quinta-feira, 12 de agosto de 2010

DIAGRAMMA DELLA VERITÀ
Galileo Galilei, 1639
Langdon caiu de joelhos, o coração batendo acelerado.
- Diagramma. - Deu um sorriso largo para ela. - Bom trabalho. Agora me ajude a
tirar essa caixa daí.
Vittoria ajoelhou-se ao lado dele e os dois puxaram a caixa. A bandeja de metal
sobre a qual estava colocada deslizou, movida por rodízios, e deixou à mostra a
parte superior da caixa.
- Sem cadeado? - disse Vittoria, surpresa por só haver um fecho simples.
- Nunca. Às vezes existe a necessidade de se remover os documentos com
rapidez, como no caso de incêndios ou enchentes.
- Então, abra-o.
Langdon não precisou de uma segunda ordem. Com o sonho de sua vida
acadêmica bem ali na frente e o ar da câmara cada vez mais rarefeito, ele não
titubeou. Abriu o fecho e levantou a tampa. Dentro, no fundo, havia uma bolsa de
pano preto. A capacidade de ventilação do tecido da bolsa era crucial para a
preservação de seu conteúdo. Estendendo as duas mãos e mantendo a bolsa na
horizontal, Langdon tirou-a de dentro da caixa.
- Pensei que fôssemos encontrar um baú do tesouro - disse Vittoria -, mas isso aí
parece mais uma fronha.
- Venha comigo - disse ele.
Segurando a bolsa com os braços estendidos como se fosse uma oferenda sagrada,
Langdon se encaminhou para o centro da câmara, onde encontrou a costumeira
mesa de tampo de vidro especial para examinar documentos. A localização central
da mesa tinha como objetivo diminuir ao máximo o deslocamento dos
documentos, mas os pesquisadores gostavam da privacidade proporcionada pelas
estantes ao redor. Nas câmaras mais importantes do mundo faziam-se descobertas
que definiam carreiras, e os pesquisadores não gostavam que os rivais
bisbilhotassem através do vidro enquanto eles trabalhavam.
Langdon pousou a bolsa de pano na mesa e desabotoou-a. Vittoria postou-se de pé
a seu lado. Remexendo em uma bandeja que continha instrumentos de arquivista,
Langdon pegou uma tenaz com as pontas revestidas de feltro, grandes pinças com
discos achatados no final de cada haste. À medida que sua excitação aumentava,
receava acordar a qualquer momento em Cambridge diante de uma pilha de
provas para corrigir. Respirando fundo, abriu a bolsa de pano. Com os dedos
trêmulos nas luvas de algodão, introduziu a pinça na bolsa.
- Relaxe - disse Vittoria. - Não é plutônio, é papel.
Langdon fez as hastes da pinça deslizarem em torno da pilha de documentos
dentro da bolsa e teve o cuidado de aplicar pressão idêntica nos dois lados. Em
seguida, ao invés de puxar o documento, ele o manteve no lugar e puxou a bolsa -
um procedimento empregado pelos arquivistas para reduzir ao mínimo a força de
torção sobre o material. Só depois de remover a bolsa e acender a luz especial de
exame sob a mesa é que ele voltou a respirar normalmente.
Vittoria parecia um espectro, iluminada de baixo para cima pela luz da mesa de
vidro.
- Folhas pequenas - disse ela, a voz reverente.
Langdon concordou com um gesto de cabeça. A pilha de fólios diante deles era
como as páginas soltas de um pequeno livro de bolso. A primeira folha era uma
capa desenhada a bico-de-pena com o título, a data e o nome de Galileu escritos
de próprio punho.
Naquele instante, Langdon esqueceu o espaço exíguo, esqueceu sua exaustão e a
situação horrível que o levara até ali. Apenas contemplou o livro, extasiado. O
contato direto com a História sempre deixava Langdon entorpecido de tanta
reverência, era como estar vendo de perto as pinceladas na Mona Lisa.
O papiro esmaecido, amarelado, não deixava em Langdon qualquer dúvida quanto
à sua idade e autenticidade, mas, exceto pelo inevitável desbotamento, estava em
excelente estado. Pigmento ligeiramente descolorido. Pequenas falhas na coesão
do papiro. Mas, de modo geral, em ótimas condições. Ele examinou o desenho
decorativo da capa, feito à mão, sua vista já se embaçando por causa da falta de
umidade. Vittoria mantinha-se em silêncio.
- Passe-me a espátula, por favor - Langdon apontou para uma bandeja ao lado de
Vittoria, cheia de instrumentos em aço inoxidável especiais para uso em arquivos.
Ela entregou-lhe a espátula. Langdon pegou-a e viu que era uma espátula de boa
qualidade. Correu os dedos pela lâmina para remover qualquer estática possível e,
em seguida, com o maior cuidado, fez a lâmina deslizar sob a capa. Levantou a
espátula e abriu o livro.
A primeira página era escrita à mão com uma caligrafia minúscula, estilizada,
quase impossível de ler. Langdon logo percebeu que não havia diagramas nem
números na página. Tratava-se de um ensaio.
- Sistema heliocêntrico - disse Vittoria, traduzindo o cabeçalho no Fólio 1.
Ela correu os olhos pelo texto.
- Parece que Galileu está renunciando ao modelo geocêntrico de uma vez por
todas. Mas é italiano antigo, portanto não posso garantir nada sobre a tradução.
- Esqueça - disse Langdon. - Estamos procurando matemática. A linguagem pura.
E usou a espátula para virar a página seguinte. Outro ensaio. Nada de matemática
ou diagramas. As mãos de Langdon começaram a suar dentro das luvas.
- Movimento dos Planetas - disse Vittoria, traduzindo o título.
Langdon fechou a cara. Em qualquer outra ocasião, teria ficado fascinado com
aquela leitura. Por incrível que pareça, o modelo atual da NASA de órbitas
planetárias, observado através de telescópios de última geração, era quase idêntico
ao das previsões originais de Galileu.
- Nada de matemática - declarou Vittoria. - Ele está falando aqui sobre
movimentos retrógrados e órbitas elípticas, ou algo assim.
Órbitas elípticas. Langdon lembrou que grande parte dos problemas de Galileu
com a Justiça começaram quando ele afirmou que o movimento dos planetas era
elíptico. O Vaticano exaltava a perfeição do círculo e insistia que o movimento
celeste deveria ser somente circular. Os Illuminati de Galileu, entretanto, também
viam perfeição na elipse, reverenciando a dualidade matemática de seus dois
focos iguais. No mundo atual, a elipse dos Illuminati ainda era encontrável nas
modernas pranchetas de desenho dos maçons e nos projetos dos alicerces dos seus
prédios.
- Próxima - disse Vittoria. - Langdon virou a página.
- Fases lunares e movimentos das marés - disse ela. - Não tem números nem
diagramas.
Ele virou mais uma página. Nada. Continuou virando páginas, umas dez ou mais.
Nada. Nada. Nada.
- Pensei que ele fosse matemático - disse Vittoria. - Aqui só tem texto.
Langdon sentiu o ar em seus pulmões começando a rarear. Suas esperanças
também estavam menos densas. A pilha de folhas diminuía.
- Nada aqui - disse Vittoria. - Matemática nenhuma. Umas poucas datas, um ou
outro número-padrão, mas nada que pudesse ser uma pista.
Langdon virou o último conjunto de folhas e suspirou. Era também um ensaio.
- Livro pequeno - disse Vittoria, de cara fechada.
Langdon fez que sim com a cabeça.
- Merda, como se diz em Roma.
É mesmo uma merda, pensou Langdon. Seu reflexo no vidro parecia zombar dele,
como a imagem de si mesmo que vira na janela de sua casa naquela manhã. Um
fantasma envelhecido.
- Tem de haver alguma coisa - disse ele, o desespero rouco em sua voz
espantando-o. - O segno está aí em algum lugar. Tenho certeza!
- Quem sabe você se enganou sobre o DIII?
Langdon lançou-lhe um olhar duro.
- Tudo bem - concordou ela. - DIII faz sentido. Mas e se a pista não for
matemática?
- Língua pura. O que mais poderia ser?
- Arte?
- Não há diagramas nem ilustrações no livro. Tudo o que sei é que língua pura se
refere a algo que não é italiano. Matemática seria a resposta lógica.
- Também acho.
Langdon recusava-se a admitir a derrota tão depressa.
- Os números podem estar escritos por extenso. A matemática deve estar em
palavras em vez de em equações.
- Vai levar algum tempo ler todas as páginas.
- Não temos tempo. Vamos ter de dividir o trabalho. - Langdon virou a pilha de
folhas e voltou para a primeira página. - Sei italiano o suficiente para localizar
números. - Usando a espátula, dividiu a pilha como se fosse um baralho de cartas
e depositou as primeiras seis diante de Vittoria. - Está aí, tenho certeza.
Vittoria estendeu a mão e virou a primeira página com a mão.
- Espátula! - exclamou Langdon, pegando uma outra ferramenta na bandeja. - Use
a espátula.
- Estou usando luvas - resmungou ela. - Que estrago poderia fazer?
- Não discuta, use a espátula.
Vittoria obedeceu.
- Está sentindo o mesmo que eu?
- Tensão?
- Não, falta de ar.
Langdon também sentia, inegavelmente. O ar ia ficando muito rarefeito mais
depressa do que ele imaginara. Sabia que tinham de se apressar. Tentar desvendar
enigmas dentro de arquivos não era novidade para ele, mas em geral tinha mais do
que uns poucos minutos para trabalhar neles. Sem falar, inclinou a cabeça e
começou a traduzir a primeira página de sua pilha.
Apareça, droga! Apareça!
CAPÍTULO 53
Em algum ponto de Roma, uma figura sombria esgueirou-se por uma rampa de
pedra para o túnel subterrâneo. O antigo corredor estava iluminado apenas por
tochas acesas, o que tornava o ar pesado e quente. Ao longe, vozes assustadas de
homens chamavam em vão, ecoando nos espaços fechados. Ao dobrar uma
esquina ele os viu, exatamente como os havia deixado - quatro velhos apavorados
atrás das barras de ferro enferrujado de um cubículo de pedra.
- Qui êtez-vous?- perguntou um dos homens, em francês. - O que quer de nós?
- Hilfe! - disse outro, em alemão. - Deixe-nos ir embora!
- Tem noção de quem somos nós? - perguntou outro ainda, em inglês com sotaque
espanhol.
- Silêncio - ordenou a voz áspera. Havia um tom de inevitabilidade na palavra.
O quarto prisioneiro, um italiano calado e pensativo, vislumbrou o vazio negro do
olhar de seu captor.
Seria capaz de jurar que enxergou o inferno lá dentro. Que Deus nos ajude,
pensou.
O matador olhou o relógio e depois voltou-se para os prisioneiros.
- E agora - disse ele -, quem vai ser o primeiro?
CAPÍTULO 54
Nos Arquivos do Vaticano, dentro da Câmara 10, Robert Langdon recitava
números em italiano enquanto examinava superficialmente o manuscrito diante de
si. Milie, centi, uno, duo, ter, cincuanta. Preciso de uma referência numérica!
Qualquer uma, droga!
Quando chegou ao final do fólio que estava lendo, apanhou a espátula para virar
as páginas. Ao alinhar a lâmina com a página seguinte, fez um movimento
desajeitado, encontrando dificuldade para segurar a espátula com firmeza.
Minutos depois, percebeu que abandonara a espátula e estava virando as páginas
com a mão. Opa, disse para si mesmo, sentindo-se quase um criminoso. A falta de
oxigênio estava afetando suas inibições. Pelo jeito, vou acabar queimando no
inferno dos arquivistas.
- Até que enfim - disse Vittoria, meio sufocada, vendo-o virar as páginas com a
mão. Largou e espátula e imitou-o.
- Encontrou alguma coisa?
Vittoria sacudiu a cabeça.
- Nada que seja puramente matemático. Estou lendo por alto, mas não vejo nada
que pareça uma pista.
Langdon continuou traduzindo seus fólios com dificuldade cada vez maior. Seus
conhecimentos de italiano eram, na melhor das hipóteses, apenas claudicantes, e a
letra miúda e a linguagem arcaica o faziam avançar lentamente. Vittoria chegou
antes dele ao fim de sua pilha e, desanimada, folheou as páginas outra vez.
Debruçou-se sobre elas para uma inspeção mais intensa. Quando Langdon
terminou, praguejou em voz baixa e olhou para Vittoria. Ela estava curvada
tentando enxergar melhor algo em um de seus fólios.
- O que é? - perguntou.
Ela não levantou a cabeça.
- Suas páginas tinham alguma nota de rodapé?
- Não que eu percebesse. Por quê?
- Esta página tem uma. Está meio escondida em uma ruga do papel.
Langdon tentou ver o que ela estava examinando, mas só conseguiu distinguir um
número de página no alto da margem direita da folha. Fólio 5. Levou um
momento para registrar a coincidência e, mesmo assim, a associação de idéias lhe
parecia vaga. Fólio 5. Cinco, Pitágoras, pentagramas, Illuminati. Langdon
especulava se os Illuminati teriam escolhido a página cinco para esconder sua
pista. Através da névoa avermelhada que os envolvia, ele vislumbrou um
pequenino raio de esperança.
- A nota de rodapé tem alguma relação com matemática?
Vittoria fez que não com a cabeça.
- Texto. Uma linha só. Letra muito pequena, quase ilegível.
As esperanças dele se esvaíram.
- Deveria ser matemática. Língua pura.
- É, eu sei - ela hesitou. - Mas acho que você vai querer ouvir isto.
Havia uma certa excitação na voz dela.
- Diga logo.
Apertando os olhos junto ao fólio, Vittoria leu a frase.
- "O caminho da luz está preparado, o teste sagrado."
As palavras não eram o que Langdon tinha imaginado.
- O que foi que disse?
Vittoria repetiu.
- "O caminho da luz está preparado, o teste sagrado."
- Caminho da luz? - Langdon sentiu suas costas se endireitarem.
- É o que está escrito aqui. Caminho da luz.
À medida que ele assimilava as palavras, um lampejo de clareza penetrava o seu
delírio, O caminho da luz está preparado, o teste sagrado. Não tinha idéia de como
a frase podia ajudá-los, mas o fato é que era uma referência mais do que direta ao
Caminho da Iluminação. O caminho da luz. O teste sagrado. A cabeça dele fazia
um esforço semelhante ao de um motor alimentado com gasolina de má qualidade
e que está tentando pegar.
- Tem certeza de que a tradução está correta?
Ela ficou indecisa.
- Na verdade - ela lhe lançou um olhar estranho -, não é tecnicamente uma
tradução. A frase está escrita em inglês.
Por um instante, ele pensou que a acústica da câmara tivesse afetado sua audição.
- Em inglês?!
Vittoria empurrou o documento para ele e Langdon leu as letrinhas diminutas no
pé da página:
- The path of light is laid, the sacred test. Em inglês! Por que em inglês em um
livro italiano?
Vittoria deu de ombros. Ela também parecia um tanto embriagada.
- Quem sabe é o que eles chamavam de língua pura? É considerada a língua
internacional da ciência. Só falamos inglês no CERN.
- Mas isso foi em 1600 - argumentou Langdon. - Ninguém falava inglês na Itália,
nem o... - ele parou, percebendo o que ia dizer. - Nem o clero. - A mente
acadêmica de Langdon funcionava agora a todo vapor. - No século XVII -
continuou ele, falando agora mais depressa-, o inglês era uma língua que o
Vaticano ainda não adotava. Eles usavam o italiano, o latim, o alemão, até o
espanhol e o francês, mas o inglês era uma língua totalmente estrangeira dentro do
Vaticano. Consideravam-na uma língua corrompida de livres-pensadores, que
servia para profanos como Chaucer e Shakespeare. - Ocorreu-lhe de repente a
questão das marcas a fogo dos Illuminati, Terra, Ar, Fogo e Água. A lenda de que
as marcas eram em inglês agora fazia sentido, um sentido bizarro.
- Quer dizer que talvez Galileu considerasse o inglês la lingua pura porque era a
única língua que o Vaticano não controlava?
- É isso mesmo. Ou, talvez, ao redigir a pista em inglês, Galileu estivesse
sutilmente restringindo a leitura, excluindo o Vaticano.
- Mas nem chega a ser uma pista - objetou ela. - O caminho da luz está preparado,
o teste sagrado? Que diabos quer dizer isto?
Ela tem razão, pensou Langdon. A frase não ajudava nada. No entanto, repetindoa
em sua mente, um estranho fato ocorreu-lhe. Ora, não é interessante? Será que
existe alguma possibilidade aí?
- Temos de sair daqui - disse Vittoria, a voz enrouquecida.
Langdon não escutou. The path of light is laid, the sacred test.
- É um pentâmetro iâmbico! - exclamou, contando as sílabas outra vez.
- Cinco dísticos de silabas agudas e breves alternadas.
Vittoria parecia perdida.
- Pentâmetro o quê?
E súbito Langdon estava de volta à Academia Phillips Exeter, em uma aula de
inglês de um sábado de manhã. Um verdadeiro inferno na Terra. A estrela do
beisebol da escola, Peter Greer, estava tendo dificuldades para lembrar o número
de dísticos de um verso pentâmetro iâmbico de Shakespeare. O professor, um
animado mestre chamado Bisseli, pulou para cima da mesa e berrou:
- Pentâ-metro, Greer! Lembre de pentá-gono! Cinco lados! Penta! Penta! Penta!
Deeeus do cééu!
Cinco dísticos, pensou Langdon. Cada dístico tendo, por definição, duas sílabas.
Mal podia crer que em toda a sua carreira jamais fizera aquela associação. O
pentâmetro iâmbico era uma métrica com simetria que se baseava nos dois
números sagrados dos Illuminati, 5 e 2!
Você está exagerando! Ele disse para si mesmo, tentando afastar o pensamento de
sua mente. É uma coincidência sem sentido! Mas a idéia não lhe saía da cabeça.
Cinco.., para Pitágoras e o pentagrama. Dois para a dualidade de todas as coisas.
No momento seguinte, uma outra descoberta fez suas pernas bambearem.
O pentâmetro iâmbico, por sua simplicidade, era muitas vezes chamado de "puro
verso", ou "pura métrica" La língua pura? Seria essa a língua pura a que os
Illuminati se referiam? The path of light is laid, the sacred test...
- Oh-oh - disse Vittoria.
Langdon viu Vittoria virar o fólio de cabeça para baixo. Sentiu um aperto no
estômago. De novo, não...
- Não há possibilidade de essa frase ser um ambigrama!
- Não, não é um ambigrama, mas é... - e ela continuou a virar o documento 90
graus de cada vez.
- É o quê?
Vittoria encarou-o.
- Aquela não é a única frase.
- Existe outra?
- Há uma em cada margem. Na de cima, na de baixo, na da esquerda e na da
direita. Acho que é um poema.
- Quatro versos? - Langdon arrepiou-se de excitação. Galileu era poeta?
- Deixa eu ver!
Vittoria não largou a página. Continuava virando-a para ler o que estava escrito
nas quatro margens.
- Não vi antes os versos porque estão nas margens. - Ela inclinou a cabeça para ler
a última. - Humm... Sabe de uma coisa? Nem foi Galileu quem escreveu isto.
-O quê?
- O poema está assinado por John Milton.
- John Milton?
O influente poeta inglês que escreveu Paraíso Perdido era contemporâneo de
Galileu e um sábio que os aficionados por conspirações colocavam no topo da
lista de suspeitos de serem Illuminati. A suposta afiliação de Milton à confraria
dos Illuminati de Galileu era uma lenda que Langdon acreditava ser verdadeira.
Não só Milton fizera uma bem-documentada peregrinação a Roma em 1638 para
"comungar com os homens esclarecidos", como tivera encontros com o cientista
durante sua prisão domiciliar, encontros estes retratados em muitas pinturas
renascentistas, entre elas a famosa tela de Annibale Gatti, Galileu e Milton, hoje
exposta no Instituto e Museu da História da Ciência, em Florença.
- Milton conhecia Galileu, não é? - disse Vittoria, empurrando finalmente o infólio
para Langdon. - Quem sabe ele escreveu o poema como um favor?
Langdon cerrou os dentes ao pegar o documento com seu invólucro.
Deixando-o aberto sobre a mesa, leu a frase no alto. Depois, girou a página 90
graus e leu a frase da margem direita. Girou outra vez e leu a de baixo. Mais um
giro final para ler a última e completar o movimento circular. Havia ao todo
quatro frases. A que Vittoria encontrara primeiro era na realidade o terceiro verso
do poema. Completamente boquiaberto, ele leu os quatro versos de novo na
seqüência certa: alto, direita, rodapé, esquerda. Quando terminou, soprou o ar dos
pulmões com vontade. Não tinha mais nenhuma dúvida.
- Muito bem, senhorita Vetra, você encontrou.
Ela sorriu com os lábios apertados.
- Ótimo, agora podemos dar o fora daqui?
- Tenho de copiar esses versos. Preciso encontrar lápis e papel.
Vittoria sacudiu a cabeça.
- Esqueça, professor. Nada de bancar o escriba, não temos tempo para isso.
Mickey está andando. - Ela tirou o documento da mão dele e se encaminhou para
a porta.
Langdon levantou-se.
- Não pode levar isso para fora! É um...
Mas Vittoria já estava longe.
CAPÍTULO 55
Langdon e Vittoria irromperam às pressas pelo pátio do lado de fora dos Arquivos
Secretos. O ar fresco fluiu para os pulmões de Langdon como se fosse uma droga
inebriante. Os pontos vermelhos em sua vista sumiram rapidamente. A culpa,
todavia, não sumiu. Ele acabara de se tornar cúmplice do roubo de uma preciosa
relíquia pertencente ao arquivo mais protegido do mundo. O camerlengo dissera:
Estou depositando minha confiança no senhor.
- Depressa - disse Vittoria, ainda segurando o fólio e atravessando a Via Borgia na
direção do escritório de Olivetti quase em passo de corrida.
- Se cair água nesse papiro...
- Calma, quando decifrarmos essa coisa, vamos devolver o bendito Fólio 5.
Langdon acelerou o passo para acompanhá-la. Além de se sentir um criminoso,
ainda estava sob o impacto das fascinantes implicações do documento. John
Milton era um Iluminados. Compôs o poema para Galileu publicar no Fólio 5,
longe dos olhos do Vaticano. Ao saírem do pátio, Vittoria entregou o fólio a
Langdon.
- Acha que pode decifrar isso? Ou perdemos todas aquelas células cerebrais à toa?
Langdon segurou o documento com todo o cuidado. Sem titubear, enfiou-o em
um dos bolsos internos de seu paletó de tweed para protegê-lo da luz do sol e dos
perigos da umidade.
- Já o decifrei faz tempo.
Vittoria estacou.
-Você o quê?
Langdon continuou a andar. Vittoria foi atrás dele.
- Você só o leu uma vez! Pensei que fosse muito difícil!
Langdon sabia que ela estava certa e, no entanto, ele decifrara o segno com uma
única leitura. Uma estrofe perfeita de pentâmetros iâmbicos e o primeiro altar da
ciência revelara-se com uma clareza impecável. Tinha de confessar que a
facilidade com que realizara a tarefa deixara-o bastante inquieto. Ele era um
produto da ética puritana do trabalho. Ainda era capaz de ouvir a voz de seu pai
repetindo o velho aforismo da Nova Inglaterra: Se não foi penoso e difícil, é
porque você fez errado. Langdon torcia para que o ditado não fosse verdade.
- Já decifrei - disse, andando mais depressa. - Sei onde vai acontecer o primeiro
assassinato. Temos de avisar Olivetti.
Vittoria aproximou-se dele.
- Como é que você pode já ter descoberto? Deixe eu ver isso outra vez.
Com o jogo de corpo de um pugilista, ela enfiou a mão com grande agilidade no
bolso dele e tirou de lá o fólio.
- Cuidado! - exclamou Langdon. - Não pode...
Vittoria não lhe deu atenção. Com o fólio na mão, ela flutuava ao lado dele,
segurando o documento com o braço levantado para enxergar à luz do fim do dia,
examinando as margens. Ela começou a ler em voz alta e Langdon fez um
movimento para recuperar o fólio mas, sem querer, viu-se enfeitiçado pela voz de
contralto e pelo sotaque de Vittoria, que dizia os versos no mesmo ritmo de seus
passos.
Por um momento, ao ouvir os versos, Langdon sentiu-se transportado no tempo,
como se fosse um dos contemporâneos de Galileu que os escutasse pela primeira
vez sabendo que eram um teste, um mapa, uma pista para desvendar os quatro
altares da ciência, os quatro marcos que abriam um caminho secreto através de
Roma. Os versos fluíam dos lábios de Vittoria como uma canção.
From Santi's earthly tomb with demon's hole,
Cross Rome the mystic elements unfold.
