quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Pietro é la pietra. Pedro é a pedra.
Pedro tinha uma fé tão sólida em Deus que Jesus o chamava de "a rocha" - o
discípulo resoluto sobre cujos ombros Jesus construiria sua igreja. Naquele lugar
exato, a Colina Vaticana, Pedro fora crucificado e enterrado. Os primeiros cristãos
ergueram um pequeno santuário em cima de sua tumba. À medida que o
cristianismo se espalhava, o santuário foi crescendo pouco a pouco, culminando
com aquela colossal basílica. A fé católica fora construída, de modo bastante
literal, em cima de São Pedro. Da rocha. Da pedra.
- A antimatéria está na tumba de São Pedro - disse o camerlengo com voz
cristalina.
A despeito da suposta origem sobrenatural da informação, Langdon reconhecia
que havia lógica nela.
Colocar a antimatéria na tumba de São Pedro agora parecia dolorosamente óbvio.
Os Illuminati, num gesto de desafio simbólico, tinham escondido a antimatéria no
âmago da cristandade, literal e figurativamente. A suprema infiltração.
- E se vocês precisarem de provas concretas - disse o camerlengo, agora
impaciente -, acabei de encontrar esta grade destrancada - e mostrou a grade
aberta no chão. - Nunca fica destrancada. Alguém esteve aqui embaixo
recentemente.
Todos olharam para dentro da abertura.
No instante seguinte, com insuspeitada agilidade, o camerlengo pegou uma das
lamparinas e desceu as escadas.
CAPÍTULO 119
Os degraus de pedra seguiam em declive acentuado para dentro da terra. Vou
morrer lá embaixo, pensou Vittoria, segurando o corrimão feito de corda pesada
ao enveredar pela passagem estreita atrás dos outros. Embora Langdon tivesse
feito um movimento para impedir que o camerlengo entrasse na abertura da
escada, Chartrand interferira segurando Langdon. Pelo jeito, o jovem guarda
convencera-se de que o camerlengo sabia o que estava fazendo.
Depois de uma breve luta, Langdon soltara-se e seguira o camerlengo, com
Chartrand em seus calcanhares. Instintivamente, Vittoria fora atrás de ambos.
Agora precipitava-se por uma descida íngreme em que qualquer passo em falso
poderia causar uma queda fatal. Bem abaixo, distinguia o brilho dourado da
lamparina de óleo do camerlengo. Na retaguarda, ouvia os repórteres da BBC, que
se apressavam para chegar perto deles. O refletor da câmera lançava sombras
retorcidas nas profundezas, iluminando Chartrand e Langdon. Era inacreditável
que o mundo estivesse testemunhando aquela loucura. Desligue a maldita câmera!
Mas logo depois admitia que sem a luz da câmera nenhum deles saberia aonde
estava indo.
Enquanto aquela corrida louca prosseguia, os pensamentos de Vittoria agitavamse,
tempestuosos. O que o camerlengo poderia fazer ali embaixo? Mesmo que
encontrasse a antimatéria? Não havia mais tempo!
Vittoria surpreendeu-se ao descobrir sua intuição lhe dizendo que o camerlengo
provavelmente tinha razão.
Colocar a antimatéria tão fundo dentro da terra era uma opção quase nobre e
misericordiosa. Àquela profundidade - tal como no laboratório do CERN -, o
aniquilamento da antimatéria seria parcialmente contido. Não haveria o
deslocamento de ar quente nem os fragmentos voando para ferir as pessoas, só
uma abertura bíblica da terra e uma gigantesca basílica desmoronando dentro de
uma cratera.
Teria sido este o único gesto de generosidade de Kohler? Poupar vidas? Vittoria
ainda não compreendia o envolvimento do diretor. Aceitava que tivesse ódio da
religião, mas aquela conspiração apavorante não combinava com ele. Será que a
aversão fora assim tão profunda? A ponto de destruir o Vaticano? De contratar um
assassino? E planejar os assassinatos do pai dela, do Papa e de quatro cardeais?
Parecia impensável. E como teria Kohler induzido toda aquela traição dentro dos
muros do Vaticano? Rocher era o contato de Kohler, pensou Vittoria. Rocher era
um Illuminatus. Devia ter as chaves de todos os lugares - dos aposentos do Papa,
do Passetto, da Necrópole, da tumba de São Pedro, de tudo. Ele próprio poderia
ter colocado a antimatéria na tumba de São Pedro - um local altamente restrito - e
depois ter recomendado que seus guardas não perdessem tempo procurando nas
áreas restritas do Vaticano. Rocher sabia que ninguém jamais encontraria a
antimatéria.
Mas Rocher não contava com a mensagem que o camerlengo recebera do alto.
A mensagem. Vittoria ainda lutava para acreditar nela. Deus teria realmente se
comunicado com o camerlengo? Em seu íntimo, Vittoria dizia que não e, todavia,
a sua especialidade como cientista era a física do entanglement, ou
emaranhamento - a da interconexão. Presenciava comunicações milagrosas todos
os dias - ovos gêmeos de tartarugas marinhas separados e colocados em
laboratórios a quilômetros de distância um do outro que eclodiam no mesmo
instante, milhares de águas-vivas dentro d'água pulsando no mesmo ritmo como
se fossem uma só. Existem linhas invisíveis de comunicação em toda parte,
refletiu.
Mas também entre Deus e o homem?
Vittoria desejou que seu pai estivesse ali para dar-lhe fé. Ele certa vez explicaralhe
a divina comunicação em termos científicos e fizera com que acreditasse.
Ainda lembrava que o vira rezando e perguntara:
- Pai, por que se dá ao trabalho de rezar? Deus não pode responder.
Leonardo Vetra interrompera suas meditações e olhara para ela com um sorriso
paternal.
- Minha filha cética. Quer dizer que você não acredita que Deus fale com o
homem? Deixe que lhe explique com uma linguagem que você compreende. -
Pegou um modelo do cérebro humano em uma prateleira e colocou na frente dela.
- Como já deve saber, Vittoria, os seres humanos normalmente utilizam apenas
uma parcela muito pequena de sua capacidade cerebral. Contudo, se forem
expostos a situações emocionalmente intensas, como traumas físicos, alegria ou
medo extremos, meditação profunda, de repente seus neurônios começam a se
acelerar como loucos, o que resulta em um aumento enorme de clareza mental.
- E daí? - argumentou Vittoria. - Só porque alguém pensa com clareza não
significa que fale com Deus.
- Ah! - exclamou Vetra. - No entanto, soluções extraordinárias para problemas
supostamente impossíveis costumam ocorrer nesses momentos de clareza. É o que
os gurus chamam de consciência elevada. Os biólogos, de estados alterados. Os
psicólogos, de superpercepção - e ele fez uma pausa. - E os cristãos, de preces
atendidas. - Com um sorriso largo, acrescentou: - Às vezes, a revelação divina
significa simplesmente adaptar seu cérebro para escutar o que seu coração já sabe.
Agora, descendo as escadas sombrias, sentia que talvez seu pai tivesse razão.
Seria tão difícil assim acreditar que o trauma sofrido pelo camerlengo tivesse
posto a mente dele em um estado que lhe permitira "perceber" a localização da
antimatéria?
Cada um de nós é um Deus, dissera Buda. Cada um de nós sabe tudo. Precisamos
apenas abrir nossas mentes para escutar nossa sabedoria.
Naquele momento de clareza, descendo ao fundo da terra, Vittoria sentiu sua
mente se abrir, sua sabedoria vir à tona.
Sabia agora sem sombra de dúvida quais eram as intenções do camerlengo.
Aquela conscientização fez Vittoria sentir um medo tão grande como nunca
experimentara antes.
- Camerlengo, não! - gritou. - O senhor não está entendendo! - Vittoria lembrou
da multidão em torno da Cidade do Vaticano e seu sangue gelou nas veias. - Se
levar a antimatéria para cima, toda aquela gente vai morrer!
Langdon descia pulando de três em três degraus, ganhando terreno. A passagem
era apertada, mas ele não sentia claustrofobia. Seu antigo medo paralisante fora
sobrepujado por um terror mais profundo.
- Camerlengo! - Langdon ia diminuindo a distância que o separava do brilho da
lamparina. - O senhor tende deixar a antimatéria onde está! Não há outro jeito!
Ao mesmo tempo em que pronunciava aquelas palavras, Langdon custava a
acreditar no que dizia. Não só aceitara como verdadeira a revelação divina ao
camerlengo da localização da antimatéria, como estava argumentando a favor da
destruição da Basílica de São Pedro - uma das maiores proezas arquitetônicas da
Terra e de toda a arte que ela continha.
Mas há pessoas do lado de fora, é o único jeito.
Parecia uma cruel ironia que a única forma de salvar as pessoas fosse a destruição
da igreja. Langdon imaginava que os Illuminati estivessem achando graça no
simbolismo.
O ar que subia do fundo do túnel era frio e úmido. Em algum ponto lá embaixo
ficava a sagrada Necrópole, onde tinham sido enterrados São Pedro e inúmeros
outros primeiros cristãos. Langdon sentiu um calafrio, esperando que aquela não
fosse uma missão suicida.
Subitamente, a lamparina do camerlengo parou. Langdon logo o alcançou. Os
degraus terminavam abruptamente. Um portão de ferro batido com três caveiras
em relevo fechava a base das escadas. O camerlengo empurrou o portão e o abriu.
Langdon pulou na frente e o fechou, bloqueando o caminho do camerlengo. Os
outros vieram descendo às carreiras, fazendo barulho, todos fantasmagóricos sob
a luz branca do refletor da BBC, sobretudo Glick, cada vez mais lívido.
Chartrand puxou Langdon.
- Deixe o camerlengo passar!
- Não! - exclamou Vittoria, ofegante. - Temos de abandonar este lugar agora
mesmo! O senhor não pode tirar a antimatéria daqui! Se levá-la para cima, todos
os que estão lá fora vão morrer!
A voz do camerlengo estava extraordinariamente calma.
- Todos vocês têm de ter confiança. Temos pouco tempo.
- O senhor não entendeu - disse Vittoria. - Uma explosão ao nível do chão seria
muito pior do que uma explosão aqui embaixo!
O camerlengo olhou para ela, os olhos verdes resplandecentes e firmes.
- Quem falou de explosão ao nível do chão?
Vittoria espantou-se.
- O senhor vai deixá-la aqui?
A convicção do camerlengo era hipnótica.
- Não haverá mais mortes esta noite.
- Padre, mas...
- Por favor, tenham um pouco de fé - a voz dele adquiriu um tom de quietude
irresistível. - Não estou pedindo a ninguém que me acompanhe. Sintam-se todos
livres para ir embora. Só peço que não interfiram com a vontade de Deus. Deixem
que eu faça o que me foi determinado fazer - o olhar do camerlengo ficou mais
intenso. - Tenho de salvar esta igreja. E posso fazê-lo. Juro por minha própria
vida.
O silêncio que se seguiu teve o mesmo efeito de uma trovoada.
CAPÍTULO 120
11h51.
Necrópole significa literalmente "cidade dos mortos".
Nada do que Robert Langdon lera sobre aquele lugar o havia preparado para o que
encontrou. A colossal cavidade subterrânea estava repleta de mausoléus em
ruínas, como pequenas casas dentro de uma caverna. O ar cheirava a ausência de
vida. Uma canhestra rede de caminhos serpenteava entre os monumentos
deteriorados, a maior parte deles feita de tijolos fragmentados e placas de
mármore.
Semelhantes a colunas feitas de pó, inúmeros pilares de terra não escavada
erguiam-se para apoiar um céu também de pó, que se estendia, pesado e baixo,
sobre o pequeno povoado imerso na penumbra.
Cidade dos mortos, repetiu Langdon, dividido entre o deslumbramento acadêmico
e o medo puro e simples. Ele e os outros enveredaram correndo pelas trilhas
sinuosas. Será que fiz a opção errada?
Chartrand tinha sido o primeiro a sucumbir ao fascínio do camerlengo,
escancarando o portão e declarando que confiava nele. Glick e Macri, por
sugestão do camerlengo, tinham nobremente concordado em fornecer luz para a
busca, embora, levando-se em conta os louvores que os esperavam caso saíssem
vivos dali, suas motivações fossem no mínimo suspeitas. Vittoria fora quem
mostrara menos entusiasmo e Langdon vira nos olhos dela uma cautela que se
parecia um bocado com uma inquietante intuição feminina.
Agora é tarde, pensou, enquanto ele e Vittoria corriam junto com os outros. Já
estamos envolvidos.
Vittoria ia calada, mas ele sabia que ambos pensavam a mesma coisa. Nove
minutos não bastam para sair da Cidade do Vaticano se o camerlengo estiver
errado.
Rodeando os mausoléus, Langdon começou a sentir as pernas cansadas, notando
com surpresa que o grupo estava subindo uma elevação acentuada. Ao perceber o
motivo, sentiu arrepios. A topografia sob seus pés era a do tempo de Cristo.
Estavam subindo a Colina Vaticana original! Já ouvira especialistas em Vaticano
afirmar que a tumba de São Pedro ficava quase no alto da Colina Vaticana e
sempre se perguntara como eles poderiam saber. Agora compreendia. A maldita
colina ainda existe!
Tinha a impressão de estar percorrendo páginas de um livro de história. Em algum
ponto adiante encontrava-se a tumba de São Pedro - a relíquia cristã por
excelência. Era difícil conceber que a sepultura original tivesse sido assinalada de
início apenas com um modesto santuário. Não mais. À medida que se espalhou a
importância de São Pedro, novos santuários foram construídos por cima do antigo
e agora a homenagem prolongava-se quase 135 metros para o alto, até o topo do
domo de Michelangelo, cujo ápice fora posicionado diretamente acima da tumba
original com uma insignificante margem de erro.
A subida tortuosa continuava. Langdon olhou o relógio. Oito minutos. Começava
a achar que ele e Vittoria em breve fariam companhia permanentemente àqueles
mortos.
- Cuidado! - Glick gritou atrás deles. - Buracos de cobra!
Langdon viu-os a tempo. Uma sucessão de pequenos orifícios pontilhava o
caminho à frente. Deu um pulo, esquivando-se.
Vittoria pulou também, quase pisando nos buracos. Perguntou, inquieta, enquanto
seguiam adiante:
- Buracos de cobra?
- Não exatamente - disse Langdon. - Tenho certeza de que não vai querer saber o
que são.
Os orifícios eram tubos de libações. Os primeiros cristãos acreditavam na
ressurreição da carne e usavam aqueles buracos para literalmente "alimentar os
mortos", derramando leite e mel nas criptas sob o chão.
O camerlengo sentiu-se fraco.
Mas não se deteve, as pernas encontrando forças no cumprimento de seu dever a
Deus e aos homens. Quase chegando. Sentia dores incríveis. A mente pode causar
muito mais dor do que o corpo. Ainda assim, sentia-se cansado. Sabia que
dispunha de muito pouco tempo.
