quinta-feira, 12 de agosto de 2010

CAPÍTULO 81
O aparelho de televisão que havia no escritório do Papa era um enorme Hitachi
escondido em um armário do lado oposto da escrivaninha. As portas do armário
tinham sido abertas e todos estavam reunidos diante da TV. Vittoria também foi
para perto do aparelho. Quando a tela se acendeu, mostrou uma jovem repórter
morena com olhos castanhos de gazela.
- Para o jornal da MSNBC - anunciou ela -, sou Kelly Horan-Jones, ao vivo da
Cidade do Vaticano.
Atrás da moça, uma imagem noturna da Basílica de São Pedro com todas as luzes
brilhando.
- Você não está ao vivo coisa nenhuma - disparou Rocher. - As luzes da basílica
estão apagadas neste momento!
Olivetti calou-o com um psiu.
A repórter continuou, com voz tensa.
- Graves acontecimentos abalaram a eleição no Vaticano esta noite. Temos a
informação de que dois membros do Colégio dos Cardeais foram brutalmente
assassinados em Roma.
Olivetti soltou uma praga em voz baixa.
Enquanto a moça falava na televisão, um guarda apareceu à porta, esbaforido.
- Comandante, a mesa telefônica central comunicou que todas as linhas estão
chamando. Solicitam nossa posição oficial sobre...
- Desliguem a mesa telefônica - disse Olivetti, sem tirar os olhos da TV.
O guarda ficou hesitante.
- Mas, comandante...
-Vá!
O guarda saiu correndo.
Vittoria notou que o camerlengo quis dizer alguma coisa, mas se conteve. Em vez
de falar, ele olhou prolongada e firmemente para Olivetti antes de se voltar outra
vez para a televisão.
A MSNBC estava agora mostrando cenas gravadas. A Guarda Suíça descendo as
escadas de Santa Maria del Popolo com o corpo do cardeal Ebner, depois o
levantando-o para colocar no Alpha Romeo. A imagem era congelada e o corpo
despido do cardeal aparecia em dose antes de ser depositado na mala do carro.
- Quem foi o desgraçado que filmou isso? - perguntou Olivetti.
A repórter da MSNBC continuava falando.
- Acredita-se que esse seja o corpo do cardeal Ebner, de Frankfurt, Alemanha. Os
homens que estão retirando seu corpo da igreja pertencem provavelmente à
Guarda Suíça do Vaticano.
A repórter dava a impressão de estar fazendo o máximo de esforço para aparentar
emoção. Em seguida, um close de seu rosto sugeria uma profunda consternação.
- Neste momento, a MSNBC gostaria de avisar aos seus espectadores que as
imagens que vamos mostrar agora são extremamente dramáticas e não são
recomendadas para todas as pessoas.
Vittoria fez pouco da falsa preocupação da emissora com a sensibilidade dos
espectadores, reconhecendo aquela observação como o supremo recurso da mídia
para chamar a atenção. Ninguém mudava de canal depois de um aviso como
aquele.
A repórter insistiu.
- Repetimos, as cenas a que vamos assistir podem perturbar alguns espectadores.
- Que cenas? - perguntou Olivetti. - Vocês já mostraram...
Surgiu na TV um casal andando no meio da multidão da Praça de São Pedro.
Vittoria logo reconheceu as duas pessoas como sendo ela própria e Robert
Langdon. Em um canto da tela, lia-se em letras pequenas um texto sobreposto:
CORTESIA DA BBC. Um sino tocava ao fundo.
- Ah, não - disse Vittoria em voz alta. - Ah... não.
O camerlengo parecia não compreender. Dirigiu-se a Olivetti.
- Você não me disse que havia confiscado essa fita?
Subitamente, na televisão, havia uma criança gritando. A câmera deslocou-se para
uma garotinha apontando para o que aparentava ser um mendigo ensangüentado.
Robert Langdon apareceu abruptamente tentando ajudar a menina.
O cinegrafista estabilizou a câmera no mesmo ponto.
Todos no escritório do Papa assistiram em silêncio, horrorizados, ao drama
desenrolar-se diante deles. O corpo do cardeal tombou e ele caiu com o rosto no
chão. Vittoria apareceu e começou a agir. Havia sangue. A marca a fogo. Uma
tentativa horripilante e fracassada de administrar respiração boca a boca.
- Essas cenas incríveis - a repórter estava dizendo - foram filmadas poucos
minutos atrás fora do Vaticano. Nossas fontes nos informam que se trata do
cardeal Lamassé, da França. Por que ele estaria vestido daquela maneira e por que
não estava no conclave são perguntas que permanecem sem resposta. Até agora, o
Vaticano recusou-se a fazer qualquer comentário. - E a fita recomeçou a ser
exibida.
- "Recusou-se a fazer qualquer comentário"? - disse Rocher. - Não tivemos nem
tempo!
A repórter continuava a falar com grande intensidade, as sobrancelhas franzidas.
- A MSNBC ainda não obteve confirmação sobre o motivo do ataque, mas nossas
fontes asseguram que um grupo que se autodenomina Illuminati assumiu a
responsabilidade pelos assassinatos.
Olivetti explodiu.
- O quê?!
- . . . saiba mais sobre os Illuminati visitando nosso site em...
- Non é posibile! - declarou Olivetti. E mudou de canal.
Na outra estação havia um repórter hispânico falando:
- . . . um culto satânico conhecido como os Illuminati, que alguns historiadores
acreditam...
Olivetti começou a apertar freneticamente o controle remoto. Todos os canais
estavam transmitindo a notícia ao vivo.
Muitos deles, em inglês.
- . . . Guarda Suíça removendo um corpo de uma igreja no princípio desta noite.
Acredita-se que o corpo seja o do cardeal...
- . . . as luzes da basílica e dos museus foram apagadas e especula-se que...
- . . . dentro em pouco falaremos com o especialista em teorias conspiratórias
Tyler Tingley sobre esse espantoso reaparecimento...
- ...há rumores sobre mais dois assassinatos planejados para mais tarde esta noite...
- . . .dúvidas se o provável Papa, o cardeal Baggia, estaria entre os desaparecidos...
Vittoria afastou-se. Tudo estava acontecendo rápido demais. Lá fora, na noite que
descia, o rude magnetismo da tragédia humana parecia atrair mais pessoas para a
Cidade do Vaticano. A multidão na praça aumentava quase a cada instante. Os
pedestres chegavam incessantemente enquanto novas equipes de imprensa
descarregavam seus furgões e faziam valer seus direitos na Praça de São Pedro.
Olivetti largou o controle remoto e dirigiu-se ao camerlengo.
- Signore, não posso imaginar como isso aconteceu. Nós pegamos a fita que
estava naquela câmera!
O camerlengo parecia momentaneamente atordoado para falar.
Ninguém dizia uma palavra sequer. A Guarda Suíça mantinha-se rígida, atenta.
- Tudo indica - disse finalmente o camerlengo, em um tom de voz arrasado
demais para estar zangado - que não soubemos conter essa crise tão bem quanto
fui levado a acreditar. - Olhou pela janela, para a massa de gente que se formava
lá fora. - Preciso fazer um pronunciamento.
Olivetti sacudiu a cabeça.
- Não, signore. Isso é precisamente o que os Illuminati querem que faça.
Legitimá-los, admitir seu poder. Temos de nos manter em silêncio.
- E essas pessoas? - O camerlengo apontou para a janela. - Logo haverá milhares.
Depois, centenas de milhares. Deixar que essa charada prossiga só vai colocá-las
em perigo. Tenho de preveni-las. E em seguida temos de tirar daqui o nosso
Colégio de Cardeais.
- Ainda há tempo. Deixe que o capitão Rocher encontre a antimatéria.
O camerlengo encarou-o.
- Está querendo me dar ordens?
- Não, estou lhe dando um conselho. Se está preocupado com o povo lá fora,
podemos anunciar que houve um escapamento de gás e desimpedir a área, mas
admitir a nossa vulnerabilidade pode ser perigoso.
- Comandante, só vou dizer isto uma vez. Não vou usar esse cargo como um
púlpito para mentir para o mundo. Se eu anunciar alguma coisa, só poderá ser a
verdade.
- A verdade? A Cidade do Vaticano está ameaçada de ser destruída por terroristas
satânicos! Só vai enfraquecer nossa posição.
O camerlengo fulminou-o com o olhar.
- Nossa posição não pode ficar mais fraca do que já está.
Rocher gritou repentinamente, apoderando-se do controle remoto e aumentando o
volume da televisão. Todos se viraram para o aparelho.
No ar, a mulher da MSNBC parecia agora verdadeiramente amedrontada. Ao lado
dela haviam sobreposto uma fotografia do último Papa.
- ... divulgar informações. Acabamos de receber a notícia da BBC... - ela
relanceou o olhar para a câmera como se quisesse confirmar que tinha realmente
de dar aquela notícia. Aparentemente tendo recebido confirmação, voltou-se para
os espectadores. - Os Illuminati acabaram de assumir a responsabilidade pela... -
ela hesitou. - Eles assumiram a responsabilidade pela morte do Papa 15 dias atrás.
O queixo do camerlengo caiu.
Rocher largou o controle remoto.
Vittoria mal conseguia processar a informação.
- Pela lei do Vaticano - a mulher prosseguiu -, jamais se realiza uma autópsia
formal em um Papa, portanto não se pode confirmar a declaração de assassinato
feita pelos Illuminati. Seja como for, os Illuminati afirmam que a causa da morte
do último Papa não foi um derrame, como relatou o Vaticano, mas
envenenamento.
A sala inteira ficou em silêncio completo outra vez. Olivetti irrompeu em
exclamações.
- Loucura! Que mentira descarada!
Rocher começou a mudar rapidamente os canais outra vez. O boletim espalhara-se
como uma praga de uma estação para outra. Todas tinham a mesma história. As
chamadas competiam pelo maior sensacionalismo possível.
ASSASSINATO NO VATICANO
PAPA ENVENENADO
SATÃ NA CASA DE DEUS
O camerlengo afastou os olhos da tela.
- Que Deus nos ajude.
Quando Rocher estava mudando de canal, passou pela BBC.
- . . .me avisou sobre o assassinato em Santa Maria del Popolo...
- Espere! - disse o camerlengo. - Volte.
Rocher voltou. Na tela, um locutor empertigado estava sentado diante da
escrivaninha do jornal da BBC. Acima do ombro dele destacava-se uma foto de
um homem esquisito com uma barba ruiva. Sob a foto estava escrito:
GUNTHER GLICK - AO VIVO DA CIDADE DO VATICANO.
O repórter Glick transmitia suas notícias pelo telefone, a ligação entremeada de
chiados intermitentes.
- . . . minha cinegrafista conseguiu gravar a cena do cardeal sendo removido da
Capela Chigi.
- Devo lembrar aos nossos espectadores - disse o âncora em Londres - que o
repórter Gunther Glick, da BBC, foi quem primeiro divulgou esta história.
Até agora manteve dois contatos telefônicos com o suposto assassino Illuminati.
Gunther, você confirma que o assassino telefonou há pouco para transmitir uma
mensagem dos Illuminati?
- Sim, confirmo.
- E a mensagem informava que os Illuminati foram de alguma forma responsáveis
pela morte do Papa? - A voz do âncora revelava incredulidade.
- Correto. A pessoa me disse que a morte do Papa não foi causada por um
derrame, como o Vaticano pensou, mas que o Papa foi envenenado pelos
Illuminati.
No escritório do Papa todos estavam paralisados.
- Envenenado? - perguntou o âncora. - Mas como?
- Ele não especificou - respondeu Glick - só me disse que o mataram com uma
droga conhecida como... - ouviu-se um ruído de papéis sendo folheados - alguma
coisa conhecida como heparina.
O camerlengo, Olivetti e Rocher trocaram olhares embaraçados.
- Heparina? - Rocher perguntou, espantado. - Mas não era...?
O camerlengo empalideceu.
- A medicação do Papa.
Vittoria ficou atordoada.
- O Papa estava tomando heparina?