The path of light is laid, the sacred test,
Let angels guide you on your lofty quest.
Da tumba terrena de Santi com a cova do demônio.
Através de Roma se estendem os místicos elementos.
O caminho da luz está preparado, o teste sagrado,
que os anjos o guiem em sua busca sublime.
Vittoria leu duas vezes e depois se calou, deixando as palavras antigas ressoarem
sozinhas.
Da tumba terrena de Santi, Langdon repetiu em sua mente. O poema era claro
como água neste ponto. O Caminho da Iluminação começava na tumba de Santi.
A partir dali, através de Roma, os marcos assinalavam o percurso.
Da tumba terrena de Santi com a cova do demônio. Através de Roma se estendem
os místicos elementos.
Os místicos elementos. Também estava claro. Terra, Ar, Fogo e Água. Os
elementos da ciência, os quatro marcos dos Illuminati disfarçados de esculturas
religiosas.
- O primeiro marco - disse Vittoria - parece ser na tumba de Santi.
Langdon sorriu.
- Eu disse que não era tão difícil assim.
- E quem é Santi? - perguntou ela, de repente cheia de entusiasmo. - E onde é a
tumba dele?
Langdon dissimulou o riso. Impressionante como poucas pessoas sabiam que
Santi era o sobrenome de um dos mais famosos artistas da Renascença. Seu
primeiro nome o mundo inteiro conhecia: o menino-prodígio que com 25 anos já
realizava trabalhos encomendados pelo Papa Júlio II e que, ao morrer, com apenas
38 anos, deixou a maior coleção de afrescos que o mundo jamais conheceu. Santi
era um dos monstros sagrados do mundo da arte, e ser conhecido apenas pelo
primeiro nome era atingir um nível de fama a que só uma elite restrita tinha
acesso, pessoas como Napoleão, Galileu, Jesus e, claro, os semideuses de quem
agora Langdon ouvia os clamores vindos dos quartos nos prédios residenciais da
Universidade de Harvard: Sting, Madonna, Jewel e o artista antes conhecido como
Prince, que agora mudara seu nome para o símbolo , o que fizera Langdon
apelidá-lo de "Cruz Tau Cortada por Ankh Hermafrodita".
- Santi - explicou Langdon - é o sobrenome do grande mestre da Renascença,
Rafael.
Vittoria espantou-se.
- Rafael? O Rafael?
- O próprio - respondeu, continuando a andar em passo acelerado para o escritório
da Guarda Suíça.
- Então, o caminho começa na tumba de Rafael?
- O que na verdade faz bastante sentido - comentou Langdon, enquanto
caminhavam. - Os Illuminati costumavam considerar os grandes artistas e
escultores como irmãos honorários nas luzes do conhecimento. Podem ter
escolhido a tumba de Rafael como uma espécie de homenagem. - Langdon
também sabia que, provavelmente, como muitos outros artistas religiosos, Rafael
era um ateu não declarado.
Vittoria colocou o fólio de volta no bolso de Langdon com todo o cuidado.
- E onde ele está enterrado?
Langdon respirou fundo.
- Acredite se quiser, Rafael está enterrado no Panteão.
- No Panteão?
- No Panteão.
Langdon tinha de admitir que o Panteão não era o lugar que esperara para o
primeiro marco. Imaginara o primeiro altar da ciência em alguma igreja
sossegada, meio afastada, algo mais discreto. Já no século XVII, o Panteão, com
seu domo colossal, era um dos locais mais conhecidos de Roma.
- O Panteão é uma igreja? - perguntou Vittoria.
- A mais antiga igreja católica de Roma.
Vittoria fez um gesto de descrença.
- Acha mesmo que o primeiro cardeal poderia ser morto no Panteão? Deve ser um
dos pontos turísticos mais movimentados de Roma.
Ele deu de ombros.
- Os Illuminati disseram que queriam o mundo inteiro assistindo. Matar um
cardeal no Panteão com certeza deve chamar a atenção de muita gente.
- Como é que esse sujeito acha que vai matar alguém no Panteão e sair de lá sem
ser notado? Seria impossível.
- Tão impossível quanto seqüestrar quatro cardeais dentro da Cidade do
Vaticano? O poema é bem preciso.
- E você tem certeza de que Rafael está enterrado no Panteão?
- Já vi a tumba dele muitas vezes.
Vittoria ainda parecia preocupada, mas balançou a cabeça.
- Que horas são?
Langdon conferiu o relógio.
- Sete e meia.
- O Panteão é muito longe?
- Mais ou menos um quilômetro. Temos tempo.
- O poema falava da tumba terrena de Santi. Acha que significa alguma coisa?
Langdon atravessou na diagonal o pátio da sentinela.
- Terrena? É provável que não haja lugar mais terreno em Roma do que o
Panteão. Seu nome vem da religião originalmente praticada ali, o panteísmo, a
adoração de todos os deuses, especificamente os deuses pagãos da Mãe Terra.
Quando estudante de arquitetura, Langdon ficara admirado ao aprender que as
dimensões da câmara principal do Panteão eram um tributo a Gaea, a deusa da
Terra. E que as proporções eram tão exatas que um gigantesco globo caberia
perfeitamente dentro da construção com uma folga de menos de um milímetro.
- Está bem - disse Vittoria, mais convencida. - E a cova do demônio? Da tumba
terrena de Santi com a cova do demônio?
Langdon não tinha muita certeza quanto a isso.
- A cova do demônio deve ser o óculo - respondeu, tentando adivinhar pela lógica.
- A famosa abertura circular no teto do Panteão.
- Mas trata-se de uma igreja - objetou Vittoria, andando sem esforço ao lado dele.
- Por que chamariam a abertura de cova do demônio?
Na realidade, Langdon vinha se perguntando a mesma coisa. Nunca ouvira a
expressão "cova do demônio' mas lembrava-se de uma célebre crítica feita ao
Panteão no século VI cujas palavras pareciam estranhamente apropriadas agora. O
Venerável Bede escrevera que a abertura no teto do Panteão fora feita por
demônios que tentavam escapar do prédio quando este foi consagrado pelo Papa
Bonifácio IV.
- E por que - acrescentou Vittoria quando entraram em um pátio menor - os
Illuminati usariam o nome Santi se ele era de fato conhecido como Rafael?
- Você faz um bocado de perguntas.
- Meu pai costumava dizer o mesmo.
- Duas razões possíveis. Uma, a palavra Rafael tem sílabas demais. Teria
destruído o pentâmetro iâmbico do poema.
- Uma interpretação meio forçada, convenhamos.
Langdon concordou com ela.
- Talvez, então, usar "Santi" tornasse a pista mais obscura e só homens muitos
esclarecidos reconheceriam a referência a Rafael.
A explicação também não satisfez Vittoria por completo.
- Acredito que o sobrenome de Rafael devia ser muito conhecido na sua época.
- Por incrível que pareça, não, O reconhecimento de alguém por um único nome
era símbolo de status.
Rafael evitava usar seu sobrenome, do mesmo jeito que algumas estrelas
populares fazem hoje em dia. Como Madonna, por exemplo. Ela nunca usa seu
sobrenome, Ciccone.
Vittoria achou graça.
-Você sabe o sobrenome de Madonna?
Langdon arrependeu-se de ter dado aquele exemplo. Impressionante as bobagens
que se aprendem convivendo com dez mil adolescentes.
Ao passarem pelo último portão para chegarem ao escritório da Guarda Suíça,
Vittoria e Langdon foram inesperadamente obrigados a parar.
- Para! - bradou uma voz atrás deles.
Os dois se viraram e deram com o cano de um fuzil.
- Attento! - exclamou Vittoria, recuando de um salto. - Cuidado com...
- Non sportarti! - disse o guarda, ríspido, engatilhando a arma.
- Soldato! - chamou alguém do lado oposto do pátio. Olivetti estava saindo do
centro de segurança. -
Deixe-os passar!
O guarda, desconcertado, objetou:
- Ma, signore, é una donna...
- Para dentro! - ele gritou para o guarda.
- Signore, non posso...
- Já! Suas ordens são outras agora. O capitão Rocher vai transmitir novas
instruções para a Guarda em dois minutos. Vamos organizar uma busca.
Aturdido, o guarda entrou correndo no centro de segurança. Olivetti veio ao
encontro de Langdon, rígido e furioso.
- Nossos arquivos mais secretos? Vou querer uma explicação.
- Temos boas novas - disse Langdon.
Os olhos de Olivetti estreitaram-se.
- É melhor que sejam muito boas.
CAPÍTULO 56
Os quatro carros Alpha Romeo 155 T-Sparks sem identificação dispararam pela
Via del Coronari como caças decolando em uma pista de aviação. Os veículos
levavam 12 guardas suíços à paisana armados com semi- automáticas Cherchi-
Pardini, bombas de gás asfixiante e cassetetes de alta-voltagem de longo alcance.
Os três atiradores de elite seguravam fuzis de mira a laser.
Sentado ao lado do motorista no primeiro carro, Olivetti dirigiu-se a Langdon e a
Vittoria, que estavam no banco de trás. Seu rosto tinha uma expressão de raiva.
- Vocês garantiram que me dariam uma explicação plausível e isso é tudo o que
têm a dizer?
Langdon estava apertado no pequeno carro.
- Compreendo sua...
- Não, não compreende nada! - Olivetti nunca levantava a voz, mas a sua
intensidade triplicou. - Acabei de tirar 12 dos meus melhores homens da Cidade
do Vaticano na véspera de um conclave. E o fiz para vasculhar o Panteão baseado
no testemunho de um americano que nunca vi antes e que acabou de interpretar
um poema escrito há 400 anos. Também acabei de deixar nas mãos de oficiais
subalternos a responsabilidade pela busca dessa arma de antimatéria.
Langdon resistiu à vontade de puxar o Fólio 5 de dentro do bolso e sacudi-lo
diante do nariz de Olivetti.
- Tudo o que sei é que a informação que encontramos se refere à tumba de Rafael
e que essa tumba fica dentro do Panteão.
O oficial que dirigia o carro confirmou.
- Ele tem razão, comandante, minha mulher e eu...
- Dirija - ordenou Olivetti. E voltou-se outra vez para Langdon. - Como alguém
poderia cometer um assassinato em um lugar tão movimentado e escapar sem ser
visto?
- Não sei - respondeu Langdon. - Mas os Illuminati sem dúvida têm muitos meios.
Invadiram o CERN e a Cidade do Vaticano. Foi pura sorte termos conseguido
saber onde vai ocorrer a primeira morte. O Panteão é a sua única chance de pegar
esse sujeito.
- Mais contradições - reclamou Olivetti. - Única chance? O senhor não disse que
havia uma espécie de trilha? Uma série de marcos? Se o Panteão for o lugar certo,
podemos seguir a trilha para os outros marcos. Teremos quatro chances de pegar o
assassino.
- Era o que eu esperava - disse Langdon. - Teríamos quatro chances, um século
atrás.
Descobrir que o Panteão era o primeiro altar da ciência havia sido para Langdon
um momento de prazer com um travo amargo. A História de vez em quando prega
peças cruéis naqueles que a perseguem. Seria querer demais que o Caminho da
Iluminação estivesse intacto depois de tanto tempo, com todas as suas estátuas no
mesmo lugar, mas uma parte da cabeça de Langdon acalentara a fantasia de seguir
o caminho até o fim e encontrar o refúgio sagrado dos Illuminati. Admitia, com
muita pena, que isto não seria possível.
- O Vaticano removeu e destruiu todas as estátuas do Panteão no final do século
XIX.
- Por quê? - perguntou Vittoria, chocada.
- Eram estátuas pagãs, deuses do Olimpo. Infelizmente, isto significa que o
primeiro marco se foi e, com ele...
- Qualquer esperança de encontrar o Caminho da Iluminação e os outros marcos?
Três outros Alpha Romeos derraparam atrás dele. O comboio da Guarda Suíça
parou cantando os pneus.
- O que está fazendo?! - exclamou Vittoria.
- Meu trabalho - disse Olivetti, ajeitando-se no assento, a voz dura como pedra. -
Senhor Langdon, quando falou que explicaria a situação a caminho, presumi que
chegaríamos ao Panteão com uma idéia clara da razão por que meus homens
estavam ali. Não é o caso. Como estou abandonando obrigações de importância
vital pelo fato de estar aqui e, além disso, como acho que não faz muito sentido
essa sua teoria de sacrifícios de virgens e poesia antiga, não posso em sã
consciência continuar. Estou cancelando esta missão agora mesmo.
Ele pegou seu walkie-talkie e ligou-o.
Vittoria inclinou-se para a frente e agarrou o braço dele.
- Não pode fazer isso!
Olivetti bateu com o aparelho no banco do carro e lançou-lhe um olhar furioso.
- Já esteve no Panteão, senhorita Vetra?
- Não, mas...
- Deixe que lhe explique como é o lugar. O Panteão consiste em um único
ambiente. Uma construção circular feita de pedra e cimento. Tem uma entrada.
Não tem janelas. A entrada é estreita. É guardada o tempo todo por nada menos
do que quatro policiais romanos armados que protegem o santuário contra
destruidores de obras de arte, terroristas anticristãos e golpes de falsos turistas.
- Aonde quer chegar? - disse ela com frieza.
- Aonde quero chegar? - Os dedos de Olivetti agarravam com força o encosto do
banco do carro. - O que acabaram de me contar é totalmente impossível! Será que
são capazes de me apresentar uma descrição plausível de como alguém poderia
matar um cardeal dentro do Panteão? Antes de mais nada, como é que alguém
passaria com um refém qualquer pelos guardas que ficam na entrada? E ainda por
cima o mataria e fugiria em seguida? - Olivetti debruçou-se no encosto, seu hálito
cheirando a café no rosto de Langdon.
- Como, senhor Langdon? Vamos lá, só uma descrição plausível.
Langdon sentia-se como se o pequenino carro tivesse encolhido em volta dele.
Não tenho a menor idéia! Não sou um assassino! Não sei como ele vai agir! Só
sei...
- Uma descrição? - repetiu Vittoria com sarcasmo na voz, imperturbável. - Que
talo assassino vir em um helicóptero e deixar cair um cardeal marcado a fogo e
aos gritos pela abertura do teto, o cardeal bater no piso de mármore e morrer?
- Isso. Temos uma chance, o Panteão. Depois, a trilha desaparece. Olivetti olhou
fixo para ambos durante um longo momento e depois voltou a olhar para a
frente.
- Encoste - rosnou para o motorista.
O motorista deu uma guinada para junto do meio-fio e enfiou o pé no freio. A
atenção de todos no carro voltou-se para Vittoria. Langdon não sabia o que
pensar. Você tem uma imaginação doentia, moça, mas é um bocado rápida.
Olivetti franziu o sobrolho.
- Possível, admito, mas dificilmente...
- Ou o assassino dá uma droga qualquer ao cardeal - disse Vittoria - e entra no
Panteão com ele em uma cadeira de rodas, como se fosse um turista idoso. Lá
dentro, corta discretamente a garganta dele e sai sem ser notado.
Aquela alternativa fez Olivetti acordar um pouco.
Nada mal!, pensou Langdon.
- Ou - continuou ela -, o assassino poderia...
- Já entendi - interrompeu Olivetti. - Chega.
Ele respirou fundo e soprou o ar dos pulmões. Alguém bateu no vidro com
insistência e todos se sobressaltaram. Era um soldado de um dos outros carros.
Olivetti abaixou o vidro.
- Tudo bem, comandante? - O soldado estava vestido com roupas civis. Levantou
a manga de sua camisa jeans e mostrou um relógio de pulso preto de estilo militar.
- Sete e quarenta, comandante. Precisamos de tempo para nos posicionarmos.
Olivetti fez um gesto vago com a cabeça, mas ficou calado alguns instantes.
Correu o dedo de um lado para o outro no painel do carro, fazendo uma linha na
poeira. Examinou Langdon pelo retrovisor e Langdon sentiu-se medido e
avaliado. Finalmente, Olivetti dirigiu-se ao guarda. Havia relutância em sua voz.
- Quero abordagens separadas. Carros na Piazza deila Rotonda, Via degli Orfani,
Piazzas Sant'Ignazio e Sant'Eustachio. A dois quarteirões de distância, não menos.
Quando estacionarem, preparem-se e aguardem minhas ordens. Três minutos.
- Muito bem, senhor.
O soldado voltou para seu carro.
Langdon fez uma careta para Vittoria com ar impressionado. Ela sorriu de volta e,
por um instante, estabeleceu-se entre os dois uma ligação inesperada, um fio de
magnetismo.
O comandante virou-se para Langdon, incisivo:
- Senhor Langdon, é bom que tudo isso não estoure em cima de nós.
Langdon deu um sorriso constrangido. Como poderia?
CAPÍTULO 57
O diretor do CERN, Maximilian Kohler, abriu os olhos ainda sob o efeito da
cromolina e do leucotrieno em seu corpo, dilatando seus tubos brônquicos e seus
capilares pulmonares. Respirava normalmente outra vez. Encontrava-se deitado
em um quarto particular na enfermaria do CERN, sua cadeira de rodas encostada
à cama.
Avaliou a situação e examinou a túnica de papel com que o haviam vestido. Suas
roupas estavam dobradas na cadeira ao lado. Lá fora, ouvia uma enfermeira
fazendo a ronda.
Permaneceu deitado um longo minuto, à escuta. Depois, procurando fazer o
mínimo barulho possível, chegou até a beirada da cama e apanhou sua roupa.
Lutando com suas pernas sem vida, vestiu-se. Então, arrastou o corpo e sentou-se
na cadeira de rodas.
Abafou a tosse e fez girar as rodas da cadeira até a porta. Movimentou-a
manualmente, com cuidado, sem ligar o motor. Quando chegou à porta, espiou
para fora. O vestíbulo estava vazio. Silenciosamente, Maximilian Kohler
escapuliu da enfermaria.
CAPÍTULO 58
- Sete e quarenta e seis e trinta... preparem-se.-Mesmo quando falava em seu
walkie-talkie, a voz de Olivetti não passava de um sussurro.
Langdon agora suava dentro de seu casaco de tweed no banco de trás do Alpha-
Romeo, parado em uma praça a três quarteirões de distância do Panteão. Vittoria,
sentada a seu lado, tinha toda a sua atenção concentrada em Olivetti, que
transmitia as ordens finais.
- A formação de combate será um cerco de oito pontos. O alvo pode reconhecêlos,
portanto vocês ficarão pas-visibles. Empreguem somente força não-mortal.
Precisamos de alguém para vigiar o telhado. O alvo é prioritário. O refém é
secundário.
Credo, pensou Langdon, arrepiado com a eficiência com que Olivetti dissera a
seus homens que o refém poderia ser sacrificado por razões estratégicas. O refém
é secundário.
- Repetindo. Intervenção não-mortal. O alvo tem de estar vivo. Agora, vão!
Vittoria estava perplexa, quase zangada.
- Comandante, ninguém vai entrar?
- Entrar? - repetiu Olivetti.
- É! No Panteão! Onde se supõe que tudo vá acontecer!
- Attento - disse Olivetti, seus olhos se congelando. - Se houve mesmo infiltração
em minhas fileiras, meus homens podem ser reconhecidos. Seu amigo acabou de
avisar que esta pode ser a única chance de pegarmos o alvo. Não tenho nenhuma
intenção de espantar essa pessoa fazendo meus homens invadirem o local.
- E se o assassino já estiver lá dentro?
Olivetti verificou o relógio.
- O alvo foi bem específico. Oito horas. Temos 15 minutos.
- Ele disse que mataria o cardeal às oito horas. Mas pode já ter entrado antes com
a vítima. E se seus homens virem o alvo sair mas não souberem que é ele?
Alguém precisa ir verificar se há algum suspeito lá dentro.
- É arriscado demais a essa altura.
- Não se a pessoa que entrar não puder ser reconhecida.
- Disfarçar alguém levaria tempo demais e...
- Estou me referindo à minha pessoa - disse Vittoria.
Langdon voltou-se para ela.
Olivetti foi enfático.
- De jeito nenhum.
- Ele matou meu pai.
- Exato, e pode saber quem a senhorita é.
- O senhor ouviu o que ele disse ao telefone. Não tinha a menor idéia de que
Leonardo Vetra sequer tivesse uma filha. Com certeza, não sabe quem sou. Eu
poderia entrar como uma turista qualquer. Se visse alguma coisa suspeita, iria
para a praça e faria sinal para seus homens entrarem.
- Desculpe, mas não posso autorizar isso.
- Comandante? - Ouviu-se o chamado no aparelho de Olivetti. - Temos um
problema no ponto norte. A fonte está bloqueando a nossa linha de visão. Só
poderemos enxergar a entrada se nos deslocarmos para o meio da piazza. Qual é a
sua ordem? Permanecermos sem visão ou ficarmos vulneráveis?
Vittoria aparentemente não agüentava mais.
- Chega. Estou indo.
Ela abriu a porta do carro e saiu.
Olivetti largou o walkie-talkie e saltou do carro, contornando-o na frente de
Vittoria.
Langdon saiu também. Que diabos ela está fazendo?
Olivetti postou-se no caminho dela.
- Senhorita Vetra, seus instintos são bons, mas não posso deixar um civil
interferir.
- Interferir? Vocês estão fazendo um vôo cego. Quero ajudar.
- Eu gostaria muito de ter um contato lá dentro, mas...
- Mas o quê? - ela o interpelou. - Mas eu sou uma mulher?
Olivetti ficou calado.
- É bom que não tenha sido isso o que o senhor ia dizer, comandante, porque sabe
muito bem que a idéia é boa, e se deixar que uma bobagem machista dessas, um
preconceito arcaico...
- Deixe eu fazer o meu trabalho.
- Deixe eu ajudar.
- É perigoso demais. Não teríamos nenhuma linha de comunicação com a
senhorita. Não posso deixá-la levar um walkie-talkie, iria denunciá-la.
Vittoria enfiou a mão no bolso de sua blusa e tirou seu telefone celular.
- Uma porção de turistas carrega telefones celulares.
Vittoria abriu o telefone e imitou uma chamada:
- "Oi, querido, estou dentro do Panteão. Você precisava ver este lugar, que
maravilha!" - Ela fechou o telefone e fulminou Olivetti com o olhar. - Quem vai
descobrir? Não há risco nenhum! Deixe que eu espione para vocês! - Fez um
gesto para o celular de Olivetti preso no cinto dele. - Qual é o seu número?
Ele não respondeu.
O motorista vinha acompanhando a conversa e aparentemente tinha algumas
opiniões a dar. Saiu do carro e puxou Olivetti para um lado.
Cochicharam durante alguns segundos, ao fim dos quais Olivetti voltou e disse a
Vittoria:
- Programe este número. - E ditou-lhe o número do seu telefone.
Vittoria programou o seu celular.
- Agora, ligue para o número que lhe dei.
Vittoria pressionou a discagem automática. O telefone no cinto de Olivetti
começou a tocar. Ele o atendeu e falou:
- Entre no prédio, senhorita, olhe em torno, saia do prédio, depois ligue para mim
e diga o que viu.
Vittoria fechou o telefone.
- Obrigada, senhor.
Langdon foi tomado por uma onda repentina e inesperada de instinto protetor.
- Espere aí - disse ele para Olivetti. - Vai mandá-la entrar lá sozinha?
- Robert, não faz mal - disse Vittoria, com ar mal-humorado.
O motorista da Guarda Suíça cochichou mais alguma coisa no ouvido de Olivetti.
- É perigoso - Langdon disse a Vittoria.
- Ele tem razão - confirmou Olivetti. - Nem os meus melhores homens trabalham
sozinhos. Meu tenente acabou de lembrar que a encenação será mais convincente
com vocês dois.
Com nós dois? Langdon hesitou. Na verdade, o que eu queria dizer era...
- Com vocês dois entrando juntos - disse Olivetti. - Vão parecer um casal em
férias. Também podem dar apoio um ao outro. Fico mais tranqüilo assim.
Vittoria deu de ombros.
- Por mim, está bem, mas temos de andar ligeiro.
Langdon deixou escapar uma praga em voz baixa.
Olivetti apontou para a rua.
- A primeira rua por onde têm de ir é a Via degli Orfani. Dobrem à esquerda e,
com dois minutos de caminhada, no máximo, sairão direto no Panteão. Vou ficar
aqui comandando meus homens e esperando sua chamada. Gostaria que tivessem
proteção. - Pegou seu revólver. - Algum de vocês sabe atirar?
O coração de Langdon acelerou-se. Não precisamos de arma nenhuma!
Vittoria estendeu a mão.
- Consigo acertar um golfinho saindo da água a 40 metros de distância da proa de
um barco em movimento.
- Ótimo - Olivetti entregou-lhe a arma. - Vai ter de escondê-la.
