UM
O PENSAMENTO de Rayford Steele estava numa mulher que ele nunca havia tocado. Com seu 747 totalmente ocupado pelos passageiros, ligado no piloto automático, voando sobre o Atlântico para aterrissar às seis da manhã no aeroporto de Heathrow, em Londres, Rayford deixou por alguns momentos de pensar em sua família.
No começo da primavera, ele passaria um tempo com sua esposa e seu filho de 12 anos. Sua filha também estaria voltando da faculdade. Mas, por ora, com seu co-piloto tirando um cochilo, Rayford acariciava a lembrança do sorriso de Hattie Durham e sonhava com o encontro que tinham marcado.
Hattie era a chefe do serviço de bordo. Fazia já mais de uma hora que ele não a via.
Rayford costumava aguardar com certa ansiedade o momento de estar com sua esposa. Irene era atraente e bastante jovial e ativa, mesmo nos seus quarenta anos. Mas ultimamente ele se sentia como que repelido pela obsessão dela pela religião. Era tudo o que a interessava e do que ela falava.
Deus era importante para Rayford Steele. Ele até se sentia bem na igreja sempre que podia freqüentá-la. Mas, desde que Irene se apegou a uma congregação menor e passou a participar de estudos bíblicos semanais e de cultos em todos os domingos, Rayford começou a sentir-se deslocado e desconfortável. A igreja que ela freqüentava era daquelas que jamais pensavam o melhor sobre uma pessoa e a deixavam em paz. Os membros da igreja costumavam perguntar a Rayford, cara a cara, o que Deus estava fazendo em sua vida.
"Abençoando meu desempenho", respondia ele com um sorriso, o que parecia satisfazer-lhes, mas Rayford passou a encontrar cada vez mais desculpas para preencher seus domingos.
Rayford tentava convencer-se de que era a devoção de sua esposa a um pretendente divino que fazia a mente dele divagar. Mas sabia que a verdadeira razão disso era seu próprio instinto sexual.
Além disso, Hattie Durham era extremamente deslumbrante. Ninguém podia negar. O que mais o encantava era quando ela o tocava. Nada impróprio nada vulgar. Ela simplesmente tocava seu braço ao passar num lugar apertado ou colocava a mão suavemente em seu ombro quando ficava em pé atrás do assento dele na cabina.
Mas não era apenas o toque de Hattie que fazia Rayford gostar de sua companhia. Ele podia adivinhar pelas expressões dela, por sua postura, pela troca de olhares, que ela ao menos o admirava e respeitava. Se ela estivesse interessada em qualquer outra coisa, Rayford poderia apenas conjeturar. E foi o que fez.
Eles haviam passado algum tempo juntos, conversando durante um aperitivo ou jantar, às vezes com os companheiros de trabalho, outras, não. A reação de Rayford não tinha ido além de um leve toque de mãos, mas seus olhos captaram um olhar mais demorado de Hattie, e ele pôde apenas admitir que seu sorriso para ela representava algum progresso.
Talvez hoje. Talvez esta manhã, se a batidinha-código na porta não despertasse seu co-piloto, ele tentaria tocá-la quando ela viesse pousar a mão em seu ombro - de uma forma amigável, ele esperava que ela reconhecesse um passo, o primeiro da parte dele, visando a um relacionamento.
Essa seria a primeira vez que isso aconteceria. Ele não era nenhum puritano, mas nunca tinha sido infiel a Irene. Havia tido inúmeras oportunidades. Certa ocasião, sentiu-se culpado por ter-se envolvido numa troca de carícias na festa de Natal da companhia, mas isso tinha sido 12 anos atrás. Irene tinha ficado em casa, passando desconfortavelmente seu nono mês a carregar seu filho Ray Júnior no ventre.
Embora pudesse avançar o sinal, Rayford teve o cuidado de deixar a festa mais cedo. Ficou claro para Irene que ele estava ligeiramente alcoolizado, mas não suspeitou de qualquer outra coisa, não de seu virtuoso capitão. Ele foi o piloto que tinha tomado dois martínis durante uma paralisação por causa da neve, no aeroporto de O'Hare, em Chicago, e então, voluntariamente, desceu do avião quando o tempo clareou. Ofereceu-se para pagar a um piloto substituto, mas a Pan-Continental ficou tão bem impressionada que, em lugar de puni-lo, usou sua atitude como exemplo de auto disciplina e sabedoria.
Em duas horas mais, Rayford seria o primeiro a ver sinais do sol, uma luz mortiça e amarelo-cinzenta que indicaria o relutante alvorecer sobre o continente. Até então, a escuridão através da janela parecia ter quilômetros de espessura. Seus passageiros sonolentos tinham os quebra-luzes abaixados, travesseiros e cobertores nos assentos. Por enquanto, o avião era um quarto de dormir escuro e zunindo para todos, exceto para algumas notívagas errantes, as comissárias, e uma ou duas delas atendendo a algum chamado.
A questão naquela hora mais escura antes da alvorada era se Rayford Steele se arriscaria a um relacionamento diferente e excitante com Hattie Durham. Ele segurou um sorriso. Estava brincando? Iria alguém de sua reputação fazer qualquer coisa além de sonhar com uma bela mulher 15 anos mais nova? Ele não se sentia mais tão seguro. Se ao menos Irene não tivesse se metido nesse novo alçapão.
Será que isso esfriaria a preocupação dela com o fim do mundo, com o amor de Jesus, com a salvação das almas?
Depois, ela andou lendo tudo quanto lhe vinha às mãos sobre o Arrebatamento da igreja.
- Você pode imaginar, Rafe - disse ela, certa vez, exultante -, Jesus voltando para nos levar antes de morrermos?
- Sei, sei - respondeu ele, espiando por cima do jornal -, isso me mataria.
Ela não gostou da brincadeira.
- Se eu não soubesse o que aconteceria a mim - disse ela -, não falaria tanto sobre esse assunto.
- Sei com certeza o que me aconteceria - insistiu ele. -Eu morreria, sumiria, e fim. Mas você, naturalmente, voaria diretamente para o céu.
Ele não quis ofendê-la. Estava apenas gracejando. Quando Irene se afastou, Rayford a seguiu, puxou-a, fazendo-a voltar seu rosto para ele, e tentou beijá-la, mas ela agiu passiva e friamente.
- Vamos, Irene - disse ele. - Milhares não desmaiariam se vissem Jesus descendo para todas as pessoas boas?
Ela afastou-se chorando.
- Eu já disse a você e repeti. As pessoas salvas não são pessoa® boas, elas são...
- Apenas perdoadas, sim, eu sei - disse ele, sentindo-se rejeitado e vulnerável em sua própria sala de estar, e voltou para a sua poltrona e seu jornal. - Se isto faz você sentir-se melhor, fico feliz em saber que pode estar tão segura.
- Eu apenas acredito no que a Bíblia diz - respondeu Irene. Rayford encolheu os ombros. Ele queria dizer "Bom para você", mas não quis piorar a situação. Por um lado, invejava a confiança dela, mas, na realidade, não aceitava o fato de ser uma pessoa mais emocional, mais orientada pelos sentimentos. Ele não quis dizer-lhe isto, mas o fato era que se considerava mais brilhante - sim, ele se considerava mais inteligente. Ele acreditava em regras, sistemas, leis, padrões, coisas que podemos ver, sentir, ouvir e tocar.
Se Deus era parte de tudo isso, muito bem. Um poder mais alto, um ser amoroso, uma força por trás das leis da natureza, ótimo. Vamos cantar por isso, orar por isso, sentir-nos bem por nossa capacidade de ser bons para os outros, e cuidar da vida. O maior receio de Rayford era que essa fixação religiosa pudesse evaporar, como certas "ondas" em que ela se envolvera, como as vendas que fazia de porta em porta oferecendo produtos de limpeza ou de beleza, da academia de aeróbica, etc. Ela poderia sair por aí tocando a campainha das casas e pedindo licença para ler para as pessoas um ou dois versículos bíblicos. Em todo caso, ela sabia muito bem o que estava fazendo.
Irene havia se tornado uma genuína religiosa fanática, e de certo modo isto liberava Rayford para sonhar de olhos abertos e sem culpa com Hattie Durham. Talvez ele diria alguma coisa, sugeriria alguma coisa, daria a entender alguma coisa enquanto ele e Hattie caminhassem pelo aeroporto de Heathrow em direção à fila de táxis. Ou talvez antes. Ousaria declarar-se agora mesmo, horas antes de aterrissar?
Junto a uma janela na primeira classe, um escritor estava curvado sobre um laptop. Ele fechou o aparelho, com o propósito de voltar ao seu trabalho mais tarde. Aos trinta anos, Cameron Williams era o mais jovem dos articulistas do prestigioso Semanário Global. Era invejado pelos veteranos da equipe de redatores, mas os superava em condições idênticas, ou, então, a chefia de redação lhe atribuía a produção das melhores matérias jornalísticas do mundo. Tanto os admiradores como os seus detratores na revista o chamavam de Buck [potro], porque diziam que ele estava sempre escoiceando a tradição e a autoridade. Buck acreditava que vivia uma vida maravilhosa, tendo sido testemunha ocular de alguns dos eventos mais preponderantes da História.
Um ano e dois meses antes, sua matéria de capa de 1o de janeiro levou-o a Israel para entrevistar Chaim Rosenzweig, o que resultou no mais estranho acontecimento que jamais havia experimentado.
O idoso Rosenzweig tinha sido a escolha unânime como o "Fazedor da Notícia do Ano" na história do Semanário Global. A equipe da revista tinha costumeiramente de evitar que alguém notasse que se tratava de uma clara cutucada no "Homem do Ano", da revista Time. Mas Rosenzweig era o homem certo. Cameron Williams tinha entrado na reunião da equipe preparado para argumentar em favor de Rosenzweig e contra qualquer outra estrela da mídia que seus colegas indicassem.
Ele ficou surpreso quando o editor-executivo Steve Plank iniciou a conversa desta forma:
- Alguém deseja indicar algum estúpido ou uma pessoa qualquer em lugar do ganhador do Prêmio Nobel de Química?
Os membros da equipe principal trocaram olhares entre si, menearam a cabeça e fingiram que estavam começando a sair.
- Vamos cair fora, a reunião terminou - disse Buck. - Steve, não estou forçando a barra, mas você sabe que eu conheço o cara, e ele tem confiança em mim.
- Vamos devagar, caubói - disse um rival, e depois se voltou para Plank. - Você agora está deixando Buck escolher o trabalho que quer?
- Talvez - disse Steve. - E se eu quiser?
- Acho simplesmente que este é um caso técnico, um artigo científico - afirmou o concorrente de Buck. - Eu poria um redator de assuntos científicos nisso.
- E colocaria o leitor a dormir - retrucou Steve Plank.
- Sejamos razoáveis, vocês sabem que o redator de matérias chamativas sai deste grupo. E esta não é uma matéria mais científica do que a primeira que Buck fez sobre ele. Esta deve ser escrita de um modo que leve o leitor a conhecer o homem e compreender o significado de sua façanha.
- Farei a indicação hoje - disse o editor-executivo. - Obrigado por sua disposição, Buck. Penso que todos os outros estão igualmente dispostos.
Expressões de ansiedade encheram a sala, mas Buck também ouviu palpites resmungados de que o loirinho [Buck] receberia o sinal verde, o que realmente aconteceu.
Tal confiança de seu chefe e a competição com seus colegas fizeram-no cada vez mais determinado a superar-se em cada tarefa. Em Israel, Buck ficou numa área militar e encontrou-se com Rosenzweig no mesmo kibutz, nos arredores de Haifa, onde o entrevistara um ano antes.
Rosenzweig era fascinante, sem dúvida alguma, mas foi sua descoberta ou invenção - ninguém sabia bem em que categoria enquadrá-lo - que o tornou na realidade o "Fazedor da Notícia do Ano".
O humilde personagem intitulava-se botânico, mas ele era de fato um engenheiro químico, formulador de um fertilizante sintético que transformou as areias do deserto de Israel para produzirem como se fossem uma estufa.
- A irrigação funcionou por várias décadas - disse o homem. - Mas ela só umedecia a areia. Minha fórmula, acrescentada à água, fertiliza a areia.
Buck não era um cientista, mas sabia o suficiente para abanar a cabeça diante daquela simples afirmação. A fórmula de Rosenzweig estava fazendo de Israel rapidamente a nação mais rica do mundo, muito mais lucrativa do que o oneroso petróleo de seus vizinhos. Cada centímetro de terra florescia, dando grãos e flores, incluindo produtos jamais concebidos antes em Israel. A Terra Santa tornou-se uma exportadora em potencial, a inveja do mundo, com desemprego praticamente zero. Todos os seus cidadãos prosperaram.
A prosperidade viabilizada pela fórmula miraculosa mudou o curso da história para Israel. Suprido de capital e recursos técnicos, Israel estabeleceu a paz com seus vizinhos. O livre comércio e o trânsito liberado a todos os países permitiram que todos os que amavam a nação tivessem acesso a ela. Só não houve acesso, porém, à fórmula.
Buck não havia sequer pedido a Rosenzweig que revelasse a fórmula ou o complicado processo de segurança que a protegia de qualquer inimigo potencial. O próprio fato de Buck ter sido hospedado pelos militares evidenciava a importância da segurança. A manutenção desse segredo assegurou o poder e independência do Estado de Israel. Nunca esse país desfrutara tamanha tranqüilidade. A cidade murada, Jerusalém, era agora apenas um símbolo, acolhendo todos aqueles que abraçam a causa da paz. A velha guarda acreditava que Deus havia recompensado a nação após séculos de perseguição.
Chaim Rosenzweig foi homenageado em todo o mundo e reverenciado em seu próprio país. Os líderes mundiais o procuravam, e ele era protegido por sistemas de segurança tão complexos como aqueles que protegiam os chefes de Estado. Por mais forte que Israel se tornasse com a glória recém-alcançada, os líderes da nação não eram tolos. Um Rosenzweig raptado e torturado poderia ser forçado a revelar um segredo que revolucionaria de modo semelhante qualquer país do mundo.
Imagine o que a fórmula poderia fazer se fosse alterada para funcionar nas vastas planícies árticas da Rússia! Poderiam tais regiões florescer, embora fossem cobertas de neve na maior parte do ano? Era esta a chave para ressuscitar aquela enorme nação após o malogro da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas?
A Rússia havia se tornado uma gigantesca nação deprimida, com uma economia devastada e uma tecnologia ultrapassada. Tudo o que a nação ainda possuía era o poder militar, e cada marco poupado destinava-se ao armamento. E a troca dos rublos para marcos não havia sido uma transição pacífica para a belicosa nação. A modernização do mundo financeiro limitada a três principais moedas levou anos para se concretizar, mas, uma vez feita à mudança, a maioria ficou feliz com isso. Toda a Europa e a Rússia negociavam exclusivamente em marcos. A Ásia, a África e o Oriente Médio negociavam em ienes. A América do Norte, a América do Sul e a Austrália transacionavam em dólares. Um movimento visava a unificar mundialmente a moeda, mas as nações que um dia tinham aceitado com relutância a mudança consideraram inviável fazê-lo de novo.
Frustrados por sua incapacidade de tirar proveito da fortuna de Israel e determinados a dominar e ocupar a Terra Santa, os russos tinham lançado um ataque contra Israel no meio da noite. O assalto ficou conhecido como o Pearl Harbor russo, e, por causa de sua entrevista com Rosenzweig, Buck Williams estava em Haifa quando isso aconteceu. Os russos enviaram mísseis intercontinentais e bombardeiros MIG equipados com bombas nucleares à região. O número de aeronaves e ogivas tomou claro que sua missão era o aniquilamento.
Dizer que Israel tinha sido apanhado de surpresa, conforme Cameron Williams havia escrito, foi como dizer que a grande muralha da China era comprida. Quando os radares de Israel localizaram os aviões russos, eles já estavam quase sobre o país. O apelo dramático de Israel por ajuda de seus vizinhos imediatos e dos Estados Unidos foi simultâneo com sua interpelação para saber as intenções dos invasores em seu espaço aéreo. Enquanto Israel e seus aliados tentassem montar qualquer coisa parecida com uma defesa, estava claro que os russos levariam uma vantagem de cem para um.
Eles dispunham apenas de alguns momentos antes que a destruição começasse. Não dava mais para negociar qualquer coisa, nem apelos para uma divisão de riqueza com as hordas do Norte. Se os russos quisessem apenas intimidar e assustar, não teriam enchido o céu de mísseis. Os aviões poderiam retornar, mas os mísseis estavam armados e apontados para alvos.
Portanto, isso não era um espetáculo para a arquibancada, visando a levar Israel a humilhar-se. Não houve nenhuma mensagem para as vítimas. Não recebendo explicação para as máquinas mortíferas cruzarem suas fronteiras e descerem sobre o país, Israel era forçado a defender-se sozinho, sabendo muito bem que o primeiro ataque de bombas resultaria no seu desaparecimento virtual da face da terra.
Com sirenes estridentes de alerta e as estações de rádio e televisão enviando às possíveis vítimas aviso para se refugiarem nos frágeis abrigos que pudessem encontrar, Israel defendeu-se contra o que seria seguramente seu último momento na História. A primeira bateria de mísseis terra-e-ar de Israel atingiu os alvos, e o céu iluminou-se com bolas de fogo laranja e amarelo, o que certamente faria pouco para aplacar a ofensiva russa, contra a qual não havia defesa.
Aqueles que conheciam as disparidades e o que as telas de radar prenunciavam interpretaram as explosões ensurdecedoras no céu como sendo o massacre perpetrado pela Rússia contra Israel. Cada líder militar sabia o que estava sendo esperado - uma devastação total quando a fuzilaria atingisse o solo e cobrisse a nação.
Daquilo que ouviu e viu na área militar, Buck Williams sabia que o fim estava perto. Não havia como escapar. Mas, enquanto a noite ficava clara como o dia e as terríveis e ensurdecedoras explosões continuavam, nada sobre a terra foi atingido. O edifício tremia e ressoava. No entanto, continuava incólume.
Lá fora, à distância, aviões de guerra espatifavam-se no solo, abrindo crateras e espalhando fragmentos de explosões. Entretanto, as linhas de comunicação permaneciam abertas. Nenhum dos postos de comando foi atingido. Não havia relatos de baixas. Nada tinha ainda sido destruído.
Era aquilo uma espécie de brincadeira cruel? Seguramente, os primeiros mísseis de Israel alijaram os bombardeiros russos, e os mísseis explodiram numa altitude maior para evitar que o fogo causasse danos em áreas do país. Mas o que aconteceu com o restante da força aérea inimiga? O radar mostrou que a Rússia tinha com certeza enviado todos os seus aviões, deixando talvez muito poucos para a eventualidade de algum ataque contra ela. Milhares de bombardeiros desceram sobre as cidades mais populosas do pequeno país.
O ronco e os ruídos irritantes continuavam, as explosões eram tão aterradoras que os militares veteranos cobriam suas cabeças e davam berros de desespero. Buck sempre tivera o desejo de ficar perto das frentes de combate, mas seu instinto de sobrevivência estava a todo vapor. Ele sabia sem sombra de dúvida que morreria e começou a ter os pensamentos mais estranhos. Por que nunca se casou? Sobrariam restos de seu corpo para que seu pai e seu irmão o identificassem? Havia um Deus? A morte seria o fim?
Ele saiu do abrigo em que estava, surpreendido pelo ímpeto de chorar. Não esperava que a guerra fosse tudo isso. Imaginara-se espreitando as ações bélicas de um local seguro, registrando o drama na mente.
Após vários minutos no holocausto, Buck chegou à conclusão de que morreria quer estivesse fora ou dentro daquele posto. Não se tratava de desafio, mas de singularidade. Ele seria a única pessoa do posto que veria e saberia o que iria matá-lo. Caminhou em direção à porta na ponta dos pés. Ninguém o notou ou se preocupou em adverti-lo. Era como se todos tivessem sido condenados à morte.
Buck forçou a porta contra um forno em combustão, tendo de proteger os olhos da intensa claridade das chamas. O céu incendiara-se. Ele ainda ouvia aviões no meio dos estrondos e do ruído do fogo, e a explosão ocasional de um míssil provocara uma nova chuva de chamas no ar. Ele ficava aterrorizado e pasmo quando as grandes máquinas de guerra mergulhavam no solo de toda a cidade, estatelando-se e incendiando-se. Mas caíam entre edifícios, em ruas desertas e nos campos. Uma coisa qualquer atômica e explosiva subia com ímpeto em direção à atmosfera, e Buck ficou ali no calor, seu rosto formando bolhas e o corpo molhado de suor. O que estava acontecendo no mundo?
Em seguida, pedaços de gelo e granizos do tamanho de uma bola de golfe forçaram Buck a cobrir a cabeça com sua jaqueta. A terra tremeu e ressoou, atirando-o ao chão. Com o rosto contra os fragmentos gelados, ele sentiu a chuva caindo aos borbotões. De repente, o único ruído era o fogo no céu, que se enfraquecia à medida que era arrastado para baixo pela nevasca. Passados dez minutos de ruídos trovejantes, o fogo se dissipou, e bolas de fogo espalhadas bruxuleavam sobre o solo. O fogo desapareceu tão depressa como veio. O silêncio pairou sobre a terra.
À medida que nuvens de fumaça flutuavam e se desfaziam sob uma brisa suave, o céu da noite reaparecia com sua escuridão azulada, e as estrelas cintilavam pacificamente, como se nada de errado tivesse acontecido.
Buck retornou ao posto carregando no braço sua jaqueta de couro enlameada. A maçaneta da porta ainda estava quente. Dentro, os líderes militares choravam e tremiam. O rádio noticiava os relatos dos pilotos israelenses. Eles diziam que não conseguiram chegar ao espaço aéreo em tempo para fazer qualquer coisa, a não ser ficar olhando toda a ofensiva aérea russa parecendo querer auto-aniquilar-se totalmente.
Milagrosamente, nenhuma morte foi noticiada em todo o Israel. Em outras condições, Buck poderia ter acreditado que algum misterioso desacerto tivesse levado míssil e avião a destruir-se mutuamente. Mas as testemunhas disseram que tinha sido uma tempestade de fogo, acompanhada de chuva, granizo e tremor de terra, que anulara o esforço ofensivo.
Teria sido uma chuva de meteoros determinada divinamente? Talvez. Mas o que dizer de centenas e milhares de fragmentos de aço queimados, retorcidos, derretidos, arremessados contra o solo em Haifa, Jerusalém, Tel-Aviv, Jericó, e até em Belém - demolindo os antigos muros, mas não chegando sequer a arranhar uma criatura viva? A luz do dia revelou o massacre e denunciou a aliança secreta da Rússia com as nações do Oriente Médio, principalmente a Etiópia e a Líbia.
No meio das ruínas, os israelenses encontraram material que poderia servir como combustível e preservar seus recursos naturais por mais de seis anos. Forças especiais competiam com falcões e abutres pela carne dos inimigos mortos, procurando enterrá-los antes que seus ossos fossem descarnados e a doença ameaçasse a nação.
Buck lembrava-se disso vividamente, como se tivesse ocorrido ontem. Se ele não estivesse lá e visto tudo aquilo, não acreditaria. Ele conseguiu mais do que precisava para levar o leitor do Semanário Global a comprar a revista. Editores e leitores tinham suas próprias explicações para o fenômeno, mas Buck admitiu que se tornou um crente em Deus naquele dia. Estudiosos judeus indicaram passagens da Bíblia que falavam acerca de atos de Deus destruindo os inimigos de Israel com tempestade de fogo, terremoto, granizo e chuva. Buck ficou estupefato quando leu Ezequiel 38 e 39 a respeito de um grande inimigo do norte que invadiria Israel com a ajuda da Pérsia, Líbia e Etiópia. Mais impressionante ainda era o fato de as Escrituras profetizarem sobre armas de guerra usadas como fogo e soldados inimigos devorados por pássaros ou enterrados numa vala comum.
Amigos cristãos queriam que Buck tomasse a decisão de crer em Cristo, agora que ele estava tão claramente em afinidade espiritual com Deus. Ele não estava preparado para ir mais adiante, porém era certamente uma pessoa diferente e também um jornalista diferente desde então. Para ele, nada havia além da crença.
Com dúvidas sobre se deveria dar seqüência com alguma coisa explícita, o capitão-aviador Rayford Steele sentiu um impulso irresistível de ver Hattie Durham em seguida. Ele se livrou dos apetrechos e apertou o ombro de seu co-piloto ao sair da cabina de comando.
- Estamos ainda no automático, Christopher - disse Rayford, enquanto o jovem piloto se aprestava e ajustava seus fones de ouvido. - Vou fazer o meu passeio da alvorada.
- Para mim, não parece alvorada, capitão - disse Christopher após ter piscado e umedecido os lábios.
- Provavelmente faltam uma ou duas horas. De qualquer maneira, vou ver se alguém está acordando.
- Tudo bem. Se alguém estiver acordado, apresente-lhe minhas saudações.
Rayford suspirou e acenou com a cabeça. Quando abriu a porta da cabina, Hattie Durham quase colidiu com ele.
- Não precisa bater - disse ele. - Estou saindo.
A chefe do serviço de bordo puxou-o para o compartimento da cozinha, mas não havia paixão em seu gesto. Seus dedos pareciam garras na fronte de Rayford, e seu corpo estremecia no escuro.
- Hattie...
Ela o empurrou para trás contra o compartimento da cozinha, seu rosto bem perto do dele. Se ela não estivesse visivelmente aterrorizada, ele poderia desfrutar este gesto e retribuir-lhe com um abraço. Os joelhos de Hattie se dobravam enquanto tentava falar, e sua voz tornou-se um grito agudo e choroso.
- As pessoas sumiram - ela tentava dizer-lhe num sussurro, encostando a cabeça no peito de Rayford.
Ele agarrou seus ombros e tentou empurrá-la, mas ela insistia em permanecer encostada nele.
- O que você diz...?
Ela agora soluçava, seu corpo estava fora de controle.
- Muitas pessoas simplesmente se foram!
- Hattie, este é um avião grande. Eles devem ter ido aos sanitários ou...
Hattie puxou a cabeça de Rayford para baixo a fim de poder falar-lhe diretamente ao ouvido. Apesar do choro, ela claramente se esforçava por fazer-se entender.
- Estive em todos os lugares. Estou lhe dizendo: dezenas de pessoas sumiram.
- Hattie, ainda está escuro. Vamos encontrar...
- Não estou louca! Veja você mesmo! Em todo o avião, pessoas desapareceram.
- É uma brincadeira. Eles estão se escondendo, tentando...
- Ray! Seus sapatos, meias, roupas, tudo foi deixado para trás. Essas pessoas foram embora!
Hattie soltou as mãos que mantinha sobre Rayford e ajoelhou-se choramingando a um canto. Rayford quis confortá-la, ajudá-la a examinar melhor, ou pedir que Chris o acompanhasse em todo o avião. Mais do que qualquer coisa, ele queria acreditar que Hattie estava com a mente perturbada. Ela devia saber disto melhor do que ele. Era evidente que ela de fato acreditava que haviam desaparecido pessoas do avião.
Rayford estivera sonhando de olhos abertos na cabina. Será que ainda estava meio dormindo agora? Ele apertou o lábio contra os dentes e fez uma careta de dor. Estava, portanto, acordado. Ele foi à primeira classe, onde uma senhora idosa estava sentada com espanto no olhar em direção ao nevoeiro da ante aurora, tendo em suas mãos o suéter e as calças de seu marido.
- O que aconteceu? - perguntou ela. - Harold? Rayford examinou bem o ambiente da primeira classe. A maioria dos passageiros ainda estava meio dormindo, inclusive o jovem senhor junto à janela com seu laptop sobre a mesinha porta-bandeja. Mas realmente alguns assentos estavam vazios. Quando os olhos de Rayford se adaptaram à pouca luminosidade, ele caminhou rapidamente para a escada. E começou a descer quando ouviu a mulher chamá-lo.
- Senhor, meu marido...
Rayford pôs o dedo junto aos lábios em sinal de silêncio e sussurrou:
- Já sei. Vou encontrá-lo. Voltarei logo.
Que absurdo! Pensou ele enquanto descia, ciente de que Hattie estava bem atrás dele. Vou encontrá-lo!... Hattie apoiava-se em seu ombro, e ele desceu mais lentamente.
- Devo acender as luzes?
- Não - sussurrou ele. - Quanto menos as pessoas perceberem neste momento, melhor.
Rayford queria ser forte, ter respostas, ser um exemplo para sua tripulação, para Hattie. Mas, quando chegou ao compartimento de baixo, percebeu que o restante do vôo seria caótico. Ele ficou assustado como os demais a bordo. À medida que inspecionava os assentos, quase entrou em pânico. Voltou ao cubículo que dividia os dois andares e deu um forte tapa na face.
Aquilo não era brincadeira, nem mágica, nem sonho. Alguma coisa estava terrivelmente errada, e não havia meio de sair correndo. Haveria bastante confusão e terror sem que ele perdesse o controle. Nada o havia preparado para uma situação como aquela, e ele seria a pessoa para quem todos olhariam. Mas para quê? O que ele poderia fazer?
Primeiro um, depois outro gritava ao perceber que seu companheiro de assento tinha sumido e que suas roupas ainda estavam ali. Eles choravam, berravam, pulavam de seus assentos. Hattie agarrou-se a Rayford por trás, envolveu-o com os braços e cruzou as mãos com tanta força em seu peito que ele mal conseguia respirar.
- Rayford, o que é isto? Ele afastou as mãos dela.
- Ouça, Hattie. Tanto quanto você, não sei de coisa alguma. Mas temos de acalmar essas pessoas e ter os pés no chão.
Vou fazer alguma espécie de comunicação, e você e seu pessoal mantenham todos em seus assentos, entendido?
Ela assentiu com a cabeça, mas não via que as coisas estavam bem. Quando ele se esgueirou lateralmente por trás dela para subir depressa à cabina de comando, ouviu seu grito. É demais para acalmar os passageiros, pensou ele, enquanto se voltava rapidamente para vê-la de joelhos no corredor. Hattie pegou um paletó, uma camisa e uma gravata ainda intactas. As calças estavam aos pés dela. Apavorada, pôs o paletó próximo à fraca luz e leu o nome na etiqueta.
- Tony! - exclamou ela, desesperada. - Tony se foi! Rayford arrebatou as roupas das mãos de Hattie e as jogou atrás da divisão entre os andares. Ele a ergueu pelos cotovelos e a levou fora da vista dos passageiros.
- Hattie, estamos a horas da aterrissagem. Não temos um plano para atender pessoas histéricas. Vou fazer um pronunciamento, mas você deve fazer o seu trabalho. Você pode?
Ela acenou afirmativamente, com um olhar vago, distante. Ele forçou-a a encará-lo.
- Você pode? - perguntou Rayford. Ela assentiu de novo.
- Rayford, vamos morrer?
- Não - disse ele. - Disto estou certo.
Mas ele não estava certo de coisa alguma. Como poderia saber? Ele preferiria enfrentar um incêndio num motor e até um mergulho incontrolável. Uma queda no oceano certamente seria melhor do que isso. Como poderia acalmar as pessoas no meio desse pesadelo?
A esta altura, manter as luzes da aeronave apagadas causava mais mal do que bem, e ele estava contente de poder dar a Hattie uma atribuição específica.
- Não sei o que vou dizer - afirmou -, mas acenda as luzes para que possamos fazer um levantamento cuidadoso dos que estão aqui e dos que sumiram. Em seguida, pegue mais daqueles formulários para declaração dos visitantes estrangeiros.
- Para quê?
- Apenas faça isso. Avise-os para se prepararem.
Rayford não sabia se tinha agido certo deixando Hattie a cargo dos passageiros e da tripulação. Enquanto subia em disparada os degraus, notou outra aeromoça voltando de um compartimento aos gritos e soluços. Por ora, o pobre Christopher na cabina era o único no avião alheio ao que se passava. Pior, Rayford disse a Hattie que, tanto quanto ela, não sabia nada a respeito daquela ocorrência.
A verdade aterradora era aquela que ele sabia muito bem. Irene estava certa. Ele e a maioria dos passageiros tinham sido deixados para trás.
DOIS
CAMERON Williams havia se levantado quando a senhora idosa sentada à frente dele chamava pelo piloto. Este já a tinha acalmado, o que a levou a olhar furtivamente para Buck. Ele passou os dedos entre os longos cabelos louros dela e forçou um sorriso tímido.
- Algum problema, madame?
- Com meu Harold - disse ela.
Buck tinha ajudado a senhora a guardar a jaqueta de lã com desenho em ziguezague e o chapéu de feltro no porta-bagagem acima do assento quando embarcaram. Harold era um senhor de baixa estatura, garboso, calça marrom, e um suéter bege abotoado sobre a camisa e gravata. Era calvo, e Buck supôs que ele pedisse o chapéu de volta por causa do ar condicionado.
- Ele está precisando de alguma coisa?
- Ele desapareceu!
- O que a senhora disse?
- Ele sumiu!
- Bem, suponho que ele tenha dado uma escapada até o sanitário, enquanto a senhora estava dormindo.
- O senhor se importaria em verificar para mim? E leve um cobertor.
- Como assim, madame?
- Receio de que ele tenha saído por aí nu. Meu marido é uma pessoa muito religiosa e estaria terrivelmente envergonhado.
Buck conteve um sorriso quando notou a expressão aflita da senhora. Para alcançar o corredor, ele teve de passar por cima de um executivo em sono profundo, que devia ter ultrapassado de longe o limite dos drinques grátis, e inclinou-se para pegar o cobertor das mãos da senhora idosa. De fato, as roupas de Harold estavam empilhadas cuidadosamente em seu assento, seus óculos e o aparelho de surdez por cima. As pernas da calça estavam penduradas na beirada do assento e tocavam seus sapatos e meias. Estranho, pensou Buck. Como alguém pode ser tão distraído? Ele se lembrou de um amigo no curso secundário que tinha uma espécie de epilepsia que de vez em quando o fazia perder a consciência quando parecia perfeitamente consciente. Ele podia tirar os sapatos e meias em público ou sair de um banheiro com as roupas abertas.
- Seu marido sofre de epilepsia?
-Não.
- É sonâmbulo?
-Não.
- Volto em seguida.
Os sanitários da primeira classe estavam desocupados, mas, quando Buck chegou à escada, encontrou vários outros passageiros no corredor.
- Perdão - disse ele -, estou procurando uma pessoa.
- Quem não está? - afirmou uma mulher.
Buck forçou a passagem por várias pessoas e viu as filas para os sanitários, tanto da classe turística quanto da executiva. O piloto passou raspando por ele sem dizer uma palavra, e Buck foi interpelado pela chefe do serviço de bordo.
- Senhor, devo pedir-lhe que retorne ao seu lugar e aperte o cinto.
- Estou procurando...
- Todo mundo está procurando por alguém - disse ela. -Esperamos ter alguma informação para o senhor em poucos minutos. Agora, por favor, com licença. Ela o conduziu de volta à escada. Em seguida, esgueirou-se, passando à sua frente, e subiu a escada de dois em dois degraus.
A meio caminho da escada, Buck voltou-se e examinou a cena. A noite estava na metade e, quando as luzes se acenderam nos compartimentos dos passageiros, ele estremeceu. Em todo o avião, as pessoas seguravam roupas e gritavam que estava faltando alguém.
De certo modo, ele sabia que não se tratava de um sonho, e sentiu o mesmo terror que havia experimentado quando achou que iria morrer em Israel. O que diria ele à esposa de Harold? A senhora não é a única? Muitas pessoas deixaram suas roupas em seus assentos?
Enquanto se dirigia apressado ao seu lugar, sua mente vasculhava alguma lembrança de qualquer coisa que ele tinha lido, visto ou ouvido a respeito de uma tecnologia com poderes de tirar as roupas das pessoas e fazê-las desaparecer de um ambiente totalmente seguro. Quem quer que tenha feito isso, estaria no avião? Pretendia fazer alguma exigência? Haveria outra onda de desaparecimentos em seguida? Seria ele uma próxima vítima? Para onde, então, iria?
O medo parecia impregnar o ambiente, enquanto ele subia para voltar a seu lugar passando de novo por cima do seu companheiro de poltrona, que dormia à solta. Buck se pôs em pé e curvou-se sobre o encosto do banco da frente.
- Aparentemente, muitas pessoas estão faltando - disse ele à idosa senhora, enquanto ela o olhava tão confusa e assustada quanto ele mesmo.
Ele sentou-se quando a comunicação interna começou e o comandante falou aos passageiros. Após dar instruções para voltarem aos seus respectivos lugares, ele explicou:
- Estou solicitando ao pessoal do serviço de bordo que verifique os sanitários e se certifiquem de que todos estão acomodados em suas poltronas. Em seguida, pedirei que sejam entregues aos passageiros estrangeiros os formulários de autorização de entrada no país. Se alguma pessoa de seu grupo estiver ausente, apreciaria que preenchessem o formulário no nome dela e relacionassem quaisquer detalhes de que pudessem lembrar, inclusive sua data de nascimento e descrição física. E prosseguiu:
- Estou certo de que todos constataram que estamos numa situação difícil. Os formulários nos indicarão o número de pessoas que estão faltando, e terei alguma coisa a entregar às autoridades. Meu co-piloto, Sr. Smith, fará agora uma contagem dos lugares vazios. Tentarei contatar a Pan-Continental. Devo dizer-lhes, entretanto, que nossa localização no momento torna extremamente difícil a comunicação com a terra sem longas esperas. Mesmo nesta era dos satélites, estamos sobrevoando uma área consideravelmente remota. Assim que tiver alguma informação, transmitirei aos senhores e senhoras. Enquanto isso, gostaria de contar com sua cooperação e calma.
Buck observava enquanto o co-piloto saía apressado da cabina de comando, sem o quepe e agitado. Ele descia rapidamente por um corredor e subia pelo outro, o olhar correndo de poltrona em poltrona, enquanto as aeromoças passavam os formulários.
O companheiro de poltrona de Buck levantou-se, a saliva a escorrer sobre o queixo, quando a aeromoça perguntou se alguém de seu grupo estava faltando.
- Faltando? Não. Não há ninguém neste grupo senão eu mesmo.
Ele se prostrou novamente e continuou dormindo, alheio aos fatos.
O co-piloto retornou à cabina poucos minutos depois, quando Rayford ouviu o barulho da chave na porta. Christopher abriu-a nervosamente, atirou-se em sua poltrona sem atar o cinto de segurança e pôs a cabeça entre as mãos. - O que será que está acontecendo, Ray? - perguntou. -
Mais de cem pessoas desapareceram, e suas roupas foram deixadas intactas.
- Tanto assim?
- Sim, que diferença faria se fossem somente 50? Que droga de explicação vamos dar quando aterrissarmos com menos passageiros do que recebemos?
Rayford balançou a cabeça, tentando ainda contato pelo rádio, procurando encontrar alguém, qualquer um, em Greenland ou em outra ilha qualquer no meio do trajeto. Mas estavam muito longe para captar uma estação de rádio a fim de obter notícias. Finalmente, conseguiu contatar um Concorde, da Air France, distante vários quilômetros que voava em outra direção. Rayford acenou a Christopher para que colocasse seus fones de ouvido.