- Ele tinha tromboflebite - disse o camerlengo. - Tomava uma injeção por dia.
Rocher estava perplexo.
- Mas a heparina não é veneno. Por que os Illuminati diriam que...
- A heparina é letal nas dosagens erradas - esclareceu Vittoria. - Trata-se de um
anticoagulante poderoso. Uma dose excessiva poderia causar uma grande
hemorragia interna e hemorragia cerebral.
Olivetti perguntou, desconfiado:
- Como sabe disso?
- Os biólogos usam heparina em mamíferos marinhos em cativeiro para evitar
coágulos causados pela diminuição de atividade. Já morreram animais por
administração errada do remédio. - Ela fez uma pausa. - Uma dose excessiva de
heparina em um ser humano pode causar sintomas que seriam facilmente
confundidos com os de um derrame, sobretudo se não se fizer uma autópsia
adequada.
O camerlengo agora se mostrava profundamente perturbado.
- Signore - disse Olivetti -, isso é obviamente uma manobra dos Illuminati para
atrair mais publicidade. Seria impossível alguém dar uma dose excessiva de
remédio ao Papa. Ninguém tinha acesso. E mesmo que engolíssemos a isca e
tentássemos refutar a declaração deles, como poderíamos? A lei papal proíbe a
autópsia. E mesmo que se fizesse a autópsia, nada ficaria esclarecido, porque se
encontraria heparina no corpo dele, a das injeções que ele tomava todos os dias.
- É verdade. - E a voz do camerlengo tornou-se mais penetrante. - No entanto,
algo mais me incomoda. Ninguém de fora sabia que Sua Santidade estava
tomando heparina.
Fez-se silêncio.
- Se ele tomou uma dose excessiva de heparina - disse Vittoria -, seu corpo teria
sinais disso.
Olivetti girou o corpo para encará-la.
- Senhorita Vetra, caso não tenha escutado, as autópsias papais são proibidas pela
Lei do Vaticano. Não vamos profanar o corpo de Sua Santidade, cortando-o todo
só porque um inimigo fez declarações ridículas!
Vittoria sentiu-se constrangida.
- Eu não estava sugerindo... - Ela não tivera intenção de desrespeitar ninguém. -
Com certeza, não sugeri que exumassem o Papa...
Ainda assim, hesitava em falar. Algo que Robert lhe contara em Chigi passara por
sua mente como um fantasma. Ele mencionara que os sarcófagos papais eram
mantidos acima do solo e nunca fechados com cimento, talvez um costume vindo
do tempo dos faraós, quando se acreditava que lacrar e enterrar um caixão prendia
a alma do defunto lá dentro. A gravidade tornara-se a alternativa à argamassa,
com tampas de caixões que às vezes pesavam centenas de quilos.
Tecnicamente, ela percebia, seria possível...
- Que espécie de sinais? - perguntou inesperadamente o camerlengo.
Vittoria sentiu seu coração palpitar de medo.
- As doses excessivas podem causar sangramento da mucosa oral.
- Da...
- As gengivas da vítima sangrariam. Algum tempo após a morte, o sangue
coagularia e o interior da boca ficaria negro.
Certa vez, Vittoria tinha visto uma foto tirada em um aquário de Londres em que
um par de baleias havia sido medicado em excesso por um engano de seu
treinador. As baleias boiavam mortas dentro do tanque, as bocas abertas e as
línguas negras como piche.
O camerlengo não fez nenhum comentário. Pensativo, olhava pela janela.
A voz de Rocher perdera todo o otimismo.
- Signore, se essa história de envenenamento for verdadeira...
- Não é - declarou Olivetti, categórico. - O acesso ao Papa por uma pessoa de fora
é absolutamente impossível.
- Se a história for verdadeira - repetiu Rocher - e nosso Santo Padre tiver sido
mesmo envenenado, isto tem enormes implicações para a procura da anti-matéria.
Um suposto assassinato significa uma infiltração muito maior no Vaticano do que
calculamos. Procurar só nas zonas brancas pode ser inútil. Se estivermos a tal
ponto comprometidos, talvez não encontremos o tubo de anti-matéria a tempo.
Olivetti dirigiu um olhar gelado a seu capitão.
- Capitão, vou lhe dizer o que vai acontecer.
- Não - disse o camerlengo, virando-se repentinamente. - Eu vou lhe dizer o que
vai acontecer. - Encarou Olivetti.
- Isso já foi longe demais. Em 20 minutos vou decidir se cancelo o conclave e
esvazio a Cidade do Vaticano ou não.
Minha decisão vai ser definitiva. Ficou bem claro?
Olivetti nem piscou. Nem reagiu.
O camerlengo falava agora energicamente, como se recorresse a uma reserva
escondida de força.
- O capitão Rocher vai completar sua busca nas zonas brancas e prestar contas
diretamente a mim quando terminar.
Rocher curvou a cabeça, endereçando um olhar constrangido a Olivetti.
O camerlengo então destacou dois guardas.
- Quero o repórter da BBC, o senhor Glick, aqui neste escritório imediatamente.
Se os Illuminati andaram se comunicando com ele, talvez possa nos ajudar.
Andem.
Os dois soldados desapareceram.
O camerlengo então dirigiu-se aos guardas restantes.
- Cavalheiros, não vou permitir que mais vidas se percam esta noite. Até as dez
horas vocês vão localizar os dois últimos cardeais e capturar o monstro
responsável por essas mortes. Será que me fiz compreender?
- Mas, signore - objetou Olivetti -, não temos a menor idéia de onde...
- O senhor Langdon está trabalhando nisso. Ele parece competente. Tenho
esperanças.
Com isto, o camerlengo encaminhou-se para a porta, suas passadas revelando uma
nova determinação. Antes de sair, apontou para três guardas.
- Vocês três, venham comigo. Agora.
Os guardas o seguiram.
Junto da porta, o camerlengo se deteve. Falou com Vittoria.
- Senhorita Vetra, venha também, por favor.
Vittoria ficou insegura.
- Aonde vamos?
Ele saiu porta afora.
- Ver um velho amigo.
CAPÍTULO 82
No CERN, a secretária Sylvie Baudeloque estava faminta, querendo ir para casa.
Para sua decepção, Kohler parecia ter sobrevivido ao seu passeio à enfermaria.
Ele telefonara e mandara - não pedira, mandara - que Sylvie ficasse até mais tarde
naquele dia. Sem a menor explicação.
No decorrer dos anos, Sylvie programara-se para ignorar as bizarras oscilações de
humor e as excentricidades de Kohler - sua convivência silenciosa, sua mania
irritante de filmar reuniões em segredo com a câmera de vídeo portátil de sua
cadeira de rodas. Intimamente, desejava que um dia ele desse um tiro por engano
em si mesmo durante a sua visita semanal ao estande recreativo de tiro ao alvo do
CERN, mas pelo jeito ele era um exímio atirador.
Agora, sentada sozinha diante de sua escrivaninha, Sylvie sentia o estômago
roncar. Kohler não voltara nem lhe dera nenhum trabalho extra para aquela noite.
Pois sim que vou ficar plantada aqui passando fome e me aborrecendo sem fazer
nada, decidiu. Deixou um bilhete para Kohler e foi até a cantina fazer um lanche.
Mas não chegou lá.
Ao passar pelas suítes de loisir do CERN, uma área de lazer formada por um
comprido corredor com saguões onde havia televisões, notou que as salas estavam
transbordando de empregados que deviam ter abandonado o jantar para assistir às
notícias. Alguma coisa importante estava acontecendo. Sylvie entrou na primeira
suíte. Estava lotada de jovens programadores de computador. Quando viu as
manchetes na TV, ela tomou um susto.
TERRORISMO NO VATICANO
Sylvie escutou o comentário, mal acreditando no que ouvia. Uma fraternidade
antiga matando cardeais? Para provar o quê? O ódio deles? O domínio? A
ignorância?
E o mais inacreditável é que o humor reinante naquela suíte era tudo, menos
sombrio.
Dois jovens técnicos passaram correndo, exibindo camisetas que traziam um
retrato de Bill Gates e a inscrição: E OS NERDS HERDARÃO A TERRA!
- Illuminati! - gritou um. - Eu disse para você que esses caras existiam!
- Incrível! Pensei que fosse só um jogo!
- Eles mataram o Papa, cara! O Papa!
- É! Quanto pontos será que se ganha por isto?
E foram embora dando risadas.
Sylvie ficou parada ali, estarrecida. Como católica e trabalhando em um meio de
cientistas, de vez em quando ouvia uma ou outra observação anti-religiosa, mas a
festa que os garotos estavam fazendo era de total euforia pela perda que a Igreja
sofrera. Como podiam ser tão insensíveis? Por que tanto ódio?
Para Sylvie, a Igreja fora sempre uma entidade inofensiva, um local de
companheirismo e introspecção e, às vezes, apenas um lugar onde podia cantar
em voz alta sem que as pessoas olhassem para ela. A Igreja registrava as
referências de sua vida - funerais, casamentos, batismos, feriados - e não pedia
nada em troca. Até as doações em dinheiro eram voluntárias. Seus filhos todas as
semanas saíam melhores da igreja dominical, cheios de idéias sobre ajudarem os
outros e serem mais bondosos. O que poderia haver de errado aí?
Sempre se admirara que tantas das chamadas "mentes brilhantes" do CERN
deixassem de compreender a importância da Igreja. Será que de fato acreditavam
que quarks e mésons também serviam de inspiração para a média dos seres
humanos? Ou que as equações podiam substituir a necessidade de uma pessoa ter
fé no divino?
Aturdida, Sylvie foi andando pelo corredor e passando pelos outros saguões.
Todas as salas de TV estavam cheias de gente. Refletiu sobre aquele telefonema
que Kohler recebera do Vaticano mais cedo.
Coincidência? Talvez. O Vaticano ligava para o CERN de tempos em tempos
como "cortesia" antes de divulgar declarações mordazes condenando as pesquisas
do CERN - a mais recente fora sobre os avanços do CERN em nanotecnologia,
um campo que a Igreja denunciava por causa de suas implicações para a
engenharia genética. O CERN jamais dava importância às críticas.
Invariavelmente, minutos após uma das investidas do Vaticano, o telefone de
Kohler tocava sem parar com chamadas das companhias de investimento em
tecnologia querendo permissão para utilizar a nova descoberta. Kohler sempre
dizia:
"Nada melhor do que a má propaganda."
Sylvie ponderou se deveria mandar uma mensagem pelo pager de Kohler, onde
quer que ele estivesse metido, e dizer-lhe para ver as notícias. Será que se
interessaria? Ou já ouvira tudo? Claro que já deveria ter ouvido. Provavelmente,
estava gravando toda a reportagem com sua frenética filmadora, sorrindo pela
primeira vez em todo o ano.
Continuando seu percurso pelo corredor, ela finalmente encontrou um saguão com
um ambiente mais calmo, quase melancólico. Os cientistas que se encontravam ali
vendo televisão eram alguns dos mais velhos e mais respeitados do CERN. Nem
repararam quando Sylvie entrou e se sentou.
Do outro lado do CERN, no frígido apartamento de Leonardo Vetra, Maximilian
Kohler acabara de ler o diário de capa de couro que tirara da mesa-de-cabeceira de
Vetra. Agora, estava assistindo às notícias da televisão. Depois de alguns minutos,
guardou o diário, desligou a TV e saiu do apartamento.
Longe dali, na Cidade do Vaticano, o cardeal Mortati levou outra bandeja cheia de
fichas de voto para a lareira da Capela Sistina. Queimou-as e a fumaça saiu negra.
Duas votações. Não se elegera o Papa.
CAPÍTULO 83
A luz fraca das lanternas pouco adiantava naquele volumoso negrume da Basílica
de São Pedro. O vácuo acima de suas cabeças pesava sobre eles como uma noite
sem estrelas. Vittoria sentiu o vazio espalhar-se em torno dela como um oceano
solitário. Mantinha-se perto do camerlengo e dos guardas suíços enquanto
caminhavam. No alto, uma pomba arrulhou e esvoaçou para longe, as asas
farfalhando.
