marca do ferimento e, ao mesmo tempo, suavizaria seus
nervos castigados.
Ao descobrir o dorso, o jornalista - que tinha praticamente esquecido aquela
pontada no lado esquerdo das costas - ficou perplexo. Ao olhar-se fugazmente no espelho
descobriu uma pequena mancha à altura das costelas. Em uma primeira e agitada
exploração, associou-a com uma equimose ou mancha roxa, conseqüência - pensou - do
impacto de um dos pés das cadeiras que lhe haviam caído sobre o corpo. Mas, ao
aproximar-se da luz, sua perplexidade não teve limites: "aquilo" não podia ser um vergão
qualquer...
"São círculos!"
Nervosamente passou os dedos sobre a suposta equimose e constatou que aqueles
três círculos concêntricos azulados não se apagavam. Esfregou com mais força e
insistência, mas só conseguiu avermelhar as costas. Aplicou água e sabão, mas foi inútil.
Aquele "sinal" - o de Micael, o mesmo que vira no escritório do seu Kheri Heb e nas seis
árvores do bosque - não se alterou em nada.
Desconcertado, deixou cair a esponja e retrocedeu. Contemplou-se de novo ao
espelho, e uma tempestade de hipóteses, contra-hipóteses e receios apoderou-se dele.
- Que é isso?... Que significa?... Mas quando?...
Com grande dificuldade retrocedeu no tempo, tentando reconstruir as cenas vividas
no velho casarão.
- Isso aconteceu em algum momento - repetia-se obsessivamente -. Mas quando?
Sinuhe se lembrou do morcego e de sua estúpida queda. E, entre sombras, veio-lhe
à mente seu retorno à consciência e aquela dor aguda, exatamente no ponto em que agora
ele descobria os três círculos. Entretanto, a possibilidade de que algum dos móveis fosse o
causador daquele "emblema" foi descartada na hora.
Havia, sim, "algo" que não parecia lógico: como era possível que tivesse
permanecido toda uma hora inconsciente? Que teria acontecido todo esse tempo?...
Qualquer hipótese, por suspeitosa que fosse, teria de ser descartada e esquecida,
ante aquela nova vivência: Ra...
"Sim, deve ter sido ele."
E então se recordou daquela última pontada, quando se achava sentado no chão da
cabina, e a fulminante intervenção do disco, projetando um dos seus feixes luminosos
sobre a zona dolorida. Mas, aceitando tal possibilidade, que objetivo teria marcá-lo com o
emblema ou escudo de Micael? Ou não se trataria de mero sinal?
Como já insinuei a certa altura, o irmão da Ordem da Sabedoria tinha de "passar ao
outro lado" para conhecer a verdade sobre como e por que lhe haviam sido "implantados"
aqueles três círculos entre a quinta e a sexta costelas... e tão perto do coração. Naquele
momento, ele não podia sabê-lo, mas eu, sim, posso anunciar ao leitor, que guardava
íntima relação com o papel dos "reservistas".
O cansaço pôde mais e, depois de um rápido banho, Sinuhe foi deitar-se. Seu
descanso, entretanto, foi minado e interrompido por uma sucessão de pesadelos
angustiosos. Muito antes da alba, já estava saltando do leito.
Enquanto aguardava Glória, tentou decifrar o sonho de que se recordava mais e
que o havia enchido de espanto. Naquele pesadelo- que se repetiria várias vezes - via a si
mesmo ao pé de uma estranha torre e em meio a uma "escuridão avermelhada" Ao seu
redor, centenas, talvez milhares de seres de pequena estatura e crânios volumosos vinham
aproximando-se, braços estendidos, atitude ameaçadora.
Criaturas semelhantes às que vira na clareira do bosque e também do outro lado da
vidraça da janela da torre. Disso ele tinha certeza. Mas, à diferença deste ser, os do
pesadelo não ostentavam no peito aqueles três círculos azuis e concêntricos. No centro do
tórax de cada um deles, igualmente transparente, Sinuhe pensou distinguir outro emblema
ou símbolo: um círculo preto, com outro vermelho e menor no interior dele.
As enormes cabeças, tal como a da criatura que o havia espreitado na torre, só
tinham olhos: escuros, redondos, pequeninos e circundados ou cercados por uma espécie
de calosidade que sobressaía vários centímetros na cara horrenda. E aquela multidão
sempre aproximando-se, aproximando-se...
Mas quando aquela infinidade de dedos estava a ponto de cair-lhe em cima, o
pesadelo se apagava e o repórter, violentamente sacudido em sua cama, despertava. Suado
e ofegante, lutava por encontrar e acionar o interruptor de luz. Aqueles segundos,
submerso nas trevas do quarto e nas brumas da semi-inconsciência, eram-lhe
especialmente amargos...
Naturalmente, quando, afinal, dava com o maldito interruptor, rosto descomposto,
percorria com o olhar até o último canto do aposento, em busca de sabe Deus que
criaturas. Entretanto, o lugar parecia calmo. Com o coração avariado apagava novamente
a luz, escorregando para debaixo dos lençóis, cobrindo-se até o nariz. E, durante minutos
intermináveis seus olhos perscrutavam a escuridão, pendentes de qualquer sombra. Só
aquelas pessoas que sentem esse agudo e indescritível medo das trevas e da possível
aparição de seres terrificantes na solidão do quarto, podem entender o sofrimento do
nosso homem aquela noite...
Tais sobressaltos, como disse, repetiram-se uma ou outra vez, até que, incapaz de
controlar os pesadelos e o pânico, acabou com a situação, descendo para o primeiro andar
da Casa Azul.
Foi pequeno o conforto que encontrou em suas auto-explicações.
"Se esses pesadelos" - raciocinava, enquanto tentava plasmar o perfil-robô
daquelas criaturas - "não foram mais que isto, pesadelos, por que em seus peitos eu via
um emblema tão diferente do de Micael?... Quem eram? Não são mais que imaginação
minha?... Sim, deve ser isso."
Como se enganava Sinuhe!... Houve uma época em que estudou os chamados
sonhos premonitórios. Ele sabia, conseqüentemente, que essa categoria de fascinações do
inconsciente revela às vezes o que vai acontecer...
Mas sigamos a ordem dos fatos.
Quando a filha da raça azul desceu para o desjejum, Sinuhe já tinha relegado a
incógnita dos pesadelos. Era outro, agora, o problema que o ocupava e preocupava. A lua
nova aconteceria no dia seguinte, 28 de julho e, como sempre, apesar de meticuloso e
apaixonado pela ordem, o investigador deixara para o último dia um detalhe que, embora
prosaico, não admitia mais demoras: em que exato momento desse sábado se registraria a
entrada no novilúnio?
A precisão nesse caso - assim o entendia - era crucial. Se "o momento do início da
missão" - como rezava o telegrama do seu Kheri Heb - "devia chegar com a lua nova", era
imprescindível conhecer a hora e, se possível, até o minuto exato. Mas como solucionar o
problema?
Sinuhe não dispunha das tábuas astronômicas e, na Casa Azul, segundo Glória,
seria difícil encontrar uma pista.
Esforçando-se para não abalar os nervos, fez um inventário das pessoas que
poderia consultar por telefone.
"Se tudo falhar" - meditou, ao mesmo tempo em que acariciava o anel - "suponho
que Ra nos poderá tirar do atoleiro..."
Mas, dessa vez, não foi necessária a intervenção do seu "enlace".
Ao discar o número do observatório do Ebro, em Roquetas, seu bom e paciente
amigo, o padre Cardús, diretor do centro, acedeu gostosamente em resolver o intrigante
pedido do investigador. Em poucas horas, a resposta soava clara e precisa do outro lado
do fio.
- Meu querido amigo - informou o jesuíta - a lua nova se dará às 11 horas e 51
minutos, tempo universal.
Ao pendurar o fone, Sinuhe não dissimulou a estranheza.
- Que foi? - interrogou Glória, percebendo que "algo" de extraordinário e
imprevisto provocara aquela sombra na fisionomia de seu companheiro.
- Não entendo - murmurou finalmente, mostrando à Glória a hora prevista para o
novilúnio daquele mês de julho.
A filha da raça azul leu as anotações em silêncio e, levantando os olhos do papel,
deu-lhe a entender que não conseguia captar o motivo de suas preocupações.
- Pode ser que não tenha maior importância, mas essa hora, mais as duas
adiantadas, significam que a lua nova se iniciará quase às duas da tarde...
- E daí?
Sinuhe contemplou a senhora e, depois de uns instantes de hesitação, exclamou em
tom conciliador e como que desejando esquecer o assunto:
- Não, nada... Você verá, mas não sei por quê, sempre acreditei que nossa missão
teria sua partida em plena noite... Evidentemente, não é assim.
- Evidentemente - repetiu Glória com um sorriso -. E lhe digo outra coisa: você se
preocupa demais. Deixe que voem os acontecimentos. Espere-os... Não sabemos aonde
vamos, o que nos espera, tampouco como achar esses arquivos secretos... Não se
atormente... Talvez seja tudo mais simples do que supomos.
- Ou mais difícil - sussurrou, recordando-se dos pesadelos. Mas Glória nem
prestou atenção a esta última e premonitória reflexão do membro da Loja da Sabedoria.
Para espanto do companheiro, a filha da raça azul parecia mais interessada em outra
atividade. Pelo resto do dia, Sinuhe a viu ir e vir, preocupada tão-só com a indumentária e
a bagagem que deviam apresentar...
Só ao anoitecer, quando se convenceu de que aquela preocupação estava sendo
levada muito a sério, Sinuhe pediu à amiga irrequieta que o escutasse:
- Não se trata - disse-lhe com ternura - de uma "viagem" como você talvez esteja
imaginando...
Glória o mirou, sem compreender de todo. Não que Sinuhe tampouco soubesse
como ou de que maneira ia transcorrer a missão, mas intuía que, para a realização daquela
"grande aventura" contava-se tão-só com a boa disposição dos dois e, naturalmente, com
a presença permanente de Ra.
E, nessa crença inabalável, a data fixada chegou...
Nem Glória nem Sinuhe conseguiram dormir. Naquela noite, véspera do encontro
com o desconhecido, apoderou-se deles o nervosismo. Enquanto a filha da raça azul se
certificava, consternada, de como pareciam apagados da mente os ensinamentos
recebidos, o investigador, indormido, investiu a maior parte do tempo em frenéticos
passeios pelo dormitório, mergulhado em. dúvidas tais como, por exemplo, se devia levar
seu material fotográfico ou se deixaria carta escrita para a família...