- Vou salvar sua igreja, meu Pai. Juro.
Apesar da luz da BBC atrás dele, pela qual era grato, o camerlengo levava sua
lamparina de óleo com o braço levantado. Sou um farol na escuridão. Sou a luz. O
óleo balançava conforme ele corria e, por um instante, receou que o líquido
inflamável se derramasse e o queimasse. Sua carne já fora queimada demais por
uma noite.
Quando se aproximou do alto da colina, estava encharcado de suor, com a
respiração difícil. Ao atingir o topo, entretanto, sentiu-se renascer. Parou
cambaleante sobre o trecho plano de terra onde já estivera muitas vezes. O
caminho terminava ali. A Necrópole chegava abruptamente ao final em uma
parede de terra. Um marco diminuto trazia a inscrição: Mausoleum 5.
La tomba di San Pietro.
Havia uma abertura na parede que lhe chegava à cintura. Sem nenhuma placa
dourada. Sem ostentação. Somente uma simples cavidade na parede, além da qual
havia uma pequena gruta e um sarcófago pobre, esfacelando-se. O camerlengo
lançou um olhar lá dentro e deu um sorriso cansado. Ouvia os outros se
aproximando. Pousou sua lamparina de óleo no chão e ajoelhou-se para rezar.
- Obrigado, meu Deus. Está quase acabando.
Do lado de fora, na praça, rodeado pelos cardeais atônitos, o cardeal Mortati
acompanhava pela tela grande o drama que se desenrolava na cripta. Não sabia
mais em que acreditar. Será que o mundo inteiro vira o mesmo que ele? Deus teria
mesmo falado com o camerlengo? Será que a antimatéria iria de fato aparecer na
Basílica de São...
- Olhem! - o povo prendeu a respiração.
- Está lá! - todos apontavam para a tela. - É um milagre!
Mortati olhou para cima. A câmera não estava firme, mas a imagem era bem
clara. E inesquecível.
Filmado de trás, o camerlengo estava rezando ajoelhado no chão de terra. Na
frente dele, um buraco tosco cavado na parede. Dentro, em meio a pedregulhos e
terra acumulados pelo tempo, havia um caixão de terracota. Mortati vira-o apenas
uma vez na vida, mas sem dúvida sabia o que continha.
San Pietro.
Mortati não era ingênuo a ponto de achar que os gritos de alegria e espanto que
ressoavam pela praça eram de exaltação por contemplarem uma das mais sagradas
relíquias do cristianismo. As pessoas não estavam caindo de joelhos em orações e
agradecimentos espontâneos por causa da tumba de São Pedro, mas por causa do
objeto que se encontrava em cima da tumba.
O tubo de antimatéria. Lá estava, no mesmo lugar onde estivera escondido o dia
todo: na escuridão da Necrópole.
Sorrateiro. Incansável. Mortal. A revelação do camerlengo estava certa.
Mortati olhava perplexo para o cilindro transparente. O glóbulo de líquido pairava
no meio dele. A gruta que o continha refletiu a luz vermelha intermitente do
contador marcando os cinco minutos finais das baterias.
Também pousada dentro da tumba, a centímetros de distância do cilindro,
encontrava-se a câmera sem fio da Guarda Suíça, que apontara para o tubo e
transmitira sua imagem todo aquele tempo.
Mortati benzeu-se com o sinal-da-cruz, certo de que se tratava da imagem mais
assustadora que vira em toda a sua vida. Um momento mais tarde, porém,
percebeu que estava prestes a ficar ainda pior.
O camerlengo levantou-se repentinamente. Agarrou o tubo de antimatéria e virouse
para os outros, o rosto completamente em foco. Passou pelos outros e começou
a descer a Necrópole do mesmo modo como subira, correndo ladeira abaixo.
A câmera pegou Vittoria Vetra paralisada de terror.
- Onde o senhor está indo? Camerlengo! O senhor não disse que...
- Tenha fé! - exclamou ele, sempre correndo.
Vittoria dirigiu-se a Langdon.
- O que fazemos agora?
Robert Langdon tentou barrar o caminho do camerlengo, mas Chartrand agora o
protegia, aparentemente confiante na decisão dele.
A seqüência que vinha da câmera da BBC ficou igual à de uma corrida de
montanha-russa, sacudindo, subindo e descendo, fazendo voltas. Surgiam de vez
em quando lampejos de confusão e pavor enquanto o cortejo excêntrico voltava
aos tropeções para a entrada da Necrópole.
Na praça, Mortati deixou escapar uma exclamação amedrontada.
- Ele vai trazê-la aqui para cima?
Nas televisões do mundo todo, em tamanho grande, o camerlengo saía a toda a
velocidade da Necrópole segurando o recipiente da antimatéria nos braços
estendidos.
- Não haverá mais mortes esta noite!
Mas o camerlengo estava enganado.
CAPÍTULO 121
Exatamente às 11h56 o camerlengo irrompeu pelas portas da Basílica de São
Pedro para o espaço aberto. Vacilou à claridade estonteante dos holofotes,
carregando a antimatéria nas duas mãos estendidas como se fosse uma oferenda
divina. Seus olhos ardiam, mas ele via sua própria figura, semi-nua e ferida, em
proporções gigantescas nas telas das redes de emissoras espalhadas pela praça. O
clamor que se ergueu da multidão na Praça de São Pedro foi algo que ele nunca
tinha ouvido antes - choros, gritos, ladainhas, rezas, uma mistura de veneração e
terror.
Livrai-nos do mal, ele murmurou.
Sentia-se completamente esgotado por sua corrida para sair da Necrópole. Aquela
saída quase terminara em desastre. Robert Langdon e Vittoria Vetra tinham
tentado interceptá-lo e levar o tubo de volta ao esconderijo subterrâneo,
pretendendo depois correr para fora e se abrigar. Tolos, cegos!
O camerlengo via agora, com assustadora clareza, que jamais teria vencido aquela
corrida em qualquer outra noite. Naquela, porém, Deus estivera com ele mais uma
vez. Robert Langdon quase o alcançara, mas fora impedido por Chartrand, sempre
confiante e leal aos seus rogos para que tivessem fé. Os repórteres, evidentemente,
estavam enfeitiçados demais e sobrecarregados com muito equipamento para
interferirem.
O Senhor trabalha de maneira misteriosa.
O camerlengo ouvia os outros vindo atrás dele agora - via-os nas telas,
aproximando-se. Reuniu o resto de suas forças e levantou a antimatéria acima da
cabeça. Então, endireitou os ombros nus, num gesto de desafio à marca dos
Illuminati em seu peito, e desceu depressa as escadas.
Ainda haveria um ato final.
Vou com Deus! Vou com Deus!
Quatro minutos...
Langdon pouco enxergou assim que saiu da basílica. Mais uma vez o mar de luzes
agrediu suas retinas. Só vislumbrava a silhueta indistinta do camerlengo, direto à
sua frente, descendo depressa as escadas. Por um instante, refulgente com seu
halo de luzes, o camerlengo pareceu celestial, uma espécie de divindade moderna.
A batina caíra-lhe até a cintura e envolvia-o como um sudário. O corpo tinha sido
queimado e ferido pelos inimigos e mesmo assim ele resistia. Corria para as
massas com o corpo ereto, exortando o mundo a ter fé, levando a arma de
destruição.
Langdon seguiu-o. O que ele está fazendo? Vai matar toda essa gente!
- A obra de Satã - gritava o camerlengo - não tem lugar na Casa de Deus!
E corria na direção das pessoas, agora apavoradas.
- Padre! - chamava Langdon atrás dele. - Não há mais para onde ir!
- Olhe para o céu! Esquecemos de olhar para o céu!
Ao entender para onde o camerlengo se encaminhava, Langdon sentiu aquela
magnífica verdade invadi-lo. Embora as luzes dos refletores não o deixassem
enxergar, sabia que a salvação estava justamente acima deles.
No céu da Itália repleto de estrelas.
O helicóptero que o camerlengo solicitara para levá-lo ao hospital estava
esperando ali perto, o piloto na cabine, as pás zumbindo em ponto morto.
Correndo atrás do camerlengo, Langdon foi tomado por uma repentina e
avassaladora alegria.
Uma enxurrada de pensamentos passou-lhe rapidamente pela cabeça.
Primeiro, veio a imagem do espaço aberto do mar Mediterrâneo. A que distância
ficava dali? Oito quilômetros? Quinze? Sabia que a praia em Fiumicino ficava
somente a uns sete minutos de trem. Mas de helicóptero, a mais de 400
quilômetros por hora, sem paradas... Se conseguissem levar o tubo bem longe
acima do mar e jogá-lo do helicóptero... Havia outras opções ainda, lembrou,
sentindo-se quase sem peso enquanto corria. La Cava Romana! As pedreiras de
mármore ao norte da cidade ficavam a menos de cinco quilômetros de distância.
Qual era o tamanho delas? Cinco quilômetros quadrados? Deviam estar desertas
àquela hora! Jogar o tubo de antimatéria ali...
- Para trás! - berrava o camerlengo. Seu peito doía enquanto ele corria.
- Saiam daí! Agora!
A Guarda Suíça postada em torno do helicóptero olhava boquiaberta para o
camerlengo que se aproximava.
- Saiam! - o padre gritava.
Os guardas se afastaram.
Com o mundo inteiro assistindo embasbacado, o camerlengo contornou o
aparelho até a porta do piloto e a escancarou.
- Saia daí, meu filho! Já!
O piloto pulou fora.
O camerlengo avaliou a altura do assento da cabine e percebeu que, exausto como
estava, precisaria das duas mãos para subir. Virou-se para o piloto, trêmulo a seu
lado, e pôs o cilindro de antimatéria nas mãos dele.
- Segure isto. Me entregue quando eu estiver sentado.
Ao subir, o camerlengo ouviu Langdon gritando com grande excitação chegando
perto do helicóptero.
Agora você compreendeu, pensou o camerlengo. Agora você tem fé!
O camerlengo acomodou-se no assento, ajustou algumas alavancas que já
conhecia e debruçou-se para pegar o cilindro.
O piloto, porém, estava de mãos vazias.
- Ele o pegou! - exclamou.
O camerlengo sentiu um baque no coração.
-Quem?
O piloto apontou.
-Ele!
Robert Langdon surpreendeu-se ao verificar como o tubo era pesado. Correu para
o outro lado do helicóptero e pulou para o compartimento traseiro onde ele e
Vittoria tinham sentado poucas horas antes.
Deixou a porta aberta e afivelou o cinto de segurança. E gritou para o camerlengo
no banco da frente.
- Decole, padre!
O camerlengo virou a cabeça para Langdon, o rosto branco de susto.
- O que vai fazer?
- O senhor pilota! Eu jogo o tubo! - vociferou Langdon. - Não há tempo!
Faça o bendito helicóptero levantar vôo!
O camerlengo pareceu momentaneamente paralisado, a iluminação forte
penetrando na cabine e acentuando os vincos em seu rosto.
- Posso fazer isto sozinho - murmurou. - Tenho de fazer isto sozinho.
Langdon não lhe deu ouvidos. Decole!, ouviu-se gritar. Agora! Estou aqui para
ajudar! Olhou para o cilindro e sua garganta se apertou ao ver os números.
- Três minutos, padre! Três!
O número fez o camerlengo voltar a si. Sem titubear, voltou-se para os controles.
Com um rugido, o helicóptero levantou vôo.
Através de uma nuvem de poeira, Langdon viu Vittoria chegar correndo. Seus
olhos se encontraram e depois ela sumiu, como uma pedra que afunda na água.
CAPÍTULO 122
Dentro do aparelho, o barulho do motor e a ventania que entrava pela porta aberta
assaltaram os sentidos de Langdon com um caos ensurdecedor. Firmou-se contra
a força ampliada da gravidade à medida que o camerlengo acelerava o helicóptero
para cima em linha reta. O brilho da Praça de São Pedro encolheu abaixo deles até
se transformar em uma elipse luminosa, radiante no mar de luzes da cidade.
O tubo de antimatéria era como um peso morto nas mãos de Langdon. Segurava-o
com força, as palmas das mãos escorregadias de suor e sangue. Dentro do
cilindro, o glóbulo de antimatéria oscilava calmamente, pulsando sob a luz
vermelha do relógio em contagem regressiva.
- Dois minutos! - gritou Langdon, tentando adivinhar onde o camerlengo
pretendia jogar o tubo.
As luzes da cidade lá embaixo espalhavam-se por todas as direções. Para oeste, ao
longe, ele avistava o contorno cintilante da costa do Mediterrâneo - uma orla
pontilhada de luminescências, além da qual estendia-se uma infindável e escura
extensão de nada. O mar parecia mais longínquo agora do que Langdon
imaginara. Além disso, a concentração de luzes na costa era um lembrete amargo
de que, mesmo bem longe, uma explosão no mar poderia ter conseqüências
devastadoras. E ele nem chegara a considerar os efeitos de uma onda gigantesca
de dez quilotons atingindo o litoral.
Ao olhar para a frente, através da janela da cabine de comando, ficou mais
esperançoso. As sombras ondulantes dos contrafortes de Roma surgiam no meio
da noite, salpicadas de luzes - as villas dos muito ricos -; entretanto, a pouco mais
de um quilômetro ao norte, as colinas ficavam escuras. Não havia nenhuma luz
ali, só um enorme espaço negro. Nada mais.
As pedreiras! Langdon pensou. La Cava Romana!
Avaliando o trecho estéril de terreno, Langdon achou que seria grande o bastante.
E parecia próximo, além disso. Mais próximo do que o mar. Animado, achou que
era de fato para lá que o camerlengo planejava levar a antimatéria! O helicóptero
estava apontado para aquela direção! As pedreiras! O estranho, porém, é que os
motores faziam um ruído cada vez mais alto, o helicóptero movia-se no ar, mas as
pedreiras não ficavam mais próximas.
Desconcertado, lançou um olhar pela porta lateral para se localizar. O que viu
transformou sua animação em pânico. Diretamente abaixo deles, distantes,
brilhavam as fortes luzes da imprensa na Praça de São Pedro.
Ainda estamos sobrevoando o Vaticano!
- Camerlengo! - chamou ele, engasgado de aflição. - Vá em frente! Já subimos
bastante! Temos de começar a seguir em frente! Não podemos jogar o tubo de
volta na Cidade do Vaticano!
O camerlengo não respondeu. Aparentemente, concentrava-se em pilotar o
aparelho.
- Temos menos de dois minutos! - gritou Langdon, levantando o cilindro.
- Estou vendo daqui! La Cava Romana! Uns dois quilômetros ao norte! Não
temos...
- Não - disse o camerlengo -, é perigoso demais. Sinto muito. - O helicóptero
continuou subindo, O camerlengo virou-se e deu um sorriso triste para Langdon.