- Você tem combustível suficiente para voltar aos Estados Unidos? - perguntou o piloto do Concorde a Rayford.
Ele olhou para Christopher, que acenou positivamente com a cabeça, e sussurrou:
- Temos meio tanque.
- O suficiente para chegar ao aeroporto Kennedy - disse Rayford.
- Esqueça - veio a resposta. - Ninguém está pousando em Nova York. Há duas pistas ainda abertas em Chicago. É para lá que estamos indo.
- Saímos de Chicago. Não podemos descer em Heathrow?
- Negativo. Fechado.
- Paris?
- Homem, seria melhor você voltar para o lugar de onde veio. Deixamos Paris uma hora atrás. Fomos informados do que aconteceu, e disseram-nos para seguir direto para Chicago.
- O que está acontecendo, Concorde?
- Se não sabe, por que você está assustado com o "primeiro de maio" [notícia de desgraça, na linguagem aeronáutica por rádio]?
- Temos aqui uma situação que não posso comentar.
- Hei, amigo, a notícia já correu o mundo inteiro, você não sabe?
- Positivo, não sei - disse Rayford. O que houve?
- Estão faltando passageiros, certo?
- Positivo. Mais de cem.
- Opa! Perdemos perto de 50.
- A que conclusão você chegou, Concorde?
- A primeira coisa que pensei é que tivesse havido uma combustão espontânea, mas, se isso houvesse ocorrido, deixaria fumaça ou resíduo. Essas pessoas desapareceram materialmente. Nunca vi nada igual, a não ser na velha série Jornada nas Estrelas, onde as pessoas se desmaterializavam e rematerializavam.
- Bem que gostaria de dizer a meus passageiros que seus entes queridos vão reaparecer tão depressa e completamente como desapareceram - disse Rayford.
- Isto não é o pior de tudo, Pan-Continental. As pessoas desapareceram em todos os lugares. O aeroporto de Orly perdeu os controladores de tráfego aéreo e os controladores de terra. Alguns aviões perderam as tripulações de bordo. Onde o dia já clareou, há carros empilhados, numa grande colisão geral, caos por toda parte. Aviões caíram em muitos lugares e nos principais aeroportos.
- Então isto foi uma fatalidade?
- Em toda parte, ao mesmo tempo, um pouco menos de uma hora atrás.
- Cheguei até a pensar que fosse alguma coisa só neste avião. Algum gás, alguma falha técnica do aparelho.
- Que teria sido um fato seletivo, você quer dizer? Rayford percebeu o sarcasmo.
- Entendo o que você quer dizer, Concorde. Tenho de admitir que esta é uma situação que nunca enfrentamos.
- E jamais desejaremos passar por isso novamente. Continuo dizendo a mim mesmo que foi um sonho mal.
- Um pesadelo.
- Positivo, mas não foi, não é mesmo?
- O que você dirá aos seus passageiros, Concorde?
- Não tenho idéia. E você?
- A verdade.
- Não posso magoá-los agora. Mas qual é a verdade? O que sabemos?
- Não tenho a menor idéia.
- Sábias palavras, Pan-Continental. Você sabe o que algumas pessoas estão dizendo?
- Positivo - disse Rayford. - É melhor que as pessoas tenham ido para o céu do que receberam raios destruidores de algum poder aqui da terra.
- O que se diz é que todos os países foram afetados. Espero encontrá-lo em Chicago. Até breve.
- Positivo. Rayford Steele olhou para Christopher, que começou a mudar os controles para virar o enorme aparelho e retornar aos Estados Unidos.
- Senhoras e senhores - disse Rayford pelo intercomunicador -, não temos condições de descer na Europa. Retornaremos a Chicago. Estamos quase na metade do percurso programado; portanto, não teremos problema com o combustível. Espero que isto possa acalmá-los de alguma maneira. Informarei a todos quando estivermos suficientemente perto para começar a usar os telefones. Antes disso, por favor, não tentem fazer nenhuma ligação.
Quando o capitão terminou de transmitir a informação sobre o retorno aos Estados Unidos, Buck Williams ficou surpreso ao ouvir aplausos dos passageiros. Todos estavam chocados e aterrorizados. Muitos eram dos Estados Unidos e queriam ao menos voltar para a família e amigos a fim de procurar entender o que havia acontecido. Buck cutucou o executivo à sua direita.
- Sinto muito, amigo, mas você precisa acordar para ouvir isto. O homem olhou para Buck com ar enfastiado e balbuciou:
- Se não vamos cair, não me aborreça.
Quando o Pan-Continental 747 entrou na faixa de comunicações via satélite com os Estados Unidos, o capitão Rayford Steele sintonizou uma rádio especializada em notícias e ficou sabendo que houve desaparecimento de pessoas em todos os continentes. As linhas de comunicação estavam congestionadas. Entre os desaparecidos, havia pessoas das áreas médica, técnica e de serviços, de todo o mundo. Todas as agências de defesa civil estavam trabalhando em ritmo de emergência, tentando administrar as incontáveis tragédias. Rayford lembrou-se do desastre de trem em Chicago anos antes e de como as unidades de hospitais, bombeiros e polícia puseram todo o seu pessoal a trabalhar. Ele podia imaginar o que estava acontecendo agora multiplicado milhares de vezes. Até mesmo as vozes dos noticiaristas eram cheias de terror, por mais que quisessem ocultá-lo. Todos tentavam apresentar uma explicação razoável, porém, dentro do aspecto prático, seria melhor evitar discussões e comentários sobre as perdas. O que as pessoas queriam das notícias eram informações simples sobre como chegar ao seu destino e entrar em contato com seus entes queridos para saber se algo aconteceu a eles. Rayford foi instruído a entrar num sistema de tráfego aéreo multiestatal que lhe permitisse aterrissar em O'Hare num momento preciso. Apenas duas pistas estavam liberadas, e cada aeronave grande do país parecia dirigir-se para lá. Milhares morreram em quedas de avião e colisões de carro. Equipes de emergência estavam procurando desimpedir as vias expressas e as pistas dos aeroportos, ao mesmo tempo em que se afligiam com a perda de pessoas queridas e companheiros de trabalho que desapareceram. Uma nota informou que muitos motoristas de táxi sumiram do estacionamento de carros no aeroporto O'Hare e que voluntários estavam sendo chamados para movimentar os carros em que foram encontradas apenas as roupas dos motoristas sobre os bancos. Carros dirigidos por pessoas que desapareceram acabaram ficando sem controle e, evidentemente, colidiram. As incumbências mais pesadas para o pessoal de emergência eram determinar quem havia desaparecido, estava morto ou ferido e, em seguida, comunicar o caso aos sobreviventes. Quando Rayford estava suficientemente próximo para se comunicar com a torre do O'Hare, ele perguntou se poderia tentar um contato por telefone com sua família, ao que foi desestimulado a fazê-lo.
- Lamento, capitão, mas as linhas telefônicas estão totalmente congestionadas, e o pessoal da telefônica tão desarticulado que a única esperança é conseguir um sinal de linha e usar o telefone pressionando a tecla de repetição de discagem.
Rayford manteve os passageiros informados sobre a extensão do fenômeno e apelou a todos que se mantivessem calmos.
- Não há nada que possamos fazer neste avião para mudar a situação. Meu plano é deixá-los em Chicago tão rapidamente quanto possível, e espero que possam ter acesso a algumas respostas e alguma ajuda.
O telefone ao alcance das mãos, encaixado atrás do banco da frente de Buck Williams, não era programado para fazer conexões modulares externas da mesma forma que os telefones domésticos. Desse modo, ninguém podia simplesmente levantar o fone, tirando-o de sua linha de conexão e sair andando com ele. Mas Buck percebeu que dentro do aparelho a conexão era padronizada e que, se pudesse de algum modo fazer a ligação sem danificar o aparelho, poderia conectar o modem de seu laptop diretamente à linha. Seu telefone celular não estava funcionando naquela altitude.
Na frente dele, a esposa de Harold chorava, cobrindo o rosto com as mãos. O executivo ao seu lado roncava. Depois de beber até ficar anestesiado logo depois da decolagem, ele tinha dito alguma coisa sobre um importante encontro na Escócia. Ficaria surpreso diante do que veria quando aterrissasse!
Em volta de Buck, pessoas choravam, oravam e conversavam. As comissárias ofereciam lanches e bebidas, mas poucos aceitavam. Tendo de início preferido uma poltrona junto ao corredor para ter mais espaço para as pernas, Buck estava agora satisfeito por ficar parcialmente escondido próximo à janela. Ele tirou do estojo do seu laptop um pequeno conjunto de ferramentas que nunca esperou que usaria e passou a trabalhar no telefone.
Desapontado por não encontrar nenhuma conexão modular mesmo dentro da caixa, ele resolveu brincar de eletricista amador. Essas linhas de telefone sempre têm os fios da mesma cor, concluiu ele, e assim abriu seu laptop e cortou o fio que leva ao conector-fêmeo. Dentro do telefone, ele cortou o fio e descascou o revestimento plástico protetor. Certamente, os quatro fios internos, tanto do computador como do telefone, pareciam idênticos. Em poucos minutos, ele os havia emendado.
Buck digitou uma rápida mensagem para seu editor-executivo, Steve Plank, em Nova York, informando seu destino. "Vou escrever tudo o que sei e estou certo de que esta será mais uma entre muitas outras histórias semelhantes. Mas pelo menos esta será fresquinha, feita na hora, pois está acontecendo. Se ela terá alguma utilidade, não sei. Ocorre-me a idéia, Steve, de que você pode estar entre os desaparecidos. Como poderia saber? Você conhece meu endereço eletrônico. Avise-me, se você ainda está entre nós."
Ele salvou a mensagem e preparou seu modem para enviá-la a Nova York, enquanto trabalhava em seu próprio artigo. No topo da tela, uma barra de posição acendia a cada vinte segundos, informando que a conexão para o contato expresso estava ocupada. Buck continuou trabalhando.
A chefe do serviço de bordo surpreendeu-o mergulhado em suas reflexões e emoções.
- O que o senhor está fazendo? - perguntou ela, inclinando-se para ver melhor a confusão de fios ligados do laptop ao telefone embutido. - Não posso permitir que o senhor faça isso. Ele lançou um olhar no crachá onde constava o nome dela.
- Ouça, bela Hattie, estamos ou não presenciando o fim do mundo como aprendemos?
- Não conte com minha condescendência, senhor. Não posso deixar que o senhor se sente aqui e destrua nossa propriedade.
- Não estou destruindo. Estou fazendo uma adaptação de emergência. Com isto, posso, tendo sorte, fazer uma conexão que ninguém mais conseguirá.
- Não posso permitir que o senhor faça isso.
- Hattie, posso dizer-lhe alguma coisa?
- Só se o senhor disser que irá colocar esse telefone onde ele se encontrava.
- Farei isso.
- Agora.
- Agora não.
- Isso é tudo o que gostaria de ouvir.
- Compreendo, mas, por favor, ouça-me.
O homem perto de Buck fitou-o e depois olhou para Hattie. Ele praguejou e, em seguida, usou um travesseiro para tapar a orelha direita, pressionando a esquerda contra o encosto da poltrona.
Hattie tirou do bolso um impresso de computador e localizou o nome de Buck.
- Sr. Williams, espero que o senhor coopere. Não quero incomodar o piloto com isso.
Buck procurou alcançar a mão dela. Ela manteve a postura, mas não retraiu a mão.
- Podemos conversar apenas um minutinho?
- Não vou mudar minha opinião, senhor. Agora, por favor, tenho um avião cheio de pessoas amedrontadas para cuidar.
- Você não é uma delas?- ele perguntou, enquanto ainda segurava sua mão.
Ela apertou os lábios e consentiu.
- Você não gostaria de manter contato com alguém? Se isto funcionar, serei capaz de contatar pessoas que podem fazer ligações por você, informar à sua família que você está bem, até deixar uma mensagem de retorno. Não destruí coisa alguma e prometo colocar tudo no seu devido lugar.
- O senhor pode?
- Posso.
- E o senhor me ajudaria?
- Em qualquer coisa. Dê-me os nomes e números de telefone. Vou incluí-los na mensagem que estou tentando enviar a Nova York e insistir que alguém ligue para sua família e me dê o retorno. Não posso garantir que serei bem-sucedido ou, se conseguir, me darão qualquer retorno, mas vou tentar.
- Ficarei grata.
- E você pode me proteger de outras aeromoças excessivamente zelosas?
Hattie ensaiou um sorriso.
- Todas elas podem querer sua ajuda.
- É uma tentativa. Apenas mantenha todo mundo longe de mim e deixe-me continuar tentando.
- Combinado - disse ela, mas parecia ainda preocupada.
- Hattie, você está fazendo a coisa certa - disse ele. - É bom numa situação como esta pensar um pouco em você mesma.
É o que estou fazendo.
- Mas todos estamos no mesmo barco, senhor. E eu tenho responsabilidades.
- Você tem de admitir que, quando pessoas desaparecem, algumas regras saem pela janela.
Rayford Steele estava sentado na cabina de comando, a face pálida. Faltava uma hora e meia para o pouso em Chicago, e ele tinha dito tudo o que sabia aos passageiros. O desaparecimento simultâneo de milhões em todo o planeta tinha resultado num caos muito além da imaginação. Ele cumprimentou todos os que ficaram calmos e evitaram histerismos, embora tenha recebido relatos sobre médicos a bordo que estavam distribuindo comprimidos de sedativos como se fossem bombons.
Rayford tinha sido sincero, a única coisa que ele sabia ser. Considerou que tinha dado mais explicações do que daria se tivesse perdido um motor, os freios hidráulicos ou mesmo o trem de aterrissagem. Tinha sido franco com os passageiros ao dizer que aqueles que estivessem viajando sem a família poderiam descobrir, ao voltar para casa, que parte dela poderia ter sido vítima das muitas tragédias que ocorreram.
Rayford pensou, mas não disse, quão grato se sentia por estar no espaço aéreo quando o fenômeno ocorreu. Que confusão devia esperá-los em terra! Aqui, num sentido literal, eles estavam acima de tudo. De alguma forma, foram afetados. Pessoas estavam faltando em toda parte. Mas, com exceção da redução da equipe de serviço causada pelo desaparecimento de três componentes da tripulação, os passageiros não sofreram da forma como poderiam, caso estivessem no trânsito ou se ele e Christopher estivessem entre os que tinham desaparecido.
Ao atingir a distância padrão do aeroporto O'Hare, todo o impacto da tragédia começou a surgir diante de seus olhos. Vôos de todas as partes do país estavam sendo desviados para Chicago. Os pousos dos aviões estavam sendo reorganizados com base nos suprimentos de combustível. Rayford precisava estar em posição prioritária após ter voado sobre o litoral leste e depois sobre o Atlântico antes de retornar. Não era a prática de Rayford comunicar-se com o controle de terra, a não ser depois do pouso, mas agora a torre de controle do tráfego aéreo estava recomendando isto. Ele foi informado de que a visibilidade era excelente, a despeito de intermitentes fumaças de desastres em terra, mas esse pouso seria arriscado e precário porque as duas pistas abertas estavam abarrotadas de jatos. Eles se alinhavam em ambas as laterais das pistas e em toda a sua extensão. Todos os portões estavam cheios, e ninguém conseguia sair do lugar. Todas as modalidades de transporte estavam em uso, e os passageiros eram levados de ônibus dos extremos das pistas até o terminal.
Mas foi dito a Rayford que seus passageiros - pelo menos a maioria deles - teriam de fazer o percurso a pé. Todos os funcionários remanescentes foram convocados para trabalhar, mas estavam ocupados orientando os aviões para seguirem para áreas de segurança. Os poucos ônibus e peruas foram reservados para os deficientes físicos, idosos e as tripulações. Rayford deu instrução para que toda a tripulação fosse a pé.
Os passageiros disseram que não conseguiram usar os telefones de bordo. Hattie Durham contou a Rayford que um passageiro na primeira classe, não se sabe como, conseguiu ligar o telefone ao seu computador. Enquanto ele preparava mensagens, seu computador discava e rediscava automaticamente para Nova York. Se houve um sinal de linha, foi ele que o aproveitou para fazer suas ligações.
Quando o avião começou sua descida em Chicago, Buck conseguiu encontrar uma linha livre, que possibilitou-lhe baixar as mensagens que estavam prontas para ser enviadas. Isso aconteceu exatamente quando Hattie anunciou que todos os aparelhos eletrônicos deveriam ser desligados.
Com uma sagacidade que nem ele sabia que possuía, Buck num repente digitou as teclas, o que lhe permitiu recuperar e salvar todas as suas mensagens, livrando-se, assim, do corte da comunicação. No exato momento em que sua ligação poderia interferir nas comunicações do vôo com o aeroporto, a linha foi interrompida, e agora ele teria de esperar para abrir os arquivos contendo notícias de amigos, companheiros de trabalho, parentes e qualquer outra pessoa.
Antes de seus últimos minutos de preparação para o pouso, Hattie apressou-se a ir até Buck.
- Alguma coisa?
Ele balançou a cabeça negativamente, desculpando-se.
- Obrigada por tentar - disse ela. E começou a chorar, Ele segurou-lhe o pulso.
- Hattie, todos nós vamos para casa hoje e chorar. Mas tenha calma e perseverança. Ajude os passageiros a descer, e poderá ao menos sentir-se bem fazendo isso.
- Sr. Williams - soluçou ela -, saiba que perdemos várias pessoas idosas, mas não todas. Perdemos várias pessoas de meia-idade, mas não todas. E perdemos várias pessoas de
sua idade e da minha, mas não todas. Perdemos até alguns adolescentes. Ele a fitava com os olhos arregalados. O que ela queria dizer?;
- Senhor, perdemos todas as crianças e bebês neste avião.
- Quantos havia?
- Mais de doze. Todos eles! Não sobrou nenhum.
O homem ao lado de Buck despertou e desviou o olhar do sol forte que entrava pela janela.
- Do que vocês estão falando? - perguntou ele.
- Estamos prestes a descer em Chicago - disse Hattie. -Tenho de me apressar.
- Chicago?
- O senhor não queira saber - disse Buck.
O homem quase sentou no colo de Buck para olhar pela janela, envolvendo-o com seu hálito de embriagado.
- O quê? Estamos em guerra? Rebeliões? O quê?
Tendo atravessado uma massa espessa de nuvens, o avião possibilitou aos passageiros a visão da área de Chicago. Fumaça. Fogo. Carros fora da estrada e colididos uns contra os outros e contra os trilhos de segurança ao longo da estrada. Aviões despedaçados sobre o solo. Veículos de emergência, com luzes piscando, procurando caminho entre os destroços.
Quando apareceu o aeroporto O'Hare, ficou claro que ninguém conseguiria ir a lugar algum. Havia aviões em quantidade até aonde a vista alcançava, alguns destruídos e em chamas, outros parados em fila. Pessoas caminhavam penosamente pela grama e entre veículos em direção ao terminal. As vias expressas que levavam ao aeroporto se assemelhariam às que se viam durante as grandes nevascas de Chicago, só que desta vez sem neve.
Guindastes e máquinas trituradoras de sucata tentavam abrir caminho para a entrada e saída de carros, mas isso levaria horas, senão dias. Uma fila de pessoas procurava seu caminho vagarosamente para sair dos prédios do terminal, entre carros imobilizados, em direção às rampas. Pessoas andando, andando, andando à procura de um táxi ou microônibus. Buck estava planejando como enfrentar a situação. De algum modo, ele teria de se movimentar e cair fora daquela área congestionada. Seu problema era chegar a um lugar pior: Nova York.
- Senhoras e senhores - anunciou Rayford -, quero agradecer-lhes novamente sua cooperação hoje. Fomos autorizados a descer na única pista que permite o pouso de um aparelho deste porte e, em seguida, taxiar numa área aberta que fica a cerca de três quilômetros do terminal. Acredito que vamos ter de pedir que usem nossas rampas deslizadoras de emergência, porque não temos possibilidade de engatar a porta de saída ao portão. Os que não tiverem condições de caminhar até o terminal, por favor, fiquem aguardando que mandaremos alguém buscá-los.
Não houve agradecimentos por terem escolhido voar pela Pan-Continental, nem o clichê: "Esperamos contar com sua preferência na próxima vez que precisarem de um serviço aéreo." Ele recomendou que todos ficassem sentados com os cintos atados até que se apagasse o sinal, porque intimamente sabia que aquele seria o pouso mais difícil em vários anos. Estava consciente de que poderia fazê-lo, mas havia muito tempo que não aterrissava no meio de outras aeronaves.
Rayford invejava aqueles que, na primeira classe, tinham acesso às faixas para comunicação por modem. Ele estava desesperado para falar com Irene, Chloe e Ray Jr. Por outro lado, temia não poder falar com eles novamente.
TRÊS
HATTIE Durham e os remanescentes da tripulação incentivaram os passageiros a ler atentamente os folhetos de instruções de segurança que se encontravam nas bolsas das poltronas. A maioria dos passageiros temia ser incapaz de pular e deslizar nas rampas, principalmente se tivessem de carregar suas bagagens de mão. Foram instruídos a tirar os sapatos, pular e deslizar sentados na rampa. Em seguida, os comissários atirariam seus sapatos e as bagagens de mão. Ninguém deveria esperar no terminal para retirar as malas. Foi prometido que elas seriam entregues na residência de cada passageiro. Não se podia garantir quando.
Buck Williams deu a Hattie seu cartão e anotou o número do telefone dela, "caso eu consiga contatar seus familiares antes de você".
- O senhor trabalha no Semanário Global? - perguntou ela. - Eu não poderia imaginar.
- E você estava querendo impedir que eu mexesse no telefone.
Ela pareceu ensaiar um sorriso.
- Sinto muito - disse Buck -, não foi fácil. Você estava desempenhando a sua função.
Tendo sido sempre um viajante prático, Buck nunca despachara bagagens. Jamais fizera isso, mesmo nos vôos internacionais. Quando abriu o compartimento de bagagem para retirar sua maleta de couro, encontrou em cima dela o chapéu é a jaqueta do senhor idoso. A esposa de Harold estava olhando fixamente para Buck, olhos inchados, queixo apoiado na mão.
- Madame - disse ele suavemente -, a senhora deseja estas roupas?
A triste senhora recebeu com gratidão o chapéu e a jaqueta e apertou-os contra o peito como se nunca mais fosse soltá-los. Ela disse alguma coisa que Buck não pôde ouvir. Ele pediu que ela repetisse.
- Não tenho condições de saltar deste avião - disse ela.
- Fique aqui - respondeu ele. - Alguém virá ajudá-la.
- Mas terei de pular e deslizar naquela coisa?
- Não, madame. Estou certo de que eles providenciarão outro meio para a senhora descer.
Buck guardou seu laptop e o estojo no meio de suas roupas. Fechou a maleta com o zíper e se apressou para ficar à frente da fila, ansioso por mostrar aos outros como era fácil. Primeiro, atirou seus sapatos, vendo-os saltar e escorregar até a pista. Em seguida, apertou sua maleta contra o peito, deu um rápido passo e saltou com as pernas à frente.
Um tanto entusiasmado, ele escorregou de costas apoiando-se nos ombros, e não nas nádegas. Com isto, suas pernas levantaram-se, fazendo com que as pontas dos pés tocassem sua cabeça. Ele ganhou velocidade e bateu com as nádegas na rampa por causa do peso deslocado para frente. Em razão da força centrípeta, seus pés bateram com força no chão e seu torso levantou-se, provocando uma cambalhota que evitou que ele batesse com o rosto no concreto. No último lance, ainda agarrado à maleta e querendo salvar a vida, ele enfiou a cabeça entre as pernas e esfolou a parte posterior do crânio em lugar do nariz. Apressou-se a dizer "Não foi nada", mas, ao passar a mão pela cabeça, ela estava coberta de sangue. Não era um ferimento grave, apenas uma escoriação. Ele rapidamente recuperou seus sapatos e começou a caminhar aos trotes em direção ao terminal, mais por vergonha do que por necessidade. Sabia que não havia mais pressa, assim que chegasse ao terminal.
Rayford, Christopher e Hattie foram os três últimos a deixar o 747. Antes do desembarque, quiseram certificar-se de que todas as pessoas aptas fisicamente escorregaram pela rampa e que os idosos e deficientes foram transportados de ônibus. O motorista do ônibus insistiu que a tripulação pegasse uma carona com os últimos passageiros, mas Rayford recusou.
- Não devo passar à frente de meus passageiros enquanto caminham para o terminal - disse ele. - Como isto seria visto?
Christopher disse:
- Faça como quiser, capitão. Você se importaria se eu aceitasse o oferecimento?
Rayford olhou para ele com olhos penetrantes.
- Você está falando sério?
- Não ganho o suficiente para passar por isto.
- A empresa não é culpada pelo que houve. Chris, você não está falando sério.
- Claro que não. Mas, quando você chegar ao terminal, há de se arrepender por não ter ido de ônibus.
- Vou relatar isto.
- Milhões de pessoas desaparecem na atmosfera, e eu devo ficar preocupado por você relatar que peguei um ônibus, em vez de andar a pé? Até logo, Steele.
Rayford meneou a cabeça e voltou-se para Hattie:
- Vejo você mais tarde. Se puder sair do terminal, não espere por mim.
- Você está brincando? Se você for a pé, eu também irei.
- Você não precisa fazer isto.
- Depois daquela repreensão ao Smith? É claro que irei a pé.
- Ele é co-piloto. Devemos ser os últimos a deixar o avião e os primeiros a nos apresentarmos como voluntários numa emergência.
- Bem, faça-me um favor e me considere parte de sua tripulação também. Só porque não posso pilotar essa coisa, não quer dizer que eu não sinta uma certa responsabilidade. E não me trate como uma garota.
- Jamais faria isto. Mexi com seus brios?
Hattie puxava sua mala sobre rodinhas, e Rayford carregava sua maleta de couro. Era uma longa caminhada, e várias vezes eles acenaram negativamente a ofertas de carona de unidades que se apressavam a apanhar os que desembarcavam. Ao longo da caminhada, passaram por outros passageiros de seu vôo. Muitos agradeceram a Rayford; ele não estava certo do motivo. Talvez por ter evitado o pânico. Mas eles pareciam tão aterrorizados e traumatizados quanto ele.
Tapavam os ouvidos por causa do ruído estridente dos aviões que pousavam. Rayford tentou calcular quanto tempo levaria para aquela pista fechar também. Ele não podia imaginar que a outra faixa aberta também pudesse receber muitos aviões. Teriam alguns de tentar descer em rodovias ou em campos abertos? E a que distância das grandes cidades encontrariam pistas rodoviárias desimpedidas, sem pontes e com extensão suficiente em linha reta? Ele estremecia só de pensar.
Por toda parte viam-se ambulâncias e outros veículos de emergência tentando chegar a locais de desastres fatais.
Finalmente, no terminal, Rayford encontrou multidões em filas diante de cabinas de telefone. Em muitas delas, pessoas irritadas, aguardando a sua vez, esbravejavam por causa da lentidão dos usuários que, sem se importarem, discavam novamente. As lanchonetes e restaurantes do aeroporto estavam desabastecidas ou com pouca comida, e todos os jornais e revistas se esgotaram. Das lojas cujos empregados desapareceram, saqueadores saíam com mercadorias.
Rayford queria, mais do que qualquer coisa, sentar-se e conversar com alguém sobre o que fazer naquela circunstância. Mas todos que ele via - amigos, conhecidos ou estranhos - estavam ocupados tentando resolver seus problemas. O'Hare assemelhava-se a uma enorme prisão com recursos cada vez mais escassos e o congestionamento aumentando. Ninguém dormia. Todo mundo corria desatinado por todos os lados, procurando achar alguma ligação com o mundo lá fora, contatar seus familiares e sair do aeroporto.
Nos balcões de passagens e em outras dependências, Rayford encontrou a mesma confusão. Hattie disse que iria tentar dar seus telefonemas de uma sala de espera para embarque e que o encontraria mais tarde para ver se poderiam compartilhar de um transporte para os bairros. Ele sabia que seria difícil achar alguma condução para qualquer lugar, não tinha nenhuma disposição de andar 32 quilômetros. Todos os hotéis na região já se encontravam completamente lotados. Que fazer?
Finalmente, um supervisor solicitou a atenção dos pilotos na central do subsolo. "Temos algumas linhas telefônicas funcionando, cerca de cinco", disse ele. “Não podemos garantir que vocês conseguirão completar as ligações, mas esta é sua melhor oportunidade”. Essas linha não passam * pelo tronco central daqui; portanto, vocês não dependerão dos telefones públicos instalados no terminal. Reduzam ao mínimo necessário seus telefonemas. Por outro lado, há um número limitado de vôos de helicópteros disponíveis para hospitais e postos policiais nos bairros, mas, naturalmente, as emergências médicas terão prioridade. Entrem naquela fila
para ligações telefônicas e conduções para os bairros. Até este momento, não temos informações de cancelamento de vôos, exceto para os remanescentes de hoje. “É sua responsabilidade retornar aqui para seu próximo vôo ou telefonar, a fim de saber como está a posição.”
Rayford entrou na fila, começando a sentir a tensão de ter voado tanto tempo e saber tão pouco. Pior ainda: ele tinha uma idéia melhor do que a maioria sobre o que havia acontecido. Se estava certo, e se fosse verdade, ninguém atenderia quando ele ligasse para sua casa. Enquanto estava ali, um monitor de televisão à sua frente transmitia imagens do caos. De todas as partes do mundo, viam-se mães angustiadas, famílias estéricas, relatos de morte e destruição. Dezenas de histórias incluíam testemunhas que tinham visto seus entes queridos e amigos desaparecerem diante de seus olhos.
Mais chocante para Rayford foi uma mulher em via de dar à luz, a caminho da sala de parto, que se tornou repentinamente estéril. Os médicos retiraram a placenta. Seu marido havia filmado o desaparecimento do feto. Enquanto filmava sua grande barriga e o rosto banhado de suor, ele fazia perguntas. Como ela se sentia? "Como você acha que me sinto, Earl? Desligue isso." O que ela estava esperando? "Que você chegue bem perto para que eu lhe dê um murro." Ela estava consciente de que, não demoraria muito, eles seriam pais? "Assim que eu sair daqui, vou me divorciar."
Então ouviu-se um grito e o ruído da queda da câmera, vozes aterrorizadas, enfermeiras correndo e o médico. A televisão reproduziu as imagens, colocando-as em câmara lenta, mostrando a barriga da mulher murchando até quase voltar ao normal, como se tivesse instantaneamente dado à luz. "Agora, observem novamente", dizia o locutor, num tom de voz meio cantado, "e mantenham seu olhar no lado esquerdo da tela, onde aparece uma enfermeira lendo um relatório do coração do feto emitido pelo monitor. Ali, estão vendo?" A ação parou quando a barriga da parturiente murchou de vez. "O uniforme da enfermeira parece estar ainda em posição, como se uma pessoa invisível o estivesse vestindo. Ela sumiu. Vejam agora meio segundo depois." A fita rodou mais um pouco e parou. "O uniforme, as meias e outras peças estão empilhados em cima de seus sapatos."
As emissoras de televisão de todas as localidades do mundo informavam ocorrências estranhas, especialmente em áreas de horários diferentes, onde o acontecimento se deu durante o dia ou ao anoitecer. A televisão mostrou via satélite o vídeo de um noivo desaparecendo enquanto colocava a aliança no dedo de sua noiva. Numa cerimônia fúnebre realizada em determinada residência na Austrália, quase todos os presentes desapareceram durante o serviço religioso, incluindo o cadáver, enquanto em outro velório, no mesmo instante, somente uns poucos desapareceram, permanecendo o cadáver. Os necrotérios também relataram o desaparecimento de corpos. Num enterro, três dos seis que carregavam o caixão o largaram, e ele caiu no chão. Os três desapareceram. Quando levantaram o caixão, os circunstantes perceberam que ele estava vazio.
Rayford era o segundo na fila para telefonar, mas o que ele presenciou em seguida na tela convenceu-o de que não veria mais sua esposa. Numa escola secundária cristã, durante um jogo de futebol nas instalações de uma missão, na Indonésia, a maioria dos espectadores e todos - menos um - dos jogadores desapareceram no meio do jogo, deixando seus sapatos e uniformes no chão. O repórter da televisão anunciou que o único jogador que restou, com remorso, suicidou-se.
Mas Rayford sabia que era mais do que remorso. De todos os demais, aquele jogador, um estudante de uma escola cristã, teria sabido a verdade imediatamente. O Arrebatamento teve lugar. Jesus Cristo tinha retornado para os seus, e aquele jovem não era um deles. Quando Rayford sentou-se para telefonar, lágrimas banhavam suas faces. Alguém disse: "Você tem quatro minutos", e ele sabia que esse tempo era mais do que ele precisava. A secretária eletrônica de sua residência atendeu imediatamente, e ele se comoveu ao ouvir a voz animada de sua esposa. "Sua ligação é importante para nós", dizia ela. "Por favor, deixe seu recado após ouvir o sinal."
Rayford apertou umas teclas para ouvir os recados porventura gravados. Havia três ou quatro gravações sem importância, e ele surpreendeu-se quando ouviu a voz de Chloe. "Mamãe? Papai? Vocês estão aí? Vocês viram o que está acontecendo? Liguem para mim logo que puderem. Perdemos pelo menos dez estudantes e dois professores, e todos os filhos pequenos dos estudantes casados desapareceram. Raymie está bem? Liguem para mim!" Bem, ao menos ele sabia que Chloe ainda estava por aqui. Tudo o que ele queria era abraçá-la.
Rayford voltou a chamar e deixou um recado em sua secretária. "Irene? Ray? Se estiverem aí, atendam. Se receberem este recado, estou no O'Hare tentando chegar aí. Caso eu não consiga um helicóptero, pode demorar um pouco. Espero que estejam em casa."
- Vamos com isso, capitão - disse alguém. - Todo mundo tem um telefonema a fazer.
Rayford balançou a cabeça e rapidamente discou para o dormitório de sua filha em Stanford. Recebeu a irritante mensagem de que sua ligação não poderia ser completada.
Rayford pegou seus pertences e deu uma espiada em sua caixa de correio. Ao lado de uma porção de bobagens, estava um pequeno pacote embrulhado num papel resistente almofadado vindo de sua casa. Recentemente, Irene passara a enviar-lhe pequenas surpresas, inspirada por um livro sobre casamento que ela o incentivava a ler. Ele enfiou o pacote em sua maleta e foi à procura de Hattie Durham. Engraçado, ele não sentia qualquer atração emotiva em relação a Hattie naquele momento. Mas tinha o compromisso de fazê-la chegar ao seu lar.
Quando parou no meio de uma multidão junto ao elevador, ouviu um aviso de que havia um helicóptero com capacidade para oito pilotos que faria um vôo a Monte Prospect, Arlington Heights e Des Plaines. Rayford correu para o heliporto.
- Tem lugar para um com destino a Monte Prospect?
- Sim.
- E para outra pessoa com destino a Des Plaines?
- Talvez, se ele chegar aqui em dois minutos.
- Não é ele. Trata-se de uma comissária de vôo.
- Somente pilotos. Lamento.
- E se tiver lugar?
- Bem, pode ser, mas onde ela está? '
- Vou comunicar-me com ela pelo pager.
- Não estão permitindo o envio de pager a ninguém.
- Aguarde só um segundo. Não saiam sem mim. O piloto do helicóptero olhou para o relógio.
- Três minutos - disse ele. - Estarei saindo à 1 hora. Rayford deixou sua bagagem no chão, na esperança de retardar a decolagem do helicóptero no caso de um pequeno atraso. Arremeteu escada acima e pelo corredor. Achar Hattie seria impossível. Ele lançou mão de um telefone de cortesia.
- Sinto muito, estamos impossibilitados de enviar pagers a quem quer que seja neste momento.
- Esta é uma emergência, e sou capitão-aviador da Pan-Continental.
- Qual é o recado?
- Que Hattie Durham encontre seu parceiro em K-l7.
- Vou tentar.
- Por favor.
Rayford ficou na ponta dos pés para ver se Hattie estava chegando, mas finalmente foi ela que o localizou.
- Eu era a quarta na fila do telefone na sala de espera - disse ela, aparecendo ao seu lado. - Conseguiu alguma coisa?
- Consegui para nós um vôo de helicóptero, se corrermos - respondeu ele.
Enquanto desciam a escada rapidamente disse ela:
- Não foi horrível o que aconteceu com Chris?
- O que houve com ele?
- Você não sabe?
Rayford queria parar e dizer a ela que fosse mais objetiva. Esse comportamento era característico de pessoas da idade dela. Os jovens adoram enrolar a conversa. Ele gostava de ir direto ao assunto.
- Diga logo! - exclamou ele, com um tom mais exaltado do que pretendia.
Quando irromperam pela porta afora e chegaram ao piso de macadame, as lâminas do helicóptero chicoteavam e eriçavam seus cabelos e os ensurdeciam. A maleta de Rayford já tinha sido colocada a bordo, e restava apenas um lugar vago. O piloto apontou para Hattie e balançou a cabeça num gesto negativo. Rayford agarrou-a pelos cotovelos e puxou-a para dentro enquanto entrava no aparelho.
- Ela só não seguirá neste vôo se o problema for excesso de peso!
- Quanto você pesa, boneca? - perguntou o piloto.
- 52 quilos.
- Com esse peso, podemos ir! - disse ele a Rayford. - Mas, se ela não usar o cinto, não me responsabilizo!
- Vamos embora! - gritou Rayford.
Ele ajustou o cinto em si mesmo, e Hattie sentou-se em seu colo. Rayford pôs os braços em torno da cintura dela e agarrou seus pulsos juntando-os. Ele pensava quão irônico era o fato de ter sonhado com isto durante semanas, e agora não havia nenhum prazer, nenhuma excitação, nada absolutamente sensual. Ele se sentia miserável. Contente por ser capaz de tirá-la de lá, mas miserável.
Hattie parecia embaraçada e desconfortável, e Rayford notou que ela olhava de soslaio e envergonhada para os outros sete pilotos no helicóptero. Nenhum deles parecia interessado em olhar para ela. Essa tragédia estava ainda muito recente e havia muitos cujos paradeiros eram ignorados. Rayford pensou ter ouvido, ou interpretou pelo movimento dos lábios, um deles dizer "Christopher Smith", mas não havia meio de poder ouvir dentro daquele aparelho barulhento. Ele pôs a boca bem perto do ouvido de Hattie.
- Agora, o que houve com Chris? - perguntou. Ela voltou-se e falou ao seu ouvido.
- Eles o levavam numa maca atrás de nós enquanto eu estava saindo da sala de embarque. Sangue por toda parte!
- O que aconteceu?
- Não sei, mas ele parecia não estar bem!
- Como assim?
- Acho que estava morto! Quer dizer, eles estavam procurando reanimá-lo, mas creio que não conseguiram.
Rayford balançou a cabeça. O que mais Hattie contaria?
- Ele foi atingido ou alguma coisa? Aquele ônibus bateu? Isto está parecendo ironia!