Com as primeiras luzes daquele inapagável 28 de julho de 1 984, ele e ela,
esgotados, apareceram quase simultaneamente no salão, persuadidos de que o melhor era
não pensar e deixar-se levar pelos acontecimentos. E depois de frugal desjejum - já
preparados para a missão - saíram para o jardim. Glória, finalmente, escolhera uma longa
túnica azul de mangas generosas e bolsos. Sinuhe, sem a menor preocupação com suas
vestimentas, apareceu com um jeans gasto e desbotado e uma camisa de verão, também
celeste. Em sua mão direita, naturalmente, reluzia o ouro do anel... Enquanto a filha da
raça azul procurava preencher aquelas horas de tensão que precediam a ida ao bosque,
com leituras ou cuidando de suas flores, seu companheiro se enfronhou em minuciosa
revisão e limpeza das câmaras fotográficas. Contrariamente às ponderações que ele
próprio sustentara na véspera com a senhora da Casa Azul, no sentido de que não
deveriam carregar bagagem alguma, seu instinto jornalístico o compelia a não se desfazer
pelo menos de seu equipamento fotográfico. Se a missão da busca dos arquivos secretos
de IURANCHA prometia ser tão intensa e delicada como ele cria, o lógico era que
tentasse munir-se do máximo possível de provas documentadas. Sinuhe confundia a
natureza da missão. Bem depressa, porém, descobriria que, nessa busca, o "lógico" seria
precisamente o "ilógico"...
Consultou o relógio: 10 horas. No céu de transparência infinita, o Sol era cada vez
mais ardente. Ao dirigir o olhar na direção do bosquezinho que abraçava o casarão da
Câmara Municipal, nada parecia fora do normal ou da rotina. Bandos inquietos de
andorinhas e gaivões faziam como sempre escuros mergulhos sobre as copas dos
choupos, enquanto as tranqüilas pessoas da vila atendiam, sem pressa, aos seus afazeres.
E aquela dúvida queimante - nascida com a consciência da hora e da lua nova - veio
embaralhar-lhe os pensamentos.
"Como é possível que estejamos na iminência de embarcar em semelhante
aventura e que, no entanto, pareça tudo tão tranqüilo?"
Tais apreciações, não obstante, não se mostrariam exatas. Pelo menos no que se
referia a Glória e a Sinuhe...
Pelas 13h3O, quando o par já se dispunha a abandonar a Casa Azul rumo ao
bosque, alguma coisa ocorreu que esteve a ponto de arruinar-lhes os projetos.
Desapontado, Sinuhe viu que José Maria, o prefeito de Sotillo, atravessava a
cancela do pátio e, com um leve sorriso, caminhava em direção ao guarda-sol à cuja
sombra ele se ocupava em ajustar suas câmaras.
E com um "olá, como vai?", tomou assento junto ao forasteiro. Num movimento
reflexo, Sinuhe observou os dígitos do seu relógio. Balbuciou outra saudação e procurou
Glória com o olhar. Mas a senhora, atarefada na revisão de um viveiro, não se apercebera
ainda da inesperada visita do vizinho.
- Pensei - expôs o alcaide após um de seus característicos e demorados silêncios -
que, se você concordasse, hoje seria um dia ideal para que eu lhe mostrasse a fábrica de
mel...
- Como?...
Só então Sinuhe se lembrou de que em oportunidades diferentes pedira a José
Maria que lhe permitisse acompanhá-lo aos apiários existentes nos arredores da aldeia,
como também visitar a fábrica em questão, uma das melhores da Europa em sua
especialidade. Mas, por uma ou outra razão, tais visitas sempre haviam sido postergadas.
- Você não está com boa fisionomia. Eu lhe dizia que esta manhã disponho de
tempo para mostrar-lhe a fábrica...
- Ah!... Bem, mas... é que...
Sinuhe se remexeu nervosamente na cadeira de vime, suplicando aos céus que
Glória aparecesse. E ela não tardou a fazê-lo, como se tivesse captado o pedido de
socorro. Trazia um fresco e luminoso maço de margaridas graúdas. Sentou-se frente a
Sinuhe e, ao conhecer o motivo da visita, trocou um olhar significativo com o jornalista.
No momento ela percebeu o delicado problema mas, longe de interferir, continuou
silenciosa. Depositou o ramo de flores silvestres em cima da mesa e se entreteve a
escolher uma das mais belas.
Sinuhe, pálido, só conseguia consultar o relógio.
"13 horas e 45 minutos."
Estava a ponto de declinar do amável convite e arrastar Glória para o bosque,
quando a senhora tomou uma iniciativa muito mais prudente. Ajeitou entre seus cabelos
louros a margarida que selecionara e, com uma serenidade que o deixou perplexo,
perguntou a Sinuhe:
- Está bem assim?...
Antes que o pobre e confuso amigo emitisse uma palavra, acrescentou:
- Quando você quiser, podemos tirar as fotos. Estou pronta. E imediatamente,
dirigindo-se ao alcaide, pediu-lhe que os desculpasse.
- É coisa de cinco ou dez minutos - esclareceu, sugerindo-lhe que não saísse dali.
José Maria, conhecedor dos gostos fotográficos de Sinuhe não se alterou e, com
um lacônico "está bem" os viu desaparecer pelo bosque, enquanto se servia de uma
fumegante xícara de café.
Eram 13 horas e 47 minutos. Faltavam apenas quatro minutos para que desse
começo a desejada e, ao mesmo tempo, temida lua nova.
"... 13h50".
Sem alento, mais atento ao relógio que à companheira, Sinuhe finalmente entrou
na clareira. Soltou a pesada mala preta das câmaras e, angustiado pela iminência da hora,
recostou-se ao tronco de uma das seis árvores marcadas com os círculos concêntricos. A
filha da raça azul, ofegante também depois da louca corrida até ali, tentou recuperar o
fôlego.
Aturdida com a fuga precipitada de casa, Glória precisou de alguns segundos para
compreender que se encontrava, justamente, no claro de que lhe havia falado Sinuhe. As
batidas do seu coração se precipitaram quando descobriu, nas cascas das árvores, aqueles
três símbolos.
- Lembra o sinal de Micael! - murmurou com um fio de voz. E, apontando para os
círculos gravados nos troncos, interrogou o amigo com o olhar.
- Sim - retrucou o membro da Ordem da Sabedoria - este deve ser o lugar. Este é o
sinal de Micael (sua bandeira) e
Ra fará descer com a lua nova seu Mensageiro Solitário... Lembra-se?
Glória assentiu, em silêncio. E ambos, movidos pelos mesmos pensamentos,
levantaram os olhos para o puríssimo céu que se recortava entre as ramagens das árvores.
" 13h51"
Nem nossos expectantes protagonistas, nem tampouco o Conselho Supremo dos
Kheri Hebs da Ordem da Sabedoria podiam imaginar o que - exatamente naqueles
instantes: 13 horas e 51 minutos de 28 de'julho - estava acontecendo a milhares de
quilômetros daquele pequeno bosque perdido e insignificante, na remota aldeia soriana de
Sotillo.
Cerca de vinte e quatro horas antes do começo da lua nova os astrofísicos do
conhecido radiotelescópio de Arecibo, na ilha de Porto Rico, experimentaram uma nova
comoção. Aquele astro "intruso" que vinham seguindo e que, a 27 de janeiro, como
recordará o leitor, cruzara a órbita de Plutão, agora se havia detido.
Harold D. Craft, diretor de operações, e seu colega Rolf B. Dyce não se haviam
descolado desde então da sala de controle de dados. Para os cientistas, a imobilização de
"Ra-6 666" não tinha explicação lógica alguma. A não ser, claro, que fosse dirigida
inteligentemente. Mas esta cada vez mais perturbadora realidade não podia ser assimilada
assim facilmente por sua mente raciona-lista. E Craft e Dyce - de posse de parte do
segredo do astro - mantiveram-se frios e serenos.
Os computadores do radiotelescópio fixavam as coordenadas galácticas e a
distância de "Ra-6 666" em 3 horas e 44 minutos ou em 29,6937 unidades astronômicas.
Quer dizer, praticamente em idêntica posição à calculada pelos observatórios do mundo
nas datas do seu ingresso no sistema solar: a uns 4 454 milhões de quilômetros do Sol. E a
essa impressionante distância, como digo, havia freado sua ameaçadora carreira.
Desde esses momentos críticos, todos os astrônomos que participavam do
seguimento haviam orientado seus telescópios em direção àquela zona do espaço e,
perplexos e maravilhados, tiveram de inclinar-se ante a evidência e reconhecer que "algo
muito estranho" ocorria nas fronteiras do nosso sistema. Mas aquela perplexidade quase
alcançaria os limites da loucura quando, às 11 horas e 51 minutos (tempo universal)
daquele 28 de julho - 13h51, hora local na Espanha -, um dos astrofísicos do Monte
Palomar, Gerry Neugebauer, atento ao astro "intruso" detectou em suas imediações
algumas potentes "explosões".
Quando, poucas horas depois, Gerry revelou as chapas fotográficas e checou os
tempos impressos nos negativos obtidos com o telescópio Schmidt de 48 polegadas, não
soube a que se ater. A primeira explosão, registrada em plena linha equatorial de "Ra-6
666", tivera uma duração de 0,00000000001 (l,-",) segundos. Os dígitos da placa fixavam
a explosão luminosa - tão espetacular como a de uma supernova - nas 13h51 (hora local
da Espanha). A esta inexplicável "explosão" outras 36 se lhe haviam seguido, sempre no
mesmo ponto e com períodos ou tempos de "brilho" .tão infinitesimais como o primeiro.
Aquela cadeia de "estalos" havia-se produzido com intervalos exatos de um minuto entre
"explosão" e "explosão".
Neugebauer, totalmente desconcertado, apressou-se a transmitir a informação entre
seus colegas. Mas ninguém, é óbvio, pôde desvendar o mistério das 37 fugazes mas
grandiosas "explosões" de luz que, aparentemente, haviam partido de "Ra-6 666".
Tampouco Harold Craft e seu secreto irmão de Loja no radiotelescópio chegaram a intuir
a enorme transcendência dessa seqüência. Só algum tempo depois - quando Sinuhe pôde
informar sobre sua fascinante missão -, o Conselho Supremo da Escola da Sabedoria
ficou em condições de desvendá-la.
Naturalmente, como já terá adivinhado o leitor, essas 37 "explosões" -
especialmente a primeira - guardavam relação muito estreita com a presença de Sinuhe e
da filha da raça azul no bosque de Sotillo, com os "Mensageiros Solitários", capazes de
deslocar-se pelos universos a cinco milhões de vezes a velocidade da luz, e com os 37
mundos do sistema de Satânia que haviam secundado a rebelião de Lúcifer...
Se Glória e Sinuhe tivessem sabido, naqueles momentos cruciais, das informações
que os astrofísicos norte-americanos tinham começado a recolher e, pelo menos, o
registro da primeira "explosão", teriam compreendido mais rapidamente a natureza do
personagem e dos sucessos que estavam por materializar-se sobre a clareira. Mas."...
talvez fosse melhor assim...
Às 13h51, Sinuhe consultou o relógio. Olhou a companheira e praticamente não
teve tempo para nada mais. A partir desse instante bosque e aldeia caíram debaixo do
influxo de um silêncio já bem conhecido do investigador. O gorjeio dos pássaros e o
zumbido subterrâneo dos insetos foram sufocados de repente. E aquela "pedra" - mais que
silêncio - esmagou até o luxuriante brilho das folhas e, naturalmente, os ânimos dos
nossos cada vez mais intranqüilos protagonistas.