Vittoria olhou para seu short. Depois, olhou para Langdon.
Ah, não faça isso! Pensou ele, mas Vittoria foi mais rápida. Abriu o paletó dele e
colocou o revólver em um dos bolsos internos. Ele teve a impressão de que uma
pedra caíra dentro de sua roupa. O único consolo era o fato de o Diagramma estar
no outro bolso.
- Nossa aparência é bem inofensiva - disse Vittoria. - Vamos embora.
Ela deu o braço a Langdon e encaminhou-se para a rua.
O motorista falou:
- Boa idéia, ir de braços dados. Lembrem-se de que são turistas. Talvez, até
recém-casados. Dar as mãos não seria melhor ainda?
Quando dobraram a esquina, Langdon poderia jurar que vislumbrou um leve
sorriso no rosto de Vittoria.
CAPÍTULO 59
A "sala de concentração" de tropas da Guarda Suíça fica ao lado do quartel do
Corpo de Vigilanza e é usada sobretudo para planejar a segurança nas ocasiões em
que o Papa aparece em público e nos eventos públicos do Vaticano. Naquele dia,
entretanto, estava sendo usada para outra coisa.
O homem que falava à força-tarefa reunida era o segundo em comando da Guarda
Suíça, o capitão Elias Rocher. Rocher tinha o tórax arredondado como um barril e
o rosto de traços macios, como se feitos de massa. Vestia o tradicional uniforme
azul de capitão com seu toque pessoal: uma boina vermelha colocada de lado na
cabeça. Sua voz era surpreendentemente cristalina para um homem tão grande e,
quando ele falava, seu timbre possuía a clareza de um instrumento musical. A
despeito de sua inflexão precisa, os olhos de Rocher eram enevoados como os de
um mamífero noturno. Seus homens chamavam-no de orso, urso cinzento. Às
vezes, gracejavam dizendo que Rocher era "o urso que andava à sombra da
víbora" O comandante Olivetti era a víbora. Rocher era tão perigoso quanto a
víbora, mas ao menos se via quando ele chegava.
Os homens de Rocher mantinham-se vivamente atentos, ninguém mexia um
músculo, embora a informação que haviam acabado de receber tivesse feito a
pressão deles todos subir. O tenente Chartrand, um novato, postado no fundo da
sala, desejava que tivesse ficado entre os 99 por cento de candidatos que não
tinham sido escolhidos para estar ali. Com 20 anos, Chartrand era o guarda mais
novo da tropa. Havia apenas três meses que estava no Vaticano. Como todos, fora
treinado pelo exército suíço e ainda agüentara dois anos de mais ausbilding em
Berna antes de se habilitar para a extenuante prova do Vaticano, realizada em um
quartel secreto fora de Roma. Nada em seu treinamento, todavia, o preparara para
uma crise como aquela.
De início, Chartrand pensou que as instruções fossem algum tipo de estranho
exercício de treinamento.
Armas futuristas? Cultos antigos? Cardeais seqüestrados? Então, Rocher
mostrara-lhes o vídeo da arma em questão. Pelo jeito, não se tratava de exercício
coisa nenhuma.
- Vamos desligar a energia em determinadas áreas - Rocher estava dizendo - para
eliminar a interferência magnética externa. Vamos nos deslocar em grupos de
quatro. E usar óculos infravermelhos. O reconhecimento vai ser efetuado com o
equipamento habitual de varredura, regulado para campos de fluxo abaixo de três
ohms.
Alguma pergunta?
Nenhuma.
A cabeça de Chartrand estava sobrecarregada.
- E se não encontrarmos o material a tempo? - perguntou, na mesma hora
arrependendo-se de ter perguntado.
O urso cinzento lançou-lhe um olhar sob sua boina vermelha. E dispensou o grupo
com uma saudação soturna:
- Vão com Deus.
CAPÍTULO 60
A dois quarteirões do Panteão, Langdon e Vittoria passaram a pé por uma fila de
táxis estacionados, os motoristas dormindo nos bancos da frente. A hora da
soneca era eterna na Cidade Eterna, o cochilo coletivo no mesmo horário sendo lá
uma extensão aperfeiçoada do hábito das sestas vespertinas nascido na antiga
Espanha.
Langdon esforçou-se para concentrar seus pensamentos, mas a situação era por
demais fora do comum para ser assimilada racionalmente. Seis horas antes, ele
estava dormindo profundamente em Cambridge.
Agora, encontrava-se na Europa, no meio de uma batalha surreal de antigos titãs,
carregando um revólver no bolso de seu paletó de tweed e de mãos dadas com
uma mulher que tinha acabado de encontrar.
Olhou para Vittoria. Estava inteiramente voltada para o que os esperava. Havia
força no seu aperto de mão, a força de uma mulher determinada e independente.
Os seus dedos envolviam os dele com o conforto de uma aceitação inata. Sem
hesitar. Langdon sentiu uma atração crescente por ela. Seja realista, disse para si
mesmo.
Vittoria notou o constrangimento dele.
- Relaxe - disse ela, sem virar a cabeça -, temos de parecer recém-casados.
- Estou relaxado.
- Você está esmagando a minha mão.
Langdon enrubesceu e aproximou os dedos.
- Respire através dos seus olhos.
- Como é?
- Serve para relaxar os músculos. Chama-se pranayama.
- Piranha?
- Não, não é nome de peixe. Pranayama. Ora, deixe para lá.
Dobraram a esquina para a Piazza della Rotonda e o Panteão ergueu-se diante
deles. Langdon admirou-o, como sempre, com reverência, O Panteão. Templo de
todos os deuses. Deuses pagãos. Deuses da natureza e da Terra. A estrutura, vista
de fora, parecia mais compacta e fechada do que ele se lembrava. As colunas
verticais e os pronaus triangulares obscureciam o domo circular que ficava atrás.
Ainda assim, a ousada e vaidosa inscrição acima da entrada garantia-lhe que
estavam no lugar certo. M AGRIPPA L F COS TERTIUM FECIT. Langdon mais
uma vez se divertiu com a tradução: Marcus Agrippa, cônsul pela terceira vez,
construiu isto.
Tão modesto, pensou, correndo os olhos pelo espaço ao redor. Alguns turistas
perambulavam com câmeras de vídeo na mão. Outros estavam sentados no café
ao ar livre La Tazza di Oro, saboreando o melhor café gelado de Roma. Junto da
entrada do Panteão, quatro policiais romanos armados vigiavam, atentos, como
Olivetti predissera.
- Tudo bastante tranqüilo - comentou Vittoria.
Langdon concordou, mas sentia-se preocupado. Agora que estava ali, o cenário
todo não lhe parecia muito real. Apesar da confiança de Vittoria, que acreditava
que ele estivesse certo, Langdon deu-se conta de que pusera todos na linha de
fogo. O poema Illuminati subsistia. Da tumba terrena de Santi com a cova do
demônio. SIM, afirmou internamente. Era ali. A tumba de Santi. Já estivera
muitas vezes sob o óculo do Panteão, junto ao túmulo do grande Rafael.
- Que horas são?
Langdon verificou o relógio de pulso.
- Sete e cinqüenta. Dez minutos para o espetáculo começar.
- Espero que esses guardas sejam bons - disse Vittoria, observando os turistas
esparsos entrando no Panteão. - Se alguma coisa acontecer ai dentro, vamos ficar
todos sob fogo cruzado.
Langdon soprou fortemente o ar dos pulmões enquanto se encaminhavam para a
entrada. A arma pesava em seu bolso. Imaginou o que aconteceria se os policiais
o revistassem e encontrassem a arma, mas eles nem o olharam duas vezes. O
disfarce deveria estar mesmo convincente.
Langdon sussurrou para Vittoria.
- Já atirou com outra coisa além de uma espingarda de tranqüilizante?
- Não confia em mim?
- Como posso? Nem conheço você direito!
Vittoria fez uma cara desapontada.
- E eu que pensei que fôssemos recém-casados.
CAPÍTULO 61
O ar dentro do Panteão estava frio e úmido, pesado de história, O teto amplo
flutuava no espaço acima como se não tivesse peso algum - um vão livre de 43
metros, maior ainda do que o da cúpula de São Pedro.
Langdon mais uma vez sentiu um arrepio quando entrou no imenso ambiente. Era
uma extraordinária mistura de engenharia e arte. No alto, a famosa abertura
circular no teto brilhava com a luminosidade do sol do entardecer. O óculo,
pensou Langdon, a cova do demônio.
Tinham chegado.
Langdon acompanhou com os olhos o arco do teto descendo para as paredes com
as colunas, o piso de mármore polido sob seus pés. Um leve eco dos passos e
murmúrios dos turistas reverberava pelo domo.
Langdon observou os pouco mais de dez turistas que andavam a esmo nas
sombras. Você está aí?
- Bem calmo o lugar - disse Vittoria, ainda segurando a mão dele.
Langdon fez que sim.
- Qual é a tumba de Rafael?
Langdon parou um instante, tentando se orientar. Examinou a circunferência do
recinto. Tumbas. Altares.
Colunas. Nichos. Indicou um monumento funerário particularmente ornamentado
à esquerda, do outro lado do domo.
- Acho que é aquela.
Vittoria esquadrinhou o resto do ambiente.
- Não vejo ninguém que pareça um assassino prestes a matar um cardeal. Vamos
dar uma olhada por aí?
Langdon concordou e os dois saíram andando.
- Há somente um lugar aqui onde alguém poderia se esconder. É melhor
verificarmos as rientranze.
- Os recessos?
- Isso - ele apontou. - Os nichos na parede.
Ao longo do perímetro, intercalados com as tumbas, havia vários nichos
semicirculares formando cavidades na parede. Embora não fossem enormes, eram
grandes o bastante para esconder alguém. Lamentavelmente, Langdon sabia que
antes continham estátuas dos deuses olímpicos, mas essas esculturas pagãs
haviam sido destruídas quando o Vaticano transformou o Panteão em igreja cristã.
Veio-lhe um acesso de frustração por saber que estava no primeiro altar da ciência
e o marco se perdera. Indagava-se qual seria a estátua e para onde teria apontado.
Não concebia emoção maior do que a de encontrar o marco illuminati - a estátua
que indicava sorrateiramente o percurso do Caminho da Iluminação. E de novo
imaginava quem seria o anônimo escultor Illuminati.
- Vou pela esquerda - disse Vittoria, mostrando a metade esquerda da
circunferência. -Você, pela direita. Nos encontramos daqui a 180 graus.
Ele sorriu amarelo.
Quando ela se afastou, Langdon sentiu o horror da situação infiltrar-se de novo
em sua consciência.
Enquanto se dirigia para a direita, a voz do assassino parecia sussurrar no espaço
vazio que o rodeava.
Oito horas. Sacrifícios de virgens nos altares da ciência. Uma progressão
matemática e mortal. Oito, nove, dez, onze... e à meia-noite. Olhou o relógio de
pulso: 7h52. Oito minutos.
Caminhando para o primeiro nicho, passou pela tumba de um dos reis católicos da
Itália. O sarcófago, como muitos outros em Roma, fora colocado obliquamente à
parede, uma posição meio desajeitada. Um grupo de visitantes dava a impressão
de estar perplexo com aquilo. Langdon não se deteve para explicar.
As tumbas cristãs muitas vezes não eram alinhadas com a arquitetura para que
ficassem voltadas para o leste. Tratava-se de uma antiga superstição que uma das
turmas de Simbologia de Langdon chegara a discutir no mês anterior.
- Isso é totalmente absurdo! - uma aluna na fila da frente exclamara quando
Langdon explicou a razão por que as tumbas eram viradas para leste. - Por que os
cristãos iriam querer suas tumbas voltadas para o sol nascente? Estamos falando
de cristianismo, não de adoração ao Sol!
Langdon sorriu, andando diante do quadro-negro e comendo uma maçã.
- Senhor Hitzrot! - gritou ele.
Um rapaz que cochilava no fundo da sala sentou-se, sobressaltado.
- Eu?
Langdon apontou para um pôster sobre arte renascentista pendurado na parede.
- Quem é aquele homem ajoelhado diante de Deus?
-É... um santo?
- Muito bem. E como sabe que é um santo?
- Por causa do halo?
- Excelente, e esse halo dourado lembra alguma coisa?
Hitzrot abriu um sorriso.
- Claro! Aquelas coisas egípcias que estudamos no semestre passado.
Aqueles... humm... discos solares!
- Obrigado, Hitzrot. Pode continuar a dormir. - Langdon dirigiu-se de novo à
turma. - Os halos, como grande parte da simbologia cristã, foram tirados da antiga
religião egípcia baseada na adoração ao Sol. O cristianismo está cheio de
manifestações de adoração ao Sol.
- Desculpe - disse a moça da fila da frente -, mas vou sempre à igreja e não
costumo ver tanta adoração ao Sol assim!
- É mesmo? O que você comemora no dia 25 de dezembro?
- O Natal. O nascimento de Jesus Cristo.
- No entanto, de acordo com a Bíblia, Cristo nasceu em março. Por que, então, se
comemora a data no final de dezembro?
Silêncio.
Langdon prosseguiu.
- O dia 25 de dezembro, meus amigos, é o dia da antiga festa pagã do sol invictus,
o Sol Invicto, que coincidia com o solstício de inverno. É aquela maravilhosa fase
do ano em que o Sol retorna e os dias começam a ficar mais longos outra vez.
Ele comeu mais um pedaço de maçã e continuou.
- As religiões vitoriosas costumam adotar as festas já existentes para tornar a
conversão menos chocante.
Chama-se a isto de transmutação. Ajuda as pessoas a se acostumarem com a nova
fé. Os devotos mantêm as mesmas datas santas, rezam nos mesmos locais
sagrados, usam uma simbologia semelhante e apenas substituem o deus anterior
por outro diferente.
A essa altura, a moça da frente estava furiosa.
- O senhor está insinuando que o cristianismo não passa de uma espécie de
adoração ao Sol em outra embalagem!
- De jeito nenhum. O cristianismo não tomou elementos emprestados somente da
adoração ao Sol. O ritual da canonização cristã foi tirado do antigo rito de
deificação de Euhemerus. A prática de "comer Deus' ou seja, a Santa Comunhão,
foi copiada dos astecas. Até o conceito de Cristo morrer por nossos pecados podese
dizer que não é exclusivamente cristão: o auto-sacrifício de um rapaz para
absolver os pecados de seu povo aparece nos registros das mais remotas tradições
associadas a Quetzalcoatl.
A moça disse, com ar feroz.
- Quer dizer que nada no cristianismo é original?
- Muito pouco em qualquer religião organizada é inteiramente original. As
religiões não começam do zero. Crescem uma a partir da outra. As religiões
modernas são colagens, um registro histórico assimilado do esforço humano para
compreender o divino.
- Espere aí - disse Hitzrot, agora acordado. - Existe uma coisa cristã que é
original. A nossa imagem de Deus. A arte cristã nunca retrata Deus igual a um
falcão, a um animal asteca ou algo esquisito assim.
Sempre mostra Deus como um velho de barba branca. Então, a nossa imagem de
Deus é original, não é?
Langdon sorriu de novo e respondeu.
- Quando os primeiros cristãos convertidos abandonaram suas divindades
anteriores, como os deuses pagãos, os deuses romanos, os deuses gregos, o Sol,
Mitra ou o que seja, eles perguntaram à Igreja com quem se parecia o seu deus
cristão. Sabiamente, a Igreja escolheu o mais temido, o mais poderoso e aquele
cuja aparência era a mais conhecida de que se tinha notícia.
Hitzrot arriscou, cético:
- Um velho com uma barba branca comprida?
Langdon apontou para uma representação da hierarquia de deuses da antiguidade
pendurada na parede.
No alto estava sentado um velho com longas barbas brancas.
- Zeus não lhe parece familiar?
A campainha para encerrar a aula tocou naquele exato momento.
- Boa noite - disse uma voz masculina.
Langdon tomou um susto. Estava de volta ao Panteão. Deu de cara com um
homem idoso usando uma pelerine azul com uma cruz vermelha no peito. O
homem sorriu para ele revelando dentes acinzentados.
- O senhor é inglês, não é? - o homem falava com um sotaque toscano carregado.
Langdon pestanejou, confuso.
- Não, na verdade, sou americano.
O homem ficou embaraçado.
- Oh, desculpe, mas o senhor está tão bem vestido que pensei... Por favor, peço
mil desculpas.
- Posso ajudá-lo em alguma coisa? - perguntou Langdon, o coração batendo
loucamente.
- Na realidade, achei que talvez eu pudesse ajudá-lo. Sou cicerone voluntário aqui
- e o homem apontou orgulhoso para seu crachá emitido pela prefeitura da cidade.
- Meu trabalho é tornar sua visita a Roma mais interessante.
Mais interessante? Ele tinha certeza absoluta de que aquela visita a Roma era
interessante até demais.
- O senhor parece um homem distinto - o guia bajulou-o -, sem dúvida mais
interessado em cultura do que a maioria das pessoas. Talvez eu possa lhe contar
um pouco da história desta construção fascinante.
Langdon sorriu educadamente.
- Muito obrigado, mas eu sou professor de História da Arte e...
- Ótimo! - o rosto do homem se iluminou como se tivesse acertado na loteria. -
Então, com certeza, o senhor vai apreciar muito mais!
- Obrigado, mas acho que prefiro...
- O Panteão - começou o homem, embarcando em sua arenga decorada - foi
construído por Marcus Agrippa em 27 a.C.
- Sim - interrompeu Langdon -, e reconstruído por Adriano em 119 d.C.
- Era o maior domo do mundo até 1960, quando foi superado pelo Superdomo de
Nova Orleans!
Langdon resmungou em voz baixa. O homem era irreprimível.
- E um teólogo do século V chamou o Panteão de Casa do Demônio e declarou
que a abertura no teto era uma entrada para os demônios!
Langdon desligou-se do que o outro dizia. Ergueu os olhos para o óculo e a
lembrança da cena sugerida por Vittoria projetou uma imagem aterrorizante em
sua mente: um cardeal marcado a fogo despencando através da abertura e
estatelando-se no chão de mármore. Seria de fato um prato cheio para a mídia.
Langdon deu por si procurando repórteres dentro do Panteão. Nenhum. Respirou
fundo. A idéia era absurda. A logística para produzir uma atração como aquela
seria despropositada.
À medida que se deslocava para continuar sua inspeção, o guia tagarela seguia-o
como um cãozinho carente de afeto. Não posso esquecer, disse para si mesmo,
não há nada pior do que um historiador entusiasmado demais.
Do outro lado, Vittoria estava imersa em sua busca. Sozinha pela primeira vez
desde que recebera a notícia sobre seu pai, sentiu a crua realidade das últimas oito
horas fechando-se em torno dela. Seu pai fora assassinado - cruel e abruptamente.
Quase tão dolorosa era a consciência de que o trabalho de seu pai fora corrompido
e agora se tornara um instrumento de terroristas.
Atormentava-a a culpa de ter sido a sua invenção o que permitira que a antimatéria
pudesse ser transportada. Era o contador eletrônico de seu tubo especial
que agora estava marcando o tempo restante dentro do Vaticano. Na tentativa de
contribuir para a busca de seu pai pela simplicidade da verdade, ela se
transformara em uma conspiradora do caos.
Estranhamente, a única coisa que parecia estar certa em sua vida naquele
momento era a presença de um desconhecido. Robert Langdon. Encontrava um
refúgio inexplicável em seu olhar, como a harmonia dos oceanos que ela deixara
para trás naquela manhã bem cedo. Sentia-se contente por ele estar ali. Não só
fora para ela uma fonte de força e de esperança como utilizara a rapidez de sua
inteligência para encontrar aquela chance única de pegar o assassino de seu pai.
Vittoria respirou fundo e continuou a procurar, andando em torno do perímetro do
Panteão. Estava assoberbada pelos inesperados desejos de vingança pessoal que
haviam dominado seus pensamentos durante todo o dia. Mesmo sendo uma
amante declarada de toda forma de vida, queria ver aquele carrasco morto.
Não haveria bom carma que a fizesse dar a outra face naquele dia. Ao mesmo
tempo alarmada e eletrizada, notava algo correndo em seu sangue italiano que
nunca sentira antes: os sussurros dos ancestrais sicilianos que defendiam a honra
da família com justiça brutal. Vendetta, pensou ela, pela primeira vez
compreendendo o verdadeiro sentido da palavra. Visões de represálias possíveis
incitavam-na a prosseguir. Aproximou-se da tumba de Rafael Santi. Mesmo à
distância, via-se logo que se tratava de uma figura especial. Seu sepulcro, ao
contrário dos outros, possuía uma proteção de plexiglas e ficava em um nicho da
parede. Através da barreira, ela conseguia ver a frente do sarcófago.
RAPHAEL SANTI, 1483 – 1520
Vittoria examinou o conjunto e depois leu a frase na placa descritiva ao lado da
tumba de Rafael.
Então, leu de novo. E mais uma vez.
Um segundo depois, saiu correndo pelo Panteão, chamando, horrorizada:
- Robert! Robert!
CAPÍTULO 62
Langdon avançava pelo seu lado do Panteão com uma certa dificuldade por causa
do guia, que não lhe saía dos calcanhares e agora prosseguia em sua incansável
narrativa enquanto Langdon se preparava para verificar o último nicho.
- O senhor está gostando um bocado desses nichos! - disse o guia, encantado. -
Sabia que a espessura gradativamente menor das paredes é que faz o domo
parecer não ter peso?
Langdon fez um gesto com a cabeça, sem prestar atenção e se preparando para
examinar outro nicho. De repente, alguém o agarrou por trás. Era Vittoria. Ela
estava sem fôlego e puxava-o pelo braço. Pela expressão apavorada do rosto dela,
Langdon só podia deduzir uma coisa. Ela havia encontrado um corpo. Uma nova
onda de temor cresceu dentro dele.
- Ah, sua mulher! - exclamou o guia, visivelmente entusiasmado por ter
mais um visitante. Apontou para o short e para as botas de caminhada que ela
usava. - Mas ela com certeza é americana!
Vittoria apertou os olhos.
- Sou italiana.
O sorriso do guia murchou.
- Oh, meu Deus.
- Robert - cochichou Vittoria, tentando dar as costas para o guia. - O Diagramma
de Galileu. Preciso vê-lo.
- Diagramma? - disse o guia, girando de volta nos calcanhares. - Ora, ora! Vocês
dois conhecem história mesmo! Infelizmente, esse documento não pode ser visto.
Está guardado nos Arquivos do Vati...
- Pode nos dar licença um instante? - disse Langdon. Não compreendia o pânico
de Vittoria. Levou-a para um lado e pôs a mão no bolso, tirando de lá com todo o
cuidado o fólio do Diagramma. - O que houve?
- Qual é a data que está escrita aí? - Vittoria perguntou, correndo os olhos pela
folha.
O guia estava junto deles outra vez, olhando para o fólio de boca aberta.
- Esse não é... de verdade...
- É uma reprodução para turistas - mentiu Langdon. - Obrigado por sua ajuda. Por
favor, minha mulher e eu gostaríamos de ficar a sós um instante.
O guia recuou, sem tirar os olhos do papel.
- A data - Vittoria repetiu. - Quando foi que Galileu publicou...
Langdon mostrou um número em algarismos romanos.
- Esta é a data de publicação. O que está acontecendo?
Vittoria decifrou o número.
- 1639?
- É. Alguma coisa errada?
A expressão de Vittoria tornou-se mais carregada com um mau pressentimento.
- Temos um problema sério, Robert. Muito sério. As datas não combinam.
- Que datas não combinam?
- A tumba de Rafael. Ele só foi enterrado aqui em 1759. Um século depois do
Diagramma ser publicado.
Langdon encarou-a, tentando dar sentido ao que ela dizia.
- Não - replicou -, Rafael morreu em 1520, muito antes do Diagramma.
- Sim, mas ele só foi enterrado aqui muito depois.
Langdon estava perdido.
- O que está dizendo?
- Acabei de ler naquela placa. O corpo de Rafael foi trasladado para o Panteão em
1758. Como parte de um tributo histórico a italianos eminentes.
Ao assimilar as palavras dela, Langdon teve a impressão de que lhe puxavam um
tapete de baixo dos pés.
- Quando aquele poema foi escrito - afirmou Vittoria -, a tumba de Rafael era em
outro lugar qualquer.
Naquela época, o Panteão não tinha nada a ver com Rafael! Langdon chegou a
ficar sem ar.
- Então, isso quer dizer que...
- Pois é! Que estamos no lugar errado!
Ele cambaleou. Não é possível. Eu tinha tanta certeza...
Vittoria correu e agarrou o braço do guia, puxando-o de volta.
- Signore, desculpe, mas onde estava o corpo de Rafael no século XVII?
- Urb... em Urbino - gaguejou ele, agora parecendo desnorteado. - Onde ele
nasceu.