- Não sei - disse ela. - O sangue parecia estar saindo de sua mão ou de seu peito ou de ambos.
Rayford tocou o ombro do piloto.
- Você sabe qualquer coisa sobre o co-piloto Christopher Smith?
- Aquele da Pan-Continental? - perguntou o piloto.
-Sim!
- O que se suicidou? Rayford tremeu.
- Acho que não! Houve um suicídio?
- Muitos, suponho, mas a maioria entre passageiros. O único membro de tripulação de quem ouvi falar era um tal de Smith, da Pan. Cortou os pulsos.
Rayford espreitou rapidamente os outros no helicóptero para ver se reconhecia algum. Não reconheceu, mas um deles estava balançando a cabeça tristemente, após ter ouvido a resposta em voz alta do piloto. Ele inclinou-se para a frente.
- Chris Smith! Você o conhece?
- Meu co-piloto!
- Sinto muito.
- O que você ouviu?
- Não posso saber até que ponto isto é confiável, mas ouvi comentários de que ele descobriu que seus filhos tinham desaparecido e que sua esposa havia morrido num acidente!
Pela primeira vez, a monstruosidade da situação tocou Rayford pessoalmente. Ele não conhecia bem Smith. Lembrava-se vagamente de que Chris tinha dois filhos. Parece que estavam no início da adolescência, de idades muito próximas. Ele não chegou a conhecer a esposa de Chris. Mas suicídio! Seria aquela uma opção para Rayford? Não, não com Chloe ainda aqui. Mas, e se ele descobrisse que Irene e o jovem Ray se foram e que Chloe tinha morrido? Que motivo ele teria para viver?
De qualquer maneira, Rayford não estava vivendo para eles, pelo menos nos últimos meses. Ele andou flertando mentalmente com a garota que estava em seu colo, embora nunca tivesse chegado a ponto de tocá-la, mesmo quando ela muitas vezes o tocava. Desejaria ele continuar a viver se Hattie Durham passasse a ser a única pessoa com quem tivesse de preocupar-se? E por que se preocupava com ela? Hattie era bonita, sensual e talentosa, mas jovem demais. Eles tinham pouco em comum. Estaria ele agora amando Irene só por estar convencido de que ela desaparecera?
Não havia afeição ao abraçar Hattie Durham exatamente agora, nem ela sentia emoção. Ambos estavam assustados mortalmente, e flerte era a última coisa em suas mentes. A ironia não abandonara Rayford. Ele se lembrava de que a última coisa com que sonhara acordado - antes da notícia dada por Hattie no avião - era tentar uma intimidade com ela. Como poderia saber que ela estaria em seu colo horas depois e que seu interesse por ela seria o mesmo que por uma estranha?
A primeira parada era no Departamento de Polícia de Des Plaines, onde Hattie desembarcaria. Rayford aconselhou-a a pedir que um carro da polícia a levasse para casa, se houvesse algum disponível. Muitos tinham sido solicitados para servir em áreas mais congestionadas; portanto, isso era improvável.
- Estou a apenas um quilômetro e meio de casa - gritou Hattie por causa do ronco do motor do helicóptero, enquanto Rayford a ajudou a descer. - Posso andar até lá!
Em seguida, emocionada, Hattie envolveu o pescoço de Rayford com os seus braços, e ele sentiu que ela tiritava de medo.
- Espero que todos de sua família estejam bem! - disse ela. - Ligue para mim dando-me notícias, promete?
Ele meneou a cabeça afirmativamente.
- Promete - insistiu ela.
- Sim, claro!
Quando o helicóptero levantou vôo, ele a viu procurando o estacionamento. Não localizando nenhum carro da polícia, ela saiu apressadamente puxando sua mala com rodinhas. Quando o helicóptero começou a dar a volta em direção a Monte Prospect, Hattie andava a passos rápidos, quase correndo, para o seu condomínio.
Buck Williams foi o primeiro passageiro do vôo a
chegar ao terminal em O'Hare. Ele encontrou uma
grande confusão. Ninguém que esperava na fila para
telefonar iria tolerar sua tentativa de conectar seu
modem ao telefone. Como seu celular não estava
funcionando, ele dirigiu-se ao clube exclusivo da Pan-
Continental. Ali também havia congestionamento, mas, apesar da perda de funcionários, incluindo o desaparecimento de vários deles enquanto trabalhavam, o local aparentava estar em ordem. Ali também havia pessoas em fila esperando telefonar, mas, quando um aparelho ficava disponível, ele percebia que alguns tentavam passar um fax ou conectar diretamente pelo modem. Enquanto esperava, Buck se pôs a trabalhar de novo em seu computador, refixando o fio do modem interno ao conector-fêmea. Em seguida, localizou as mensagens que havia rapidamente baixado antes da aterrissagem.
A primeira era de Steve Plank, seu editor-executivo, endereçada a todo o pessoal de campo:
Fiquem onde estão. Não tentem vir a Nova York. É impossível. Liguem para cá quando puderem. Chequem seu voice mail e seu e-mail regularmente. Mantenham contato quando possível. Temos pessoal suficiente para ficar de plantão e queremos relatos pessoais, em cima do fato, tanto quanto possam transmitir. Não estamos certos sobre transporte e linhas de comunicação entre nós e nossas gráficas, nem com seus empregados. Se possível, imprimiremos em tempo.
Apenas um lembrete: Comecem a pensar a respeito das causas. Militar? Cósmica? Científica? Espiritual? Mas, por enquanto, estamos tratando principalmente do que aconteceu.
Tenham cuidado e mantenham contato.
A segunda mensagem era também de Steve e exclusiva para Buck.
Buck, ignore o memorando para o pessoal em geral. Venha a Nova York logo que puder e a qualquer custo. Cuide das questões de família, naturalmente, e arquive qualquer experiência ou reflexão pessoal, como os outros estão fazendo. Porém, você deve sair na frente para descobrir o que está por trás do fenômeno. As idéias são como egos -todo mundo tem um.
Se chegaremos a algumas conclusões não sei, mas pelo menos vamos catalogar as possibilidades razoáveis. Você pode adivinhar por que preciso de você aqui para fazer isso; tenho, na verdade, um motivo superior. Penso, às vezes, que, devido à posição em que estou, sou o único que pode saber dessas coisas; mas três diferentes chefes do departamento editorial apresentaram idéias de reportagens acerca de um encontro de vários grupos internacionais em Nova York este mês. O editor de política planeja cobrir uma conferência de nacionalistas judeus em Manhattan, que tem alguma coisa a ver com uma nova ordem de governo no mundo. O que eles querem dizer com isto, não sei, e o próprio editor também não sabe. O editor de religião deixou alguma coisa em minha caixa de entrada sobre uma conferência de judeus ortodoxos vindos também para um encontro. Não são somente de Israel, mas, ao que parece, de todos os lugares, e eles não querem mais saber de discutir a respeito dos Rolos do Mar Morto. Estão ainda aturdidos com o desmantelamento da Rússia e seus aliados — que imagino que você ainda pensa ter sido sobrenatural, mas acredite, gosto de você mesmo assim. O editor de religião pensa que eles estão atrás de ajuda para reconstruir o templo. Isto talvez não seja um fato muito importante ou relacionado em outro departamento - a não ser o de religião -, mas fiquei surpreso ao saber de outro encontro de um grupo de judeus no mesmo local e quase na mesma data para tratar de um assunto inteiramente político. A outra conferência religiosa na cidade é entre líderes de todas as principais religiões, incluindo aqueles do tipo Nova Era, falando também sobre uma ordem religiosa universal. Eles devem também reunir-se com os judeus nacionalistas, não é verdade? Preciso de seu cérebro neste caso. Não sei o que fazer, se é que alguma coisa pode ser feita.
Sei que todo mundo se preocupa com os desapareci¬mentos. Mas precisamos ficar de olho no resto do mundo. Você sabe que a Organização das Nações Unidas pretende realizar uma conferência monetária internacional, tentando avaliar como vamos fazer com este negócio de três moedas. Pessoalmente, sou favorável, mas estou um tanto desconfiado da idéia de usar uma moeda que não seja o dólar. Você pode se imaginar negociando em ienes ou marcos aqui? Acho que ainda sou provinciano.
Todo mundo está muito entusiasmado com esse tal de Carpathia, o romeno que impressionou tanto seu amigo Rosenzweig. Ele deixou todo mundo em apuros no senado de seu país por ter sido convidado para falar na ONU dentro das duas próximas semanas. Ninguém sabe como ele conseguiu esse convite, mas sua popularidade internacional me lembra bastante Walesa ou mesmo Gorbachev. Lembra-se deles? Ah!
Hei, amigo, mande notícia, se não desapareceu. Pelo que soube até este momento, perdi uma sobrinha e dois sobrinhos, uma cunhada de quem não gostava e, possivelmente, um casal de parentes distantes. Você acha que eles voltarão? Bem, guarde pra você até que saibamos o que está por trás disso. Se eu tivesse de adivinhar, diria que estou antevendo alguma terrível redenção divina. Ou seja, não é que essas pessoas desaparecidas estejam mortas. O que vai acontecer no mundo com a indústria do seguro de vida? Não estou disposto a acreditar em tablóides. Saiba apenas que eles estão dizendo que os alienígenas do espaço finalmente nos pegaram.
Venha pra cá, Buck.
QUATRO
BUCK pressionou um lenço ensopado de água fria sobre o lado de trás da cabeça. A ferida tinha parado de sangrar, mas latejava. Ele encontrou outra mensagem em seu e-mail e estava se preparando para responder quando recebeu uma batidinha no ombro.
- Sou médico. Deixe-me fazer um curativo em seu ferimento.
- Oh! está tudo bem, e eu...
- Permita-me fazer isto, companheiro. Estou ficando louco neste lugar, sem nada para fazer, e tenho aqui minha maleta. Estou trabalhando de graça hoje. Chame isto de um Arrebatamento Especial.
- Um o quê?
- Bem, como você chamaria o que aconteceu? - perguntou o médico, tirando um frasco e gaze de sua maleta. - Isto está parecendo bastante rudimentar, mas ficaremos esterilizados. Aids?
- Perdão, não entendi.
- Veja bem, você conhece a rotina - disse o médico enquanto colocava luvas de borracha. - Você contraiu o vírus HIV ou qualquer doença semelhante?
- Não. E... eu não, estou gostando de ouvir isso. Naquele instante, o médico aspergiu uma boa dose de desinfetante sobre a gaze e a colocou sobre o ferimento na cabeça de Buck.
- Aiii! Calma!
- Seja homem, garotão. Isto dói menos do que a infecção que teria se o ferimento não fosse curado.
O médico raspou asperamente a ferida, limpando-a e fazendo escorrer o sangue novamente.
- Ouça, estou fazendo uma pequena raspagem no cabelo para que o curativo não saia do lugar. Tudo bem?
Os olhos de Buck marejavam.
- Sim, está certo, mas o que foi que o senhor disse a respeito de Arrebatamento?
- Há qualquer outra explicação que faça sentido? - disse o médico, usando um bisturi para raspar o cabelo de Buck. Uma funcionária do clube aproximou-se e pediu que transferissem a pequena cirurgia para um dos sanitários.
- Prometo limpar tudo, minha cara - disse o médico. - Está quase pronto.
- Bem, isto não pode ser higiênico, e temos de pensar nos outros.
- Por que você não serve a eles uns drinques e uns petiscos, hein? Você verá que isto vai deixá-los mais aliviados num dia como este.
- Não aceito que o senhor me fale dessa maneira. O médico suspirou enquanto trabalhava.
- Você está certa. Qual é o seu nome?
- Suzie.
- Ouça, Suzie, fui indelicado e peço desculpa, está bem? Agora deixe-me terminar isto. Prometo que não farei qualquer outra cirurgia aqui em público.
Suzie afastou-se meneando a cabeça.
- Doutor - disse Buck -, deixe seu cartão comigo para que eu lhe agradeça apropriadamente.
- Não precisa - disse o médico, guardando suas coisas.
- Agora me dê sua idéia sobre isto. O que quer dizer Arrebatamento?
- Outra hora. É sua vez de telefonar.
Buck estava sofrendo, mas não podia deixar passar a chance de se comunicar com Nova York. Ele tentou discar diretamente, mas não conseguiu o contato. Então acoplou seu modem ao telefone e começou a rediscagem, enquanto dava uma olhada na mensagem da secretária de Steve Plank, a balzaquiana Marge Potter.
Buck, seu maroto! Além de ter muito o que fazer e me preocupar com o dia de hoje, ainda tenho de procurar as famílias de suas garotas? Onde você conheceu essa Hattie Durham? Pode dizer a ela que localizei sua mãe no oeste, mas isso foi antes que uma enchente ou tempestade ou alguma outra coisa interrompesse as linhas telefônicas outra vez. Ela está perfeitamente saudável, mas confusa, e ficou muito agradecida pela notícia de que sua filha não desapareceu. As duas irmãs de Hattie estão bem, conforme disse sua mãe.
Você é bom demais por ajudar pessoas como estas, Buck. Steve disse que você vai tentar chegar aqui. Será bom reencontrá-lo. Isto tudo é tão terrível. Até agora sabemos de vários funcionários desaparecidos. De vários outros, não tivemos notícias, incluindo alguns de Chicago.
Todo o pessoal da equipe principal foi localizado. Só estava faltando você. Esperei e orei para que você estivesse bem. Observou que isso parece ter atingido os inocentes? Todos aqueles que conhecemos e que se foram eram crianças ou pessoas muito bondosas. Por outro lado, algumas pessoas maravilhosas ainda estão aqui. Steve e eu estamos contentes de você estar entre elas. Entre em contato.
Ela não mencionou se pôde contatar o pai viúvo de Buck ou seu irmão casado. Buck ficou intrigado, sem saber se ela omitiu a informação de propósito ou simplesmente ainda não tinha notícia deles. Sua sobrinha e sobrinho deviam ter sumido, se fosse verdade que nenhuma criança sobreviveu. Buck desistiu de tentar contato direto com o escritório, mas novamente foi bem-sucedido fazendo a conexão pelo computador. Ele enviou seus arquivos e, num piscar de olhos, a informação de seu paradeiro. Desse modo, quando o sistema telefônico voltasse a funcionar normalmente, o Semanário Global já poderia começar a trabalhar em cima do material enviado.
Ele pôs o fone no gancho e desconectou, recebendo o olhar de agradecimento do próximo na fila, e em seguida foi procurar o médico. Não teve sorte. Marge tinha se referido aos inocentes. O doutor admitia que tinha sido o Arrebatamento. Steve tinha ridicularizado os alienígenas do espaço. Mas como se poderia excluir qualquer coisa a esta altura? Sua mente já estava ruminando idéias para a história que haveria atrás dos desaparecimentos. Seria o trabalho pelo qual ele aguardara a vida inteira!
Buck entrou na fila para tentar comprar uma passagem para Nova York, sabendo que suas possibilidades pelos meios convencionais eram escassas. Enquanto esperava, procurava lembrar o que Chaim Rosenzweig, o "Fazedor da Notícia do Ano", havia falado com ele sobre o jovem Nicolae Carpathia, da Romênia. Buck tinha conversado sobre isso ligeiramente com Steve Plank, cuja opinião era que não valia a pena enxertá-lo numa reportagem já condensada. Rosenzweig ficou impressionado com Carpathia, isto era verdade. Mas por quê?
Buck sentou-se no chão e só se movia quando a fila andava. Recorreu aos seus arquivos no computador sobre a entrevista com Rosenzweig e chamou a palavra "Carpathia". Ele se recordava de ter ficado sem jeito ao admitir a Rosenzweig que nunca tinha ouvido falar do homem. À medida que as transcrições da entrevista se desenrolavam na tela, ele digitou a tecla "pare" e leu. Quando notou que o sinal de bateria esgotada acendeu, tirou um fio de extensão de sua maleta e ligou o computador numa das tomadas ao longo da parede do balcão. "Cuidado com o fio", gritava toda vez que alguém passava. Uma mulher atrás do balcão ordenou que ele desligasse o fio da tomada.
Ele sorriu para ela.
- E se eu não desligar, você vai me expulsar daqui? Vou ser preso? Seja tolerante comigo, pelo menos hoje!
Dificilmente as pessoas tinham sua atenção atraída por um maníaco sentado no chão gritando com a mulher atrás do balcão. Isso raramente acontecia no Clube Pan-Continental, • mas naquele dia ninguém se surpreendia com nada.
Rayford Steele desembarcou no heliporto do Hospital da Comunidade Noroeste, em Arlington Heights, onde os pilotos tiveram de descer para dar lugar a um paciente que deveria ser levado para Milwaukee. Os outros pilotos se amontoaram junto à entrada do hospital, na esperança de conseguir um táxi, mas Rayford tinha uma idéia melhor. Resolveu ir a pé. *
Ele estava cerca de oito quilômetros distante de casa e apostava que poderia pegar uma carona mais facilmente do que encontrar um táxi. Esperava que seu uniforme de capitão-aviador e sua boa aparência fizessem com que alguém se importasse com ele oferecendo-lhe uma carona.
Enquanto fazia a penosa caminhada, a capa impermeável num braço e carregando a maleta na outra mão, ele tinha uma sensação vazia e desesperançada. Àquela altura, Hattie devia ter chegado ao seu condomínio, checando suas mensagens, tentando contato com sua família. Se ele estava certo de que Irene e Ray Jr. tinham desaparecido, onde estariam quando isso aconteceu? Encontraria alguma evidência de que tinham sumido, em vez de encontrarem a morte em algum acidente relacionado com os desaparecimentos?
Rayford calculava que os desaparecimentos teriam ocorrido à noite, talvez por volta de 11 horas, no fuso horário da área central do país. Será que qualquer coisa os tirou de casa àquela hora da noite? Ele não poderia imaginar o que teria acontecido e tinha dúvida quanto a isso.
Uma mulher de uns 40 anos parou para dar uma carona a Rayford na estrada de Algonquin. Quando ele agradeceu-lhe e disse onde morava, ela afirmou que conhecia o bairro.
- Uma amiga minha mora lá. Melhor, morava. Conhece Li Ng, a garota asiática do noticiário do Canal 71
- Conheço ambos, ela e o marido - disse Rayford. - Eles moram em nossa rua.
- Não mais. O noticiário de meio-dia de hoje foi dedicado a ela. A família inteira sumiu.
Rayford deu um forte suspiro de desabafo.
- Isto é inacreditável. A senhora perdeu alguém? :
- Infelizmente, sim - respondeu ela com a voz embargada. -Cerca de uma dúzia de sobrinhas e sobrinhos.
-Uau!
- E o senhor?
- Ainda não sei. Acabo de chegar de um vôo e não consegui localizar ninguém.
- Quer que eu o espere?
- Não. Tenho um carro. Se eu precisar ir a algum lugar, não tenho problema.
- O'Hare está fechado, o senhor sabe - disse ela.
- É verdade? Desde quando?
- Eles acabam de avisar pelo rádio. As pistas estão lotadas de aviões, os terminais cheios de gente, as estradas abarrotadas de carros.
Enquanto a mulher entrava em Monte Prospect, choramingando, Rayford sentiu um esgotamento como nunca havia tido antes. As poucas casas da quadra tinham as entradas repletas de carros, e pessoas se ajuntavam em grupos. Parecia que todo mundo, em toda parte, tinha perdido alguém. Ele sabia que logo seria mais um entre eles.
- Posso servi-la em alguma coisa? - disse ele à mulher, enquanto ela entrava com o carro na rampa de sua casa.
Ela meneou a cabeça.
- Estou apenas contente de ter podido ajudar. Ore por mim, se lembrar. Não sei se vou suportar esta situação.
- Não sou muito chegado à oração - admitiu Rayford.
- O senhor vai ser - disse ela. - Eu também nunca fui, mas agora sou.
- Então a senhora pode orar por mim - disse ele.
- Vou orar. Esteja certo disso.
Rayford ficou em pé na entrada da casa e acenou para a mulher até perdê-la de vista. O jardim e os corredores externos estavam impecáveis, como sempre, e a enorme casa, sua casa-troféu, estava sepulcral. Ele abriu a porta da frente. O jornal no patamar, as cortinas cerradas na janela panorâmica e o cheiro forte de café queimado que ele sentiu indicavam o que ele temia.
Irene era uma dona-de-casa metódica. Sua rotina matutina incluía a cafeteira cronometrada para as seis horas, coando sua mistura especial de café descafeinado com um ovo. O rádio estava programado para despertá-la às seis e meia, sintonizado na estação cristã local. A primeira coisa que Irene fazia quando descia a escada era abrir as cortinas da frente e de trás.
Com um nó na garganta, Rayford atirou o jornal na cozinha e tratou de acomodar suas coisas. Pendurou a capa e colocou a maleta no cubículo. Lembrou-se de pegar o pacotinho que Irene havia enviado ao O'Hare para ele e colocou-o no bolso largo de seu uniforme, carregando-o consigo enquanto procurava por evidência de que ela havia desaparecido. Se isso fosse verdade, ele sinceramente esperava que estivesse certa. Ele queria, acima de qualquer coisa, que ela visse seu sonho realizado, que tivesse sido levada por Jesus num piscar de olhos - uma jornada empolgante e indolor para o seu cantinho no céu, como ela sempre gostava de dizer. Irene merecia isto.
E Raymie. Onde estaria? Com ela? Certamente. Ele ia com a mãe à igreja, mesmo quando Rayford não a acompanhava. Parecia gostar daquilo, de pertencer à comunidade. Lia sua Bíblia e a estudava.
Rayford puxou o fio da tomada da cafeteira que tinha se desligado e ligado automaticamente durante 7 horas, queimando o café. Jogou fora aquela massa meio empedrada e deixou a cafeteira na pia. Desligou o rádio, que estava sintonizado na estação cristã transmitindo notícias em cadeia, num tom enfadonho, sobre a tragédia e a destruição resultante dos desaparecimentos.
Ele deu uma olhada na sala de estar, na sala de jantar e na cozinha, na expectativa de ver a costumeira limpeza do lar de Irene. Seus olhos encheram-se de lágrimas; abriu as cortinas, como ela teria feito. Seria possível que ela tivesse ido a algum lugar? Visitado alguém? Deixado um recado para ele? Mas, se ela estivesse em algum lugar e ele a encontrasse, o que dizer da fé que ela professava? Seria uma prova de que este não era o Arrebatamento em que ela acreditava? Ou significaria que ela estava perdida tanto quanto ele? Se houve realmente o Arrebatamento, ele esperava que Irene tivesse sido levada, para o bem dela. Mas a dor e o vazio já o estavam dominando completamente.
Rayford ligou a secretária eletrônica e ouviu as mesmas mensagens que tinha ouvido do O'Hare, mais a mensagem que ele mesmo tinha deixado. Sua própria voz pareceu-lhe estranha. Ele detectou nela um tom fatalista, como se soubesse que sua esposa e filho não a receberiam.
Ele estava com medo de subir a escada para os dormitórios. Inspecionou todo o pavimento inferior da casa até a saída da garagem. Se pelo menos um dos carros estivesse faltando... E um estava! Quem sabe ela teria ido a algum lugar! Mas tão logo pensou nisso, Rayford desceu o degrau para a garagem e notou de perto que era o seu BMW que estava faltando. Aquele que ele levou ao O'Hare no dia anterior. O carro estava esperando por ele quando o tráfego voltasse ao normal.
Os outros dois carros se encontravam lá, o de Irene e o que Chloe usava quando estava em casa. E todas as lembranças de Raymie também estavam lá. Seu carrinho de quatro rodas, seu trenó para deslizar na neve, sua bicicleta. Rayford teve ódio de si mesmo por haver quebrado sua promessa de passar mais tempo com Raymie. Ele teria muito tempo ainda para lamentar isso.
Rayford deu uns passos e ouviu o ruído do pequeno pacote em seu bolso. Era hora de subir as escadas.
Estava quase chegando a vez de Buck Williams ser atendido no balcão do Clube Pan-Continental quando ele encontrou a matéria que estava procurando em seu gravador. A certa altura, durante os vários dias de gravação, Buck inquiriu o Dr. Rosenzweig acerca dos vários países que tentavam assediá-lo na esperança de ter acesso à sua fórmula e tirar proveito dela.
- Este tem sido um aspecto interessante - afirmou Rosenzweig com os olhos brilhando. - Fiquei muito lisonjeado com a visita do próprio vice-presidente dos Estados Unidos.
Ele quis homenagear-me, levar-me ao presidente, fazer-me alvo de um desfile, conferir-me uma comenda, tudo isso. Diplomaticamente, ele nada falou sobre receber em troca qualquer coisa, mas eu teria uma dívida para com ele, não é verdade? Muito foi dito sobre o que, como país amigo de Israel, os Estados Unidos têm feito durante décadas. E isso é verdade, não é? Como poderia eu contestar? Rosenzweig continuou:
- Mas eu procurava ver os prêmios e amabilidades como sendo todos para meu benefício e, humildemente, os recusava. Como você vê, jovem, sou muito humilde, não sou?
Rosenzweig riu ruidosamente de si mesmo e contou várias outras histórias de dignitários que procuraram agradá-lo.
- Foram todos sinceros? - Buck perguntou. - Algum o impressionou?
- Sim! - disse Rosenzweig sem hesitação. - Vindo do mais desconcertante e surpreendente canto do mundo - Romênia. Não sei se ele foi enviado ou veio por conta própria, mas suspeito que foi a segunda hipótese, porque era o oficial de menor graduação que me visitou após eu ter recebido o prêmio. Esta é uma das razões por que quis vê-lo. Ele mesmo pediu a audiência. Não procurou os canais tipicamente políticos ou protocolares.
- E ele era...?
- Nicolae Carpathia.
- Carpathia como os...?
- Sim, como os montes cárpatos. Um nome melodioso, você deve admitir. Achei-o fascinante e humilde. Semelhante a mim!
De novo, ele deu uma gargalhada.
- Não ouvi falar dele.
- Você ouvirá! Você ouvirá.
- Porque ele é... - disse Buck tentando conduzir a conversa.
- Carismático, impressivo, é tudo o que posso dizer.
- E ele é algum tipo de diplomata em fase de ascensão a esta altura?
- Ele é um dos componentes da assembléia do governo romeno.
- No senado?
- Não, o senado está acima da assembléia.
- Certamente.
- Não se sinta mal por não saber estas coisas, embora seja um jornalista internacional. Isto é algo que somente os romenos e os cientistas políticos amadores como eu sabem. É o que gosto de estudar.
- Em suas horas de descanso.
- Precisamente. Mas eu não conhecia esse homem. Quero dizer, conheci um da Câmara dos Deputados - é como eles chamam a assembléia na Romênia - que era um pacificador e liderava um movimento em prol do desarmamento.
Mas eu não sabia seu nome. Creio que sua meta é o desarmamento global, do qual nós, israelenses, suspeitamos. Mas naturalmente ele deve primeiro efetuar o desarmamento em seu próprio país, o que nem mesmo você verá até o fim de sua vida. Esse homem, por acaso, é mais ou menos da sua idade. Loiro e de olhos azuis, como os romenos originais, que vieram de Roma, antes que os mongóis se mesclassem com sua raça.
- O que o senhor mais apreciou nele?
- Vou contar-lhe - disse Rosenzweig. - Ele conhece minha língua tão bem como a sua própria. E fala um inglês fluente. Vários outros idiomas também, é o que dizem. Bem-instruído, mas também amplamente autodidata. Sinceramente, gosto dele como pessoa. Muito brilhante. Muito honesto. Muito aberto.
- O que ele queria do senhor?
- Isto foi o que mais me agradou. Por tê-lo achado tão aberto e honesto, fiz-lhe esta pergunta. Ele insistiu que o chamasse de Nicolae, e então eu disse "Nicolae" (isto depois de uma hora de amabilidades recíprocas), "o que você deseja de mim?" Você sabe o que ele me disse, jovem? "Dr. Rosenzweig, busco apenas sua benevolência." Que podia eu dizer? Respondi-lhe: "Nicolae, você a tem." Sou pessoalmente um pouco pacifista, você sabe. Não irrealisticamente. Eu não mencionei isto a ele. Disse-lhe simplesmente que podia contar com minha benevolência, algo que estendo também a você.
- Suponho que não é uma coisa que o senhor concede facilmente.
- Porque o aprecio é que você tem minha benevolência. Um dia você deverá conhecer Carpathia. Vocês se apreciarão mutuamente. As metas e sonhos dele jamais poderão ser concretizados, mesmo em seu país, mas ele é um homem de altos ideais. Se ele se destacar, você ouvirá falar dele.
E como você está se destacando em sua própria esfera, ele provavelmente ouvirá falar de você ou o ouvirá, estou certo?
- Espero que sim.
De repente, chegou a vez de Buck ser atendido no balcão. Ele recolheu o fio de extensão e agradeceu à jovem senhora por agüentá-lo.
- Queira desculpar-me por isso - disse ele, esperando pelo perdão que não aconteceu. - O dia de hoje foi terrível, o pior de todos, a senhora deve compreender.
Aparentemente, ela não compreendeu. Tinha tido também um dia agitado. Ela o fitou tolerantemente e perguntou:
- O que não posso fazer por você?
- Oh! a senhora diz isso porque não fiz o que me pediu?
- Não - respondeu ela. - Estou fazendo à mesma pergunta a todos. É uma pequena brincadeira, porque, na realidade, não posso fazer nada por ninguém. Não há vôos programados para hoje. O aeroporto fechará a qualquer momento. Quem sabe dizer quanto tempo levará para acabar toda esta confusão e conseguir algum jeito de fazer o tráfego se restabelecer? Posso apenas anotar seu pedido, mas não posso receber sua bagagem, vender passagem, reservar lugar, permitir uso de telefone, reservar apartamento em hotel, enfim todas as coisas que adoramos fazer para nossos sócios. Você é sócio, não é?
- Sou sócio!
- Ouro ou platina?
- Senhora, sou... digamos... um sócio criptônio [um gás nobre da atmosfera].
Ele exibiu seu cartão, indicando que estava entre os 3 % de viajantes do mundo que mais usavam avião. Se qualquer vôo tivesse um lugar desde a classe mais econômica até a primeira classe, tinha de ser dado a ele, sem nenhuma despesa.
- Oh! Meu Deus - disse ela -, não me diga que você é o Cameron Williams daquela revista.
-Sou.
- Time? Não é isso?
- Não brinque. Não trabalho para o concorrente.
- Oh! Eu sabia. Sabia por que eu queria ingressar no jornalismo. Fiz faculdade de jornalismo. Ouvi falar de você. O mais jovem vencedor do prêmio ou o que apresentou mais reportagens de capa com menos de 12 anos de profissão?
- Foi divertido.
- Ou coisa parecida.
- Não posso acreditar que estamos brincando num dia como este - disse Buck.
De repente, a fisionomia dela assumiu um ar sério.
- Não quero nem pensar nisso. Então, o que posso fazer por você, se é que posso fazer alguma coisa?
- O negócio é o seguinte - disse Buck. - Tenho de chegar a Nova York. Por favor, não me olhe desse jeito. Sei que é o pior lugar aonde se pode ir neste momento. Mas a senhora conhece muitas pessoas. A senhora conhece pilotos que fazem vôos fretados. Sabe de que aeroportos eles decolam. Digamos que eu tenha recursos ilimitados e condições de pagar qualquer preço para o que eu preciso. Quem a senhora me indicaria? Ela olhou firme e pensativa para ele.
- Não posso acreditar que você tenha me pedido isso.
- Por quê?
- Porque conheço alguém. Ele voa com esses pequenos jatos partindo de lugares como os aeroportos Waukegan e Palwaukee. Ele é do tipo que cobra o dobro numa emergência, especialmente se souber quem você é e o tamanho do seu desespero.
- Não vou esconder nada dele. Dê-me a informação.
Ouvir o rádio ou ver a televisão era uma coisa. Encontrar-se diante do fato era outra bem diferente. Rayford Steele não tinha a menor idéia de como se sentiria se encontrasse algo que evidenciasse que sua esposa e seu filho tinham desaparecido da face da terra.
No alto da escada, na saleta que dá acesso aos quartos, ele parou junto às fotos penduradas. Irene, sempre seguindo a ordem cronológica, tinha pendurado os quadros começando pelos bisavós dele e dela. Antigos retratos em preto e branco, já um tanto descorados e trincados pelo tempo, de homens ossudos e mulheres do meio-oeste. Vinham em seguida as fotos coloridas já um pouco esmaecidas de seus avós em suas bodas de ouro. Depois seus pais, irmãos e eles mesmos. Quanto tempo passara desde que ele olhou detidamente a foto de seu casamento: ela usando um estilo de cabelo moderno na época, e ele com o cabelo cobrindo as orelhas e costeletas longas?
E aquelas fotografias de Chloe com oito anos segurando nos braços o irmãozinho bebê! Como era confortador saber que Chloe estava viva e que a qualquer momento ele teria um contato com ela! Mas o que dizer dos outros dois? Eles desapareceram. Rayford não sabia o que esperar e pelo que orar. Imaginar que Irene e Raymie ainda estivessem aqui e que aquilo que ele via não passava de um sonho?
Ele não podia esperar mais. A porta do quarto de Raymie estava um pouquinho aberta. Seu despertador estava tocando. Rayford o desligou. Sobre a cama, estava um livro que Raymie vinha lendo. Rayford, vagarosa e nervosamente, levantou os cobertores e encontrou o pijama de Raymie com o símbolo do Bulls no peito - seu time favorito de basquete - a cueca e as meias. Ele sentou-se na cama e chorou, lembrando que Irene insistia em que Raymie calçasse meias ao deitar.
Rayford colocou as roupas numa pilha bem-arrumada e observou uma fotografia dele mesmo no criado-mudo. Na foto, Rayford aparecia sorridente dentro do terminal do aeroporto, o quepe embaixo do braço, e ao fundo um 747 do outro lado da parede envidraçada. A foto estava assinada: "Ao Raymie, com amor, papai." Embaixo desta dedicatória, ele escreveu "Rayford Steele, capitão-aviador, Linhas Aéreas Pan-Continental, O'Hare." Ele meneou a cabeça. Que tipo de pai autografa uma foto para seu filho?
O corpo de Rayford parecia de chumbo. Ele teve de se esforçar para ficar em pé. Em seguida, teve uma tontura, lembrando-se de que não tinha comido nada havia muitas horas. Ele saiu devagar do quarto de Raymie, sem olhar para trás, e fechou a porta.
No fim da saleta, ele parou diante da porta com painéis em relevo que dava acesso ao quarto do casal. Que lugar bonito e bem-ornamentado Irene fez, com que gosto ela decorava todos os cantos da casa! Tinha ele alguma vez dito a ela que apreciava isso? Tinha ele alguma vez apreciado isso?
Não havia nenhum despertador a desligar ali. O cheiro de café é que sempre acordava Irene. Outra fotografia de ambos, ele olhando confiantemente para a câmera, ela olhando para ele. Ele não a merecia. Ele merecia isto, reconheceu - ser escarnecido por seu egocentrismo e despojado da pessoa mais importante de sua vida.
Rayford aproximou-se da cama, sabendo o que ia encontrar. O travesseiro afundado no lugar da cabeça, os cobertores enrugados. Ele podia sentir o cheiro dela, embora soubesse que a cama devia estar fria. Puxou cuidadosamente os cobertores e lençóis e encontrou o medalhão de Irene, que tinha uma foto dele. Sua camisola de flanela, aquela que ele criticava brincando e que ela usava somente quando ele não estava em casa, o que evidenciava sua partida.
Com um nó na garganta, os olhos absortos, ele notou sua aliança perto do travesseiro, onde ela sempre apoiava a face com a mão. Era demasiado para suportar, e ele sucumbiu. Pegou a aliança e a colocou na palma da mão, sentando-se na beirada da cama, o corpo torturado pela fadiga e pela dor. Pôs a aliança no bolso de sua jaqueta e percebeu o pequeno pacote que ela havia mandado pelo correio. Abrindo-o, encontrou dois de seus doces favoritos feitos em casa encimados por um coração de chocolate.
Que encanto de mulher! Pensou ele. Nunca a mereci, nunca a amei o suficiente! Ele pôs os doces em cima do criado-mudo; o cheiro familiar deles enchia o ar. Com os dedos enrijecidos, tirou suas roupas e deixou-as cair ao chão. Deitou-se de bruços na cama, apanhou a camisola de Irene entre os braços para poder cheirá-la e imaginá-la a seu lado.
E Rayford chorou até adormecer.
CINCO
BUCK Williams entrou numa das cabinas do lavatório dos homens no Clube Pan-Continental para fazer uma verificação minuciosa de seus pertences. Dentro de um bolso interno de sua calça rancheira, ele carregava milhares de dólares em cheques de viagem resgatáveis em dólares, marcos ou ienes. Sua única maleta de couro continha duas mudas de roupas, seu laptop, telefone celular, gravador de fitas, acessórios, estojo de toalete, além de algumas peças de roupa para o inverno.
Ele estava equipado para passar dez dias na Grã-Bretanha quando deixou Nova York três dias antes dos desaparecimentos apocalípticos. Era seu costume nessas viagens intercontinentais cuidar de sua roupa, lavando-a numa pia de hotel, deixando-a secar o dia todo, enquanto usava outro conjunto do vestuário, tendo ainda um de reserva. Deste modo, ele nunca ficava sobrecarregado com muita bagagem.
Buck havia desviado seu trajeto fazendo uma parada em Chicago especificamente para resolver uma pendência com a chefe da sucursal do Semanário Global de lá, uma mulher negra de seus 50 anos chamada Lucinda Washington.
Ele teve um desentendimento com ela por ter passado por cima de sua equipe com um furo de reportagem sobre uma matéria que estava debaixo do nariz de todos. Um ás legendário da equipe dos Bears encontrara um número suficiente de sócios para ajudá-lo a comprar um time de futebol profissional. Buck farejou o assunto, foi atrás, localizou o homem, fez a reportagem e publicou-a.
- Admiro você, Cameron - tinha dito Lucinda Washington, recusando-se intencionalmente a usar seu apelido. - Mas o mínimo que você devia ter feito era me pôr a par disso.
- E deixar que você escalasse alguém que deveria ter tomado a iniciativa?
- O esporte nem mesmo é da sua pauta de matérias, Cameron. Depois de descobrir o "Fazedor da Notícia do Ano" e fazer a cobertura da derrota da Rússia por Israel, como o próprio Deus diria, como pode você ter interesse em ninharia como esta? Vocês, do tipo almofadinha, só costumam gostar de hóquei e rúgbi.
- Isto era mais do que uma reportagem sobre esporte, Lucy, e...
- EU...
- Desculpe-me, Lucinda. E esse não é um linguajar por demais surrado? Rúgbi e hóquei?
Eles gargalharam ao mesmo tempo.
- Não estou nem mesmo dizendo que você deveria avisar-me que está na cidade - continuou ela. - Tudo o que peço é que ao menos me informe antes de publicar a matéria no Semanário. Meu pessoal e eu ficamos muito constrangidos em ser passados para trás desse modo, especialmente pelo famoso Cameron Williams, mas para que isso seja...
- É por isso que você está zangada comigo? Lucinda soltou uma gargalhada outra vez.