Simultâneo com o surgimento daquele silêncio, e procedente do fundo do bosque,
Glória e Sinuhe descobriram, cheios de temor, uma névoa opaca que, de todos os pontos
cardeais avançava para eles, ocultando- à sua passagem troncos e matagal sob enormes
campânulas leitosas. A filha da raça azul, assustada, refugiou-se atrás de Sinuhe. Ele, sem
conseguir reagir, limitou-se a perscrutar o reduzido círculo do céu, ainda visível desde o
centro da clareira.
Mas já não pôde distinguir o primitivo retalho celeste que vislumbrara pouco antes
entre os ramos dos choupos. Em seu lugar, estava aquela névoa oscilante, enredada na
folhagem e caindo sobre eles como um presságio.
- Deus meu!... Que é isso?
Foram as únicas e vacilantes palavras que Glória logrou exprimir, antes que a
bruma, cada vez mais rápida, invadisse a clareira e devorasse o casal. O repórter
comprimiu fortemente a quase desmaiada mão da filha da raça azul, lutando por não
perder a calma e, ao mesmo tempo, por descobrir em algum ponto da espessa massa
esbranquiçada alguma silhueta, um vulto qualquer. Entretanto, com pavor crescente,
compreendeu que a densidade daquela bruma misteriosa era tal que mal conseguia avistar
a amiga... Um calafrio estremeceu-lhe as entranhas.
à beira do desfalecimento, Glória e o investigador assistiram, então, a um sucesso
que veio substituir o medo por um oportuno sentimento de esperança. Pelo menos, em
Sinuhe...
Era inútil. Os esforços de Sinuhe para obter uma resposta racional para a súbita
aparição daquela bruma não encontraram eco. Ele estava consciente de que o dia
amanhecera luminoso e transparente. A que obedeceria então aquela alteração
meteorológica? Por outro lado, o repentino silêncio e o quase "inteligente" avanço da
bruma, envolvendo-os, não eram normais nem próprios de nenhum tipo de nuvens baixas
ou de cerração.
Porém "algo" igualmente misterioso iria dissipar, como digo, parte desse medo.
Até esse momento, o jornalista não se havia dado conta de que aquela era a primeira vez -
desde que Ra adotara a forma de anel - que sua mão direita estreitava a da filha da raça
azul. E quando o pânico ia tornando-se insustentável, dentre aquelas mãos fortemente
entrelaçadas brotou uma luz avermelhada e bruxuleante. No princípio limitou-se a
envolver as mãos, palpitando e crescendo até alcançar o volume de uma bola de futebol. E
essas extremidades desapareceram da vista dos confusos humanos. Glória, incapaz de
sustentar a tensão emocional, dispôs-se a escapar, mas Sinuhe, que soube na hora "quem"
provocava aquela bolha escarlate, fez por retê-la, certo de que seu invisível "amigo"
alguma coisa pretendia.
Foi nesses instantes dramáticos que tanto Glória como o companheiro perceberam
outro fenômeno que, em princípio, só acrescentou confusão à confusão. Ao tentar falar e
comunicar-se, nenhum dos dois conseguiu articular palavra. Podiam mover os lábios, sim,
mas - embora seus pensamentos não parecessem afetados - o som final não lhes chegava
aos ouvidos.
A "bolha" vermelha, após breve lapso de tempo em que palpitou e se manteve com
um diâmetro constante, começou a crescer e expandir-se dentro da bruma, tingindo a
clareira e os nossos personagens de um fantasmagórico resplendor carmesim.
No momento, o chão do bosque estremeceu. Essa, ao menos, foi a sensação que
tiveram. Por um ou dois segundos, os pés de Glória e Sinuhe captaram uma vibração que
cessou quando, atônitos, observaram como a areia do bosque adquiria vida. Os milhões de
grânulos que atapetavam a clareira deslocaram-se e, flutuando lentamente, foram
ascendendo, convertendo-se em prodigiosa e rutilante "nevada de luz"... ao revés.
A filha da raça azul, muito mais surpreendida que Sinuhe, apertou com mais força
a mão do amigo. E ele, que vinha sentindo na carne as arestas do mágico anel, teve a
nítida sensação de que Ra já não estava no seu anular. Mas, sacudido pela luz vermelha e
entretido na imensa coluna de pontinhos luminosos que se elevava para as copas das
árvores, não tentou sequer certificar-se.
Milhares daquelas partículas cintilantes ficaram presas em suas roupas, cabelos e
rosto, emprestando-lhes um aspecto fulgente.
E eles dois souberam que qualquer coisa de aterrador e sublime ao mesmo tempo
estava por acontecer...
De repente, Sinuhe escutou a voz da amiga. Com efeito, os lábios dela se moviam,
mas aquelas palavras - se é que se pode chamá-las assim - não vinham de sua garganta.
Porém, penetraram nitidamente no cérebro do investigador ..
- Olhe para cima!...
Sinuhe obedeceu e seus olhos quase lhe saltaram das órbitas.
Acima de suas cabeças, no centro daquela "cascata" ascendente, começava a
formar-se uma figura.
Milhares, centenas de milhares daqueles diáfanos e vivíssimos pontos de luz, ao
alcançar uma altitude de três metros, freavam sua ascensão retilínea, agrupando-se de tal
forma que, em segundos, Glória e Sinuhe estavam em condições de distinguir o que
parecia ser uma cabeça.
Muitos dos corpúsculos que se elevavam também do perímetro da clareira, ao
chegar à altura daquela figura em formação, variavam sua trajetória, indo fundir-se - a
grande velocidade - com os milhões de "irmãos" que iam "modelando" aquele corpo
gigantesco.
À cabeça seguiram-se longos e musculosos braços e também um largo tórax.
Imersos na luz escarlate e banhados por aquela contínua "chuva" ascendente, nossos
pratogonistas foram testemunhas da aparição de umas atléticas pernas.
Glória ameaçou retroceder, mas Sinuhe não permitiu. E misteriosamente o medo
foi desaparecendo. Apesar do aspecto impressionante, aquele ser de três metros de altura
emanava uma cálida sensação de paz. Todo ele fora integrado por milhões de grânulos de
luz que continuavam pulsando individualmente, transformando seu corpo em uma incrível
brasa iluminada. Os cabelos - de um branco algodoado - caíam-lhe sobre os ombros e
deixavam a descoberto um rosto de olhos rasgados e traços talhados a cinzel. Ao centro
do peito, o emblema de Micael, cuja visão contribuiu para tranqüilizar Sinuhe.
Largo cinturão parecia enfaixá-lo e realçar-lhe ainda mais a musculosa
compleição. No centro dele os corpúsculos luminosos agruparam-se para formar a estrela
de Davi.As pernas - que as mãos de um homem não abarcariam - estavam metidas em algo
parecido com nossas calças, embora muito justas e compondo, sem dúvida, um uniforme
ou traje de uma só peça. Já os pés, evidentemente pousados na "areia" cintilante da
clareira, mal se distinguiam. Miríades de grãozinhos de luz brotavam sempre do solo,
ocultando-os. Uma capa tecida por milhões de pontos luminosos flutuava ao sabor de um
vento doce e inexistente.
Ainda assombrados, Glória e Sinuhe viram o robusto braço direito da criatura
levantar-se em sinal inequívoco de saudação. Ao mesmo tempo, uma voz grave ressooulhes
no cérebro.
- Que a paz de Micael, nosso Soberano e Criador, esteja convosco, filhos de
IURANCHA...
Os olhos amendoados do ser centuplicaram sua luminosidade. E um amplo sorriso
tranqüilizador desenhou-se naquela face que se diria marmórea. Nenhum dos atônitos
humanos percebeu movimento em seus lábios. Entretanto, uma vez no "outro lado", tanto
Sinuhe como a filha da raça azul souberam que haviam recebido a mesma mensagem.
- Meu nome - soou a voz - é Agurno, Mensageiro Solitário vindo de "Ra" e
enviado pelos Mui Altos da constelação...
Maravilhado, Sinuhe teria desejado corresponder à saudação e também formular
algumas perguntas. Mas por mais que o tentasse nem os braços nem a língua lhe
obedeceram. Simplesmente, tal como sua companheira, estava paralisado.
Nesse instante os dois tiveram plena consciência de que sua enigmática missão
acabara de começar.
- Como "iuranchianos", fostes escolhidos para resgatar primeiro os arquivos
secretos de vosso mundo evolucionário, subtraídos pela iniqüidade do príncipe planetário
Caligastia e de seus seguidores...
Como em um sonho, Glória e o companheiro acolheram as "palavras" do enviado
celeste - um dos que compõem a Ordem dos Mensageiros Solitários, capazes de deslocarse
a mais de cinco milhões de vezes que a velocidade da luz - e, como um tesouro,
guardaram-nas em seus corações.
- Sabei que tal desempenho não será fácil. Guardai-vos de Belzebu, líder dos
"medianos" rebeldes instalados em IURANCHA desde a rebelião do Maligno. Guardaivos
de sua iniqüidade e estai prevenidos porque não haverá trégua para vós...
Ao ouvir aquelas advertências, Glória e Sinuhe estremeceram.
- Mas não desfaleçais. Sabei também que, embora nem um dos servos de Micael
possa substituir-vos nessa missão, outros "medianos" leais ao Pai Universal estarão
prontos a socorrer-vos, se necessário...
Belzebu?... "Medianos" rebeldes e "medianos" leais?... Que significava tudo
aquilo? A inquietação tornou a instalar-se nos ânimos dos atônitos "iuranchianos".
- Buscai Solônia - continuou Agurno naquele tom cavernoso mas firme -, o serafim
que guardou o Jardim do Éden. Sua espada vos será necessária. Agora vos deixo com o
"olho de Ra". Ele vos acompanhará.
Sinuhe, ao contrário da filha da raça azul, ele sim, sabia então a quem se referia o
Mensageiro Solitário. Entretanto, desse outro personagem - Solônia - não sabia nada,
absolutamente nada. Quem poderia ser? Ele se recordava daquela remota passagem do
Gênese, onde se conta como um anjo, com uma espada flamejante, guardou as portas do
Paraíso. Tratar-se-ia do mesmo ser? E por que sua espada lhes seria necessária?
- Como nos outros 36 mundos evolucionários de Satânia, mergulhados no
insulamento desde a rebelião do Maligno, os Anciãos dos Dias concederam a
IURANCHA o direito a assistir ao iminente julgamento de Lúcifer. Mas antes, ide e
descobri a Verdade por vós mesmos...
E o gigantesco mensageiro levantou de novo o braço direito, despedindo-se:
- Que a paz de Micael, o Filho do Paraíso, esteja convosco. E tu, filha da raça azul,
prepara-te para receber teu verdadeiro nome...
Quando Agurno terminou sua mensagem, os milhões de pontos luminosos que lhe
davam forma foram perdendo brilho, até apagar-se por completo. E embora legiões
daqueles grânulos resplandecentes continuassem subindo de toda a superfície da clareira,
como refulgentes e mágicas borbulhas, aqueles que se haviam reunido para formar a
poderosa figura do Mensageiro Solitário se foram dissolvendo agora em um processo
fulminante. Precisando bem, nem toda a indecifrável constituição corporal do enviado
aniquilou-se. Entre a bruma avermelhada e os rutilantes grãos, sempre ascendendo quem
sabe para onde, Glória e Sinuhe observaram como aqueles rasgados olhos continuavam
fixos no mesmo lugar. Não se havia extinguido a intensa luz branca que deles fluía. Muito
pelo contrário, começou a propagar-se, perfurando a névoa como os braços de um farol
marinho. E cada um daqueles cilindros luminosos foi banhar Sinuhe e a filha da raça azul.