Parecendo notar aquele desconforto, o camerlengo deixou-se ficar para trás e
pousou a mão em seu ombro.
Uma força tangível transferiu-se para ela com aquele toque, como se o homem
magicamente lhe infundisse a calma de que precisava para o que iam fazer.
O que vamos fazer?, pensou. Isto é loucura!
Contudo, Vittoria sabia que, apesar de toda a irreverência e do inevitável horror
da situação, a tarefa que se apresentava era inescapável. As graves decisões que o
camerlengo tinha de tomar exigiam informações - informações encerradas em um
sarcófago nas Grutas do Vaticano. Perguntava a si mesma o que iriam encontrar.
Será que os Illuminati mataram mesmo o Papa? O poder deles chegaria de fato tão
longe? Será que estou prestes a realizar a primeira autópsia em um Papa?
Vittoria achou uma ironia estar mais apreensiva naquela igreja escura do que se
estivesse nadando à noite no mar no meio das barracudas. A natureza era seu
refúgio. Ela compreendia a natureza. As questões humanas e espirituais é que a
deixavam desorientada. A idéia de peixes assassinos reunindo-se no escuro trazialhe
à cabeça imagens da imprensa reunindo-se do lado de fora da basílica. As
filmagens dos corpos marcados lembravam-lhe o cadáver de seu pai e a risada
grosseira do matador. O matador estava à solta lá fora, em algum lugar. A raiva
abafou o medo de Vittoria.
Quando contornaram uma coluna - de diâmetro maior do que o de qualquer
sequóia imaginável -, Vittoria divisou um brilho alaranjado adiante. A luz parecia
emanar de baixo do piso no centro da basílica. Ao se aproximarem, ela
compreendeu o que estava vendo. Tratava-se do famoso santuário escavado sob o
altar principal - a suntuosa câmara subterrânea que continha as relíquias mais
sagradas do Vaticano. Junto ao portão que rodeava a abertura, Vittoria olhou para
baixo e viu a arca dourada no meio de inúmeras lamparinas a óleo acesas.
- São os ossos de São Pedro? - perguntou, sabendo muito bem que eram.
Todo mundo que visitava a Basílica de São Pedro sabia o que havia dentro da
pequena arca dourada.
- Na realidade, não - respondeu o camerlengo. - Um engano bastante comum. Isso
não é um relicário. Dentro da arca são guardados os palliums, faixas tecidas que o
Papa dá aos cardeais recém-eleitos.
- Mas pensei...
- Como todos. Os guias turísticos dizem que aqui é a tumba de São Pedro, mas o
verdadeiro túmulo dele fica dois níveis abaixo de nós, enterrado no solo. O
Vaticano escavou-o nos anos 1940. Ninguém tem permissão para descer lá.
Vittoria estava impressionada. À medida que saíam do nicho reluzente e voltavam
para a escuridão, pensou nas histórias que ouvira de peregrinos que viajavam
milhares de quilômetros para ver aquela caixa dourada, achando que estavam na
presença de São Pedro.
- O Vaticano não deveria dar essa informação às pessoas?
- Todos nos beneficiamos de uma sensação de contato com a divindade, mesmo
que a sensação seja apenas imaginada.
Vittoria, como cientista, não podia discutir aquela lógica. Lera inúmeros estudos
sobre os efeitos do placebo - aspirinas curando câncer de pessoas que acreditavam
estar usando uma droga milagrosa. O que era a fé, afinal de contas?
- Mudanças - disse o camerlengo - não são algo que fazemos muito bem aqui na
Cidade do Vaticano. Admitir nossos erros do passado, modernização, são coisas
que historicamente evitamos. Sua Santidade estava tentando modificar isto.
- Ele fez uma pausa. - Para alcançar o mundo moderno. Procurar novos caminhos
para chegar a Deus.
Mesmo no escuro, Vittoria fez um gesto de concordância.
- Como a ciência?
- Para ser franco, a ciência me parece irrelevante.
- Irrelevante? - Vittoria conseguia pensar em uma porção de palavras para definir
ciência, mas, no mundo moderno, "irrelevante" não era uma delas.
- Quando o senhor sentiu sua vocação?
- Antes do meu nascimento.
Vittoria olhou para ele.
- Desculpe - explicou o camerlengo -, essa questão sempre parece estranha. O que
quero dizer é que sempre soube que iria servir a Deus. Desde o momento em que
comecei a pensar. Só quando rapaz, porém, no exército, é que compreendi
verdadeiramente meu objetivo.
Ela ficou surpresa.
- O senhor esteve no exército?
- Dois anos. Recusei-me a disparar uma arma, então me puseram para pilotar
helicópteros Medevac. Na realidade, ainda vôo de vez em quando.
Vittoria tentou imaginar o jovem padre pilotando um helicóptero. O interessante é
que conseguia vê-lo perfeitamente por trás dos controles. O camerlengo Ventresca
possuía uma firmeza de caráter que intensificava suas convicções em vez de tirarlhes
o brilho.
- O senhor chegou a transportar o Papa alguma vez?
- Não, de jeito nenhum. Deixávamos esse passageiro precioso para os
profissionais. Sua Santidade às vezes permitia que eu levasse o helicóptero para
nosso retiro em Gandolfo. - Ele fez uma pausa, olhando para ela. - Senhorita
Vetra, obrigada por sua ajuda aqui hoje. Sinto muito por seu pai. Sinceramente.
- Obrigada.
- Nunca conheci meu pai. Morreu antes que eu nascesse. Perdi minha mãe quando
tinha dez anos.
- O senhor ficou órfão? - ela sentiu uma afinidade repentina entre eles.
- Sobrevivi a um acidente. Um acidente que levou minha mãe.
- Quem tomou conta do senhor?
- Deus - disse o camerlengo. - Ele quase literalmente me enviou outro pai. Um
bispo de Palermo apareceu junto à minha cama de hospital e tomou conta de mim.
Na ocasião, não me surpreendi. Já sentia a mão vigilante de Deus sobre mim
desde pequeno. O aparecimento do bispo simplesmente confirmou o que eu já
desconfiava, que Deus de certa forma me escolhera para servi-lo.
- O senhor acreditava que Deus o havia escolhido?
- Sim, e ainda acredito. - Não havia qualquer vestígio de vaidade na voz do
camerlengo, só de gratidão.
- Trabalhei sob a tutela do bispo durante muitos anos. Ele acabou se tornando
cardeal. Mas nunca me esqueceu. Ele é o pai de quem me lembro.
A luz de uma das lanternas passou pelo rosto do camerlengo e Vittoria vislumbrou
a solidão em seus olhos.
O grupo chegou junto a uma coluna gigantesca e a luz de suas lanternas convergiu
para uma abertura no chão. Ao olhar para a escadaria que mergulhava no vazio,
Vittoria de repente teve vontade de voltar atrás.
Os guardas já estavam ajudando o camerlengo a descer. Em seguida, ajudaram
Vittoria.
- O que aconteceu com ele? - ela perguntou enquanto desciam, tentando manter a
voz firme. - Com o cardeal que tomou conta do senhor?
- Ele deixou o Colégio dos Cardeais para assumir outro posto.
Vittoria surpreendeu-se.
- E depois, sinto muito dizer, ele faleceu.
- Le mie condoglianze - disse ela. - Recentemente?
O camerlengo virou-se para ela, as sombras acentuando a dor em seu rosto.
- Há exatamente 15 dias. Vamos vê-lo agora.
CAPÍTULO 84
As luzes escuras espalhavam seu fulgor avermelhado no interior da câmara dos
Arquivos do Vaticano. Essa câmara era muito menor do que aquela em que
Langdon estivera antes. Menos ar. Menos tempo. Arrependeu-se de não ter pedido
a Olivetti para ligar os ventiladores de renovação do ar.
Langdon localizou rapidamente a seção de ativos que continha os livros de
registros das Belle Arti. Não havia como não encontrar a seção. Ocupava quase
oito estantes completas. A Igreja Católica possuía milhões de peças pelo mundo
todo.
Ele examinou as prateleiras à procura do nome de Gianlorenzo Bernini.
Começou sua busca no meio do segundo grupo de estantes, mais ou menos onde
deveria começar a letra B. Depois de um breve momento de pânico temendo que
aquele catálogo em especial estivesse faltando, ele descobriu, desanimado, que os
catálogos não tinham sido dispostos em ordem alfabética. Por que isto não me
surpreende tanto assim?
Só depois de contornar tudo, voltar ao início e subir uma escada com rodízios para
chegar à prateleira mais alta é que compreendeu o critério da organização da
câmara. Empoleirado na parte superior das estantes, encontrou os catálogos mais
grossos, referentes aos mestres da Renascença: Michelangelo, Rafael, Da Vinci e
Botticelli. Bem de acordo com uma câmara chamada "Ativos do Vaticano", os
catálogos eram dispostos segundo o valor monetário total da coleção de cada
artista. Entre os de Rafael e Michelangelo, Langdon encontrou o catálogo com o
nome de Bernini. Tinha uns 12 centímetros de espessura.
Já sem fôlego e segurando desajeitadamente o incômodo volume, Langdon desceu
a escada. Então, como um garoto que vai ler uma revista em quadrinhos,
estendeu-se no chão e abriu o livro.
O catálogo tinha capa de pano e era muito compacto. Fora escrito à mão em
italiano. Cada página tratava de uma única obra, com uma breve descrição, a data,
a localização, o custo dos materiais e às vezes um esboço simples da peça.
Langdon folheou o livro de mais de 800 páginas. Bernini fora um homem
ocupado.
Quando Langdon era um jovem estudante de arte, sempre o intrigara como um
único artista podia produzir tantos trabalhos durante a vida. Mais tarde, para
grande desapontamento seu, descobriu que os artistas famosos criavam na
realidade muito pouco de sua própria obra. Dirigiam estúdios onde treinavam
jovens artistas para executar seus projetos. Escultores como Bernini criavam
miniaturas em barro e contratavam outros para ampliá-las em mármore. Se
Bernini tivesse sido obrigado a realizar pessoalmente todas as suas encomendas,
ainda estaria trabalhando até hoje.
- Índice - disse ele em voz alta, tentando manter afastadas as teias de aranha
mentais. Foi para o final do livro com a intenção de procurar na letra F os títulos
com a palavra fuàco - fogo -, mas os Fs não estavam juntos. Que diabos esse
pessoal tem contra a ordem alfabética?
As entradas obedeciam a uma ordem cronológica, uma a uma, à medida que
Bernini criava uma nova obra. Tudo estava listado por data. Não adiantava
procurar ali.
Enquanto contemplava a lista, outro pensamento desalentador ocorreu-lhe. O
título da escultura que procurava podia nem conter a palavra Fogo. As duas obras
anteriores - Habacuc e o Anjo e West Ponente - não tinham referências específicas
a Terra ou Ar.
Passou um ou dois minutos folheando o catálogo ao acaso na esperança de alguma
ilustração lhe dar alguma pista. Nenhuma deu. Encontrou inúmeras obras
obscuras de que nunca ouvira falar, mas também muitas que reconheceu:
Daniel e o Leão, Apolo e Dafne, além de várias fontes. Ao encontrar as fontes,
seus pensamentos deram um salto momentâneo para a frente. Água. Imaginou se
o quarto altar da ciência seria uma fonte.
Uma fonte seria um perfeito tributo à água. Langdon esperava que pegassem o
assassino antes que ele tivesse de considerar o elemento Água - Bernini esculpira
dezenas de fontes em Roma, a maioria em frente a igrejas.
E voltou para o assunto em questão, Fogo. Virando as folhas do livro, lembrou-se
das palavras de Vittoria para incentivá-lo. Você conhecia as duas primeiras
esculturas, provavelmente conhece essa também. Abriu o índice novamente e
procurou títulos que conhecia. Alguns lhe eram bem familiares, mas nenhum
despertou sua atenção. Langdon concluiu que jamais terminaria aquela busca sem
antes desmaiar e então decidiu, a contragosto, que teria de levar o catálogo para
fora do arquivo. É só um catálogo, disse a si mesmo. Não é como tirar daqui um
fólio original de Galileu. Lembrou-se do fólio no bolso de seu paletó e
recomendou a si mesmo que não podia esquecer de devolvê-lo antes de sair.