- Foi por isso que disse ao Plank que precisava de uma conversa frente a frente para continuarmos amigos.
- E o que fez você pensar que eu me preocuparia com isso?
- Porque você me ama - disse Lucinda. - Você não pode esconder isto.
Buck sorriu, e Lucinda acrescentou:
- Mas, Cameron, se eu pegá-lo nesta cidade outra vez, em meu setor, sem previamente avisar-me, vou lhe dar umas boas palmadas.
- Bem, ouça, Lucinda. Deixe-me dar-lhe uma pista que não vou ter tempo de desenvolver. Fiquei sabendo que o direito de compra do time acabou indo por água abaixo. O dinheiro estava curto, e a liga rejeitará a oferta. O glorioso time de sua cidade vai se complicar.
Lucinda começou a rabiscar algo furiosamente.
- Você não está falando sério - disse-lhe ela, tirando o fone do gancho.
- Não, não estou, mas será muito divertido ver você entrar em ação correndo como barata tonta.
- Seu desprezível - berrou ela. - Outro qualquer que me dissesse isso seria jogado daqui pra fora aos pontapés.
- Mas você me ama. Você não faria isso.
- Esta não é uma atitude cristã - retrucou ela.
- Não me venha com essa conversa de novo.
- Vamos lá, Cameron. Você sabe que mudou de idéia quando viu o que Deus fez em Israel.
- Admito, mas não comece a me chamar de cristão. Deísta é o máximo que posso ser.
- Fique na cidade uns dias mais e venha comigo à minha igreja, e Deus vai convencê-lo.
- Ele já me influenciou, Lucinda. Mas Jesus é outra coisa. Os israelitas odeiam Jesus, mas reconhecem o que Deus fez por eles.
- O Senhor trabalha de...
- ...forma misteriosa, sim, eu sei. A propósito, viajo para Londres segunda-feira. Vou trabalhar numa dica quente fornecida por um amigo de lá.
- O que é?
- Esqueça. Ainda não nos conhecemos muito bem. Ela riu ruidosamente, e se separaram com um abraço amigável. Isto tinha se passado três dias antes.
Buck tinha embarcado no infortunado vôo para Londres preparado para qualquer coisa. Ele estava atrás de uma dica de um ex-colega de classe em Princeton, um galés que tinha passado um tempo trabalhando no centro financeiro de Londres desde sua graduação. Dirk Burton tinha sido uma fonte confiável no passado, alertando-o a respeito de encontros secretos de financistas internacionais de alto nível. Durante anos, Buck havia se deleitado um pouco com a tendência de Dirk entreter-se com teorias conspirativas.
- Deixe-me entender isso direito - Buck tinha perguntado a ele uma vez -, você acha que esses caras são de fato os líderes mundiais?
- Eu não iria tão longe, Cameron - respondeu-lhe Dirk. -Tudo o que sei é que eles são importantes, pertencem ao setor privado, e depois que se reúnem acontecem grandes negócios.
- Você acha que eles elegem os líderes mundiais, escolhem a dedo os ditadores, esse tipo de coisa?
- Não pertenço ao rol do clube dos conspiradores, se é isso que você quer dizer.
- Então de onde você tirou essa idéia, Dirk? Vamos lá, você é um cara relativamente experiente. Corretores poderosos estão por trás das cenas? Investidores e agitadores são os que controlam o dinheiro?
- Tudo o que sei é que a Bolsa de Londres, a Bolsa de Tóquio, a Bolsa de Nova York - todos nós basicamente navegamos em águas calmas até que esses caras se reúnam. Aí então as coisas acontecem.
- Você quer dizer que, quando os índices da Bolsa de Valores de Nova York oscilam forte e repentinamente por causa de uma decisão presidencial ou algum voto do Congresso, isso se deve na verdade ao seu grupo secreto?
- Não, mas este é um exemplo perfeito. Se há uma oscilação no mercado por causa da saúde do presidente, imagine o que acontece nos mercados mundiais quando o verdadeiro grupo do dinheiro se reúne.
- Mas como o mercado sabe que eles vão se reunir? Pensei que você era o único que sabia.
- Cameron, falemos sério. Muitas pessoas não concordam comigo, e por isso simplesmente não digo nada a ninguém. Um dos nossos grandalhões faz parte desse grupo. Quando eles têm um encontro, nada acontece imediatamente. Mas alguns dias depois, uma semana, as mudanças ocorrem.
- Por exemplo?
- Você vai me chamar de louco, mas um amigo meu se relaciona com uma garota que trabalha para a secretária do cara desse grupo, e...
- Epa! Pare! Aonde você quer chegar?
- Bem, talvez a conexão seja um pouco remota, mas você sabe que a secretária do cara não vai dizer nada. De qualquer modo, o boato que corre é que esse cara é ardoroso defensor da moeda única para o mundo inteiro. Você sabe que a metade do nosso tempo é gasto em manipular taxas de câmbio e tudo mais. Os computadores estão ligados ininterruptamente para reajustar as taxas, dia e noite, o ano inteiro, com base nos caprichos dos mercados.
Buck não estava convencido.
- Uma moeda global? Nunca vai acontecer - conjeturou.
- Como você pode dizer isso categoricamente?
- Muito estranho. Impraticável. Veja o que aconteceu nos Estados Unidos quando tentaram introduzir o sistema métrico.
- Devia ter acontecido. Vocês ianques são uns jecas.
- O sistema métrico era necessário somente para o comércio internacional. Não para medir a área externa do Yankee Stadium ou quantos quilômetros há entre Indianápolis e Atlanta.
- Eu sei, Cameron. Seu povo pensava que, se vocês fizessem mapas e marcos de distância fáceis de ler, estariam abrindo caminho para os comunistas dominarem. E agora onde estão os seus comunistas?
Buck não levou a sério a maioria das idéias de Dirk Burton, senão poucos anos depois, quando Dirk o chamou no meio da noite.
- Cameron - disse ele, não se lembrando do apelido dado por seus colegas e amigos -, não posso falar muito. Você pode ir atrás do que vou dizer-lhe ou esperar que aconteça e arrepender-se mais tarde de não ter aproveitado a matéria para fazer uma reportagem. Mas você está lembrado daquele negócio que eu estava dizendo sobre uma moeda universal?
- Sim. Ainda estou em dúvida.
- Ótimo, mas estou lhe dizendo que a notícia que corre aqui é que o cara jogou a idéia na mesa na última reunião desses financistas secretos e alguma coisa está fermentando.
- O que está fermentando?
- Bem, haverá uma importante Conferência Monetária das Nações Unidas, e o tema será a adequação e aprimoramento da moeda.
- Grande negociata.
- É grande, Cameron. O cara conseguiu bater o martelo. Ele, naturalmente, estava tentando fazer com que a moeda fosse à libra esterlina.
- Que surpresa haverá quando isso não acontecer. Olhe para a economia de seu país.
- Mas ouça. A grande notícia, vazada de uma reunião secreta, é que eles concordaram com três moedas para o mundo todo, esperando chegar a uma única dentro de uma década.
- De modo algum. Não vai acontecer.
- Cameron, se minha informação é correta, o estágio inicial é um acordo selado. A conferência das Nações Unidas servirá apenas como uma fachada.
- E a decisão já foi tomada por seus manipuladores de fantoches secretos.
- É isso mesmo.
- Não sei, Dirk. Você é um amigo, mas deveria estar fazendo o que eu faço.
- Quem não faria?
- Bem, é verdade. Certamente eu não queria fazer o que você está fazendo.
- Mas não estou errado, Cameron. Teste minha informação.
- Como?
- Minha previsão é que a ONU vai se manifestar dentro de duas semanas, e, se eu estiver certo, comece a me tratar com um pouco de deferência, um pouco de respeito.
Buck lembrou-se de que ele e Dirk, como os demais colegas, andavam se esmurrando em Princeton durante a pizza e cerveja nos fins de semana nos dormitórios.
- Dirk, ouça. Isso parece interessante, e estou prestando atenção. Mas você sabe muito bem, não sabe? Brincadeira à parte, eu não desmereceria nem um tiquinho você, mesmo que estivéssemos há muito tempo afastados.
- Obrigado, Cameron. Realmente isto significa muito para mim. E, afora este pequeno petisco, vou lhe dar uma dica extra. Não vou apenas dizer que a resolução da ONU vai ser pelo dólar, marco e iene dentro de cinco anos, mas também vou dizer que o verdadeiro poder por trás disso é o do americano.
- O que você quer dizer com isso?
- O mais poderoso dos grupos internacionais secretos de homens do dinheiro.
- Este cara dirige o grupo, em outras palavras?
- É ele quem descartou a libra esterlina como uma das moedas e tem o dólar em mente como mercadoria única no final.
- Quem é ele?
- Jonathan Stonagal.
Buck estava esperando que Dirk citasse alguém ridículo, para que explodisse em gargalhada. Mas teve de admitir, ainda
que somente para si mesmo, que, se havia alguma coisa a respeito deste assunto, Stonagal seria uma escolha lógica. Stonagal, um dos homens mais ricos do mundo e de longa data muito conhecido como um poderoso corretor americano, tinha de estar envolvido, se um tema financeiro global sério estivesse em discussão. Embora já tivesse mais de 80 anos e aparentasse fragilidade em suas últimas fotos, ele não somente possuía os maiores bancos e instituições financeiras dos Estados Unidos, mas também possuía ou tinha grande participação em outras instituições financeiras espalhadas pelo mundo.
Embora Dirk fosse um amigo, Buck sentia a necessidade de manter com ele um pouco de jogo do faz-de-conta, para torná-lo ávido de prover informações.
- Dirk, preciso voltar para a cama. Gostei de tudo isto e achei muito interessante. Vou ver o que resultará desse acordo da ONU. Tentarei também acompanhar os passos de Jonathan Stonagal. Se acontecer do modo que você imagina, você será meu melhor informante. Enquanto isso, veja se descobre para mim quantos fazem parte desse grupo secreto e onde se reúnem.
- Isto é fácil - disse Dirk. - Há pelo menos dez, embora outros mais às vezes compareçam às reuniões, inclusive alguns chefes de Estado.
- Presidentes dos Estados Unidos?
- Ocasionalmente, acredite ou não. E eles costumeiramente se reúnem na França. Não sei por quê. Numa espécie de chalé particular ou coisa parecida que dá a eles uma sensação de segurança.
- Seu amigo não perde nenhuma notícia, seja ela procedente de um amigo, de um parente, de um subordinado de secretária ou de qualquer outra pessoa.
- Ria quanto quiser, Cameron. Nosso cara no grupo, Joshua Todd-Cothran, pode não ser precisamente tão reservado como os demais.
- Todd-Cothran? Ele não é o presidente da Bolsa de Londres?
- Ele mesmo.
- Não ser reservado? Como pode ele ter uma tamanha posição e não ser reservado? E mais, quem já ouviu falar de um britânico que não fosse reservado?
- Acontece.
- Boa-noite, Dirk.
Naturalmente, tudo acabou se confirmando. A ONU tomou sua resolução. Buck descobriu que Jonathan Stonagal esteve hospedado no Hotel Plaza, em Nova York, durante os dez dias da conferência. O Sr. Todd-Cothran, de Londres, tinha sido um dos oradores mais eloqüentes, demonstrando tal ansiedade de ver a questão resolvida que se dispôs a passar a tocha ao primeiro-ministro com vistas à mudança da libra para o marco.
Muitos países do Terceiro Mundo lutaram contra a mudança, mas em poucos anos as três moedas espalharam-se pelo mundo. Buck tinha conversado somente com Steve Plank sobre esta dica das reuniões da ONU, mas não disse qual foi a fonte da informação. Nem ele nem Plank sentiram que valesse a pena um artigo especulativo sobre o assunto.
- Muito arriscado - dissera Steve. Logo ambos desejaram que tivessem tomado a iniciativa de publicar a matéria com antecedência. - Você teria se tornado mais do que uma lenda, Buck.
Dirk e Buck tinham ficado mais amigos do que nunca, e agora era raro Buck visitar Londres sem avisá-lo com antecedência. Se Dirk tivesse um fato sério, Buck pegava sua maleta e viajava. Suas viagens tinham geralmente se transformado em excursões a países e climas que o surpreendiam, por isso tinha de levar roupas adequadas a várias estações. Agora, parecia, isso tudo era supérfluo. Ele se sentia preso em Chicago depois do mais desnorteante fenômeno na história mundial, tentando
chegar a Nova York.
Apesar da incrível praticidade e potencialidade de seu laptop, não havia ainda substituto para a sua agenda de bolso. Buck rabiscou uma lista de coisas a fazer antes de viajar outra vez:
Chamar Ken Ritos, piloto freteiro
Chamar papai e Jeff
Chamar Hattie Durham para dar notícias da família
Chamar Lucinda Washington sobre hotel local
Chamar Dirk Burton
Rayford Steele acordou com o som do telefone. Ele tinha ficado imóvel várias horas. Era um fim de tarde, e o céu estava começando a escurecer.
- Alô - disse ele, não conseguindo disfarçar o tom rouquenho e sonolento da voz.
- Capitão Steele? - Era a voz ansiosa e nervosa de Hattie Durham.
- Sim, Hattie. Você está bem?
- Estive tentando contatá-lo durante horas! Meu telefone ficou mudo por muito tempo e, depois, só deu sinal de ocupado. Consegui chamar seu telefone e ouvia o sinal dos toques, mas você nunca respondia. Nada soube de minha mãe e minhas irmãs. E quanto a você?
Rayford sentou-se na cama, atordoado e desorientado.
- Recebi um recado de Chloe - respondeu ele.
- Eu já sabia - disse Hattie. - Você me contou em O'Hare. Sua esposa e seu filho estão bem?
-Não.
- Não?
Rayford ficou em silêncio. Que outra coisa havia para dizer?
- Você tem certeza de alguma coisa? - perguntou ela.
- Acho que sim - respondeu. - Suas roupas de dormir estão aqui.
- Oh! não! Rayford, sinto muito! Posso fazer alguma coisa por você?
- Não, obrigado.
- Você precisa de companhia?
- Não, obrigado.
- Estou com muito medo.
- Eu também, Hattie.
- O que você vai fazer?
- Continuar tentando localizar Chloe. Espero que ela possa vir para casa ou eu possa ir até ela.
- Onde ela está?
- Stanford. Paio Alto.
- Minha gente está na Califórnia também - disse Hattie. -Eles tiveram todo tipo de problemas lá, até pior do que aqui.
- Imagino que sim, por causa da diferença de horário -Rayford respondeu. - Mais pessoas nas estradas, este tipo de coisa.
-\Estou morrendo de medo de que tenha acontecido alguma coisa ruim com minha família.
- Dê-me notícia quando descobrir, Hattie, certo?
- Sim, mas espero que você me ligue. Meu telefone está mudo, por isso não poderei contatá-lo.
- Quero dizer a você que tentei chamá-la, Hattie, mas não pude. Isto é muito difícil para mim.
- Se precisar de mim, avise-me, Rayford. Talvez você precise de alguém com quem falar ou que esteja a seu lado.
- Farei isso. E você me informe o que souber de sua família. Ele quase desejou não ter acrescentado isto. A perda de sua esposa e filho o fez perceber quão inapropriada era a relação que ele tinha estado buscando com uma mulher de 27 anos. Ele mal a conhecia e, na verdade, não se importava com o que acontecera à família dela. A sensação era a mesma de ter lido no jornal a notícia de uma tragédia em algum lugar remoto. Ele sabia que Hattie não era má pessoa. Na realidade, ela era encantadora e amiga. Mas não era por isso que estava interessado nela. Tinha sido meramente uma atração física, alguma coisa em que ele foi suficientemente esperto, feliz ou ingênuo por não ter agido precipitadamente. Ele se sentia culpado por ter considerado tal possibilidade. Agora, sua angústia apagaria tudo, menos a cortesia de simplesmente se importar com uma colega de trabalho.
- Há um telefonema para mim - disse ela. - Pode esperar?
- Não, vá atender. Chamo você mais tarde.
- Vou ligar de volta, Rayford.
- Ah! Sim, está bem.
Buck Williams voltou para a fila e teve acesso a um telefone público. Desta vez, não estava tentando ligar seu computador a ele. Queria simplesmente saber quantas ligações pessoais podia fazer. Conseguiu primeiro ligar para Ken Ritz. A secretária eletrônica atendeu:
"Serviço de Frete Ritz. Este é o esquema em razão da crise: Tenho Learjets tanto em Palwaukee como em Waukegan, mas perdi meu outro piloto. Posso ir a qualquer aeroporto, mas neste momento não estão permitindo pousos em nenhuma das principais pistas. Não posso ir a Milwaukee, 0'Hare, Kennedy, Logan, National, Dulles, Dallas, Atlanta. Posso descer em alguns dos aeroportos menores mais afastados, mas isto precisa ser negociado. Desculpe-me por ser tão oportunista, mas estou pedindo US$ 1,25 por quilômetro, pagamento no ato. Se houver alguém que queira voltar no mesmo vôo, posso dar-lhe um pequeno desconto. Vou checar esta gravação à noite e amanhã cedo acertaremos o embarque. Interessa-nos fazer viagens mais longas com garantia de pagamento no ato. Se sua parada for no meio da viagem, tentarei encaixá-lo no vôo. Deixe-me uma mensagem, e eu retornarei."
Aquilo era uma piada. Como Ken Ritz iria localizar Buck? Sem poder contar com seu telefone celular, a única coisa em que ele poderia pensar era deixar seu número do voice mail de Nova York. "Sr. Ritz, meu nome é Buck Williams. Estou necessitado de chegar o mais perto possível da cidade de Nova York. Pagarei o preço da passagem informado com cheque de viagem, resgatável em qualquer moeda que deseje." Às vezes, este era um atrativo para contratantes particulares, porque eles tinham a possibilidade de beneficiar-se de uma diferença da moeda escolhida e poderiam, assim, conseguir um pequeno lucro no câmbio. "Estou em O'Hare e tentarei encontrar um lugar para ficar num dos bairros. Para poupar seu tempo, vou escolher algum lugar entre O'Hare e Waukegan. Se eu conseguir um novo número de telefone neste intervalo, lhe informarei. Enquanto isto, queira deixar uma mensagem para mim no seguinte número em Nova York."
Buck ainda estava impossibilitado de contatar seu escritório diretamente, mas seu número do voice mail funcionou. Ele tomou conhecimento de novas mensagens, a maioria delas de seus colegas de trabalho procurando obter informações sobre o ocorrido e informando a perda de amigos comuns. Havia também a mensagem de saudação de Marge Potter, que foi genial ao pensar em deixar uma para ele. "Buck, se você receber este recado, telefone para seu pai em Tucson. Ele e seu irmão estão juntos, e eu detesto ter de dizer isto a você, mas eles estão tendo dificuldade de localizar a esposa e os filhos de Jeff. Eles devem ter notícia quando você telefonar para lá. Seu pai ficou muito contente e agradecido quando informei que você estava bem."
O voice mail de Buck indicava também que ele tinha uma outra mensagem. Era aquela de Dirk Burton que, em primeiro lugar, incentivava sua viagem. Ele precisaria ouvi-la novamente quando tivesse tempo. Enquanto isso, deixou uma mensagem para Marge dizendo-lhe que, se tivesse tempo e uma linha disponível, era preciso informar a Dirk que o vôo dele nunca chegou a Heathrow. Naturalmente, a esta altura Dirk devia estar sabendo, mas era importante que ele fosse informado de que Buck não estava entre os desaparecidos e que estaria lá no devido tempo.
Buck desligou e, em seguida, telefonou para seu pai. A linha estava ocupada, mas não era o mesmo tipo de ruído indicador de queda de linhas ou de defeito em todo o sistema. Nem se tratava daquela enervante gravação que ele estava acostumado a ouvir. Ele sabia que era somente uma questão de tempo conseguir completar a ligação. Jeff devia estar desnorteado sem notícia de sua esposa, Sharon, e das crianças. Eles tiveram suas diferenças e chegaram até a se separar antes do nascimento dos filhos, mas por vários anos o casamento vinha sendo preservado. A esposa de Jeff tinha demonstrado espírito de perdão e conciliação. O próprio Jeff admitiu que ficou perplexo quando ela o aceitou de volta. "Chame-me de indigno, mas agradecido", disse ele uma vez a Buck. O filho e a filha do casal, ambos parecidos com Jeff, eram preciosos.
Buck localizou o número que a bela aeromoça loira lhe tinha dado e arrependeu-se de não ter procurado contatá-la antes. Demorou um pouco para ela atender.
- Hattie Durham, aqui fala Buck Williams.
- Quem?
- Cameron Williams, do Semanário...
- Oh! Sim! Alguma notícia?
- Sim, senhorita, boas notícias.
- Oh! Graças a Deus! Conte-me.
- Alguém do meu escritório me disse que encontraram sua mãe e que ela e suas irmãs estão ótimas.
- Oh! Obrigada, obrigada, muito obrigada! Não sei por que elas não me telefonaram. Talvez tenham tentado. Meu telefone enguiça a todo o momento.
- Há outros problemas na Califórnia, senhorita. As linhas caem freqüentemente. Talvez leve algum tempo para poder falar com elas.
- Eu sei. Ouvi dizer. Bem, fico muito grata por sua atenção. E você? Conseguiu contato com sua família?
- Soube que meu pai e meu irmão estão bem. Ainda não temos notícia de minha cunhada e seus filhos.
- Oh! Qual é a idade dos filhos?
- Não consigo me lembrar. Os dois têm menos de dez, mas não sei exatamente.
- Oh! - A voz de Hattie parecia triste, mas reservada.
- Por quê? - perguntou Buck.
- Por nada. É apenas que...
- O quê?
- Você não pode se basear no que eu vou dizer.
- Diga-me, Srta. Durham.
- Bem, você está lembrado do que lhe disse no avião. De acordo com as notícias, parece que todas as crianças desapareceram, inclusive as que estavam para nascer.
- Si... sim... sei.
- Não estou dizendo que os filhos de seu irmão estão...
- Eu sei.
- Lamento ter falado nisso.
- Não se preocupe. Isto é muito estranho, não lhe parece?
- Sim. Eu acabo de falar por telefone com o capitão que pilotou o avião em que você estava. Ele perdeu a esposa e o filho, mas sua filha está bem. Ela também está na Califórnia.
- Qual é a idade dela?
- Uns vinte, imagino. Ela está em Stanford. -Oh!
- Sr. Williams, por que nome é mais conhecido?
- Buck. É um apelido.
- Bem, Buck, posso estar errada quanto ao que eu disse a respeito de sua sobrinha e de seu sobrinho. Espero que haja exceções e que eles estejam bem.
Hattie começou a chorar.
- Srta. Durham, não se preocupe. Devemos admitir que ninguém está pensando direito neste momento.
- Pode me chamar de Hattie.
Isto lhe soou um tanto irônico diante das circunstâncias. Ela estava se desculpando por ter sido inconveniente e, por outro lado, não queria ser muito formal. Se ele era Buck, ela era Hattie.
- Acho que não devo ficar ocupando sua linha - disse ele. - Apenas queria passar-lhe as notícias. Pensei que talvez, a esta altura, já soubesse.
- Não, e obrigada mais uma vez. Você se importaria de me telefonar outra vez quando puder ou se lembrar? Você parece ser uma pessoa gentil, e estou muito grata pelo que fez por mim. Apreciaria ouvi-lo novamente. Este é um momento assustador e solitário.
Ele não podia tirar uma dedução dessa insinuação. Foi estranho. Seu pedido parecia qualquer coisa como "Venha me ver". Ela parecia absolutamente sincera, e ele estava acreditando. Uma mulher bonita, assustada, solitária, cujo mundo tinha sido abalado, tanto quanto o seu e dos que ele conhecia.
Quando desligou o telefone, Buck viu a jovem no balcão acenando para ele.
- Escute - disse ela em voz baixa -, eles não querem que eu faça uma comunicação pelo alto-falante, para evitar um corre-corre, mas acabamos de ouvir algo interessante. As empresas fretadoras de vôo se associaram e mudaram seu centro de comunicação para uma meia pista perto do cruzamento da estrada Mannheim.
- Onde é?
- Nos arredores do aeroporto. Não há tráfego para acesso aos terminais, por causa do congestionamento total. Mas, se você puder caminhar até o cruzamento, provavelmente encontrará todos aqueles caras com receptores portáteis tentando conseguir limusine ou microônibus chegando e saindo.
- Posso imaginar os preços.
- Não, provavelmente não pode.
- Posso imaginar o tempo de espera.
- O mesmo que ficar na fila para pegar um carro alugado em Orlando - disse ela.
Buck nunca tinha feito isso, mas também podia imaginar o que significava. E ela estava certa. Depois de pegar uma carona, com um grupo, até o cruzamento da Mannheim, ele encontrou uma porção de gente cercando os intermediadores. Avisos intermitentes chamavam a atenção de todos.
- Estamos lotando cada carro. Cem dólares por cabeça para qualquer subúrbio. Somente a vista. Nenhum deles está indo para Chicago.
- Aceita cartões? - alguém gritou.
- Vou repetir - disse o intermediador. - Só dinheiro vivo. Se vocês tiverem de pegar o dinheiro ou talão de cheques ao chegar em casa, acertem isso com o motorista, na base da confiança.
Ele anunciou uma lista de quais empresas estavam saindo e seus destinos. Os passageiros correram para lotar os carros, permanecendo em fila no acostamento da via expressa.
Buck entregou um cheque de viagem de 100 dólares ao intermediador para os subúrbios da região norte. Uma hora e meia depois, ele se juntou a vários outros numa limusine. Depois de tentar usar seu telefone celular inutilmente de novo, ele ofereceu ao motorista 50 dólares para usar o telefone dele.
- Não garanto nada - disse o motorista. - Algumas vezes, funciona, outras vezes, não.
Ele procurou o número da casa de Lucinda Washington na agenda de endereços em seu laptop e discou. Um jovem adolescente respondeu:
- Residência da família Washington.
- Cameron Williams, do Semanário Global, para falar com Lucinda.
- Minha mãe não está - disse o jovem.
- Ela está no escritório? Preciso de uma recomendação sobre onde me hospedar perto de Waukegan.
- Ela não está em nenhum lugar - disse o jovem. -Sou o único que ficou. Mamãe, papai, todos se foram. Desapareceram.
- Tem certeza?
- Suas roupas estão aqui, bem no lugar onde eles estavam sentados. As lentes de contato de meu pai ainda estão em cima de seu roupão de banho.
- Oh! Rapaz! Sinto muito.
- Está tudo bem. Eu sei onde eles estão, nem posso dizer que estou surpreso.
- Você sabe onde eles estão?
- Se você conheceu minha mãe, também sabe onde ela está. Ela está no céu.
- Sim, hã, você está bem? Há alguém para cuidar de você?
- Meu tio está aqui. E um membro de nossa igreja. Provavelmente, o único que sobrou.
- Então você está bem?
- Estou bem.
Cameron fechou o aparelho e devolveu-o ao motorista.
- Tem alguma idéia de onde devo ficar, uma vez que estou tentando um vôo partindo de Waukegan de manhã?
- A cadeia de hotéis provavelmente está lotada, mas há uns dois hotelecos ou pensões baratas onde você pode se enfiar. Ficam perto do aeroporto. Você será o último passageiro a descer.
- Bem, que fazer? Eles têm telefone nessas espeluncas?
- É mais provável que tenham telefone e televisão do que água corrente.
SEIS
FAZIA muito tempo que Rayford Steele não se embriagava. Irene nunca foi muito chegada a bebidas e tinha se tornado abstêmia nos últimos anos. Ela insistia com ele para que escondesse qualquer bebida forte que tivesse em casa. Não queria que Raymie sequer soubesse que seu pai ainda bebia.
-Isto é desonesto - contra-atacava Rayford.
- É prudente - dizia ela. Ele ainda não sabe de muita coisa, nem precisa saber.
- O que dizer daquela sua sarcástica insistência para que sejamos inteiramente sinceros?
- Dizer toda a verdade nem sempre significa dizer tudo o que fazemos. Você diz à sua tripulação que vai fazer uma pausa para ir ao banheiro, mas não entra em detalhes sobre o que vai fazer lá, não é mesmo?
- Irene!
- Estou apenas dizendo que você não deve tornar óbvio para seu filho pré-adolescente que você usa bebida alcoólica.
Ele achou que não devia contrariá-la e resolveu guardar seu bourbon num lugar alto, escondido. Se alguma vez houve um momento propício para um drinque forte, seria este. Ele esticou o braço, passou a mão atrás de uma tampa de bolo
na prateleira mais alta acima da pia e puxou uma garrafa contendo quase um litro de uísque. Seu desejo era virar toda a bebida pura garganta abaixo e embriagar-se totalmente. Porém, mesmo num momento como aquele, havia tradições e bons costumes. Embriagar-se, bebendo diretamente da garrafa, não era seu estilo.
Rayford despejou cerca de quatro dedos de uísque num copo reto e de boca larga e bebeu tudo num único gole, como um alcoólatra. A necessidade de embriagar-se era grande demais, porém não condizia com seu caráter. A bebida desceu pela garganta queimando tudo pelo trajeto, causando-lhe um arrepio de frio que o fez tremer e gemer. Que tolo!, pensou ele. E acima de tudo com o estômago vazio.
Ele já estava sentindo tontura quando recolocou a garrafa na mesa. Depois pensou melhor e a colocou na lata de lixo embaixo da pia. Seria isto uma homenagem a Irene, abandonando, mesmo ocasionalmente, uma bebida forte? Não haveria nenhum benefício para Raymie agora, mas, de qualquer modo, ele não achava correto beber sozinho. Seria ele capaz de tornar-se um embriagado secreto? Quem não é?, perguntou a si mesmo. Apesar de tudo, ele não ia morrer por causa do que tinha acontecido.
O sono de Rayford havia sido profundo, mas não muito longo. Ele tinha umas poucas tarefas imediatas. Primeiro, precisava ligar para Chloe. Segundo, precisava saber o que a Pan-Continental desejava dele na próxima semana. Pelos regulamentos normais ele teria de permanecer em terra após um vôo demasiado longo e por ter feito um pouso de emergência reordenado. Mas quem sabia o que estava acontecendo agora?
Quantos pilotos eles tinham perdido? Quando as pistas seriam desobstruídas? E quanto aos vôos programados? Ele sabia muito bem que a preocupação das empresas aéreas girava em torno de resultados financeiros. Assim que suas aeronaves pudessem voar novamente, elas voltariam a ser lucrativas. Bem, a Pan-Continental tinha sido boa para ele. Ele permaneceria lá e faria a sua parte. Mas o que poderia fazer acerca desta angústia, deste desespero, desta dor corrosiva?
Finalmente, ele passou a compreender por que as famílias enlutadas se queixavam quando o corpo de um parente estava mutilado demais para ser reconhecido ou tinha sido completamente destruído. Elas costumavam dizer que não fazia sentido alguém lacrar o caixão, sem permitir que o corpo fosse visto, e que o sofrimento se tornava maior porque era difícil aceitarem a idéia de que a pessoa tinha morrido.
Isto sempre pareceu estranho para ele. Que motivos teria alguém para desejar ver o corpo da esposa ou do filho estendido num caixão à espera do funeral? Não seria melhor recordar deles vivos e felizes como eram? Mas ele agora compreendia melhor. Não havia dúvida de que sua esposa e filho desapareceram como se tivessem morrido, conforme aconteceu com os pais dele anos antes. Irene e Ray não voltariam, e Rayford não tinha certeza se os veria novamente um dia, por não saber se haveria uma segunda oportunidade para chegar a esse lugar chamado céu.
Ele queria pelo menos ter tido a possibilidade de encontrar seus corpos - na cama, num caixão, em qualquer lugar. Daria o que pudesse em troca de ver, num relance que fosse, seus corpos, seus rostos. É claro que isto não os traria de volta, mas talvez não se sentisse agora tão abandonado, tão vazio.
Rayford sabia que as comunicações telefônicas entre Illinois e a Califórnia só voltariam ao normal depois de muitas horas, talvez dias. Apesar disso, precisaria tentar. Ele discou para Stanford, chamando o número principal da administração, e não ouviu sequer o sinal de ocupado ou uma mensagem gravada. Ligou então para o dormitório de Chloe. Também não teve sucesso. A cada meia hora, ele apertava a tecla de rediscagem. Não alimentava a esperança de que ela atendesse; se o fizesse, seria uma surpresa maravilhosa.
Rayford estava faminto e reconhecia que teria sido melhor não ingerir aquela quantidade de bebida com o estômago vazio. Subiu de novo as escadas, entrando no quarto de . Raymie para pegar a pequena pilha de roupas, a fim de guardá-las como recordação do garoto. Colocou-as numa caixa de papelão para presentes que encontrou no guarda-roupa de Irene. Depois colocou em outra caixa a camisola de Irene; o medalhão e a aliança foram guardados numa caixa menor.
Ele levou as caixas para a sala, com os dois doces que ela havia despachado pelo correio para ele. O resto da fornada dos doces devia estar em algum lugar da cozinha ou da copa. Ele os encontrou numa tigela no guarda-louça. O aroma e o paladar dos doces o fariam com que se lembrasse dela até que terminassem.
Rayford pegou dois doces da tigela, colocou-os num pratinho de papelão ao lado dos que já havia recebido, e despejou leite num copo. Sentado à mesa da cozinha, perto do telefone, ele sentiu que teria de fazer esforço para alimentar-se. Parecia paralisado. Precisando manter-se ocupado, apagou da secretária eletrônica as mensagens recebidas e regravou a sua. "Aqui fala Rayford Steele. Por favor, deixe um recado curto. Estou tentando manter esta linha livre para minha filha. Chloe, se for você, estarei dormindo ou em algum outro cômodo da casa, por isso insista até eu atender. Se não for possível conversarmos por algum motivo, faça o que puder e venha para casa. Qualquer companhia de aviação debitará a passagem em minha conta. Amo você." Em seguida, comeu os doces, cujo cheiro e gosto lhe traziam imagens de Irene na cozinha, e o leite fazia-o sentir saudade do filho. A situação estava se tornando muito penosa, insuportável.
Rayford estava exausto, e, além disso, não queria subir as escadas outra vez. Sabia que teria de fazer força para dormir em sua cama naquela noite. Por ora, ficaria estendido num diva da sala de estar esperando a ligação de Chloe. Como um autômato, apertou novamente a tecla de rediscagem. Desta vez, ouviu o sinal de ocupado, o que já significava alguma coisa. Naquele momento, as linhas estavam se restabelecendo. Era um bom sinal. Ele sabia que Chloe estava pensando nele, enquanto ele pensava nela. Mas Chloe não tinha nenhuma idéia do que podia ter acontecido à sua mãe e ao seu irmão. Teria ele de dizer isto à filha por telefone? Receava que sim. Ela certamente perguntaria.
Rayford foi se arrastando até o diva e deitou-se, com soluços na garganta, mas não acompanhados de lágrimas. Elas pareciam ter secado. Se Chloe ouvisse apenas a mensagem e resolvesse vir para casa, ele poderia pelo menos dizer isto a ela frente a frente.
Continuou angustiado, sabendo que a televisão estaria reproduzindo, incessantemente, imagens que ele não queria ver de tragédia e destruição no mundo todo. De repente, sentiu-se fortalecido. Sentou-se fitando estático a escuridão através da vidraça. Era seu dever não falhar com Chloe. Ele a amava, e ela era tudo o que lhe restara. Os dois teriam de descobrir por que desprezaram o que Irene tentou dizer-lhes, por que resistiram tanto a aceitar e crer. Acima de tudo, ele unha de estudar, aprender, estar preparado para o que viesse a acontecer dali em diante.
Se os desaparecimentos foram um ato de Deus, seria aquilo o fim de tudo? Os cristãos, os crentes verdadeiros, foram levados, e os restantes foram deixados para afligir-se, lamentar e reconhecer seu erro? Talvez sim. Talvez fosse esse o preço. Mas, então, o que acontece quando morremos?, pensou. Se o céu é uma realidade, se o Arrebatamento foi um fato, o que isto queria dizer quanto ao inferno e ao Juízo? É este o nosso destino? Viveremos este inferno de tristeza e arrependimento e, depois, iremos também literalmente para o inferno?
Irene sempre falava de um Deus amoroso, porém até mesmo o amor e a misericórdia de Deus haviam de ter limites. Todos os que não aceitaram a verdade fizeram com que Deus chegasse ao seu limite? Não havia mais misericórdia, nenhuma nova oportunidade? Talvez não houvesse, e, se não houvesse, . que assim fosse.
Mas, se houvesse opções, se houvesse ainda um meio de encontrar a verdade e crer ou aceitar, ou tudo mais que Irene disse, Rayford estava disposto a descobrir. Estaria ele, então, admitindo que não sabia essas coisas? Que tinha confiado em si mesmo e que agora se considerava estúpido, fraco e imprestável? Talvez. Após toda uma vida de realizações, de superações, de ser melhor do que a maioria e o máximo em muitos círculos, ele foi tão humilhado quanto era possível por um único golpe.
Havia tanta coisa que ele não conhecia, tanta coisa que não compreendia. Mas, se ainda houvesse respostas, ele as encontraria. Não sabia a quem perguntar ou por onde começar, mas isto era algo que ele e Chloe poderiam fazer juntos. Eles sempre se entenderam bem. Ela se tornara independente, um comportamento típico da adolescência, mas nunca fizera qualquer coisa estúpida ou irreparável, até onde ele sabia. Na verdade, sempre foram muito amigos; ela se parecia muito com ele.
Foi tão-somente a idade e a inocência de Raymie que haviam permitido que sua mãe o influenciasse daquele modo. Ele não tinha aquela intrepidez, aquela determinação que Rayford considerava necessária para vencer no mundo real. Raymie não era efeminado, mas Rayford se preocupava com a possibilidade de ele se tornar o filhinho da mamãe — muito compassivo, sensível e ansioso. Raymie estava sempre querendo assemelhar-se a outrem, ao passo que Rayford achava que o filho devia ser o número um.
Quão agradecido estava ele agora pelo fato de Raymie se parecer mais com a mãe do que com o pai. E como desejou naquele momento que Chloe tivesse recebido um pouco dessa influência materna. Chloe tinha o espírito competitivo, auto-suficiente, alguém que precisava ser convencida e persuadida. Podia ser bondosa e generosa quando a coisa era condizente com seu propósito, mas agia como o pai, com independência.
Belo trabalho, manda-chuva, disse Rayford a si mesmo. A garota de quem estava tão orgulhoso por ser parecida com você está na mesma situação.
Isto, ele decidiu, teria de mudar. Tão logo conversassem, a situação mudaria. Eles estariam numa missão - a busca da verdade. Se ele estava muito atrasado, teria de aceitar e conviver com isso. Ele sempre fora uma pessoa que perseguia um alvo e aceitava as conseqüências. Só que desta vez as conseqüências eram eternas. Acima de tudo, ele esperava que houvesse outra chance para conhecer a verdade. O único problema era que os que conheciam a verdade se foram.