Era como se da informe massa de bruma vermelha que os envolvia tivessem saído de
repente uns olhos infernais...
Os feixes, entretanto, desapareceram cessando de inundar os corpos do casal. No
mesmo instante, eles recuperaram a capacidade de movimento.
Ao sentir-se livre, Glória correu e refugiou-se atrás do amigo.
Aqueles "olhos" imóveis, a três metros do chão, foram tornando-se menores,
modificando seu primitivo e amendoado perfil por outro circular. Sinuhe assistiu então a
uma metamorfose que acabaria por enchê-lo de alegria.
Um dos olhos - o da direita - aumentou quase instantaneamente de diâmetro. O
outro não sofreu modificação alguma. E num instante, recortando-se em meio à névoa,
surgiu a negra silhueta do disco.
- Ra!
Sinuhe gritou aquele nome com todas as forças. E, embora sua voz não pudesse ser
ouvida, o pêndulo correspondeu à saudação apagando os "olhos" e iluminando as letras da
face.
- Ra... por Deus! Que é tudo isso? Quem é Solônia? Que devemos fazer?
Mas o disco, com sua proverbial indiferença, parecia mais preocupado com outro
assunto. Assim que, lentamente, se deslocou e foi postar-se acima das cabeças do confuso
casal. À sua passagem a névoa agitou-se nervosamente.
Em seguida, dos "olhos" de Ra surgiram os jorros familiares de círculos celestes
que foram abraçar as mãos da filha da raça azul. E com extrema delicadeza cada um dos
fluxos luminosos as foi afastando dos ombros de Sinuhe. Aterrorizada, ela pediu ajuda ao
amigo. Mas ele, consciente de que Ra não lhes causaria dano algum, tratou de apaziguarlhe
o pânico.
- Não tenha medo. Chama-se Ra e é um velho amigo...
Glória, à beira do paroxismo, levantou o rosto para aquela "coisa" discoidal e num
repente tentou abaixar os braços e liberar-se dos etéreos aros azuis. Mas apesar de suas
convulsões as mãos - invisivelmente manietadas por uns círculos que nem sequer lhe
roçavam a pele - não se moveram.
Sem pressa, Ra deixou que a filha da raça azul se agitasse até o esgotamento. Seus
"braços" luminosos e imóveis ante aquela movimentação, não cederam. Sinuhe sem poder
compreender as intenções do disco só conseguiu pedir calma à companheira.
Quando finalmente a filha da raça azul desistiu do empenho inútil para livrar-se da
sólida pressão dos anéis de Ra, ele, devagar, como se não quisesse machucar-lhe os
punhos, fez girar os círculos celestes que rodeavam suas mãos. E as palmas se uniram
apontando em direção ao disco que continuava estático a pouco mais de um metro sobre
suas cabeças, meio velado pela bruma avermelhada.
Aquela nova posição das mãos de Glória - ofertando ou talvez esperando receber -
fez com que o companheiro se recordasse da última comunicação de Agurno: "... E tu,
filha da raça azul, prepara-te para receber teu verdadeiro nome".
"Que pretendia Ral Então Glória tinha outro nome?"
Desta vez Sinuhe acertara. De repente, sobre as palmas trêmulas de Glória fez-se
uma luz vivíssima, tão intensa que os dois tiveram de fechar os olhos.
O membro da Loja secreta foi o primeiro a abri-los outra vez. E o que viu encheu-o
de assombro. Aquela espécie de nuvenzinha radiante desaparecera e, em seu lugar, a
poucos centímetros acima das palmas, os círculos azuis projetados por Ra traziam
suspensa uma coroa magnífica... Ou não era uma coroa?
Maravilhado, concentrou a atenção "naquilo", descobrindo que efetivamente se
tratava de qualquer coisa parecida com uma coroa, mas composta de letras... Caracteres
grandes, de uns cinco centímetros de altura cada um, construídos ou fabricados em metal
dourado e sem mácula.
Timidamente, a filha da raça azul foi descolando as pálpebras e, embora
semicerrados, seus olhos não tardaram a distinguir o puríssimo ouro das letras que o
amigo de Sinuhe segurava.
Ela também, perplexa e já livre dos anéis, baixou os braços. Desobedecendo porém
ao primeiro impulso - o de fugir - deixou-se ficar diante da coroa, cativa do enigma
daquelas letras. Ao lê-las, algo no mais íntimo do seu ser cambaleou.
- Sim, não há dúvida - declarou Sinuhe, dirigindo-se à amiga -. Este tem de ser o
nome de que falou Agurno. Seu verdadeiro nome.
Glória desviou o olhar para Ra e em seguida procurou alguma resposta na
expressão de Sinuhe.
- Meu verdadeiro nome? - exclamou incrédula - Você quer dizer que este é meu
nome... "cósmico"?
O companheiro concordou com a cabeça. Desde há muito tempo eles tinham
conhecimento de que seus nomes e os usados pelos seres humanos durante o estágio
carnal no mundo não são os autênticos. O verdadeiro - designado por todas as escolas
esotéricas como "nome cósmico" - é geralmente ignorado por homens e mulheres. E
sabiam também Glória e Sinuhe que os poucos que chegam a recebê-lo em vida são entes
altamente responsáveis e com profundo nível de evolução espiritual. Entre outras razões,
porque esses "nomes cósmicos" poderiam também ser usados como "armas"...
Mas sem querer estou relatando fatos que ainda vão chegar.
"... NIETIHW..."
Sinuhe, ao pôr-se diante da filha da raça azul, foi o primeiro a ler aquelas
misteriosas letras que compunham a coroa.
- Nietihw?... E que significa?
O investigador levantou os olhos para Ra à espera de alguma explicação. Mas o
disco continuou ignorando o impaciente amigo.
Glória vendo as letras pela parte de trás teve mais dificuldade para lê-las. Ao ouvir
no cérebro a voz de Sinuhe a pronunciar aquele estranho nome, esqueceu por uns
momentos a difícil leitura daqueles caracteres metálicos e perguntou:
- Como disse?
- Nietihw - repetiu o amigo, sublinhando com um trejeito de indiscutível
incompreensão.
Então o rosto da filha da raça azul iluminou-se com um sorriso.
- Nie-tihw!...
Foi com orgulho e veneração que Glória pronunciou aquele nome.
E só nesse momento, quando seu espírito parecia experimentar uma evidente paz,
Ra decidiu-se a dar o passo seguinte.
Imóvel dentro da névoa, o disco foi erguendo então a coroa até colocá-la acima de
Glória. Ela, documente, deixou que Ra atuasse. E os magníficos anéis celestes que
seguravam o diadema projetaram-se, com grande solenidade, em direção à filha da raça
azul. Com precisão matemática, a coroa de letras foi-lhe colocada sobre a cabeça. Por
alguns segundos, os feixes que partiam dos "olhos" do disco mantiveram-se vibrantes,
circundando o perímetro craniano. Instintivamente, Glória cerrou os olhos e seu
semblante sereno e iluminado adquiriu singular beleza.
O nome "NIETIHW" cingia-lhe agora toda a fronte e parte dos longos e sedosos
cabelos dourados. Inexplicavelmente - ao menos para Sinuhe - aquelas letras não
pareciam soldadas ou unidas umas com as outras por o que quer que fosse, metal ou
estrutura. Entretanto, era evidente que alguma força invisível as mantinha em perfeita
coesão. Essa mágica e poderosa ligação estendia-se por toda a coroa a julgar pela pequena
depressão dos cabelos na parte de trás; assim como se fossem pressionados por uma
auréola visível e material.
Sinuhe, testemunha singular daquela insólita "coroação", não pôde reprimir um
cálido sentimento de alegria e satisfação. Sem dúvida era um momento importante. E a
emoção do "soror" teria sido completo se naquele momento se tivesse dado conta de que
o nome "cósmico" que adornava já a fronte da amiga guardava íntima relação com outro
tema que já o vinha obcecando desde há anos: a Cabala. Mas o transcorrer natural dos
acontecimentos que iria vivenciar terminaria por desvendar-lhe esse novo "segredo"...
Aquela série de fantásticos encontros e profundas emoções na clareira do bosque
chegava ao fim.
Quando o nome "cósmico" ficou firmemente seguro na cabeça da mulher - a quem
daqui por diante chamarei Nietihw -, Ra fez que retrocedessem os anéis até que, um
depois do outro, fossem enrolando-se e desaparecendo no interior de cada um dos "olhos"
do disco.
Sinuhe, atônito, assistiu ao penúltimo capítulo do que evidentemente não era outra
coisa senão a prévia para a grande "missão" de busca dos arquivos secretos de
IURANCHA.
Quando se extinguiram as colunas de aros celestes uma das letras do diadema - o
"H" - perdeu subitamente o brilho dourado, tornando-se transparente. Ato contínuo, a
solitária letra esfumou-se. Sinuhe, no primeiro momento, teve a impressão de que a letra
resvalara para a areia da clareira. Mas nem deu para baixar o olhar e buscá-la. Antes que o
fizesse, o corpo de Nietihw estremeceu e de sua pele emanaram milhões de raios brancos
finíssimos, mas sem qualquer brilho ou resplendor. Tinham a cor da neve e, em vez de se
propagarem em todas as direções, mantiveram-se vibrando a menos de meio metro do
túnica azul e do resto do corpo. Nietihw deu pelo estranho fenômeno. Arregalou os olhos
e lançando um grito agudo desmaiou.
Como relâmpagos negros, das profundidades da bruma escarlate irromperam na
clareira dois seres como aqueles que Sinuhe vira ali mesmo no bosque e depois através da
vidraça da torre.
Antes que o corpo exangue da mulher caísse estendido sobre a borbulhante areia,
eles a pegaram pelos braços, decolando em seguida para o alto, deixando atrás de si
remoinhos de poeira luminosa.
Foi tudo tão vertiginoso, que o perplexo repórter mal teve tempo de ver como
desaparecia a amiga acima de sua cabeça, firmemente segura e amparada, de cada lado,
por aquelas pequenas figuras de corpos transparentes e enormes crânios.
Na realidade, sequer conseguiu mover um só músculo ou proferir alguma palavra.
Assim que perdeu de vista Nietihw, o disco o envolveu em um dos seus feixes luminosos
e azuis; e, apesar de sua resistência, uma força irresistível lhe foi cerrando os olhos e
mergulhando-o em um sono profundo e obscuro...