- Impossível! - Langdon praguejou baixinho. - Os altares da ciência dos Illuminati
eram aqui em Roma.
Tenho certeza!
- Illuminati? - o guia engoliu em seco, olhando de novo para o documento na mão
de Langdon. - Quem são vocês, Deus do céu?
Vittoria tomou a frente.
- Estamos procurando por algo que é chamado de a tumba terrena de Santi. Em
Roma. Sabe o que pode ser?
O homem mostrava-se inquieto.
- Esta foi a única tumba de Rafael em Roma.
Langdon esforçava-se para pensar, mas sua cabeça se recusava a funcionar direito.
Se a tumba de Rafael não estava em Roma em 1639, a que o poema se referia,
então? Da tumba terrena de Santi com a cova do demônio? Que diabos é isso?
Pense!
- Houve outro artista chamado Santi? - perguntou Vittoria.
O guia deu de ombros.
- Não que eu saiba.
- E alguém famoso, qualquer pessoa? Um cientista, um poeta ou um astrônomo
chamado Santi?
O homem agora dava a impressão de querer ir embora.
- Não, senhora. O único Santi de que já ouvi falar era Rafael, o arquiteto.
- Arquiteto? - repetiu ela. - Pensei que ele fosse pintor!
- Era as duas coisas, é claro. Todos eles eram. Michelangelo, Da Vinci, Rafael.
Langdon não soube se foram as palavras do guia ou as tumbas ornamentadas em
torno dele que abriram sua mente para a revelação, mas não tinha importância, o
pensamento lhe viera. Santi era arquiteto. Daí em diante, a progressão de idéias
evoluiu como se fosse uma fileira de dominós caindo. Os arquitetos da
Renascença viviam por apenas duas razões: para glorificar a Deus com enormes
igrejas e para glorificar dignitários com pródigas tumbas. A tumba de Santi. Seria
possível? As imagens agora lhe vinham mais depressa...
A Mona Lisa de Da Vinci.
Os Nenúfares de Monet.
O Davi de Michelangelo.
A tumba terrena de Santi...
- Santi projetou a tumba - declarou Langdon.
Vittoria virou-se.
- O quê?
- Não é uma referência ao lugar onde Rafael está enterrado, é uma referência a
uma tumba que ele projetou.
- O que é que você está dizendo?
- Eu não compreendi direito a frase. Não é o túmulo de Rafael que estamos
procurando, e sim um túmulo que Rafael projetou para outra pessoa. Não posso
acreditar que deixei passar isto. A metade dos trabalhos de escultura feitos na
Roma renascentista e barroca destinava-se aos monumentos funerários. - E ele riu,
satisfeito com a descoberta. - Rafael deve ter projetado centenas de tumbas!
Vittoria não parecia tão contente.
- Centenas?
O sorriso de Langdon sumiu.
-Ah...
- Alguma delas seria terrena, professor?
De repente, ele se sentiu um incompetente. Sabia muito pouco sobre a obra de
Rafael, era uma vergonha.
Se fosse Michelangelo, teria sido mais fácil, mas o trabalho de Rafael nunca o
atraíra tanto. Só se lembrava de umas duas tumbas mais famosas de Rafael, mas
talvez nem soubesse descrevê-las.
Percebendo o bloqueio de Langdon, Vittoria dirigiu-se ao guia, que ia saindo de
fininho. Segurou o braço dele e puxou-o, fazendo com que ficasse de frente para
ela.
- Preciso de uma tumba. Projetada por Rafael. Uma tumba que possa ser
considerada terrena.
O homem fez uma cara desconsolada.
- Uma tumba de Rafael? Não sei. Ele projetou tantas! Talvez queira dizer uma
capela de Rafael, não uma tumba. Os arquitetos sempre desenhavam as capelas
junto com as tumbas.
Ele tinha razão. Langdon perguntou:
- Existe alguma tumba ou capela de Rafael considerada terrena?
- Sinto muito - o outro respondeu -, não sei o que quer. A palavra terrena não se
aplica a nada que eu conheça. Tenho de ir embora.
Vittoria estendeu o braço e leu a linha de cima do fólio:
- Da tumba terrena de Santi com a cova do demônio. Significa algo para o senhor?
- Não, nada.
Langdon levantou a cabeça. Esquecera momentaneamente a segunda parte do
verso. A cova do demônio?
- Já sei! - ele disse para o guia. - É isso! Sabe se alguma das capelas de Rafael tem
um óculo?
O guia sacudiu a cabeça.
- Pelo que sei, o Panteão é o único... - ele fez uma pausa - mas...
- Mas o quê? - exclamaram os dois em uníssono.
O homem então inclinou a cabeça para o lado e andou na direção deles outra vez.
- Cova do demônio.., seria o mesmo que... buco diàvolo?
- Literalmente, sim - confirmou Vittoria.
O homem deu um ligeiro sorriso.
- Aí está uma expressão que não escuto faz tempo. Se não me engano, buco
diàvolo é uma abóbada subterrânea.
- Uma abóbada subterrânea? - perguntou Langdon. - Uma cripta?
- É, mas um tipo específico de cripta. Acho que cova do demônio é uma expressão
antiga para uma enorme cavidade funerária localizada em uma capela e sob uma
outra tumba.
- Um ossário anexo? - indagou Langdon, identificando imediatamente o que o
homem descrevia.
O guia, impressionado, confirmou.
- É! Era exatamente essa a palavra que eu estava procurando!
Langdon considerou a possibilidade. Os ossários anexos eram uma solução barata
oferecida pelas igrejas para um incômodo dilema.
Quando as igrejas homenageavam seus membros mais distintos com tumbas
ornamentadas dentro do santuário, os familiares sobreviventes dessas pessoas
freqüentemente pediam que o resto da família fosse enterrado junto, garantindo
assim um cobiçado espaço para suas sepulturas dentro da igreja. No entanto, se a
igreja não tivesse espaço ou recursos para criar tumbas para uma família inteira,
havia a alternativa de cavar um ossário anexo - um buraco no chão perto da tumba
principal, onde se enterravam os membros menos ilustres da família. Esse buraco
então era fechado com o equivalente renascentista de uma tampa de bueiro.
Apesar de conveniente, o ossário anexo logo saiu de moda por causa do mau
cheiro que muitas vezes exalava e se espalhava pela catedral. Cova do demônio,
pensou. Nunca ouvira a expressão antes.
Era sinistramente apropriada à situação.
O coração dele batia acelerado. Da tumba terrena de Santi com a cova do
demônio. Havia apenas mais uma pergunta a fazer.
- Rafael desenhou tumbas com essas covas do demônio?
O guia coçou a cabeça.
- Na verdade, desculpem, mas só me lembro de uma.
Só uma? Não poderia haver resposta melhor.
- Onde? - Vittoria quase gritou.
O guia fitou-os de modo estranho.
- Chama-se Capela Chigi. Túmulo de Agostino Chigi e de seu irmão, ricos
patronos das artes e das ciências.
- Ciências? - exclamou Langdon, trocando um olhar com Vittoria.
- Onde? - Vittoria perguntou de novo.
O guia ignorou a pergunta, de novo entusiasmado em poder prestar serviço.
- Se a tumba é terrena ou não, isto não sei dizer, mas sem dúvida é, digamos,
diferente.
- Diferente? Como assim?
- Incoerente com a arquitetura. Rafael só foi o arquiteto. Um outro escultor fez a
decoração interior, não me lembro quem.
Langdon era todo ouvidos. O mestre Illuminati anônimo, talvez?
- Quem quer que seja ele, os monumentos do interior da capela são de muito mau
gosto - disse o guia. - Dio mio! Que atrocidade! Quem iria querer ser enterrado
sob pirâmides?
Langdon mal podia acreditar.
- Pirâmides? A capela contém pirâmides?
- Pois é! - o guia escarneceu. Terrível, não é?
Vittoria puxou a manga do guia.
- Signore, onde fica essa Capela Chigi?
- Mais ou menos a um quilômetro e meio daqui, na direção norte. Na Igreja de
Santa Maria del Popolo.
Ela suspirou.
- Obrigada. Vamos...
- Ei... - disse o guia. - Acabei de lembrar de uma coisa. Que idiota eu sou.
Vittoria parou.
- Não me diga que se enganou.
Ele sacudiu a cabeça.
- Não, mas isso deveria ter me ocorrido antes. A Capela Chigi nem sempre foi
conhecida por este nome, Chigi. Antes era chamada de Capella della Terra.
- Capela da Terra! - exclamou Langdon.
Vittoria já estava seguindo direto para a porta.
Vittoria Vetra sacou de seu celular enquanto corria pela Piazza delia Rotonda.
- Comandante Olivetti - disse -, estamos no lugar errado!
Incrédulo, Olivetti repetiu.
- Errado? Como, como?
- O primeiro altar da ciência é na Capela Chigi!
- Onde? - agora, a voz dele estava zangada. - Mas o senhor Langdon disse...
- Santa Maria del Popolo! A um quilômetro e meio daqui rumo ao norte. Leve
seus homens para lá agora! Temos só quatro minutos!
- Mas meus homens estão posicionados aqui! Não tenho como...
- Ande! - Vittoria fechou o telefone com um estalo.
Atrás dela, tonto, saindo do Panteão, vinha Langdon.
Vittoria puxou-o pela mão na direção de uma fila de táxis aparentemente sem
motoristas que esperavam junto ao meio-fio. Ela socou o capô do primeiro carro
da fila. O motorista adormecido aprumou-se com um salto dando um grito de
susto. Vittoria escancarou a porta de trás, empurrou Langdon para dentro e pulou
para o assento ao lado dele.
- Santa Maria del Popolo - ordenou. - Presto!
Frenético e meio aterrorizado, o motorista pisou fundo no acelerador e saiu numa
correria desabalada pela rua.
CAPÍTULO 63
Gunther Glick assumira o controle do computador, em vez de Chinita Macri, que
agora estava curvada no banco de trás do atravancado furgão da BBC espiando a
tela por cima do ombro dele.
- Eu disse a você - falou Glick digitando mais algumas palavras. - O British
Tattler não é o único jornal que publica histórias sobre esses caras.
Macri chegou mais perto para enxergar melhor. Ele tinha razão. O banco de dados
da BBC mostrava que sua distinta rede de emissoras havia descoberto e publicado
seis matérias nos últimos dez anos sobre a fraternidade chamada Illuminati. Bem,
agora tenho de dar minha cara a tapa, pensou ela.
- Quem foram os jornalistas que redigiram as matérias? - perguntou Macri.
- Os de quinta?
A BBC não contrata jornalistas de quinta categoria.
- Mas contratou você.
Glick ficou carrancudo.
- Não sei por que você é tão cética. Os Illuminati estão bem documentados através
da História.
- As bruxas, os OVNIs e o monstro do Lago Ness também.
Glick leu a lista de matérias.
- Já ouviu falar de um sujeito chamado Winston Churchill?
- O nome não me é estranho.
- A BBC fez um documentário há algum tempo sobre a vida de Churchill.
Bastante liberal, aliás. Sabia que, em 1920, Churchill publicou uma declaração
condenando os Illuminati e prevenindo os ingleses sobre uma conspiração de
âmbito mundial contra a moralidade?
Macri replicou, irônica:
- E onde saiu? No British Tattler?
Ele sorriu.
- Não, no London Herald. Em 8 de fevereiro de 1920.
- Não é possível.
- Veja para crer.
E ela leu: London Herald. 8 de fev.,1920. Que coisa, jamais pensei...
- Bem, Churchill era meio paranóico.
- E não foi só ele - disse Glick, continuando a ler. - Parece que Woodrow Wilson
fez três pronunciamentos pelo rádio em 1921 chamando a atenção para o controle
crescente dos Illuminati sobre o sistema bancário norte-americano. Quer ouvir um
pedaço da transcrição de um desses pronunciamentos?
- Acho que não.
Mas ele leu a citação assim mesmo.
- Ele disse: "Existe um poder tão organizado, tão sutil, tão completo, tão
penetrante que ninguém deve falar em voz alta quando fizer críticas a ele."
- Nunca ouvi nada sobre eles.
- Talvez porque em 1921 você fosse muito pequena.
- Engraçadinho.
Macri não ligou para a indireta. Sabia que aparentava a própria idade. Com 43
anos, seus cerrados caracóis negros estavam estriados de cinza. Era orgulhosa
demais para pintá-los. Sua mãe, sulista e batista, ensinara Chinita a ter amorpróprio
e a ser uma pessoa contente consigo mesma. Se você é uma mulher negra,
dizia sua mãe, não há como esconder. Se tentar, vai se dar mal. Levante a cabeça,
sorria bonito e deixe os outros quererem descobrir qual é o segredo que faz você
rir.
- Sabe quem é Cecil Rhodes? - perguntou Glick.
Macri olhou para ele.
- O financista inglês?
- Esse mesmo. Fundou a famosa instituição com o seu nome, a que distribui
bolsas de estudo.
- Não me diga que...
- Um Illuminatus.
- Mentira.
- Não. BBC, 16 de novembro de 1984.
- Nós escrevemos que Cecil Rhodes era um Illuminatus?
- Com todas as letras. E, segundo a nossa rede de emissoras, as bolsas de estudo
Rhodes eram fundos estabelecidos séculos atrás para recrutar as mentes jovens
mais brilhantes do mundo para as fileiras dos Illuminati.
- Isso é ridículo! Meu tio foi um bolsista Rhodes!
Glick piscou um olho.
- Bill Clinton também.
Macri já estava ficando zangada àquela altura. Nunca tivera paciência com o
jornalismo sensacionalista, de baixa qualidade. Ainda assim, conhecia bem a BBC
e sabia que toda matéria que a rede divulgava era cuidadosamente pesquisada e
confirmada.
- E desta aqui você deve lembrar - disse Glick. - BBC, 5 de março de 1998. O
presidente da Câmara dos Comuns no Parlamento Britânico, Chris Mullin,
determinou que todos os membros que fossem maçons declarassem abertamente
sua filiação.
Macri de fato se lembrava. O decreto acabara incluindo também policiais e juízes.
- Qual foi mesmo o motivo alegado?
Glick leu: "...preocupação que facções secretas dentro da maçonaria exercessem
controle significativo sobre os sistemas político e financeiro."
- Isso mesmo.
- Causou um tremendo alvoroço. Os maçons do Parlamento ficaram furiosos.
Com razão. A grande maioria era composta de homens inocentes que haviam
entrado para a maçonaria com o objetivo de estabelecer uma rede de contatos e
realizar obras de caridade. Desconheciam completamente as antigas filiações da
fraternidade.
- Supostas filiações.
- Seja lá o que for. - Glick correu os olhos pelos artigos. - Veja só. Há relatos que
associam os illuminati a Galileu, aos Guerenets, na França, aos Alumbrados, na
Espanha. Até a Karl Marx e à Revolução Russa.
- A História sempre encontra um jeito de se corrigir.
- Ótimo, quer algo mais atual? Dê uma olhada nisto. Uma referência aos
Illuminati em um número recente do Wall Street Journal.
O nome chamou a atenção de Macri.
- O Journal?
- Adivinhe qual é o jogo de computador pela Internet mais popular nos Estados
Unidos hoje em dia?
- Coloque uma Cauda em Pamela Anderson.
- Quase. Chama-se Illuminati: Nova Ordem Mundial.
Macri leu por cima do ombro dele a sinopse do jogo. "Steve Jackson Games tem
um jogo que é um sucesso estrondoso, uma aventura semi-histórica na qual uma
antiga fraternidade satânica da Bavária se mobiliza para tomar conta do mundo.
Você pode encontrá-lo on-line em..." Macri interrompeu a leitura com uma
sensação de repugnância.
- O que esses Illuminati têm contra o cristianismo?
- Não é só contra o cristianismo - disse Glick -, é contra a religião em geral.
- Ele inclinou a cabeça para o lado e esticou os lábios em um sorriso largo.
- Embora, pelo que ouvi no telefonema que nós acabamos de receber, pareça que
eles têm mesmo um fraco pelo Vaticano.
- Ora, tenha dó, você acha mesmo que o cara que ligou é quem diz que é?
- Um mensageiro dos Illuminati? Que está se preparando para matar quatro
cardeais? - Glick sorriu. - Tomara que seja.
CAPÍTULO 64
O táxi de Langdon e Vittoria completou a corrida desenfreada de cerca de um
quilômetro e meio pela ampla Via delia Scrofa em pouco mais de um minuto.
Pararam com uma freada barulhenta no lado sul da Piazza del Popolo quase às
oito horas. Como não tinha liras, Langdon teve de pagar o motorista em dólares, e
a mais. Ele e Vittoria saltaram depressa do carro. A piazza estava sossegada,
exceto pelas risadas de um grupo de freqüentadores sentados do lado de fora do
popular Rosati Caffè, um local favorito dos literatos italianos. A brisa cheirava a
café expresso e a massa de torta.
Langdon ainda estava em estado de choque por causa de seu engano no Panteão.
Bastou um rápido olhar para aquela praça, porém, e seu sexto sentido começou a
dar avisos. A piazza estava sutilmente impregnada de significados próprios dos
Illuminati. Não só a sua forma era uma elipse perfeita, como no centro exato
erguia-se um enorme obelisco egípcio, uma coluna quadrada de pedra com uma
ponta distintamente piramidal. Despojos dos saques da Roma imperial, os
obeliscos espalhavam-se por toda a cidade e eram chamados pelos simbologistas
de "Pirâmides Elevadas' extensões voltadas para o céu da sagrada forma
piramidal.
Enquanto contemplava o monolito, porém, sua atenção foi atraída para algo mais
ao fundo. Algo ainda mais extraordinário. - Estamos no lugar certo - disse em voz
baixa, sentindo uma cautela repentina. - Dê uma espiada naquilo. - E apontou para
a imponente Porta del Popolo, a grande arcada de pedra na extremidade oposta da
piazza.
Havia séculos que aquela estrutura se elevava acima da praça. No meio do ponto
mais alto do arco destacava-se um relevo simbólico. - Já viu aquilo antes em
algum lugar?
Vittoria examinou o imenso relevo.
- Uma estrela brilhando em cima de uma pilha triangular de pedras?
Langdon fez que sim.
- Uma fonte de iluminação, de esclarecimento, em cima de uma pirâmide.
Vittoria arregalou os olhos.
- Igual ao sinete dos Estados Unidos?
- Exato. O símbolo maçônico na nota de um dólar.
Vittoria tomou fôlego e correu os olhos pela praça.
- Então, onde fica essa bendita igreja?
A Igreja de Santa Maria del Popolo, colocada de través na base de uma colina na
extremidade sudoeste da piazza, lembrava um deslocado navio de guerra. A alta
construção de pedra do século XI parecia ainda mais desajeitada com a torre de
andaimes que lhe cobria a fachada.
Os pensamentos de Langdon eram um borrão enquanto eles se encaminhavam
apressados para o edifício.
Olhava para a igreja, atônito. Será que um assassinato iria mesmo se realizar lá
dentro? Torcia para que Olivetti chegasse depressa. O revólver em seu bolso
dava-lhe uma sensação incômoda.
As escadas na frente da igreja eram ventaglio - em acolhedor formato de leque -,
uma ironia, no caso, porque estavam bloqueadas por andaimes, material de
construção e uma placa com um aviso:
CONSTRUZIONE. NON ENTRARE.
Uma igreja fechada para reformas significava total privacidade para um assassino.
Ao contrário do Panteão. Aqui não havia necessidade de truques fantasiosos.
Bastava achar um modo de entrar. Vittoria esgueirou-se sem hesitação entre os
cavaletes e subiu a escada.
- Vittoria - Langdon, precavido, lembrou -, se ele ainda estiver aí...
Vittoria não lhe deu ouvidos. Subiu para o pórtico principal onde se encontrava a
única porta da igreja, de madeira. Langdon subiu correndo as escadas atrás dela.
Antes que ele pudesse falar qualquer coisa, ela segurou a maçaneta da porta e
puxou-a. Langdon prendeu a respiração. A porta nem se mexeu.
- Deve haver outra entrada - disse ela.
- Provavelmente - disse Langdon, soltando o ar dos pulmões -, mas Olivetti vai
estar aqui em um minuto. É perigoso demais entrar agora. Deveríamos ficar
tomando conta da igreja daqui até...
Vittoria virou-se para ele, fulminando-o com os olhos.
- Se existe outra entrada, existe outra saída. Se esse cara sumir, estamos fungiti.
O italiano de Langdon era suficiente para saber que ela estava certa.
O corredor do lado direito da igreja era apertado e escuro, com muros altos dos
dois lados. Cheirava a urina, um odor comum em uma cidade em que o número de
bares superava o de banheiros públicos na proporção de 20 para 1.
Langdon e Vittoria mergulharam na fétida penumbra. Uns dez metros depois,
Vittoria apertou o braço de Langdon e apontou para algo adiante.
Langdon também tinha visto. Tratava-se de uma porta simples de madeira com
pesadas dobradiças. Ele a identificou como a habitual porta sacra - uma entrada
particular para o clero. Fazia tempo que a maioria dessas portas deixara de ser
usada, à medida que o avanço dos prédios novos e as limitações do setor
imobiliário iam banindo as entradas laterais para vielas incômodas.
Vittoria correu para a porta. Ao chegar, olhou para baixo, perplexa, procurando a
maçaneta. Langdon aproximou-se por trás e viu a peculiar argola em forma de
rosquinha pendurada onde deveria estar a maçaneta.
- Um annulus - ele cochichou. Estendeu a mão e, sem fazer ruído, segurou o anel
e puxou-o para si.
Ouviu-se um dique. Vittoria mexeu-se, de repente inquieta. Em silêncio, Langdon
torceu o anel no sentido horário. O anel girou em falso 360 graus sem se encaixar.
Langdon franziu a testa e tentou a outra direção, com o mesmo resultado.
Vittoria examinou o resto da viela.
- Será que pode haver outra entrada?
Ele achava que não. A maioria das igrejas da Renascença fora projetada
para funcionar também como fortaleza improvisada caso a cidade fosse tomada de
assalto. Por isso tinham o menor número possível de entradas.
- Se houver outra entrada - disse ele -, vai estar provavelmente escondida
no bastião dos fundos, mais uma saída para fugas do que uma entrada.
Vittoria já estava a caminho.
Langdon seguiu-a um bom pedaço pela viela. Os muros elevavam-se dos dois
lados. Em algum lugar, um sino bateu oito horas...
Robert Langdon não escutou quando Vittoria o chamou pela primeira vez. Ele
parara junto a uma janela de vitral protegida por barras de ferro e estava tentando
enxergar o interior da igreja.
- Robert! - a voz dela vinha em um sussurro alto.
Langdon levantou a cabeça. Vittoria estava no final da viela. Apontava para os
fundos da igreja e acenava para que ele se aproximasse. Ele trotou com relutância
na direção dela. Na base da parede traseira, um bastião de pedra projetava-se para
fora escondendo uma cavidade estreita, uma espécie de passagem apertada que ia
direto para a base da igreja.
- É uma entrada? - perguntou Vittoria.
Langdon concordou. Na realidade, trata-se de uma saída, mas não vamos discutir
esses detalhes agora.
Vittoria ajoelhou-se e espiou para dentro do túnel.
- Vamos examinar a porta, ver se está aberta.
Ele abriu a boca para objetar, mas ela o pegou pela mão e puxou.
- Espere - disse Langdon.
Ela se virou para ele, impaciente.
Ele suspirou.
- Eu vou na frente.
Vittoria surpreendeu-se.
- Mais cavalheirismo?
- A idade antes da beleza.
- Isso foi um elogio?
Langdon sorriu e passou à frente dela para a escuridão.
- Cuidado com os degraus.
Ele avançou aos poucos, às cegas, com uma das mãos na parede lateral. Sentia a
aspereza da pedra nas pontas dos dedos. Por um instante, lembrou-se do velho
mito de Dédalo, de como o rapaz manteve a mão na parede através do labirinto do
Minotauro, sabendo que com certeza encontraria o fim se jamais interrompesse o
contato com a parede. Langdon seguia em frente sem saber muito bem se queria
encontrar o fim.
O túnel estreitou-se ligeiramente e Langdon diminuiu o ritmo. Sentia Vittoria bem
atrás dele. A parede fez uma curva para a esquerda e o túnel se abriu em um nicho
semicircular. Estranhamente, havia uma luminosidade fraca ali. Na penumbra,
Langdon divisou o contorno de uma grossa porta de madeira.
- Opa - disse ele.
- Trancada?
- Estava.
- Estava? - Vittoria veio para o lado dele.
Ele apontou. Iluminada por uma réstia de luz que vinha de dentro, a porta pendia
entreaberta, as dobradiças quebradas por um pé-de-cabra ainda preso à madeira.