Apressando-se, estendeu a mão para pegar o livro, mas, ao fazê-lo, viu algo que o
fez parar. Embora o índice fosse constituído de numerosas anotações, a que atraiu
seu olhar era significativa.
A anotação indicava que a famosa escultura de Bernini, O Êxtase de Santa Teresa,
pouco tempo depois de inaugurada, fora transferida de sua localização original no
Vaticano. Mas não foi esse o fato que chamou a atenção de Langdon, sabedor das
vicissitudes por que passara aquela escultura. Considerada uma obra-prima por
alguns, o Papa Urbano VIII recusou O Êxtase de Santa Teresa alegando que se
tratava de uma obra sexualmente muito explícita para o Vaticano. Baniu-a para
uma capela obscura do outro lado da cidade. O que despertou o interesse de
Langdon foi constatar que essa capela era uma das cinco igrejas de sua lista. E,
ainda por cima, que a escultura fora transferida para lá per suggerimento dei
artista.
Por sugestão do artista? Não fazia sentido Bernini sugerir que sua obra-prima
ficasse escondida em um lugar pouco conhecido. Todo artista quer sua obra
exposta em local destacado, não em uma remota...
Langdon hesitava. A menos que...
Receava até acalentar a idéia. Seria possível? Teria Bernini criado
intencionalmente uma obra tão explícita que forçara o Vaticano a enfurná-la em
algum lugar afastado? Um lugar que talvez Bernini pudesse sugerir?
Quem sabe uma igreja distante que ficasse em linha reta com o sopro de West
Ponente?
À medida que aumentava a excitação de Langdon, sua vaga familiaridade com a
estátua interferia, insistindo que a obra nada tinha a ver com fogo. A escultura,
como qualquer pessoa que a tivesse visto poderia confirmar, era tudo, menos
científica - pornográfica até, mas não científica, sem dúvida. Um crítico inglês
condenou O Êxtase de Santa Teresa, afirmando que era "o ornamento mais
impróprio que jamais fora colocado em uma igreja cristã" Langdon entendia a
razão da controvérsia. Apesar de brilhantemente executada, a estátua representava
Santa Teresa deitada de costas entregue a um orgasmo dos bons. Nada de acordo
com o gosto do Vaticano.
Langdon passou depressa para a descrição da obra no catálogo. Quando viu o
desenho, sentiu uma instantânea e inesperada centelha de esperança. No esboço,
Santa Teresa realmente parecia estar entregue ao gozo, mas havia uma outra
figura que Langdon esquecera e que fazia parte do conjunto.
Um anjo.
A sórdida lenda de repente voltou-lhe à memória...
Santa Teresa era uma freira que fora santificada depois de afirmar que um anjo
lhe fizera uma beatífica visita durante o sono. Os críticos mais tarde concluíram
que o encontro provavelmente havia sido mais sexual do que espiritual. Rabiscado
ao pé da página, Langdon leu um trecho conhecido do diário da santa.
As próprias palavras de Santa Teresa pouco deixavam para a imaginação: ...sua
grande lança dourada... cheia de fogo... penetrou em mim várias vezes.. até
minhas entranhas... uma doçura tão extrema que se desejaria que nunca cessasse.
Langdon sorriu. Se isto não é uma metáfora de sexo para valer, não sei o que é.
Sorriu também por causa da descrição da obra. Apesar de o parágrafo estar escrito
em italiano, a palavra fuàco aparecia uma meia dúzia de vezes.
...lança do anjo com a ponta de fogo...
...raios de fogo emanando da cabeça do anjo...
...mulher inflamada pelo fogo da paixão...
Langdon ainda não se convencera por completo até olhar de novo para o desenho.
A lança de fogo do anjo estava erguida como um farol apontando o caminho. Que
os anjos o guiem em sua busca sublime. E até o tipo de anjo que Bernini escolhera
parecia significativo. É um serafim, observou Langdon. Serafim significa
literalmente "o que é feito de fogo".
Robert Langdon não era um homem que algum dia tivesse esperado por uma
confirmação vinda do alto, mas quando leu o nome da igreja onde a escultura
agora se encontrava resolveu que, afinal de contas, poderia começar a acreditar
em alguma coisa.
Santa Maria dela Vittoria.
Vittoria, pensou ele, rindo. Perfeito.
Pôs-se de pé meio cambaleante e sentiu uma tonteira. Olhou para o alto da escada,
ponderando se deveria repor o livro no lugar. Ora, dane-se, pensou. O Padre Jaqui
pode fazer isso depois. Fechou o livro e colocou-o educadamente ao pé da estante.
Quando se encaminhou para o botão luminoso na saída eletrônica da câmara, sua
respiração estava curta.
Ainda assim, sentia-se rejuvenescido por sua boa sorte.
Sua boa sorte, porém, terminou antes que alcançasse a saída.
Sem aviso, a câmara exalou um suspiro penoso. As luzes diminuíram e o botão
luminoso apagou-se. Então, como um enorme animal que expira, o arquivo inteiro
ficou às escuras. Alguém desligara a energia elétrica.
CAPÍTULO 85
As Grutas Santas do Vaticano estão situadas sob o chão da Basílica de São Pedro.
É lá que são enterrados os Papas.
Vittoria chegou ao fim da escada em espiral e entrou na gruta. O túnel escuro
lembrava o do Grande Colisor de Hádrons do CERN, o acelerador de partículas -
negro e frio. Iluminado agora apenas pela luz das lanternas da Guarda Suíça, o
túnel transmitia uma sensação nitidamente incorpórea. Dos dois lados havia
nichos cavados ao longo das paredes. Dentro desses vãos, até onde a luz lhes
permitia enxergar, assomavam volumosas as sombras dos sarcófagos.
Um calafrio fez seu corpo estremecer. É o ar frio, disse a si mesma, sabendo
entretanto que só em parte era verdade. Tinha a impressão de estarem sendo
observados, não por alguém de carne e osso, mas por espectros na penumbra.
Em cima de cada túmulo, com todas as vestimentas papais, repousavam figuras
em tamanho natural com os traços de cada Papa falecido, retratado como morto,
os braços dobrados sobre o peito. Os corpos deitados pareciam emergir das
tumbas como se pressionados de encontro às tampas de mármore para tentar
escapar de sua reclusão mortal. A procissão de lanternas avançava e as silhuetas
dos Papas subiam e desciam nas paredes, prolongando-se e desaparecendo como
um macabro teatro de sombras.
Caíra um silêncio sobre o grupo, Vittoria não saberia dizer se de respeito ou de
apreensão. Ambos, talvez.
O camerlengo andava de olhos fechados, como se soubesse de cor cada passo.
Vittoria desconfiava que ele já fizera aquele lúgubre passeio muitas vezes desde a
morte do Papa, talvez para rezar junto à sua tumba em busca de orientação.
Trabalhei sob a sua tutela durante muitos anos. Ele foi um pai para mim, dissera o
camerlengo. Vittoria lembrou-se do camerlengo dizendo essas palavras ao se
referir ao religioso que o "salvara" do exército. Agora, porém, ela compreendia o
resto da história. O mesmo homem que tomara o camerlengo sob sua proteção
chegara mais tarde ao papado e levara consigo seu jovem protegido para servir
como camarista.
Isto explica muita coisa, pensou Vittoria. Ela sempre possuíra uma intuição bem
afinada para as emoções íntimas das pessoas, e algo no camerlengo a vinha
intrigando o dia inteiro. Desde que o encontrara, percebera nele uma angústia
mais sentimental e pessoal do que a causada pela crise avassaladora que
enfrentava naquele momento. Por trás daquela calma piedosa, via um homem
atormentado por demônios particulares. Não só enfrentava a ameaça mais
devastadora da história do Vaticano, como o fazia sem seu amigo e mentor,
voando solo.
Os guardas diminuíram o passo, como se não soubessem exatamente onde,
naquela escuridão, o último Papa fora enterrado. O camerlengo continuou
andando, seguro, e se deteve diante de uma tumba cujo mármore ainda
conservava um brilho que as outras não tinham mais. Deitada sobre ela, uma
imagem esculpida do Papa falecido. Quando Vittoria reconheceu o rosto que via
sempre na televisão, sentiu uma pontada de medo. O que estamos fazendo?
- Sei que não temos muito tempo - disse o camerlengo -, mas ainda assim pediria
que fizéssemos uma rápida oração.
Os guardas suíços curvaram a cabeça. Vittoria fez o mesmo, seu coração batendo
forte naquele silêncio. O camerlengo ajoelhou-se junto à tumba e rezou em
italiano. Escutando aquelas palavras, Vittoria sentiu um pesar inesperado vir à
tona em forma de lágrimas - lágrimas por seu próprio mentor, seu próprio santo
pai. As palavras do camerlengo eram tão adequadas para o Papa quanto para seu
pai.
- Pai supremo, conselheiro, amigo. - A voz do camerlengo ecoava mansamente na
roda de pessoas. - O senhor me disse, quando eu era jovem, que a voz de meu
coração era a voz de Deus. Disse que eu deveria segui-la ainda que me levasse
para caminhos difíceis. Ouço essa voz agora, exigindo de mim tarefas
impossíveis. Dê-me forças. Conceda-me o perdão. O que faço é em nome de tudo
em que o senhor acreditava. Amém.
- Amém - murmuraram os guardas.
Amém, pai. Vittoria enxugou os olhos.
O camerlengo levantou-se devagar e afastou-se da tumba.
- Empurrem a tampa para o lado.
Os guardas suíços ficaram indecisos.
- Signore - disse um deles -, por lei, estamos sob suas ordens. - Fez uma pausa. -
Faremos o que mandar...
O camerlengo pareceu ler a mente do rapaz.
- Um dia, vou pedir perdão a vocês por tê-los colocado nesta situação. Hoje, peço
que me obedeçam. As leis do Vaticano foram estabelecidas para proteger esta
igreja. Com esse mesmo espírito, exijo que agora as infrinjam.
Houve um momento de silêncio e então o líder dos guardas deu a ordem. Os três
homens colocaram as lanternas no chão e suas sombras saltaram para o alto.
Iluminados de baixo para cima, aproximaram-se da tumba. Apoiaram as mãos na
tampa de mármore na altura da cabeceira da tumba, plantaram os pés no chão com
firmeza e prepararam-se para empurrar. A um sinal, todos empurraram juntos,
retesados de encontro à enorme lápide. Ao ver que a lápide não se deslocara nem
um pouco, Vittoria se deu conta de estar quase torcendo para que fosse pesada
demais. Temia o que poderiam encontrar ali dentro.
Os homens empurraram mais e a lápide não saiu do lugar.
- Ancora - disse o camerlengo, enrolando as mangas de sua batina e tomando
posição para empurrar junto com eles.
- Ora! - Todos empurraram ao mesmo tempo.
Vittoria estava prestes a oferecer ajuda, quando a lápide começou a deslizar. Os
homens deram impulso outra vez e, com um rangido de pedra contra pedra que
parecia um grunhido primal, a lápide girou em cima da tumba e parou formando
um ângulo - a cabeça esculpida do Papa dentro do nicho e seus pés estendidos no
corredor.
Todos recuaram.
Tateando, um dos guardas abaixou-se e apanhou sua lanterna no chão. Depois,
apontou-a para o interior da tumba. O facho de luz tremeu um pouco e então o
guarda o firmou. Os outros guardas reuniram-se ao primeiro, um a um. Mesmo no
escuro, Vittoria percebeu que eles recuaram e, sucessivamente, se benzeram.
O camerlengo estremeceu quando olhou para dentro da tumba e seus ombros
caíram, pesados. Ficou parado algum tempo antes de se virar.