5. DALAMACHIA
Quando despertou, os olhos de Sinuhe ficaram presos àquele sol. Jamais vira nada
igual. Contemplá-lo era singularmente agradável. Em lugar de ofender a vista, o
majestoso disco negro - praticamente no zênite - permitia ampla observação. Seus raios
também negros derramavam-se por todo o firmamento. Entretanto, a considerável
distância do solo, a obscura "luminosidade" vinda do estranho sol parecia desaparecer ou
deter-se ou transformar-se. Não teria podido precisar a que altura se dava o fenômeno,
mas o fato é que a partir daquele ponto a negra radiação solar alterava-se ou se extinguia,
dando lugar - ou sendo por ela substituída - a uma claridade amarelada. Suas próprias
roupas, as mãos, tudo se tingia daquela cor de limão. Foi nesse instante, ao contemplar
seu corpo, que descobriu que se achava estendido sobre uma areia igualmente amarela.
Apalpando-a, identificou o lugar como um deserto ou talvez uma praia. Quando se
dispunha a levantar-se uma mão acariciou-lhe os cabelos, ao mesmo tempo em que uma
voz muito familiar se propagava clara e docemente no interior de sua cabeça.
- Já volta a si!
Ao sentar-se na areia descobriu às suas costas Nietihw. Ela estava de joelhos,
sorridente e com o diadema de letras a cingir-lhe fronte e cabelos. Mas alguma coisa
estava diferente em sua companheira... Sob a túnica - que transmudara seu azul pelo
amarelo que parecia tudo inundar -, Sinuhe observou, perplexo, um corpo "vazio" e
transparente. No lugar das vísceras e órgãos normais em todo ser humano, a mulher exibia
uma complexa rede de vasos delgados,. igualmente transparentes, pelos quais circulavam
milhares de minúsculas borbulhas de todas as cores. Estes "tubos", como se fossem veias,
artérias e capilares partiam do centro do tórax, repartindo-se e ramificando-se pela
totalidade do organismo de Nietihw.
Sinuhe fechou os olhos.
- Deus meu! Será que estou sonhando?
Aquele pensamento teve uma resposta fulminante. A voz da amiga tornou a soarlhe
no fundo do cérebro.
- Não, Sinuhe... Não se trata de um sonho.
Era a primeira vez que a companheira o chamava por seu nome secreto. Ele então
abriu os olhos, desconcertado.
Nietihw, sem apagar seu sorriso reconfortante, mostrou-lhe seu corpo transparente
como cristal e aparentemente "vazio", acrescentando:
- Não se alarme. A missão que nos foi conferida exige que meu corpo físico
anterior, denso, sofra uma alteração temporal... Isto qué você vê - apontou Nietihw para o
interior e o centro do seu peito - não é outra coisa senão um circuito vital por onde
circulam antídotos complementares das correntes de Vida do sistema a que pertencemos...
Aproximou o rosto do lugar apontado por Nietihw e descobriu que, onde
logicamente deveria estar o coração, estavam os três círculos concêntricos - emblema de
Micael - e que era deles, precisamente, que provinham os vasos mais grossos daquele
fascinante "circuito vital".
- ... Não é a mesma coisa - prosseguiu a mulher sem mover os lábios -, mas guarda
certa semelhança com os corpos "moronciais" ou dos ressuscitados de que você,
precisamente, já me havia falado. A substância "moroncial" é muito mais sutil que esta,
embora a estrutura do corpo deles seja idêntica à que você está vendo: os aparelhos
circulatório, digestivo e respiratório (como você pode observar) não existem nos corpos
"moronciais". Não são necessários depois da morte física. Em seu lugar, os anjos
ressuscitadores proporcionam aos humanos evolucionários estes "corpos" temporários,
"alimentados" de uma vida que pode ser eterna, graças a estes circuitos vitais.
Maravilhado, Sinuhe acompanhou o contínuo e lento circular dos milhares de
diminutas borbulhas coloridas, que sem cessar eram empurradas desde os três círculos
concêntricos, repartindo-se através de centenas - talvez milhares - daqueles vasos
milimétricos e de transparência sem igual.
De repente, porém, o repórter afastou-se assustado. Examinou as próprias roupas e
o corpo, e ao constatar que seu organismo
conservava a estrutura original não teve como evitar um pensamento que o encheu
de espanto:
- Então você está morta?...
Nietihw escutou a dúvida do amigo com o mais amplo e compreensivo dos
sorrisos.
- Não, Sinuhe... Simplesmente, e só enquanto durar a nossa missão, o poder de Ra
me fortaleceu o espírito e mudou minha essência corporal.
- Por quê? - perguntou o nosso homem, incapaz de entender o que estava
acontecendo. Antes que Nietihw chegasse a responder veio com uma segunda pergunta -:
E por que meu corpo não sofreu transformação alguma?
As compreensíveis perguntas de Sinuhe ficariam no ar, porque, subitamente, a luz
amarela que o inundava todo, desapareceu...
Foi brusca a mudança. A atmosfera tênue e verde-amarelada que os envolvia foi
invadida por outra coloração verde, tão sutil quanto a anterior. E os corpos, vestimentas e
a areia daquela paragem impregnaram-se de tons esmeralda.
Sinuhe ergueu os olhos para o sol negro, constatando como continuavam tingidas
de trevas as profundidades daquele firma-mento desconhecido. Por debaixo, entretanto, a
radiação - agora esverdeada - mantinha sua incrível forma de guarda-chuva luminescente.
Foi nesse momento, ao erguer-se, que divisou o mar.
Consternado, girou sobre os calcanhares esquadrinhando o horizonte que se
levantava enfrentando aquele oceano igualmente verde e adormecido. Ao longe, através
da transparência esmeralda do espaço, apontavam alguns montes e montanhas cobertos de
bosques; tudo isso submerso sob a mesma coloração. Sinuhe concentrou a atenção na
praia perscrutando os seus limites. Um deles perdia-se na distância. Em compensação o
outro, perto de onde se encontravam, aparecia recortado pela abrupta invasão do rochedo
no mar.-
Onde estamos?
Nietihw permaneceu em silêncio. Embora de forma confusa e incompleta,
lembravam-se da experiência na clareira do bosque. Mas, como teriam chegado até ali?
Que extraordinário mundo era aquele? E o investigador repetiu a pergunta que formulara
momentos antes da inexplicável mudança da luz:
- Por que meu corpo não sofreu variação alguma? Nietihw tomou entre as suas as
mãos de Sinuhe e replicou:
- Não posso explicar-lhe por quê, mas o poder das trevas só me busca a mim...
Você, além do mais, tem Ra.
- Ra? Onde está...?
Virou a cabeça, procurando a quase esquecida silhueta do amigo circular. Mas o
disco não deu sinal de vida.
Com um movimento reflexo, lançou o olhar para o dedo anular direito. Tampouco
ali estava o seu "enlace"...
Inquieto e confuso, consultou o relógio.
- Oh Deus!
Os dígitos estavam imóveis marcando as 13 horas e 51 minutos: justamente o
começo da lua nova e da aparição da misteriosa bruma no bosque da aldeia. Pressionou
nervosamente os comandos do relógio; o mecanismo, porém, não obedeceu.
- Parou! - exclamou, resignado.
Sorrindo, Nietihw pegou-lhe a mão e o convidou a passear até a orla do mar.
O membro da Ordem da Sabedoria, com irreprimível inquietude, virou a cabeça
para trás várias vezes na esperança de localizar Ra. E foi numa dessas infrutíferas
tentativas que se apercebeu de outro detalhe que o imobilizou. Nietihw, estranhando,
interrogou-o com o olhar. Sinuhe, sem articular palavra, talvez fosse melhor dizer
"pensamento", mostrou suas pegadas.
Assim que se refez da surpresa conseguiu dizer:
- Veja!... Ficam apenas as minhas pegadas. Mas e as suas? Efetivamente, embora
os pés de Nietihw se afundassem na areia, não deixavam marcas como os de Sinuhe.
- Tranqüilize-se - murmurou ela -, já lhe disse que meu corpo se transformou. E
você ainda poderá contemplar outras maravilhas... pela graça e poder dos servidores de
Micael.
Nietihw deu dois passos para trás. Fechou os olhos e, cruzando as mãos sobre os
três círculos concêntricos de seu peito, exclamou:
- "Waw", emblema da água, mostre-nos o caminho! Imediatamente, ante os olhos
atônitos do investigador, uma das letras que compunham o diadema de Nietihw - o "W" -
intensificou seu brilho esmeralda, formando-se à sua volta uma palpitante auréola.
Vagarosamente, a última letra de "NIETIHW" foi afastando-se da fronte da filha da raça
azul.
Temeroso, Sinuhe inclinou-se para trás. Evidentemente, a antiga amiga não era a
mesma que conhecera na Casa Azul. Ao seu fantástico corpo de "vidro", ter-se-ia que
acrescentar um conhecimento que, no primeiro momento, punha-o fora de si.
- Não tenha medo! "Waw" é parte de mim mesma.
Os olhos dela, sem sombra de desconfiança, acompanhavam as evoluções da letra,
que se elevava silenciosa e majestosamente.
O "W", envolto naquela espécie de bruma verde resplandecente, deteve-se a uns
dez ou quinze metros acima da ourela do mar. De repente, inverteu sua posição,
convertendo-se assim em um "M". E suas pernas exteriores, sempre vestidas de halos
luminosos, prolongaram-se até mergulhar nas ondas mansas e silenciosas. Sinuhe
despertou então para outro fato: as ondas que se iam quebrando incessantemente na areia
não faziam ruído algum. Mas absorto na contemplação do "M", agora gigantesco,
esqueceu depressa a insólita circunstância daquele oceano emudecido.
Subitamente a água - tersa e quieta até então - começou a borbotar às longas e
luminescentes pernas da letra mágica.
O mar, ao influxo daquele "M" ou "W" invertido, continuou borbulhando, como se
um gigantesco forno escondido fizesse ferver suas águas. O borboteio se foi fazendo mais
e mais intenso e, de repente, dentre as verdes ampolas gasosas se destacou um vulto.
O "soror", ao intuir a natureza daquele ser, fez um movimento para interpor-se
entre a letra e a companheira, pensando em protegê-la. Nietihw, porém, rogou-lhe que não
se movesse. E, em silêncio, caminhou até ficar embaixo do "M".
Aquele vulto, informe em um primeiro momento, continuou emergindo do seio das
águas agitadas. Sinuhe não se enganava. Diante dele aparecia uma descomunal cabeça de
serpente, coberta de grandes placas que jorravam abundantemente. E, em seguida à
monstruosa cabeça, vinha um corpo também escamoso e grosso como um tronco de
carvalho.
O animal, empurrado por uma força invisível, continuou sua ascensão vertical, até
chegar à altura da letra. Nesse instante, a pouca distância do verde e tenso ofídio,
apareceu de entre as ondas o que, presumivelmente, devia ser a cauda do animal. Esta
subiu também, indo em direção à cabeça. Pouco depois o corpo todo da serpente flutuava
a pequena altura das águas, adquirindo uma figura quase circular. E o mar se aquietou.
Extinguiu-se o movimento; só o jorrar do monstro imenso alterou ligeiramente a
superfície do oceano.
A serpente, levitando como uma bolha de sabão, abriu as terríveis fauces,
preparando-se para devorar a própria cauda. Nietihw, entretanto, atenta sob as pernas do
"M", lançou um grito:
- Samej.
Sinuhe, aterrorizado, viu que a cabeça do réptil girava em direção à sua amiga. E
seus olhos vidrados, enormes como luas, tingiram-se de sangue.