Os dois ficaram parados em silêncio por um instante. Então, no escuro, Langdon
sentiu as mãos de Vittoria em seu peito, tateando, esgueirando-se para dentro de
seu casaco.
- Calma, professor - disse ela. - Só estou querendo pegar o revólver.
Naquele momento, dentro dos museus do Vaticano, uma força-tarefa de guardas
suíços espalhava-se em todas as direções. A área estava às escuras e por isso eles
usavam óculos especiais infravermelhos produzidos pelo Corpo de Fuzileiros
Navais norte-americano. Os óculos faziam tudo aparecer sob um lúgubre tom de
verde. Todos os guardas usavam fones de ouvido ligados a um detector parecido
com uma antena que oscilava ritmicamente à frente deles - os mesmos aparelhos
que utilizavam duas vezes por semana para fazer a varredura de grampos
eletrônicos nas dependências do Vaticano. Movimentavam- se de maneira
metódica, verificando atrás de estátuas, no interior de nichos, dentro de armários,
sob os móveis. As antenas produziriam um ruído característico se detectassem
qualquer campo magnético por menor que fosse.
Naquela noite, porém, não estavam emitindo nenhum sinal.
CAPÍTULO 65
O interior de Santa Maria del Popolo era como uma caverna tenebrosa na
claridade que se extinguia aos poucos. Parecia mais uma estação de metrô em
obras do que uma catedral. A nave central assemelhava- se a uma pista de
obstáculos, com montes de pedaços do piso arrancado, tijolos, areia, carrinhos de
mão e até uma escavadeira enferrujada. Colunas gigantescas erguiam-se do chão
sustentando o teto abobadado. No ar, uma poeira fina flutuava quase imóvel
contra o brilho embaçado dos vitrais. Langdon e Vittoria encontravam-se sob um
extenso afresco de Pinturicchio e corriam os olhos pelo santuário desmantelado.
Nada se movia. Havia um silêncio mortal.
Vittoria segurou o revólver com as duas mãos estendidas diante de si. Langdon
verificou seu relógio: 8h04 da noite. Somos malucos por vir aqui, pensou. É
perigoso demais. No entanto, sabia que se o assassino estivesse dentro da igreja
poderia sair pela porta que quisesse e, portanto, seria completamente inútil
ficarem à espreita do lado de fora com uma única arma. O jeito seria pegá-lo ali
dentro, isto é, se ele ainda não tivesse ido embora. Langdon culpava-se pelo fiasco
que os fizera perder tempo no Panteão. Não lhe cabia agora insistir em
precauções. Era ele o responsável por estarem naquele beco sem saída.
Vittoria, aflita, examinava a igreja.
- Então - cochichou ela -, onde é que fica essa Capela Chigi?
Langdon olhou para a parte de trás da catedral através daquela meia-luz
fantasmagórica e estudou as paredes externas. Ao contrário do que se costuma
pensar, as catedrais renascentistas invariavelmente tinham diversas capelas, sendo
que grandes catedrais como a Notre-Dame possuíam muitas. Essas capelas não
eram aposentos e sim vãos, concavidades - nichos semicirculares contendo
tumbas ao longo do perímetro da igreja.
Más notícias, pensou Langdon ao divisar quatro recessos em cada uma das
paredes laterais. Havia um total de oito capelas. Embora oito não fosse um
número tão exagerado assim, as quatro aberturas estavam cobertas com imensos
plásticos transparentes por causa da obra, as cortinas translúcidas provavelmente
tendo a função de proteger da poeira as tumbas que ficavam dentro das capelas.
- Pode ser qualquer um desses espaços cobertos - respondeu Langdon.
- Não há como saber qual é a Capela Chigi sem olhar dentro de cada um. O que é
uma boa razão para esperar por Oliv...
- Qual é a segunda abside à esquerda? - perguntou ela.
Surpreso ao vê-la dominar a terminologia de arquitetura, ele repetiu:
- Segunda abside à esquerda?
Vittoria mostrou a parede atrás de si. Havia um azulejo decorativo engastado na
pedra. Nele estava gravado o mesmo símbolo que tinham visto do lado de fora -
uma pirâmide sob uma estrela reluzente. Ao lado, em uma placa suja de poeira,
lia-se:
BRASÃO DE ALEXANDER CHIGI
CUJA TUMBA ESTÁ LOCALIZADA NA
SEGUNDA ABSIDE À ESQUERDA DESTA CATEDRAL
Quer dizer que o brasão dos Chigi era uma pirâmide e uma estrela?, pensou
Langdon. E conjeturou se o abastado patrono Chigi não teria sido um Illuminatus.
Cumprimentou Vittoria.
- Bom trabalho, Nancy Drew.
- O quê?
- Nada. Eu...
Uma peça de metal caiu no chão a apenas alguns metros deles. O barulho ecoou
pela igreja inteira.
Langdon puxou Vittoria para trás de uma coluna e ela, ao mesmo tempo, apontou
o revólver para a direção de onde vinha o ruído, mantendo-o firme. Silêncio. Eles
esperaram. De novo, ouviu-se um som, dessa vez um ruído farfalhante. Langdon
prendeu a respiração. Nunca deveria ter consentido em virmos para cá! O barulho
ficou mais próximo, um som intermitente de um pé se arrastando, como o de um
homem que mancasse. Súbito, junto à base da coluna, apareceu algo assustador.
- Figlio di una puttana! - xingou Vittoria em voz baixa, pulando para trás.
Langdon recuou junto com ela.
Ao lado da coluna, arrastando um sanduíche meio comido e embrulhado em
papel, havia um rato enorme.
A criatura parou quando deu com eles, examinou longamente o cano do revólver
de Vittoria e depois, sem se abalar, continuou a arrastar sua presa para algum
recanto da igreja.
- Filho da... - arquejou Langdon, o coração em disparada.
Vittoria abaixou a arma, recompondo-se rapidamente. Langdon esticou a cabeça e
viu, do outro lado da coluna, a lancheira de um operário caída no chão, que o
engenhoso rato derrubara de cima de um cavalete.
Langdon procurou alguma coisa em movimento dentro da igreja e sussurrou:
- Se o sujeito está aqui, é claro que ouviu isso. Tem certeza de que não quer
esperar por Olivetti?
- Segunda abside à esquerda - repetiu Vittoria -, onde é?
A contragosto, Langdon tentou se orientar. A terminologia das catedrais era igual
à das instruções para a representação de uma peça teatral - o inverso do que
manda o instinto. Ficou de frente para o altar-mor.
Centro do palco. Então, apontou com seu polegar para trás por cima do ombro.
Os dois se viraram e olharam para onde ele apontava.
A Capela Chigi estava localizada no terceiro dos quatro recessos à direita deles. A
boa notícia é que eles estavam do lado certo da igreja. A má é que estavam na
extremidade errada. Teriam de percorrer toda a extensão da catedral e passar por
três outras capelas, todas elas, assim como a Capela Chigi, cobertas por cortinas
de plástico translúcido.
- Espere - disse ele. - Vou na frente.
- Nem pensar.
- Fui eu quem fez a besteira de ir para o Panteão.
- Mas sou eu quem está com o revólver.
Ele via refletido em seu olhar, porém, o que ela estava realmente pensando.
Fui eu quem perdeu o pai.
Fui eu quem ajudou a criar uma arma de destruição em massa. Quero a pele desse
sujeito.
Langdon concluiu que era inútil insistir e deixou-a ir. Foi andando ao lado dela,
cautelosamente, pelo lado leste da basílica. Ao deixarem para trás a primeira
capela coberta, Langdon, tenso, sentiu-se como um concorrente de um daqueles
jogos da televisão. Escolho a cortina número três, pensou. A igreja estava
silenciosa, as grossas paredes de pedra bloqueavam todo vestígio do mundo
exterior. Ao passarem pelas absides, pálidas formas humanas oscilavam como
fantasmas atrás dos plásticos farfalhantes. Esculturas de mármore, ele disse para si
mesmo, torcendo para estar certo. Eram 8h06 da noite.
Será que o assassino tinha sido pontual e caído fora antes que eles entrassem na
igreja? Ou ainda estava lá dentro? Langdon não sabia bem o que era pior.
Passaram pela segunda abside, sinistra na escuridão crescente da catedral. A noite
parecia estar caindo mais depressa, acentuada pelo colorido embaçado dos vitrais.
Quando seguiam adiante, a cortina de plástico a seu lado enfunou-se subitamente,
como se fosse agitada por uma corrente de ar. Langdon se perguntou se alguém
em algum lugar teria aberto uma porta.
Vittoria diminuiu o passo quando a terceira capela surgiu diante deles.
Segurou o revólver à sua frente, indicando com a cabeça a estrela ao lado da
abside. Em um bloco de granito havia duas palavras esculpidas:
CAPELLA CHIGI.
Langdon confirmou com um gesto. Sem fazer ruído, foram para um canto da
abertura, postando-se atrás de uma larga coluna. Dali, Vittoria curvou-se e
apontou o revólver para o plástico. Depois, fez sinal para Langdon afastar o
plástico.
Uma boa hora para começar a rezar, pensou ele. Relutante, estendeu o braço por
cima do ombro dela. Com o maior cuidado possível, começou a puxar o plástico
para o lado. O plástico deslocou-se alguns centímetros e encrespou-se com um
ruído alto. Os dois ficaram imóveis. Silêncio. Após um instante, em câmara lenta,
Vittoria inclinou-se para a frente e espiou através da brecha estreita. Langdon
espiou também, ainda por cima do ombro dela.
Por alguns segundos, nenhum dos dois sequer respirou.
- Vazia - disse Vittoria, afinal, abaixando a arma. - Chegamos tarde demais.
Langdon não escutou. Estava deslumbrado, transportado em um instante para
outro mundo. Jamais imaginara em toda a sua vida uma capela como aquela.
Inteiramente executada em mármore castanho, a Capela Chigi era de tirar o
fôlego. Seu olho treinado devorava tudo avidamente, às porções. A capela não
poderia ser mais terrena, quase como se Galileu e os Illuminati a tivessem
desenhado eles próprios.
No alto, a cúpula abobadada brilhava com um campo de estrelas iluminadas e os
sete planetas astronômicos. Abaixo, os sete signos do zodíaco - símbolos pagãos,
terrenos, cuja origem está associada à astronomia. O zodíaco também estava
ligado diretamente a Terra, Ar, Fogo e Água, os quadrantes representando o
poder, o intelecto, o ardor e a emoção respectivamente. Terra corresponde a
poder, recordou Langdon.
Mais adiante, ele viu na parede tributos às quatro estações temporais da Terra -
primavera, esta te, autunno, invérno. O mais incrível de tudo, porém, eram as duas
imensas estruturas que se elevavam no local. Langdon contemplava-as em
silêncio, pasmo. Não pode ser, pensava. Não é possível! Mas era. De cada lado
da capela, em rigorosa simetria, havia duas pirâmides de mármore de três metros
de altura.
- Não estou vendo nenhum cardeal - cochichou Vittoria. - Nem um assassino.
Ela afastou o plástico e entrou na capela.
Os olhos de Langdon estavam fixos nas pirâmides. O que essas pirâmides estão
fazendo dentro de uma capela cristã? E, inacreditavelmente, ainda havia mais. No
centro de cada pirâmide, engastados em suas fachadas, encontravam- se dois
medalhões de ouro, medalhões como poucos que Langdon jamais vira: elipses
perfeitas. Os discos polidos brilhavam à luz do sol poente que se infiltrava pela
cúpula. As elipses de Galileu? Pirâmides? Uma abóbada de estrelas? O aposento
tinha mais significado Illuminati do que se Langdon o tivesse inventado em sua
cabeça.
- Robert - Vittoria disse abruptamente, a voz trêmula. - Olhe!
Langdon girou nos calcanhares, voltando à realidade ao bater com os olhos no que
ela estava mostrando.
- Raios! - gritou ele, pulando para trás.
Rindo com escárnio para eles do chão havia a imagem de um esqueleto - um
mosaico de mármore intricadamente detalhado representando "a morte em vôo".
O esqueleto carregava uma placa com a mesma imagem da pirâmide e estrela que
tinham visto lá fora. Não havia sido a figura, entretanto, que gelara o sangue de
Langdon. Fora o fato de estar encaixada em uma pedra circular - chamada
cupermento - que tinha sido removida como uma tampa de poço e estava agora
pousada ao lado de uma negra abertura no piso.
- A cova do demônio - disse Langdon com voz entrecortada.
Ele ficara tão absorto no teto que nem notara aquilo. Aproximou-se devagar do
poço. O mau cheiro que vinha dali era insuportável.
Vittoria colocou a mão sobre a boca.
- Che puzzo.
- Eflúvios - disse ele. - Emanações de ossos em decomposição. - Ele respirou
através da manga de sua roupa e inclinou-se para o buraco tentando distinguir
algo dentro dele. Trevas completas. - Não enxergo nada.
- Será que tem alguém lá embaixo?
- Não dá para saber.
Vittoria mostrou a outra extremidade do buraco, onde uma escada de madeira
apodrecida descia para as profundezas.
Langdon sacudiu a cabeça.
- Nem pensar.
- Talvez haja uma lanterna aí fora, junto com aquelas ferramentas. - Ela parecia
ansiosa por uma desculpa para escapar do mau cheiro. - Vou procurar.
- Cuidado! - preveniu ele. - Não temos certeza se o assassino...
Mas Vittoria já se fora.
Mulher voluntariosa, pensou Langdon.
Ao se virar de novo para a cova, ficou um pouco tonto com as emanações.
Prendendo a respiração, deixou a cabeça cair abaixo da borda e esforçou-se para
ver alguma coisa na escuridão. Lentamente, conforme seus olhos se
acostumavam, começou a divisar vagas formas lá embaixo. A cova parecia dar em
uma pequena câmara. A cova do demônio. Pensou em quantas gerações de Chigi
teriam sido jogadas ali sem a menor cerimônia. Fechou os olhos e esperou,
forçando suas pupilas a se dilatarem para enxergar melhor no escuro. Quando
abriu os olhos de novo, uma figura muda e esmaecida pairou nas trevas. Langdon
estremeceu, mas lutou contra a vontade instintiva de sair, de se levantar. Estou
vendo coisas?
Aquilo é um corpo? A figura sumiu aos poucos. Ele fechou os olhos outra vez e
esperou mais tempo agora, de modo que seus olhos pudessem apreender a menor
claridade que existisse.
Uma tonteira instalou-se e seus pensamentos vagaram na escuridão. Só mais uns
segundos. Não sabia se era porque estava respirando aqueles gases ou se por estar
com a cabeça inclinada para baixo, mas decididamente começava a se sentir
nauseado. Quando enfim abriu os olhos, a imagem diante dele era totalmente
inexplicável.
Estava olhando para uma cripta banhada em uma misteriosa luz azulada. Um leve
som sibilante reverberava em seus ouvidos. A luz bruxuleava nas paredes
escarpadas da cavidade. De repente, uma longa sombra materializou-se acima
dele. Assustado, tentou levantar-se depressa.
- Preste atenção! - alguém exclamou atrás dele.
Antes que pudesse se virar, sentiu uma dor aguda na nuca. Deu com Vittoria
afastando dele um maçarico aceso, a chama assoviando e lançando uma luz azul
pela capela.
Langdon pôs a mão na nuca.
- Que diabos está fazendo?
- Estava iluminando o poço para você - disse ela. - Você levantou direto em cima
de mim.
Langdon lançou um olhar feroz para o maçarico portátil na mão dela.
- Foi o melhor que consegui arranjar- explicou ela. - Não achei nenhuma
lanterna.
Langdon esfregou o pescoço.
- Não ouvi você chegar.
Vittoria entregou-lhe o maçarico, fazendo uma careta para o fedor da cripta.
- Acha que esses gases são combustíveis?
- Tomara que não.
Ele pegou o maçarico e levou-o devagar para perto do buraco. Com cuidado,
aproximou-se da borda e apontou a chama para baixo, para dentro do buraco,
iluminando a parede lateral. Direcionou a luz, acompanhando o contorno da
parede na descida. A cripta era circular e tinha cerca de seis metros de diâmetro.
Uns dez metros abaixo, o facho de luz encontrou o chão. Um chão escuro e
mosqueado. De terra.
Então Langdon viu o corpo.
Seu instinto foi recuar.
- Ele está lá - disse, forçando-se a não sair dali.
A figura pálida contrastava com o chão de terra.
- Acho que está nu - e a imagem do cadáver despido de Leonardo Vetra surgiu
como um breve clarão em sua mente.
- É um dos cardeais?
Langdon não tinha a menor idéia, mas não imaginava quem mais poderia ser. Ele
examinou a silhueta clara.
Imóvel. Sem vida. E no entanto... Langdon hesitou. Havia algo muito estranho na
posição daquela figura. Parecia que ele estava...
Langdon chamou:
-Ei!
- Acha que ele está vivo?
Não houve resposta vinda de baixo.
- Ele não está se mexendo - disse Langdon -, mas parece... - Não, impossível.
- Parece o quê? - Vittoria agora também estava espiando lá para baixo.
Langdon apertou os olhos para a penumbra da cova.
- Parece que ele está de pé.
Vittoria prendeu a respiração e inclinou mais o rosto para enxergar melhor.
Depois de um momento, ela ergueu o tronco.
- Você tem razão. Ele está de pé! Talvez esteja vivo e precise de ajuda! - Ela
gritou para dentro do buraco.
- Alô?! Mi puó sentire?
Nenhum eco voltou do fundo do buraco. Só silêncio.
Vittoria dirigiu-se para a frágil escada de madeira.
- Vou descer.
Langdon segurou o braço dela.
- Não. É perigoso. Eu vou. Dessa vez, Vittoria não discutiu.
CAPÍTULO 66
Chinita Macri estava furiosa. Encontrava-se sentada no banco do passageiro do
furgão da BBC, parado em uma esquina na Via Tomacelli.
Gunther Glick estava verificando seu mapa de Roma, aparentemente perdido.
Como ela temia, o homem misterioso ligara de novo, dessa vez com informações.
- Piazza del Popolo - insistia Glick. - É o que estamos procurando. Há uma igreja
lá. E dentro está a prova.
- Prova. - Chinita parou de polir a lente que tinha na mão e voltou-se para ele. -
Prova de que um cardeal foi morto?
- Foi o que ele disse.
- Você acredita em tudo o que ouve? - Chinita gostaria, como sempre, que fosse
ela a tomar as decisões.
Os cinegrafistas, porém, ficavam à disposição dos repórteres malucos para quem
gravavam as matérias. Se Gunther Glick queria seguir uma dica idiota que
recebera pelo telefone, ela teria de ir atrás dele como um cachorrinho na coleira.
Ela o observou, sentado ao lado, a boca apertada, determinado. Os pais dele, na
certa, deviam ser comediantes frustrados para lhe darem aquele nome. Não era à
toa que o sujeito agia como se fizesse questão de provar alguma coisa. Mesmo
assim, apesar do nome e daquela mania irritante de se afirmar, Glick era um doce,
charmoso à sua moda, com aquela sua brancura e o jeito meio ansioso de inglês.
Um Hugh Grant tomando lítio.
- Não seria melhor voltarmos para a Praça São Pedro? - disse Macri, com a maior
paciência possível. - Podemos conferir esse mistério da igreja mais tarde. O
conclave começou há uma hora. E se os cardeais chegarem a uma conclusão
enquanto estamos fora?
Glick pareceu não escutar.
- Acho que temos de ir para a direita aqui. - Entortou o mapa e examinou-o outra
vez. - É, se eu for para a direita e logo em seguida para a esquerda. - E arrancou
com o carro pela rua estreita onde estavam.
- Cuidado! - gritou Macri.
Ela era operadora de vídeo e tinha visão aguçada. Felizmente, Glick também era
rápido. Enfiou o pé no freio e não entrou no cruzamento exatamente quando uma
fila de quatro Alpha Romeos surgiu do nada e passou correndo. Depois de
passarem, os carros diminuíram a velocidade e, cantando pneus, entraram
acelerados à esquerda no quarteirão seguinte, fazendo o mesmo caminho que
Glick pretendia fazer.
- Doidos! - gritou Macri.
Glick parecia abalado.
- Você viu?
- Claro que vi! Eles quase nos mataram!
- Não, estou falando dos carros - disse ele, a voz de repente excitada. - Eram todos
iguais.
- Então, eram doidos sem imaginação.
- Os carros também estavam cheios.
- E daí?
- Quatro carros idênticos, todos com quatro passageiros?
- Já ouviu falar de carona compartilhada?
- Na Itália? - Glick verificou o cruzamento. - Eles ainda nem ouviram falar de
gasolina sem chumbo. - E pisou no acelerador, disparando atrás dos carros.
Macri foi atirada contra o encosto de seu banco.
- Que diabos está fazendo?
Glick desceu a rua à toda e dobrou à esquerda seguindo os Alpha Romeos.
- Algo me diz que você e eu não somos os únicos que estão indo para aquela
igreja agora.
CAPÍTULO 67
A descida foi lenta.
Langdon ia de degrau em degrau pela escada que rangia, cada vez mais fundo sob
o piso da Capela Chigi. Para dentro da cova do demônio, lembrou. Estava de
frente para a parede lateral, de costas para a câmara e perguntou-se quantos
espaços escuros e apertados mais um único dia poderia proporcionar. A escada
gemia a cada passo e o cheiro penetrante de carne decomposta e de umidade era
quase asfixiante. Onde estaria o cretino do Olivetti, pensava Langdon.
A silhueta de Vittoria ainda era visível acima segurando o maçarico dentro do
buraco, iluminando o caminho de Langdon. À medida que ele descia, o brilho
azulado que vinha do alto ficava mais fraco. A única coisa mais forte era o cheiro.
Doze degraus abaixo, aconteceu. O pé dele se apoiou em um ponto escorregadio
da madeira apodrecida e ele se desequilibrou. Atirou o corpo para a frente e
agarrou-se na escada, onde bateu com os antebraços, para evitar uma queda até o
fundo. Amaldiçoando a dor latejante dos braços machucados, puxou o corpo de
volta para os degraus e recomeçou a descida.
Três degraus depois, quase caiu de novo, mas dessa vez por um motivo diferente -
um sobressalto de medo. Ao passar por um nicho escavado na parede, deu de cara
com um monte de caveiras. Quando recuperou o fôlego e olhou em torno,
percebeu que naquele trecho havia diversas aberturas em forma de prateleiras -
nichos funerários -, todas cheias de esqueletos.
Formavam, sob a luminosidade fosforescente, uma colagem sobrenatural de
órbitas vazias e gaiolas torácicas em decomposição tremeluzindo à sua volta.
Esqueletos à luz da fogueira, pensou ele, fazendo uma careta e lembrando que,
por coincidência, vivera uma noite de certa forma semelhante no mês anterior.
Uma noitada de ossos e chamas. O jantar beneficente à luz de velas do Museu de
Arqueologia de Nova York - salmão flambado à sombra de um esqueleto de
brontossauro. Comparecera a convite de Rebecca Strauss, ex-modelo e agora
crítica de arte do Times, um turbilhão de veludo negro, cigarros e seios em
destaque sem qualquer sutileza. Ela lhe telefonara duas vezes desde então e ele
não ligara de volta. Muito pouco cavalheiresco, censurava-se, imaginando quanto
tempo Rebecca Strauss resistiria em uma cloaca como aquela.
Foi um alívio sentir o chão de terra fofa depois do último degrau. Sob os sapatos,
sentiu a umidade do solo. Depois de se assegurar que as paredes não se fechariam
sobre ele, voltou-se para a cripta. Era circular, com uns seis metros de diâmetro.
Respirando de novo através da manga do paletó, olhou para o corpo. Na semiobscuridade,
a imagem era indistinta. Um vulto branco, corpulento. Virado para o
lado oposto. Imóvel. Silencioso.
Avançando pela cripta mal iluminada, Langdon tentou entender o que via. O
homem estava de costas para ele, não podia ver-lhe o rosto, mas parecia mesmo
estar de pé.
- Olá? - disse Langdon, a voz abafada na manga.
Nada. À medida que se aproximava, percebia que o homem era muito baixo.
Baixo demais...
- O que está acontecendo aí? - Vittoria chamou do alto, deslocando o foco de luz.
Langdon não respondeu. Encontrava-se agora próximo o suficiente para ver tudo.
Com um arrepio de repulsa, compreendeu de imediato. A cripta pareceu contrairse
em torno dele. Emergindo como um demônio do chão de terra, havia um
homem idoso, ou metade dele. Fora enterrado até a cintura.
Completamente despido. As mãos atadas atrás do tronco com uma faixa vermelha
de cardeal. Estava molemente inclinado, a espinha arqueada para trás como uma
espécie de medonho saco de treinamento de pugilismo, os olhos voltados para o
céu como se implorasse a ajuda do próprio Deus.