- Preferia que não tivesse vindo, meu amigo. Você fez o supremo sacrifício.
Langdon olhou para o rosto cansado do camerlengo e então compreendeu. Seu
sangue congelou.
- Mas deve haver algum lugar para onde possamos ir!
- Para cima - respondeu o camerlengo, a voz resignada. - É a única alternativa
garantida.
Langdon mal conseguia pensar. Interpretara de modo completamente errado o
plano do camerlengo. Olhe para o céu! O céu, só agora entendia, era literalmente
para onde estavam indo, O camerlengo nunca tivera a intenção de lançar fora a
antimatéria. Estava simplesmente se afastando o máximo possível da Cidade do
Vaticano. Aquela era uma viagem sem volta.
CAPÍTULO 123
Na Praça de São Pedro, Vittoria olhava para cima. O helicóptero não passava de
um pontinho agora que as luzes dos refletores não o alcançavam mais. Até o
barulho dos rotores transformara-se em um zumbido distante. Parecia que o
mundo inteiro se concentrava no alto, emudecido antecipadamente, os rostos de
todos voltados para o céu - todas as pessoas, de todas as crenças, todos os
corações batendo como se fossem um só.
As emoções de Vittoria eram um turbilhão de agonias. Quando o helicóptero
desapareceu, ela lembrou o rosto de Robert, afastando-se dentro dele. O que será
que ele pensou? Será que não compreendeu?
Em torno da praça, as câmeras de televisão sondavam a escuridão, esperando.
Milhares de rostos voltavam-se para o céu, unidos em uma contagem silenciosa.
Todos os telões mostravam a mesma cena tranqüila: o céu romano pontilhado de
estrelas brilhantes. Vittoria sentiu as lágrimas começarem a brotar.
Atrás dela, na escadaria de mármore, 161 cardeais olhavam para cima em
silenciosa reverência. Alguns tinham as mãos juntas em oração. A maioria
permanecia imóvel, aturdida. Alguns choravam. Os segundos passavam. Nas
casas das pessoas, em bares, escritórios, aeroportos, hospitais do mundo todo, os
espíritos se uniam em testemunho universal. Homens e mulheres davam-se as
mãos. Outros seguravam seus filhos. Como se o tempo pairasse no limbo, as
almas suspensas em uníssono.
Então, cruelmente, os sinos de São Pedro começaram a tocar.
Vittoria deixou as lágrimas virem.
E, com o mundo inteiro assistindo, o tempo se esgotou.
O silêncio mortal do acontecimento foi seu aspecto mais aterrorizante.
Muito acima do Vaticano, um ponto de luz apareceu no céu. Por um instante
fugaz, um novo corpo celeste nasceu, uma centelha de luz pura e branca como
nunca se vira.
Depois, tudo começou.
Um lampejo. O ponto luminoso encapelou-se, como se alimentasse de si mesmo,
desenrolando-se pelo céu em um raio que se dilatava, de um branco ofuscante.
Projetou-se para todas as direções, acelerando com indizível rapidez, devorando
sofregamente a escuridão. À medida que a esfera de luz crescia, também se
intensificava, como o rebento de um demônio preparando-se para consumir o céu
inteiro. Correu para baixo, na direção deles, ganhando velocidade.
Estarrecidos, os milhares de rostos iluminados pela luz implacável arquejaram
juntos, as mãos protegendo os olhos, todos deixaram escapar um grito
estrangulado de medo.
A luz se propagou em todas as direções e, súbito, deu-se o inimaginável. Como se
fosse contido pela própria vontade de Deus, o raio crescente pareceu bater em
uma parede, como se de alguma forma a explosão ficasse retida dentro de uma
gigantesca esfera de vidro. A luz ricocheteou, aguçando-se, ondulando sobre si
mesma. A onda parecia ter alcançado um diâmetro predeterminado e pairava ali.
Durante aquele instante, uma perfeita e silenciosa esfera de luz brilhou sobre
Roma. A noite virou dia.
Então houve o impacto.
A concussão foi profunda e surda - uma estrondosa onda de choque vinda de
cima. Desceu sobre eles como a ira do inferno, sacudindo as fundações de granito
da Cidade do Vaticano, golpeando o ar para fora dos pulmões das pessoas,
fazendo-as cambalear. A reverberação percorreu a colunata, seguida por uma
repentina lufada de ar quente. O vento se abateu sobre a praça, soltando um
gemido sepulcral ao sibilar entre as colunas e fustigar as paredes. A poeira
redemoinhava no ar, as pessoas se encolhiam, testemunhas do Armagedon. Em
seguida, tão depressa quanto surgira, a esfera implodiu, sugando-se a si própria,
comprimindo-se, retornando ao diminuto ponto de luz de onde viera.
CAPÍTULO 124
Nunca antes tantos tinham ficado em silêncio ao mesmo tempo. Os rostos na
Praça de São Pedro, um a um, desviaram os olhos do céu escuro e voltaram-se
para baixo, cada pessoa em seu momento particular de assombro. Os refletores da
imprensa fizeram o mesmo, baixando seus focos luminosos para a terra, como em
reverência pelas trevas que se instalavam acima deles. Parecia que o mundo
inteiro curvava a cabeça junto.
O cardeal Mortati ajoelhou-se para rezar e os outros cardeais acompanharam-no.
A Guarda Suíça baixou suas longas lanças e imobilizou-se. Ninguém falava.
Ninguém se mexia. Em toda parte, emoções espontâneas abalavam os corações.
Consternação. Medo. Espanto. Crença. E um respeito temeroso pelo novo e
impressionante poder cuja manifestação tinham acabado de presenciar.
Vittoria Vetra permanecia, trêmula, ao pé das amplas escadarias da basílica. Ela
fechou os olhos. Através da tempestade de emoções que percorriam seu corpo,
uma única palavra soava triste como o dobrar de um sino distante.
Intacta. Cruel. Ela tentava afastá-la, mas a palavra voltava e voltava. A dor era
grande demais. Vittoria procurou ocupar-se com as imagens que inflamavam as
mentes das outras pessoas - o poder inquietante da antimatéria, a salvação do
Vaticano, o camerlengo, gestos de bravura, milagres, desprendimento.
E a palavra ainda ecoava, soando através do tumulto com uma amargura
pungente.
Robert.
Ele fora atrás dela no Castelo Sant'Angelo.
Ele a salvara.
E agora fora destruído pela criação dela.
Enquanto rezava, o cardeal Mortati conjeturava se ele também ouviria a voz de
Deus como o camerlengo tinha ouvido. Temos de acreditar em milagres para
vivenciá-los? Mortati era um homem moderno que pertencia a uma antiga
religião. Os milagres nunca tinham representado qualquer papel em sua crença.
Sua religião sem dúvida falava de milagres - chagas nas mãos, ascensão dos
mortos, marcas em sudários - e, contudo, a mente racional de Mortati sempre
explicara esses relatos como parte do mito. Eram simplesmente o resultado da
maior fraqueza do homem - sua necessidade de provas. Os milagres eram nada
mais que histórias a que nos apegávamos porque desejávamos que fossem
verdade.
No entanto...
Será que sou tão moderno que não consigo aceitar o que acabei de ver com meus
próprios olhos? Foi um milagre, não foi? Sim! Deus, ao sussurrar umas poucas
palavras no ouvido do camerlengo, interferiu e salvou Sua Igreja. Por que seria
assim tão difícil de acreditar? O que teríamos a dizer sobre Deus se Deus não
tivesse feito nada? Que o Todo-Poderoso não se importa conosco? Que Ele não
tinha poder para impedir a desgraça? Um milagre era a única resposta possível!
Mortati ajoelhou-se, reverente, e rezou pela alma do camerlengo. Deu graças pelo
jovem camarista que, apesar da pouca idade, abrira os olhos de um velho para os
milagres da fé inquestionável.
Mortati jamais poderia suspeitar, porém, até que ponto sua fé seria testada.
O silêncio na Praça de São Pedro foi quebrado por um leve ruído a princípio, que
se transformou em murmúrio. E, então, repentinamente, em bramido. Sem aviso, a
multidão gritava a uma só voz.
- Olhem! Olhem!
Mortati abriu os olhos e voltou-os para o povo. Todos apontavam para um mesmo
lugar atrás dele, na fachada da Basílica de São Pedro. Estavam pálidos. Alguns
caíram de joelhos. Alguns desmaiaram. Outros desataram a chorar.
- Olhem! Olhem!
Mortati, atarantado, acompanhou com o olhar as mãos estendidas que mostravam
o nível mais alto da basílica, o terraço no telhado onde imensas estátuas de Cristo
e dos apóstolos velavam pelo povo.
Ali, à direita de Jesus, com os braços estendidos para o mundo, estava o
camerlengo Carlo Ventresca.
CAPÍTULO 125
Robert Langdon não estava mais caindo. Acabara-se o pavor. E a dor. E o som
sibilante do vento. Havia apenas o barulho suave da água, como se ele estivesse
confortavelmente dormindo em uma praia.
Num paradoxo de autoconsciência, Langdon pressentiu que aquilo era a morte.
Ficou contente.
Deixou-se levar pelo entorpecimento que tomava conta dele. Deixou que o
levasse para onde tivesse de ir. Sua dor e seu medo tinham sido anestesiados e ele
não os queria de volta de jeito nenhum. A última lembrança que tinha só poderia
ter sido conjurada no inferno.
Leve-me. Por favor...
Mas o barulho da água que o acalentava com uma longínqua sensação de paz
também estava trazendo-o de volta. Tentava despertá-lo de um sonho. Não!
Deixe-me! Ele não queria acordar.
Entrevia demônios que o aguardavam nas fronteiras de sua bem-aventurança,
insistindo em despedaçar sua beatitude. Imagens imprecisas giravam. Vozes
gritavam. O vento agitava tudo.
Não, por favor! Quanto mais lutava, mais a fúria se infiltrava através de sua
consciência.
Então, duramente, reviveu tudo...
O helicóptero prosseguia em sua subida vertiginosa. Ele estava preso lá dentro.
Pela porta aberta via as luzes de Roma distanciando-se mais a cada segundo. Seu
instinto de sobrevivência dizia-lhe para lançar fora o cilindro imediatamente.
Langdon sabia que levaria menos de 20 segundos para o tubo cair uns 800 metros.
Só que cairia em uma cidade cheia de gente.
Mais alto! Mais alto!
Calculava a que altura estariam. Jatos pequenos costumavam voar a altitudes de
cerca de seis mil metros. Aquele helicóptero já devia estar a uma boa parcela
disto. Três mil metros?
Quatro? Ainda havia uma chance. Se calculasse a queda perfeitamente, o tubo
cairia só parte do caminho para a terra e explodiria a uma distância segura acima
do solo e longe do helicóptero. Langdon olhou para a cidade que se espalhava lá
embaixo.
- E se você calcular errado? - disse o camerlengo.
Langdon espantou-se. O camerlengo nem estava olhando para ele e
provavelmente lera seus pensamentos vendo seu reflexo esbranquiçado no párabrisa.
Estranhamente, o camerlengo não estava mais ocupado com os controles.
Suas mãos nem seguravam mais o manete. O helicóptero devia estar funcionando
com o piloto automático, subindo sempre. O camerlengo levantou a mão para o
teto da cabine e tirou de um compartimento de cabos uma chave, presa ali fora da
vista.
Langdon viu desnorteado o camerlengo destrancar rapidamente a caixa metálica
instalada entre os assentos. Tirou de lá um grande embrulho de náilon preto, que
colocou no assento a seu lado. As idéias de Langdon se embaralharam. Os
movimentos do camerlengo eram calmos e deliberados, como se ele já tivesse
uma solução.
- Passe o cilindro para mim - disse, com um tom de voz sereno.
Langdon não sabia mais o que pensar. Entregou o cilindro.
- Noventa segundos!
O que o camerlengo fez com a antimatéria pegou Langdon completamente de
surpresa. Segurando o cilindro com cuidado, ele o colocou dentro da caixa
metálica. Depois, fechou a tampa pesada e trancou-a.
- O que está fazendo?! - perguntou Langdon.
- Afastando de nós a tentação - e jogou a chave pela janela aberta.
A chave mergulhou na escuridão da noite e Langdon sentiu sua alma caindo junto.
O camerlengo então pegou o embrulho de náilon e enfiou os braços nas alças.
Fechou a presilha de uma outra tira que lhe envolveu o estômago e ajustou tudo
como se fosse uma mochila. Finalmente, disse a um estupefato Robert Langdon:
- Sinto muito. Não era para acontecer desta maneira.
Em seguida, abriu a porta e atirou-se no espaço.
A imagem queimava no inconsciente de Langdon e com ela vinha a dor. Dor de
verdade. Dor física.
Atormentando-o. Penetrante. Ele suplicou que fosse levado para que a dor
terminasse, mas, com o som da água mais alto em seus ouvidos, novas imagens
relampejavam em sua cabeça. O inferno apenas começara. Via pedaços dele,
cenas esparsas de puro pânico. Encontrava-se entre a morte e o pesadelo,
implorando para ser libertado, mas as imagens ficavam mais nítidas em sua
mente.
O tubo de antimatéria estava trancado e inacessível. A contagem de seu relógio
diminuía ao mesmo tempo que o helicóptero aumentava a altitude. Cinqüenta
segundos. Mais alto. Mais alto. Langdon agitava-se loucamente dentro da cabine,
tentando compreender o que acabara de presenciar. Quarenta e cinco segundos.
Procurou outro pára-quedas debaixo dos assentos. Quarenta segundos. Não havia
mais nenhum! Trinta e cinco segundos. Foi para a porta aberta do helicóptero,
exposto ao vento furioso, e olhou para as luzes de Roma embaixo. Trinta e dois
segundos.
Então, tomou sua decisão.
A incrível decisão.
Sem pára-quedas, Robert Langdon pulou do helicóptero. À medida que a noite
engolia seu corpo, tinha a impressão de que o helicóptero subia como um foguete
acima dele, o som de seus rotores dissipando-se no ruído ensurdecedor de sua
própria queda livre.
Na descida a prumo para terra, Langdon sentiu algo que não vivenciava desde o
tempo em que praticava salto de plataforma - a inexorável atração da gravidade
durante um mergulho. Quanto mais rápido caía, mais a terra parecia puxá-lo,
sugá-lo. Desta vez, porém, o mergulho não era de 15 metros dentro de uma
piscina, mas de milhares de metros em uma cidade - uma extensão infindável de
concreto e asfalto.