Vittoria receava que a boca do cadáver estivesse cerrada com o rigor mortis e ela
sugeriu que se quebrasse a mandíbula para ver a língua. Mas isso não seria
necessário. As faces haviam caído e a boca do Papa estava aberta. Sua língua
estava negra como a morte.
CAPÍTULO 86
Nenhuma luz. Nenhum som.
Os Arquivos Secretos estavam imersos em negra escuridão.
O medo, notou Langdon, era um forte motivador. Sem fôlego, saiu vacilante na
direção da porta rotativa.
Encontrou o botão na parede e bateu nele com a palma da mão. Nada aconteceu.
Tentou de novo. A porta estava desligada.
Rodopiou às cegas, tentou chamar em voz alta, mas a voz saiu estrangulada.
O estado crítico de sua situação tomou conta dele por completo. Seus pulmões
lutavam por oxigênio quanto mais a adrenalina acelerava sua batida cardíaca.
A sensação era a de um soco no estômago.
Quando se atirou com todo o seu peso contra a porta, por um segundo achou que
ela começara a girar.
Empurrou de novo e viu estrelas. Deu-se conta de que era a sala inteira que
rodava, não a porta.
Desequilibrou-se, tropeçou na base de uma escada de rodízios e caiu pesadamente
no chão. Cortou o joelho na quina de uma estante. Xingando, levantou-se e saiu
procurando a escada.
Encontrou-a. Esperava que fosse de madeira pesada ou de ferro, mas era de
alumínio. Agarrou-a, segurou-a como um aríete e correu com ela no escuro para a
parede de vidro. A parede ficava mais perto do que ele imaginara. A escada bateu
e voltou. Pelo som fraco da colisão, ele percebeu que precisaria de muito mais do
que uma escada de alumínio para quebrar aquele vidro.
Ocorreu-lhe usar o revólver, mas suas esperanças se esvaíram tão depressa quanto
haviam surgido. A arma não estava mais com ele. Olivetti a tomara dele no
escritório do Papa, dizendo que não queria armas carregadas por perto com o
camerlengo presente. Na hora, fizera sentido.
Langdon chamou de novo, produzindo ainda menos som do que antes.
Em seguida, lembrou-se do walkie-talkie que o guarda deixara na mesa fora da
câmara. Por que diabos não o trouxe para dentro! Estrelinhas roxas começaram a
dançar diante de seus olhos e ele se esforçou para pensar. Você já ficou preso
antes, disse a si mesmo. Já sobreviveu a coisa pior.
Era só uma criança e conseguiu se safar. A escuridão tenebrosa inundou tudo.
Pense!
Langdon então se abaixou, deitou de costas no chão e estendeu os braços ao lado
do corpo. O primeiro passo era recuperar o autocontrole.
Relaxe. Poupe-se.
Sem ter mais que lutar contra a gravidade para bombear o sangue, o coração de
Langdon começou a bater mais devagar. Aquele era um truque que os nadadores
usavam para reoxigenar o sangue entre competições subseqüentes.
Tem ar mais do que suficiente aqui dentro, disse a si mesmo. Mais do que
suficiente. Agora, pense. Esperou, quase acreditando que a luz voltaria a qualquer
momento. Não voltou. Deitado ali, conseguindo respirar melhor, uma sinistra
resignação o invadiu. Sentiu-se em paz. E lutou contra aquela sensação.
Você vai se mexer, droga! Mas onde...
No seu pulso, Mickey Mouse brilhava alegremente, como se estivesse gostando
do escuro: 9h33 da noite.
Meia hora para o Fogo. Tinha a impressão de que fosse muito mais tarde. Em sua
cabeça, em vez de um plano para sair dali, vinham perguntas, a necessidade de
uma explicação. Quem teria desligado a luz?
Será que teria sido Rocher, expandindo sua busca? E Olivetti, por que não
informou Rocher que eu estava aqui dentro? Langdon sabia entretanto que, àquela
altura, não fazia diferença alguma.
Abrindo bem a boca e inclinando um pouco a cabeça para trás, conseguia inalar o
mais fundo que lhe era possível. A cada vez, a respiração ardia menos do que a
anterior. Sua mente clareou. Reorganizou seus pensamentos e forçou as
engrenagens a se movimentarem.
Paredes de vidro, ponderou. Mas um vidro danado de grosso.
Conjeturou se haveria livros guardados em um daqueles arquivos de aço pesados,
à prova de fogo.
Langdon já os encontrara algumas vezes em outros lugares, mas não vira nenhum
ali. Além disso, procurar no escuro levaria tempo demais. Não que ele, de
qualquer modo, fosse capaz de levantar um arquivo de aço, ainda mais naquele
estado.
Que tal a mesa de exame? Sabia que naquela câmara, como na anterior, havia uma
no meio das estantes. E daí? Não conseguiria levantá-la também. Sem falar que,
mesmo que tivesse forças para arrastar a mesa, não poderia ir muito longe. As
estantes ficavam muito juntas e as passagens entre elas eram estreitas demais.
As passagens são estreitas...
De repente, soube o que iria fazer.
Em um rompante de confiança, pôs-se de pé mais depressa do que deveria. Tonto,
estendeu a mão à procura de um ponto de apoio. Sua mão encontrou uma estante.
Parou alguns segundos, obrigando-se a poupar energia. Precisaria de toda a sua
força para fazer o que pretendia.
Encostou o corpo na estante, firmou os pés no chão e empurrou. Se conseguir
fazer a estante se inclinar... Mas ela nem se moveu. Mudou de posição e empurrou
outra vez. Seus pés escorregaram para trás. A estante rangeu, mas nem se abalou.
Precisava de uma alavanca.
Encontrou a parede de vidro de novo e pousou uma das mãos nela, correndo até o
fim da câmara. A parede do fundo surgiu de repente e ele bateu com o ombro
nela. Soltou um palavrão, contornou a prateleira e agarrou a estante na altura do
seu rosto. Em seguida, escorando um dos pés na parede de vidro atrás de si e o
outro nas prateleiras inferiores, começou a subir. Livros caíam em torno dele,
farfalhando na escuridão.
Nem se importou. O instinto de sobrevivência há muito que superara seu decoro
arquivístico. Reparou que a escuridão total afetava seu equilíbrio e fechou os
olhos, incentivando sua mente a ignorar o estímulo visual. Aos poucos foi se
deslocando com mais rapidez. Quanto mais subia, mais rarefeito ficava o ar.
Chegou com grande esforço às prateleiras do alto, pisando nos livros, procurando
apoio, puxando o corpo para cima. Então, como um alpinista que acabou de
conquistar uma plataforma de pedra, alcançou a última prateleira. Estendendo as
pernas para trás, fez seus pés andarem pela parede de vidro até seu corpo ficar
quase na horizontal.
É agora ou nunca, Robert, uma voz animou-o. Igual ao aparelho de musculação
para as pernas da academia de ginástica de Harvard.
Com um esforço sobre-humano, firmou os pés na parede atrás de si, encostou o
peito e os braços na estante e empurrou. Nada aconteceu.
Lutando para respirar, reposicionou-se e tentou de novo, esticando as pernas. A
estante mexeu-se ligeiramente, ele empurrou outra vez, a estante balançou uns
centímetros para a frente e voltou. Langdon aproveitou o balanço, inalando o que
lhe pareceu uma ausência total de oxigênio e deu novo impulso. A estante oscilou
mais um pouco.
Como um balanço, disse consigo. Mantenha o ritmo. Um pouco mais.
Langdon balançava a estante esticando mais as pernas a cada impulso. Seus
quadríceps ardiam, mas ele procurava bloquear a dor. O pêndulo estava em
movimento. Três empurrões mais, incentivou a si mesmo.
Só precisou de dois.
Houve um instante de incerteza, de ausência de peso. Depois, com uma trovoada
de livros escorregando das prateleiras, Langdon e a estante caíram para a frente.
No meio do caminho, a estante bateu na estante seguinte. Langdon segurou-se,
jogando seu peso para a frente, obrigando a segunda estante a tombar.
Um segundo de pânico imóvel e, estalando com o peso, a segunda estante
começou a inclinar-se. Langdon recomeçou a cair.
Tal e qual enormes peças de dominó, as estantes tombaram uma após a outra.
Metal chocando-se com metal, livros vindo abaixo por todos os lados, Langdon
segurou-se como pôde enquanto sua estante se inclinava como uma lingüeta de
catraca em um macaco de automóvel. Tentava calcular quantas estantes haveria
no total. Quanto pesariam? O vidro na outra extremidade da câmara era grosso...
A estante de Langdon caíra em uma posição quase horizontal quando ele ouviu o
que esperava - um tipo diferente de colisão. Longe. Do outro lado da câmara. O
choque estridente do metal no vidro. A câmara à sua volta foi sacudida e ele teve
certeza de que a última estante, derrubada pelo peso das outras, batera
violentamente no vidro, O som que se seguiu foi o menos bem-vindo que ele
ouvira até então.
Silêncio absoluto.
Não houve o ruído do vidro se despedaçando, só o baque surdo do peso das
estantes todas juntas encostando-se na parede. Langdon ficou parado em cima da
pilha dos livros, os olhos arregalados, à espera. Em algum ponto distante houve
um estalo. Langdon teria de bom grado prendido a respiração para escutar melhor
se ainda conseguisse respirar.
Um segundo. Dois...
Então, à beira da inconsciência, Langdon ouviu algo ceder, um murmúrio
propagando-se pelo vidro afora.
De repente, igual a um tiro de canhão, o vidro explodiu. A estante sobre a qual ele
estava acabou de despencar.
Como uma deliciosa chuva no deserto, estilhaços de vidro caíram tilintando no
escuro. Houve um grande silvo de sucção e o ar entrou jorrando.
Trinta segundos depois, nas Grutas do Vaticano, Vittoria estava de pé diante de
um cadáver quando o ruído eletrônico de um walkie-talkie rompeu o silêncio. A
voz alta e aguda soou arquejante.
- Aqui é Robert Langdon! Alguém está me ouvindo?
Vittoria levantou depressa a cabeça. Robert! Mal acreditava o quanto desejava
que ele estivesse ali naquela hora.
Os guardas trocaram olhares, confusos. Um deles tirou o aparelho do cinto.
- Senhor Langdon? O senhor está no canal três, O comandante está esperando
para falar com o senhor no canal um.
- Sei que ele está no canal um, droga! Não quero falar com ele. Quero falar com o
camerlengo. Agora!
Alguém o encontre para mim!
Na obscuridade dos Arquivos Secretos, Langdon encontrava-se no meio de
pedaços espatifados de vidro e tentava recuperar o fôlego. Sentiu algo quente
escorrendo em sua mão e notou que estava sangrando. A voz do camerlengo veio
de imediato, fazendo-o assustar-se.
- Aqui é o camerlengo Ventresca. O que está havendo?
Langdon apertou o botão, o coração ainda batendo forte.
- Acho que alguém tentou me matar!
Fez-se silêncio do outro lado da linha. Langdon procurou acalmar-se.
- Também sei onde vai ser o próximo assassinato.
A voz que ouviu de volta não foi a do camerlengo. Foi a do comandante Olivetti.
- Senhor Langdon. Não diga mais nenhuma palavra.
CAPÍTULO 87
O relógio de Langdon, todo lambuzado de sangue, marcava 9h41 quando ele
atravessou correndo o Pátio do Belvedere e se aproximou da fonte diante do
centro de segurança da Guarda Suíça. Sua mão parara de sangrar e agora doía
mais do que sua aparência fazia supor. Quando ele chegou, foi como se todos
tivessem chegado também ao mesmo tempo - Olivetti, Rocher, o camerlengo,
Vittoria e uma porção de guardas.
Vittoria correu para ele.
- Robert, você está machucado.
Antes que Langdon pudesse responder, Olivetti postou-se diante dele.
- Senhor Langdon, é um alívio vê-lo bem. Sinto muito pelas falhas de
comunicação nos Arquivos.
- Falhas de comunicação? - reclamou Langdon. - Você sabia muito bem...
- Foi minha culpa - adiantou-se Rocher, com ar contrito. - Não sabia que o senhor
estava nos Arquivos.