- Ele está morto? - perguntou Vittoria.
Langdon andou para perto do corpo. Espero que sim, para o próprio bem dele. A
poucos centímetros, Langdon viu os olhos azuis voltados para o alto,
esbugalhados e injetados. Curvou-se para escutar se o homem ainda respirava,
mas recuou de imediato.
- Deus do céu!
- O que foi?
Langdon quase vomitou.
- Ele está morto, sim. Acabei de descobrir a causa da morte.
A cena era horripilante. A boca do homem fora escancarada e entulhada de terra.
- Alguém lhe enfiou uma porção de terra na boca. Ele morreu sufocado.
- Terra? - disse Vittoria.
Langdon caiu em si. Terra. Quase esquecera. As marcas. Terra, Ar, Fogo, Água.
O assassino ameaçara marcar cada vítima com um dos antigos elementos da
ciência. O primeiro elemento era Terra.
Da tumba terrena de Santi. Tonto por causa das emanações, Langdon rodeou o
cadáver, ficando de frente para ele. Ao fazê-lo, o simbologista dentro dele
reafirmou enfaticamente o desafio artístico de criar o mítico ambigrama. Terra?
Como? E, entretanto, um instante depois, estava diante dele. Séculos de lendas
sobre os Illuminati rodopiaram em sua mente. A marca no peito do cardeal era
uma queimadura de onde exsudava líquido. A carne estava carbonizada. La lingua
pura...
Langdon fixou o olhar na marca e tudo começou a girar.
EARTH
- Earth - ele sussurrou, virando a cabeça para ler o símbolo ao contrário.
- Terra.
Então, com uma sensação de terror, veio uma percepção final. Há mais três.
CAPÍTULO 68
A despeito da suave luz de velas na Capela Sistina, o cardeal Mortati estava
nervoso, O conclave começara oficialmente. E começara de uma forma muito
pouco auspiciosa.
Meia hora antes, no horário determinado, o camerlengo Carlo Ventresca entrara
na capela. Dirigira-se para o altar-mor e fizera a prece de abertura. Depois, abrira
os braços e falara-lhes da maneira mais direta que Mortati jamais ouvira alguém
falar daquele altar da Capela Sistina.
- Todos têm conhecimento - disse o camerlengo - de que nossos quatro preferiti
não estão presentes no conclave neste momento. Peço-lhes, em nome de Sua
Santidade falecida, que prossigam como deve ser, com fé e determinação. Que
todos possam ter Deus diante de seus olhos.
E preparou-se para sair.
Um dos cardeais não se conteve.
- Mas onde estão eles?
O camerlengo parou.
- Isso, sinceramente, não posso dizer.
- Quando vão voltar?
- Isso, sinceramente, não posso dizer.
- Eles estão bem?
- Isso, sinceramente, não posso dizer.
- Eles vão voltar?
Fez-se uma longa pausa.
- Tenham fé - disse o camerlengo. E saiu da capela.
As portas da Capela Sistina haviam sido seladas por fora, como era o costume,
com duas pesadas correntes. Quatro guardas suíços estavam de sentinela no
saguão ao lado. Mortati sabia que as portas só poderiam ser abertas agora, antes
da eleição de um Papa, se alguém ali dentro caísse seriamente doente ou se os
preferiti chegassem. Ele rezava para que fosse a última alternativa a acontecer,
embora o nó em seu estômago não lhe desse tanta certeza.
Prossigamos como deve ser, decidiu Mortati, tomando como exemplo a firmeza
na voz do camerlengo.
Por isso, iniciara a votação. O que mais poderia fazer?
Haviam sido necessários trinta minutos para que se completassem os rituais
preparatórios desse primeiro escrutínio. Mortati esperara pacientemente no altarmor
que cada cardeal, em ordem de antiguidade, se aproximasse e realizasse o
procedimento específico de votação.
Agora, enfim, o último cardeal havia chegado ao altar e ajoelhava-se diante dele.
- Chamo como testemunha - declarou o cardeal, exatamente como todos os outros
antes dele - Cristo, o Senhor, que saberá que meu voto está sendo dado àquele
que, diante de Deus, julgo que deve ser o eleito.
O cardeal levantou-se. Ergueu sua ficha de voto bem alto, acima da cabeça, para
todos verem. Depois, baixou-a até o altar, onde um prato estava pousado sobre um
grande cálice. Colocou a ficha de voto em cima do prato. Em seguida, pegou o
prato e usou-o para deixar cair a ficha de voto dentro do cálice. O uso do prato era
para garantir que ninguém disfarçadamente pusesse mais de um papel no cálice.
Após dar seu voto, ele recolocou o prato sobre o cálice, inclinou-se na direção da
cruz e voltou para seu lugar.
O último voto fora depositado no cálice.
Chegara a hora de Mortati trabalhar.
Deixando o prato sobre o cálice, Mortati sacudiu as fichas de voto para misturálas.
Em seguida, retirou o prato e tirou uma ao acaso de dentro do cálice.
Desdobrou-o. A ficha de voto tinha exatos cinco centímetros de largura. Ele leu
em voz alta para todos ouvirem.
"Eligo in summum pontificem...", declarou, lendo o texto gravado em relevo no
alto de cada ficha de voto.
Elejo como Sumo Pontífice... E anunciou o nome do indicado que fora escrito
abaixo. Depois de ler o nome, apanhou uma agulha preparada com um fio,
levantou-a e furou a ficha de voto na palavra Eligo, fazendo-a deslizar com
cuidado pelo fio. E tomou nota do voto em um livro de registro.
Em seguida, repetiu o procedimento. Escolheu uma ficha de voto dentro do cálice,
leu o que estava escrito em voz alta, enfiou a ficha no fio e fez a anotação no
livro. Quase imediatamente Mortati percebeu que essa primeira votação não daria
em nada. Não havia consenso. Após sete votos apenas, sete diferentes cardeais já
haviam sido citados. Como era normal, os cardeais haviam procurado disfarçar a
própria letra floreando a escrita ou escrevendo em letra de imprensa. O disfarce
era uma ironia nesse caso porque eles estavam obviamente votando em si
mesmos. Mortati sabia que essa aparente vaidade nada tinha a ver com ambição
pessoal. Tratava-se de uma forma de retenção. Uma manobra defensiva. Uma
tática de protelação para que nenhum cardeal recebesse votos suficientes para
vencer e fosse necessário realizar outra votação.
Os cardeais estavam esperando por seus preferiti Quando a última ficha de voto
foi marcada, Mortati declarou que a votação malograra.
Pegou o fio com todas as fichas de voto presas, amarrou suas pontas formando um
anel e depositou o anel de votos em uma bandeja de prata. Acrescentou os
produtos químicos devidos e levou a bandeja até uma pequena lareira atrás de si.
Ali, pôs fogo nos papéis. Quando estes se queimaram, os produtos químicos que
ele utilizara criaram uma fumaça negra. A fumaça subiu por um tubo até uma
abertura no telhado, de onde se espalhou acima da capela para todos lá fora
verem. O cardeal Mortati acabara de enviar sua primeira comunicação ao mundo
exterior.
Uma primeira votação. O Papa não fora escolhido.
CAPÍTULO 69
Quase asfixiado pelos gases que emanavam da cova, Langdon subiu com
dificuldade pela escada na direção da luz no alto do poço. Ouviu vozes acima,
mas nada fazia sentido. Sua cabeça estava girando com imagens do cardeal
marcado a fogo.
Terra... Terra...
Enquanto se esforçava para subir, sua visão escureceu e ele receou perder a
consciência. A dois degraus da abertura perdeu o equilíbrio. Atirou-se para cima
tentando segurar a borda, mas não a alcançou. As mãos soltaram-se da escada e
ele quase caiu de costas na escuridão. Sentiu uma dor aguda embaixo dos braços e
de repente estava no ar, as pernas balançando loucamente no abismo.
As mãos fortes de dois guardas suíços puxaram-no para cima pelas axilas.
No momento seguinte, a cabeça de Langdon emergiu da cova do demônio,
tossindo e arquejando. Os guardas arrastaram-no e deitaram-no de costas no piso
frio de mármore.
Por um instante, Langdon não soube onde estava. Via estrelas lá em cima,
planetas em órbita. Figuras nebulosas passavam por ele correndo. Pessoas
gritavam. Tentou sentar-se. Estava deitado na base de uma pirâmide de pedra. O
conhecido azedume de uma voz irritada ecoou dentro da capela e então ele voltou
a si.
Olivetti estava gritando com Vittoria.
- Por que cargas d'água vocês não viram isso antes?
Vittoria tentava explicar a situação.
Olivetti interrompeu-a no meio de uma frase e vociferou uma saraivada de ordens
para seus homens.
- Retirem aquele corpo de lá! Vasculhem o resto da igreja!
Langdon fez um esforço para se sentar. A Capela Chigi estava cheia de guardas
suíços. A cortina de plástico que fechava a capela fora arrancada e o ar fresco
encheu seus pulmões. Enquanto ele recobrava lentamente os sentidos, Vittoria
veio em sua direção. Ela se ajoelhou, o rosto igual ao de um anjo.
- Você está bem? - Ela pegou o braço dele e examinou-lhe o pulso. Sentiu a
maciez das mãos dela em sua pele.
- Obrigado - disse ele, sentando-se por completo. - Olivetti está uma fera.
Vittoria assentiu.
- Tem razão de estar. Nós estragamos tudo.
- Eu estraguei tudo.
- Então, redima-se. Pegue-o da próxima vez.
Próxima vez? Langdon achou o comentário cruel. Não haverá próxima vez! Nós
perdemos a chance!
Vittoria verificou o relógio de Langdon.
- Mickey está dizendo que temos quarenta minutos. Ponha a cabeça de volta no
lugar e me ajude a procurar o próximo marco.
- Já lhe disse, Vittoria, as esculturas foram retiradas. O Caminho da Iluminação
está... - e ele se deteve.
Vittoria sorriu com suavidade.
De um salto, Langdon se pôs de pé, cambaleando. Girou de um lado para outro,
zonzo, olhando para as obras de arte que o rodeavam. Pirâmides, estrelas,
planetas, elipses. E tudo lhe voltou. Este é que é o primeiro altar da ciência! Não o
Panteão! Deu-se conta de como toda a capela era tão perfeitamente Illuminati, de
uma forma muito mais sutil e seletiva do que o mundialmente famoso Panteão. A
Capela Chigi era uma alcova afastada, literalmente um buraco na parede, um
tributo a um grande patrono da ciência, decorada com simbologia referente à
Terra. Perfeita.
Langdon encostou-se na parede e examinou as enormes pirâmides esculpidas.
Vittoria estava coberta de razão. Sendo o primeiro altar da ciência, a capela devia
conter ainda a escultura Illuminati que servira de primeiro marco.
Veio- lhe uma sensação eletrizante de esperança ao perceber que ainda havia uma
chance.
Se o marco ainda estivesse ali e pudessem segui-lo até o próximo altar da ciência,
talvez houvesse mesmo outra oportunidade de pegar o assassino.
Vittoria aproximou-se.
- Descobri quem era o escultor Illuminati desconhecido.
A cabeça de Langdon virou-se como se fosse de mola.
-Você o quê?
- Agora só temos de descobrir qual das esculturas aqui dentro é o...
- Espere aí! Você disse que sabe quem era o escultor Illuminati?
Ele passara anos tentando encontrar aquela informação.
Vittoria sorriu.
- Era Bernini - e fez uma pausa. - O Bernini.
Ele tinha certeza de que Vittoria estava enganada. Bernini era uma
impossibilidade. Gianlorenzo Bernini foi o segundo mais famoso escultor de
todos os tempos, sua fama eclipsada apenas pela do próprio Michelangelo.
Durante o século XVII, Bernini criou mais esculturas do que qualquer outro
artista. O homem que procuravam era supostamente um desconhecido, um joãoninguém.
Vittoria franziu as sobrancelhas.
- Você não ficou muito entusiasmado.
- É impossível ser Bernini.
- Por quê? Bernini foi contemporâneo de Galileu. Era um escultor brilhante.
- Era um homem muito famoso e era católico.
- Sim - replicou Vittoria -, exatamente como Galileu.
- Não - argumentou ele -, nem um pouco como Galileu. Galileu era uma pedra no
sapato do Vaticano.
Bernini era o menino-prodígio do Vaticano. A Igreja adorava Bernini. Foi
escolhido como a maior autoridade artística do Vaticano. Ele praticamente viveu a
vida inteira dentro da Cidade do Vaticano!
- Um disfarce perfeito. Infiltração Illuminati.
Langdon estava exaltado.
- Vittoria, os Illuminati referiam-se a seu artista secreto como il maestro ignoto, o
mestre desconhecido!
- Sim, desconhecido para eles. Pense no sigilo dos maçons. Só os membros do
escalão superior sabiam de tudo. Galileu pode ter mantido em segredo para a
maior parte dos membros a verdadeira identidade de Bernini, tendo em vista a
própria segurança de Bernini. Desse jeito, o Vaticano nunca descobriria.
Langdon não se convencera, mas tinha de admitir que a lógica de Vittoria fazia
sentido. Os Illuminati eram famosos por manter informações secretas
compartimentadas, só revelando a verdade aos membros de nível mais alto. Era a
pedra de toque de sua capacidade de se manterem secretos: muito poucos sabiam
a história completa.
- E a filiação de Bernini aos Illuminati - Vittoria acrescentou com um sorriso -
explica por que ele projetou estas duas pirâmides.
Langdon voltou-se para as duas imensas pirâmides esculpidas e sacudiu a cabeça.
- Bernini era um escultor religioso. Jamais teria esculpido estas pirâmides.
Vittoria deu de ombros.
- Diga isso para a placa atrás de você.
Langdon virou-se para a placa:
ARTE DA CAPELA CHIGI
Rafael foi o responsável pela arquitetura, e todas as peças de ornamentação
interior são de autoria de Gianlorenzo Bernini.
Langdon leu a placa duas vezes e ainda assim não se convenceu. Gianlorenzo
Bernini era célebre por suas intricadas esculturas religiosas da Virgem Maria, de
anjos, profetas, de papas.
Como iria esculpir pirâmides?
Langdon olhou para os altivos monumentos e ficou completamente desorientado.
Duas pirâmides, cada uma com um reluzente medalhão elíptico. Não poderia
haver duas esculturas menos cristãs. As pirâmides, as estrelas acima, os signos do
zodíaco. Todas as peças de ornamentação interior são de autoria de Gianlorenzo
Bernini. Se isso fosse verdade, Vittoria tinha de estar certa. À revelia, Bernini era
o mestre Illuminati desconhecido. Ninguém mais contribuíra com obras de arte
para a Capela Chigi! As implicações vieram rápido demais para que Langdon as
processasse.
Bernini era um Illuminatus.
Bernini desenhou os ambigramas dos Illuminati.
Bernini projetou e realizou o Caminho da Iluminação.
Langdon mal conseguia falar. Seria possível que ali, na pequena Capela Chigi, o
mundialmente famoso Bernini tivesse colocado uma escultura que apontava para
o próximo altar da ciência através de Roma?
- Bernini - disse. - Jamais teria imaginado.
- Quem mais senão um famoso artista do Vaticano teria influência política para
colocar suas obras de arte em capelas católicas específicas por Roma afora e criar
o Caminho da Iluminação? Não um desconhecido qualquer.
Langdon ponderou a questão. Examinou as pirâmides, conjeturando se alguma
delas poderia ser o marco.
Quem sabe, ambas?
- As pirâmides estão voltadas para direções opostas - disse Langdon, sem saber
bem como avaliá-las. - Também são idênticas, por isso não sei qual...
- Não acho que as pirâmides sejam o que estamos procurando.
- Mas são as únicas esculturas aqui.
Vittoria interrompeu-o apontando na direção de Olivetti e alguns de seus guardas,
reunidos em torno da cova do demônio.
Langdon acompanhou a linha da mão dela até a parede mais distante. A princípio,
não viu nada. Então, alguém se moveu e ele entreviu alguma coisa. Mármore
branco. Um braço. Um tronco. Depois, um rosto esculpido. Parcialmente oculto
em seu nicho. Duas figuras juntas, em tamanho natural. O pulso de Langdon
acelerou-se. Ficara tão absorvido pelas pirâmides e pela cova do demônio que
sequer vira aquela escultura. Cruzou o recinto pelo meio de todas as pessoas. Ao
se aproximar, reconheceu o puro estilo de Bernini na obra - a intensidade da
composição artística, a complexidade dos rostos e os trajes ondulantes, tudo feito
com o mais puro mármore branco que o dinheiro do Vaticano podia comprar.
Somente quando ficou de frente para ela é que reconhece a própria escultura.
Levantou a cabeça para contemplar os dois rostos e perdeu o fôlego.
- Quem são eles? - perguntou Vittoria, ansiosa, aproximando-se por trás dele.
Langdon continuava boquiaberto.
- Habacuc e o Anjo - disse ele, a voz quase inaudível.
A peça era um trabalho bastante conhecido de Bernini que aparecia em alguns
livros de História da Arte.
Langdon esquecera que estava ali.
- Habacuc?
- É. O profeta que previu a aniquilação da Terra.
Apreensiva, Vittoria perguntou:
- E você acha que esse é o marco?
Langdon balançou a cabeça, extasiado. Nunca em sua vida tivera tanta certeza de
alguma coisa. Aquele era o primeiro marco Illuminati. Sem qualquer dúvida.
Embora esperasse que a escultura de alguma forma "apontasse" para o próximo
altar da ciência, não contava que isso fosse literal. Tanto o anjo quanto Habacuc
tinham os braços estendidos e apontavam para longe.
Vittoria estava excitada mas confusa.
- Ambos estão apontando, mas um contradiz o outro. O anjo está apontando para
um lado e o profeta para o lado oposto.
Langdon deu uma risadinha. Era verdade. As duas figuras estavam de fato
apontando para longe, mas para direções totalmente contrárias. No entanto, ele já
resolvera este problema. Com um impulso de energia, dirigiu-se para a porta.
- Onde é que você vai? - perguntou Vittoria.
- Para fora da igreja! - As pernas de Langdon estavam leves outra vez quando ele
correu para a porta.
- Tenho de ver para qual direção a escultura está apontando!
- Espere aí! Como sabe qual dos dedos tem de acompanhar?
- O poema - ele gritou por cima do ombro. - O último verso!
- Que os anjos o guiem em sua busca sublime? - Ela levantou a cabeça e viu o
dedo estendido do anjo. Seus olhos enevoaram-se sem querer. - Ora, não é que é
mesmo?!
CAPÍTULO 70
Gunther Glick e Chinita Macri estavam sentados dentro do furgão da BBC do
outro lado da Piazza del Popolo, onde havia menos claridade. Tinham chegado
logo depois dos quatro Alpha Romeos, a tempo de presenciar uma inconcebível
sucessão de acontecimentos. Chinita sequer fazia idéia do significado de tudo
aquilo, mas mesmo assim mantivera a câmera funcionando.
Logo ao chegarem, Chinita e Glick tinham visto um verdadeiro exército de
homens sair depressa dos Alpha Romeos e cercar a igreja. Alguns seguravam
armas. Um deles, mais velho e empertigado, saiu acompanhado de um grupo
direto para as escadarias da frente da igreja. Os soldados sacaram armas e
arrebentaram com tiros os cadeados que trancavam as portas. Macri não ouviu
nada e presumiu que eles deviam estar usando silenciadores. Aí, os soldados
entraram na igreja.
Chinita recomendou que os dois ficassem sentados quietos filmando tudo de
longe. Afinal de contas, os outros estavam armados e eles podiam ver tudo muito
bem do furgão. Glick nem discutira. Agora, do outro lado da piazza, havia
homens entrando e saindo da igreja. Gritavam uns para os outros. Chinita ajustou
sua câmera para seguir uma equipe que estava revistando a área ao redor. Todos
eles, apesar de vestidos com roupas civis, se moviam com precisão militar. -
Quem você acha que esses homens devem ser? - perguntou ela.
- Sei lá! - Glick parecia hipnotizado. - Tá pegando tudo?
- Cada cena.
Glick perguntou, cheio de si:
- Ainda acha que devíamos voltar para o plantão do Papa?
Chinita não tinha certeza. Obviamente, algo estava acontecendo ali, mas ela já
trabalhava com jornalismo havia bastante tempo e sabia que muitas vezes
acontecimentos interessantes têm explicações absolutamente sem graça.
- Isso pode não ser nada - disse ela. - Esses caras podem ter recebido a mesma
dica que você e estarem só verificando. Pode ser um alarme falso.
Glick puxou o braço dela.
- Ali! Focalize bem! - e apontou para a igreja.
Chinita girou a câmera de volta para o alto das escadas.
- Olá! - disse ela, acompanhando o homem que agora saía da igreja.
- Quem é o arrumadinho? - perguntou Glick.
Chinita mexeu na lente para obter um dose.
- Nunca o vi antes. - Focalizou o rosto do homem e sorriu. - Mas não me
importaria nem um pouco em vê-lo de novo.
Robert Langdon desceu correndo as escadas do lado de fora da igreja e foi
para o meio da piazza.
Escurecia, o sol de primavera desaparecia tarde no sul de Roma. Àquela hora, já
se escondera por trás dos prédios e havia sombras riscando a praça.
- Muito bem, Bernini - disse ele para si mesmo em voz alta. - Para onde o seu
bendito anjo está apontando?
Examinou a posição da igreja de onde acabara de sair. Imaginou a Capela Chigi e
a estátua do anjo dentro dela. Sem hesitar, virou-se diretamente para oeste, para o
iminente pôr-do-sol. O tempo estava se evaporando.
- Sudoeste - disse, fechando a cara para as lojas e apartamentos que bloqueavam
sua visão. - O próximo marco fica naquela direção.
Quebrando a cabeça, repassou página por página da História da Arte italiana.
Apesar de Langdon conhecer bem a obra de Bernini, o escultor fora prolixo
demais para alguém que não fosse especialista em saber tudo sobre seu trabalho.
Ainda assim, considerando-se a relativa fama do primeiro marco, Habacuc e o
Anjo, Langdon esperava que o segundo fosse uma obra de que ele se lembrasse.
Terra, Ar, Fogo, Água, pensou. Terra já tinham encontrado - dentro da Capela da
Terra -, Habacuc, o profeta que prognosticara a aniquilação da Terra.
Ar é o próximo. Langdon obrigou-se a pensar depressa. Uma escultura de Bernini
que tenha a ver com Ar! Sua cabeça era um branco total. De qualquer maneira,
sentia-se energizado. Estou no Caminho da Iluminação! O caminho ainda está
intacto!
Voltando-se para o sudoeste, esforçou-se para enxergar uma flecha ou uma torre
de igreja projetando-se acima dos obstáculos. Não viu nada. Precisava de um
mapa. Se conseguissem descobrir quais as igrejas que ficavam a sudoeste dali,
talvez uma delas pudesse acender alguma luz na memória de Langdon. Ar,
insistiu ele. Ar. Bernini. Escultura. Pense!
Ele subiu de volta as escadas da catedral. Encontrou-se com Vittoria e Olivetti
debaixo do andaime.
- Sudoeste - disse, arfando. - A próxima igreja fica a sudoeste daqui.
O sussurro de Olivetti saiu frio.
- Tem certeza desta vez?
Langdon não aceitou a provocação.
- Precisamos de um mapa. Um que mostre todas as igrejas de Roma.
O comandante estudou-o um momento, o rosto impassível.
Langdon olhou para o seu relógio.
- Só temos meia hora.
Olivetti passou por ele, desceu as escadas e encaminhou-se para o seu carro,
estacionado bem em frente à igreja. Langdon esperava que ele tivesse ido buscar
um mapa.
Vittoria estava animada.
- Quer dizer que o anjo está apontando para sudoeste? Tem idéia de quais são as
igrejas que ficam a sudoeste?
- Não consigo enxergar além dos malditos prédios. - Virou-se para a praça de
novo. - E não conheço as igrejas de Roma o suficien... - Ele se deteve.
- O que foi? - perguntou Vittoria, assustada.
Langdon correu os olhos pela praça mais uma vez. Por ter subido as escadas, tinha
uma visão melhor ali do alto. Ainda não dava para ver nada, mas sabia que a
direção estava certa. Examinou a instável torre de andaimes acima de sua cabeça:
da altura de um edifício de seis andares, chegava até a rosácea da igreja.
Em um instante Langdon resolveu o que faria em seguida.
Do outro lado da praça, Chinita Macri e Gunther Glick estavam grudados no párabrisa
do furgão da BBC.
- Tá pegando isso aí? - perguntou Gunther.
Macri concentrou-se no homem que agora subia pelos andaimes.
- Ele está bem vestido demais para brincar de Homem Aranha, na minha opinião.
- E quem é a senhora Aranha?