Em meio ao vento e ao desespero, a voz de Kohler ecoava do túmulo com as
palavras que ele dissera naquela mesma tarde junto ao túnel de queda livre do
CERN: Um metro quadrado de algo que ofereça resistência ao ar retarda a queda
de um corpo em quase 20 por cento. Vinte por cento, Langdon constatava, nem
chegava perto do que seria necessário para alguém sobreviver a uma queda como
aquela. De qualquer modo, mais por inércia do que por esperança, apertou nas
mãos com força a única coisa que agarrara ao pular do helicóptero. Era uma
lembrança esquisita, mas que por um instante fugaz dera-lhe alguma esperança.
A lona protetora do pára-brisa estava jogada na traseira do aparelho. Era um
retângulo que se amoldava à forma côncava do pára-brisa do helicóptero - de uns
quatro metros por dois - semelhante a um grande lençol, o mais toscamente
parecido com um pára-quedas que se possa imaginar. Não tinha arneses, só alças
elásticas em cada extremidade para ajustá-lo à curvatura do vidro. Langdon
pegara a lona, enfiara as mãos nas alças e saltara no vazio.
Seu último grande gesto de desafio juvenil.
Não tinha mais ilusões sobre a vida além daquele momento.
Langdon caía como uma pedra. Pés primeiro. Braços esticados para cima. Mãos
agarradas nas alças. A lona ondulava acima de sua cabeça com o formato de um
cogumelo. O vento se deslocava com grande velocidade em torno dele.
Durante a queda, deu-se a explosão no alto. Mais longe do que ele esperava.
Quase instantaneamente a onda de choque atingiu-o. O impacto comprimiu seus
pulmões. Um calor repentino espalhou-se pelo ar em torno dele. Langdon lutou
para não largar a lona. Uma parede quente veio de cima para baixo. O topo da
lona começou a arder, mas não se rompeu.
Langdon descia a toda a velocidade, no limiar de um véu ondulante de luz,
sentindo-se como um surfista que tenta sair da frente de uma onda de quilômetros
de altura. De repente, porém, o calor retrocedeu e ele voltou a mergulhar na fria
escuridão.
Por um instante, teve esperança. No momento seguinte, entretanto, a esperança se
foi, tal e qual a onda de calor. Apesar de seus braços estendidos garantirem-lhe
que a lona desacelerava sua queda, o vento ainda passava por seu corpo com uma
velocidade espantosa. Ele não tinha qualquer dúvida de que estivesse indo
depressa demais para sobreviver à queda. Seria esmagado quando batesse no
chão.
Cálculos matemáticos embaralhavam-se em sua cabeça, ele estava entorpecido
demais para organizá-los - um metro quadrado de algo que ofereça resistência ao
ar... quase 20 por cento de redução de velocidade. O máximo que conseguia
raciocinar é que a lona acima de sua cabeça era grande o bastante para retardá-lo
mais do que 20 por cento. Infelizmente, pela velocidade do vento, ele deduzia que
a lona não bastava, por melhor que fosse. Estava caindo depressa demais, não
sobreviveria ao impacto no mar de concreto que o esperava.
Lá embaixo, as luzes de Roma espalhavam-se para todos os lados. A cidade
parecia um enorme céu estrelado no qual Langdon iria cair, só interrompido por
uma faixa escura que dividia a cidade em dois - uma fita larga e não iluminada
que serpenteava por entre os pontos de luz como uma cobra gorda.
Langdon olhou para os meandros escuros ao longe.
E, como a crista de uma onda inesperada, surgiu outra vez uma esperança.
Com um vigor quase maníaco, Langdon deu puxões fortes na lona com a mão
direita. A lona agitou-se mais, ondulando, procurando o ponto à direita, de menor
resistência.
Langdon sentiu-se deslizar de lado. Puxou de novo, com mais força, sem fazer
caso da dor na palma de sua mão. A lona inflou-se e Langdon notou que seu corpo
voava para o lado. Não muito. Mas um pouco!
Olhou de novo para baixo, para a sinuosa serpente negra. Ficava bem para a
direita, mas ele ainda estava bastante alto. Será que tinha esperado demais? Puxou
com toda a força que pôde e daí em diante aceitou que estava nas mãos de Deus.
Concentrou-se na parte mais larga da serpente e, pela primeira vez em sua vida,
rezou por um milagre.
O resto não passou de uma lembrança nebulosa.
A escuridão se fechando por cima dele, os reflexos do mergulhador voltando, o
instintivo posicionamento da coluna e das pontas dos pés, os pulmões se inflando
para proteger os órgãos vitais, as pernas flexionando-se para funcionar como um
aríete e, finalmente, a gratidão pelo ondulante rio Tibre estar cheio e revolto, o
que tornava suas águas espumantes e cheias de ar três vezes mais macias do que a
água parada.
Depois houve o impacto e as trevas.
Foi o barulho trovejante da lona batendo que fez o grupo tirar os olhos da bola de
fogo no alto. O céu de Roma estivera cheio de visões naquela noite: um
helicóptero subindo em linha reta como um foguete, uma enorme explosão e
agora aquele estranho objeto que mergulhara nas águas agitadas do rio Tibre, ao
largo da pequenina ilha que havia no rio, a Isola Tiberina.
Desde o tempo em que a ilha fora usada para manter doentes de quarentena
durante a praga que assolou Roma em 1656, dizia-se que possuía propriedades
curativas místicas. Por esta razão, mais tarde fora ali instalado o Hospital Tiberina
de Roma.
O corpo estava bastante machucado quando foi puxado para a margem. O homem
ainda tinha uma leve pulsação, o que era espantoso, pensaram. Especularam se
não teria sido a lendária reputação da Isola Tiberina para a cura que de alguma
forma teria mantido o coração dele batendo. Minutos depois, quando o homem
começou a tossir e a lentamente recuperar a consciência, o grupo concluiu que a
ilha devia ser mesmo mágica.
CAPÍTULO 126
O cardeal Mortati sabia que não existiam palavras em nenhuma língua capazes de
acrescentar o que quer que fosse ao mistério daquele momento. O silêncio da
visão no alto da Praça de São Pedro era mais eloqüente do que um coro de anjos.
Quando levantou os olhos para o camerlengo Ventresca, Mortati sentiu um
choque paralisante entre seu coração e sua mente. A visão parecia real, tangível.
E, no entanto, como era possível?
Todos tinham visto o camerlengo entrar no helicóptero. Todos tinham
testemunhado a presença da bola de luz no céu. E agora, sem que se soubesse
como, o camerlengo estava no terraço da basílica. Transportado por anjos?
Reencarnado pela mão de Deus?
Isso é impossível...
O coração de Mortati queria acreditar, mas sua mente exigia razões. E os cardeais
que o cercavam, evidentemente vendo o mesmo que ele via, olhavam para cima
imóveis, deslumbrados.
Era o camerlengo. Sem sombra de dúvida. Mas ele parecia de certa forma
diferente. Divino.
Como se tivesse sido purificado. Um espírito? Um homem? Sua carne branca
brilhava à luz dos refletores com uma leveza incorpórea.
Na praça havia choro, vivas, aplausos espontâneos. Um grupo de freiras caiu de
joelhos e entoou saetas. Um ruído ritmado elevou-se da multidão. Súbito, a praça
inteira repetia o nome do camerlengo. Os cardeais, alguns com lágrimas rolando
nas faces, uniram-se ao povo. Mortati olhou em torno de si e tentou compreender.
Isto realmente está acontecendo?
O camerlengo Carlo Ventresca, do terraço no telhado da Basílica de São Pedro,
contemplava os milhares de pessoas voltadas para ele. Estava acordado ou
sonhando? Sentia-se transformado, sobrenatural. Pensava se teria sido seu corpo
ou somente seu espírito que tinha descido flutuando do céu para a maciez e a
penumbra dos Jardins do Vaticano, pousando como um anjo silencioso nos
gramados desertos, seu pára-quedas negro protegido da loucura pela sombra
imponente da Basílica de São Pedro. Pensava se teria sido seu corpo ou seu
espírito que tivera forças para subir a antiga Escadaria dos Medalhões até o
terraço onde agora se encontrava.
Sentia-se leve como um fantasma. Embora as pessoas lá embaixo estivessem
entoando seu nome, sabia que não era ele quem estavam saudando. Saudavam por
um mero impulso de alegria, a mesma alegria que ele sentia todos os dias de sua
vida quando meditava sobre o Todo-Poderoso. Vivenciavam o que todos sempre
tinham desejado: uma garantia do alto, uma comprovação do poder do Criador.
O camerlengo Ventresca rezara toda a sua vida por esse momento e, ainda assim,
nem ele conseguia acreditar inteiramente que Deus encontrara uma forma para
torná-lo manifesto. Queria gritar para as pessoas. Seu Deus é um Deus vivo!
Atentem para todos os milagres que as cercam!
Permaneceu um pouco ali, entorpecido e ao mesmo tempo sentindo tudo com
mais intensidade do que jamais sentira. Quando afinal a disposição de espírito o
fez mover-se, curvou a cabeça e recuou, afastando-se da beirada do terraço.
Sozinho, ajoelhou-se e rezou.
CAPÍTULO 127
Imagens imprecisas rodeavam-no, indo e vindo. Os olhos de Langdon lentamente
começaram a vê-las em foco. Suas pernas doíam e seu corpo parecia ter sido
atropelado por um caminhão. Estava deitado de lado no chão. Algo cheirava mal,
como bílis. Ainda ouvia o ruído incessante de água. Não lhe soava tranqüilo como
antes. Havia outros sons - gente falando perto dele. Entreviu vultos brancos,
embaçados. Todos estavam vestidos de branco? Langdon concluiu que devia estar
em um hospício ou então no céu.
Pelo ardor em sua garganta, achou que não poderia ser o céu.
- Ele parou de vomitar - disse um homem em italiano. - Virem-no. - A voz era
firme e profissional.
Langdon sentiu mãos virarem seu corpo devagar para deitá-lo de costas. Sua
cabeça girava. Tentou sentar-se, mas as mãos delicadamente o forçaram a
permanecer deitado. Seu corpo submeteu-se. Então, sentiu alguém examinando
seus bolsos, tirando coisas de dentro deles.
Depois, perdeu por completo os sentidos.
O doutor Jacobus não era um homem religioso. A medicina fizera-o deixar de ser
já fazia muito tempo.
Contudo, os acontecimentos daquela noite na Cidade do Vaticano tinham posto
em teste sua lógica sistemática. Agora caem corpos do céu?
O doutor Jacobus tomou o pulso do homem sujo e molhado que tinham retirado
do rio Tibre. O médico admitiu que o próprio Deus entregara em mãos e em
segurança aquele homem. O impacto com a água pusera-o inconsciente e, se não
fosse Jacobus e sua equipe estarem na beira do rio assistindo ao espetáculo no
céu, essa alma caída não teria sido notada e com certeza teria se afogado.
- É americano - disse uma enfermeira, revirando a carteira do homem depois de o
terem levado para terra firme.
Americano? Os romanos costumavam caçoar que havia tantos americanos em
Roma que os hambúrgueres deveriam passar a ser a comida oficial italiana. Mas
americanos caindo do céu?
Jacobus piscou a luz de uma pequena lanterna nos olhos do homem para testar a
dilatação da pupila.
- Senhor? Está ouvindo? Sabe onde está?
O homem estava inconsciente outra vez. Jacobus não se surpreendeu. Vomitara
muita água depois que Jacobus lhe aplicara a ressuscitação cardiorrespiratória.
- Si chiama Robert Langdon - disse a enfermeira, lendo a carteira de motorista da
vítima.
Todo o grupo reunido no cais parou de repente.
- Impossibile! - declarou Jacobus.
Robert Langdon era o homem da televisão - o professor americano que vinha
ajudando o Vaticano.
Jacobus vira o senhor Langdon, poucos minutos antes, entrar em um helicóptero
na Praça de São Pedro e voar quilômetros pelo ar. Jacobus e os outros tinham
saído correndo para o cais para ver a explosão da antimatéria - uma fantástica
esfera de luz, diferente de tudo o que já tinham visto. Como poderia ser a mesma
pessoa?
- É ele mesmo! - exclamou a enfermeira, afastando-lhe da testa o cabelo molhado.
- Estou reconhecendo o casaco de lã dele!
Subitamente, alguém gritou da entrada do hospital. Era uma das pacientes. A
mulher berrava, parecia enlouquecida, segurando seu rádio portátil no braço
estendido para o alto e dando graças a Deus. Dizia que o camerlengo Ventresca
acabara de aparecer miraculosamente no telhado do Vaticano.
O doutor Jacobus decidiu que, quando seu plantão terminasse, às 8h, ele iria
direto para a igreja.
As luzes acima da cabeça de Langdon eram mais brilhantes agora, frias. Ele se
encontrava em uma espécie de mesa de exame. Sentia o cheiro de desinfetantes,
de estranhos produtos químicos. Alguém lhe dera uma injeção e tinham tirado
suas roupas.
Decididamente, não são ciganos, concluiu ele em seu delírio semiconsciente.
Extraterrenos, talvez?
Já ouvira falar de coisas assim. Felizmente, esses seres não lhe fariam mal. Só
queriam os seus...
- De jeito nenhum! - Langdon sentou-se abruptamente, abrindo os olhos.
- Attento! - gritou uma das criaturas, segurando-o. Usava um pequeno crachá
onde estava escrito "Doutor Jacobus" Parecia bastante humano.
Langdon gaguejou:
- Eu... pensei...
- O senhor está em um hospital.
A névoa começou a se dissipar. Langdon sentiu uma onda de alívio. Detestava
hospitais, mas decerto menos do que extraterrenos prestes a extrair seus testículos.
- Meu nome é doutor Jacobus - disse o homem. Explicou o que acabara de
acontecer. - Tem muita sorte por estar vivo.
Langdon não se sentia muito sortudo. Mal concatenava suas próprias lembranças -
o helicóptero, o camerlengo. Seu corpo doía todo. Deram-lhe um pouco de água e
fizeram um curativo na palma de sua mão.
- Onde está a minha roupa? - perguntou. Estava vestido com uma túnica de papel.
Uma das enfermeiras mostrou-lhe um amontoado de pedaços rasgados de tecido
cáqui e lã tweed pingando de cima de um balcão.
- Estavam encharcadas. Tivemos de cortar tudo para tirá-las do senhor.
Langdon olhou para seu tweed Harris em frangalhos e franziu a testa.
- O senhor tinha uma porção de lenços de papel em seu bolso - disse a enfermeira.
Só então Langdon notou os fragmentos de pergaminho espalhados pelo forro do
paletó. O fólio do Diagramma de Galileu. O último exemplar do mundo se
dissolvera. Ele estava abalado demais para saber como reagir. Ficou parado,
apenas, olhando fixo para o balcão.
- Conseguimos salvar seus objetos pessoais - ela lhe estendeu uma caixa plástica.
- Carteira, câmera portátil de vídeo e caneta. Sequei a câmera o melhor que pude.
- Não tenho nenhuma câmera de vídeo.