Parte de nossas zonas brancas tem ligação com aquele prédio. Estávamos
ampliando nossa busca. Fui eu quem desligou a energia elétrica. Se tivesse
sabido...
- Robert - disse Vittoria, segurando a mão ferida dele e examinando-a - o Papa foi
envenenado, Os Illuminati o mataram.
Langdon ouviu as palavras, mas não as registrou. Estava exausto. Só era capaz de
sentir o calor das mãos de Vittoria.
O camerlengo tirou um lenço de seda de sua batina e o entregou a Langdon para
que ele se limpasse. O homem não dizia nada. Seus olhos pareciam brilhar com
um novo fogo.
- Robert - insistiu Vittoria -, você disse que descobriu onde o próximo cardeal vai
ser morto?
Langdon sentia-se meio frívolo.
- Descobri, é na...
- Não - interrompeu Olivetti. - Senhor Langdon, quando lhe pedi para não dizer
mais nada no walkie-talkie, havia um motivo. - Virou-se para os guardas suíços
que os rodeavam. - Senhores, dêem-nos licença.
Os soldados desapareceram no centro de segurança. Sem qualquer indignidade.
Só submissão.
Olivetti voltou-se para o grupo que restara.
- Por mais que seja doloroso para eu dizer isto, o assassinato do nosso Papa foi um
ato perpetrado com a ajuda de alguém que vive dentro destes muros. Para o bem
de todos, não podemos confiar em mais ninguém. Até mesmo em nossos guardas.
- Ele parecia estar sofrendo ao falar aquilo.
Rocher, ansioso, disse:
- Conspiração interna, quer dizer que...
- Sim - disse Olivetti -, que a validade de sua busca está comprometida. No
entanto, é um risco que temos de correr. Continue procurando.
Rocher ia dizer alguma coisa, mas pensou melhor e foi embora.
O camerlengo respirou fundo. Ainda não dissera uma palavra sequer e Langdon
notou que havia uma nova austeridade no homem, como se tivesse chegado a um
momento decisivo.
- Comandante? - a voz do camerlengo era impenetrável. - Vou interromper o
conclave.
Olivetti apertou os lábios, obstinado.
- Não aconselho que faça isso. Ainda temos duas horas e vinte minutos.
- É quase nada.
O tom de Olivetti agora tinha um quê de desafio.
- O que pretende fazer? Tirar os cardeais do Vaticano sozinho?
- Pretendo salvar esta igreja com o poder que Deus me concedeu, seja qual for.
Como vou agir não é mais da sua conta.
Olivetti aprumou o corpo.
- O que quer que vá fazer... - ele fez uma pausa - não tenho autoridade para
impedi-lo. Principalmente depois do meu fracasso como chefe de segurança.
Peço-lhe apenas que espere. Espere vinte minutos, até depois de dez horas. Se a
informação do senhor Langdon estiver correta, ainda posso ter uma chance de
apanhar esse assassino. Existe ainda uma chance de manter o protocolo e o
decoro.
- Decoro? - o camerlengo deixou escapar uma risada abafada. - Já deixamos a
compostura para trás há muito tempo, comandante. Caso não tenha percebido, isto
é uma guerra.
Um guarda saiu do centro de segurança e falou com o camerlengo.
- Signore, acabei de receber a informação de que detivemos o repórter da BBC, o
senhor Glick..
O camerlengo fez um sinal com a cabeça e disse:
- Faça com que ele e sua cinegrafista me encontrem do lado de fora da Capela
Sistina.
Os olhos de Olivetti arregalaram-se.
- O que vai fazer?
- Vinte minutos, comandante. Só lhe dou mais vinte minutos.
E se foi.
Quando o Alpha Romeo de Olivetti saiu correndo da Cidade do Vaticano, dessa
vez não havia a fila de carros sem identificação vindo atrás dele. No banco
traseiro, Vittoria fazia um curativo na mão de Langdon, usando o material de um
estojo de primeiros-socorros que encontrara no porta-luvas.
Olivetti olhava para a frente.
- Então, senhor Langdon, para onde vamos?
CAPÍTULO 88
Mesmo com a sirene agora instalada e ligada, o carro de Olivetti não parecia ser
notado enquanto atravessava a ponte em louca disparada para o coração da cidade
velha. Todo o tráfego estava indo na direção contrária, para o Vaticano, como se
ir para a Santa Sé de uma hora para outra tivesse se tornado o programa mais
divertido de Roma.
Langdon ia sentado no banco de trás, um torvelinho de perguntas agitando-se em
sua cabeça. Pensava no assassino, se iriam pegá-lo desta vez, se ele lhes diria o
que precisavam saber, se já não seria tarde demais. Quanto tempo teriam até que o
camerlengo anunciasse ao povo na Praça de São Pedro que estavam em perigo? O
incidente nos Arquivos ainda o intrigava. Um engano.
Olivetti nem uma única vez pisou no freio enquanto ziguezagueava com o
barulhento Alpha Romeo rumo à igreja de Santa Maria della Vittoria. Langdon
sabia que em qualquer outra ocasião os nós de seus dedos estariam brancos. No
momento, porém, sentia-se anestesiado. Só a mão latejante lembrava-lhe onde
estava.
E a sirene do carro uivava acima de suas cabeças. Nada melhor para avisar a ele
que estamos chegando, pensou Langdon. Mas avançavam numa rapidez incrível.
Olivetti provavelmente desligaria a sirene quando chegassem mais perto. Com um
pouco de tempo para refletir, ele se enchia de assombro com o assassinato do
Papa, agora que afinal assimilava a notícia. A idéia era inconcebível e no entanto,
ao mesmo tempo, parecia um acontecimento bastante lógico. A infiltração sempre
havia sido a base do poder dos Illuminati - a redistribuição interna do poder. E
não era a primeira vez que assassinavam um Papa. Existiam inúmeros boatos de
traições passadas, mas, como não se fazia autópsia, nenhuma jamais fora
confirmada. Até recentemente. Alguns acadêmicos haviam obtido permissão para
radiografar a tumba do Papa Celestino V, que supostamente morrera nas mãos de
seu muito apressado sucessor, Bonifácio VIII. Os pesquisadores esperavam que os
raios X pudessem revelar algum pequeno indício de perfídia - um osso quebrado,
no máximo. Mas o que se viu foi um prego de 25 centímetros enfiado no crânio
do Papa.
Langdon também se lembrou de diversos recortes de jornal que outros estudiosos
dos Illuminati lhe haviam enviado anos atrás. A princípio, achando que se tratasse
de uma brincadeira, ele consultara os arquivos de microfichas de Harvard para
confirmar se os artigos eram mesmo autênticos. E eram. Pregara-os no seu quadro
de avisos como exemplos de como até respeitáveis órgãos de notícias podiam ser
tomados pela paranóia dos Illuminati. Naquela hora, porém, as suspeitas da mídia
pareciam-lhe bem menos paranóicas. Os textos dos artigos estavam bem claros
em sua memória...
THE BRITISH BROADCASTING CORPORATION
14 de junho de 1998
O Papa João Paulo I, que morreu em 1978, foi vítima de uma trama arquitetada
pela Loja Maçônica P2... A sociedade secreta P2 decidiu matar João Paulo I
quando soube que ele iria demitir o arcebispo norte-americano Paul Marcinkus da
presidência do Banco do Vaticano, O banco esteve implicado em nebulosos
acordos financeiros com a Loja Maçônica...
THE NEW YORK TIMES
24 de agosto de 1998
Por que o falecido João Paulo I estava na cama vestido com a camisa que usava
durante o dia? Por que a camisa estava rasgada? As perguntas não param aí.
Nenhuma investigação médica foi realizada, O cardeal Villot proibiu a autópsia
alegando que nenhum Papa fora submetido a um exame desses. E os remédios de
João Paulo I desapareceram misteriosamente de sua mesa-de-cabeceira, assim
como seus óculos, seus chinelos e seu testamento.
LONDON DAILY MAIL
27 de agosto de 1998
...uma conspiração envolvendo uma poderosa, implacável e ilegal loja maçônica
com tentáculos que chegam até o Vaticano.
O celular no bolso de Vittoria tocou, felizmente apagando aqueles pensamentos
da cabeça de Langdon.
Vittoria atendeu, sem imaginar quem poderia estar ligando para ela. Mesmo de
longe, Langdon reconheceu a voz cortante como laser que falava do outro lado.
- Vittoria? Aqui é Maximilian Kohler. Já encontraram a antimatéria?
- Max? Você está bem?
- Vi as notícias. Não fizeram referência ao CERN nem à antimatéria. Isto é bom.
O que está acontecendo?
- Ainda não localizamos o tubo. A situação aqui está bastante complicada. Robert
Langdon tem sido de grande ajuda. Conseguimos uma vantagem sobre o homem
que está assassinando os cardeais. Neste momento, estamos indo para...
- Senhorita Vetra - interrompeu Olivetti. - Já falou demais.
Ela cobriu o bocal do telefone, aborrecida.
- Comandante, ele é o presidente do CERN. Tem o direito de saber...
- Ele teria o direito - retrucou Olivetti - de estar aqui lidando com esta situação. A
senhorita está falando em uma linha aberta de celular. E já falou demais.
Vittoria suspirou.
- Max?
- Tenho uma informação para você - disse Max -, sobre seu pai... Talvez eu saiba
com quem ele falou a respeito da antimatéria.
O rosto de Vittoria anuviou-se.
- Max, meu pai disse que não contou nada a ninguém.
- Receio, Vittoria, que seu pai tenha contado tudo a alguém. Preciso verificar
alguns registros confidenciais. Volto a entrar em contato com você em breve.
E desligou.
Vittoria estava pálida quando pôs de novo o telefone no bolso.
- Você está bem? - perguntou Langdon.
Ela sacudiu a cabeça, as mãos trêmulas denunciando a mentira.
- A igreja fica na Piazza Barberini - disse Olivetti, desligando a sirene e
verificando seu relógio. - Temos nove minutos.
Assim que Langdon descobriu qual era o terceiro marco, a localização da igreja
soou-lhe conhecida, mas não conseguia associar com quê. Piazza Barberini...
Agora sabia o que era. A piazza tinha a ver com uma discutida estação de metrô.
Vinte anos antes, a construção de um terminal de metrô criara grande alvoroço
entre os historiadores de arte, que temiam que as escavações sob a Piazza
Barberini fizessem tombar um obelisco de muitas toneladas que havia no centro
da praça. Os urbanistas removeram o obelisco e o substituíram por uma pequena
fonte chamada o Tritão.
No tempo de Bernini, concluiu Langdon, a Piazza Barberini tinha um obelisco!
Qualquer dúvida que Langdon tivesse sobre a localização do terceiro marco teria
se evaporado naquele instante.
A um quarteirão da piazza, Olivetti entrou em uma viela, acelerou até o meio do
caminho e parou com uma derrapada. Tirou o paletó do uniforme, enrolou as
mangas da camisa e carregou sua arma.
- Não podemos correr o risco de vocês serem reconhecidos - disse. - Os dois
apareceram na televisão.
Quero que vão para o lado oposto da piazza, fora da vista, e observem a entrada
da frente. Vou entrar por trás. - Pegou o revólver e entregou-o a Langdon.
- Só para garantir.
Langdon franziu a testa. Era a segunda vez naquele dia que lhe davam aquela
arma. Guardou-a no bolso interno do paletó. Ao fazê-lo, reparou que ainda
carregava o fólio do Diagramma. Esquecera de deixá-lo nos Arquivos! Imaginou
o curador do Vaticano contorcendo-se em espasmos de raiva pela afronta de saber
que seu documento de valor incalculável andara de um lado para outro em Roma
como se fosse um mapa turístico. Depois, Langdon pensou na confusão de vidros
quebrados e livros espalhados que deixara para trás. O curador teria outros
problemas. Caso os arquivos durassem até o dia seguinte... Olivetti saiu do carro e
apontou para trás.