Chinita deu uma olhada na mulher atraente que estava embaixo dos andaimes.
- Aposto que você gostaria de descobrir.
- Acha que devo ligar para a redação?
- Ainda não. Vamos observar. É melhor ter alguma coisa mais concreta antes de
admitir que abandonamos o conclave.
- Será que alguém matou mesmo um dos velhotes aí dentro da igreja?
Chinita deu uma risada.
- Você vai com toda certeza para o inferno.
- Mas vou levando o Pulitzer comigo.
CAPÍTULO 71
Os andaimes tornavam-se menos estáveis quanto mais Langdon subia. Sua visão
de Roma, entretanto, ficava melhor a cada etapa. E ele continuou a subir.
Respirava com mais dificuldade do que esperava quando alcançou a última
plataforma. Puxou o corpo para cima, sacudiu o pó da roupa e ficou de pé. A
altura não o incomodava nada. Na realidade, era até revigorante.
A vista era espetacular. Como um oceano de fogo, os telhados vermelhos de
Roma estendiam-se a seus pés, incandescentes ao pôr-do-sol escarlate. Daquele
ponto, pela primeira vez em sua vida, Langdon viu Roma além da poluição e do
tráfego, enxergou a cidade e suas antigas origens: Città di Dio, a cidade de Deus.
Apertando os olhos para o poente, examinou os telhados à procura de uma igreja.
Mas, apesar de olhar cada vez mais longe na direção do horizonte, não viu
nenhuma. Existem centenas de igrejas em Roma, pensou. Deve existir alguma a
sudoeste daqui! Isto, se a igreja for visível, lembrou a si mesmo. Diabos, e se
ainda estiver de pé!
Obrigando os olhos a traçarem a linha bem devagar, ele reiniciou a busca. Sabia
que nem todas as igrejas teriam flechas visíveis, principalmente as menores e mais
afastadas. Sem falar que Roma mudara muito desde o século XVII, quando as
igrejas eram por lei as construções mais altas. Agora, havia edifícios de
apartamentos, prédios altíssimos, torres de TV.
Pela segunda vez, o olhar de Langdon alcançou o horizonte sem distinguir nada.
Nem uma única flecha.
Ao longe, nos limites de Roma, o colossal domo de Michelangelo encobria o pôrdo-
sol. A Basílica de São Pedro. A Cidade do Vaticano. Langdon deu por si
imaginando como os cardeais estariam se saindo, se a Guarda Suíça já teria
encontrado a antimatéria. Algo lhe dizia que ainda não tinham encontrado nada e
que não iriam encontrar.
O poema ecoava de novo em sua cabeça. Ele o analisou com cuidado, verso por
verso. Da tumba terrena de Santi com a cova do demônio. Já tinham encontrado a
tumba de Santi. Através de Roma se estendem os místicos elementos. Os místicos
elementos eram Terra, Ar, Fogo e Água. O caminho da luz está preparado, o teste
sagrado. O Caminho da Iluminação formado pelas esculturas de Bernini. Que os
anjos o guiem em sua busca sublime.
E o anjo apontava para sudoeste...
CAPÍTULO 72
- As escadas da frente! - Glick exclamou, apontando freneticamente através do
pára-brisa do furgão da BBC. - Alguma coisa está acontecendo!
Chinita voltou sua câmera para a entrada principal. Alguma coisa sem dúvida
estava acontecendo. O homem de aparência militar estacionara um dos Alpha-
Romeos ao do pé da escadaria e abrira a mala do carro. Agora, estava correndo os
olhos pela praça para verificar se havia alguém observando. Por um segundo,
Macri achou que o homem os localizara, mas os olhos continuaram o exame.
Aparentemente satisfeito, ele pegou um walkie-talkie e falou no aparelho. Quase
no mesmo instante, foi como se um exército saísse de dentro da igreja. Tal qual
um time de futebol americano se organizando, os soldados formaram uma linha
reta no alto da escada. Movendo-se como uma parede humana, começaram a
descer. Atrás deles, quase completamente ocultos pela parede, quatro soldados
carregavam um volume. Pesado. Desajeitado.
Glick inclinou-se mais para perto do pára-brisa.
- Será que estão roubando alguma coisa da igreja?
Chinita aproximou mais ainda a imagem de sua câmera, usando a teleobjetiva
para sondar a barreira humana e tentar achar uma abertura. Uma fração de
segundo, pediu ela. Uma enquadrada. Basta uma, só preciso de uma. Mas os
homens deslocavam-se em bloco. Vamos lá! Ela acompanhou-os e valeu a pena.
Quando os soldados tentaram levantar o objeto para colocá-lo na mala do carro,
Macri conseguiu a brecha. Por ironia, foi o chefe quem cometeu o erro. Apenas
por um instante, mas pelo tempo suficiente, ela conseguiu o enquadramento. Na
realidade, conseguiu mais do que isso, conseguiu registrar bem a imagem.
- Ligue para a redação - disse Chinita. - Temos um cadáver aqui.
Longe dali, no CERN, Maximilian Kohler manobrou sua cadeira de rodas dentro
do escritório de Leonardo Vetra. Com eficiência mecânica, revistou os arquivos
de Vetra. Sem ter encontrado o que buscava, Kohler passou para o quarto de
dormir de Vetra. A gaveta de cima da mesa-de-cabeceira estava trancada. Kohler
arrombou-a com uma faca da cozinha.
Dentro, achou exatamente o que estava procurando.
Langdon desceu do andaime para o chão. Limpou a poeira da roupa. Vittoria o
esperava.
- E então, nada?
Ele fez que não com a cabeça.
- Puseram o cardeal na mala do carro.
Langdon olhou para o carro estacionado e viu Olivetti e um grupo de guardas com
um mapa aberto sobre o capô.
- Estão procurando na direção sudoeste?
Ela concordou.
- Mas não há igrejas. Daqui, a primeira é São Pedro.
Langdon murmurou algo. Pelo menos, nisso eles estavam de acordo. Foi ao
encontro de Olivetti. Os soldados afastaram-se para deixá-lo passar.
Olivetti dirigiu-se a ele.
- Nada. Mas este mapa não mostra todas as igrejas, só as grandes. Mais ou menos
umas cinqüenta.
- Onde estamos? - perguntou Langdon.
Olivetti mostrou a Piazza del Popolo e traçou uma linha reta para sudoeste. A
linha passava longe, e bem longe, do agrupamento de quadrados escuros que
indicavam a posição das maiores igrejas de Roma.
Lamentavelmente, as grandes igrejas de Roma também eram as mais antigas que
teriam existido no século XVII.
- Tenho de resolver algumas coisas - disse Olivetti. - Tem certeza mesmo de que a
direção é essa?
Langdon lembrou do dedo estendido do anjo e uma sensação de urgência tomou
conta dele outra vez.
- Sim, senhor, absoluta.
Olivetti deu de ombros e traçou a linha reta outra vez. O caminho cruzava a Ponte
Margherita, a Via Cola di Riezo e passava pela Piazza del Risorgimento sem
encontrar qualquer igreja até terminar abruptamente no centro da Praça de São
Pedro.
- Por que não pode ser São Pedro? - perguntou um dos soldados. Ele tinha uma
cicatriz profunda sob o olho esquerdo. - É uma igreja.
Langdon sacudiu a cabeça.
- Tem de ser um lugar público. Neste momento, não é nada público.
- Mas a linha atravessa a Praça de São Pedro - acrescentou Vittoria, olhando por
cima do ombro de Langdon -, e a praça é pública.
Langdon já considerara aquela possibilidade.
- Mas não há estátuas lá.
- Não há um monumento de pedra no centro?
Ela estava certa. Havia um monólito egípcio na Praça de São Pedro. Langdon
olhou para o monólito diante deles na praça. Pirâmide elevada. Uma estranha
coincidência, pensou ele. Mas deixou-a de lado.
- O monólito do Vaticano não é de Bernini. Foi levado para lá por Calígula. E não
tem nada a ver com Ar. - Ainda havia outro problema. - Além disso, o poema diz
que os elementos estão espalhados através de Roma. A Praça de São Pedro é na
Cidade do Vaticano, não é em Roma.
- Depende do ponto de vista - aparteou um guarda.
Langdon encarou-o.
- O quê?
- Sempre foi um pomo de discórdia. A maioria dos mapas mostra a Praça de São
Pedro como pertencendo à Cidade do Vaticano, mas, por ficar fora dos muros da
cidade, há séculos que as autoridades romanas alegam que é parte de Roma.
- Está brincando - disse Langdon, que nunca soubera disso.
- Só mencionei o assunto - continuou o guarda - porque o comandante Olivetti e a
senhorita Vetra estavam falando sobre uma escultura relacionada ao Ar.
Langdon arregalou os olhos.
- E você conhece uma na Praça de São Pedro?
- Mais ou menos. Não é bem uma escultura. Talvez nem seja relevante.
- Fale - Olivetti pressionou-o.
O homem fez um gesto com o ombro.
- Só sei disso porque em geral fico de sentinela na piazza. Conheço cada cantinho
da Praça de São Pedro.
- A escultura - insistiu Langdon. - Como é? - Ele já considerava a possibilidade de
os Illuminati terem tido a audácia de instalar o segundo marco na frente da
Basílica de São Pedro.
- Passo por ela todos os dias, a serviço - disse o guarda. - Fica no centro, direto
para onde esta linha aponta. Foi o que me fez pensar nela. Como já disse, não se
trata propriamente de uma escultura. É mais um bloco.
Olivetti, agitado, perguntou:
- Um bloco?
- Sim, senhor, um bloco de mármore no meio da praça. Na base do monólito. Mas
o bloco não é um retângulo, é uma elipse. E tem gravado nele a imagem de um
sopro de vento, ondulante. - Ele fez uma pausa. - De Ar, para usar a palavra mais
científica.
Langdon, estupefato, tinha os olhos fixos no jovem soldado.
- Um relevo! - exclamou de repente.
Todos olharam para ele.
- Relevo - disse Langdon - é a outra modalidade de escultura! - Escultura é a arte
de dar forma a figuras em redondo e também em relevo. Escrevera a definição em
quadros-negros durante anos a fio. Os relevos eram essencialmente esculturas
bidimensionais, como o perfil de Abraão Lincon nas moedas norte-americanas de
centavo. Os medalhões de Bernini na Capela Chigi eram outro exemplo perfeito.
- Bassorelevo? - perguntou o guarda, usando o termo artístico italiano.
- Isso! Baixo-relevo! - Langdon deu pancadinhas seguidas no capô do carro.
- Nem me ocorreu essa expressão! A pedra de que está falando se chama West
Ponente - Vento Oeste. Também é conhecida como Respiro di Dio.
- Sopro de Deus?
- Isso! Ar! E foi esculpida e colocada lá pelo arquiteto original!
Vittoria não entendeu.
- Mas não foi Michelangelo que projetou São Pedro?
- Foi, a basílica! - exclamou Langdon, com triunfo na voz. - A praça foi projetada
por Bernini!
Quando a caravana de Alpha Romeos saiu correndo da Piazza del Popolo, todos
estavam com tanta pressa que nem notaram o furgão da BBC arrancando atrás
deles.
CAPÍTULO 73
Gunther Glick afundou o no acelerador do furgão da BBC e foi dando guinadas e
se desviando do trânsito para seguir os quatro rápidos Alpha Romeos através do
rio Tibre pela Ponte Margherita. Normalmente, Glick teria procurado manter uma
distância que não chamasse a atenção, mas naquela hora ele mal conseguia
acompanhá-los.
Os caras estavam voando.
Macri estava em seu local de trabalho dentro do furgão, acabando de falar ao
telefone com Londres.
Quando desligou, gritou para ser ouvida por Glick em meio ao ruído do trânsito:
- Quer as boas ou as más notícias?
Glick fechou a cara. Nada jamais era simples quando se lidava com a sede.
-As más.
- Os editores ficaram furiosos porque abandonamos nosso posto.
- Grande surpresa.
- Eles também acham que o seu informante é um impostor.
- Claro.
- E o chefe acabou de me avisar que devem estar faltando uns parafusos na sua
cabeça.
Glick ficou carrancudo.
- Beleza. E as boas notícias?
- Eles concordaram em dar uma espiada na fita que gravamos.
A carranca de Glick amenizou-se em um sorriso irônico. Então, vamos ver na
cabeça de quem é que faltam parafusos.
- Então, despache logo essa coisa.
- Não posso transmitir enquanto não pararmos e eu tiver um sinal estável.
Glick entrou com o furgão a toda velocidade na Via Cola di Rienzo.
- Não dá para parar agora.
Foi atrás dos Alpha Romeos dando uma guinada violenta à esquerda para
contornar a Piazza Risorgimento.
Macri agarrou seu equipamento lá atrás enquanto tudo deslizava.
- Se quebrar meu transmissor - avisou ela -, vamos ter de levar a fita a pé até
Londres.
- Segure firme, meu bem. Algo me diz que estamos quase chegando.
- Onde?
Glick lançou um olhar para o conhecido domo que ia crescendo na frente deles. E
deu um sorriso.
- Ao lugar de onde saímos.
Os quatro Alpha Romeos desviaram-se com agilidade do tráfego ao redor da
Praça de São Pedro.
Separaram-se e espalharam-se contornando a piazza, enquanto deixavam homens
discretamente em pontos escolhidos. Os guardas que desceram dos carros se
misturaram à multidão de turistas e furgões da imprensa e logo ficaram invisíveis.
Alguns deles se dirigiram para a floresta de colunas que rodeava a praça. Esses
também pareceram evaporar-se nos arredores. Observando tudo através do vidro
do carro, Langdon sentiu que um cerco se fechava em torno de São Pedro.
Além dos homens que acabara de despachar, Olivetti comunicara-se antes com o
Vaticano e destacara mais guardas à paisana para o ponto central onde o West
Ponente de Bernini estava localizado. Os amplos espaços abertos da praça
trouxeram de volta à mente de Langdon a velha pergunta. Como o assassino
Illuminati planeja se safar? Como vai passar com um cardeal por todas essas
pessoas e matá-lo diante de todos? O seu relógio de Mickey Mouse marcava 8h54
da noite. Faltavam seis minutos.
Do banco da frente, Olivetti virou-se para Langdon e Vittoria.
- Quero vocês dois plantados bem em cima daquela placa de Bernini, ou bloco, ou
seja lá o que for. O mesmo truque de antes. Fingindo que são turistas.
Usem o telefone se virem alguma coisa.
Antes que Langdon pudesse responder, Vittoria agarrou a mão dele e puxou-o
para fora do carro.
O sol de primavera escondia-se por trás da Basílica de São Pedro e uma imensa
sombra se espalhava, engolindo toda a praça. Langdon teve um mau
pressentimento quando os dois penetraram na fria e negra penumbra. Infiltrandose
na multidão, Langdon examinava cada rosto pelo qual passavam, imaginando
se o assassino estaria por perto. Sentia o calor da mão de Vittoria na sua.
Ao cruzarem o amplo espaço aberto da Praça de São Pedro, ele constatou como a
praça produzia o efeito exato que o artista pretendera ao criá-la, o que lhe fora
encomendado: o de "despertar um sentimento de humildade em todos que nela
entrassem" Langdon com certeza sentia-se mais humilde naquele momento.
Humilde e faminto, percebeu ele, espantado que uma idéia tão corriqueira lhe
viesse à cabeça àquela altura dos acontecimentos.
- Para o obelisco? - perguntou Vittoria.
Langdon concordou, dirigindo-se para a esquerda através da praça.
- Que horas são? - perguntou Vittoria, andando em passo ligeiro mas
descontraído.
- Faltam cinco.
Vittoria não disse nada, mas apertou com mais força a mão dele. Langdon ainda
trazia o revólver no bolso.
Esperava que Vittoria não decidisse que precisava dele. Não conseguia imaginá-la
sacando uma arma na Praça de São Pedro e explodindo os miolos de um assassino
para toda a imprensa mundial assistir. Entretanto, um incidente desses não seria
nada em comparação com um assassinato ali, em público, de um cardeal marcado
a fogo.
Ar, pensou Langdon. O segundo elemento da ciência. Tentou imaginar como seria
a marca. O método do assassinato. Mais uma vez, correu os olhos pelo pavimento
de granito sob seus pés - a Praça de São Pedro, um descampado rodeado pela
Guarda Suíça. Se o assassino realmente ousasse fazer aquilo, Langdon não sabia
como ele poderia escapar.
No centro da piazza elevava-se o obelisco egípcio de Calígula, pesando 350
toneladas. Tinha 25 metros de altura até a ponta piramidal, encimada por uma
cruz de aço vazada. Alta o suficiente para captar os últimos raios do sol, a cruz
brilhava como se acesa por um passe de mágica, supostamente contendo relíquias
da cruz em que Jesus fora crucificado.
Duas fontes ladeavam o obelisco em perfeita simetria. Os historiadores sabiam
que as fontes assinalavam com precisão os focos da elipse da piazza de Bernini,
mas constituíam uma singularidade arquitetural que Langdon até então não levara
em conta. Parecia que Roma de repente estava cheia de elipses, pirâmides e
elementos geométricos surpreendentes.
Ao se aproximarem do obelisco, Vittoria diminuiu o ritmo. Expeliu com força o ar
dos pulmões, como se incentivasse seu companheiro a relaxar junto com ela.
Langdon colaborou soltando os músculos dos ombros e afrouxando a tensão dos
maxilares.
Em algum ponto em torno do obelisco, audaciosamente colocado junto à maior
igreja do mundo, estava o segundo altar da ciência - o West Ponente de Bernini,
uma placa elíptica na Praça de São Pedro.
Gunther Glick observava tudo protegido pelas sombras das colunas que
circundavam a Praça de São Pedro. Em qualquer outro dia, o homem de paletó de
tweed e a mulher de short cáqui não lhe teriam despertado o mínimo interesse.
Aparentavam ser nada mais do que turistas passeando na praça. Mas aquele não
era um dia qualquer. Aquele fora um dia de informações pelo telefone, carros
policiais sem identificação correndo por Roma afora e um homem de paletó de
tweed subindo em andaimes à procura de sabe-se lá o quê Glick ia ficar atrás dos
dois.
Olhou para o outro lado da praça e viu Macri. Ela fora direto para onde ele lhe
dissera para ir, para o outro lado do casal, rondando na retaguarda deles. Macri
carregava sua câmera de vídeo com ar informal, mas, apesar de estar fazendo
força para imitar uma entediada representante da imprensa, ela chamava mais
atenção do que Glick gostaria. Não havia outros repórteres naquele ponto da praça
e a sigla BBC bem visível em sua câmera estava atraindo os olhares de alguns
turistas.
A fita que Macri gravara mostrando o corpo despido sendo colocado na mala do
carro estava naquele mesmo instante no transmissor de vídeo instalado na parte
detrás do furgão. Glick sabia que as imagens estariam viajando agora via satélite a
caminho de Londres. Imaginava o que o pessoal de lá iria dizer.
Lamentava que ele e Macri não tivessem chegado e encontrado o corpo mais
cedo, antes que o exército de soldados à paisana aparecesse. O mesmo exército,
ele sabia, agora se espalhara e rodeara a praça. Alguma coisa muito importante
estava para acontecer.
A mídia é o braço direito da anarquia, dissera o assassino. Glick conjeturava se
não teria perdido sua grande chance. Olhou os outros furgões da imprensa à
distância e viu Macri seguindo o casal misterioso pela praça. Algo lhe dizia que o
jogo ainda não terminara.
CAPÍTULO 74
Langdon encontrou o que procurava uns dez metros antes de chegarem. Em meio
aos turistas esparsos, a elipse de mármore branco do West Ponente de Bernini
destacava-se dos cubos de granito cinzento que compunham o piso do resto da
piazza. Vittoria também a avistou. Sua mão ficou mais tensa.
- Relaxe - murmurou Langdon. - Faça aquela coisa da respiração.
Vittoria afrouxou o aperto da mão.
À medida que chegavam mais perto, tudo lhes parecia inquietantemente normal.
Turistas vagavam, freiras conversavam ao longo da praça, uma menina dava
comida aos pombos junto à base do obelisco.
Langdon preferiu não olhar o relógio. Sabia que estava quase na hora.
A seus pés surgiu a elipse de pedra e os dois pararam, como se fossem apenas dois
turistas que se detêm para admirar um detalhe de ligeiro interesse.
- West Ponente - disse Vittoria, lendo a inscrição na pedra.
Langdon contemplou o relevo de mármore e sentiu-se subitamente ingênuo.
Nunca, em seus livros de arte ou em suas numerosas viagens a Roma, nunca o
significado pleno do West Ponente lhe saltara tanto aos olhos. Nunca, até aquele
momento.
O relevo era elíptico, com uns 90 centímetros de comprimento, e mostrava um
rosto rudimentar, uma representação do Vento Oeste com um semblante de anjo.
Saindo da boca do anjo, Bernini desenhara um vigoroso sopro de ar que vinha da
direção do Vaticano - o Sopro de Deus. Esse era o tributo de Bernini ao segundo
elemento, Ar, um zéfiro etéreo brotando dos lábios de um anjo. Enquanto o
examinava, Langdon deu-se conta de que o significado do relevo era ainda mais
profundo. Bernini esculpira o sopro de ar com cinco traços distintos - cinco! E
mais, havia duas estrelas reluzentes ladeando o medalhão. Langdon pensou em
Galileu. Duas estrelas, o sopro de cinco traços, elipses, simetria. Sentiu um vazio
e sua cabeça doía.
Vittoria recomeçou a andar quase imediatamente, guiando-o para longe do relevo.
- Acho que alguém está nos seguindo - disse ela.
- Onde? - perguntou Langdon, levantando a cabeça.
Vittoria deslocou-se bem uns 30 metros antes de falar. Apontou para o alto do
Vaticano como se mostrasse algo no domo a Langdon.
- A mesma pessoa que vem vindo atrás de nós o tempo todo através da praça. - De
modo despreocupado, deu uma espiada para trás. - E ainda está aí. Continue
andando.
- Acha que é o Hassassin?
Vittoria fez que não com a cabeça.
- A não ser que os Illuminati contratem mulheres com câmeras da BBC.
Quando os sinos de São Pedro iniciaram seu alarido ensurdecedor, tanto Langdon
quanto Vittoria se sobressaltaram. Estava na hora. Tinham se afastado do West
Ponente fazendo um movimento circular mas agora estavam voltando para perto
do relevo.
Apesar do ressoar dos sinos, o local parecia perfeitamente calmo. Turistas
andavam de um lado para outro.
Um mendigo bêbado cochilava meio desajeitado na base do obelisco. A menina
dava comida aos pombos.
Langdon ponderou se a repórter teria espantado o assassino. Duvido, concluiu ele,
lembrando-se da promessa do matador. Farei de seus cardeais luminares da mídia.
Quando o eco da nona badalada dissipou-se ao longe, um silêncio tranqüilo
desceu sobre a praça.
Então, a menina começou a gritar.
CAPÍTULO 75
Langdon foi o primeiro a alcançar a menina que gritava. Aterrorizada, a garotinha
apontava para a base do obelisco, onde um bêbado decrépito e maltrapilho estava
meio caído nas escadas. O homem tinha um aspecto miserável, devia ser um dos
sem-teto de Roma.
As mechas gordurosas do cabelo grisalho caíam-lhe pelo rosto e o corpo inteiro
estava enrolado em um pano sujo. A menina continuou a gritar enquanto corria
para longe, misturando-se às pessoas.
Langdon foi tomado por uma nova onda de apreensão ao correr na direção do
velho. Havia uma mancha escura se espalhando pelos trapos do homem. Sangue
fresco.
Depois, foi como se tudo acontecesse ao mesmo tempo.
O velho tombou para a frente, oscilante. Langdon precipitou-se para ampará-lo,
mas não houve tempo. O homem rolou as escadas e bateu no chão com o rosto
para baixo. Imóvel.
Langdon caiu de joelhos. Vittoria chegou ao seu lado. Formou-se um ajuntamento
de pessoas.
Vittoria colocou os dedos no pescoço do homem por trás.
- Tem pulso - afirmou. - Vire-o.
Langdon já estava em ação. Segurou o homem pelos ombros e virou-lhe o corpo.
Ao fazê-lo, os trapos que o envolviam soltaram-se como pele morta. O homem
caiu de costas, flácido. Bem no meio de seu peito nu havia uma grande
queimadura.
Vittoria prendeu a respiração e recuou.
Langdon ficou paralisado, em um estado intermediário entre a náusea e o
assombro. O símbolo era de uma simplicidade aterrorizante.
- Ar - arquejou Vittoria. - É ele.
Os guardas suíços surgiram vindos do nada, gritando ordens, correndo atrás de um
assassino invisível.