O hotel na Rua Washington, a poucos quilômetros do pequenino aeroporto Waukegan, era muito ordinário para ter uma lista de espera. Buck Williams ficou agradavelmente j surpreso por não terem aumentado a diária em razão dos recentes acontecimentos. Quando viu o quarto, entendeu o porquê e ficou se perguntando como podia uma espelunca daquela sobreviver. Pelo menos, tinha telefone, chuveiro, uma cama e televisão. Exausto como estava, aquilo era suportável. A primeira coisa que Buck fez foi chamar seu voice mail em Nova York. Não havia nada de novo, por isso chamou a mensagem arquivada de Dirk Burton, que lembrava a Buck como considerava importante sua viagem a Londres. Buck a digitou em seu laptop enquanto ouvia:
Cameron, você sempre me diz que esse centro de mensagem é confidencial. Espero que esteja certo. Não vou nem me identificar, mas você sabe quem sou. Permita-me dizer-lhe algo importante que o faça vir aqui o mais depressa possível. O figurão, o maior, seu compatriota, que eu chamo de poder supremo da corretagem internacional, encontrou-se outro dia com aquele que chamo de grandalhão. Você sabe de quem estou falando. Havia um terceiro no encontro. Tudo o que sei é que ele é da Europa, provavelmente da Europa Oriental. Não sei quais são os planos dos dois para ele, mas aparentemente deve ser alguma coisa muito importante.
Minhas fontes dizem que seu amigo se encontrou com cada um de seu pessoal-chave e com esse tal europeu em lugares diferentes. Ele o apresentou ao pessoal da China, Vaticano, Israel, França, Alemanha, daqui e dos Estados Unidos. Algo está sendo engendrado, que não quero nem mesmo insinuar, a não ser pessoalmente. Venha ver-me o mais rápido que puder. Caso não seja possível, deixe-me apenas mencionar isto: Dê uma olhada nas notícias sobre a ascensão ao poder de um novo líder na Europa. Se você achar, como eu acho, que não há eleições programadas nem mudanças iminentes de poder, vai ter uma surpresa. Venha logo, amigo.
Buck telefonou para Ken Ritz e deixou um recado na secretária eletrônica dizendo onde estava. Depois tentou ligar para o oeste mais uma vez e finalmente conseguiu. Buck ficou surpreso e aliviado ao ouvir a voz de seu pai, embora ele aparentasse estar cansado, desanimado, mas nem um pouco apavorado.
- Estão todos bem aí, papai?
- Nem todos. Jeff estava aqui comigo, mas resolveu pegar o carro para ver se pode chegar ao lugar do acidente em que Sharon foi vista pela última vez.
- Acidente?
- Ela estava levando os filhos a um retiro ou coisa parecida, alguma coisa a ver com a igreja que ela freqüentava. A verdade é que ela nunca chegou lá. O carro capotou. Não havia sinais dela, a não ser as roupas, e você sabe o que , isto significa.
- Ela sumiu?
- É o que parece. Jeff não aceita isso. Ele está totalmente confuso. Quer ver com os próprios olhos. O problema é que as crianças também sumiram, todas elas. Todos os seus amigos, todos os que se encontravam nesse retiro nas montanhas. A polícia encontrou todas as roupas das crianças, cerca de cem mudas, e alguma espécie de lanche para a noite queimando no fogão.
- Puxa! Diga a Jeff que estou pesaroso. Se ele quiser conversar comigo, estou aqui.
- Não creio que ele queira conversar, Cameron, a menos que você tenha respostas para este acontecimento.
- Isto é uma coisa que ainda não entendi, papai. Não conheço ninguém que tenha uma explicação. Meu pressentimento é que os que teriam as respostas se foram.
- Isto é terrível, Cam. Gostaria que você estivesse aqui conosco.
- Aposto que sim.
- Você está sendo sarcástico?
- Apenas dizendo a verdade, papai. É a primeira vez que o senhor me convida para ir até aí.
- Este é o tipo de momento em que talvez tenhamos de mudar nosso modo de pensar.
- No meu caso? Duvido.
- Cameron, não vamos entrar nesta questão, certo? Pense só uma vez em outra pessoa que não em você mesmo. Você perdeu uma cunhada, uma sobrinha e um sobrinho ontem, e seu irmão nunca conseguirá superar isso.
Buck arrependeu-se do que disse. Por que ele sempre falava o que não devia, especialmente agora? Seu pai estava certo. Se Buck ao menos pudesse admitir isso, talvez eles conseguissem se entender. Ele ficou ressentido com a família desde que foi para a faculdade, depois de sua façanha de conseguir estudar numa universidade famosa. No lugar de onde ele veio, os filhos deviam seguir o negócio dos pais. O trabalho de seu pai era transportar petróleo para o Estado onde morava, principalmente de Oklahoma e Texas. Era um trabalho espinhoso, porque os moradores dali achavam que os recursos tinham de vir do próprio Estado. Jeff começou a trabalhar com o pai, de início no escritório, depois dirigindo caminhão, e agora administrando as operações do dia-a-dia.
Os ânimos acirraram, principalmente quando a mãe de Cameron adoeceu na época em que ele estava estudando fora. Ela insistiu que o filho permanecesse na faculdade, mas, quando ele não visitou a família no Natal por motivos financeiros, o pai e o irmão nunca o perdoaram. Sua mãe morreu enquanto ele estava fora, e seu pai e irmão o trataram com frieza no funeral.
Houve alguma melhora nos relacionamentos com o correr do tempo, principalmente porque sua família gostava de exaltá-lo e sentir-se orgulhosa, uma vez que ele se tornou conhecido como um fenômeno no ramo jornalístico. Ele achava que o passado estava enterrado, mas ressentia-se do fato de passar a ser bem-vindo só porque se tornara famoso. Por isso, raramente os visitava. Havia muitos ressentimentos para superar e chegar a uma reconciliação completa, mas ele ainda sentia ódio de si mesmo por abrir velhas feridas quando sua família estava sofrendo.
- Se houver algum tipo de culto ou cerimônia in memoriam, vou tentar chegar até aí, papai. Está bem assim?
- Você vai tentar?
- Isto é tudo o que posso prometer. O senhor pode imaginar como estão as coisas no Semanário neste momento. É desnecessário dizer que esta é a reportagem do século.
- Você escreverá a reportagem da capa?
- Vou ter muita coisa para escrever, sim.
- Mas e a capa?
Buck suspirou, repentinamente cansado. Não era para menos, uma vez que ficou acordado quase 24 horas.
- Não sei, papai. Reuni um grande número de fatos. Meu palpite é que na próxima edição haverá muita coisa a dizer sobre o que aconteceu no mundo inteiro. É improvável que a minha reportagem seja a única a cobrir o assunto. Talvez eu seja designado para um trabalho muito importante daqui a duas semanas.
Ele esperava ter satisfeito seu pai. Queria desligar o telefone e dormir um pouco, mas não desligou.
- O que quer dizer isso? Qual é a reportagem?
- Oh! Vou reunir material de várias fontes sobre as teorias acerca dos desaparecimentos.
- Será um grande trabalho. Todos aqueles com quem converso têm uma idéia diferente. Você sabe que seu irmão está receoso de que isto tenha sido o Juízo Final de Deus ou alguma coisa parecida?
- Ele acha?
- Sim. Mas eu não penso assim.
- Por que não, papai? - realmente Buck não queria entrar numa longa discussão, mas isto o surpreendeu.
- Porque perguntei ao nosso pastor. Ele disse que, se Jesus Cristo levou as pessoas para o céu, ele, eu, você e Jeff também teríamos ido. Faz sentido.
- Faz? Nunca fui chegado a religião.
- Para o inferno você não vai. Você está sempre envolvido nessa bobagem liberal da Costa Leste. Você sabe muito bem que o levamos à igreja e à Escola Dominical desde quando era um bebê. Você é tão cristão como qualquer um de nós.
Cameron quis dizer: "É exatamente isso que me intriga." Mas não disse. Foi a falta de sintonia entre a participação de sua família na igreja e o modo de vida de cada um que o levou a deixar a igreja definitivamente no dia em que fez sua escolha.
- Sim, bem, diga ao Jeff que estou pensando nele, ta? Caso consiga acomodar as coisas aqui, irei até aí para ajudá-lo a decidir o que fazer sobre Sharon e as crianças.
Buck estava satisfeito porque aquele hoteleco tinha pelo menos bastante água quente para um demorado banho. Ele só se lembrou do incômodo latejar atrás da cabeça quando a água quente escorreu sobre ela e removeu a atadura. Ele não dispunha de nada para repor o curativo, por isso deixou escorrer um pouco de sangue e, em seguida, conseguiu um pouco de gelo. Pela manhã, procuraria uma atadura, somente para esconder a ferida. Por ora, deixaria como estava. Doíam-lhe os ossos de cansaço.
O televisor não dispunha de controle remoto, e ele não queria levantar-se depois de estar acomodado. Ligou a televisão num som baixo, de modo que não interrompesse seu sono, e teve uma visão geral dos fatos antes de adormecer. As imagens do mundo inteiro estavam além do que ele podia suportar, mas notícia era seu negócio. Ele se lembrava dos muitos terremotos e guerras da última década e das coberturas noturnas que eram tão comoventes. Agora presenciava um acontecimento milhares de vezes maior, e tudo no mesmo dia. Nunca na História tantas pessoas morreram num único dia como aquelas que simplesmente desapareceram de repente. Foram mortas? Estavam mortas? Voltariam?
Buck não podia afastar os olhos da tela, pesados como estavam, enquanto uma seqüência de imagens exibia os desaparecimentos filmados em casa. De alguns países, vinham tomadas profissionais de shows de televisão ao vivo; num deles, o microfone do apresentador caiu em cima de suas roupas vazias e escorregou sobre os sapatos, produzindo um ruído ao rolar no chão. A platéia gritava. Uma das câmeras tomou uma cena panorâmica da multidão, que estava ocupando toda a capacidade do auditório momentos antes. Agora vários lugares estavam vazios, as roupas soltas ao acaso sobre o assento e no chão.
Ninguém poderia produzir uma cena como esta, Buck pensou, fechando vagarosamente os olhos carregados de sono. Se alguém tentasse vender um roteiro sobre milhões de pessoas desaparecendo, deixando tudo para trás, menos seus corpos, seria ridicularizado.
Buck só percebeu que estava dormindo quando um telefone barato tocou tão estrepitosamente como um chocalho, quase caindo do criado-mudo. Ele tateou no escuro para erguer o fone.
- Queira desculpar o incômodo, Sr. Williams, mas enquanto o senhor estava usando o telefone, ligou uma pessoa chamada Ritz. Ele disse que o senhor pode chamá-lo ou simplesmente esperar por ele lá fora às seis da manhã.
- Está bem, obrigado.
- O que o senhor vai fazer? Telefonar para ele ou encontrá-lo à entrada do prédio?
j - Por que você precisa saber?
- Oh! Não estou querendo ser intrometido. É que o senhor vai sair daqui às seis horas e preciso do pagamento adiantado. O senhor fez uma ligação interurbana. E eu não me levanto antes das sete.
- Vou lhe dizer o que... Ah! Qual é o seu nome?
- Mack.
- Vou lhe dizer o que fazer, Mack. Deixei com você o número de meu cartão de crédito, por isso você sabe que não vou sair sorrateiramente daqui. Amanhã cedo, deixarei um cheque de viagem no quarto para você, cobrindo o preço da diária e um tanto mais do que o necessário para a ligação interurbana. Você entendeu?
- Uma gorjeta?
- Sim, senhor.
- Beleza.
- Preciso que você me faça o seguinte: ponha por baixo da porta uma atadura.
- Tenho uma. Precisa dela agora? O senhor está bem?
- Estou bem. Não preciso dela agora. Quando você for dormir. Por favor, desligue meu telefone, a título de precaução, ta? Se tenho de acordar tão cedo, preciso de um bom sono a partir de agora. Você pode cuidar disso para mim, Mack?
- Claro que posso. Vou desligar o telefone agora. O senhor quer que alguém o chame de manhã?
- Não, obrigado - disse Buck, sorrindo quando percebeu que o telefone estava mudo em sua mão. Mack era tão bom quanto sua palavra. Se encontrasse a atadura de manhã, poderia deixar para Mack uma boa gorjeta. Buck fez um esforço para levantar-se, desligou a televisão e apagou a luz. Ele era do tipo que olhava para o relógio antes de pôr a cabeça no travesseiro e despertava na hora exata que havia programado. Era quase meia-noite. Ele estaria em pé às cinco e meia.
Foi só acomodar-se e desmaiar de sono. Até cinco horas e trinta minutos mais tarde, ele não havia movido um músculo sequer.
Rayford sentia-se como um sonâmbulo, enquanto se arrastava pesadamente sobre o piso da cozinha em direção à escada. Ele não podia acreditar que estivesse ainda tão cansado depois de seu longo sono e de seu cochilo providencial no diva. O jornal ainda estava enrolado e envolto por um elástico no assento de uma cadeira, onde foi jogado. Se ele tivesse qualquer problema para dormir no pavimento superior, talvez desse uma olhada no jornal. Seria interessante ler as notícias sem sentido de um mundo que não sabia que sofreria o pior trauma de sua história apenas umas poucas horas depois de o jornal ter sido impresso.
Rayford apertou o botão da rediscagem e afastou-se lentamente em direção à escada, escutando mal daquela distância. O que era aquilo? O ruído de discar tinha sido interrompido, e o telefone do dormitório de Chloe estava chamando. Ele pegou rapidamente o telefone, e uma voz de mulher atendeu.
- Chloe? - perguntou Rayford.
- Não. Sr. Steele? -Sim!
- Aqui fala Amy. Chloe está tentando encontrar um meio de ir para casa. Ela tentará ligar para o senhor durante a viagem, a qualquer momento amanhã. Se não conseguir, ligará quando chegar aí ou tomará um táxi até sua casa.
- Ela já saiu daí?
- Sim. Não quis esperar. Ela tentou ligar várias vezes, mas...
- Sim, eu sei. Obrigado, Amy. Você está bem?
- Morrendo de medo, como todo mundo.
- Posso imaginar. Você perdeu alguém?
- Não, e sinto uma espécie de culpa a este respeito. Parece que cada pessoa que conheço perdeu alguém. Bem, perdi alguns poucos amigos, mas ninguém muito próximo, nenhum familiar.
Rayford não sabia se devia congratular-se com ela ou demonstrar tristeza. Se isto fosse o que ele agora acreditava, esta pobre criatura mal conhecia alguém que tivesse sido levado para o céu.
- Bem - disse ele -, estou contente em saber que você está bem.
- E o senhor? - perguntou ela. - E a mãe e o irmão de Chloe?
- Receio que tenham ido, Amy.
- Oh! Não!
- Mas gostaria que você nada dissesse a Chloe, se ela se encontrar com você antes de chegar aqui ou me telefonar.
- Não se preocupe. Acho que não diria nada, mesmo que o senhor me pedisse.
Rayford ficou deitado vários minutos, depois, lentamente, foi virando as páginas do primeiro caderno do jornal. Hum. Uma surpresa na Romênia.
Eleições democráticas tornaram-se obsoletas quando, com o aparente consenso unânime do povo, da assembléia e do senado, um jovem homem de negócios e político popular assumiu o posto de presidente do país. Nicolae Carpathia, de 33 anos, nascido em Cluj, provocou nos últimos meses uma reviravolta na nação com seu discurso popular e persuasivo, encantando a população, os amigos e também os inimigos. As reformas que ele propôs para o país foram a causa de sua proeminência e poder.
Rayford olhou a fotografia do jovem Carpathia, um loiro surpreendentemente charmoso que se parecia com Robert Redford quando jovem. Será que ele teria desejado o posto, se soubesse o que estava para acontecer? Pensou Rayford. Seja o que for que ele tenha a oferecer, não valerá nada agora.
SETE
KEN Ritz chegou ao hotel precisamente às seis horas, baixou o vidro da porta e perguntou:
- Você é Williams?
- Sim - respondeu Buck, entrando em seguida numa van com tração nas quatro rodas, último modelo, com sua única bagagem. Ajeitando com os dedos a atadura em sua cabeça, Buck sorriu imaginando Mack se deleitando com seus vinte dólares extras.
Ritz era alto e magro, tinha o rosto marcado pelo tempo e um topete grisalho.
- Vamos ao trabalho - disse ele. - São 1.190 km entre O'Hare e Kennedy e 1.200 km de Milwaukee a Kennedy. Vou levá-lo o mais perto possível do aeroporto Kennedy, e estamos no meio do caminho entre O'Hare e Milwaukee, portanto vamos usar a média de 1.195 km. Multiplicamos isto por US$ 1,25 e chegamos a 1.494 dólares. Arredondamos para 1.500 pelo serviço de táxi, e negócio fechado.
- De acordo - disse Buck, puxando seu talão de cheques e começando a assinar. - Que corrida de táxi cara!
Ritz deu uma risada.
- Especialmente para alguém que dormiu neste lugar.
- Foi agradável.
Ritz parou diante de um barracão metálico pré-fabricado no aeroporto Waukegan e puxou conversa enquanto trabalhava na preparação do vôo.
- Nunca houve desastre neste aeroporto - disse ele. -Aconteceram dois em Palwaukee. Mas perdemos aqui duas pessoas da equipe. Mais do que fatídico, não acha?
Buck e Ritz relataram casos de perda de parentes, onde estavam quando o fato aconteceu, e os nome dos desaparecidos.
- Nunca transportei um jornalista - disse Ken. - Em vôo fretado, quero dizer. Devo ter levado muitos de seus colegas quando eu pilotava vôos comerciais.
- Ganha mais trabalhando por conta própria?
- Sim, mas não sabia quando mudei do comercial para o fretado. Não foi minha escolha.
Começaram a subir a bordo do jatinho. Buck encarou-o.
- Foi afastado da profissão?
- Não se preocupe, sócio - disse Ken. - Vou levá-lo até lá.
- O senhor tem a obrigação de me dizer se foi afastado.
- Fui despedido. Há uma diferença.
- Depende do motivo por que foi despedido, não acha?
- Tem razão. Mas o motivo deve fazer você sentir-se bem. Fui despedido por ser muito cuidadoso. E essa agora?
- Conte-me como foi - atalhou Buck.
- Lembra-se de um bom tempo atrás quando havia aquele bate-boca sobre aviões muito velhos que caíam quando fazia muito frio?
- Sim, até que fizeram alguns acertos ou coisa parecida.
- Certo. Lembra-se de um piloto que se recusou a voar, mesmo depois de ter sido forçado a fazê-lo, e o público foi tranqüilizado com a conversa de que aquele fato era explicável ou um mero acaso?
- Hã-hã.
- E lembra-se de que houve outro acidente logo depois, que provava que o piloto tinha razão?
- Vagamente.
- Bem, lembro-me perfeitamente como se fosse hoje, porque você está olhando para o próprio.
- Sinto-me melhor.
- Você sabe quantos daqueles modelos antigos de avião estão operando hoje? Nenhum. Quando alguém está certo, está certo. Mas fui readmitido? Não. Uma vez encrenqueiro, sempre encrenqueiro. Muitos de meus colegas, porém, ficaram agradecidos. E algumas viúvas de pilotos ficaram revoltadas por eu ter sido relegado. Foi tarde para seus maridos.
- Que pena!
Enquanto o jatinho zumbia em direção ao leste, Ritz quis saber o que Buck pensava dos desaparecimentos.
- É singular sua pergunta - disse Buck. - Vou começar a trabalhar seriamente no assunto hoje. O que o senhor leu sobre isso? E se importaria se eu ligasse um gravador?
- Tudo bem - disse Ritz. - A coisa mais terrível que vi. Certamente não sou o único que pensa assim. Devo dizer que sempre acreditei em discos voadores.
- O senhor está brincando! Um piloto dotado de bom senso, cônscio da segurança?
Ritz meneou a cabeça.
- Não estou falando de pequenos homens verdes ou dos alienígenas do espaço que raptam pessoas. Estou falando de coisas mais documentadas, vistas por astronautas e também por alguns pilotos.
- Chegou a ver alguma coisa?
- Não. Bem, um par de coisas inexplicáveis. Algumas luzes ou miragens. Uma vez achei que estivesse voando muito perto de uma esquadrilha de helicópteros. Não muito distante daqui. Posto Aeronaval Glenview. Mandei um aviso de alerta pelo rádio, e em seguida sumiram de vista. Suponho que isto é explicável. Talvez eu estivesse voando mais rápido do que devia e não estivesse tão perto deles como pensava. Mas nunca tive uma resposta, nenhuma confirmação, nem mesmo de que eles estivessem no espaço aéreo. Glenview não confirmou isso. Esqueci o caso, mas algumas semanas depois, perto do mesmo lugar, meus instrumentos ficaram malucos. Os ponteiros dos mostradores girando desordenadamente, os medidores paralisados, esse tipo de coisa.
- O que achou disso?
- Campo magnético ou alguma força semelhante, o que também seria explicável. Você sabe que não faz sentido relatar ocorrências estranhas ou visões perto de uma base militar, porque eles rejeitam isso de imediato. Eles nem mesmo levam a sério qualquer coisa estranha num raio de muitos quilômetros de distância de um aeroporto comercial. É por isso que você nunca ouve relatos de discos voadores perto de O'Hare. Nem tomam conhecimento.
- É por isso que o senhor não engole esse negócio de raptos feitos por alienígenas do espaço, porém relaciona os desaparecimentos aos discos voadores?
- Não estou falando de ETs ou de outras criaturas. Penso que nossas idéias sobre a aparência física dos seres do espaço são muito simples e rudimentares. Se é que existe vida inteligente fora daqui, e eu acho que deve existir, por causa dos fatos extraordinários evidentes...
- O que o senhor quer dizer?
- A vastidão do espaço.
- Ah! sim, tantas estrelas e tanto espaço sugerindo que . alguma coisa existe em algum lugar.
- Exatamente. Concordo com as pessoas que pensam que aqueles seres são mais inteligentes do que nós. De outro modo, não teriam conseguido nada aqui, se é que de fato estiveram aqui. E, se estiveram aqui, fico achando que eles são sofisticados e avançados demais para fazer coisas com as quais nunca sonhamos.
- Como fazer pessoas desaparecerem instantaneamente de dentro de suas roupas.
- Isto parecia ser uma idéia ridícula até aquela noite, não é mesmo?
Buck balançou a cabeça em sinal de concordância.
- Eu sempre ridicularizei as pessoas que admitiam que esses seres podiam ler nossos pensamentos ou penetrar em nossas mentes, e outras bobagens - continuou Ritz. - Mas quem está faltando? Todas as pessoas que eu conheci ou de quem ouvi falar tinham menos de 12 anos ou eram muito especiais.
- O senhor acha que todas as pessoas que desapareceram e esses seres, digamos assim, tinham alguma coisa em comum?
- Bem, eles têm alguma coisa em comum agora, você não diria?
- Mas eles foram desintegrados com mais facilidade? - perguntou Buck.
- É o que penso.
- Por isso, estamos ainda aqui porque fomos bastante fortes para resistir, ou talvez porque não valíamos o transtorno.
Ritz assentiu.
- Algo assim. É quase igual a uma força ou poder capaz de conhecer o nível de resistência ou fraqueza, e, uma vez que essa força penetrasse nas pessoas, seria capaz de retirá-las da terra. Elas desapareceram num instante, portanto tiveram de ser desmaterializadas. Pergunto se foram destruídas no processo ou poderiam ser reconstituídas.
- O que acha, Sr. Ritz?
- A princípio diria não. Mas uma semana antes eu teria dito a você que milhões de pessoas do mundo inteiro desaparecendo no ar, desfazendo-se, sumindo, seria como um filme de ficção. Quando admito que o fato realmente aconteceu, tenho de admitir a lógica que vem depois. Talvez eles estejam em algum lugar específico, adquiriram um novo corpo e talvez possam retornar.
- Esta idéia é confortadora - disse Buck. - Mas isto é mais do que desejar que aconteça?
- De modo nenhum. Essa idéia somada a 50 cents é igual
a meio dólar. Eu trabalho por dinheiro. Não tenho a chave do mistério. Estou ainda tão chocado quanto a próxima pessoa que vou encontrar, e não me importo de lhe dizer que estou morrendo de medo.
- De quê?
- De que possa acontecer outra vez. Se foi alguma coisa como penso que foi, talvez tudo o que essa força precisa fazer agora é procurar infiltrar o poder de algum modo nas pessoas e, assim, levar os velhos, os mais experientes, pessoas com mais resistência que ficaram por aqui.
Buck levantou os ombros em sinal de dúvida e permaneceu em silêncio por alguns minutos. Finalmente, disse:
- Há um pequeno furo em seu argumento. Sei de pessoas que estão faltando e que aparentemente eram muito fortes.
- Não estava falando de força física.
- Nem eu - Buck pensou em Lucinda Washington. - Perdi uma amiga e colega que era brilhante, saudável, determinada e de personalidade forte.
- Bem, não estou dizendo que sei todas as coisas ou mesmo alguma coisa. Você queria minha opinião. Aqui está ela.
Rayford Steele deitou-se de costas, olhando para o teto. O sono era agitado e intermitente. Desagradava-lhe aquela sensação de torpor. Ele não queria inteirar-se das notícias, mesmo sabendo que haveria um novo jornal na varanda antes do alvorecer. Tudo o que queria era que Chloe chegasse para que pudessem chorar juntos. Não havia nada, concluiu, mais desolador do que o sofrimento pela perda de alguém.
Ele e sua filha tinham também trabalho para fazer. Ele queria investigar, aprender, saber, agir. Começou pela procura da Bíblia, não a Bíblia da família que ficou acumulando poeira na prateleira por muito tempo, mas a de Irene. A dela continha anotações, talvez algo que lhe apontasse a direção certa.
Não seria difícil encontrá-la. Estava costumeiramente ao alcance do braço, do lado em que ela dormia. Ele a encontrou no chão, junto a seu leito. Teria ela alguma orientação? Um índice? Alguma coisa que se referisse ao Arrebatamento, ao Juízo ou a alguma coisa do gênero? Se não, talvez fosse melhor começar pelo fim. Se Gênesis significava "começo", talvez Apocalipse [que significa revelação] tivesse alguma coisa a ver com o fim, muito embora a palavra não dissesse isto. O único versículo da Bíblia que Rayford podia citar de memória era Gênesis 1.1: "No princípio, criou Deus os céus e a terra." Ele esperava que houvesse algum versículo correspondente no fim da Bíblia que dissesse algo como: "No fim Deus levou todo o seu povo para o céu e deu a todos os demais uma nova oportunidade."
Mas frustrou-se. O último versículo da Bíblia não significava nada para ele. Dizia: "A graça do Senhor Jesus seja com todos." E isto lembrou-lhe as palavras do ritual religioso que ouviu na igreja. Ele saltou para o versículo anterior e leu: "Aquele que dá testemunho destas coisas diz: 'Certamente venho sem demora. Amém. Vem, Senhor Jesus."
Agora ele estava chegando a algum lugar. Quem teria testemunhado essas coisas, e o que significavam? As palavras citadas estavam em vermelho. O que isso queria dizer? Ele procurou por todos os lados da Bíblia e então notou na lombada os dizeres: "Palavras de Cristo em vermelho." Então Jesus disse que viria sem demora. Será que Ele tinha vindo? E se a Bíblia era tão antiga, como parecia, o que ela queria dizer com "sem demora"? Talvez essa expressão não significasse logo, a menos que fosse interpretada por alguém com uma longa visão da História. Talvez Jesus tenha sugerido que, quando chegasse o momento de vir, viria sem demora. Teria sido isto o que aconteceu? Rayford leu o último capítulo inteiro. Três outros versículos estavam em letras vermelhas, e dois deles repetiam a questão sobre a vinda sem demora.
Rayford não entendeu bem o contexto do capítulo. Pareceu-lhe velho e formal. Porém, perto do fim, havia um versículo que terminava com palavras que exerceram um estranho impacto sobre ele. Sem nenhuma indicação de seu sentido, ele leu: "Aquele que tem sede venha, e quem quiser receba de graça a água da vida."
Não teria sido Jesus aquele que estava sedento. Não teria
sido Ele quem desejava receber a água da vida. Isso, Rayford admitiu, referia-se ao leitor. As palavras mexeram com ele, que estava sedento, com a alma sedenta. Mas o que era a água da vida? Ele já havia pago um preço muito alto por não ter entendido seu significado. O que quer que fosse, estava naquele livro por centenas de anos.
Rayford folheou a Bíblia ao acaso procurando outras passagens. Nenhuma delas fazia sentido para ele. Ficou desanimado, porque as passagens não fluíam paralelamente, e não havia relação entre uma e outra para servir de orientação. A linguagem e os conceitos não o ajudavam porque lhe eram estranhos.
Aqui e ali, ele via anotações nas margens com a letra delicada de Irene. Às vezes, ela escrevia: "Precioso." Ele estava determinado a estudar e encontrar alguém que pudesse explicar-lhe aquelas passagens. Sentia-se tentado a escrever "precioso" ao lado daquele versículo de Apocalipse sobre beber de graça a água da vida. O versículo soava-lhe precioso, embora ainda não pudesse avaliá-lo com mais clareza.
O pior de tudo é que ele temia estar lendo a Bíblia tarde demais. Era também tarde demais para ter ido para o céu com sua esposa e seu filho. Mas era realmente tarde demais e ponto final?
Junto à capa da frente estava o boletim da igreja do último domingo. Mas que dia era hoje? Manhã de quarta-feira. Onde ele estava três dias antes? Na garagem. Raymie pedira-lhe que fosse com eles à igreja. Ele prometeu que iria no domingo seguinte. "Você disse a mesma coisa na semana passada", Raymie retrucara.
"Você quer que eu conserte seu carrinho ou não? Não tenho todo o tempo do mundo."
Raymie não era do tipo que costumava forçar situações. Ele apenas confirmou: "No próximo domingo?"
"Certamente", tinha dito Rayford. E agora desejava que . no próximo domingo ele estivesse aqui. Desejava mais do que nunca que Raymie estivesse aqui porque iria com ele.
Iria? Será que estaria fora naquele dia? E haveria culto no domingo? Alguém da congregação ficou? Ele puxou o boletim de Irene dentro da Bíblia e fez um círculo em torno do número do telefone. Mais tarde, depois de confirmar junto à Pan-Continental, ele telefonaria para o escritório da igreja para obter informações.
Rayford estava para colocar a Bíblia sobre o criado-mudo quando ficou curioso e abriu a primeira página em branco para ler a dedicatória. Ele tinha dado aquela Bíblia a Irene em seu primeiro aniversário de casamento. Como podia ter esquecido isso, e o que ele tinha em mente quando lhe deu aquela Bíblia? Ela não era mais devotada do que ele naquela época, mas manifestava o desejo sério de freqüentar a igreja antes que os filhos viessem. Ele tinha encontrado um motivo para impressioná-la. Talvez tivesse pensado que ela o julgaria um homem espiritual por ter-lhe dado um presente como aquele. Talvez tivesse esperança de que ela o liberasse e fosse à igreja sozinha, se provasse, por meio do presente, que tinha sensibilidade espiritual.
Durante anos, ele tolerou a igreja. Eles freqüentavam uma que exigia pouco e oferecia muito. Fizeram muitos amigos e ali descobriram seu médico, dentista, agente de seguro, e até adquiriram título de sócio do clube de campo daquela igreja. Rayford era prestigiado, apresentado com orgulho como capitão-aviador de um 747 aos crentes novos e visitantes, e chegou a atuar no conselho da igreja durante vários anos.
Quando Irene descobriu a estação de rádio cristã, que ela chamava de "pregação e ensino verdadeiros", acabou se desencantando com aquela igreja e começou a procurar outra. Isto deu a Rayford a oportunidade de deixar a igreja de vez, dizendo a Irene que, quando encontrasse uma de que realmente gostasse, começaria a freqüentar novamente. Ela encontrou uma, e ele tentou freqüentá-la ocasionalmente, mas a igreja era uma muito literal, pessoal e desafiadora para ele. Ele não era paparicado. Sentiu-se deslocado e se afastou.
Rayford observou outra anotação com a letra de Irene.
Tratava-se de uma lista de orações, e o nome dele estava em primeiro lugar. Ela escreveu: "Rafe - orar por sua salvação e para que eu seja uma esposa amorosa para ele. Chloe -para que ela aceite a Cristo e viva com pureza. Ray Jr. - que nunca se desvie de sua forte fé como criança." Em seguida, ela mencionava o pastor da igreja, líderes políticos, missionários, conflito mundial, vários amigos e parentes.
"Por sua salvação", sussurrou Rayford. "Salvação." Palavra-chave repetida em outras igrejas pequenas mas que nunca o impressionara. Ele sabia que a nova igreja de Irene estava interessada na salvação de almas, algo que ele jamais tinha ouvido nas igrejas anteriores. Porém, quanto mais ele assimilava o conceito, mais indigno se sentia. A salvação não tinha alguma coisa a ver com confirmação, batismo, testemunho, religiosidade, santidade? Ele nunca teve vontade de se envolver nisso, fosse o que fosse. E agora estava desesperado para saber exatamente o que ela significava.
Ken Ritz comunicou-se por rádio com os aeroportos nos arredores de Nova York e conseguiu permissão para pousar em Easton, Pensilvânia.
- Se você tiver sorte, poderá cruzar com Larry Holmes -disse Ritz. - Aqui é território dele.
- O velho lutador de boxe? Ele continua lutando? Ritz encolheu os ombros.
- Não sei qual é sua idade, mas você pode apostar que ele não desapareceu. Quem estivesse levando as pessoas poderia receber um golpe do velho Larry na cara.
O piloto perguntou ao pessoal de Easton se alguém podia conseguir uma condução até a cidade de Nova York para seu passageiro.
- Você está brincando, não está?
- Não tive a intenção, câmbio.
- Temos uma pessoa que pode deixá-lo uns três quilômetros do metrô. Carros não estão entrando nem saindo da cidade por enquanto, e mesmo os trens estão fazendo um trajeto confuso e passam por lugares complicados.
- Lugares complicados? - aparteou Buck.
- Repita, por favor - pediu Ritz por rádio.
- Você não leu os jornais? Alguns dos piores desastres na cidade foram causados pelo desaparecimento de maquinistas e fiscais. Seis trens foram envolvidos em colisões frontais com numerosas mortes. Vários bateram na traseira de outros. Levará tempo para desimpedir todas as linhas e substituir os vagões. Você está certo de que seu passageiro quer chegar ao centro da cidade?
- Positivo. Parece o tipo de pessoa que sabe se virar.
- Espero que tenha um bom par de botinas para caminhar. Buck teve de desembolsar mais dinheiro com uma condução
que deveria deixá-lo a uma distância razoável da estação e caminhar a pé até lá. O motorista nunca tinha trabalhado na praça, nem o veículo era táxi. Seria bem melhor que fosse. O carro era velho demais e estava em péssimas condições. Após uma caminhada de mais de três quilômetros, ele chegou à plataforma da estação por volta de meio-dia. Depois de esperar mais de 40 minutos no meio de uma multidão compacta, ficou sabendo que estava entre os passageiros que teriam de aguardar mais meia hora pelo próximo trem. A viagem em ziguezague levou duas horas para chegar a Manhattan. Durante todo o percurso, Buck digitava em seu laptop ou olhava para fora da janela o congestionamento que se estendia por vários quilômetros. Ele imaginava que muitos colegas de Nova York já teriam apresentado reportagens semelhantes, portanto sua única esperança de marcar pontos com Steve Plank e ver sua matéria publicada seria se a escrevesse com mais determinação e eloqüência. Estava muito aterrorizado com as cenas que via, e talvez nunca as esquecesse. Na melhor das hipóteses, estaria acrescentando mais dramaticidade às suas recordações. Nova York estava paralisada, e a maior surpresa era que as autoridades permitiam a entrada de mais pessoas na cidade. Sem dúvida, muita gente, como ele, morava ali e precisava voltar para suas casas e apartamentos.
O trem foi obrigado a parar um pouco antes do local onde Buck deveria desembarcar. O aviso confuso, o melhor que puderam transmitir diante das circunstâncias, informou aos passageiros que aquela parada seria a última. Se o trem prosseguisse, os passageiros teriam de desembarcar no meio de guindastes que estavam retirando os carros que obstruíam os trilhos. Buck calculou uma caminhada de quase 25 quilômetros até o escritório e mais oito para chegar a seu apartamento.
Felizmente, Buck estava em grande forma. Ele colocou tudo na sacola e encurtou as alças, de modo que pudesse carregá-la mais junto ao corpo, sem balançar. Acertou suas passadas no ritmo de mais ou menos seis quilômetros e meio por hora, e três horas depois sentia-se todo dolorido. Estava certo de ter várias bolhas nos pés, e seu pescoço e ombros doíam por causa da alça e do peso da sacola. Suas roupas estavam molhadas de suor, mas ele não queria ir direto para seu apartamento antes de passar pelo escritório.
Ó, Deus, ajuda-me. Buck tomava fôlego penosamente, mais exasperado do que orando. Mas, se havia um Deus, Ele tinha senso de humor, concluiu. Apoiada num muro de tijolos numa passagem, à vista de todos, estava uma bicicleta amarela com um cartaz preso a ela. Lia-se: "Pegue esta bicicleta. Leve-a aonde quiser. Deixe-a para outra pessoa necessitada. É grátis."
Só mesmo em Nova York, pensou ele. Ninguém rouba uma coisa que é grátis.
Ele pensou em murmurar uma prece de gratidão, mas o mundo que ele contemplava não lhe mostrou nenhuma evidência de um Criador benevolente. Ele se ajeitou na bicicleta, considerou o longo tempo decorrido desde a última vez que pedalou e começou a cambalear quase caindo até conseguir equilibrar-se. Pouco tempo depois, já estava chegando ao centro da cidade, atravessando um emaranhado de destroços e máquinas demolidoras. Poucas pessoas possuíam uma condução tão eficiente quanto a dele. Só havia carteiros em bicicleta, duas pessoas com bicicletas amarelas iguais à dele e policiais a cavalo.
A segurança era rigorosa no edifício do Semanário Global, o que, de certo modo, não o surpreendia. Após identificar-se a um novo porteiro no térreo, subiu ao 27° andar, parou no banheiro público para arrumar-se e finalmente entrou nas principais dependências da revista. A recepcionista imediatamente ligou para o escritório de Steve Plank dando a notícia. Plank e Marge Potter correram para abraçá-lo e dar-lhe as boas-vindas.
Buck Williams foi tocado por uma estranha e nova emoção. Ele quase chorou. Notou que, como a maioria das pessoas, estava suportando um terrível trauma e não tinha dúvida de que sua adrenalina estava alterada. Mas, de qualquer modo, a volta ao seu território familiar - após tantas despesas e esforço - deu-lhe a sensação de estar em casa, ao lado de pessoas que se importavam com ele. Esta era a sua família. Estava muito, realmente muito contente de revê-los, e parecia que o sentimento era mútuo.
Ele mordeu os lábios tentando disfarçar sua emoção, e quando seguia Steve e Marge pelo corredor, passando diante da porta de sua pequena e atravancada sala a caminho do local de reuniões, perguntou-lhes se já sabiam a respeito de Lucinda Washington.