- A piazza fica para aquele lado. Fiquem de olhos bem abertos e não deixem que
ninguém os veja. - Deu um tapinha no telefone em seu cinto. - Senhorita Vetra,
vamos testar de novo nossa autodiscagem.
Vittoria tirou seu telefone do bolso e apertou o número que ela e Olivetti tinham
programado no Panteão. O telefone de Olivetti vibrou, com a campainha
desligada, no seu cinto.
O comandante disse:
- Muito bem, se virem alguma coisa, quero que me digam - e engatilhou a arma. -
Vou estar lá dentro esperando. Esse herege é meu.
Naquele mesmo momento, bem perto dali, outro telefone celular tocou.
O Hassassin atendeu.
- Fale.
- Sou eu, Janus.
O Hassassin sorriu.
- Olá, mestre.
- É possível que saibam onde você está. E saíram para tentar impedir que você aja.
- Vão chegar tarde. Já fiz os preparativos aqui.
- Ótimo. Procure escapar com vida. Ainda há trabalho para ser feito.
- Os que se atravessarem no meu caminho vão morrer.
- Eles são instruídos.
- Está falando do especialista americano?
- Sabe quem é?
O Hassassin deu uma risadinha.
- É calmo mas ingênuo. Falei com ele ao telefone algumas horas atrás. Está com
uma mulher que parece ser o oposto.
O matador sentiu-se excitado ao lembrar o temperamento fogoso da filha de
Leonardo Vetra.
Houve um silêncio momentâneo na linha, a primeira hesitação que o Hassassin
percebia em seu mestre Illuminati. Finalmente, Janus falou.
- Elimine-os se for necessário.
O matador riu.
- Considere isso feito.
Uma cálida expectativa espalhou-se por seu corpo. Embora talvez eu guarde a
mulher como recompensa.
CAPÍTULO 89
Explodira uma guerra na Praça de São Pedro.
A praça irrompera em um frenesi agressivo. Os furgões da mídia tomavam
posição cantando pneus, como se fossem veículos de assalto ocupando posições
estratégicas. Repórteres desenrolavam fios de equipamentos de última geração
com um nervosismo de soldados armando-se para uma batalha. Em toda a praça,
as redes de emissoras disputavam uma posição e corriam para levantar a mais
nova arma das guerras da mídia - os displays de tela plana.
Estes eram enormes telas de vídeo que podiam ser montadas no alto dos furgões
ou em armações portáteis. Serviam como uma espécie de anúncio de outdoor para
a rede, transmitindo a sua cobertura e ostentando o seu logotipo como um cinema
ao ar livre. Se a tela ficasse bem situada - na frente do local da ação, por exemplo
-, uma rede concorrente não poderia filmar a história sem fazer ao mesmo tempo a
propaganda da adversária.
A praça rapidamente se transformava não só em um extravagante espetáculo
multimídia, como em uma nervosa vigília pública. Chegavam pessoas de todas as
direções. Espaço em um local que habitualmente não tinha limites começava a ser
um artigo valioso. Os espectadores amontoavam-se em torno das imensas telas e
assistiam, agitados, atordoados, às reportagens ao vivo.
A apenas uns 100 metros de distância, dentro das grossas paredes da Basílica de
São Pedro, o mundo estava sereno. O tenente Chartrand e três outros guardas
andavam em meio à escuridão. Usando seus óculos infravermelhos, cruzavam a
nave movendo seus detectores de um lado para outro à sua frente. A busca nas
áreas do Vaticano abertas ao público até então não dera em nada.
- É melhor tirar os óculos aqui - disse o guarda mais velho.
Chartrand já estava fazendo isto. Aproximavam-se do Nicho dos Pálios - o local
rebaixado no centro da basílica. A luz de 99 lamparinas de óleo através do
infravermelho teria queimado os olhos deles.
Chartrand ficou satisfeito por tirar os pesados óculos e aproveitou para alongar o
pescoço enquanto desciam ao nicho para fazer a varredura daquela área. O
aposento era muito bonito, dourado e luminoso.
Ele nunca estivera ali antes.
Parecia que, desde a sua chegada na Cidade do Vaticano, todos os dias Chartrand
descobria um novo mistério daquele lugar. Aquelas lamparinas de óleo eram um
deles. Exatamente 99, acesas permanentemente. Era a tradição. Os sacerdotes,
vigilantes, enchiam as lamparinas com os óleos sagrados de modo que nenhuma
se apagasse. Dizia-se que queimariam até o fim dos tempos.
Ou no mínimo até a meia-noite de hoje, pensou Chartrand, com a boca seca de
novo.
Chartrand passou seu detector sobre as lamparinas de óleo. Nada escondido ali.
Não se surpreendeu. O tubo, de acordo com a imagem do vídeo, estava escondido
em uma área escura.
Andando pelo nicho, chegou a uma grade que cobria uma abertura no chão. A
abertura levava a uma escada íngreme e estreita que descia em linha reta. Ouvira
histórias sobre o que havia lá embaixo. Ainda bem que não teriam de descer. As
ordens de Rocher tinham sido bem claras. Procurem apenas nas áreas abertas ao
acesso do público.
- Que cheiro é esse? - perguntou, afastando-se da grade. Havia um perfume muito
forte e doce no ar.
- Vem das lamparinas - um deles explicou.
Chartrand surpreendeu-se.
- Cheira mais a colônia do que a querosene.
- Não é querosene. Essas lamparinas estão próximas ao altar do Papa, de modo
que se usa nelas uma mistura especial: etanol, açúcar, butano e perfume.
- Butano? - Chartrand olhou para as lamparinas, apreensivo.
O guarda confirmou.
- Cuidado para não entornar nenhuma delas. A mistura tem cheiro de água-decolônia,
mas queima como fogo.
Os guardas haviam terminado a busca no Nicho dos Pálios e estavam andando
pela basílica quando seus walkie-talkies começaram a funcionar juntos. Era um
alerta geral. Os guardas pararam para escutar, pasmos.
Pelo jeito, teriam surgido novos transtornos que não podiam ser transmitidos
pelos aparelhos, mas o camerlengo resolvera quebrar a tradição e entrar no
conclave para falar com os cardeais. Nunca antes na História isto havia
acontecido. Mas também, concluiu Chartrand, nunca antes o Vaticano estivera sob
a ameaça de algo parecido com uma ogiva nuclear neotérica.
O que tranqüilizava Chartrand era saber que o camerlengo estava assumindo o
controle. Ele era a pessoa dentro do Vaticano a quem Chartrand mais respeitava.
Alguns dos guardas consideravam-no um beato - um fanático religioso cujo amor
a Deus beirava a obsessão -, mas até eles concordavam que, quando se tratava de
combater os inimigos de Deus, o camerlengo era o homem certo para entrar na
briga e jogar duro.
A Guarda Suíça tivera muito contato com o camerlengo naquela semana de
preparação do conclave e todos tinham comentado que o homem parecia meio
ríspido, os olhos verdes mais intensos do que de costume. Não era à toa, diziam.
Ele era o responsável por todo o planejamento do conclave e ainda por cima tinha
de providenciar tudo aquilo logo depois da perda de seu mentor, o Papa. Havia
poucos meses que Chartrand estava no Vaticano quando ouvira a história da
bomba que matara a mãe do camerlengo na frente do menino. Uma bomba na
igreja e agora está acontecendo tudo de novo.
Infelizmente, as autoridades nunca prenderam os desgraçados que instalaram a tal
bomba, provavelmente algum grupo extremista anticristão, disseram, e o caso
caíra no esquecimento. Talvez fosse por isso que o camerlengo não gostava de
apatia.
Uns dois meses antes, em uma tarde sossegada, Chartrand cruzara com o
camerlengo vindo por um dos caminhos que cortavam a Cidade do Vaticano.
O sacerdote reconhecera Chartrand como um dos novos guardas e convidara-o
para acompanhá-lo em um passeio a pé. Não conversaram sobre nenhum assunto
em especial, mas o camerlengo fez Chartrand sentir-se imediatamente à vontade.
- Padre - disse Chartrand -, posso lhe fazer uma pergunta esquisita?
O camerlengo sorriu.
- Só se eu puder lhe dar uma resposta esquisita.
Chartrand achou graça.
- Já perguntei isto a todos os padres que conheço e continuo não entendendo.
- O que é que você não entende?
O camerlengo ia na frente em passos rápidos, o pé levantando a ponta da batina
quando ele andava. Os sapatos eram pretos, de sola crepe, e combinavam com ele,
pensou Chartrand, como se refletissem a essência do homem: moderno mas
modesto e mostrando sinais de desgaste.
Chartrand respirou fundo.
- Não entendo o que vem a ser uma onipotência benevolente.
O camerlengo sorriu.
- Você anda lendo a Sagrada Escritura.
- Eu tento.
- E está confuso porque a Bíblia define Deus como uma divindade onipotente e
benevolente.
- Exato.
- Onipotente e benevolente significa apenas que Deus é todo-poderoso e bemintencionado.
- Compreendo o conceito. É que parece haver uma contradição aí.
- Sim. A contradição é a dor. A fome, as guerras, as doenças.
- Exatamente! - Chartrand sabia que o camerlengo compreenderia. - Coisas
terríveis acontecem neste mundo. A tragédia humana é como uma prova de que
Deus não pode ser simultaneamente todo-poderoso e bem-intencionado. Se Ele
nos ama e tem o poder de mudar nossa situação, Ele deveria também evitar nossas
dores, não é?
- Deveria mesmo? - perguntou o camerlengo.
Chartrand ficou embaraçado. Teria passado dos limites? Será que se tratava de
uma daquelas perguntas religiosas que não se devia fazer?
- Bem, se Deus nos ama, se é capaz de nos proteger, Ele deveria, sim.
Parece que Ele é onipotente e indiferente ou, ao contrário, benevolente e incapaz
de nos ajudar.
- Tem filhos, tenente?
Chartrand enrubesceu.
- Não, signore.
- Imagine se tivesse um filho de oito anos. Você o amaria?
- Claro.
- E faria tudo o que pudesse para evitar que ele sofresse na vida?
- Claro que sim.
- E deixaria que ele andasse de skate?
Chartrand estacou, admirado. O camerlengo parecia singularmente "por dentro"
para um sacerdote.
- Sim, acho que sim - disse Chartrand. - Com certeza deixaria que andasse de
skate, mas diria a ele para ter cuidado.
- Quer dizer que, como pai desse menino, você lhe daria uns bons conselhos
básicos e deixaria que saísse e cometesse seus próprios erros?
- Eu não correria atrás dele para mimá-lo, se é o que o senhor quer dizer.
- E se ele caísse e ralasse o joelho?
- Ele aprenderia a ser mais cuidadoso.
O camerlengo sorriu de novo.
- Então, quer dizer que, mesmo tendo o poder de interferir e evitar que seu filho
sentisse dor, você optaria por demonstrar seu amor deixando-o aprender suas
próprias lições?
- Claro, a dor é parte do crescimento. É como aprendemos.
O camerlengo sacudiu a cabeça.
- Exatamente.
CAPÍTULO 90
Langdon e Vittoria observavam a Piazza Barberini das sombras de uma viela. A
igreja ficava do lado oposto ao local onde se encontravam, a cúpula enevoada
emergindo de um vago aglomerado de construções do outro lado da praça. A noite
trouxera consigo um frescor agradável e Langdon não esperava encontrar a praça
tão deserta. Acima deles, pelas janelas abertas, o som das televisões ligadas
lembrou-lhe onde estavam as pessoas todas.
- . . .o Vaticano ainda não se pronunciou . . . assassinos Illuminati de dois cardeais
. . .presença satânica em Roma . . .especulações sobre maior infiltração...
As notícias se espalhavam como o incêndio de Nero. Roma inteira estava
siderada, assim como o resto do mundo. Langdon pensava se de fato eles seriam
capazes de interromper o percurso daquele trem descontrolado.
Examinando a praça enquanto esperava, ele notou que, apesar da invasão de
edifícios modernos, a piazza ainda era notavelmente elíptica. No alto, como uma
espécie de moderno sacrário para um herói do passado, um enorme letreiro de
néon piscava no teto de um hotel de luxo. Vittoria já o havia mostrado a Langdon.