Perto, um turista explicou que, minutos antes, um homem de pele escura tivera a
gentileza de ajudar aquele pobre mendigo ofegante a atravessar a praça e chegara
a sentar-se por um momento nas escadas com o enfermo antes de voltar e sumir
na multidão.
Vittoria arrancou o resto dos trapos de cima do abdômen do velho. Havia duas
perfurações profundas, uma de cada lado da marca, logo abaixo das costelas. Ela
inclinou a cabeça do homem para trás e iniciou uma respiração boca a boca.
Langdon não estava preparado para o que aconteceu em seguida. Quando Vittoria
soprou, as duas feridas no tórax do homem sibilaram e esguicharam sangue como
se fossem respiradouros de baleia. O líquido salgado atingiu Langdon no rosto.
Vittoria parou, horrorizada.
- Os pulmões dele... - ela gaguejou - foram perfurados.
Langdon enxugou os olhos e viu as perfurações. Os orifícios gorgolejavam. Os
pulmões do cardeal haviam sido destruídos. Ele estava morto.
Vittoria tentou ocultar o corpo enquanto os guardas suíços se aproximavam.
Langdon levantou-se, desorientado. E foi quando a viu. A mulher que os seguira
antes estava agachada ali perto. Tinha sua câmera de vídeo com a sigla BBC
apoiada no ombro, voltada para ele e funcionando. Os dois se entreolharam e ele
percebeu que ela gravara tudo. Depois, como um gato, ela fugiu.
CAPÍTULO 76
Chinita Macri estava fugindo. Conseguira a melhor matéria de toda a sua vida.
Sua câmera de vídeo pesava-lhe como uma âncora enquanto ela atravessava com
dificuldade a Praça de São Pedro, abrindo caminho entre a multidão cada vez
maior. A maioria vinha no sentido oposto ao dela, em direção ao tumulto que se
formara. Macri estava tentando se afastar ao máximo de lá. O homem do paletó de
tweed a vira e agora ela tinha a impressão de que havia outros em seu encalço,
outros que ela não sabia onde estavam e que se aproximavam de todos os lados.
Macri ainda estava horrorizada com as imagens que acabara de gravar. Pensava se
o homem morto seria realmente quem ela imaginava que fosse. O contato
telefônico misterioso de Glick agora lhe parecia menos maluco.
Ela continuava a seguir apressada para o furgão da BBC quando um rapaz com
inconfundível aspecto militar destacou-se do meio da multidão diante dela. Seus
olhos se encontraram e ambos pararam. Rápido, ele sacou um walkie-talkie e
falou ao aparelho. Depois, andou ao encontro dela. Macri fez meia-volta e
misturou-se às pessoas, o coração batendo forte.
Tropeçando no mar de braços e pernas, ela retirou a fita de vídeo gravada de
dentro da câmera. Ouro puro, pensou, enfiando a fita na parte de trás do seu cinto,
escondida pelas abas do casaco. Ao menos uma vez estava satisfeita com seu
excesso de peso. Glick, seu desgraçado, onde está você?
Outro soldado apareceu à sua esquerda, aproximando-se. Macri sabia que tinha
pouco tempo. Meteu-se pelo meio do povaréu outra vez. Tirou uma fita virgem da
maleta e enfiou-a na câmera. E começou a rezar.
Estava a uns 30 metros do furgão quando os dois homens se materializaram na
frente dela, os braços cruzados. Ela não iria a mais lugar nenhum.
- O filme - disse um. - Agora.
Macri recuou, protegendo sua câmera com os dois braços.
- De jeito nenhum.
Um dos homens abriu a jaqueta, mostrando uma arma no coldre.
- Pode atirar em mim, se quiser - disse Macri, espantada com o atrevimento de sua
própria voz.
- O filme - repetiu o primeiro.
Onde foi parar esse maldito Glick? Macri bateu o pé e gritou o mais alto que
pôde.
- Sou uma profissional da BBC! Pelo artigo 12 da Lei da Liberdade de Imprensa,
este filme é propriedade da British Broadcast Corporation!
Os homens nem se abalaram. O que mostrara a arma deu um passo em sua direção
e disse:
- Sou tenente da Guarda Suíça e, de acordo com a Sagrada Doutrina que rege a
propriedade na qual se encontra agora, a senhora está sujeita a busca e apreensão.
Muitas pessoas agora começavam a se reunir em torno deles. Macri gritou:
- Eu me recuso terminantemente a entregar a vocês o filme que está nesta câmera
antes de falar com meu editor em Londres. Sugiro que vocês...
Os guardas não a deixaram continuar. Um arrancou a câmera das mãos dela. O
outro agarrou-a à força pelo braço e virou-a na direção do Vaticano.
- Grazie - dizia ele, empurrando-a através da multidão que se acotovelava.
Macri rezava para que não a revistassem e encontrassem a fita. Se de algum jeito
conseguisse esconder o filme até dar tempo para...
Subitamente, aconteceu o impensável. Alguém estava pondo a mão por baixo do
seu casaco. Macri sentiu a fita ser puxada. Girou o corpo depressa, mas engoliu as
palavras. Atrás dela, um ofegante Glick piscou com uma cara marota e
desapareceu outra vez no meio da multidão.
CAPÍTULO 77
Robert Langdon entrou meio cambaleante no banheiro particular ao lado do
escritório do Papa. Enxugou o sangue no rosto e nos lábios. O sangue não era seu,
mas do cardeal Lamassé, que morrera de modo terrível havia pouco na praça
cheia de gente. Sacrifícios de virgens nos altares da ciência. Até então, o
Hassassin cumprira sua ameaça.
Langdon sentiu-se sem forças ao olhar no espelho. Seu rosto estava abatido, a
barba curta começara a escurecer sua face. O aposento em que se encontrava era
imaculado e luxuoso - mármore negro com ferragens douradas, toalhas de algodão
e sabonetes perfumados.
Tentou apagar de sua mente a marca cruel que vira no peito do cardeal. Ar. A
imagem permanecia. Já vira três ambigramas desde que acordara naquela manhã e
sabia que mais dois estavam a caminho.
Do lado de fora da porta, Olivetti, o camerlengo e o capitão Rocher estavam
discutindo o que fazer em seguida. Pelo jeito, a busca da antimatéria não dera em
nada até aquele momento. Ou os guardas não tinham visto o tubo ou o intruso fora
mais longe dentro do Vaticano do que o comandante Olivetti gostaria de admitir.
Langdon enxugou o rosto e as mãos. Depois, procurou um mictório. Não havia
mictório, somente um vaso sanitário. Ele levantou a tampa do vaso. De pé ali, a
tensão de seu corpo diminuindo, um atordoamento e uma grande exaustão
invadiram-no. As emoções que se emaranhavam em seu peito eram muitas e
muito incongruentes. Estava cansado, sem dormir nem comer, percorrendo o
Caminho da Iluminação e traumatizado por dois assassinatos brutais.
Experimentou um sentimento de horror ainda mais profundo quando pensou no
possível desenlace daquele drama.
Pense, disse a si mesmo. Mas sua mente estava em branco.
Quando acionou a descarga, ocorreu-lhe um pensamento inesperado. Este é o
banheiro do Papa.
Acabei de fazer pipi no banheiro do Papa. Teve de rir. No Trono Sagrado.
CAPÍTULO 78
Em Londres, uma funcionária da BBC tirou uma fita de vídeo de um gravador
conectado via satélite e saiu às pressas da sala de controle. Irrompeu pela sala do
chefe de redação, colocou a fita no aparelho de vídeo dele e apertou o botão play.
Enquanto viam a fita, ela lhe contou sobre a conversa que acabara de ter com
Gunther Glick na Cidade do Vaticano. E acrescentou que obtivera logo depois
uma confirmação da identidade da vítima da Praça de São Pedro nos arquivos
fotográficos da BBC.
Quando o redator-chefe saiu de sua sala, veio tocando uma sineta. Tudo parou na
redação.
- Ao vivo em cinco minutos! - bradou o homem com voz estrondosa.
- Quero gente com talento para editar e colocar no ar! Coordenadores de mídia,
quero seus contatos on-line! Temos uma história para vender! E temos o filme!
Eles pegaram depressa seus cadernos de telefone.
- Especificação do filme? - gritou um deles.
- Tomada de 30 segundos! - respondeu o chefe.
- Assunto?
- Homicídio ao vivo.
Os coordenadores mostraram-se animados.
- Preço para uso e licença?
- Um milhão de dólares.
Cabeças levantaram-se, rápidas.
- O quê?
- Isto mesmo que vocês ouviram! Quero o topo da cadeia alimentar. CNN,
MSNBC e depois as três grandes!
Ofereçam uma apresentação prévia. Dêem a eles uns cinco minutos para se
organizarem antes que a BBC solte a matéria.
- Que diabos aconteceu? - alguém perguntou. - O primeiro-ministro foi esfolado
vivo?
O chefe balançou a cabeça.
- Muito melhor.
Naquele instante preciso, em algum ponto de Roma, o Hassassin desfrutava de um
fugaz momento de repouso em uma cadeira confortável. Admirava o lendário
aposento onde se encontrava. Estou sentado na Igreja da Iluminação, pensou. No
refúgio dos Illuminati. Quase não acreditava que o local ainda estivesse ali depois
de passados tantos séculos.
Zeloso, discou o número do repórter da BBC com quem falara antes. Estava na
hora. O mundo ainda não ouvira a notícia mais chocante de todas.
CAPÍTULO 79
Vittoria Vetra tomou pequenos goles de água e beliscou distraída uns bolinhos
que um dos guardas suíços acabara de lhe servir. Sabia que precisava comer, mas
não tinha vontade, O escritório do Papa estava fervilhante agora, cheio do som de
conversas tensas. O capitão Rocher, o comandante Olivetti e uma meia dúzia de
guardas avaliavam os prejuízos e debatiam o próximo passo a ser dado.
Robert Langdon estava por perto olhando para fora, para a Praça de São Pedro,
com um ar bastante desanimado. Vittoria foi até ele.
- Alguma idéia?
Ele fez que não.
- Quer um bolinho?
O ânimo dele pareceu melhorar ao ver algo para comer.
- Puxa, se quero. Obrigado. - E devorou uns bolinhos.
A conversa atrás deles silenciou de repente quando o camerlengo entrou pela
porta acompanhado por dois guardas suíços. Se o camerlengo já parecera
esgotado antes, pensou Vittoria, agora parecia vazio.
- O que aconteceu? - ele perguntou a Olivetti. Pela expressão de seu rosto, já
tinham lhe contado o pior.
O informe oficial de Olivetti soou como um relatório de baixas em combate.
Enumerou os fatos com seca eficiência.
- O cardeal Ebner foi encontrado morto na igreja de Santa Maria del Popolo logo
depois das oito horas.
Havia sido asfixiado e marcado com a palavra ambigramática "Terra". O cardeal
Lamassé foi assassinado na Praça de São Pedro dez minutos atrás. Morreu de
perfurações no peito. Foi marcado a fogo com a palavra “Ar”, também
ambigramática. O assassino escapou nas duas oportunidades.
O camerlengo cruzou a sala, sentou-se pesadamente atrás da escrivaninha do Papa
e baixou a cabeça.
- Os cardeais Guidera e Baggia, entretanto, ainda estão vivos.
A cabeça do camerlengo levantou-se de um golpe, no rosto uma expressão
de dor.
- E isso por acaso nos serve de consolo? Dois cardeais foram assassinados,
comandante. E os outros dois pelo jeito também não vão permanecer vivos por
muito tempo, a não ser que o senhor os encontre.
- Vamos encontrá-los - garantiu Olivetti -, estamos esperançosos.
- Esperançosos? Só tivemos fracassos.
- Não é verdade. Perdemos duas batalhas, signore, mas estamos vencendo a
guerra. Os Illuminati pretendiam transformar esta noite em um espetáculo para a
mídia. Até agora, frustramos os planos deles.
Os corpos dos dois cardeais foram resgatados sem incidentes. Além disso -
continuou Olivetti -, o capitão Rocher contou-me que está fazendo grandes
avanços na busca da antimatéria.
O capitão Rocher, com sua boina vermelha na cabeça, deu um passo à frente.
Vittoria observou que de certa forma ele parecia mais humano do que os outros
guardas, firme mas não tão rígido. A voz de Rocher era cristalina, com um tom
emocionado, como um violino.
- Espero trazer o tubo para o senhor dentro de uma hora, signore.
- Capitão - disse o camerlengo -, desculpe-me se não demonstro confiança, mas
tive a impressão de que a busca da Cidade do Vaticano levaria muito mais tempo
do que isso.
- Uma busca completa, sim. No entanto, depois de avaliar a situação, creio que o
tubo de antimatéria esteja localizado em uma de nossas zonas brancas, os setores
do Vaticano acessíveis ao público em geral, os museus e a Basílica de São Pedro,
por exemplo. Já desligamos a energia elétrica nessas zonas e estamos realizando a
nossa varredura.
- Vocês pretendem procurar em só uma pequena parcela da Cidade do Vaticano?
- Sim, signore. É muito improvável que um intruso tenha tido acesso às zonas
mais centrais do Vaticano, O fato de a câmera de segurança em questão ter sido
roubada em uma área aberta ao público, um vão de escada de um dos museus,
claramente indica que o invasor tinha acesso limitado. Portanto, só poderia
reinstalar a câmera e deixar a antimatéria em outra área aberta ao público.
É nestas áreas que estamos concentrando nossas buscas.
- Mas esse homem seqüestrou quatro cardeais. O que decerto supõe uma
infiltração mais profunda do que pensávamos.
- Não necessariamente. Precisamos lembrar que os quatro cardeais passaram
grande parte do dia nos museus do Vaticano e na Basílica de São Pedro,
desfrutando destes locais sem a presença do público. É provável que os cardeais
tenham sido capturados em um desses pontos.
- E como foram levados para fora de nossos muros?
- Ainda estamos analisando isto.
- Compreendo. - O camerlengo suspirou e levantou-se. Aproximou-se de Olivetti.
- Comandante, gostaria de saber qual é o seu plano de contingência para uma
evacuação da cidade.
- Ainda estamos formalizando isto, signore. Nesse meio tempo, acredito que o
capitão Rocher vá encontrar o tubo.
Rocher bateu os calcanhares em apreço pelo voto de confiança.
- Meus homens já examinaram dois terços das zonas brancas. Há um alto grau de
confiança.
O camerlengo não demonstrava o mesmo sentimento.
Naquele momento, o guarda com a cicatriz sob um dos olhos entrou trazendo uma
pequena prancheta e um mapa.
Dirigiu-se a Langdon.
- Senhor Langdon? Trouxe a informação que o senhor solicitou sobre o West
Ponente.
Langdon engoliu seu bolinho.
- Ótimo. Vamos a ela.
Os outros continuaram conversando enquanto Vittoria juntava-se a Robert e aos
guardas e eles abriam o mapa sobre a escrivaninha do Papa.
O soldado apontou para a Praça de São Pedro.
- Aqui é onde estamos. O traço do meio do sopro de West Ponente aponta para
leste, direto para fora da Cidade do Vaticano. - O guarda traçou uma linha com
seu dedo a partir da Praça de São Pedro, atravessando o rio Tibre e entrando no
coração da velha Roma. - Como vêem, a linha passa por quase toda Roma.
Existem umas 20 igrejas católicas perto desta linha.
Langdon quase desmontou.
- Vinte?
- Talvez mais.
- A linha passa exatamente em cima de alguma dessas igrejas?
- Algumas estão mais próximas - disse o guarda -, mas transferir as orientações do
West Ponente para um mapa vai dar margem a muitos erros.
Langdon olhou para a Praça de São Pedro por um instante. Depois, coçou o
queixo e perguntou.
- E com relação a fogo? Será que uma delas não teria alguma obra de Bernini
relacionada a fogo?
Silêncio.
- E obeliscos? - perguntou ele. - Existe alguma perto de um obelisco?
O guarda examinou de novo o mapa.
Vittoria viu um lampejo de esperança no rosto de Langdon e adivinhou o que ele
estava pensando. Ele tem razão! Os dois primeiros marcos ficavam perto de
praças que tinham obeliscos. Quem sabe se os obeliscos não seriam o tema?
Pirâmides elevadas marcando a trilha dos Illuminati? Quanto mais Vittoria
pensava mais apropriado lhe parecia: quatro sinais proeminentes erguendo-se
acima de Roma para marcar os altares da ciência.
- É uma probabilidade remota - disse Langdon -, mas sei que muitos dos obeliscos
de Roma foram erigidos ou levados de um lugar para outro no tempo de Bernini.
Ele com certeza esteve envolvido na instalação deles.
- Ou - acrescentou Vittoria - Bernini poderia ter colocado seus marcos perto de
obeliscos já existentes.
- É verdade - concordou Langdon.
- Más notícias - disse o guarda. - Nenhum obelisco nessa reta. - Correu o dedo
pelo mapa. - Nem perto dela. Nada.
Langdon suspirou.
Vittoria deixou os ombros caírem. Achara a idéia boa, mas, pelo jeito, não ia ser
tão fácil quanto esperavam. Esforçou-se para continuar sendo positiva.
- Robert, pense. Você deve conhecer alguma estátua de Bernini que tenha alguma
coisa a ver com fogo. Qualquer coisa.
- Acredite, estive pensando nisso. Bernini era incrivelmente produtivo.
Criou centenas de obras. Contava que o West Ponente indicasse uma única igreja.
Algo que chamasse a atenção.
- Fuàco - insistiu ela. - Fogo. Nenhum título de obra de Bernini lhe ocorre?
- Existem os famosos desenhos de Fogos de Artifício, mas não são escultura e
estão em Leipzig, na Alemanha.
Vittoria fez uma careta.
- E tem certeza de que o sopro é o que indica a direção?
- Você viu o relevo, Vittoria. O desenho é inteiramente simétrico. A única
referência a direção é o sopro.
Vittoria sabia que ele tinha razão.
- Sem falar que, pelo fato de o West Ponente significar Ar, seguir o sopro é
simbolicamente apropriado - acrescentou ele.
Muito bem, pensou ela, então vamos seguir o sopro. Mas para onde?
Olivetti aproximou-se.
- O que encontraram?
- Igrejas demais - disse o soldado. - Umas vinte e tantas. Se puséssemos quatro
homens em cada igreja...
- Esqueça - disse Olivetti. - Já deixamos esse sujeito escapar duas vezes sabendo
exatamente onde ele ia estar. Um cerco maciço deixaria a Cidade do Vaticano
desprotegida e nos obrigaria a cancelar a busca à antimatéria.
- Precisamos de uma obra de referência - disse Vittoria. - Um índice das obras de
Bernini. Se examinarmos os títulos delas, talvez nos ocorra alguma idéia.
- Não sei, não - disse Langdon. - Se for uma obra que Bernini criou
especificamente para os Illuminati, pode ser muito obscura. Não é muito provável
que conste de alguma lista em um livro.
Vittoria recusava-se a acreditar.
- As outras duas esculturas eram muito famosas. Você as conhecia.
- Pois é - disse Langdon.
- Se procurarmos referências à palavra "fogo" em uma lista de títulos, talvez
encontremos uma estátua que esteja na direção certa.
Langdon convenceu-se de que valia a pena tentar. Dirigiu-se a Olivetti.
- Preciso de uma lista de todas as obras de Bernini. Será que vocês têm por aqui
um desses livros grandes sobre Bernini, desses que as pessoas colocam em cima
de mesas baixas para serem folheados?
Olivetti não entendeu a que tipo de livro Langdon se referia.
- Deixe para lá. Qualquer lista de obras serve. No Museu do Vaticano eles devem
ter referências sobre Bernini.
O guarda com a cicatriz fez um aparte.
- O museu está sem luz no momento e a sala de registros é gigantesca. Sem a
equipe de lá para ajudar...
- A obra de Bernini em questão - interrompeu Olivetti - teria sido criada enquanto
Bernini trabalhava aqui no Vaticano?
- Isso é praticamente certo - respondeu Langdon. - Ele passou quase toda a
carreira aqui. E certamente estava aqui durante o período dos conflitos da Igreja
com Galileu.
Olivetti balançou a cabeça.
- Então, existem outras referências.
Vittoria sentiu um lampejo de otimismo.
- Onde?
O comandante não respondeu. Falou à parte e em voz baixa com o guarda. O
guarda pareceu inseguro, mas assentiu com a cabeça, obediente. Quando Olivetti
acabou de falar, o guarda dirigiu-se a Langdon.
- Venha comigo, por favor, senhor Langdon. São 9h 15. Temos de nos apressar.
Langdon e o guarda se dirigiram para a porta.
Vittoria saiu atrás deles.
- Vou junto para ajudar.
Olivetti pegou-a pelo braço.
- Não, senhorita Vetra. Preciso falar com a senhorita.
A pressão da mão dele era firme.
Langdon e o guarda saíram. O rosto de Olivetti parecia uma dura máscara de
madeira quando a levou para um lado.
Entretanto, o que quer que ele fosse dizer, não teve mais oportunidade. Seu
walkie-talkie crepitou alto.
- Commandante?
Todos na sala se viraram.
A voz no transmissor soou desagradável.
- É melhor o senhor ligar a televisão.
CAPÍTULO 80
Ao deixar os Arquivos Secretos do Vaticano apenas duas horas antes, Langdon
jamais pensou que fosse voltar lá. Agora, meio sem fôlego por ter feito todo o
percurso correndo com o guarda suíço que o acompanhava, Langdon encontravase
de volta.
Seu acompanhante, o guarda com a cicatriz, conduziu Langdon ao longo das filas
de cubículos transparentes. O silêncio nos arquivos de certa forma parecia mais
ameaçador do que antes e Langdon ficou satisfeito quando o guarda o quebrou.
- Ali adiante, acho - disse ele, conduzindo Langdon para os fundos da sala, onde
uma sucessão de câmaras menores enfileirava-se ao longo da parede. O guarda
examinou os títulos das câmaras e indicou uma delas.
- Isso mesmo, aqui está. Onde o comandante disse que estaria.
Langdon leu o título. ATTIVI VATICANI. Ativos do Vaticano? Deu uma espiada
na lista de assuntos. Imóveis, moeda, Banco do Vaticano, antiguidades - a lista
prosseguia.
- Documentos de todos os ativos do Vaticano - disse o guarda.
Langdon olhou para o cubículo. Jesus! Mesmo no escuro, dava para ver que
estava lotado.
- Meu comandante disse que tudo o que Bernini criou enquanto trabalhava para o
Vaticano deve estar listado aqui como ativo.
Langdon concordou, achando que o palpite do comandante talvez desse resultado.
No tempo de Bernini, tudo o que um artista criava sob o patrocínio do Papa
tornava-se, por lei, propriedade do Vaticano. Era mais feudalismo do que
mecenato, mas os grandes artistas viviam bem e raramente se queixavam.
- Inclusive obras localizadas em igrejas fora da Cidade do Vaticano?
O soldado lançou-lhe um olhar enviesado.
- Claro. Todas as igrejas católicas de Roma são propriedade do Vaticano.
Langdon deu uma olhada na lista que tinha na mão. Continha o nome das vinte e
tantas igrejas localizadas na linha reta determinada pelo sopro de West Ponente.
O terceiro altar da ciência era uma delas e ele esperava que tivesse tempo de
descobrir qual. Em outras circunstâncias, teria de muito bom grado explorado
pessoalmente cada uma das igrejas. Naquele dia, porém, tinha cerca de 20
minutos para encontrar o que procurava: a igreja que guardava um tributo de
Bernini ao fogo.
Encaminhou-se para a porta giratória eletrônica da câmara. O guarda não o
seguiu. Langdon percebeu uma hesitação nele. Deu um sorriso.
- O ar está ótimo. Rarefeito, mas respirável.
- Minhas ordens foram para acompanhá-lo até aqui e depois voltar imediatamente
para o centro de segurança.
- Você vai embora?
- Vou. A Guarda Suíça não tem permissão para entrar nos Arquivos. Já estou
quebrando o protocolo por acompanhá-lo até este ponto. O comandante
mencionou isto para mim.
- Quebrando o protocolo? Tem alguma noção de o que está se passando por aqui
esta noite? De que lado o seu comandante está, afinal?
Toda a afabilidade desapareceu do rosto do guarda. A cicatriz sob seu olho
estremeceu. Suas feições endureceram e ele ficou bastante parecido com o próprio
Olivetti.
- Desculpe - disse Langdon, arrependendo-se de ter feito o comentário. - É só
porque um pouco de ajuda seria bom.
O guarda nem pestanejou.
- Fui treinado para cumprir ordens. Não para discuti-las. Quando encontrar o que
procura, entre em contato com o comandante imediatamente.
Langdon ficou confuso.
- Mas onde ele vai estar?
O guarda retirou seu walkie-talkie e colocou-o sobre uma mesa próxima.
- Canal um.
E desapareceu na escuridão.

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