Marge parou no corredor colocando as mãos no rosto.
- Sim - disse ela, expressando tristeza e horror. - Perdemos várias pessoas. Onde este sofrimento começa e onde termina?
Após ter ouvido isto, Buck descontrolou-se. Não conseguia mais disfarçar, apesar de estar surpreso diante de sua sensibilidade.
Steve passou o braço ao redor dos ombros de sua secretária em direção à sala de reunião, onde os outros membros da equipe principal estavam esperando.
Eles deram vivas quando Buck entrou na sala. As mesmas pessoas que trabalhavam com ele, que o criticavam e combatiam, que o hostilizavam e irritavam, que estavam sempre querendo passá-lo para trás, agora pareciam sinceramente felizes ao vê-lo. Eles não tinham a mínima idéia de como Buck se sentia.
- Rapazes, é bom estar de volta aqui - disse ele. Em seguida, sentou-se e enterrou a cabeça entre as mãos. Seu corpo começou a tremer, e ele não pôde segurar as lágrimas. Começou a soluçar, bem à frente de seus colegas e competidores.
Procurou enxugar as lágrimas e se controlar, mas, quando levantou a cabeça, forçando um sorriso embaraçado, notou que todos os outros também estavam emocionados.
- Está tudo bem, Buck - disse um deles. - Se esta é a primeira vez que você chora, vai descobrir que não será a última. Todos nós estamos tão assustados, atordoados, angustiados e pesarosos quanto você.
- Sim - disse outro -, mas seu relato pessoal será sem dúvida mais excitante. - Isto fez com que todos misturassem risos com lágrimas.
Rayford lembrou-se de chamar o Centro de Vôos da Pan-Continental no começo da tarde e ficou sabendo que deveria apresentar-se dois dias depois para um vôo na sexta-feira.
- Está confirmado? - perguntou ele.
- Ainda não temos absoluta certeza - disseram-lhe. - Somente uns poucos aviões vão decolar naquele dia. Certamente não haverá nenhum vôo até amanhã à noite e, talvez, nem mesmo na própria sexta-feira.
- Há uma chance de eu receber um aviso antes de sair de casa?
- Claro que sim; porém esta é a sua tarefa por enquanto.
- Qual é a rota?
- ORD para BOS para JFK.
- Hum. Chicago, Boston, Nova York. Quando volto?
- Sábado à noite.
- Ótimo.
- Por quê? Tem um encontro?
- Nada disso. <
- Oh! meu Deus, sinto muito, capitão. Esqueci com quem estava falando.
- Você soube o que aconteceu com minha família?
- Todos aqui sabem, senhor. Lamentamos. Soubemos disso por intermédio da chefe do serviço de bordo no vôo que não pôde descer em Heathrow. O senhor soube o que houve com seu primeiro co-piloto daquele vôo?
- Ouvi alguma coisa, mas até agora não recebi um comunicado oficial.
- O que o senhor ouviu?
- Suicídio.
- Certo. Terrível.
- Você pode checar uma informação para mim?
- Se estiver ao meu alcance, capitão.
- Minha filha está tentando voltar da Califórnia por avião.
- Improvável.
- Eu sei, mas ela já está a caminho, tentando de qualquer forma. É mais do que provável que ela preferirá voar com a Pan-Continental. Você pode verificar se o nome dela figura em qualquer das listas de passageiros para o leste?
- Não deve ser muito difícil. Há poucos vôos, e o senhor sabe que nenhum avião vai pousar aqui.
- E quanto a Milwaukee?
- Acho que não - disse, enquanto verificava no computador. - De onde ela vai sair?
- De algum lugar perto de Paio Alto.
- Não vai dar.
- Por quê?
- Dificilmente haverá algum vôo vindo de lá. Deixe-me checar.
Rayford podia ouvir o homem falando para si mesmo, tentando coisas, sugerindo opções.
- Aviação Califórnia para Utah. Ei! Encontrei! Chama-se Chloe e tem seu sobrenome?
- É ela!
- Ela se apresentou em Paio Alto. A Pan levou-a num ônibus até alguma pista externa. Colocou-a num vôo da Aviação Califórnia para Salt Lake City. Aposto que é a primeira vez que eles voam fora do estado. Ela embarcou num avião da Pan-Continental; oh! eles a levaram a, hum, oh! irmão, Enid, Oklahoma.
- Enid? Isso nunca esteve em nossas rotas.
- Não estou brincando. As rotas foram desviadas por causa do congestionamento em Dallas. Está voando de Ozark para Springfield, Illinois.
- Ozark!
- Eu apenas trabalho aqui, capitão.
- Bem, alguém está tentando fazer essa coisa funcionar, não está?
- Sim, a boa notícia é que conseguimos por lá um turbopropulsor ou dois que podem trazê-la para esta área, mas não se sabe onde ela poderá descer. O sinal nem entrou na tela, porque eles só saberão quando o avião estiver bem perto.
- Como saberei onde apanhá-la?
- O senhor não pode. Estou certo de que ela irá telefonar-lhe quando chegar. Quem sabe? Pode ser que ela simplesmente apareça aí.
- Isto seria fantástico.
- Bem, sinto muito pelo que o senhor está passando, mas pode dar graças a Deus por ela não ter viajado com a Pan-Continental diretamente de Paio Alto. O último que saiu de lá caiu na noite passada. Não há sobreviventes.
- E isso foi depois dos desaparecimentos?
- Exatamente ontem à noite. Não tem nada a ver com o fenômeno.
- Se isso acontecesse com ela, não teria sido desgraça demais? - comentou Rayford.
- Sem dúvida.
OITO
QUANDO os outros repórteres e editores retornaram a suas salas, Steve Plank insistiu com Buck Williams para que fosse para casa descansar antes da reunião que teriam naquela noite, às oito horas.
- Prefiro que a reunião seja agora e eu possa ir para casa à noite.
- Eu sei - disse o editor-executivo -, mas temos um acúmulo de coisas a fazer e quero você aqui bem disposto.
Mesmo assim, Buck estava relutante.
- Quando posso ir a Londres?
- O que você vai fazer lá?
Buck adiantou a Steve a informação sobre uma importante reunião de financistas dos Estados Unidos com jornalistas do mundo inteiro para apresentar um político europeu em ascensão.
- Oh! rapaz - disse Steve -, estamos por dentro disso tudo. Você está falando de Carpathia.
Buck ficou atônito.
- Eu falei?
- Ele é a pessoa que impressionou Rosenzweig.
- Sim, mas você acha que é ele a pessoa que meu informante...
- Rapaz, você está por fora - disse Steve. - O caso não é mais um grande furo de reportagem. O financista-chave deve ser Jonathan Stonagal, que parece ser o patrocinador dele. Eu não disse a você que Carpathia estava vindo fazer um pronunciamento na ONU?
- Então ele é o novo embaixador da Romênia na ONU? -questionou Buck.
- Negativo.
- O que ele é então?
- Presidente do país.
- Para este cargo não tinha sido eleito um líder havia apenas 18 meses? - retrucou Buck, lembrando-se da deixa que Dirk lhe dera a respeito de um novo líder que parecia estar fora da posição e do tempo.
- Grande reviravolta por lá - disse Steve. - É melhor confirmar.
- Vou fazer isso.
- Não quero mandar você. Na verdade, não acho que tenha sobrado muita coisa para uma reportagem de impacto. O cara é jovem e impetuoso, fascinante e persuasivo, como pude deduzir. Tinha sido uma estrela meteórica nos negócios, alcançando um grande sucesso financeiro quando o mercado romeno se abriu para o Ocidente faz alguns anos. Mas até a semana passada, ele nem mesmo estava no senado. Ele estava somente na câmara baixa.
- A Câmara dos Deputados - disse Buck.
- Como você sabia isso? Buck sorriu ironicamente.
- Rosenzweig me falou.
- Por um momento, pensei que você realmente soubesse de todas as coisas. É disso que eles o acusam aqui, você sabe.
- Que grande crime cometi.
- Mas você se comportou com muita humildade.
- É isto que eu sou, humilde. Então, Steve, você não considera importante o fato de um cara como Carpathia, que veio do nada, derrubar o presidente da Romênia?
- Ele não veio exatamente do nada. Seus negócios foram construídos com o apoio financeiro de Stonagal. E Carpathia tem sido um defensor do desarmamento, muito popular junto a seus colegas e perante o povo.
- Mas o desarmamento não condiz com Stonagal. Ele não é um armamentista secreto?
Plank assentiu.
- Então aqui há mistério.
- Alguns, mas, Buck, o que poderia ser mais importante a esta altura do que a reportagem que está fazendo? Você não vai perder seu tempo com um sujeito que se tornou presidente de um país não-estratégico.
- No meio disso tudo há alguma coisa, Steve. Meu contato em Londres soprou-me. Carpathia está ligado aos não-políticos mais influentes do mundo. Ele passou de deputado a presidente sem uma eleição popular.
-E...
- É preciso mais? Ele por acaso assumiu o lugar de um presidente assassinado ou coisa parecida?
- É interessante que você tenha dito isso, porque o único senão na história de Carpathia é este: correm alguns rumores de que ele foi desumano com seus concorrentes nos negócios há alguns anos.
- Como desumano?
- As pessoas foram "apagadas".
- Oh! Steve, você fala exatamente como membro de uma gangue.
- Ouça esta: o presidente anterior renunciou em favor de Carpathia. E insistiu para que ele assumisse o poder.
- E você diz que não há assunto para uma reportagem neste caso?
- Isto se assemelha aos velhos golpes na América do Sul, Buck. Um novo dirigente a cada semana. Grandes lances. Assim, Carpathia passa a ser devedor a Stonagal. Tudo isto indica que Stonagal terá o controle no mundo financeiro de urn país da Europa Oriental que imagina que a melhor coisa que aconteceu em sua história foi a queda da Rússia.
- Mas, Steve, é como se um estreante do nosso congresso se tornasse presidente dos Estados Unidos num ano sem eleição marcada, sem voto. O presidente atual renuncia, e todo mundo fica feliz.
- Não, não, não, há uma grande diferença. Estamos falando da Romênia, Buck. Romênia. País não-estratégico, com um parco produto interno bruto, nenhum aliado estratégico. Não há nada lá, a não ser uma política interna de baixo nível.
- Isto ainda me cheira algo mais importante - disse Buck. - Rosenzweig tinha esse cara em alto conceito, e ele é um observador astuto. Agora Carpathia está vindo para falar na ONU. O que vai acontecer depois?
- Você se esquece de que ele foi convidado antes de se tornar presidente da Romênia.
- Este é outro enigma. Ele era um ilustre desconhecido.
- Ele é um novo nome em prol do desarmamento. Vai ter seu momento de glória, seus quinze minutos de fama. Confie em mim; você nunca mais vai ouvir falar dele.
- Stonagal tinha de estar também por trás dessa jogada da ONU - disse Buck. - Você sabe que o "João Diamante" é um amigo pessoal do nosso embaixador.
- Stonagal é amigo pessoal de cada figura eleita, desde o presidente até os prefeitos da maioria das cidades de tamanho médio, Buck. E daí? Ele sabe fazer o seu jogo. Ele me lembra o velho Joe Kennedy ou um dos Rockefellers, está bem? Qual é a sua preocupação?
- Apenas que Carpathia vai falar na ONU com a influência de Stonagal.
- Provavelmente. E daí?
- Ele está visando a alguma coisa.
- Stonagal está sempre visando a alguma coisa, mantendo seus motores ligados para um de seus projetos. Muito bem, então ele promove a ascensão de um homem de negócios a político na Romênia, com possibilidades de fazê-lo chegar à presidência. Talvez tenha até conseguido uma entrevista entre esse homem e Rosenzweig, que nunca deu em nada. Agora ele coloca Carpathia numa posição de destaque internacional. Isto acontece o tempo todo por causa de pessoas como Stonagal. Você prefere correr atrás de uma anti-reportagem a costurar uma matéria de capa que procura dar sentido ao fenômeno mais monumental e trágico na história mundial?
- Hum, deixe-me pensar sobre isto - disse Buck, sorrindo, enquanto Plank lhe dava uns leves socos amistosos no peito.
- Rapaz, você é capaz de dar nó em fumaça - disse o editor-executivo.
- Você costumava gostar de meu faro profissional.
- E ainda gosto, mas você está precisando dormir imediatamente.
- Estou definitivamente impedido de ir a Londres? Então tenho de avisar meu contato lá.
- Marge tentou localizar a pessoa que ia esperar você no aeroporto. Ela pode lhe contar a ginástica que tivemos de fazer no meio de toda aquela situação. Esteja de volta às oito. Estou convocando todos os editores de departamentos interessados em várias reuniões internacionais que vão acontecer aqui neste mês. Você vai coordenar essa cobertura, portanto...
- Portanto, todos eles vão me odiar na reunião que teremos? - perguntou Buck.
- Eles vão sentir que é importante.
- Mas isso é importante? Você quer que eu esqueça Carpathia, mas vai complicar minha vida com - o que era mesmo? - uma convenção religiosa ecumênica e uma confabulação sobre a moeda internacional única?
- Você está precisando dormir, não está, Buck? É por isso que ainda sou seu chefe. Você não consegue entender isto?
Sim, quero uma matéria coordenada e bem escrita. Mas pense um pouco. Isto lhe dará trânsito livre a todos esses dignitários. Estamos falando de líderes judeus nacionalistas interessados num governo mundial único...
- Improvável e extremamente constrangedor.
- ...judeus ortodoxos do mundo inteiro que procuram reconstruir o templo, ou alguns desses...
- Estou sendo injuriado pelos judeus.
- ...monetaristas internacionais que preparam o palco para a moeda mundial...
- Também improvável.
- Mas isto vai permitir que você fique de olho em seu corretor favorito e poderoso...
- Stonagal.
- Certo, e líderes de vários grupos religiosos procurando cooperar internacionalmente.
- Você quer me torturar, é isso? Essas pessoas estão discutindo coisas impossíveis. Desde quando os grupos religiosos foram capazes de se entender?
- Você ainda não compreendeu, Buck. Você vai ter acesso a todas essas pessoas - religiosos, monetaristas, políticos -enquanto tenta escrever um artigo sobre o que aconteceu e por que aconteceu. Você pode colher a opinião de muitas pessoas inteligentes e reunir os mais diversos pontos de vista.
Buck encolheu os ombros em sinal de rendição.
- Você ganhou. Ainda acho que os editores de nosso departamento vão ficar ressentidos comigo.
- Alguma coisa será dita para dar consistência ao trabalho.
- Ainda quero tentar chegar a Carpathia.
- Isto não vai ser difícil. Ele já é o dodói da mídia na Europa. Está ansioso para ser ouvido.
- E Stonagal.
- Você sabe que ele nunca fala à imprensa, Buck.
- Gosto de um desafio
- Vá pra casa e relaxe. Vejo você às oito.
Marge Potter estava se preparando para sair quando Buck se aproximou.
- Oh! sim - disse ela, arrumando suas coisas e folheando a agenda. - Tentei Dirk Burton várias vezes. Consegui ligar uma vez para seu voice mail e deixei uma mensagem. O recebimento não foi confirmado.
- Obrigado.
Buck não estava seguro de poder descansar em casa com todas as coisas rodando em seu cérebro. Quando chegou à rua, ficou agradavelmente surpreso ao ver que os representantes de várias empresas de táxi estavam postados à frente do prédio, dirigindo as pessoas para os carros que podiam alcançar determinadas áreas por meio de vias secundárias. Com tarifas acima do normal, naturalmente. Por 30 dólares, divididos com outros passageiros, Buck foi deixado a duas quadras de seu apartamento. Em três horas ele deveria estar de volta ao escritório, por isso pediu ao motorista que o apanhasse no mesmo lugar às 7h45. Isto, reconheceu, seria um milagre. Com todos os táxis que havia em Nova York, ele jamais pôde antes fazer tal acerto, e, pelo que se lembrava, nunca conseguiu ver o mesmo taxista duas vezes.
Rayford caminhava de um lado para o outro, sentindo-se angustiado. Chegou à dolorosa constatação de que aquela era a pior fase de sua vida. Ele nunca tinha passado por isso antes. Seus pais eram mais velhos do que os de seus colegas. Quando ambos morreram, num espaço de dois anos um do outro, Rayford sentiu-se aliviado. Eles não estavam bem, haviam perdido a lucidez. Ele os amava, e seus pais não lhe eram um fardo, mas, anos antes, passaram a ter uma vida vegetativa em razão de derrame cerebral e outras doenças. Quando faleceram, Rayford chorou, em grande parte por causa do amor que lhes dedicava e das boas recordações que eles lhe deixaram. Apreciou a bondade e a simpatia que recebeu em seus funerais e retomou sua vida. As lágrimas que derramou não foram de remorso ou mágoa. Foram de nostalgia e melancolia.
O resto de sua vida tinha sido sem complicação ou sofrimento. Tornar-se piloto era o mesmo que galgar qualquer outro nível profissional regiamente pago. Tinha de ser inteligente, disciplinado, talentoso, perfeito. Ele passou pelas posições da forma usual — deveres de militar da reserva, pequenos aviões, depois aviões maiores, depois jatos e bombardeiros. Finalmente, alcançou o posto máximo.
Ele tinha conhecido Irene no Corpo de Treinamento de Oficiais da Reserva, na faculdade. Ela, filha de um militar, era uma soldadinha que nunca se rebelou. Muitos de seus colegas voltaram as costas para a vida militar e não quiseram nem mesmo confessar ter vivido essa experiência. Seu pai perdeu a vida no Vietnã, e sua mãe se casou com outro militar, por isso Irene tinha vivido em várias bases militares nos Estados Unidos.
Eles se casaram quando Rayford estava prestes a doutorar-se e Irene uma secundarista. Ela desistiu de estudar quando o marido ingressou na carreira militar, e tudo se acomodou desde então. Eles tiveram Chloe durante o primeiro ano de casamento, mas, devido a complicações, esperaram outros oito anos para Ray nascer. Rayford amava os dois filhos, mas tinha de admitir que sempre desejara ter um menino com seu nome.
Infelizmente, Raymie nasceu durante um período sombrio da vida de Rayford. Ele tinha 30 anos e já se considerava velho, e sentia-se constrangido por ter uma esposa grávida. Seus cabelos prematuramente grisalhos, porém atraentes, davam-lhe o aspecto de um homem de mais idade, e ele teve de suportar brincadeiras por ser um pai velho. Foi uma gravidez particularmente difícil para Irene; Raymie chegou duas semanas além do tempo normal. Chloe era uma garotinha geniosa de oito anos, e Rayford distanciou-se da família o mais possível.
Irene, ele acreditava, entrou num período de depressão durante aquela fase e mostrou um temperamento agressivo para com ele, chorando freqüentemente. No trabalho, Rayford prosperava, era ouvido e admirado. Foi escalado para os maiores, mais novos e mais sofisticados aviões da Pan-Continental. Sua vida de trabalho estava indo muito bem; ele não sentia prazer em voltar para casa.
Ele tinha ingerido mais álcool durante aquele período do que costumava, e o casamento passou por sua fase mais difícil. Voltava para casa cada vez mais tarde e, às vezes, inventava histórias sobre seu programa de trabalho, de modo que pudesse sair logo cedo e voltar o mais tarde possível. Irene o acusava injustamente de estar tendo casos. Ele a desmentia com veemência e sentia-se justificado pela ira que demonstrava.
A verdade é que ele estava esperando por uma chance para fazer exatamente aquilo de que ela o acusava. O que mais o frustrava era sentir-se incapaz de traí-la, apesar de sua boa aparência e postura. Ele não tinha o jeito, o desembaraço, o estilo. Uma comissária o havia certa vez chamado de gostosão, mas ele se sentiu um palhaço, um estúpido. Certamente, ele tinha acesso a qualquer mulher por um preço, mas isto era indigno para ele. Enquanto brincava de sonhar com um caso no velho estilo, comportado, e esperava por isso, não suportava a idéia de entregar-se a alguma coisa tão mesquinha como pagar para ter sexo.
Tivesse Irene sabido quão decidido ele estava de tentar ser infiel, ela o teria deixado. Quando as coisas estavam nesse pé, ele se achou no direito de envolver-se numa aventura amorosa na noite da véspera de Natal, antes do nascimento de Raymie, mas estava tão embriagado que mal conseguia se lembrar.
O sentimento de culpa e a possibilidade de manchar sua imagem serviram-lhe de alerta, fazendo com que ele reduzisse drasticamente a bebida. Ver Raymie nascer contribuiu ainda mais para a sua sobriedade. Era tempo de melhorar e assumir tanto a responsabilidade como marido e pai quanto a que ele assumira como piloto.
Agora, porém, quando Rayford permitia que aquelas lembranças desfilassem em sua mente conturbada, sentia a mais profunda tristeza e o mais agudo remorso que um ser humano pode sentir. Ele se considerava um fracasso. Era tão indigno de Irene. De qualquer modo, sabia agora, embora nunca tivesse admitido antes, que ela de nenhuma forma tinha sido ingênua ou tola como ele esperava e imaginava. Ela devia ter sabido quão insípido ele era, quão superficial e, sim, desprezível. No entanto, ela permaneceu a seu lado, amou-o, lutou para preservar o casamento.
Ele não pôde perceber se ela se tomou uma pessoa diferente após ter mudado de igreja e se apegado mais à fé. Logo de início, ela procurou convencê-lo, sem dúvida. Estava empolgada e queria que o marido também descobrisse o que ela havia encontrado. Ele tirou o corpo. Finalmente, ela desistiu ou resignou-se diante do fato de que ele não se rendia a seus apelos ou persuasão. Agora ele sabia, vendo a lista de orações de Irene, que ela nunca desistiu. Limitou-se apenas a orar por ele, em primeiro lugar.
Não era de admirar agora que nunca tivesse chegado ao ponto de manchar seu casamento por causa de Hattie Durham. Hattie! Quão envergonhado estava por causa daquele propósito imbecil! Pelo que ele sabia, Hattie era inocente. Ela nunca depreciara sua esposa nem fizera comentários sobre seu casamento. Jamais insinuara qualquer coisa imprópria. Os jovens eram mais sensíveis e coquetes, e ela não invocava códigos de moral e religião. O fato de Rayford estar obcecado com a possibilidade de ter Hattie, embora ela provavelmente nem desconfiasse disso, fazia-o sentir-se mais leviano ainda.
De onde vinha esta culpa? Ele tinha trocado olhares com Hattie inúmeras vezes, passaram horas a sós jantando em várias cidades. Mas ela nunca o convidara para entrar em seu quarto no hotel ou tentara beijá-lo ou mesmo segurar suas mãos. Talvez ela correspondesse, se ele tomasse a iniciativa, talvez não. Ela poderia facilmente sentir-se ofendida, insultada, desapontada.
Rayford balançou a cabeça. Além de sentir-se culpado por cobiçar uma mulher a cujo acesso ele não tinha nenhum direito, era também um desajeitado que nunca soube como cortejá-la.
E agora ele enfrentava as horas mais sombrias da sua vida. Estava nervoso acerca de Chloe. Apesar das circunstâncias do momento, desejava que ela chegasse sã e salva, e esperava que a presença de sua filha em casa pudesse amenizar um pouco sua aflição e sofrimento. Ele se sentia esfomeado outra vez, mas nada lhe apetecia. Até mesmo o aroma dos deliciosos doces, que poderiam enganar seu estômago, havia se tomado em lembrança dolorosa de Irene. Talvez amanhã.
Rayford ligou a televisão, não por interesse de ver mais desgraças, mas com a esperança de notícias sobre a ordem no país, o restabelecimento do tráfego, a comunicação. Após um minuto ou dois de cenas repetidas, ele a desligou. Afastou a idéia de ligar para O'Hare sobre a probabilidade de entrar no aeroporto e pegar seu carro, porque não queria tirar o fone do gancho nem mesmo por um minuto, pois poderia acontecer de Chloe tentar uma ligação para casa. Havia horas desde que ela saíra de Paio Alto. Quanto tempo levaria para fazer todas aquelas conexões malucas e finalmente voar de Ozark, partindo de Springfield em direção aos arredores de Chicago? Ele se recordou da antiga brincadeira na indústria aeronáutica: Ozark lido ao contrário é Krazo [craze = loucura]. Mas agora ele não achava graça nenhuma.
Ele deu um salto quando o telefone tocou, mas não era Chloe.
- Sinto muito, capitão - disse Hattie. - Prometi chamá-lo, mas caí no sono depois da ligação que recebi e só acordei agora.
- Está tudo bem, Hattie. Na verdade, preciso...
- Eu não queria importuná-lo de modo algum num momento como este.
- Não, está tudo bem, eu apenas...
- Falou com Chloe?
- Estou esperando que ela me telefone a qualquer momento, por isso vou ter de desligar!
Rayford tinha sido mais brusco do que pretendia, e Hattie ficou, a princípio, calada.
- Então, tudo bem. Sinto muito.
- Depois ligo pra você, Hattie. Está bem? -Está bem.
Ela pareceu chocada. Ele lamentou por isto, mas não por ter se livrado dela naquele momento. Sabia que ela estava apenas querendo ajudar e ser atenciosa, mas aparentemente não entendera a ansiedade dele. Hattie estava sozinha e assustada, tanto quanto ele, e sem dúvida já recebera notícias de sua família. Oh! não! Ele nem sequer perguntou sobre a família dela! Ela iria odiá-lo, e por que não? Quão egoísta pude ser?, pensou ele.
Por mais ansioso que estivesse para ouvir Chloe, ele bem que poderia arriscar-se a falar mais uns dois minutos ao telefone. Discou para Hattie, mas sua linha estava ocupada.
Logo que chegou ao apartamento, Buck tentou um telefonema para Dirk Burton em Londres, não querendo esperar mais tempo por causa da diferença de horário. Ele teve uma resposta desnorteante. A secretária eletrônica particular de Dirk atendeu com a mensagem particular, mas, tão logo o sinal para "deixar um recado" soou, um outro mais demorado indicou que não havia mais espaço na fita. Estranho. Ou Dirk esteve dormindo esse tempo todo ou... Buck não havia levado em conta que Dirk podia ter desaparecido. Além de deixar Buck com um milhão de ■,,: dúvidas sobre Stonagal, Carpathia, Todd-Cothran e todo aquele fenômeno, Dirk era um de seus melhores amigos desde Princeton. Oh, por favor, que isto seja apenas uma coincidência, pensou ele. Que ele esteja viajando...
Tão logo Buck pôs o fone no gancho, seu telefone tocou. Era Hattie Durham. Ela estava chorando.
- Sinto aborrecê-lo, Sr. Williams, eu tinha prometido a mim mesma nunca ligar para sua casa...
- Tudo bem, Hattie. O que está havendo?
- Bem, na verdade é uma bobagem, mas estou preocupada e não tenho com quem conversar. Não pude localizar minha mãe e minhas irmãs e, bem, apenas pensei que talvez o senhor pudesse me entender.
- Esteja à vontade.
Ela contou a Buck que telefonara para o capitão-aviador Steele, quando chegaram a Chicago, e soube que ele havia perdido sua esposa e filho. Quando voltou a telefonar-lhe para saber notícias, ele interrompeu bruscamente a conversa, dizendo que estava esperando uma ligação de sua filha.
- Posso entender isso - disse Buck, revirando os olhos. Desde quando ele fazia parte do clube de corações solitários? Ela não teria uma amiga com quem pudesse compartilhar seus problemas?
- Eu também posso - disse ela. - Não há o que fazer. Sei que ele está sofrendo porque sua esposa e filho desapareceram. É como se tivessem morrido. Mas ele sabia que eu estava apreensiva com minha família e nem sequer perguntou.
- Bem, estou certo de que tudo isso faz parte da tensão do momento, da angústia, como você diz, e...
- Oh! eu sei. Eu apenas queria falar com alguém, e pensei no senhor.
- Ora, ligue quando quiser - disse ele da boca para fora. Oh! rapaz, pensou ele. O número do meu telefone particular vai ter de ser eliminado dos próximos cartões de visita. - Ouça, gostaria de continuar, mas tenho um encontro esta noite, e...
- Bem, obrigada por me ouvir.
- Compreendo - disse ele, embora duvidasse que ela compreenderia. Talvez Hattie mostrasse mais perspicácia e sensibilidade quando não estivesse estressada. Ele esperava que sim.
Rayford ficou contente por encontrar ocupada a linha de Hattie, porque poderia dizer-lhe mais tarde que tentou retornar a ligação. Porém, ele não conseguiu manter a linha desocupada por muito tempo. Um minuto depois, seu telefone tocou de novo.
- Capitão, sou eu outra vez. Sinto muito, não vou tomar seu tempo, mas imaginei que você tivesse tentado falar comigo enquanto estive usando o telefone...
- Na realidade, tentei, Hattie. O que você ficou sabendo de seus familiares?
- Eles estão bem - respondeu com voz de choro.
- Oh! graças a Deus - disse ele.
Rayford pôs-se a pensar no que teria havido com ele. Disse que estava contente por ela, mas chegara à conclusão de que aqueles que não desapareceram haviam perdido o maior dos eventos da história cósmica. Mas que poderia ele dizer: "Oh! sinto muito que seus familiares também tenham sido deixados para trás"?
Quando desligou, Rayford sentou-se perto do telefone com a sensação desagradável de que, com certeza, desta vez tinha perdido a ligação de Chloe. Isto o deixou furioso. Seu estômago estava dando sinais de fome, e ele sabia que precisava comer, mas resolveu esperar mais algum tempo, na esperança de poder comer na companhia de Chloe logo que ela chegasse. Conhecendo-a, imaginava que ela também estivesse sem comer.
NOVE
O SISTEMA de alarme subconsciente de Buck, que sempre o fazia despertar na hora desejada, falhou naquele começo de noite. Ao chegar ao escritório de Steve Plank por volta de 8h45, com o cabelo despenteado e desculpando-se pelo atraso, suas suposições foram confirmadas. Sentiu a indignação dos editores veteranos. Juan Ortiz, chefe da seção de política internacional, estava furioso. Ele não aceitava que Buck participasse dos assuntos relacionados à conferência de cúpula que planejava cobrir em duas semanas.
- Os judeus nacionalistas estão discutindo um tema que , tenho acompanhado durante anos. Quem teria acreditado que eles manifestariam interesse em um governo mundial?
O simples fato de aceitarem discutir já é um grande passo. Eles estão se reunindo aqui, e não em Jerusalém ou Tel-Aviv, porque suas idéias são revolucionárias. Muitos dos nacionalistas israelenses acham que a Terra Santa já foi longe demais com tanta generosidade. Isto é histórico.
- Então qual é o seu problema - disse Plank - com minha indicação de nosso principal repórter para a cobertura?
- Porque eu sou seu principal repórter nessa área.
- Estou tentando entender o significado geral de todas essas reuniões - disse Plank.
Jimmy Borland, o editor de religião, argumentou:
- Compreendo as objeções de Juan, mas tenho duas reuniões para cobrir ao mesmo tempo. Agradeço qualquer ajuda.
- Agora estamos começando a nos entender - disse Plank.
- Mas vou ser franco com você, Buck, acrescentou Borland. - Quero dar a última palavra no texto final.
- Certamente - disse Plank.
- Não seja apressado - disse Buck. - Não quero ser tratado como um repórter de equipe a quem se distribui aleatoriamente o trabalho de campo. Vou tirar minhas conclusões sobre essas reuniões e não quero me intrometer nos territórios de seus experts. Não quero fazer nem mesmo as coberturas de reuniões isoladas. Quero fazer a coordenação, saber o que significam essas reuniões, quais são seus pontos em comum. Jimmy, os seus dois grupos religiosos - os judeus que querem reconstruir o templo e os ecumênicos que desejam uma espécie de ordem religiosa universal - vão disputar um com o outro? Haverá judeus religiosos...
- Ortodoxos.
- Está bem, haverá judeus ortodoxos na conferência ecumênica? Porque os ecumênicos são contrários à reconstrução do templo.
- Bem, ao menos você está pensando como um editor de religião - disse Jimmy. - Isto é alentador.
- Mas qual é a sua idéia?
- Não sei. Há um fato curioso. As reuniões deles serão realizadas no mesmo horário e na mesma cidade, o que é bom demais para ser verdade.
A editora de finanças, Barbara Donahue, pôs fim à discussão.
- Tenho tratado com você sobre vários assuntos desta natureza, Steve - disse ela. - E aprecio seu modo de agir quando permite que todos se manifestem sem ameaça. Mas sabemos sua decisão a respeito do envolvimento de Buck, portanto vamos passar por cima disto e ir adiante com este projeto. Se cada um de nós dedicar-se de corpo e alma às reportagens de nossos respectivos departamentos e der alguma contribuição ao texto geral, que seja do agrado de todos, vamos em frente.
Até Ortiz meneou a cabeça afirmativamente, embora para Buck ele estivesse ainda relutante.
- Buck é o nosso jogador-chave - disse Plank -, por isso mantenham contato com ele. Ele se reportará a mim. Você quer dizer alguma coisa, Buck?
- Apenas agradecer muito - disse ele pesarosamente, provocando risos dos colegas. - Barbara, seus monetaristas estão se reunindo na ONU, como fizeram quando decidiram sobre a questão das três moedas?
- No mesmo lugar e as mesmas pessoas.
- Até que ponto Jonathan Stonagal está envolvido?
- Publicamente, você quer dizer? - perguntou ela.
- Bem, todo mundo sabe que ele é discreto. Mas há uma; influência de Stonagal?
- Você já viu pato falar? Buck sorriu e fez uma rápida anotação.
- Vou tomar isso como um sim. Gostaria de me aproximar dele e, quem sabe, tentar falar com o "João Diamante".
- Boa sorte. Ele provavelmente não vai mostrar a cara lá.
- Mas ele está na cidade, não está, Barbara? Ele não se hospedou no Plaza na última vez?
- Você vai estar por perto, não vai? - arriscou ela.
- Bem, ele só recebia um figurão por dia em sua suíte. Juan Ortiz levantou a mão.
- Vou concordar com isso, e nada tenho de pessoal contra você, Buck. Mas não creio que haja um meio de coordenar esta reportagem sem estabelecermos um vínculo.
Quero dizer, se você quiser dar início a uma reportagem de destaque dizendo que houve quatro importantes conferências internacionais na cidade, quase todas ao mesmo tempo, muito bem. Mas relacionar uma com a outra seria ir longe demais.
- Se eu achar que elas não têm relação entre si, não haverá uma reportagem geral consistente - disse Buck. - De acordo?
Rayford Steele não se continha de tanta ansiedade, agravada por sua angústia. Onde estaria Chloe? Ele ficou em casa o dia todo, andando de um lado para o outro, em prantos, pensando. Sentia-se envelhecido e claustrófobo. Telefonou para a Pan-Continental e lhe foi dito que seu carro poderia ser liberado quando ele retornasse da viagem do próximo fim de semana. As notícias da televisão mostravam o surpreendente progresso na remoção de veículos das estradas e o restabelecimento do transporte em geral. Mas a paisagem ainda ficaria com aquela aparência de destruição durante meses. Guindastes e máquinas trituradoras de sucata continuavam trabalhando, e os destroços permaneciam empilhados perigosamente nos acostamentos das estradas e vias expressas.
Rayford levou horas para decidir telefonar para a igreja de sua esposa e sentiu-se grato de não ter de conversar com ninguém. Como ele esperava, havia uma nova mensagem gravada na secretária eletrônica da igreja, transmitida por uma voz de homem que soava um tanto emotiva e pausada.
"Você ligou para a Igreja Nova Esperança. Estamos planejando um estudo bíblico semanal, mas por enquanto vamos nos reunir apenas aos domingos, às dez horas da manhã. Todo o conselho da igreja, menos eu, e a maioria de nossos congregados foram levados. Eu e os que ficaram estamos cuidando do templo e distribuindo um teipe que nosso pastor titular deixou preparado para esta ocasião. Você pode vir ao escritório da igreja a qualquer hora para apanhar uma cópia grátis do teipe, e contamos com sua presença no culto matinal de domingo."
Bem, certamente, pensou Rayford, esse pastor falava freqüentemente do Arrebatamento da igreja. Era esta a razão por que Irene se sentia tão fascinada com isso. Que idéia criativa, a de gravar uma mensagem para aqueles que foram deixados para trás! Ele e Chloe teriam de buscar uma cópia no dia seguinte. Seria muito bom se ela estivesse tão interessada como ele em descobrir a verdade.
Rayford espiou através da vidraça a noite escura, exatamente no momento em que Chloe, com uma grande mala ao lado, pagava o motorista. Ele saiu correndo de casa, os pés calçados somente com meias, e abraçou-a com força.
- Oh! papai! - ela exclamou chorando. - Como estão todos? Ele sacudiu a cabeça, o rosto espelhando desalento.
- Não quero ouvir - disse ela, largando-o e olhando para a casa, como se estivesse esperando que sua mãe ou seu irmão aparecesse na porta.
- Sobramos só nós dois, Chloe - disse Rayford, abraçando a filha e chorando com ela na escuridão.
Buck Williams só conseguiu uma informação a respeito de Dirk Burton na sexta-feira por meio do supervisor da área em que Dirk atuava na Bolsa de Londres.
- O senhor deve me dizer precisamente quem é e qual é o seu grau de relacionamento com o Sr. Burton antes que eu possa fornecer-lhe alguma informação - disse Nigel Leonard. - Sou também obrigado a informar-lhe que esta conversa será gravada a partir deste momento.
- Como assim?
- Estou gravando nossa conversa. Se o senhor não concordar, desligue.
- Não estou pescando nada.
- 0 que o senhor quer dizer com "pescando"? O senhor sabe o que é um gravador, não sabe?
- Claro, também estou usando o meu, se o senhor não se importar.
- Bem, eu me importo, Sr. Williams. Por que raios o senhor está gravando?
- E por que o senhor está?
- Estamos diante de uma situação complicada, e precisamos investigar todos os contatos.
- Que situação? Dirk também desapareceu?
- Não foi bem assim, suponho.
- Então me conte o que houve.
- Conte o senhor primeiro o motivo de seu telefonema. - Sou um velho amigo dele. Fomos colegas de classe na faculdade.
- Onde?
- Princeton.
- Muito bem. Quando? Buck lhe contou.
- Muito bem. A última vez que falou com ele?
- Não me lembro. Trocamos mensagens pelo voice mail.
- Sua atividade? Buck hesitou.
- Articulista sênior, Semanário Global, Nova York.
- Seu interesse é de natureza jornalística?
- Não vou esconder-lhe isto - disse Buck, tentando evitar que sua raiva extravasasse -, mas não posso imaginar que meu amigo, importante como é para mim, seja de interesse para meus leitores.
- Sr. Williams - disse Nigel cautelosamente -, apesar de nossos gravadores estarem ligados, permita-me afirmar categoricamente que o que vou dizer é estritamente confidencial e não deve ser gravado. Está me entendendo?
- Eu...
- Porque estou ciente de que, tanto em seu país como na Comunidade Britânica, qualquer coisa que se diga, depois da afirmação de que se trata de assunto confidencial, não pode ser gravada e deve ser protegida.