A enfermeira levantou as sobrancelhas e deu-lhe a caixa. Langdon olhou para os
objetos que continha.
Junto com sua carteira e sua caneta havia uma pequena câmera de vídeo Sony.
Agora se lembrava. Kohler entregara-a a ele, pedindo que a mostrasse à imprensa.
- Nós a encontramos em seu bolso. Acho que o senhor vai precisar de uma nova. -
A enfermeira abriu a tela de duas polegadas na parte de trás da câmera.
- A tela está rachada. - Então, seu rosto se animou. - Mas o som ainda funciona!
Mais ou menos. - Encostou a máquina no ouvido. - Fica repetindo a mesma coisa
sem parar. - Escutou mais um pouco e depois ficou séria, entregando-a a
Langdon. - São dois sujeitos discutindo, acho.
Intrigado, Langdon pegou a câmera e aproximou-a do ouvido. As vozes soavam
anasaladas, metálicas, mas eram discerníveis. Uma, perto. A outra, longe.
Langdon reconheceu ambas.
Sentado ali, vestido com a túnica descartável do hospital, Langdon escutou
espantado toda a conversa.
Apesar de não poder ver o que estava acontecendo, deu graças por ter sido
poupado da parte visual ao ouvir o final chocante.
Meu Deus!
Com a conversa recomeçando do início, Langdon abaixou a câmera de seu ouvido
e continuou sentado, impressionado, estupefato. A antimatéria, o helicóptero... A
mente de Langdon começou a funcionar.
Então, isso quer dizer que...
Teve vontade de vomitar outra vez. Agitado, com uma raiva crescente, ele desceu
da mesa e ficou de pé, as pernas bambas.
- Senhor Langdon! - disse o médico, tentando impedi-lo.
- Preciso de umas roupas - pediu Langdon, sentindo a corrente de ar em seu
traseiro por causa da túnica aberta atrás.
- Mas o senhor precisa descansar.
- Estou saindo. Agora. Preciso de roupa.
- Mas o senhor...
- Agora!
Todos se entreolharam, desconcertados.
- Não temos roupas - disse o médico. - Talvez amanhã algum amigo seu possa
trazê-las para o senhor.
Langdon respirou fundo com uma expressão paciente e encarou o médico.
- Doutor Jacobus, vou sair por aquela porta agora mesmo. Preciso de roupas. Vou
para a Cidade do Vaticano. Ninguém pode ir para o Vaticano de bunda de fora.
Deu para entender?
O doutor Jacobus engoliu em seco.
- Dêem-lhe alguma coisa para vestir.
Quando Langdon saiu mancando do Hospital Tiberina, sentia-se como um
lobinho, um escoteiro-mirim, só que crescido. Usava um macacão azul de
paramédico com zíper na frente, enfeitado com distintivos de pano que
aparentemente indicavam as numerosas qualificações do dono.
A mulher que o acompanhava era robusta e usava um macacão igual ao dele. O
médico garantira a Langdon que ela o levaria ao Vaticano em tempo recorde.
- Molto traffico - disse Langdon, lembrando-lhe que a área em torno do Vaticano
estaria congestionada por carros e pessoas.
A mulher não se mostrou preocupada. Apontou orgulhosa para um dos seus
distintivos.
- Sono conducente di ambulanza.
- Ambulanza? - Então estava explicado. Langdon achou que um passeio de
ambulância viria a calhar.
A mulher conduziu-o para a parte lateral do edifício. Em um aforamento de terra
acima da água havia um deque de cimento onde o veículo a esperava.
Quando Langdon o viu, parou. Era um velho helicóptero de transporte médico. Na
carcaça estava escrito Aero-Ambulanza.
Ele baixou a cabeça.
A mulher sorriu.
- Voar Cidade do Vaticano. Muito rápido.
CAPÍTULO 128
O Colégio dos Cardeais estava em ebulição ao voltar para a Capela Sistina.
Mortati, ao contrário, sentia crescer dentro de si uma confusão tão grande que
quase poderia levantá-lo do chão e carregá-lo. Acreditava nos antigos milagres
das Escrituras e, todavia, o que acabara de testemunhar era algo que não
conseguia compreender. Depois de uma vida inteira de devoção, 79 anos, Mortati
sabia que tais acontecimentos deveriam despertar nele uma piedosa exuberância,
uma fé ardorosa e viva. No entanto, só sentia um constrangimento espectral e cada
vez maior. Havia algo errado.
- Signore Mortati! - gritou um guarda suíço aproximando-se às pressas.
- Fomos ao telhado da basílica como o senhor pediu. O camerlengo é de carne e
osso! É um homem de verdade! Não é um espírito! É exatamente a pessoa que
conhecemos!
- Ele falou com vocês?
- Está ajoelhado rezando em silêncio! Ficamos com medo de tocar nele!
Mortati estava perdido.
- Digam a ele que seus cardeais estão esperando.
- Signore, por ele ser mesmo um homem... - o guarda hesitou.
- O que é?
- O peito dele... ele está queimado. Podemos fazer um curativo na ferida? Ele
deve estar sentindo dor.
Mortati refletiu. Nada em todo o seu tempo de serviço à Igreja o preparara para
aquela situação.
- Ele é um homem, portanto tratem dele como se trata de um homem. Lavem-no.
Cuidem de suas feridas. Dêem-lhe roupas limpas. Esperamos por ele na Capela
Sistina.
O guarda saiu correndo.
Mortati seguiu para a capela. O resto dos cardeais já se encontrava lá dentro.
Caminhando pelo corredor, viu Vittoria Vetra sozinha, com ar abatido, sentada
em um banco ao pé da Escadaria Real. A dor e a solidão da perda eram visíveis no
rosto dela e Mortati teve vontade de ir ao seu encontro, mas sabia que isso teria de
esperar. Tinha trabalho a fazer, embora não tivesse a menor idéia de qual pudesse
ser esse trabalho.
Mortati entrou na capela. Havia uma excitação ruidosa no ambiente. Fechou a
porta. Que Deus me ajude.
A Aero-Ambulanza de dois rotores do Hospital Tiberina contornava a Cidade do
Vaticano por trás, e Langdon cerrava os dentes, jurando por Deus que aquela seria
a última viagem de helicóptero de sua vida.
Depois de convencer a mulher que fazia as vezes de piloto de que as regras que
regiam o espaço aéreo do Vaticano eram o que menos preocupava a cidade do
Papa naquele momento, ele a guiou, sem serem vistos, por cima do muro de trás,
até a aterrissagem no heliporto do Vaticano.
- Grazie - disse ele, descendo penosamente. Ela lhe soprou um beijo e decolou
rápido, desaparecendo dentro da noite na direção de onde viera.
Langdon respirou fundo, tentou clarear a mente, procurando entender o que estava
prestes a fazer. Com a câmera na mão, embarcou no mesmo carrinho de golfe em
que andara mais cedo naquele mesmo dia. Não tinha sido recarregado e o medidor
indicava que a bateria estava no final. Ele dirigiu com os faróis apagados para
economizar energia.
Também preferia que ninguém o visse chegar.
Nos fundos da Capela Sistina, o cardeal Mortati parou atordoado diante do
pandemônio que se formara.
- Foi um milagre! - um dos cardeais gritava. - Foi obra de Deus!
- Sim! - exclamavam outros. - Deus manifestou sua vontade!
- O camerlengo será nosso Papa! - gritou outro. - Ele não é cardeal, mas Deus
enviou um sinal milagroso!
- Sim! - concordou alguém. - As leis do conclave são leis do homem. A vontade
de Deus está diante de nós! Solicito uma eleição imediatamente!
- Uma eleição? - perguntou Mortati, caminhando na direção deles. - Acho que esta
é minha função.
Todos se viraram.
Mortati notou que os cardeais o examinavam. Pareciam distantes, desnorteados,
ofendidos com a sua sobriedade. Mortati desejava muito que seu coração também
fosse arrebatado por aquela miraculosa exaltação que via nos rostos que o
cercavam. Mas não conseguia. Sentia uma dor inexplicável em seu íntimo, uma
dolorosa tristeza que não sabia definir. Havia jurado dirigir aqueles procedimentos
com pureza de alma e sua hesitação era algo que não podia negar.
- Meus amigos - disse Mortati, subindo ao altar. Quase não reconhecia a própria
voz. - Acho que até o fim dos meus dias vou debater comigo mesmo o significado
daquilo que testemunhamos hoje. E, no entanto, o que sugerem com relação ao
camerlengo não pode ser de jeito algum a vontade de Deus.
Fez-se silêncio na capela.
- Como pode dizer isso? - perguntou afinal um dos cardeais. - O camerlengo
salvou a Igreja. Deus falou diretamente ao camerlengo! O homem sobreviveu à
própria morte! De que outro sinal precisamos mais?
- O camerlengo virá ao nosso encontro aqui - disse Mortati. - Vamos esperar.
Vamos escutá-lo antes de fazer uma eleição. Pode haver uma explicação.
- Uma explicação?
- Como seu Grande Eleitor, jurei preservar as leis do conclave. Todos sem dúvida
estão cientes de que, pela Santa Lei, o camerlengo é inelegível para o papado. Ele
não é cardeal. É um padre, um camarista. Há também a questão de sua idade
inadequada. - Mortati notou olhares mais duros. - Ao consentir que se realizasse
uma eleição, eu estaria permitindo que os senhores aprovassem um homem que a
Lei Vaticana considera inelegível. Estaria pedindo a cada um que quebrasse um
juramento sagrado.
- Mas o que aconteceu aqui esta noite - alguém disse, titubeante - certamente
transcende as nossas leis!
- Será mesmo? - Mortati replicou, cheio de autoridade, sem ao menos saber de
onde vinham suas palavras.
- Será que é a vontade de Deus que deixemos de lado as regras da Igreja? Será que
Deus quer que abandonemos a razão e nos entreguemos ao delírio?
- Mas o senhor não viu o que nós vimos? - um outro o desafiou, irritado.
- Como pode se atrever a questionar um poder como aquele?
A voz de Mortati projetou-se então com uma ressonância que ele jamais
conhecera.
- Não estou questionando o poder de Deus! Foi Deus quem nos concedeu razão e
circunspeção! É a Deus que servimos exercendo a prudência!
CAPÍTULO 129
Sentada em um banco junto à base da Escadaria Real, no corredor do lado de fora
da Capela Sistina, Vittoria Vetra parecia entorpecida. Quando avistou a figura que
entrava pela porta dos fundos, pensou que estivesse vendo outro espírito. Ele
estava enfaixado, mancando e vestido com uma espécie de uniforme médico.
Ela se levantou, incapaz de acreditar na visão.
- Ro... bert?
Ele nem respondeu. Caminhou direto para ela e a envolveu em seus braços.
Apertou seus lábios contra os dela em um beijo impulsivo, longamente desejado,
cheio de gratidão.
Vittoria sentiu as lágrimas chegando.
- Oh, Deus.., oh, obrigada, meu Deus...
Ele a beijou de novo, um beijo mais apaixonado, e ela comprimiu seu corpo
contra o dele, perdendo-se no abraço. Seus corpos se uniram como se já se
conhecessem há anos. Ela esqueceu o medo e a dor e fechou os olhos, a alma leve,
naquele momento perfeito.
- É a vontade de Deus! - alguém gritava, a voz ecoando na Capela Sistina.
- Quem mais além do escolhido poderia ter sobrevivido àquela explosão
diabólica?
- Eu - uma voz reverberou do fundo da capela.
Mortati e os outros viraram-se espantados para a figura maltratada que se
aproximava pelo centro da nave.
- Senhor Langdon?!
Sem uma palavra, Langdon encaminhou-se devagar para a frente da capela.
Vittoria Vetra entrou também.
Logo depois, dois guardas surgiram apressados empurrando um carrinho com
uma grande televisão em cima. Langdon esperou enquanto eles ligavam o
aparelho, a tela voltada para os cardeais. Então, Langdon fez sinal para que os
guardas se retirassem. Eles o fizeram, fechando as portas atrás de si. Agora era
entre Langdon, Vittoria e os cardeais. Langdon conectou a câmera Sony à
televisão e apertou o botão play.
A tela se acendeu.
A cena que se materializou diante dos cardeais passava-se no escritório do Papa.
O vídeo fora filmado de forma desajeitada, como se a câmera estivesse escondida.
Descentrado na tela, o camerlengo aparecia meio na penumbra, em frente à lareira
acesa. Embora parecesse estar falando diretamente para a câmera, logo ficou
evidente que estava falando com alguém - a pessoa que filmava. Langdon disse
aos cardeais que o vídeo fora filmado por Maximilian Kohler, o diretor do CERN.
Apenas uma hora antes, Kohler filmara secreta- mente seu encontro com o
camerlengo usando a minúscula câmera de vídeo que trazia disfarçada sob um dos
braços de sua cadeira de rodas.
Mortati e os cardeais assistiam a tudo perplexos. A conversa já começara, mas
Langdon não se deu ao trabalho de rebobinar a fita. O que ele queria que os
cardeais vissem ainda estava por vir....
- Leonardo Vetra mantinha um diário? - dizia o camerlengo. - Imagino que isso
seja uma boa notícia para o CERN. Se os diários contêm seus processos para criar
antimatéria...
- Não contêm - disse Kohler. - Vai ser um alívio para o senhor saber que esses
processos morreram com Leonardo. No entanto, os diários falam de um assunto
diferente. Do senhor.
O camerlengo pareceu perturbar-se.
- Não compreendo.
- Descrevem um encontro que Leonardo teve no mês passado. Com o senhor.
O camerlengo hesitou, depois olhou para a porta.
- Rocher não deveria ter autorizado sua entrada sem me consultar. Como chegou
aqui?
- Rocher sabe da verdade. Telefonei antes de vir e contei a ele o que o senhor fez.
- O que eu fiz? Seja qual for a história que contou a ele, Rocher é da Guarda Suíça
e fiel demais a esta Igreja, não acreditaria mais em um cientista amargo do que em
seu camerlengo.
- Na realidade, ele é fiel demais para não acreditar. É tão fiel que, apesar da prova
de que um dos seus leais guardas traiu a Igreja, ele se recusou a aceitar o fato. O
dia inteiro vem procurando outra explicação.
- Que o senhor deu a ele.
- A verdade. Por mais chocante que fosse.
- Se Rocher tivesse acreditado no senhor, teria me prendido.
- Não. Eu não deixei. Ofereci a ele o meu silêncio em troca deste encontro. O
camerlengo deu uma risada estranha.
- O senhor pretende chantagear a Igreja com uma história em que ninguém vai
acreditar?
- Não preciso fazer chantagem nenhuma. Quero simplesmente ouvir a verdade de
sua boca. Leonardo Vetra era meu amigo.
O camerlengo nada disse. Limitou-se a olhar para Kohler.