- Samej. - clamou de novo a filha da raça azul, levantando ao mesmo tempo o
braço direito, para mostrar a coroa que lhe toucava a fronte -, que teu segredo beije
minhas mãos!... Indica-nos o caminho!
E Samej, a serpente, como se tivesse reconhecido Nietihw, fechou as ameaçadoras
fauces. E se foi esfumando o escarlate dos olhos. Então, a filha da raça azul estendeu os
braços na direção do animal, aguardando a entrega do segredo solicitado.
Os olhos do réptil despediram rápidos e intermitentes lampejos brancos e abriramse
novamente suas mandíbulas. Com movimentos ondulantes foi avançando para a
mulher. Sem tocar a água um só momento, seu corpo parecia lutar por um terreno
invisível. Chegando diante de Nietihw, deteve-se. Durante alguns instantes, intermináveis
para Sinuhe, os fulgurantes olhos do ofídio pareceram espetados no miúdo e frágil corpo
da amiga. Ele, impotente, temeu o pior. Samej arqueou então o lombo reluzente e, muito
devagar, baixou a cabeça até quase tocar as delicadas e transparentes palmas das mãos.
Naqueles momentos tão críticos Sinuhe sentiu falta - e quanta! - da poderosa presença de
Ra.
Aquelas fauces, capazes de abarcar um cavalo, armadas de uma tríplice fileira de
dentes, longos e encurvados como foices, exalavam um jorro ininterrupto de fumaça, de
um verde mais opaco do que aquele que lhe tingia o corpo.
As volutas daquela espécie de gás logo esconderam as mãos de Nietihw. Ela,
porém, imperturbável, não se moveu. Instantes depois, Samej retirou a cabeça, ergueu-se
e cerrou a boca descomunal. As palmas da mulher continuavam envoltas no impenetrável
"alento" que, pouco a pouco, se ia dissipando.
O monstro surgido das águas voltou ao lugar em que aparecera, adotando de novo
a figura de grande círculo ou roda. E, quando a ponta da cauda já tocava a cabeça, Samej
escancarou as mandíbulas, e passou a devorar a si mesma.
Em questão de segundos, os trinta metros, ou mais, que o corpo do réptil atingia,
foram engolidos, Nesse momento, quando a cabeça do ofídio tragava já seu próprio
pescoço, um segundo jorro de fumaça escapou de suas fauces. E Samej - ou o que dela
restava - precipitou-se no mar, desaparecendo entre as águas. No ar ficara uma
nuvenzinha verdolenga que, tocada por uma brisa inexistente, dirigiu-se para Sinuhe...
No momento, o perplexo investigador não se deu conta do lento mas contínuo
deslocamento da nuvenzinha esverdeada. Uma vez desaparecida a misteriosa criatura, sua
atenção se voltara para Nietihw. Mais concretamente, para as mãos dela. A fumaça
exalada por Samej se fora dissipando e sobre as palmas já se podia adivinhar "algo" negro
e reluzente...
Quando o verdoso "alento" da serpente desapareceu, a mulher protegeu o
misterioso objeto, encerrando-o entre as mãos. Ato contínuo, abandonou sua posição sob
as espigadas pernas do "M" e regressou para o lado do companheiro. Antes que ele
pudesse interrogá-la sobre quanto havia visto, a letra recuperou seu tamanho primitivo.
Girou sobre si mesma e, sem pressa, dirigiu-se para o diadema da mulher. Fácil e
suavemente, o "W" ocupou sua posição, completando assim o nome cósmico.
Nietihw postou-se então em frente ao repórter e, estendendo as mãos fechadas,
pediu-lhe que examinasse o "segredo de Samej". Sinuhe obedeceu. Dispondo as suas em
forma de concha, colocou-as debaixo das da amiga e esperou.
Quando Nietihw deixou cair o misterioso objeto entregue pela serpente, Sinuhe
sentiu sobre a pele de suas palmas uma superfície fria e com arestas. A amiga,
compreendendo a curiosidade que o consumia, sorriu divertida. Retirou então suas mãos,
deixando a descoberto uma pequena esfera negra e polida como a obsidiana, mas
extremamente leve. Examinando-a ele comprovou que, na realidade, tratava-se de uma
esfera e um cubo, perfeitamente embutidos um no outro.
- Que é? - perguntou Sinuhe.
- Dentro está o segredo de Samej, essa que se nutre de sua própria substância. Só
ela e os rebeldes conhecem o caminho que dá aos arquivos de IURANCHA.
Sinuhe foi tateando aquele volume, em busca de algum botão ou ranhura que lhe
permitisse abri-lo. Inicialmente, presa de um temor quase reverente, limitou-se a acariciálo.
Mas, por mais que o revirasse, não conseguiu acertar com o mecanismo que o
acionasse.
Levou nisso algum tempo, mas afinal teve de render-se. Interrogou então Nietihw
que, como resposta, fez-lhe uma pergunta:
- Diga-me, que pode significar "Samej"!
Como membro da Ordem da Sabedoria, fora instruído sobre a Cabala e,
subitamente, ocorrendo-lhe o nome da serpente, começou a compreender.
- "Samej", em hebraico, significa "beijar"...
Nietihw, satisfeita, aceitou o esclarecimento e, com leve movimento dos lábios
translúcidos, incitou-o a beijar a estranha esfera.
Com alguma hesitação Sinuhe acedeu. Segurou-a entre as pontas dos dedos e
aproximou-a à boca.
Nesse entretempo, a nuvenzinha esverdeada acabara por flutuar sobre o casal.
Os lábios tocaram, finalmente, a negra superfície do objeto...
Depois de depositar o tímido beijo na "esfera-quadrangular" vomitada por Samej,
Sinuhe, temeroso, afastou-a rapidamente. Nos instantes imediatos nada aconteceu.
Confuso, cruzou olhares com Nietihw. Antes porém que qualquer um dos dois chegasse a
expressar-se, os vértices do cubo ou quadrilátero que estava imerso na esfera começaram
a dilatar-se. Sinuhe, assustado, soltou aquela coisa que, em lugar de cair no. chão, ficou
flutuando e sujeito a bruscas e intermitentes contrações. As arestas do cubo curvaram-se
e, ante o assombro do investigador, o objeto continuou deformando-se, assim como se
estivesse sendo modelado por algum escultor invisível.
Logo apareceram dois orifícios profundos e, abaixo deles - lembrando um nariz -,
um terceiro buraco. A "esfera", quase irreconhecível, foi rachando-se na região inferior,
surgindo ali uma espécie de boca.
No mesmo instante, Nietihw > que flutuava à altura de suas cabeças: era uma
caveira negra.
Mas que significava?
Assim que terminou o processo de transformação a lustrosa e macabra cabeça
abriu a pontiaguda mandíbula inferior, e a nuvenzinha precipitou-se como um dardo
contra a dentadura da caveira. Em um abrir e fechar de olhos o fumo esmeralda foi
absorvido pelo crânio flutuante, desaparecendo no interior dele.
A caveira então fechou a boca e, com suave cabecear, se foi achegando ao
perplexo Sinuhe que retroceu ao mesmo tempo em que pedia socorro à amiga impassível.
- Deus meul... Nietihw!
Mas a descarnada cabeça continuou seu balanceio no ar enquanto se aproximava
com seu permanente sorriso gelado.
- Calma, Sinuhe! - pediu finalmente a filha da raça azul -. Não tenha medo!...
Estenda as mãos!
A voz de Nietihw não lhe apaziguou o crescente pavor; mas serviu, pelo menos,
para fazê-lo deter-se. E ele, trêmulo, ofereceu as mãos...
A caveira então se imobilizou a poucos centímetros do rosto de Sinuhe. E seus
tenebrosos e esvaziados buracos irradiaram uma luz branca, igual àquela que ele vira nos
olhos da serpente. E "algo", de repente, surgiu no fundo daqueles olhos fantasmagóricos.
- Sinuhe, diga: que é que você está vendo? A voz da companheira soou nítida.
- Diga-me: que está vendo? - repetiu ela em tom imperativo.
Pálido, meio hipnotizado pelos focos luminosos que jorravam das cavidades,
Sinuhe forçou a vista, tentando obedecer à amiga.
- Há... alguma coisa - gaguejou.
- O quê, Sinuhe? - insistiu ela, impaciente.
- Sim... vejo uma figura. Não! são duas... Parecem iguais... Uma em cada olho...
Mas...
Nietihw animou-o a continuar.
- Não é possível! - murmurou nosso homem -. Essa figura é...
Antes que pudesse descrevê-la, apagaram-se os olhos da caveira.
Sem perder o monótono cabeceio, a cabeça retrocedeu. E, postando-se acima das
suarentas palmas do investigador, abriu de novo as mandíbulas.
Sinuhe, olhar esgazeado, parecia alheio a tudo que o rodeava. Súbito e poderoso
estalido o devolveria à realidade. Inesperadamente, a caveira fechara a mandíbula
inferior, provocando violento choque entre suas brilhantes e negras peças dentárias. Em
conseqüência do golpe, um punhado de dentes saltou pelos ares. E, pausadamente,
girando sobre si mesmos, foram caindo nas mãos abertas do "soror" que, sobressaltado
com o entrechocar da dentadura, esteve a ponto de esquecer a ordem de Nietihw e
recolher as mãos. Entretanto, as peças foram caindo, uma após outra, sobre as palmas.
Mal lhe tocavam a pele e Sinuhe, maravilhado, descobria que cada um dos escurecidos
dentes convertia-se em um número. Primeiro apareceu um "3". O seguinte se transformou
em "1". A este seguiu-se um "4"... Depois outro "1", um "5", um "9", um "2", um "6", até
que, finalmente, a última peça dentária desceu sobre as mãos, metamorfoseando-se em
outro "9", diminuto, tão azeviche e reluzente como seus irmãos...
Nietihw e o companheiro, extasiados, sequer se atreveram a reagir. Que era e que
significava aquele caótico punhado de números?
A filha da raça azul, mais audaciosa que Sinuhe, dirigiu-se até o amigo, disposta a
examinar aquele monte de números que repousavam nas mãos dele. Porém, quando estava
para tocá-los, as cavidades, nariz e boca, da caveira começaram a emanar, cada uma
delas, fios daquele fumo verdolengo que pouco antes eles tinham visto ser absorvido pela
caveira. E Nietihw parou.
As finas colunas de fumo foram envolvendo a caveira até que terminaram por
ocultá-la em uma esfera opaca, parecida com a nuvem que as fauces de Samej arrojara.
Os expedicionários, com os olhos fixos naquele "globo" esmeralda, assistiram então a
outra rápida e mágica transformação: a diáfana "esfera" sofreu súbita contração. Oscilou
no ar e, como se se tratasse de uma bola de cristal, rompeu-se em pedaços. Milhares de
fragmentos verdes precipitaram-se "em câmara lenta" na areia.
Ao quebrar-se, no lugar que a nuvenzinha esférica ocupara, surgiu uma silhueta
negra, redonda e familiar...
- Ra! - exclamou Sinuhe.
Iluminou-se-lhe o rosto ante a inesperada aparição do velho amigo. E o disco, de
acordo com seu costume, respondeu-lhe iluminando as letras que o identificavam.