- Concordo - disse Buck.
- Perdão, o que disse?
- O senhor me ouviu. Concordo. A conversa não está sendo gravada. Agora, onde está Dirk?
- O corpo do Sr. Burton foi encontrado em seu apartamento esta manhã. Ele tinha uma perfuração de bala na cabeça. Sinto muito, já que o senhor era um amigo dele, mas foi confirmado.
O Suicídio.
Buck quase perdeu a fala.
- Por quem? - indagou.
- Pelas autoridades.
- Que autoridades?
- Scotland Yard e o pessoal de segurança da Bolsa. Scotland Yardl, pensou Buck. Vamos descobrir isso.
- Por que a Bolsa está envolvida?
- Costumamos proteger nossas informações e nosso pessoal, senhor.
- Suicídio é impossível, o senhor sabe - retrucou Buck.
- Eu sei?
- Se o senhor é o supervisor dele, sabe.
- Houve um número muito grande de suicídios aqui desde os desaparecimentos, senhor.
Buck balançou a cabeça como se Nigel pudesse vê-lo do outro lado do Atlântico.
- Dirk não se matou, e o senhor sabe disso.
- Entendo seus sentimentos, mas não sei mais do que o senhor o que se passava na mente do Sr. Burton. Eu gostava dele, mas não estou em condições de questionar a conclusão da perícia médica.
Buck bateu o telefone e se dirigiu ao escritório de Steve Plank. Ele contou a seu chefe o que acabava de ouvir.
- Que coisa terrível - disse Steve.
- Tenho um contato na Scotland Yard que conhece Dirk, mas não me atrevo a falar com ele sobre este assunto por telefone. Marge pode me fazer uma reserva no próximo vôo para Londres? Estarei de volta em tempo para essas conferências, mas tenho de ir.
- Se houver vôos para lá. Não estou certo de que o aeroporto Kennedy já tenha voltado a funcionar.
- E quanto ao aeroporto La Guardiã?
- Pergunte a Marge. Você sabe que Carpathia estará aqui amanhã.
- Você mesmo disse que ele era peixe miúdo. Talvez ele ainda esteja aqui quando eu voltar.
Em razão do sofrimento da filha, Rayford Steele não foi capaz de convencê-la a sair de casa para espairecer um pouco. Chloe passara horas no quarto de seu irmão e, depois, no quarto do casal, escolhendo algumas lembranças pessoais para acrescentar às que seu pai tinha colocado nas caixas. Rayford estava sofrendo por ela. Intimamente, ele havia esperado que ela o consolasse. Talvez mais tarde. Por ora, ela precisava de tempo para assimilar as perdas da mãe e do irmão. Assim que extravasou seu sofrimento, Chloe já estava pronta para conversar. Depois de recordar fatos relacionados à família que provocaram mais angústia ainda no coração sofrido de Rayford, ela finalmente mudou o assunto para o fenômeno dos desaparecimentos.
- Papai, na Califórnia eles estão admitindo a teoria de invasão vinda do espaço.
- Você está brincando.
- Não. Talvez seja porque você sempre foi tão prático e descrente a respeito de tudo o que os tablóides publicam, mas simplesmente não posso atinar com o que aconteceu. Quero dizer, deve ter sido alguma coisa sobrenatural ou do outro mundo, mas...
- Mas o quê?
- Parece que, se a força de uma vida do além fosse capaz de fazer isto, também seria capaz de se comunicar conosco. Será que eles queriam tomar conta deste mundo ou exigir algum resgate ou que fizéssemos alguma coisa para eles?
- Quem? Os marcianos?
- Papai! Não estou dizendo que acredito nisso. Estou dizendo que não acredito. Mas você não acha que meu raciocínio faz sentido?
- Você não tem de me convencer. Admito que não teria sonhado que nenhuma dessas coisas fosse possível há apenas uma semana, mas minha lógica já foi longe demais.
Rayford esperava que Chloe perguntasse sua teoria. Ele não queria começar justamente pelo tema religioso. Ela foi sempre avessa a este respeito, tendo deixado de ir à igreja durante o curso secundário. Naquela ocasião, ele e Irene desistiram de insistir com ela. Chloe era uma boa filha, jamais se envolveu em problemas. Conseguiu notas boas o suficiente para ganhar uma bolsa de estudos parcial. Embora ocasionalmente ficasse fora até tarde da noite e fizesse parte daquele período louco da juventude do secundário, os pais nunca precisaram pagar uma fiança para tirá-la da prisão, e não havia a mínima evidência de uso de droga. Ela não se deixava envolver levianamente por essas coisas.
Rayford e Irene sabiam que Chloe havia chegado a casa várias vezes embriagada após uma festa, a ponto de passar a noite vomitando. Na primeira vez, ele e Irene preferiram não intervir, agindo como se nada tivesse acontecido. Acreditavam que ela era suficientemente ajuizada para saber melhor quais seriam os resultados numa próxima vez. Quando aconteceu de novo, Rayford teve uma séria conversa com ela.
- Eu sei, eu sei, eu sei, está bem, papai? Você não precisa começar a pegar no meu pé.
- Não estou começando a pegar no seu pé. Quero apenas tornar claro que você deve saber que não pode dirigir se beber além da conta.
- É evidente que sei.
- E você sabe quão nocivo e perigoso é beber em demasia.
- Pensei que você não estivesse pegando no meu pé.
- Apenas me diga que você sabe o que está fazendo.
- Acho que já disse.
Ele havia balançado a cabeça sem querer dizer mais nada.
- Papai, pode continuar. Fale dos dois barris que bebi.
- Não brinque comigo - disse Rayford. - Algum dia você vai ter um filho e não saberá o que dizer a ele. Quando você ama alguém de todo o coração e se preocupa com seu bem-estar...
Rayford não conseguira prosseguir. Pela primeira vez, em sua vida adulta, fora dominado pela emoção. Isso nunca acontecera em suas brigas com Irene. Ele tinha sido sempre muito defensivo, muito preocupado em compreender as razões dela, evitando um impasse ou desenlace. Mas, no caso de Chloe, ele queria realmente dizer a coisa certa, queria protegê-la. Desejara que ela soubesse que ele a amava, mas estava parecendo o contrário. Era como se ele estivesse punindo, fazendo sermão, repreendendo. Foi isso que o levara a interromper a discussão.
Embora ele não tivesse planejado, aquela involuntária demonstração emotiva afetara Chloe. Durante meses, ela permanecera arredia em relação aos pais. Tornara-se mal- humorada, fria, independente, sarcástica, desafiadora. Ele sabia que isso tudo fazia parte do seu desenvolvimento no sentido de tornar-se adulta, mas aquela foi uma fase dolorosa e assustadora.
Enquanto ele mordia os lábios e respirava profundamente, esperando recompor-se e não ficar embaraçado, Chloe aproximara-se dele e o abraçara envolvendo-o com os braços entrelaçados em seu pescoço, exatamente como fazia quando garotinha.
- Oh! papai, não chore - dissera ela. - Sei que você me ama. Sei que você se importa comigo. Não se preocupe. Aprendi a lição e não vou ser estúpida outra vez, prometo.
Ele se desmanchara em lágrimas, e ela também. Dali em diante, tornaram-se muito unidos. Rayford não se recordava de ter voltado a discipliná-la e, embora ela não tivesse retornado à igreja, ele tinha começado a se afastar também. Tornaram-se unha e carne, e ela cresceu e se desenvolveu cada vez mais parecida com ele. Irene brincava dizendo que cada um dos filhos tinha seu progenitor favorito.
Agora, apenas poucos dias depois do desaparecimento de Irene e Raymie, Rayford esperava que o relacionamento que começara em um momento de emoção, quando Chloe estava na escola secundária, reflorescesse para que pudessem conversar. O que era mais importante do que aquilo que tinha acontecido? Ele já sabia em que os amigos amalucados da faculdade e os californianos acreditavam. O que havia de novidade? Ele sempre disse, generalizando, que as pessoas da Costa Oeste atribuíam aos tablóides o mesmo peso que os habitantes do Meio-Oeste davam ao Chicago Tribune ou mesmo ao New York Times.
Já no final do dia, sexta-feira, Rayford e Chloe concordaram, embora com relutância, que deviam comer. Ambos trabalharam na cozinha, preparando rapidamente a refeição com o que encontraram, o que resultou numa saudável mistura de frutas e vegetais. Havia algo ameno e benéfico no trabalho que faziam em silêncio. Era pungente, por outro lado, porque qualquer atividade doméstica fazia Rayford lembrar-se de Irene. E, quando se sentaram para comer, ocuparam automaticamente os mesmos lugares na mesa aos quais tinham se habituado - o que tornava os outros dois lugares vazios ainda mais evidentes.
Rayford notou que o rosto de Chloe começou a anuviar-se
de novo e sabia que ela estava sentindo o mesmo que ele. Passaram-se muitos anos desde que faziam três ou quatro refeições por semana juntos, como família. Irene sentava-se sempre à sua esquerda, Raymie, à sua direita, e Chloe, na frente dele. O vazio e o silêncio eram dissonantes.
Rayford estava faminto e logo devorou uma enorme salada. Chloe parou de comer logo depois de ter começado e chorou silenciosamente, a cabeça inclinada, lágrimas caindo em seu colo. O pai tomou sua mão, e ela se levantou sentando-se em seu joelho, escondendo o rosto e soluçando. Com o coração despedaçado ao vê-la assim, Rayford pôs-se a acalentá-la até que ela silenciou.
- Onde estão eles? - perguntou Chloe soluçando.
- Você quer saber onde eu penso que estão? - perguntou ele. - Você quer mesmo saber?
- Claro que sim.
- Creio que estão no céu.
- Oh! papai! Havia alguns caras religiosos na escola que viviam dizendo isso, mas, se sabiam tanto sobre religião, por que ficaram?
- Talvez eles tenham concluído que não foram bons o suficiente e perderam sua oportunidade.
- Você acha que é o que fizemos? - perguntou Chloe, voltando à sua cadeira.
- Acho que sim. Sua mãe não lhe disse que acreditava na volta de Jesus algum dia para levar seus seguidores diretamente para o céu antes de morrerem?
- Certo, mas ela foi sempre mais religiosa do que nós. Eu achava que ela estava simplesmente sendo arrebatada.
- Boa escolha de palavras.
- O quê?
- Ela foi arrebatada, Chloe. Raymie também.
- Você realmente acredita nisso?
- Acredito.
- Isso é tão estúpido quanto a teoria da invasão dos marcianos.
Rayford ficou na defensiva.
- Então qual é sua teoria?
Chloe começou a tirar os pratos da mesa e falou de costas para ele.
- Sou bastante honesta para admitir que não sei.
- Então não estou sendo honesto?
Chloe voltou-se para ele, olhando-o com simpatia.
- Você não vê, papai? Você está gravitando em torno da possibilidade menos dolorosa. Se houvesse uma votação, eu diria que minha mãe e meu irmãozinho estão no céu com Deus, sentados nas nuvens, dedilhando suas harpas.
- Então estou enganando a mim mesmo, é o que você está dizendo?
- Papai, não estou culpando-o. Mas tem de admitir que isto é muito artificial.
Agora Rayford enfureceu-se.
- O que é mais artificial do que pessoas desaparecerem saindo de suas roupas? Quem mais poderia ter feito isso? Há alguns anos, acusamos os soviéticos, dizendo que eles tinham desenvolvido alguma tecnologia supermoderna, algum raio da morte que afetava somente a carne e os ossos humanos. Porém não há mais ameaça soviética, e os russos perderam pessoas também. E como este... este seja lá o que for... escolheu quem levar e quem deixar?
- Você está dizendo que a única explicação lógica é Deus, que Ele levou o que era dele e nos deixou para trás?
- É o que estou dizendo.
- Eu não quero ouvir isso.
- Chloe, nossa família é uma perfeita imagem do que aconteceu. Se o que estou dizendo estiver correto, as duas pessoas lógicas se foram e as duas pessoas lógicas foram deixadas.
- Você acha que sou uma grande pecadora?
- Chloe, ouça. Se você é, eu não sei, mas eu sou pecador. Não estou julgando você. Se estou certo sobre isso, perdemos alguma coisa. Eu sempre me considerei cristão, principalmente por ter sido criado num lar cristão e não ser judeu.
- Agora você não se considera mais cristão?
- Chloe, penso que os cristãos se foram.
- Então eu também não sou cristã?
- Você é minha filha e o único membro de minha família que ainda está aqui; amo você mais do que qualquer coisa na terra. Mas, se os cristãos se foram e todos os demais ficaram, acho que não existe mais nenhum cristão.
- Não existe mais nenhum supercristão, você quer dizer.
- Sim, um verdadeiro cristão. Aparentemente, aqueles que foram reconhecidos por Deus como verdadeiramente seus. De quem mais posso estar falando?
- Papai, o que isso prova quem é Deus? Algum ditador doentio, sádico?
- Cuidado, doçura. Você acha que estou errado, mas, e se eu estiver certo?
- Então Deus é rancoroso, abominável, mesquinho. Quem deseja ir para o céu com um Deus como esse?
- Se é lá que sua mãe e Raymie estão, é lá que eu quero estar.
- Eu também quero estar com eles, papai! Mas diga-me como isto se harmoniza com um Deus amoroso e misericordioso. Quando freqüentei a igreja, fiquei cansada de ouvir como Deus é amoroso. Ele nunca respondeu às minhas orações e nunca senti que Ele me conhecia ou se preocupava comigo. Agora você diz que é isso mesmo. Ele não se preocupava comigo. Não fui qualificada, por isso fui deixada para trás? Seria melhor que você não estivesse certo.
- Mas, se não estiver certo, quem está, Chloe? Onde estão eles? Onde está todo mundo?
- Está vendo? Você se interessou por essa coisa de céu porque isso faz você sentir-se melhor. Mas me faz sentir pior. Não acredito. Não quero nem mesmo considerar essa idéia.
Rayford desistiu do assunto e foi ver televisão. A programação regular tinha voltado, mas as notícias prosseguiam. Ele ficou intrigado com o nome incomum do novo presidente da Romênia, sobre o qual tinha lido recentemente. Carpathia. Ele deveria chegar ao aeroporto La Guardiã, em Nova York, no sábado e dar uma entrevista à imprensa no domingo de manhã, antes de falar na ONU.
Portanto, La Guardiã estava aberto. Era para lá que Rayford devia pilotar um vôo lotado no início daquela noite. Ele telefonou para a Pan-Continental em O'Hare.
- Estou contente por ter telefonado - disse um supervisor. -Estava para chamá-lo. Sua avaliação para o 757 está atualizada?
- Não. Já pilotei esse tipo de aeronave muitas vezes, mas prefiro o 747, e não fui avaliado este ano para pilotar o 757.
- Estamos somente operando com 757 neste fim de semana para o leste. Vamos ter de chamar outro piloto. E você precisa ser avaliado logo para termos flexibilidade.
- Vou providenciar. Qual é o próximo vôo para mim?
- Você quer voar para Atlanta na segunda-feira e retornar no mesmo dia?
- Num...?
-747.
- Tudo bem. Você sabe se há lugar para um passageiro nesse vôo?
- Para quem?
- Um membro da família.
- Deixe-me checar.
Rayford ouviu o ruído do teclado do computador e som de vozes ao fundo.
- Ah! enquanto eu estava checando, recebemos um pedido de uma integrante da tripulação para ser escalada para o seu próximo vôo. Ela estava imaginando que esta noite você faria a rota Logan-Kennedy e retorno.
- Quem? Hattie Durham?
- Deixe-me ver. Certo.
- Então, ela está escalada para Boston e Nova York?
- Hã-hã.
- E eu não estou, portanto esta é uma questão que pode ser discutida mais tarde, entendido?
- Suponho que sim. Você poderia me adiantar se vai concordar ou não?
- Como assim?
- Ela vai perguntar novamente, suponho. Você tem alguma objeção caso ela seja escalada para um de seus próximos vôos?
- Bem, de qualquer forma não será para meu vôo até Atlanta, certo?
-Certo.
Rayford suspirou.
- Nenhuma objeção. Não, espere. Simplesmente deixe que aconteça, se é que vai acontecer.
- Não estou entendendo, capitão.
- Estou apenas dizendo que, se ela for escalada normalmente, não tenho nenhuma objeção. Mas não vamos fazer qualquer ginástica para que isso aconteça.
- Entendi. E seu vôo para Atlanta parece que vai levar um passageiro grátis. Nome?
- Chloe Steele.
- Vou tentar colocá-la na primeira classe, mas, se estiver lotada, saiba que ela vai sentar lá no fundo do avião.
Assim que Rayford desligou o telefone, Chloe apareceu na sala.
- Não vou voar esta noite - disse ele.
- A notícia é boa ou ruim?
- Estou aliviado. Quero passar mais tempo com você.
- Depois do modo como lhe falei? Imaginei que você quisesse me ver pelas costas.
- Chloe, podemos falar francamente um com o outro. Você é minha família. Odeio a idéia de estar longe de você. Vou fazer um vôo de ida e volta para Atlanta na segunda-feira e reservei um lugar na primeira classe, se você quiser me acompanhar.
- Certamente.
- Eu gostaria apenas que você não tivesse dito uma coisa.
- Qual?
- Que você não quer nem mesmo considerar minha teoria. Você sempre gostou das minhas teorias. Não me importo se você disser que não a aceita. Não sei o suficiente para articulá-la de uma forma que faça sentido. Mas sua mãe falou sobre isso. Uma vez ela até me advertiu que, se eu não tivesse certeza de que iria para o céu, quando Cristo retornasse para buscar seu povo, eu não deveria ser irreverente a este respeito.
- E você foi?
- Certamente fui. Mas nunca mais serei.
- Bem, papai, não vou ser irreverente a este respeito. Simplesmente não posso aceitar. Só isso.
- É compreensível. Mas não diga que não vai nem mesmo considerar minha teoria.
- Bem, você considerou a teoria dos invasores do espaço?
- Na realidade, considerei.
- Você está brincando.
- Considerei tudo. O que aconteceu estava muito acima da experiência humana; em que poderíamos pensar?
- Está bem, então, se eu voltar atrás e disser que vou considerar sua teoria, o que isso vai significar? Vamos nos tornar religiosos fanáticos de repente, começar a ir à igreja, e o que mais? Quem sabe se agora já não é muito tarde?
Se você estiver certo, talvez tenhamos perdido nossa chance para sempre.
- É o que temos de investigar, você não acha? Vamos examinar o assunto, ver se existe alguma coisa relacionada a ele. Se houver, devemos saber se ainda existe uma oportunidade de um dia voltarmos a estar com mamãe e Raymie.
Chloe sentou-se meneando a cabeça.
- Ih!, papai. Não sei não.
- Ouça, telefonei para a igreja que sua mãe estava freqüentando.
- Oh! não.
Rayford lhe contou sobre a gravação e o oferecimento do teipe.
- Papai! Um teipe para aqueles que ficaram para trás? Por favor!
- Isto lhe parece ridículo porque você está sendo cética. Não conheço outra explicação lógica, por isso não vejo a hora de ouvir o teipe.
- Você está desesperado.
- Claro que estou! Você não está?
- Estou aflita e assustada, mas não tão desesperada a ponto de perder o juízo. Oh! papai, sinto muito. Não olhe para mim assim. Não o estou censurando por investigar isso. Continue, e não se preocupe comigo.
- Você irá comigo?
- Prefiro não ir. Mas se você quiser...
- Você pode esperar no carro.
- A questão não é essa. Não estou com medo de encontrar alguém com quem não concordo.
- Vamos lá amanhã - disse Rayford, desapontado com a reação de Chloe, mas determinado a prosseguir, por causa dela e dele. Se estivesse certo, não desistiria de convencer a própria filha.
DEZ
CAMERON Williams convenceu-se de que não deveria telefonar para o amigo comum dele e de Dirk Burton na Scotland Yard antes de deixar Nova York. Por causa da dificuldade de comunicação que perdurava havia vários dias, e em virtude da estranha conversa que teve com o supervisor de Dirk, Buck não queria correr o risco de ter sua ligação interceptada por alguém. Tudo o que ele queria era preservar a integridade de seu contato com a Scotland Yard.
Munido de seus dois passaportes, o verdadeiro e o falso, e do visto de entrada - uma precaução habitual de segurança -, Buck pegou um vôo para Londres, saindo de La Guardiã no final da noite de sexta-feira, chegando a Heathrow no sábado pela manhã. Instalou-se no Hotel Tavistock e dormiu até a metade da tarde. Em seguida, se pôs a buscar a verdade sobre a morte de Dirk.
Sua primeira providência foi telefonar para a Scotland Yard e perguntar por seu amigo Alan Tompkins, um detetive de nível médio. Eles tinham aproximadamente a mesma idade, e Tompkins era um investigador alto, de cabelos escuros e aparência meio desleixada que Buck entrevistara para uma reportagem sobre o terrorismo britânico.
Eles se deram bem e, certa noite, chegaram a passar algumas horas numa taverna com Dirk. Os três se tornaram amigos. Toda vez que Buck visitava Londres, os três se reuniam. Agora, por telefone, ele tentava comunicar-se com Tompkins de tal modo que o amigo percebesse seu intuito de imediato, sem mencionar que se conheciam - no caso de o telefone estar grampeado.
- Sr. Tompkins, o senhor não me conhece, sou Cameron Williams, do Semanário Global. - Antes que Alan tivesse tempo de rir e saudar seu amigo, Buck continuou ininterruptamente: - Estou aqui em Londres para escrever um artigo preliminar para a conferência monetária internacional na ONU.
Alan ficou repentinamente sério.
- Como posso ajudá-lo, senhor? O que isso tem a ver com a Scotland Yard?
- Estou tendo dificuldade de localizar uma pessoa para uma entrevista e suspeito que houve algum problema com ela.
- Como se chama essa pessoa?
- Burton. Dirk Burton. Ele trabalha na Bolsa.
- Vou verificar e em seguida lhe telefonarei. Poucos minutos depois, o telefone de Buck tocou.
- Tompkins da Yard. Gostaria que o senhor tivesse a gentileza de vir até aqui para conversarmos.
Na manhã de sábado em Monte Prospect, Illinois, Rayford telefonou novamente para a Igreja Nova Esperança. Desta vez, um homem atendeu. Rayford apresentou-se como marido de uma ex-congregada.
- Conheço o senhor - disse o homem. - Já nos encontramos. Sou Bruce Barnes, o pastor auxiliar.
- Oh! sim, como vai?
- O senhor disse ex-congregada? Então Irene não está mais conosco?
- Exatamente, e nosso filho também.
- Ray Jr., não era esse o seu nome?
- Certo.
- O senhor também tem uma filha mais velha, que não freqüenta a igreja, não tem?
-Chloe.
- E ela...
- Está aqui comigo. Eu queria saber como o senhor está coordenando tudo isso - quantas pessoas desapareceram, se estão se reunindo, esse tipo de coisa. Sei que o senhor tem um culto aos domingos e que está oferecendo um teipe.
- Bem, o senhor então já sabe tudo o que aconteceu, Sr. Steele. Quase todos os membros e freqüentadores habituais desta igreja se foram. Sou a única pessoa que restou do conselho. Pedi a algumas senhoras que ajudassem no escritório da igreja. Não tenho nenhuma idéia de quantos aparecerão no domingo, mas será um privilégio revê-lo.
- Estou muito interessado nesse teipe.
- Ficarei feliz em oferecer-lhe um. Vamos falar sobre isto na manhã de domingo.
- Não sei como perguntar-lhe, Sr. Barnes.
- Bruce.
- Bruce. Você vai ensinar, pregar, ou o quê?
- Discutir. Vamos rodar a gravação para aqueles que não a ouviram e depois discutiremos o assunto.
- Mas o senhor... Quero dizer, como você pode explicar o fato de ainda estar aqui?
- Sr. Steele, há somente uma explicação para isso, e eu prefiro conversar com o senhor pessoalmente. Se o senhor me disser quando virá pegar o teipe, estarei aqui aguardando.
Rayford disse-lhe que iria naquela tarde. Talvez Chloe o acompanhasse.
Alan Tompkins estava aguardando logo na entrada do prédio da Scotland Yard. Quando Buck chegou, Alan apertou sua mão formalmente e levou-o a um pequeno calhambeque, que dirigiu velozmente até uma taverna escura a alguns quilômetros de distância.
- Não vamos falar até chegarmos lá - disse Alan, sempre olhando a retaguarda pelos espelhos retrovisores. - Preciso me concentrar.
Buck nunca vira seu amigo tão agitado e, até mesmo, assustado.
Foi servido a cada um meio litro de cerveja preta num canto escondido da taverna, mas Alan nem tocou na caneca. Buck, que não comera nada desde a chegada, trocou sua caneca vazia pela cheia de Alan e bebeu todo o conteúdo de uma só vez. Quando a garçonete apareceu para pegar as canecas, Buck pediu um sanduíche. Alan recusou, e Buck, conhecendo seus limites, pediu uma soda.
- Sei que isto vai ser como jogar gasolina numa chama -começou Alan -, mas preciso lhe dizer que este é um negócio sórdido e que você deve ficar o mais longe dele que puder.
- A verdade é que você está soprando minha chama - disse Buck. - O que está acontecendo?
- Bem, dizem que foi suicídio, mas...
- Mas nós dois sabemos que é um absurdo. Qual é a evidência? Você esteve no local?
- Estive. Tiro na têmpora, revólver em sua mão. Nenhum bilhete.
- Estava faltando alguma coisa?
- Acho que não, mas, Cameron, você sabe o que isso quer dizer.
-Eu não!
- Vamos, vamos, homem. Dirk era um conspirador teórico, sempre farejando em torno do envolvimento de Todd-Cothran com homens internacionais do dinheiro, de seu papel na conferência das três moedas e de seu relacionamento com Stonagal.
- Alan, há livros sobre esse negócio. Pelo amor de Deus! As pessoas fazem disso um passatempo, atribuindo toda forma de maquinação à Comissão Trilateral, aos iluminados, até mesmo aos maçons. Dirk pensava que Todd-Cothran e Stonagal faziam parte de um grupo que ele chamava de Conselho dos Dez ou Conselho dos Sábios. E daí? Isto é inofensivo.
- Mas quando alguém tem um subordinado, reconhecidamente vários níveis abaixo do dirigente da Bolsa, tentando ligar seu chefe a teorias conspiradoras, esse alguém tem um problema.
Buck suspirou.
- Ele deve receber uma repreensão, talvez ser demitido. Mas me explique por que ele foi morto ou cometeu suicídio.
- Vou dizer-lhe uma coisa, Cameron - continuou Alan. - Sei que ele foi assassinado.
- Sim, estou bastante convencido de que foi, porque acho que, se ele fosse um suicida, eu teria um indício.
- Estão tentando atribuir o suicídio ao remorso que ele devia estar sentindo por ter perdido parentes no grande fenômeno dos desaparecimentos, mas isso não convence ninguém. Que eu saiba, ele não perdeu nenhuma pessoa íntima.
- Mas você sabe que ele foi assassinado? Palavras muito fortes para um investigador.
- Sei porque o conhecia, não porque sou investigador.
- Isso não ajuda - disse Buck. - Eu também posso dizer que o conhecia e que ele não seria capaz de cometer suicídio, mas estou sendo parcial nessa história.
- Cameron, isto seria muito mais simples se Dirk não fosse nosso amigo. Por que motivos nós sempre caçoávamos dele?
- Por muitos motivos. Por quê?
- Nós o criticávamos por ele ser um desajeitado.
- Sim. E daí?
- Se ele estivesse conosco neste momento, onde estaria sentado?
De repente, Buck começou a compreender aonde Alan estava querendo chegar.
- Ele estaria sentado à esquerda de um de nós, e era desajeitado por ser canhoto.
- O tiro foi na têmpora direita, e a suposta arma do suicida estava na mão direita.
- E qual foi a reação dos chefes quando você lhes disse que ele era canhoto e, portanto, devia ter sido assassinado?
- Você é a primeira pessoa a quem falei sobre isso.
- Alan! O que você está dizendo?
- Estou dizendo que amo minha família. Meus pais ainda estão vivos e tenho um irmão e uma irmã mais velhos. Tenho também uma ex-esposa de quem ainda gosto muito. Eu não me importaria de acabar com a vida dela, mas não desejaria que alguém a maltratasse.
- Do que você tem medo?
- Tenho medo de qualquer um que esteja por trás da morte de Dirk, naturalmente.
Mas você tem toda a Scotland Yard em sua retaguarda, homem! Você se considera um funcionário que aplica a lei e vai deixar isto escapar?
- Sim, e você também vai fazer o mesmo!
- Eu não. Não conseguiria viver em paz comigo mesmo.
- Se você tomar alguma atitude, vai morrer.
Buck acenou para a garçonete e pediu batata palha. Ela trouxe uma porção generosa, frita com bastante óleo. Era exatamente o que ele queria. A cerveja já começara a fazer efeito, e o sanduíche tinha sido insuficiente para equilibrar. Ele sentia a cabeça zonza e achava que seu estômago ficaria satisfeito por um bom tempo.
- Estou escutando - sussurrou ele. - O que você está tentando me dizer? Quem o está ameaçando?
- Se você acredita em mim, não vai gostar.
- Nao tenho motivo para não acreditar em você e não estou gostando disso. Desembuche.
- A morte de Dirk foi caracterizada oficialmente como suicídio, e ponto final. O local foi limpo, o corpo, cremado. Pedi uma autópsia, e eles nem quiseram me ouvir. Meu oficial superior, Capitão Sullivan, perguntou-me o que uma autópsia revelaria. Falei-lhe das escoriações, arranhões, sinais de luta. Ele me perguntou se eu achava que fazia sentido um sujeito lutar consigo mesmo antes de se matar. Guardei comigo minhas conclusões.
- Por quê?
- Farejei alguma coisa.
- Que tal eu publicar numa revista internacional uma reportagem apontando essas discrepâncias? Alguma coisa teria de acontecer.
- Fui instruído a dizer-lhe que volte para casa e esqueça que ouviu qualquer coisa sobre este suicídio.
Buck franziu a testa e semicerrou os olhos demonstrando descrença.
- Ninguém sabia que eu viria para cá.
- Talvez seja verdade, mas alguém admitiu que você poderia aparecer. Eu não me surpreendi com sua vinda.
- Por que você deveria? Meu amigo está morto, pretensamente por sua própria mão. Eu não ignoraria isso.
- Você vai ignorar daqui em diante.
- Você acha que vou me acovardar só porque você se acovardou?
- Cameron, você me conhece bem.
- Eu me pergunto se o conheço realmente! Pensei que tivéssemos o mesmo modo de pensar. Fomos paladinos da justiça, Alan. Defensores da verdade. Sou jornalista, você é investigador. Somos céticos por natureza. Como podemos fugir da verdade, especialmente quando se trata de nosso amigo?
- Você me ouviu? Fui alertado para denunciá-lo, se e quando você aparecesse.
- Então por que você permitiu que eu viesse até a Yard?
- Eu estaria em dificuldade se o tivesse avisado antes.
- Com quem?
- Pensei que você nunca perguntaria. Fui visitado por um capanga, conforme vocês costumam dizer nos Estados Unidos.
- Um pistoleiro?
- Precisamente.
- Ele o ameaçou?
- Sim. Ele disse que, se eu não quisesse que acontecesse comigo ou com minha família o mesmo que aconteceu com meu amigo, teria de fazer o que ele dissesse. Acredito que seja o mesmo cara que matou Dirk.
- Foi ele, provavelmente. Então por que você não denunciou a ameaça?
- Eu ia fazer isso. Comecei tentando resolver tudo sozinho. Disse a ele que não se preocupasse comigo. No dia seguinte, fui à Bolsa e solicitei uma entrevista com o Sr. Todd-Cothran.
- O chefão?
- Em carne e osso. Não tinha uma entrevista agendada, naturalmente, mas insisti que se tratava de um assunto da Scotland Yard, e ele consentiu em receber-me. Seu escritório é intimidador. Móveis de mogno e cortinas verde-musgo. Bem, fui direto ao assunto. Disse-lhe: "Senhor, creio que um de seus funcionários foi assassinado." E, com a voz mais calma do mundo, ele disse: "Preste atenção, governador" - um termo que os moradores do extremo leste de Londres usam entre si, mas que não é usado por alguém da posição dele em relação a pessoas com eu -, "na próxima vez que alguém o visitar em seu apartamento às dez horas da noite, como fez um certo cavalheiro na noite passada, cumprimente-o por mim, entendeu?"
- O que você disse?
- O que podia eu dizer? Perdi a voz, tão estupefato fiquei! Apenas olhei para ele e fiz um gesto afirmativo com a cabeça. "E deixe-me dizer uma coisa mais", continuou ele, "diga a seu amigo Williams para ficar fora disso." Perguntei: "Williams?", como se não soubesse de quem ele estava falando. Ele não deu atenção ao que eu disse, certamente por saber que eu conhecia você.
- Alguém escutou o voice mail de Dirk.
- Sem dúvida. E ele disse ainda: "Se aquele sujeito precisar ser convencido, diga-lhe que gosto de seu pai e de Jeff tanto quanto ele." Jeff é seu irmão?
Buck afirmou com a cabeça.
- E então você desmoronou?
- O que poderia fazer? Tentei bancar o herói destemido e disse-lhe: "Posso estar gravando nossa conversa." Frio como, só ele pode ser, disse-me: "Os detectores de metais já o teriam apanhado." "Posso ter uma boa memória e, então, desmascará-lo", disse-lhe eu. Ele retrucou: "O risco é seu, governador. Quem vai acreditar em você, e não em mim? Nem mesmo Marianne acreditaria em você - ela poderá não estar em condições de compreender."
- Marianne?
- Minha irmã. Mas ainda não cheguei nem à metade da história. Como se precisasse provar seu poder, ele chamou meu capitão pelo telefone viva-voz e lhe perguntou: "Sullivan, se um de seus homens viesse ao meu escritório e me aborrecesse por qualquer coisa, o que eu deveria fazer?"
E Sullivan, um de meus ídolos, respondeu, parecendo um bebezinho: "Sr. Todd-Cothran, faça o que deve ser feito." Todd-Cothran insistiu: "E se eu o matasse onde ele está sentado?" Sullivan respondeu: "Senhor, estou certo de que seria um homicídio justificável." Agora pense um pouco. Em uma conversa telefônica com alguém da Scotland Yard, onde todas as ligações recebidas são gravadas, e sabendo disso muito bem, Todd-Cothran disse o seguinte: "Mesmo se o nome dele fosse Alan Tompkins?" Ele disse exatamente isto, tão claro como o sol. E Sullivan respondeu: "Eu iria aí e trataria de retirar o corpo." Entendi o recado.
- Em resumo, você não tem a quem recorrer.
- Ninguém que eu possa lembrar. - E eu tenho de virar as costas e fugir daqui.
Alan concordou com a cabeça.
- Tenho de informar a Todd-Cothran que transmiti o recado. Ele espera que você retorne no primeiro vôo.
- E se eu não quiser?
- Não há nenhuma garantia, mas eu não tentaria ficar aqui. Buck afastou os pratos de lado e empurrou a cadeira para trás.
- Alan, você não me conhece bem, mas fique sabendo que não sou do tipo que ouve essas coisas sem sair do lugar.
- É isto que me preocupa. Eu também não sou, mas a quem posso recorrer? O que fazer? Talvez você imagine que exista alguém confiável, mas o que essa pessoa poderia fazer? Se isto provar que Dirk estava certo, que ele chegou muito próximo de alguma coisa clandestina em que Todd-Cothran estava metido, onde essa história vai parar? Stonagal também teve participação? E quanto aos outros do grupo internacional de financistas que se encontram com eles? Você considerou que eles podem ter o mundo inteiro nas mãos? Eu cresci lendo histórias sobre os mafiosos de Chicago, que tinham nas mãos policiais, juizes e até mesmo políticos. Ninguém podia tocar neles.
Buck assentiu.
- Ninguém podia tocá-los, exceto aqueles que não podiam ser comprados.
- Os Intocáveis?
- Eles eram os meus heróis - disse Buck.
- E meus também - acrescentou Alan. - Foi por isso que me tornei investigador. Mas se a Yard é suja, a quem devo me dirigir?
Buck descansou o queixo na mão.
- Você acha que está sendo vigiado? Seguido?
- Estou procurando saber. Até agora, não.
- Alguém sabe que estamos aqui?
- Observei o tempo todo e não vi ninguém nos seguindo Em minha opinião profissional, estamos aqui despercebidos que você pretende fazer, Cameron?
- Aparentemente, há pouca coisa a se fazer aqui. Talvez retorne a meu país com um nome diferente. Quem estivei preocupado comigo vai pensar que estou teimando em permanecer aqui.
- Qual a vantagem disso?
- Posso estar atemorizado, Alan, mas vejo as coisas por outro ângulo. E, de uma forma ou de outra, vou encontrara pessoa certa para ajudar. Não conheço seu país o suficiente para saber em quem confiar. Evidentemente, confio em você mas você está incapacitado.
- Você está me chamando de fraco, Cameron? Existe alguma saída para mim?
Buck sacudiu a cabeça.
- Sinto por você - disse ele. - Não sei o que faria em seu lugar.
A garçonete estava passando de mesa em mesa, perguntando alguma coisa aos clientes. Quando ela se aproximou deles, Buck e Alan fizeram silêncio para ouvir.
- Alguém tem um carro sedã verde-claro? Uma pessoa avisou que a luz interna está acesa.
- É o meu - disse Alan. - Não me lembro de ter acendido a luz interna.
- Nem eu - disse Buck -, mas parece que a luz estava apagada quando chegamos aqui. Talvez eu esteja enganado
- Vou ver. Provavelmente, não houve nenhum problema mas aquela velha bateria não pode agüentar muito tempo
- Cuidado - recomendou Buck. - Alguém pode ter mexido nele.
- É improvável. Estacionamos bem em frente, você se lembra?
Buck endireitou-se na cadeira e acompanhou Alan com os olhos enquanto o investigador saía da taverna. Dali, dava para ver que a luz interna do carro estava acesa. Alan circundou o carro, abriu a porta do lado do motorista desligou a luz. Quando retornou à mesa, disse:
- Estou começando a caducar com minha idade. Logo vou esquecer os faróis acesos.
Buck estava triste, pensando nos apuros de seu amigo. Que problema! Trabalhar em algo que ambicionou a vida inteira para depois descobrir que seus superiores eram devedores e submissos a um assassino internacional.
- Vou telefonar para o aeroporto e ver se consigo um vôo para esta noite.
- Não há nenhum vôo para sua terra a esta hora da noite - informou Alan.
- Vou pegar um vôo até Frankfurt e saio de lá de manhã. Acho que não devo abusar de minha sorte aqui.
- Há um telefone junto à porta. Vou pagar a conta.
- Faço questão de pagar - disse Buck, passando uma nota de 50 marcos por cima da mesa.
Buck ligou para Heathrow enquanto Alan contava o troco entregue pela garçonete. Buck conseguiu um lugar num vôo para Frankfurt dali a 45 minutos mais tarde, o que lhe permitia pegar um vôo no domingo de manhã para o aeroporto Kennedy.