- Vejamos, então - começou Kohler, áspero. - Há cerca de um mês, Leonardo
Vetra entrou em contato com o senhor solicitando uma audiência urgente com o
Papa. Uma audiência que o senhor concedeu porque o Papa admirava o trabalho
de Leonardo e porque Leonardo disse que era uma emergência.
O camerlengo voltou-se para o fogo da lareira. Não disse nada.
- Leonardo veio ao Vaticano em absoluto segredo. Estava traindo a confiança de
sua filha ao vir aqui, um fato que o perturbava grandemente, mas ele achava que
não tinha opção. Suas pesquisas haviam criado um profundo conflito em seu
íntimo e ele sentia necessidade de orientação espiritual da Igreja. Em um encontro
particular, contou ao Papa que havia feito uma descoberta científica com
profundas implicações religiosas. Havia provado que o Gênese era fisicamente
possível e que intensas fontes de energia, que Vetra chamava de Deus, poderiam
reproduzir o momento da Criação.
Silêncio.
- O Papa ficou entusiasmado - Kohler continuou. - Queria que Leonardo
divulgasse a experiência. Sua Santidade achava que essa descoberta poderia
começar a aproximar a ciência da religião, um dos sonhos da vida do Papa. Então,
Leonardo explicou ao senhor o aspecto negativo da descoberta, o motivo pelo
qual ele solicitara a orientação da Igreja. Parecia que sua experiência da Criação,
exatamente como a Bíblia relata, produzia tudo aos pares. Opostos. Luz e trevas.
Além do processo de criação da matéria, Vetra descobriu o da criação da
antimatéria. Devo prosseguir?
O camerlengo manteve-se calado. Inclinou-se para atiçar as brasas da lareira.
- Depois que Leonardo Vetra veio aqui - disse Kohler -, o senhor foi ao CERN ver
o trabalho dele. Os diários de Leonardo dizem que o senhor fez uma visita pessoal
ao laboratório dele.
O camerlengo levantou a cabeça.
Kohler foi em frente.
- O Papa não poderia viajar sem atrair a atenção da mídia, por isso mandou o
senhor. Leonardo levou-o para uma excursão secreta pelo laboratório. Fez uma
demonstração de aniquilamento de antimatéria, o Big-Bang, o poder da Criação.
Também lhe mostrou um grande espécime que mantinha escondido e que provava
que seu novo método poderia produzir antimatéria em larga escala. O senhor ficou
assombrado.
Voltou para a Cidade do Vaticano para contar ao Papa o que tinha presenciado.
O camerlengo suspirou.
- E é isso que o incomoda? Que eu tenha respeitado a confiança de Leonardo ao
fingir perante o mundo esta noite que nada sabia sobre a antimatéria?
- Não! O que me incomoda é que Leonardo Vetra praticamente provou a
existência de seu Deus e o senhor fez com que ele fosse assassinado!
O camerlengo voltou-se para ele afinal, o rosto impenetrável.
O único som era o estalar do fogo.
Súbito, a câmera balançou e o braço de Kohler apareceu no enquadramento. Ele
se curvou para a frente, tentando alcançar algo preso debaixo de sua cadeira de
rodas. Quando endireitou o corpo, segurava uma pistola. O ângulo da câmera era
arrepiante: visto por trás, o braço estendido apontava o revólver direto para o
camerlengo.
Kohler disse:
- Confesse os seus pecados, padre. Agora.
O camerlengo parecia assustado.
- Não vai sair vivo daqui.
- A morte seria um alívio bem-vindo para o sofrimento pelo qual sua religião me
faz passar desde que eu era criança - Kohler segurava o revólver com as duas
mãos agora. - Estou lhe dando uma chance. Confesse os seus pecados ou morra
agora mesmo.
O camerlengo olhou de soslaio para a porta.
- Rocher está lá fora - desafiou-o Kohler. - Ele também está preparado para matálo.
- Rocher jurou proteger a Ig...
- Rocher deixou que eu entrasse aqui. Armado. Está enojado com as suas
mentiras. O senhor tem uma única opção. Confessar-se a mim. Tenho de ouvir
tudo de sua própria boca.
O camerlengo hesitou.
Kohler levantou a arma.
- Realmente duvida que eu vá matá-lo?
- Não importa o que lhe conte - disse o camerlengo - um homem como o senhor
nunca entenderia.
- Experimente.
O camerlengo permaneceu imóvel por um instante, uma silhueta dominante em
meio à vaga luminosidade do fogo. Quando falou, suas palavras ecoaram com
uma dignidade mais apropriada a uma gloriosa narrativa de altruísmo do que a
uma confissão.
- Desde o princípio dos tempos - disse o camerlengo -, a Igreja lutou contra os
inimigos de Deus. Às vezes com palavras. Outras vezes com espadas. E sempre
sobrevivemos.
O camerlengo irradiava convicção.
- Os demônios do passado - continuou ele - eram demônios de fogo e abominação.
Esses eram inimigos contra os quais podíamos lutar, inimigos que inspiravam
medo. Mas Satã é astuto. Com o passar do tempo, abandonou sua fisionomia
diabólica e assumiu uma nova face: a face da pura razão. Transparente e insidiosa,
mas também sem alma. - A voz do camerlengo enraiveceu-se de modo
inesperado, numa transição quase insana. - Diga-me, senhor Kohler, como pode a
Igreja condenar o que faz sentido, o que é lógico para nossas mentes? Como
podemos censurar o que hoje é o próprio fundamento de nossa sociedade? Cada
vez que a Igreja levanta a voz para fazer uma advertência, vocês gritam mais alto
e nos chamam de ignorantes. De paranóicos. De controladores! E assim a sua
maldade cresce. Encoberta por um véu de virtuoso intelectualismo. Espalha-se
como um câncer. Santificada pelos milagres de sua própria tecnologia.
Deificando-se a si mesma! Até se dissipar a nossa desconfiança e passarmos a
achar que é pura bondade. A ciência chegou para nos salvar de nossas doenças, de
nossa fome e de nosso sofrimento! Eis a ciência, o novo Deus de infinitos
milagres, onipotente e benevolente! Ignorem as armas e o caos. Esqueçam a
solidão dilacerada e os perigos intermináveis! A ciência está aqui! - O camerlengo
deu um passo na direção do revólver. - Mas eu vi o rosto de Satã à espreita, vi o
perigo.
- O que é que está dizendo! A ciência de Vetra praticamente provou a
existência de seu Deus! Ele era seu aliado!
- Aliado? A ciência e a religião não andam juntas nisso! Não buscamos o mesmo
Deus, você e eu! Quem é seu Deus? Um Deus de prótons, massa e cargas de
partículas? Como o seu Deus inspira seus fiéis?
Como é que o seu Deus chega ao coração do homem para lembrar-lhe que ele é
explicável por um poder maior? Ou que ele é responsável por seus semelhantes?
Vetra estava desencaminhado. Seu trabalho não era religioso, era sacrílego! O
homem não pode colocar a Criação de Deus dentro de um tubo de ensaio e exibila
para o mundo! Isto não glorifica Deus, isto desmerece Deus!
O camerlengo, a essa altura, apertava o próprio corpo com as mãos em garra, a
voz enlouquecida.
- E por isso mandou matar Leonardo Vetra!
- Pela Igreja! Por toda a humanidade! Que loucura era aquela! O homem não está
preparado para ter o poder de Deus em suas mãos. Deus em um tubo de ensaio?
Uma gotinha de líquido que pode desintegrar uma cidade inteira? Ele tinha de ser
detido!
O camerlengo calou-se abruptamente. Parecia estar considerando suas opções.
As mãos de Kohler levantaram o revólver.
- Você confessou. Não tem mais escapatória.
O camerlengo riu um riso triste.
- Então não sabe que confessar os pecados é a forma de escapar? - Olhou para a
porta. - Quando Deus está do nosso lado, temos opções que um homem como
você não é capaz de compreender.
Com essas palavras ainda ressoando no ar, o camerlengo agarrou a sua batina pela
gola e rasgou-a com violência, deixando seu peito nu.
Kohler fez um movimento brusco, obviamente espantado.
- O que está fazendo?
O camerlengo não respondeu. Deu um passo para trás, para junto da
lareira, e tirou um objeto das brasas reluzentes.
- Pare! - ordenou Kohler, a arma ainda levantada. - O que está fazendo?
Quando o camerlengo se virou, segurava um ferro de marcar em brasa. O
diamante Illuminati. O homem tinha uma expressão desvairada.
- Pretendia fazer isto sozinho - falava com uma intensidade selvagem -, mas agora
vejo que Deus queria que você estivesse aqui. Você é minha salvação.
Antes que Kohler pudesse esboçar qualquer reação, o camerlengo fechou os
olhos, arqueou as costas e comprimiu o ferro em brasa no centro do próprio peito.
Sua carne chiou.
- Mãe Maria! Mãe Bendita! Olhe seu filho! - e gritou alto de dor. Kohler surgiu no
enquadramento mal se equilibrando nas pernas, o revólver agitando-se
descontroladamente.
O camerlengo gritou mais alto, o corpo oscilando. Ele lançou o ferro de marcar
aos pés de Kohler e caiu no chão, contorcendo-se em agonia.
O que aconteceu em seguida foi difícil de distinguir.
Houve um grande tremor na imagem da tela quando a Guarda Suíça irrompeu na
sala. Ouviu-se o som de tiroteio. Kohler dobrou os braços no peito, foi lançado
para trás, sangrando, e caiu da cadeira de rodas.
- Não! - gritou Rocher, tentando impedir seus guardas de atirarem em Kohler.
O camerlengo, ainda se contorcendo no chão, girou o corpo e apontou
freneticamente para Rocher:
- Illuminatus!
- Seu canalha - disse Rocher, correndo para ele. - Seu canalha hipócrita...
Chartrand abateu-o com três tiros. Rocher caiu morto no chão da sala.
Então, os guardas correram para o camerlengo ferido, rodeando-o. Ao mesmo
tempo que eles se reuniam, o vídeo pegava o rosto estarrecido de Robert Langdon,
ajoelhado perto da cadeira de rodas, olhando para o ferro de marcar. Depois, a
imagem sacudiu fortemente. Kohler recuperara a consciência e estava soltando a
pequenina câmera do suporte localizado debaixo do braço de sua cadeira. Em
seguida, tentava estender a mão com a câmera para Langdon.
- Ent. . .tregue... - arquejou Kohler -, en. . .tregue isto... à imprensa.
E a tela ficou branca.
CAPÍTULO 130
O camerlengo começou a sentir a névoa de exaltação e de adrenalina se dissipar.
Enquanto a Guarda Suíça o ajudava a descer a Escadaria Real para ir para a
Capela Sistina, o camerlengo escutou cânticos na Praça de São Pedro e soube que
montanhas haviam sido removidas.
Grazie Dio.
Ele rezara pedindo forças e Deus as concedera. Nos momentos em que duvidara,
Deus falara. Tua missão é Santa, Deus dissera. Dar-te-ei forças. Mesmo com a
força de Deus, o camerlengo sentira medo, questionara a correção de seu
caminho.
Se não fores tu, Deus o desafiara, QUEM o fará?
Se não for agora, QUANDO será?
Se não for assim, COMO será?
Jesus, Deus lembra-lhe, salvara-os todos, salvara-os da própria apatia. Com dois
atos, Jesus abrira-lhes os olhos. Horror e Esperança. A crucificação e a
ressurreição. Ele mudara o mundo.
Mas isto acontecera havia milênios. O tempo corroera o milagre. As pessoas
haviam se esquecido. Tinham se voltado para os falsos ídolos - tecnodivindades e
milagres da mente. E quanto aos milagres do coração?
O camerlengo sempre rezava para que Deus lhe mostrasse como fazer os homens
acreditarem outra vez.
Mas Deus permanecia em silêncio. Foi somente no momento mais sombrio que
Deus veio ao encontro do camerlengo. Ah, que noite terrível!
O camerlengo ainda se lembrava de estar deitado no chão com a roupa de dormir
em frangalhos cravando as unhas na própria carne, tentando purgar sua alma do
sofrimento provocado por uma verdade infame que descobrira pouco antes. Não
pode ser!, gritara. Entretanto, sabia que era. O engano queimava-o como o fogo
do inferno. O bispo que o acolhera, o homem que fora como um pai para ele, o
religioso ao lado de quem o camerlengo sempre ficara enquanto ele subia até
chegar ao papado, era uma fraude. Um pecador comum. Mentindo para o mundo
sobre um ato tão traiçoeiro em sua essência que o camerlengo duvidava que o
próprio Deus pudesse perdoá-lo.
- Seu juramento! - o camerlengo gritara para o Papa. - O senhor quebrou seu
juramento a Deus! Logo o senhor, entre todos os homens!
O Papa tentou se explicar, mas o camerlengo não lhe deu ouvidos. Saiu correndo,
cambaleando às cegas pelos corredores, vomitando, rasgando a própria pele até
dar por si ensangüentado e sozinho, caído no chão de terra diante da tumba de São
Pedro. Mãe Maria, o que faço agora? Foi naquele momento de dor e traição,
quando o camerlengo estava prostrado na Necrópole, rezando para Deus levá-lo
deste mundo sem fé, que Ele veio.
A voz em sua cabeça ressoou como um trovão.
Juraste servir teu Deus?
- Sim! - bradou o camerlengo.
Morrerias por teu Deus?
- Sim! Leve-me agora!
Morrerias por tua Igreja?
- Sim! Liberte-me, por favor!
Mas morrerias pela humanidade?
No silêncio que se seguiu, o camerlengo sentiu-se despencando no abismo. Cada
vez mais fundo, cada vez mais depressa, sem controle. No entanto, sabia a
resposta. Sempre soubera.
- Sim! - gritou em meio à loucura. - Eu morreria pelos homens! Como Teu filho,
morreria por eles!
Horas depois, o camerlengo ainda tiritava caído no chão. Viu o rosto de sua mãe.
Deus tem planos para você, ela dizia. O camerlengo mergulhou mais ainda no
desvario. Então, Deus falou de novo. Desta vez, com silêncio. Mas o camerlengo
compreendeu. Restaure a fé dos homens.
Se não fosse eu, quem seria?
Se não fosse agora, quando seria?
Quando os guardas destrancaram a porta da Capela Sistina, o camerlengo
Ventresca sentiu o poder fluindo em suas veias, exatamente como quando ele era
menino. Deus o escolhera. Muito tempo antes.
Seja feita a Sua vontade.
O camerlengo sentia-se renascido. A Guarda Suíça encarregara-se de enfaixar seu
peito, de banhá-lo e vestir nele uma batina limpa de linho branco. Tinham-lhe
dado também uma injeção de morfina para a dor da queimadura. O camerlengo
desejara não ter tomado analgésico algum. Jesus suportou Suas dores durante três
dias na cruz! Já sentia a droga lhe amortecendo os sentidos, uma vertigem que o
arrastava.