O letreiro parecia sinistramente adequado.
HOTEL BERNINI
- Cinco para as dez - disse Vittoria, seus olhos felinos percorrendo vivamente a
praça.
Mal tinha acabado de falar, agarrou o braço de Langdon e puxou-o para trás,
escondendo-os na escuridão.
Fez um gesto em direção ao meio da praça.
Langdon acompanhou o gesto dela. Quando viu o que apontava, ele ficou tenso.
Atravessando a praça sob a luz de um poste, surgiram duas figuras sombrias.
Ambas usavam capas e as cabeças vinham cobertas por xales negros, o acessório
tradicional das viúvas católicas. Poderiam ser mulheres, mas à noite não dava para
se ter certeza. Um dos vultos parecia mais velho e movia-se como se sentisse dor,
curvado, O outro, mais alto e forte, ajudava-o.
- Passe o revólver - disse Vittoria.
- Você não pode ir...
Ágil como um gato, ela pôs a mão no bolso dele e pegou mais uma vez a arma. O
metal do revólver cintilou.
Então, em silêncio absoluto, como se seus pés nem tocassem as pedras do
calçamento, ela rodeou a praça pela esquerda, sempre no escuro, para se
aproximar da dupla pelas costas. Langdon ficou paralisado ao vê-la desaparecer.
Depois, praguejando em voz baixa, saiu atrás dela.
A dupla avançava devagar e bastou meio minuto para Langdon e Vittoria
postarem-se atrás deles e irem se aproximando aos poucos. Vittoria escondeu o
revólver sob os braços cruzados displicentemente, fora da vista mas acessível em
um instante. À medida que o espaço entre eles diminuía, ela dava a impressão de
flutuar cada vez mais depressa, e Langdon se esforçava para acompanhá-la.
Quando o sapato dele esbarrou em uma pedra que saiu quicando, Vittoria
fulminou-o com um olhar de soslaio. Os dois vultos não escutaram, porém.
Estavam falando.
A uns dez metros de distância, Langdon começou a ouvir suas vozes. Mas não
distinguiu nenhuma palavra. Só leves murmúrios. Ao lado dele, Vittoria andava
mais rápido a cada passada, com os braços mais soltos e o revólver começando a
aparecer. Seis metros. As vozes ficaram mais nítidas - uma delas muito mais alta
do que a outra. Zangada. Reclamando. Parecia a voz de uma mulher idosa. Rouca.
Andrógina. Tentou ouvir o que ela dizia quando uma outra voz cortou o silêncio
da noite.
- Mi scusi! - o tom amistoso de Vittoria acendeu a praça como um holofote.
Langdon retesou-se ao ver o par embrulhado em suas capas parar de repente e
começar a virar. Vittoria continuava a andar na direção das duas pessoas mais
depressa ainda, em rota de colisão. De trás, Langdon viu os braços dela se
soltarem, a mão surgir e o revólver balançar para a frente. Depois, por cima do
ombro dela, enxergou um rosto iluminado pela luz do poste de rua. O pânico fez
suas pernas agirem e ele se precipitou para diante.
- Vittoria, não!
Vittoria, contudo, parecia estar uma fração de segundo à frente dele. Em um
movimento tão ligeiro quanto natural, ela levantou os braços de novo fazendo
desaparecer o revólver enquanto cingia o próprio corpo, como fazem as mulheres
em uma noite fria. Langdon chegou tropeçando ao lado dela, quase se chocando
com a dupla encasacada.
- Buona sera - disse Vittoria, abruptamente, a voz meio alterada por causa do
recuo.
Langdon suspirou aliviado. Duas senhoras idosas olhavam sérias para eles sob
seus xales. Uma era tão velha que a muito custo se mantinha de pé. A outra
amparava-a. Ambas seguravam rosários. Pareciam espantadas com a súbita
abordagem.
Vittoria sorriu, embora com expressão abalada.
- Dov'è la chiesa Santa Maria della Vittoria? Onde é a igreja de...
As duas apontaram juntas a silhueta maciça de um prédio na rua inclinada de onde
haviam saído.
- É lá.
- Grazie - disse Langdon, pondo as mãos nos ombros de Vittoria e puxando-a de
leve para trás. Era inacreditável, mas quase tinham atacado duas senhoras de
idade.
- Non si puó entrare - preveniu uma das senhoras. - É chiusa temprano.
- Fechou mais cedo? - perguntou Vittoria, espantada. - Perchè?
Ambas explicaram ao mesmo tempo. Zangadíssimas. Langdon só entendeu parte
das palavras resmungadas em italiano. Aparentemente, 15 minutos antes, as duas
estavam na igreja rezando pelo Vaticano, que se encontrava naquela situação
difícil, quando um homem aparecera e dissera que a igreja iria ser fechada mais
cedo.
- Hanno conosciuto l'uomo?- indagou Vittoria, nervosa. - Conheciam o homem?
As mulheres sacudiram a cabeça. O homem era um straniero crudo, completaram,
e tinha obrigado todos que se encontravam lá dentro a sair, até o jovem padre e o
zelador, que disseram que iriam chamar a polícia. Mas o intruso limitara-se a rir e
lhes dissera para recomendar à polícia que não se esquecesse de trazer câmeras.
Câmeras?, repetiu Langdon mentalmente.
Irritadas, as mulheres chamaram o homem de bar-àrabo e continuaram seu
caminho.
- Bar-àrabo? - Langdon perguntou a Vittoria. - Um bárbaro?
Vittoria enrijeceu-se de repente.
- Não. Bar-àrabo é um trocadilho pejorativo. Significa Àrabo, árabe.
Langdon sentiu um arrepio e virou-se para a igreja. Ao fazê-lo, divisou algo
através dos vitrais. A imagem encheu-o de pavor.
Sem reparar, Vittoria pegou seu celular e apertou o botão combinado para a
autodiscagem.
- Vou avisar Olivetti.
Sem fala, Langdon tocou no braço dela. Com a mão trêmula, apontou para a
igreja.
Vittoria prendeu a respiração.
Dentro da igreja, fulgurantes como pupilas diabólicas através do vidro colorido,
reluziam os clarões das primeiras chamas de um incêndio.
CAPÍTULO 91
Langdon e Vittoria correram para a entrada principal da igreja de Santa Maria
deila Vittoria e encontraram a porta de madeira trancada. Vittoria disparou três
tiros na fechadura antiga e arrebentou-a. A igreja não possuía átrio, de modo que
o santuário inteiro se abriu à vista em toda a sua extensão quando os dois
escancararam a porta. Deram com uma cena tão inesperada, tão bizarra, que
Langdon teve de fechar e abrir os olhos para assimilá-la por inteiro.
A igreja era toda de um profuso estilo barroco, com paredes e altares dourados.
Bem no meio do santuário, sob a cúpula principal, os bancos de madeira haviam
sido empilhados e incendiados, formando uma espécie de pira funerária épica.
Uma fogueira acesa lançando suas labaredas para o domo. Quando Langdon
acompanhou com o olhar aquele inferno, o indizível horror do espetáculo
completo desceu sobre ele como uma ave de rapina.
Do alto, dos lados direito e esquerdo do teto, pendiam dois cabos de incensórios -
cordões usados para balançar recipientes com incenso acima da congregação.
Nesses cordões, porém, não havia agora nenhum incensório pendurado. Nem os
cordões estavam balançando. Haviam sido usados para outra finalidade...
Suspenso pelos cordões havia um ser humano. Um homem despido. Cada um de
seus pulsos fora amarrado a um dos cordões e ele fora içado e esticado quase ao
ponto de ser partido ao meio. Seus braços estavam abertos como se tivesse sido
pregado em uma cruz invisível que pairasse no ar na casa de Deus.
Paralisado, Langdon olhava para cima. No momento seguinte, presenciou a
crueldade final. O velho estava vivo e mexeu a cabeça. Um par de olhos
aterrorizados voltou-se para baixo em uma súplica silenciosa por ajuda. No peito
do homem, o desenho da queimadura. Ele fora marcado a fogo. Langdon não
conseguia ver com nitidez, mas não tinha dúvidas sobre o que estava escrito. As
labaredas cresceram e lamberam os pés da vítima, que gritou de dor, o corpo
tremendo.
Movido por uma força inexplicável, Langdon sentiu seu corpo entrar em
movimento e sair correndo pela nave central na direção do fogo. Seus pulmões
encheram-se de fumaça ao chegar mais perto. A três metros da fogueira, a toda
velocidade, ele se chocou com uma parede de calor. A pele de seu rosto ficou
chamuscada e ele caiu para trás, protegendo os olhos com os braços, o corpo
batendo com força no chão de mármore. Levantou-se cambaleando e tentou
avançar outra vez, as mãos erguidas na frente do rosto.
Mas o calor era intenso demais.
Retrocedeu e esquadrinhou as paredes da igreja. Uma tapeçaria pesada, pensou.
Se de algum modo eu conseguir abafar o fogo... Mas sabia que seria impossível
encontrar uma tapeçaria ali. Isto é uma igreja barroca, Robert, não é um castelo
alemão! Pense! Obrigou-se a olhar de novo para o homem pendurado.
No alto, um torvelinho de fumaça e chamas agitava-se na cúpula. Os cordões de
incensórios que prendiam os punhos do homem subiam para o teto, passavam por
roldanas e desciam novamente até duas braçadeiras de metal colocadas em cada
uma das paredes laterais da igreja. Langdon examinou uma das braçadeiras.
Ficava no alto da parede, mas se ele a alcançasse e afrouxasse um dos cordões, a
tensão diminuiria e o corpo do homem balançaria, afastando-se bastante do fogo.
As chamas aumentaram repentinamente e Langdon ouviu um grito lancinante
vindo de cima. A pele dos pés do cardeal cobrira-se de bolhas. Ele estava sendo
assado vivo. Langdon concentrou-se na braçadeira e precipitou-se para ela.
No fundo da igreja, Vittoria segurou-se com força no encosto de um dos bancos
tentando recuperar-se. A imagem no alto era medonha. Virou o rosto.
Faça alguma coisa! Queria saber onde estava Olivetti. Teria encontrado o
Hassassin? Será que o pegara? Onde estariam eles agora? Andou na direção de
Langdon para ajudá-lo, mas um som a fez parar.
O estalar das labaredas fazia cada vez mais barulho, mas havia também um
segundo som cortando o ar.
Uma vibração metálica. Perto. A pulsação repetitiva parecia vir da extremidade do
banco à sua esquerda.
Era uma trepidação seca, como o toque de um telefone, mas dura, pétrea. Ela
segurou o revólver com firmeza e caminhou ao longo da fileira de bancos. O som
ficou mais alto. Soava e parava. Uma vibração recorrente.
Ao chegar no fim da passagem, percebeu que o som vinha do chão, atrás do
último banco. Quando avançou com o revólver na mão direita levantada, notou
que também segurava algo na mão esquerda - seu telefone celular. Com toda
aquela tensão, esquecera que o usara lá fora para discar para o comandante,
acionando a vibração silenciosa do telefone dele, o aviso combinado. Vittoria
colocou seu telefone no ouvido. Ainda estava tocando. O comandante não chegara
a atender. Súbito, com um medo crescente, achou que sabia o que estava
produzindo aquele ruído. Deu mais um passo, trêmula.
A igreja pareceu afundar sob seus pés quando se deparou com a forma sem vida
no chão. Nenhum líquido fluía do corpo. Nenhum sinal de violência marcava a
carne. Havia somente a terrível geometria da cabeça do comandante virada para
trás, torcida 180 graus na direção errada. Vittoria lutou contra a lembrança do
corpo mutilado de seu próprio pai.
O telefone no cinto do comandante estava encostado no chão, vibrando sem parar
de encontro ao mármore frio. Vittoria desligou o seu e o ruído cessou. No
silêncio, ela escutou um outro som. A respiração de alguém nas sombras atrás
dela.

Nenhum comentário:

Postar um comentário