Nietihw tinha pressa de desvendar aquele novo mistério. Assim, esquecendo-se do
disco - que se mantinha imóvel acima deles -, dedicou toda a sua atenção aos números
que descansavam nas palmas de Sinuhe.
Pegou um, separando-o do resto; atraídos então por misterioso magnetismo os
demais o seguiram. O investigador contemplou a companheira que, em silêncio, limitouse
a examinar a cadeia de números. Contou-os e quando se sentiu segura mostrou a
seqüência ao desnorteado amigo.
- Não há dúvida - exclamou com ar de triunfo -, essa chave nos levará aos arquivos
secretos.
Sinuhe leu a "cadeia" de números que Nietihw sustinha com as duas mãos,
fascinado com a força que os mantinha coesos e que lhe lembrou a não menos misteriosa
aderência das letras da coroa. Mas não logrou decifrá-la. Com os olhos, pediu ajuda à
companheira. Ela, entretanto, não parecia disposta a simplificar o dilema.
- Observe com atenção, Sinuhe.
Ele concentrou o olhar nos quinze "elos" flutuantes, repetindo a seqüência por três
vezes:
- 3... 1... 4... 1... 5... 9... 2... 6... 5... 3... 5... 8... 9... 7... 9.
- Não lhe diz nada? - insistiu Nietihw.
- 31415...
O membro da Loja secreta se deteve. Repassou aqueles primeiros cinco dígitos e,
após consultar o resto da seqüência, sorriu.
- Claro... - retomou ele, enquanto ia acentuando o sorriso de satisfação - agora
entendo o porquê daquela figura nos olhos da caveira...
Nietihw aguardou a explicação, que já conhecia em parte.
- 3,1416! Estes números correspondem aos quinze primeiros elementos do famoso
número "pi": o número por excelência; o número transcendente.
A mulher assentiu.
- Então - continuou Sinuhe -, a figura que vi nas cavidades... Demônios, agora
percebo: é a mesma que aparece gravada no anel!...
- Que anel?
O investigador, apontando para Ra, explicou à amiga como o disco se
metamorfoseava, por vezes, em um belo e dourado selo quadrangular com um alto-relevo
em que se podia distinguir um ser de cabeça quadrada e olhos enormes e redondos, corpo
flamígero e segurando-se, com ambas as mãos, aos batentes de uma porta, como
inicialmente ele interpretara.
- Agora entendo. Agora sei que esses batentes e o lintel superior não compõem
uma porta, mas a letra grega "pi".
Nietihw parecia duvidar. Sinuhe tentaria convencê-la.
- Você já vai ver...
Levantou o braço direito em direção ao disco e pediu-lhe que se colocasse em seu
dedo anular. Ra iluminou-se de intenso vermelho e, depois de lançar um de seus fluxos de
anéis celestes sobre a mão do amigo, desmaterializou-se, reaparecendo no dedo em forma
de anel. Satisfeito, estendeu a mão até junto da vista de Nietihw, convidando-a a examinar
o selo e a figura nele gravada. A filha da raça azul passou-lhe a "cadeia" de números,
analisando o delicado alto-relevo, agora tinto, também, pela radiação esmeralda que
iluminava o lugar.
- Entretanto - refletiu Sinuhe -, não consigo entender. Temos uma seqüência de
números, aparentemente relacionada com a letra "pi" que eu mesmo vi sobre essa criatura
de cabeça quadrada e que aparece igualmente no anel. Mas aonde nos conduz tudo isso?
Que é que temos de buscar? Por que Samej nos terá entregue um segredo que só agrava as
trevas da nossa missão?
Nietihw não respondeu às questões ventiladas com razão pelo companheiro de
aventuras. Em parte porque ela mesma não conhecia as respostas e menos ainda os
agitados sucessos que estavam por vir. Era o bastante saber que a busca dos arquivos
secretos de IURANCHA dependia em razoável medida do número "pi" e da criatura
desconhecida que aparecia sob a letra grega. No fundo, toda aquela incerteza tornava
ainda mais fascinante a missão E enquanto recuperava a "cadeia" de números, colocandoa
-à guisa de colar - à volta do pescoço do amigo, procurou animá-lo:
- Sinuhe, não desanime. Agurno ordenou-nos que procurássemos Solônia, o
serafim que guardou o Éden... Talvez a chave entregue pela serpente nos conduza até ele
e sua espada.
- Sim, é possível... - concordou ele com certo desalento.
E acariciando as "contas" negras do seu colar, apressou-se em seguir Nietihw, que
encetara a caminhada pela orla daquele oceano mundo, em direção aos alcantis que se
esfumavam nos longes.
Com apenas uma centena de metros andados, Sinuhe se deu conta de um fato que,
no fundo, não o surpreendeu demais: suas câmaras não haviam "saltado" com ele para
aquele mundo irreal. Muito embora Ra continuasse ali, no dedo, a ausência dos aparelhos
fotográficos causou-lhe certo mal-estar. Na realidade, qual era a sua incumbência em tudo
aquilo? Por que fora escolhido para acompanhar a filha da raça azul?
Ensimesmado nestes e em outros pensamentos semelhantes, continuou marchando
pesadamente na areia esverdeada da praia solitária, sem perder um só instante de vista a
graciosa e ligeira figura de Nietihw que, melhor que caminhar, parecia deslizar.
O rochedo já se achava bem próximo quando, subitamente, ela se deteve. Sinuhe
imitou-a, buscando com o olhar o ponto que lhe teria chamado a atenção. Mas por mais
que esquadrinhasse as rochas verde-esmeralda que se derramavam sobre a areia, mar
adentro, nada percebeu de anormal. Era um imenso deserto.
- Que foi?
Nietihw, olhos pregados no alcantil, fez-lhe sinal para que não se movesse. Com a
mão direita, pegou no diadema a letra "E", levando-a primeiro para os círculos
concêntricos do seu peito e lançando-a em seguida para o céu.
Sinuhe, boquiaberto, viu como o "E" ganhava altura e, a grande velocidade,
perdia-se dentro da tênue atmosfera verde, em direção à massa rochosa que delimitava o
outro lado da praia. Naquele momento, a letra não aumentou ou modificou sua dimensão
e Sinuhe acabou por perdê-la de vista.
Pouco depois o "E" surgia novamente em meio à bruma, reintegrando-se
diretamente à coroa de Nietihw.
- Que está acontecendo? - insistiu Sinuhe.
- "Eim", a letra que simboliza meu próprio ouvido detectou a presença de uma
criatura estranha...
- Onde? - interrompeu-a, alarmado -. Não vejo ninguém...
- Do outro lado do rochedo. Venha. Siga-me...
Sem titubear nem um pouco, Nietihw pôs-se a correr na direção que o "E" acabara
de sobrevoar.
- Mas...
Foi estéril o propósito de Sinuhe de reter a impetuosa amiga. A contragosto,
coração aos pulos, pressentindo perigo iminente, saiu atrás dela.
Ao transpor as primeiras rochas, Nietihw e o agitado amigo tiveram, seu avanço
cortado por uma segunda muralha rochosa de uns cinco metros de altura. Sinuhe,
ofegante, examinou aquela parede, compreendendo com certo alívio que seria impossível
escalá-la e ganhar o outro lado do escarpado.
Com um gesto de impotência, fez ver à amiga que só restava retroceder. Nietihw
hesitou. Pegou o diadema e, escolhendo a letra " "H", colocou-a também sobre o peito.
Mas, indecisa, devolveu-a ao lugar, sobre a testa.
- Que é que há com você? - perguntou, intrigado com o súbito arrependimento de
Nietihw -. Para que serve essa letra? Por que você não a utilizou?
- "Hai", o "H", é o símbolo do ar... e nos teria permitido voar para o outro lado.
Porém alguma coisa me diz que sua ajuda não é aconselhável.
O repórter olhou-a, perturbado.
- A criatura que se encontra do outro lado desta rocha - acrescentou ela - parece
estar em perigo; é preferível agir com sigilo.
E Nietihw, contemplando as ondas que se quebravam entre as escarpas, convidouo
a que a seguisse.
- Faremos um pequeno rodeio.
Sinuhe não teve nem tempo de mostrar-lhe os riscos que correriam metendo-se
entre as águas que se quebravam silenciosas, mas fortemente nas arestas dos escolhos.
- Espere!... Talvez Ra pudesse...!
Mas, ignorando a recomendação do companheiro, continuou saltando as rochas e
delas esquivando-se, disposta, aparentemente, a enveredar pelo mar. Entretanto, quando
seus pés tocaram a água, a mulher tornou a deter-se. Esperou que Sinuhe se aproximasse
e, ato contínuo, tomando do diadema o "W", colocou-o em contato com o tríplice circuito,
e arrojou-o entre as ondas embravecidas.
- "Waw"!... - gritou - emblema da água, abra-nos caminho!
E a letra começou a planar, para cá e para lá, sobre o mar. Em alguns segundos,
aquelas areias da superfície marinha por sobre as quais "Waw" tinha voado subitamente
ficaram "congeladas". Sinuhe não podia dar crédito ao que via. As verdosas cristas das
ondas sobrevoadas pelo "W" ficavam "petrificadas", convertidas em grandes e cintilantes
massas rochosas, quase graníticas. A cada lado daquele mar solidificado, no entanto,
agitavam-se as águas...
Cumprida a missão, o "W", tal qual um dócil bumerangue, voltou até a fronte de
sua dona e senhora.
E Nietihw, tomando da mão de Sinuhe, iniciou a caminhada pela franja do oceano
cristalizado. O "corredor" adentrava um trecho no mar, para depois voltear em direção à
praia, evitando assim o rochedo.
Foi nos últimos metros, no momento em que o casal estava para saltar para a areia
da margem, que o investigador sentiu uma vibração surda debaixo dos pés. Em terra
firme, coração na mão, descobriria a causa do estremecimento da singular "ponte de
pedra" que lhes estendera "Waw": a enrugada superfície da estreita "senda" que os
conduzira até ali voltou a liquefazer-se. E, entre as vagas mais e mais frenéticas, surgiu o
dorso ondulante de Samej, a serpente.
Um calafrio percorreu Sinuhe.
- O tempo todo nós caminhamos sobre o corpo dela? - exclamou, retrocedendo ao
avistar entre as águas os olhos purpurinos da serpente - Nietihw!
Desolado, Sinuhe descobriu que a amiga não estava ao seu lado. E, retrocedendo
sempre, foi girando a cabeça em todas as direções. Mas Nietihw, com efeito,
desaparecera. De repente, o crânio gigantesco de Samej emergiu das águas, cravando seus
olhos circulares e vermelhos naquele homem que, atarantado, tratava de fugir para longe
da margem.
A serpente continuou elevando-se acima das vagas, até que sua robusta cabeça se
achou a uma altura considerável. As placas da pele, jorrando aquela água verdolenga, mil
vezes refletiram a cambaleante imagem de Sinuhe que, aterrorizado, caía uma ou outra
vez em sua atropelada fuga. Samej ia avançando, vagarosamente. Abandonou as águas e,
arrastando-se de ventre, iniciou a perseguição ao investigador.