Ao entrar na capela, não se surpreendeu nada com os olhares admirados dos
cardeais para ele. É uma admiração reverente por Deus, lembrou a si mesmo.
Não por mim, mas pela maneira como Deus trabalha ATRAVÉS da minha
pessoa. Enquanto caminhava pelo centro da nave, via perplexidade em todos os
rostos. A cada rosto por que passava, porém, percebia algo mais no olhar. O que
seria? O camerlengo imaginara antes como eles o receberiam naquela noite. Com
alegria? Com respeito? Tentou ler seus olhos e não encontrou neles nenhuma
dessas duas emoções.
Foi então que o camerlengo olhou para o altar e viu Robert Langdon.
CAPÍTULO 131
O camerlengo Carlo Ventresca parou entre as fileiras de cadeiras, no meio da
Capela Sistina. Os cardeais estavam todos de pé, próximos da frente da igreja,
olhando para ele. Robert Langdon estava no altar ao lado de uma televisão ligada,
onde se desenrolava uma cena que o camerlengo reconhecia mas não podia
imaginar como fora parar ali. Vittoria Vetra encontrava- se junto de Langdon, o
rosto tenso.
O camerlengo fechou os olhos por um momento, esperando que tudo fosse uma
alucinação causada pela morfina e que, quando os reabrisse, a cena pudesse ser
diferente. Mas não era.
Eles sabiam.
Curiosamente, não sentiu medo. Mostre-me o caminho, Pai. Dê-me as palavras
para fazê-los ver a Sua visão, pediu.
Mas o camerlengo não obteve resposta.
Pai, chegamos longe demais para fracassar agora.
Silêncio.
Eles não compreendem o que Nós fizemos.
O camerlengo não soube de quem era a voz que ele escutou em sua própria mente,
mas a mensagem era brutalmente simples.
E a verdade o libertará...
E foi assim que o camerlengo Ventresca manteve a cabeça erguida ao avançar
pela Capela Sistina. Andando na direção dos cardeais, nem a difusa luminosidade
das velas suavizava os olhares penetrantes que eles lhe lançavam. Explique-se,
diziam os rostos. Dê sentido a esta loucura. Diga que nossos temores são
infundados!
A verdade, disse o camerlengo a si mesmo. Só a verdade. Havia segredos demais
entre aquelas paredes, um deles tão sombrio que o levara à loucura. Mas da
loucura viera a luz.
- Se pudessem dar sua própria alma para salvar milhões - disse ele, enquanto
andava -, não o fariam?
Os rostos na capela limitaram-se a olhar para ele. Ninguém se mexia. Ninguém
falava. Além das paredes, trechos alegres de cânticos vinham da praça.
O camerlengo caminhava para eles.
- Qual é o maior pecado? Matar o inimigo? Ou ficar inativo enquanto seu
verdadeiro amor é esmagado?
Eles estão cantando na Praça de São Pedro! - O camerlengo parou por um instante
e contemplou o teto da Capela Sistina. O Deus de Michelangelo, na abóbada
obscurecida, olhava para baixo e parecia satisfeito.
- Eu não podia ficar parado - disse o camerlengo. Cada vez mais próximo dos
cardeais, ainda assim não encontrou nenhum lampejo de compreensão nos olhares
deles. Será que não enxergavam a radiante simplicidade de seus atos? Não
percebiam a sua necessidade absoluta?
Haviam sido tão puros.
Os Illuminati. Ciência e Satã juntos.
Ressuscitar o antigo medo. Depois o esmagar.
Horror e Esperança. Fazê-los acreditar outra vez.
Naquela noite, o poder dos Illuminati fora desencadeado mais uma vez, com
conseqüências gloriosas. A apatia se evaporara. O medo percorrera todo o mundo
como um relâmpago, unindo as pessoas. E então a majestade de Deus vencera as
trevas.
Eu não podia deixar de interferir!
A inspiração viera do próprio Deus - aparecendo como um farol luminoso na noite
de agonia do camerlengo. Ah, mundo sem fé! Alguém tem de salvá-lo. Você. Se
não for você, quem será?
Você foi salvo por uma razão. Mostre-lhes os velhos demônios. Lembre-os de
como tinham medo. Apatia é morte. Sem trevas, não há luz. Faça-os escolher. Luz
ou trevas. Onde está o medo? Onde estão os heróis? Se não for agora, quando
será?
O camerlengo andou pelo centro da nave direto para a multidão de cardeais.
Sentiu-se como Moisés quando o mar de faixas e capelos vermelhos abriu-se à sua
frente dando-lhe passagem. No altar, Robert Langdon desligou a televisão, pegou
a mão de Vittoria e abandonou o altar. O fato de Robert Langdon ter sobrevivido,
o camerlengo sabia, só podia ser a vontade de Deus. Deus salvara Robert
Langdon. O camerlengo se perguntava por quê.
A voz que quebrou o silêncio foi a da única mulher presente na Capela Sistina.
- Você matou meu pai? - perguntou ela, dando um passo à frente.
Quando o camerlengo encarou Vittoria Vetra, não soube definir bem a expressão
no rosto dela - sofrimento, sim, mas raiva? Ela certamente devia compreender. O
talento de seu pai era perigoso. Ele tinha de ser impedido de continuar. Para o
bem da humanidade.
- Ele estava fazendo o trabalho de Deus - disse Vittoria.
- O trabalho de Deus não é feito dentro de um laboratório. É feito no coração.
- O coração de meu pai era puro! E as pesquisas dele provaram...
- As pesquisas dele provaram outra vez que a mente do homem está progredindo
mais depressa do que a sua alma! - a voz do camerlengo soou mais estridente do
que ele esperava. Ele baixou o tom. - Se um homem tão espiritualizado quanto seu
pai foi capaz de criar uma arma como a que vimos esta noite, imagine o que um
homem comum não faria com essa tecnologia que ele criou!
- Um homem como você?
O camerlengo respirou fundo. Será que ela não via? A moral humana não
avançava tão depressa quanto a ciência. A humanidade não era bastante evoluída
espiritualmente para os poderes que possuía. Nunca criamos uma arma que não
tenhamos usado! E ainda assim ele sabia que a antimatéria não era nada - apenas
mais uma arma no já copioso arsenal do homem. O homem ainda podia destruir.
O homem aprendera a matar havia muito tempo. E o sangue de sua mãe caíra
como chuva. O talento de Leonardo Vetra era perigoso por outra razão.
- Durante séculos - disse o camerlengo -, a Igreja se manteve impassível enquanto
a ciência desmoralizava a religião pouco a pouco. Desmascarando milagres.
Treinando a mente para superar o coração. Condenando a religião como o ópio
das massas. Deus foi acusado de ser uma alucinação - um arrimo ilusório para os
muito fracos, incapazes de aceitar que a vida não tem qualquer sentido. Eu não
podia ficar parado enquanto a ciência se atrevia a captar o poder do próprio Deus!
Você falou de prova? Sim, prova da ignorância da ciência! O que está errado em
admitir que algo existe além de nossa compreensão? O dia em que a ciência
comprovar a existência de Deus em um laboratório será o dia em que as pessoas
não terão mais necessidade da fé!
- Você quer dizer o dia em que as pessoas não terão mais necessidade da Igreja -
desafiou-o Vittoria, andando na sua direção. - A dúvida é o seu último farrapo de
controle. É a dúvida que traz as almas para vocês. A necessidade humana de saber
se a vida tem sentido. A insegurança e a necessidade do homem de uma mente
instruída que lhe garanta que tudo é parte de um plano geral. Só que a Igreja não é
a única mente instruída do planeta! Nós todos buscamos Deus de diferentes
maneiras. De que tem medo? Que Deus se mostre em algum outro lugar fora
destas paredes? Que as pessoas O encontrem em suas próprias vidas e deixem
esses rituais antiquados para trás? As religiões evoluem! A mente encontra
respostas, o coração se apega a novas verdades. Meu pai buscava o mesmo que
você! Em um caminho paralelo! Como não enxergou isto? Deus não é uma
autoridade onipotente que nos olha de cima, ameaçando nos atirar em um poço de
fogo se desobedecermos. Deus é a energia que flui através das sinapses de nossos
sistemas nervosos e dos ventrículos de nossos corações! Deus está em todas as
coisas!
- Exceto na ciência - rebateu o camerlengo, os olhos demonstrando somente pena.
- A ciência, por definição, não tem alma. É alheia ao coração. Os milagres
intelectuais como a antimatéria chegam ao mundo sem instruções éticas anexas.
Isto em si mesmo é perigoso! E quando a ciência alardeia suas atividades ímpias
como sendo o caminho esclarecido a seguir? Prometendo respostas a perguntas
cuja beleza é não ter resposta? - ele sacudiu a cabeça. - Não.
Houve um momento de silêncio. O camerlengo sentiu-se de repente cansado sob o
olhar inflexível de Vittoria. Não era assim que deveria ser. Deus o estaria
submetendo a um teste final?
Foi Mortati quem quebrou o feitiço do momento.
- Os preferiti - disse ele, num murmúrio horrorizado. - Baggia e os outros. Por
favor, diga que não...
O camerlengo voltou-se para ele, surpreso com a dor que transparecia em sua voz.
Decerto Mortati seria capaz de compreender. Os milagres da ciência ocupavam as
manchetes dos jornais todos os dias. Fazia quanto tempo que o mesmo não
acontecia com a religião? Séculos? A religião precisava de um milagre! Algo que
despertasse o mundo adormecido. Que o levasse de volta para o caminho da
retidão. Que restaurasse a fé. De qualquer maneira, os preferiti não eram líderes,
eram transformadores. Liberais preparados para abraçar o novo mundo e
abandonar os velhos métodos! Só havia um jeito. Um novo líder. Jovem.
Vigoroso. Vibrante. Milagroso. Os preferiti serviram mais à Igreja na morte do
que jamais o teriam feito quando vivos. Horror e Esperança. Oferecer quatro
almas para salvar milhões. O mundo lembraria deles para sempre como mártires.
A Igreja prestaria gloriosas homenagens a seus nomes. Quantos milhares
morreram pela glória de Deus? Eles eram somente quatro.
- Os preferiti - repetiu Mortati.
- Partilhei a dor deles - defendeu-se o camerlengo, apontando para o peito.
- E eu também teria morrido por Deus, mas meu trabalho apenas começou. Estão
cantando na Praça de São Pedro!
O camerlengo vislumbrou horror nos olhos de Mortati e novamente ficou confuso.
Seria a morfina?
Mortati olhava para ele como se o camerlengo tivesse matado aqueles homens
com suas próprias mãos.
Até isto eu teria feito por Deus, pensou o camerlengo, e contudo não o fizera. A
tarefa tinha sido realizada pelo Hassassin, uma alma pagã que fora levada a
acreditar que estava trabalhando para os Illuminati. Sou Janus, dissera-lhe o
camerlengo. Vou provar meu poder. E o fizera. O ódio do Hassassin transformarao
em um joguete nas mãos de Deus.
- Escutem os cânticos - disse o camerlengo, sorrindo, seu coração se enchendo de
alegria. - Nada une mais os corações do que a presença do mal. Queimem uma
igreja e a comunidade se levanta, dando-se as mãos, cantando hinos de desafio
enquanto a reconstrói. Vejam como eles afluem hoje para cá. O medo os trouxe de
volta para casa. Temos de forjar demônios modernos para o homem moderno. A
apatia está morta.
Mostremos a eles a face do mal, os adoradores de Satanás à espreita no meio de
nós, dirigindo nossos governos, nossos bancos, nossas escolas, ameaçando
destruir a própria Casa de Deus com sua ciência pervertida. A corrupção é
profunda. O homem precisa estar vigilante. Procurar a virtude. Tornar-se a
virtude!
No silêncio, o camerlengo esperava que agora eles tivessem entendido. Os
Illuminati não tinham ressurgido. Os Illuminati estavam mortos fazia muito
tempo. Apenas seu mito ainda vivia. O camerlengo fizera os Illuminati
ressurgirem como um lembrete. Aqueles que conheciam a história dos Illuminati
reviveram sua maldade. Os que não conheciam passaram a conhecer e ficaram
espantados por terem sido tão cegos. Os antigos demônios tinham sido
ressuscitados para despertar um mundo indiferente.
- Mas... os ferros de marcar? - a voz de Mortati soava dura de tanta repulsa. O
camerlengo não respondeu. Mortati não tinha como saber, mas as marcas haviam
sido confiscadas pelo Vaticano mais de um século antes. Tinham ficado trancadas,
esquecidas e cobertas de poeira no cofre papal, o relicário particular do Papa, no
fundo dos Aposentos Bórgia. O cofre papal continha certos objetos que a Igreja
considerava perigosos demais para outros olhos a não ser os do Papa.
Por que escondiam algo que inspirava medo? O medo levava as pessoas a Deus!
A chave do cofre-forte passava de um Papa para outro. O camerlengo Ventresca
tinha furtado a chave e entrado. O mito que envolvia o conteúdo do cofre era
fascinante: o manuscrito original dos 14 livros da Bíblia conhecidos como
Apocrypha, a terceira profecia de Fátima, as duas primeiras tendo se realizado e a
terceira sendo tão terrível que a Igreja nunca a revelara.
Além de tudo isso, o camerlengo encontrara a Coleção Illuminati, todos os
segredos que a Igreja descobrira depois de banir o grupo de Roma: seu infame
Caminho da Iluminação, a astuciosa fraude de um dos principais artistas do
Vaticano, Bernini, os cientistas mais importantes da Europa zombando da religião
ao se reunirem secretamente no Castelo Sant'Angelo, propriedade do Vaticano. A
coleção incluía uma caixa pentagonal contendo os ferros de marcar, um deles o
mítico diamante Illuminati. Aquela era uma parte da história do Vaticano que os
antigos achavam melhor esquecer. O camerlengo, porém, não concordava com
isso.
- Mas a antimatéria... - disse Vittoria. - O Vaticano correu o risco de ser
destruído!
- Não há riscos quando Deus está a seu lado - objetou o camerlengo. - Esta causa
era Dele.
- Você é louco! - exclamou ela, fervendo de indignação.
- Milhões foram salvos.
- Pessoas morreram!
- Almas foram salvas.
- Diga isto a meu pai e a Max Kohler!
- A arrogância do CERN tinha de ser revelada. Uma gotícula de líquido que pode
desintegrar um quilômetro? E é a mim que você chama de louco?
- O camerlengo sentiu a raiva subir. Será que achavam que a incumbência dele era
simples? - Aqueles que crêem são submetidos a grandes testes por amor a Deus!