- Nietihw!... Socorro!
E novamente Sinuhe tombou na areia. Ao voltar-se para o gigantesco réptil, o
pavor o imobilizou. A cabeça do monstro erguia-se a cinco ou seis metros acima do seu
corpo. Numa última tentativa, tratou de arrastar-se em direção a um pequeno amontoado
de rochas, mas a cauda de Samej desceu até a areia cor de esmeralda, impedindo-lhe a
passagem. Paralisado pelo medo, viu quando a serpente abria as fauces, exibindo aquele
enxame de lâminas afiadas.
- Não!... Deus meu!... Ra!
E, seguindo um derradeiro impulso, cerrou o punho direito, dirigindo-o
tremulamente para os sanguinolentos olhos do animal.
- Ra, ajude-me!
No mesmo instante brotou do anel um vento gelado e impetuoso que obrigou
Samej a retroceder. Sinuhe, ante a salvadora reação do amigo recobrou o ânimo perdido e,
levantando-se, não deixou de dirigir o punho para a serpente. Apesar de suas convulsões,
parte do corpo dela, erguido ainda sobre a areia, começou a apresentar sinais de
congelamento. As longas presas converteram-se em pedras de gelo, os olhos redondos
empanaram-se com a névoa esverdeada. Assim, de repente, Samej ficou rígida e imóvel
tal qual um poste. O jato gelado parou e Sinuhe, desorientado, continuou com o braço
estendido, sem deixar de vigiar o corpo aparentemente morto do inimigo.
E antes que o investigador pudesse reagir ou tomar qualquer decisão, aquela massa
cilíndrica espatifou-se em milhares de pequenos fragmentos de gelo, que caíram na areia.
Perplexo, desceu o braço e aproximou-se dos "restos" de Samej.
Não jaziam aos pés de Sinuhe os milhares de cristais de gelo em que vira
descompor-se o corpo do réptil. Em lugar deles, na areia, havia um longo arco e uma
aljava com uma única flecha, tudo de gelo!
Hesitou. Temia tocá-los. Mas finalmente decidiu-se e, com efeito, comprovou que
tanto o arco quanto a corda eram formados nor um gelo puríssimo e transparente.
Examinou também a aljava e a flecha, constatando que eram confeccionados com o
mesmo material. Mas a flecha, em vez de terminar em ponta, era arrematada por estranha
protuberância.
- Oh! não é possível...
Ao descobrir os perfis da insólita cabeça de flecha, nervoso e alarmado, soltou-a.
Mas a finíssima arma, longa de metro e meio, não chegou a cair na praia. Como uma
exalação, foi buscando a boca do estojo, introduzindo-se ali.
Pouco lhe faltou para que abandonasse ali mesmo arco e aljava. Recuperado porém
da primeira impressão, voltou a apanhar a flecha, examinando-a minuciosamente.
- Não é possível... - repetiu, ao certificar-se do que vira segundos antes.
A flecha, efetivamente, terminava em uma cabeça um tanto mais reduzida do que
um punho: a cabeça de Samej! Esculpidas no gelo, distinguiam-se as cerradas fauces da
serpente, como também seus olhos circulares...
Seguindo outro de seus impulsos naturais, Sinuhe jogou às costas a aljava,
pegando com a esquerda o frio e espigado arco. Mas quando se dispunha a localizar a
desaparecida Nietihw, retumbante alarido ecoou-lhe no cérebro...
?
Ao sentir aquele grito dilacerante, acreditou identificá-lo com a voz da
companheira. Aturdido com a segunda aparição de Samej, a serpente, não tivera
oportunidade de ocupar-se com a repentina desaparição de Nietihw nem com a
exploração do lugar em que se encontrava. Entre a verde transparência daquela
"atmosfera", e no extremo oposto ao ponto em que agora se encontrava, o investigador
descobriu os restos de um navio encalhado na areia. Pareceu-lhe, apesar das centenas de
passos que o distanciavam, desarvorado e meio enterrado ao pé da escarpa rochosa que
fechava a praia a partir do rochedo que eles tiveram de rodear. Mas, por muito que
forçasse a vista, não percebeu sinal algum de vida junto ao casco do barco. A muralha
rochosa que haviam contornado lhe cortava a passagem às costas e sucedia o mesmo à sua
direita, com aquele talude. À esquerda, abria-se o oceano e, por conseguinte, não lhe
restava senão um caminho: o que levava ao' lugar onde se recortava o navio.
Tomando as maiores precauções, dirigiu-se finalmente para aquela extremidade da
praia. Por mais que meditasse, não conseguia entender por que o teria abandonado a filha
da raça azul em momentos tão críticos e, ainda, a que atribuir aquele perfurante grito.
- Se ao menos eu tivesse a certeza de que Nietihw tomou este mesmo caminho...
Mas a ondulada superfície da praia esverdeada não mostrava pegada alguma.
Ao chegar perto do barco perdido, Sinuhe parou de andar. Inspecionou
cuidadosamente seus restos, verificando que, realmente, estava, diante de um vetusto
casco de madeira de uns quarenta metros de comprimento, encalhado sob o despenhadeiro
e ader-nado do lado da amurada de bombordo. Antes de dar-lhe a volta, examinou o casco
campanudo que se erguia à sua frente, semi-enterrado sob toneladas daquela areia cor de
esmeralda. Raspou as partes ressecadas da quilha e deduziu que o hipotético naufrágio se
teria dado há muitos anos. Pé ante pé, muito devagar, foi passando para a popa para
verificar o que esconderia a coberta e se, como intuía, aquele grito podia ter partido do
outro lado do navio, que ou quem o teria lançado.
Fazendo do timão um parapeito, dirigiu um primeiro olhar em direção à praia que
se estendia desde ali e que, até aquele momento, ficara escondida pelo casco.
- Oh, não!
A cena que descortinava fez com que estremecesse. A algumas centenas de metros
dali do navio, descobriu, estendido na areia, o corpo imóvel de Nietihw. Ao seu lado, com
os braços para o alto, via-se uma criatura que, no primeiro instante, achou que era um
menino. Segundos depois, ao vê-lo baixar uns braços enormes, compreendeu,
aterrorizado, que não se tratava de um "menino". Era um ser idêntico aos que vira na torre
e no bosque de Sotillo. Havia entretanto uma clara diferença em relação àqueles: esta
monstruosa criatura não tinha o corpo transparente. Tanto o volumoso crânio como o
resto do corpo eram de uma coloração anegrada.
De repente, aquela personagem tornou a alçar os braços acima da cabeça. Sinuhe
percebeu que alguma coisa lhe brilhava entre as mãos e, intuindo que a amiga poderia
estar correndo grave perigo, saltou para um lado do barco. Tomando da aljava a sua
flecha, colocou-a junto da corda de gelo do seu arco e começou a tendê-la, alvejando a
enorme cabeça do ser. Em vez de quebrar-se, a corda foi cedendo centímetro a
centímetro, ao mesmo tempo em que os braços de Sinuhe se endureciam como pedras.
Quando alcançou a máxima tensão, o investigador assistiu, boquiaberto, a outro
acontecimento mágico: as cerradas fauces lavradas na cabeça da flecha escancararam-se e
a seta, sem que o arqueiro chegasse a distender a corda, escapou violenta - como se
tivesse vida própria - na direção do monstruoso anão...
Aturdido, não reagiu. A flecha foi perfurando a atmosfera esverdeada, deixando
atrás um "fio" branco e luminoso que pouco a pouco se foi esfumando. Sinuhe poderia
jurar que apontara para o crânio, mas a seta, em lugar de atingir o ponto escolhido pelo
improvisado arqueiro, mudou sua trajetória e foi bater em cheio no peito da criatura.
O ser caiu de costas, mantendo entre as mãos aquele objeto reluzente, impossível
de identificar a distância.
Convencido de que ele estava morto ou pelo menos muito ferido, Sinuhe correu
para onde estava Nietihw. Ela continuava estendida na areia, sem dar sinal de vida. Mas,
quando lhe faltavam uns vinte passos para chegar até ela, estacou atônito: entre os
enegrecidos dedos do monstro estava a dourada e brilhante coroa de letras da amiga. Ao
desviar o olhar para Nietihw, não só teve a confirmação de que seu diadema desaparecera,
mas constatou também outro fato singular, que o deixou estarrecido: despojado do seu
nome cósmico, o corpo perdera sua total transparência, recobrando o primitivo e natural
aspecto humano.
O desconcerto do investigador, porém, foi momentâneo. De repente, alguma coisa
negra e informe começou a serpentear na areia, bem perto do volumoso crânio do ser que
jazia de costas, com a enorme flecha espetada no tórax.
Sinuhe, sem compreender de que se tratava, retrocedeu, desorientado. Mas
"aquilo" parecia interessado tão-somente na mágica coroa de Nietihw, enredada entre os
dedos da imóvel criatura.
Subitamente, brotava da areia aquela mão esgalhada e escura, avançando como um
polvo sobre os braços enormes e esticados do homenzinho que, aparentemente, arrebatara
o diadema da filha da raça azul. Sinuhe sentiu que se lhe eriçavam os cabelos. A mão,
amputada à altura da munheca, foi explorando as longas extremidades da criatura,
fazendo de tentáculos seus cinco dedos. Finalmente, ao chegar junto às letras, o índice e o
polegar conseguiram a liberação do diadema, arrastando-o até a verde superfície da praia.
Foi então, compreendendo as intenções da mão cortada, que Sinuhe fechou o punho
direito, invocando o nome de Ra. Mas, ao tentar cortar o passo à mão que fugia com o
nome cósmico, o nosso homem sentiu que alguém ou alguma coisa lhe agarrava o pé
esquerdo. Desequilibrado, caiu de bruços na areia. Ao voltar-se contra o que lhe havia
causado a queda espetacular, sentiu o coração na boca: outra mão, esquelética e negra,
também seccionada no pulso, se havia enroscado em seu tornozelo, retendo-o com força
titânica. Desesperado, viu quando a primeira mão imergiu entre as suaves dunas
esverdeadas, soterrando-se com a coroa.
Instantes depois, as pontas dos dedos de uma terceira mão foram abrindo passagem
entre os grãos de areia, bem perto do rosto exânime de Nietihw. E após esta apareceram
uma quarta e uma quinta e uma sexta mãos, todas em movimento contínuo, como que
articuladas por uma inteligência diabólica e subterrânea. Cada uma delas foi agarrar-se a
uma extremidade da túnica celeste, puxando a mulher com a evidente intenção de sepultála.
- Oh, não!...
Sinuhe, caído na areia, tentou safar-se da mão que o retinha, mas todas as suas
convulsões e pontapés foram inúteis. Horrorizado, constatou que aquelas quatro mãos
começavam a enterrar o corpo indefeso da sua amiga. . .
- Ra!
O grito de Sinuhe teve resposta imediata. Quando cerrou de novo o punho direito,
apontando o anel para o corpo de Nietihw, cujas pernas haviam já desaparecido dentro da
areia, escapou do anel uma fumaça branca que, vertiginosamente, foi adotando forma
humana. Sinuhe não precisou de muito tempo para identificá-la: era ele mesmo!

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