Deus pediu a Abraão para lhe sacrificar seu filho! Deus ordenou a Jesus que
passasse pelo tormento da crucificação! E nós penduramos o símbolo da cruz
diante de nossos olhos, sangrento, doloroso, agoniante, para nos lembrarmos do
poder do mal! Para manter nossos corações vigilantes! As chagas no corpo de
Jesus são uma lembrança viva dos poderes das trevas! Minhas feridas são uma
lembrança viva da mesma coisa! O mal está vivo, mas o poder de Deus triunfará!
Seus brados ecoaram na parede dos fundos da Capela Sistina e depois um
profundo silêncio caiu sobre todos. O tempo parou. O Último Julgamento, de
Michelangelo, erguia-se ameaçador atrás do camerlengo - Jesus lançando os
pecadores no inferno. Os olhos de Mortati encheram-se de lágrimas.
- O que você fez, Carlo - perguntou Mortati, num sussurro. Ele fechou os olhos e
uma lágrima rolou por sua face -, com o Santo Padre?
Um suspiro coletivo de dor ergueu-se, como se todos até então tivessem
esquecido o fato, O Papa.
Envenenado.
- Um mentiroso vil - disse o camerlengo.
Mortati protestou, chocado.
- O que quer dizer? Ele era honesto! E amava você!
- E eu a ele. Ah, como o amava! Mas a fraude! O juramento a Deus que foi
quebrado!
O camerlengo sabia que naquele momento eles não compreendiam, mas logo
compreenderiam. Quando lhes contasse, eles veriam! O Santo Padre era a fraude
mais nefasta que a Igreja jamais tivera. O camerlengo ainda se lembrava daquela
noite terrível. Ele voltara de sua viagem ao CERN com as informações sobre o
Gênese de Vetra e o poder horripilante da antimatéria. O camerlengo estava certo
de que o Papa veria os perigos envolvidos na descoberta, mas o Santo Padre viu
apenas esperança nos avanços científicos de Vetra. Chegou a levantar a
possibilidade de o Vaticano financiar o trabalho de Vetra como um gesto de boa
vontade para com a pesquisa científica baseada na espiritualidade.
Loucura! A Igreja investir em uma pesquisa que ameaçava tornar a própria Igreja
obsoleta? Em um trabalho que produzia armas de destruição em massa? A bomba
que matara sua mãe...
- O senhor não pode fazer isto! - exclamara o camerlengo.
- Tenho uma dívida muito grande com a ciência - replicara o Papa.
- Algo que escondi a minha vida inteira. A ciência me concedeu uma dádiva
quando eu era jovem. Uma dádiva que nunca esqueci.
- Não compreendo. O que teria a ciência a oferecer a um homem de Deus?
- É complicado - dissera o Papa. - Vou precisar de tempo para fazê-lo
compreender. Mas antes há um fato a meu respeito que você precisa saber.
Mantive segredo sobre isto durante todos estes anos. Acho que já é hora de lhe
contar.
E o Papa contara a ele a assombrosa verdade.
CAPÍTULO 132
O camerlengo jazia encolhido no chão de terra diante da tumba de São Pedro.
Fazia frio na Necrópole, mas isto ajudava a coagular o sangue das feridas que ele
fizera na própria carne. O Santo Padre não o encontraria ali.
É complicado - a voz do Papa ecoava em sua mente. Vou precisar de tempo para
fazê-lo compreender...
Entretanto, o camerlengo sabia que tempo nenhum o faria compreender.
Mentiroso! Acreditei em você! DEUS acreditou em você!
Com uma única frase, o Papa fizera desmoronar o mundo do camerlengo. Tudo
em que o camerlengo acreditara sobre seu mentor fora despedaçado diante de seus
olhos. A verdade atingiu o coração do camerlengo com tanta força que ele recuou
vacilante para fora do escritório do Papa e vomitou no corredor.
- Espere! - o Papa o chamara, indo atrás dele. - Por favor, deixe-me explicar!
Mas o camerlengo fugiu. Como o Santo Padre poderia esperar que ele agüentasse
mais alguma coisa? Ah, que desgraça, quanta depravação! E se alguém
descobrisse? Que profanação da Igreja! Então os votos sagrados do Papa nada
significavam?
A loucura chegou rápida, gritando em seus ouvidos, até ele acordar diante da
tumba de São Pedro. Foi quando Deus veio a ele com uma assombrosa
ferocidade.
TEU DEUS É UM DEUS VINGADOR!
Juntos, tinham feito planos. Juntos, iriam proteger a Igreja. Juntos, iriam devolver
a fé a este mundo sem fé.
O mal estava em toda parte. E todavia o mundo se tornara imune a ele! Juntos,
iriam mostrar a escuridão do mal e Deus triunfaria no fim! Horror e Esperança.
Então, o mundo iria acreditar!
O teste final de Deus não fora tão horrível quanto o camerlengo imaginara.
Esgueirar-se no quarto de dormir do Papa, encher a sua seringa, cobrir a boca do
embusteiro enquanto o corpo dele se entregava aos espasmos da morte. À luz da
lua, o camerlengo via nos olhos aflitos do Papa que havia algo que ele queria
dizer.
Tarde demais.
O Papa já dissera o suficiente.
CAPÍTULO 133
- O Papa teve um filho.
Dentro da Capela Sistina, o camerlengo permaneceu inabalável enquanto falava.
Cinco palavras solitárias e uma conclusão estarrecedora. Toda a assembléia
pareceu recuar em conjunto. Os semblantes acusadores dos cardeais
transformaram-se em expressões de pasmo, como se cada criatura ali dentro
rezasse para o camerlengo estar errado.
O Papa teve um filho.
O choque atingiu Langdon também. A mão de Vittoria na sua estremeceu, e a
mente de Langdon, já atordoada com perguntas não respondidas, procurou
encontrar um centro de gravidade.
A declaração do camerlengo parecia que iria pairar acima deles para sempre.
Mesmo no olhar delirante do camerlengo, Langdon conseguia ver pura convicção.
E tinha vontade de fugir dali, dizer a si mesmo que tudo não passava de um
grotesco pesadelo e acordar em um mundo que fizesse sentido.
- Deve ser mentira! - gritou um dos cardeais.
- Não acredito! - protestou outro. - O Santo Padre era um dos homens mais
piedosos e sinceros que já existiram!
Foi Mortati quem falou em seguida, com um fio de voz, abalado.
- Meus amigos, o que o camerlengo diz é verdade. - Todos os cardeais na capela
voltaram-se para ele ao mesmo tempo, como se ele tivesse proferido uma
obscenidade. - O Papa realmente teve um filho.
Os cardeais empalideceram de susto.
O camerlengo ficou estupefato.
- Você sabia? Mas como poderia saber uma coisa dessas?
Mortati suspirou.
- Quando Sua Santidade foi eleito, eu fui o Advogado do Diabo.
Ouviu-se o ruído de todos prendendo a respiração em uníssono.
Langdon compreendeu. Aquilo significava que a informação era provavelmente
verdadeira. O abominável "Advogado do Diabo" era a autoridade máxima quando
se tratava de informações escandalosas dentro do Vaticano. Segredos vergonhosos
nas vidas dos Papas eram perigosos e, antes das eleições, eram realizadas
investigações secretas sobre o passado dos candidatos por um único cardeal que
servia de "Advogado do Diabo", a pessoa encarregada de desenterrar razões por
que cada um dos cardeais elegíveis não deveria se tornar Papa. Essa função era
uma indicação antecipada do Papa em exercício como um preparativo para a sua
própria morte. O Advogado do Diabo nunca revelava a sua identidade. Jamais.
- Eu fui o Advogado do Diabo - repetiu Mortati. - Foi como descobri.
Os queixos caíram. Pelo jeito, naquela noite todas as regras estavam sendo
atiradas pela janela.
O camerlengo encheu-se de raiva.
- E você não contou a ninguém?
- Eu interroguei Sua Santidade - disse Mortati - e ele confessou. Explicou a
história inteira e pediu somente que eu deixasse meu coração guiar a minha
decisão de revelar ou não o seu segredo.
- E seu coração lhe disse para enterrar a informação?
- Ele era o candidato favorito para o papado. As pessoas o amavam. O escândalo
teria afetado profundamente a Igreja.
- Mas ele teve um filho! Quebrou seu voto sagrado de celibato!
O camerlengo estava aos berros. Ouvia a voz de sua mãe. Uma promessa feita a
Deus é a promessa mais importante de todas. Jamais quebre uma promessa feita a
Deus.
- O Papa quebrou seu voto!
Mortati parecia à beira do delírio de tanta angústia.
- Carlo, o amor dele era casto. Ele não quebrou voto algum. Ele não explicou a
você?
- Explicar o quê?
O camerlengo lembrava-se de ouvir o Papa dizer enquanto ele fugia correndo:
Deixe-me explicar!
Lentamente, tristemente, Mortati contou toda a história. Muitos anos antes, o
Papa, quando ainda era apenas um padre, apaixonara-se por uma jovem freira.
Ambos tinham feito voto de celibato e nunca pensaram em romper seu
compromisso com Deus. Assim mesmo, o amor deles se aprofundou e, embora
conseguissem resistir às tentações da carne, viram-se ambos desejando algo em
que nunca tinham pensado: participar do supremo milagre da criação, um filho.
Seu filho. O anseio, especialmente da parte dela, tornou-se avassalador. Mas Deus
ainda vinha em primeiro lugar. Um ano mais tarde, quando a frustração tomara
proporções quase insuportáveis, ela foi ao encontro dele toda alvoroçada. Acabara
de ler um artigo sobre um novo milagre da ciência - um processo pelo qual duas
pessoas, sem terem relações sexuais, podiam ter um filho. Ela pressentia que
aquilo era um sinal de Deus. O padre viu a felicidade nos olhos dela e concordou.
Um ano mais tarde, ela teve um filho por meio do milagre da inseminação
artificial.
- Isto não pode ser verdade - disse o camerlengo, em pânico, esperando que fosse
o efeito da morfina em seus sentidos. Devia estar ouvindo coisas.
Mortati tinha lágrimas nos olhos.
- Carlo, foi por isso que o Santo Padre sempre apreciou a ciência. Achava que
tinha uma dívida de gratidão.
A ciência permitiu que ele experimentasse as alegrias da paternidade sem quebrar
seu voto de celibato. Sua Santidade contou-me que lamentava apenas uma coisa:
que sua posição cada vez mais destacada na Igreja lhe impedisse de estar perto da
mulher que amava vendo seu filho crescer.
O camerlengo Carlo Ventresca sentiu a loucura se instalando nele outra vez.
Tinha ímpetos de rasgar a própria carne. Como eu poderia saber?
- O Papa não cometeu pecado nenhum, Carlo. Ele era casto.
- Mas... - o camerlengo vasculhou sua mente angustiada à procura de uma base
racional - . . . pensem nos riscos desses atos - a voz dele ficou fraca. - E se essa
meretriz dele aparecesse? Ou, Deus nos livre, se o filho aparecesse? Imaginem
que vergonha seria para a Igreja.
Mortati disse com voz trêmula:
- O filho dele já apareceu.
Tudo parou.
- Carlo - e Mortati quase sucumbiu -, o filho do Santo Padre é você.
Naquele momento, o camerlengo sentiu o fogo da fé quase se extinguir em seu
coração. Tremia de pé no altar, emoldurado pelo Último Julgamento, de
Michelangelo. Acabara de vislumbrar o próprio inferno.
Abriu a boca para falar, mas seus lábios se moveram sem emitir som algum.
- Não vê? - disse Mortati, a voz embargada. - Foi por isso que Sua Santidade foi
ao seu encontro no hospital em Palermo quando você era pequeno. Foi por isso
que o recolheu e criou. A freira que ele amava era Maria, sua mãe. Ela deixou o
convento para criar você, mas nunca abandonou sua rigorosa devoção a Deus.
Quando o Papa tomou conhecimento de que ela morrera em uma explosão e você,
filho dele, sobrevivera milagrosamente, jurou a Deus que nunca mais o deixaria.
Carlo, seus pais eram ambos virgens.
Mantiveram seus votos a Deus. E assim mesmo encontraram uma forma de trazêlo
ao mundo. Você foi o filho miraculoso deles.
O camerlengo tapou os ouvidos para não ouvir as palavras. Ficou imóvel no altar.
Depois, com o mundo se desfazendo sob seus pés, caiu de joelhos e deixou
escapar um gemido desesperado.
Segundos. Minutos. Horas.
O tempo perdera todo o sentido entre as quatro paredes da capela. Vittoria
libertou-se devagar da paralisia que tomara conta de todos. Soltou a mão de
Langdon e saiu andando pelo meio dos cardeais. A porta da capela pareceu-lhe
estar a quilômetros de distância e ela se movia como se estivesse embaixo d'água,
em câmera lenta.
Ao passar no meio das batinas, seu movimento ia tirando os outros do transe.
Alguns cardeais começaram a rezar. Outros choravam. Uns se viraram para vê-la
passar, os rostos apáticos tornando-se aos poucos apreensivos à medida que ela se
aproximava da porta. Quase chegara ao fundo do aglomerado de pessoas quando a
mão de alguém segurou seu braço. O toque era frágil, mas resoluto. Ela se
deparou com um cardeal idoso, enrugado. No rosto dele, um temor sombrio.
- Não - murmurou o homem. - Você não pode fazer isso.
Vittoria sustentou-lhe o olhar, incrédula. Outro cardeal surgiu ao lado dela.
- Temos de pensar antes de agir.
E outro.
- O sofrimento que isso pode causar...
Vittoria estava cercada. Olhou para todos eles, surpresa.
- Mas os atos que foram cometidos hoje, esta noite.., o mundo tem de saber a
verdade.
- Meu coração concorda - disse o cardeal idoso, ainda segurando o braço dela -,
mas este seria um caminho sem volta. Precisamos levar em conta as esperanças
destruídas. O ceticismo. Como as pessoas poderiam voltar a ter confiança um dia?
Mais cardeais impediam-na de prosseguir. Havia uma parede de batinas negras
em torno dela.
- Ouça as pessoas na praça - disse um. - O que vai ser do coração delas? Temos de
ser prudentes.
- Precisamos de tempo para refletir e rezar - disse outro. - Temos de pensar antes
de agir. As repercussões de tudo isso...
- Ele matou meu pai! - protestou Vittoria. - Ele matou o próprio pai dele!
- Tenho certeza de que ele vai pagar por seus pecados - disse tristemente o cardeal
que segurava o braço dela.
Vittoria também tinha certeza e pretendia tomar providências para garantir que
isso acontecesse. Tentou chegar à porta, mas os cardeais juntaram-se mais, os
rostos assustados.
- O que vão fazer? - exclamou ela. - Me matar?
Os velhos empalideceram e Vittoria no mesmo instante se arrependeu de ter dito
aquilo. Podia ver que eram boas almas. Tinham enfrentado violência demais
naquela noite. Não queriam ameaçá-la. Estavam simplesmente encurralados.
Amedrontados. Tentando se orientar.

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