- Oh! Kennedy está aberto? - perguntou.
- Abriu uma hora atrás - disse uma voz feminina. - Vôos limitados, mas o da Pan-Continental que sai da Alemanha vai chegar lá de manhã. Quantos passageiros?
-Um.
- Nome?
Buck vasculhou sua carteira para lembrar o nome de seu passaporte britânico falso.
- Desculpe-me - disse ele simulando não ter ouvido, enquanto Alan se aproximava.
- O nome, senhor.
- Oh! perdão, Oreskovich, George Oreskovich.
Alan avisou que aguardaria no carro. Buck fez um sinal afirmativo com a cabeça.
- Tudo certo, senhor - disse a atendente. - Seu nome está anotado para um vôo a Frankfurt esta noite, continuando amanhã até Kennedy, Nova York. Mais alguma coisa?
- Não, obrigado.
Quando Buck pôs o fone no gancho, a porta da taverna abriu-se violentamente para dentro do recinto e um clarão ofuscante, seguido de um estrondo ensurdecedor, atirou os clientes ao chão, que gritavam assustados. Quando o barulho cessou, as pessoas se dirigiram cautelosamente até a porta para ver o que tinha acontecido. Buck viu horrorizado a estrutura retorcida e os pneus derretidos do carro seda de Alan, da Scotland Yard. Os vidros estouraram, e os cacos se espalharam pela rua. A sirene de um carro já se fazia soar. Uma perna e parte do torso estavam sobre a calçada - o que sobrou de Alan Tompkins.
Enquanto os fregueses saíam para ver os destroços em chamas, Buck foi se acotovelando para abrir caminho e tirou da carteira seu passaporte e identidade verdadeiros. Aproveitando-se da confusão, ele colocou os documentos perto do que restara do Carro e esperou que eles não fossem atingidos pelo fogo a ponto de ficarem ilegíveis. Quem quer que o desejasse morto, poderia admitir sua morte. Em seguida, abriu caminho na multidão e entrou na taverna vazia, correndo em direção aos fundos. Mas não encontrou nenhuma porta, somente uma janela. Ele a levantou e saltou por ela, esgueirando-se junto à parede numa passagem de apenas 60 centímetros entre dois edifícios. Raspando suas roupas em ambos os lados enquanto corria em direção a uma rua paralela, passou por duas quadras e chamou um táxi.
- Hotel Tavistock - disse.
Poucos minutos depois, quando o táxi estava a três quadras do hotel, Buck viu um pelotão policial e carros em frente do local, bloqueando o tráfego.
- Leve-me, por favor, diretamente a Heathrow - pediu ele ao taxista, lembrando-se de que tinha deixado o laptop entre suas coisas, mas agora não havia escolha. Ele já havia transferido para o computador a melhor parte da matéria, mas como saber quem teria acesso a ela a partir de agora?
- O senhor não precisa de nada do hotel? - perguntou o motorista.
- Não. Estava apenas indo ver uma pessoa.
- Às ordens, senhor.
Heathrow também estava sendo vasculhado pelas -autoridades.
- Você sabe onde alguém poderia comprar um quepe como o seu? - perguntou Buck ao taxista, enquanto pagava a corrida.
- Esta coisa velha? Posso ser convencido a me desfazer dele. Tenho outro exatamente igual. Quer levar uma lembrança, hein?
- Isto é suficiente? - perguntou Buck, enfiando uma quantia razoável de dinheiro na mão dele.
- É mais do que suficiente, senhor, e muito obrigado por sua bondade.
O motorista removeu o emblema oficial dos taxistas de Londres e entregou-lhe o quepe.
Buck enterrou o quepe largo, estilo marinheiro, até as orelhas e correu para o terminal. Pagou em dinheiro suas passagens em nome de George Oreskovich, um polonês naturalizado inglês a caminho de férias nos Estados Unidos, via Frankfurt. Antes que as autoridades descobrissem que ele havia partido, o avião já estava no ar.
ONZE
RAYFORD estava contente de poder levar Chloe a um passeio de carro no sábado, depois de permanecerem confinados em casa remoendo suas angústias. Também ficou contente por ela ter concordado em acompanhá-lo à igreja.
Chloe passara o dia inteiro sonolenta e calada. Havia mencionado a idéia de deixar a universidade por um semestre e assistir a algumas aulas numa faculdade local. Rayford gostou da idéia, pensando no bem-estar da filha. De repente, se deu conta de que ela estava pensando no bem-estar dele e ficou emocionado.
Enquanto conversavam no curto passeio, ele lembrou-lhe que, depois da viagem de um dia a Atlanta, na segunda-feira, deveriam voltar separados de O'Hare para casa. Rayford teria de pegar o carro dele que ficara no aeroporto. Ela sorriu para ele.
- Acho que posso dirigir um carro sozinha, agora que tenho vinte anos.
- Às vezes, trato você como uma garotinha, não é? - disse ele.
- Daqui em diante, não vai ser assim - disse ela. -Entretanto, você pode compensar o tempo que me tratou como garotinha.
- Sei o que você está querendo dizer.
- Não, não sabe - disse ela. - Adivinhe.
- Você vai dizer que posso compensar o tempo que a tratei como uma garotinha deixando que tenha idéias próprias, evitando impor-lhe as minhas.
- Isto é lógico, espero. Mas você está errado, espertinho. Eu estava querendo dizer que só vou ficar convencida de que você me vê como adulta responsável se deixar que eu dirija seu carro do aeroporto até nossa casa na segunda-feira.
- Vai ser fácil - disse Rayford, repentinamente mudando para uma entonação de voz infantil. - Isto faria você sentir-se uma garota adulta? Muito bem, papai vai fazer o que você quer.
Ela deu um soco amistoso nele e sorriu. Logo a seguir, ficou séria.
- É surpreendente que eu esteja encontrando motivo para me divertir nestes dias - disse Chloe. - Meu Deus, sinto-me uma pessoa horrorosa.
Rayford deixou este comentário suspenso no ar enquanto dobrava uma esquina e avistava a bela e pequenina igreja.
- Não leve muito em conta o meu desabafo - disse ela. -Não preciso entrar, preciso?
- Não, mas eu gostaria.
Ela comprimiu os lábios e meneou a cabeça, um tanto contrafeita, mas, quando ele estacionou e saiu do carro, ela o acompanhou.
Bruce Barnes era baixo e levemente atarracado, cabelos encaracolados e óculos de aros metálicos. Ele se vestia com simplicidade, mas com classe, e Rayford avaliou sua idade em torno de 30 anos. Bruce surgiu de trás do púlpito com um pequeno aspirador de pó nas mãos.
- Desculpem-me - disse ele -, vocês devem ser os Steeles. Sou o único que restou do conselho da igreja. Estou contando apenas com a ajuda de Loretta.
- Olá - disse uma senhora idosa por trás de Rayford e Chloe. Ela estava em pé na porta de entrada que dava acesso ao escritório da igreja, olhos fundos e despenteada, como se estivesse vindo de uma guerra. Após cumprimentá-los, ela se dirigiu a uma escrivaninha na ante-sala do escritório.
- Ela está organizando um pequeno programa para amanhã - disse Barnes. - A dificuldade é que não temos idéia de quantos virão. O senhor estará aqui?
- Ainda não estou certo - disse Rayford. - Provavelmente, estarei.
Ambos se voltaram para Chloe. Ela sorriu educadamente.
- Eu, provavelmente, não virei - disse ela.
- Bem, reservei um teipe para vocês - disse Barnes. - Mas gostaria de pedir mais alguns minutos de seu tempo.
- Eu tenho tempo - disse Rayford.
- E eu vim com ele - disse Chloe resignada. Barnes levou-os ao gabinete do pastor titular.
- Não estou ocupando a mesa dele nem usando sua biblioteca - disse o jovem pastor auxiliar -, mas trabalho aqui em sua mesa de reunião. Não sei o que vai acontecer comigo ou com a igreja e, certamente, não quero ser arrogante. Não creio que Deus me chame para assumir este trabalho, mas, se Ele o fizer, quero estar preparado.
- E como Ele o chamará? - perguntou Chloe, ensaiando um leve sorriso. - Por telefone?
Barnes não levou em consideração o insulto dela.
- Para dizer-lhes a verdade, isso não me surpreenderia. Não sei a respeito de vocês, mas Ele chamou minha atenção na última semana. Uma ligação telefônica do céu teria sido menos traumática.
Chloe levantou as sobrancelhas, aparentemente disposta a ouvir a explanação de Barnes.
- Amigos, Loretta sentiu o mesmo que eu senti. Ficamos abalados e devastados, porque sabemos exatamente o que aconteceu.
- Ou o senhor pensa que sabe - interferiu Chloe. Rayford tentou cruzar o olhar com o dela para induzi-la a calar-se e aguardar a explicação do pastor, mas ela parecia relutante em olhar para ele. - Há toda espécie de teoria que o senhor quiser em cada noticiário de televisão no país.
- Eu sei disso - confirmou Barnes.
- E cada um deles atende aos próprios interesses -acrescentou ela. - Os tablóides dizem que foi uma invasão de seres do espaço, o que provaria as histórias estúpidas de que eles estão no controle por anos. O governo diz que foi obra de algum tipo de inimigo, por isso podemos gastar mais com a alta tecnologia para a nossa defesa. O senhor vai dizer que foi Deus, e assim poderá começar a restabelecer sua igreja.
Bruce Barnes aprumou-se na cadeira e olhou para Chloe e em seguida para seu pai.
- Vou pedir-lhes uma coisa - disse ele, voltando a olhar para ela novamente. - Vocês permitem que eu apresente meu relato rapidamente, sem interrupções ou interferências, a menos que haja algum ponto que não entendam?
Chloe fixou o olhar nele, sem esboçar nenhuma reação.
- Não quero ser rude, mas não quero que vocês também o sejam. Pedi alguns minutos de seu tempo. Se eu ainda tiver esse tempo, permitam-me fazer uso dele. Depois eu os deixarei à vontade. Vocês podem fazer o que quiserem com aquilo que eu lhes disser. Podem dizer que estou louco, que estou distorcendo a verdade em proveito próprio. Podem sair e nunca mais voltar. Façam a sua opção. Mas posso contar com sua atenção por alguns minutos?
Rayford achou que Barnes foi brilhante. Ele colocou Chloe em seu devido lugar, não lhe deixando espaço para nenhuma observação mordaz. Ela apenas moveu a cabeça em sinal de aquiescência. Barnes agradeceu e continuou.
- Posso chamá-los pelo primeiro nome? Rayford assentiu. Chloe não se moveu nem falou.
- Vou chamá-los de Ray e Chloe, está bem? Sento-me aqui diante de vocês como um homem arrasado. E quanto a Loretta? Se há alguém que tem o direito de sentir-se tão mal quanto eu, esse alguém é Loretta. Ela é a única pessoa de toda sua família que ainda está aqui. Tinha seis irmãs
e irmãos vivos, não sei quantas tias, tios, primos, sobrinhos e sobrinhas. A família realizou um casamento aqui no ano passado, e ela calcula que havia cem parentes na cerimônia. Todos se foram, todos eles.
- Que tristeza! - disse Chloe. - Perdemos minha mãe e meu irmão, o senhor sabe. Oh! desculpe-me. Eu não queria interrompê-lo.
- Está bem - disse Barnes. - Minha situação é muito parecida com a de Loretta, só que em escala menor. É claro que meu sofrimento não foi menor. Permitam-me contar minha história. - Logo que ele começou a falar de detalhes aparentemente inócuos, sua voz engrossou e abrandou. - Eu estava na cama com minha esposa. Ela estava dormindo. Eu estava lendo. As crianças tinham ficado um pouco mais de tempo na sala, embaixo, antes de serem mandadas para a cama. Nossa filha mais velha tinha cinco anos. Os outros dois eram meninos, com idades de três e um ano. Aquela situação era normal para nós - eu lendo enquanto minha esposa dormia. Além do trabalho que as crianças lhe davam, ela ainda tinha um emprego de meio expediente, e por volta das nove horas da noite o sono a dominava.
- Eu estava lendo uma revista de esportes, tentando virar as páginas sem nenhum ruído, e de vez em quando ela dava um suspiro mais profundo. Em certo momento, ela perguntou quanto tempo eu ia demorar lendo. Eu sabia que deveria ler no outro quarto ou simplesmente apagar a luz e tentar dormir também. Mas disse a ela: "Não vou demorar", esperando que ela caísse no sono e eu pudesse terminar de ler a revista. Eu sabia que, quando ela começava a respirar profundamente, a luz acesa não a incomodava mais. E, após alguns minutos, ouvi que ela estava ressonando.
- Fiquei contente. Meu plano era ler até meia-noite. Eu estava apoiado num cotovelo, de costas para ela e usando um travesseiro para protegê-la da claridade da luz. Não sei quanto tempo fiquei lendo quando senti um movimento na cama. Imaginei que ela havia se levantado para ir ao banheiro. Esperava apenas que ela não tivesse se levantado para demonstrar seu aborrecimento por eu estar ainda com a luz acesa e que, ao voltar, não me recriminasse. Ela era miúda e leve, de modo que não estranhei o fato de não ouvir seus passos até o banheiro. Continuei absorto em minha leitura.
- Passados alguns minutos que me pareceram um tanto demorados, chamei-a: "Querida, você está bem?" Não ouvi nenhum ruído. Comecei a me inquietar. Seria apenas minha imaginação que ela tivesse se levantado? Apalpei o lugar dela e constatei que não estava ali, por isso chamei-a de novo. Talvez ela estivesse verificando se as crianças estavam bem, mas geralmente ela dormia um sono tão pesado que não acordava no meio da noite, a menos que um deles a chamasse.
- Bem, provavelmente mais um minuto ou dois se passaram, antes que eu me voltasse e constatasse que ela não estava mais ali e havia puxado a colcha e o cobertor sobre o travesseiro. Agora vocês podem imaginar o que pensei. Achei que ela ficou tão frustrada comigo, por ainda estar lendo, que se cansou de esperar que eu desligasse a luz e resolveu dormir no sofá da sala. Eu era um marido razoavelmente criterioso, por isso fui até lá desculpar-me e trazê-la de volta à cama.
- Vocês sabem o que aconteceu. Ela não estava no sofá. Nem no banheiro. Olhei pelo vão da porta de cada dormitório das crianças e sussurrei seu nome, pensando que talvez ela estivesse acalentando alguma delas ou sentada ao lado da cama de outra. Nada. As luzes estavam apagadas em toda a casa, exceto a lâmpada à minha cabeceira. Não quis acordar as crianças gritando por ela, por isso simplesmente acendi a luz do hall e voltei a inspecionar cada quarto.
- Sinto-me envergonhado em dizer que não tinha ainda uma explicação, até que notei que meus filhos mais velhos não estavam em suas camas. Meu primeiro pensamento foi que teriam ido ao quarto do bebê, como faziam às vezes, para dormir no chão. Supus, então, que minha esposa tinha levado ambos à cozinha para comerem alguma coisa. Francamente, fiquei um tanto perturbado por não saber o que estava acontecendo no meio da noite.
- Quando constatei que o bebê não estava em seu berço, acendi a luz, coloquei a cabeça fora da porta e chamei minha esposa. Nenhuma resposta. Foi então que reparei no pequenino pijama do bebê e, assim, fiquei sabendo exatamente o que tinha acontecido. Aquilo me atingiu como um raio. Corri por toda a casa, levantando os cobertores de cada cama e encontrando apenas os pijamas das crianças. Eu tive medo de fazer isso, mas puxei o cobertor do lado que minha esposa dormia, e lá estavam sua camisola, seus anéis e até os grampos do cabelo sobre o travesseiro.
Rayford esforçava-se para não chorar, lembrando-se da própria experiência semelhante àquela. Barnes deu um profundo suspiro e desabafou, enxugando os olhos.
- Bem, comecei a telefonar para todo mundo - disse ele. - Liguei primeiro para o pastor, mas quem atendeu foi a secretária eletrônica. Mais dois outros telefonemas, e ouvi a secretária eletrônica também. Então peguei a lista de telefones da igreja e comecei a procurar pelos irmãos mais velhos, pessoas que julgava que não tinham secretárias eletrônicas, e não consegui falar com ninguém. Os telefones tocavam, tocavam, e ninguém atendia.
- Eu sabia que seria improvável encontrar qualquer um deles. Por alguma razão, saí correndo e pulei dentro do carro, dirigindo tresloucadamente até esta igreja. Aqui estava Loretta, sentada em seu carro, com seu roupão de dormir, o cabelo cheio de rolinhos, chorando angustiada. Chegamos ao vestíbulo e nos sentamos ao lado dos vasos de plantas, chorando e amparando um ao outro, sabendo exatamente o que havia sucedido. Após mais ou menos meia hora, alguns membros da igreja também apareceram. Ficamos ali consternados e perguntando-nos em voz alta o que faríamos em seguida. Então alguém se lembrou do teipe do pastor sobre o Arrebatamento.
- O quê? - perguntou Chloe.
- Nosso pastor titular gostava de pregar sobre a vinda de Cristo para arrebatar sua Igreja e levar com Ele os crentes, mortos e vivos, ao céu antes de um período de tribulação na terra. Ele começou a dedicar-se a esse assunto há cerca de dois anos.
Rayford voltou-se para Chloe.
- Você está lembrada de sua mãe ter falado sobre isso. Ela estava muito entusiasmada a esse respeito.
- Oh! sim, me lembro.
- Bem - disse Barnes -, o pastor usou aquele sermão e gravou um videoteipe em seu gabinete dirigindo-se diretamente às pessoas que foram deixadas para trás. Ele guardou o videoteipe na biblioteca da igreja com instruções para ser retirado, visto e ouvido por todos os que não desapareceram. Todos nós o vimos duas vezes na noite seguinte. Poucas pessoas quiseram argumentar com Deus, tentando dizer-nos que tinham sido realmente crentes e deveriam ter sido arrebatadas com os outros, mas todos estávamos convencidos da verdade. Éramos pseudocristãos. Não havia um único entre nós que não soubesse o que significa ser um verdadeiro cristão. Sabíamos que não o éramos e que tínhamos sido deixados para trás.
Rayford teve dificuldade para falar, mas não pôde deixar de fazer uma observação.
- Sr. Barnes, o senhor era um membro do conselho da igreja.
-Correto.
- Como o senhor foi deixado para trás?
- Vou dizer-lhe, Ray, porque não tenho mais nada a esconder. Sinto vergonha de mim mesmo, e, se antes nunca tive realmente vontade ou motivação para falar aos outros sobre Cristo, eu a tenho agora com certeza. Considero-me um ser deplorável por ter entendido tarde demais o maior evento cataclísmico da História. Fui criado na igreja. Meus pais, irmãos e irmãs eram todos cristãos.
- Eu amava a igreja. Ela era minha vida, minha cultura. Eu pensava que acreditava em tudo o que havia na Bíblia. A Bíblia diz que, se você crer em Cristo, terá a vida eterna, por isso julguei que estava salvo.
- Eu gostava especialmente das partes que falavam do perdão de Deus. Era um pecador incorrigível. Apenas me considerava perdoado porque Deus tinha feito essa promessa. Ele tinha de cumpri-la. O versículo diz que, se confessarmos nossos pecados, Ele é fiel e justo para nos perdoar e purificar. Eu conhecia outros versículos que falavam em crer e receber, confiar e permanecer, mas nunca levei estas palavras ao pé da letra. Eu queria seguir o caminho mais fácil, o mais simples. Eu também conhecia outros versículos, segundo os quais eu não devia continuar no pecado simplesmente porque Deus nos mostrou sua graça.
- Eu julgava ter uma vida maravilhosa. Cheguei até a estudar em faculdade bíblica. Na igreja e na escola, eu dizia as coisas certas, orava em público e até incentivava aí' pessoas em sua vida cristã. Mas era ainda um pecador. Eu reconhecia isso. Dizia às pessoas que não era perfeito; era apenas perdoado.
- Minha esposa dizia a mesma coisa - afirmou Rayford.
- A diferença - disse Bruce - é que ela era sincera. Eu mentia. Dizia à minha esposa que dava o dízimo à igreja, que contribuíamos com 10% de nossa renda. Minha contribuição era mínima. Quando a salva era passada, eu depositava ali algum dinheiro só para impressionar os outros. Toda semana, eu confessava a Deus, prometendo ser mais liberal na próxima vez.
- Estimulei pessoas a proclamar sua fé e dizer a outras como se tornarem cristãs. Mas eu mesmo nunca fiz isso. Meu trabalho era visitar pessoas em seus lares, casas de repouso e hospitais todos os dias. Eu era bom nisso. Incentivava os enfermos, sorria para eles, conversava com eles, orava com eles, e até lia a Bíblia para eles. Mas nunca fiz isso de coração e reservadamente.
- Eu era preguiçoso. Fazia o mínimo necessário. Quando as pessoas pensavam que eu estava visitando, talvez estivesse num cinema em outra cidade. Também era lascivo. Lia coisas que não devia, folheava revistas que aguçavam meus desejos carnais.
Rayford tremeu ligeiramente. Esta última confissão mexeu com ele.
- Eu tinha uma vida irregular - Barnes continuou - e persisti nela. Cada vez me afundava mais. Sabia que os verdadeiros cristãos eram conhecidos pelo que suas vidas produziam, e eu nada produzia. Mas sentia-me confortado pelo fato de haver pessoas muito piores por aí, as quais se intitulavam cristãs.
- Não fui um estuprador, nem molestei crianças, nem cometi adultério, embora muitas vezes me sentisse infiel à minha esposa por causa da minha lascívia. Mas sempre orava e confessava meus pecados, sentindo-me como se estivesse purificado. Isso deveria ter sido óbvio para mim. Quando as pessoa ficavam cientes de que eu fazia parte da equipe ministerial da Nova Esperança, eu conversava com elas sobre a serenidade do pastor e a pureza da igreja, mas tinha vergonha de falar de Cristo. Se me desafiassem e perguntassem se a Nova Esperança era uma daquelas igrejas que diziam que Jesus era o único caminho para Deus, eu fazia de tudo, menos negar isso. Queria que pensassem que eu me sentia bem, que; estava de acordo com tudo que se passava ali. Posso ser um cristão e mesmo um pastor, mas nunca me confundam com os excêntricos.
- Vejo agora, com certeza, que Deus é um Deus perdoador, porque somos humanos e temos necessidade do perdão. Mas temos de receber seu dom, viver em Cristo e permitir que Ele viva em nós. Eu imaginava que tinha liberdade de fazer o que desejasse. Podia viver em pecado e fingir ser uma pessoa piedosa. Tinha uma bela família e ótimo ambiente de trabalho. E, por mais feliz que me sentisse a maior parte do tempo, acreditava realmente que iria para o céu quando morresse.
- Raramente lia a Bíblia, exceto quando preparava uma preleção ou aula. Não tinha a "mente de Cristo". Eu sabia vagamente que a palavra cristão significa "com Cristo" ou "como Cristo". Com certeza eu não era um cristão, e descobri isso da pior forma possível.
- Permitam-me dizer-lhes simplesmente - a decisão é de vocês. A vida é de vocês. Mas eu, Loretta e outros membros da igreja que estão desnorteados sabemos exatamente o que aconteceu há algumas noites. Jesus voltou para buscar sua verdadeira família, e fomos deixados para trás.
Bruce olhou nos olhos de Chloe.
- Não há nenhuma dúvida em minha mente de que testemunhamos o Arrebatamento. Meu maior medo, uma vez constatada a verdade, foi que não havia mais esperança para mim. Perdi a oportunidade única. Tinha sido um falso cristão, estabelecendo meu próprio modelo de cristianismo, que foi feito para uma vida de liberdade, mas que me custou a alma. Eu tinha ouvido dizer que, quando a Igreja fosse arrebatada, o Espírito de Deus se ausentaria da terra. A lógica era que, quando Jesus fosse para o céu após sua ressurreição, o Espírito Santo que Deus enviou à Igreja seria incorporado nos crentes. Portanto, quando eles fossem levados, o Espírito deixaria este mundo, e não haveria mais nenhuma esperança para os que ficassem. Vocês não podem saber o alívio que tive quando o teipe do pastor mostrou-me o contrário.
- Reconhecemos quão estúpidos fomos, mas nós nesta igreja - pelo menos os que se sentiram atraídos a este templo na noite em que todos os demais desapareceram - estamos sendo fervorosos tanto quanto possível. Ninguém que venha até aqui sairá sem conhecer exatamente em que cremos e o que pensamos ser necessário para termos uma relação com Deus.
Chloe levantou-se e deu alguns passos, os braços cruzados sobre o peito.
- É uma história muito interessante - disse ela. - O que aconteceu com Loretta? Como ela perdeu a oportunidade, se toda sua enorme família era constituída de verdadeiros cristãos?
- Você deve ouvir ela mesma dizer oportunamente -disse Bruce. - Mas ela me disse que foi o orgulho e o constrangimento que a afastaram de Cristo. Ela nasceu num lar muito religioso. Disse que estava no fim da adolescência quando pensou seriamente a respeito de sua fé pessoal. Então decidiu acompanhar a família e freqüentar a igreja, participando de suas atividades normais. Com o tempo, casou-se, tornou-se mãe e avó, e simplesmente aparentou ser uma gigante espiritual. Era respeitada por aqui. Entretanto, nunca creu em Cristo e nunca o recebeu como seu Salvador.
- Então - disse Chloe -, essa história de acreditar em Cristo, recebê-lo como Salvador, viver para Ele e deixá-lo viver em você, era isso o que minha mãe queria dizer quando falava sobre salvação, ser salvo?
Bruce balançou a cabeça concordando.
- Do pecado, do inferno e do Juízo.
- Entrementes, não estamos salvos de tudo isso.
- É verdade.
- O senhor realmente acredita nisso.
- Acredito.
- É um negócio esquisito, o senhor deve admitir.
- Não para mim. Não neste momento.
Rayford, sempre objetivando precisão e ordem, perguntou;
- Então, o que o senhor fez? O que minha esposa fez? O que a fez ser mais cristã, ou, ah... o que, hã...
- A salvou? - Bruce completou.
- Sim - disse Rayford. - É exatamente o que desejo saber. Se o senhor estiver certo, e eu já disse a Chloe que acho que estou percebendo isto agora, precisamos saber como conduzir esta situação daqui em diante. De que forma uma pessoa pode passar de uma condição para outra? Obviamente, não estamos salvos, porque fomos deixados para trás, e estamos aqui para enfrentar a vida sem nossos entes queridos que viveram como verdadeiros cristãos. Sendo assim, o que devemos fazer para nos tomar cristãos verdadeiros?
- Vou orientá-los - disse Bruce. - E vou entregar-lhes este teipe para que vocês o levem para casa. Vou também entrar em detalhes em minha pregação no culto matinal de amanhã, às dez horas, para quem comparecer. Provavelmente, vou repetir a mesma mensagem nos próximos domingos, até sentir que a necessidade de conhecer a verdade tenha sido satisfeita. De uma coisa estou certo: por mais importantes que sejam outros sermões e lições, nada supera este assunto.
Enquanto Chloe continuava encostada à parede, braços ainda cruzados, observando e escutando, Bruce voltou-se para Rayford. •
- É realmente muito simples. Deus tornou isto fácil, o que não significa um processo de transição sobrenatural ou que possamos decidir e escolher as partes boas - como já tentei fazer. Porém, se depararmos com a verdade e agirmos em sua direção, Deus não impedirá nossa salvação.
- Primeiro, temos de ver-nos como Deus nos vê. A Bíblia diz que todos pecaram, que não há ninguém justo, nem sequer um. Ela também diz que não podemos ser salvos por nós mesmos. Inúmeras pessoas pensaram que estavam no caminho para Deus ou para o céu por praticar boas obras, mas essa foi provavelmente a concepção mais equivocada que já houve. Perguntem a qualquer pessoa na rua o que ela pensa que a Bíblia ou a igreja diz a respeito de ganhar o céu, e nove entre dez dirão que, para ir para o céu, é preciso fazer o bem e viver uma vida reta.
- É o que todos devemos fazer, certamente, mas esta não é a chave para obtermos nossa salvação. Devemos fazer isso como conseqüência da nossa salvação. A Bíblia diz que somos salvos não pelas boas obras que praticamos, mas, sim, pela misericórdia de Deus. Isso quer dizer que somos salvos pela graça mediante Jesus Cristo, não por nós mesmos, de sorte que não devemos vangloriar-nos de nossa bondade.
- Jesus tomou sobre si nossos pecados e pagou o preço de que éramos devedores perante Deus. O pagamento é a morte, e Ele morreu em nosso lugar, porque nos amou. Quando reconhecemos perante Cristo que somos pecadores perdidos e recebemos dele a dádiva da salvação, Ele nos salva. Realiza-se assim um processo de transição. Saímos das trevas para a luz, da condição de perdidos para a de buscados e achados, tornamo-nos salvos. Diz a Palavra de Deus que àqueles que o receberem Ele dará o poder de se tornarem filhos de Deus. Exatamente o que Jesus é - Filho de Deus. Quando passamos a ser filhos de Deus, temos o que Jesus tem: um relacionamento direto com o Pai e a vida eterna. E, pelo fato de Jesus ter pago pelo castigo que merecíamos, recebemos por meio dele o perdão de nossos pecados.
Rayford estava atordoado. Ele buscou furtivamente os olhos de Chloe. Ela parecia indiferente, mas sem aquele ar antagônico. Rayford encontrou exatamente o que estava procurando. Era o que ele tinha suspeitado e ouvido aqui e ali durante anos, mas nunca foi capaz de absorver e praticar.
Apesar de tudo, ele trazia dentro de si suficientes reservas para ponderar sobre isso, ver e ouvir o teipe e trocar idéias com Chloe.
- Tenho de perguntar-lhes - disse Bruce - algo que nunca quis perguntar antes a ninguém. Quero saber se estão prontos para receber Cristo em seus corações neste momento. Eu me sentiria feliz em orar com vocês e mostrar-lhes como conversar com Deus.
- Não - interveio Chloe abruptamente, olhando para seu pai como se estivesse temerosa de que ele fizesse uma tolice.
- Não? - foi a reação de surpresa de Bruce. - Precisam de mais tempo?
- No mínimo - disse Chloe. - Naturalmente, não é uma decisão que se possa tomar precipitadamente.
- Bem, permitam-me dizer-lhes - continuou Bruce. - É uma decisão que gostaria fosse imediata. Creio que Deus me perdoou e que tenho um trabalho a realizar aqui. Mas não sei o que vai acontecer daqui em diante, uma vez que todos os verdadeiros cristãos foram arrebatados. Eu gostaria de ter assumido esta postura há vários anos, e não depois do , acontecido. Vocês podem acreditar que eu teria preferido mil vezes estar no céu com minha família neste exato momento.
- Mas, então, quem nos falaria a este respeito? - perguntou Rayford.
- Oh, eu me sinto grato por essa oportunidade - atalhou Bruce. - Mas tive de pagar um alto preço para chegar a este ponto.
- Compreendo - disse Rayford, podendo ver nos olhos de Bruce uma expectativa ardente de alguém que espera ansiosamente por uma decisão, um compromisso, uma conversão. Ele sentia que Rayford estava preparado para dar esse passo. Mas Rayford nunca tinha sofrido tal pressão em sua vida. E, enquanto não colocasse a questão numa balança, como se estivesse tratando com um vendedor, precisaria de tempo para pensar, um tempo para esfriar a cabeça e refletir. Ele tinha uma mente analítica. Quando deparou com um novo sentido de vida, embora não duvidasse de tudo o que Bruce expôs sobre os desaparecimentos, não se sentiu em condições de resolver imediatamente. - Agradeço o teipe e posso garantir que estarei aqui amanhã. Bruce olhou para Chloe.
- Não conte comigo - disse ela -, mas agradeço sua atenção e vou ver o teipe.
- É tudo o que posso pedir - acrescentou Bruce.
- Mas permitam-me fazer-lhes uma pequena advertência. Vocês devem ter ouvido estas palavras de vez em quando durante a vida, como também sucedeu comigo. Talvez não saibam, mas preciso dizer-lhes que não estão munidos de quaisquer garantias de salvação. É muito tarde para vocês desaparecerem, como aconteceu com seus queridos há poucos dias. Mas pessoas morrem diariamente em acidentes de carro, quedas de avião - oh! perdão, estou certo de que o senhor é um bom piloto -, todos os tipos de tragédias. Não vou absolutamente pressioná-los a tomar uma decisão para a qual não estão preparados. Mas permitam-me que os incentive, no caso de Deus colocar em seus corações sua verdade, a não adiarem sua decisão. O que haveria de pior do que, tendo finalmente encontrado a Deus, morrer sem Ele por ter esperado um longo tempo para tomar uma decisão?
DOZE
BUCK hospedou-se no hotel Frankfurt Hilton, no aeroporto, com seu nome falso, sabendo que tinha de telefonar para os Estados Unidos antes que sua família e seus colegas ouvissem a notícia de que ele estava morto. Encontrou um telefone público na sala de espera e discou para seu pai, no Arizona. Com a diferença de fuso horário, lá deveria ser um pouco antes do meio-dia de sábado.
- Estou realmente aborrecido com tudo isto, papai, mas você vai ouvir a notícia de que morri dentro de um carro dinamitado, um ataque terrorista, ou coisa parecida.
- Que diabo está acontecendo, Cameron?
- Não posso me explicar agora, papai. Quero apenas que saiba que estou bem. Estou ligando do outro lado do oceano, mas não posso dizer de onde. Estarei de volta amanhã, mas por enquanto tenho de ficar escondido.
- O culto em memória de sua cunhada e seus sobrinhos será amanhã à noite - informou o Sr. Williams.
- Oh! não. Papai, ficaria muito ostensivo se eu aparecesse. Sinto muito. Diga ao Jeff o quanto eu lamento.
- Bem, vamos ter de fazer de conta que aconteceu? Quero dizer, devemos fazer um culto em sua memória também?
- Não, eu não seria capaz de me fingir de morto por muito tempo. Logo que o pessoal do Semanário souber que estou bem, o segredo não vai durar muito.
- Você vai estar em perigo quando alguém descobrir a mentira?
- Provavelmente, mas, papai, não posso aparecer por enquanto. Diga isso ao Jeff por mim, tá?
- Está bem. Tenha cuidado.
Buck mudou para outra cabina telefônica e chamou o Semanário. Disfarçando a voz, pediu que a recepcionista ligasse com o voice mail de plantão de Steve Plank.
- Steve, você sabe quem está falando. Não importa o que você vai ouvir nas próximas 24 horas, estou bem. Ligo amanhã e podemos nos encontrar. Por enquanto, deixe que os outros acreditem no que ouvirem. Tenho de ficar incógnito até achar alguém que realmente possa ajudar. Steve, ligo para você logo que puder.
Chloe ficou calada no carro. Rayford sentia um impulso incontrolável de falar. Isso não condizia com sua natureza, mas sentia a mesma urgência que tinha percebido em Bruce Barnes. Ele queria ser racional e analítico. Queria estudar, orar, ter a certeza. Mas o que ele ouvira não era exatamente um atestado de segurança? Poderia estar mais seguro?
O que tinha ele feito de errado ao criar e educar Chloe que a tornou tão prevenida, tão cautelosa, tão resistente, para que pudesse olhar a ponto de não enxergar o que parecia tão óbvio para ele? Ele havia encontrado a verdade, e Bruce estava certo. Precisavam agir nesse sentido, antes que lhes acontecesse qualquer coisa.
O noticiário estava cheio de crimes, saques, indivíduos tirando vantagem do caos. Pessoas eram alvejadas por armas de fogo, mutiladas, estupradas, assassinadas. As estradas e ruas estavam mais perigosas do que nunca. Os serviços de emergência tinham falta de funcionários, poucos controladores de tráfego e de vôos atendiam nos aeroportos; pilotos e tripulações pouco qualificados eram utilizados nos aviões.
As pessoas conferiam os túmulos de seus antepassados : ou mortos recentes para saber se seus cadáveres tinham desaparecido, e tipos inescrupulosos fingiam fazer o mesmo enquanto procuravam objetos de valor que tivessem sido enterrados com os ricos. O mundo se tornara hediondo de um dia para o outro, e Rayford se preocupava com sua segurança e a de Chloe. Ele queria exibir logo o teipe e confirmar a decisão que tomara.
- Podemos ver juntos? - sugeriu ele.
- Na verdade, eu preferiria não ver, papai. Posso perceber aonde você quer chegar e não me sinto ainda confortável a tal respeito. É uma coisa muito pessoal. Não é ser visto em grupo ou com a família.
- Não estou tão certo disso.
- Não insista comigo. Veja o teipe quando quiser, e eu farei o mesmo depois.
- Você sabe que estou muito preocupado, que a amo e me importo com você, não sabe?
- Claro que sim.
- Você pretende ver o teipe antes da reunião da igreja amanhã?
- Papai, por favor. Você está me forçando a me afastar, se continuar a me pressionar com esse assunto. Nem sei se quero ir lá amanhã. Ouvi o pastor vender sua mercadoria hoje, e ele mesmo disse que vai repetir tudo amanhã.
- Bem, o que aconteceria se eu decidisse tornar-me um cristão amanhã? Gostaria que você estivesse lá.
Chloe olhou bem para ele.
- Não sei, papai. Não é igual a uma cerimônia de formatura ou coisa parecida.
- Talvez seja. Tenho a impressão de que sua mãe e seu irmão foram promovidos, e eu não.
- Credo.
- Estou falando sério. Eles estavam qualificados para o céu. Eu não.
- Não quero falar sobre isto agora.
- Muito bem, mas deixe-me apenas dizer mais uma coisa. Se você não for amanhã, quero que veja o teipe enquanto eu estiver lá.
- Oh! eu...
- Porque realmente gostaria que você se decidisse antes de nosso vôo na segunda-feira. A viagem aérea está ficando mais perigosa, e nunca se sabe o que pode acontecer.
- Papai, veja bem! Em toda a minha vida, sempre ouvi você falar com convição a respeito da segurança dos vôos. Cada vez que ocorria um desastre, alguém perguntava se você não tinha medo ou se já tinha sofrido alguma pane. Você recitava suas estatísticas que demonstravam que a segurança do vôo é muitas vezes mais confiável do que uma viagem de carro. Portanto, não venha com essa história.
Rayford desistiu. Ele cuidaria da própria alma e oraria por sua filha, mas decididamente não insistiria mais com ela sobre a fé.
Chloe foi para a cama mais cedo sábado à noite, enquanto Rayford plantou-se diante da televisão e acionou o controle remoto para assistir ao vídeo. "Alô", soou a voz agradável e confiante do pastor que ele tinha encontrado várias vezes. Enquanto falava, o pastor sentou-se à beira da mesa no mesmo escritório que Rayford tinha acabado de visitar. "Meu nome é Vernon Billings, e sou pastor da Igreja Nova Esperança, de Monte Prospect, Illinois. Enquanto você vê este vídeo, posso apenas imaginar o medo e o desespero em seu rosto, porque isto está sendo gravado para ser visto somente após o desaparecimento do povo de Deus da face da terra.
"O fato de você estar me vendo e ouvindo indica que foi deixado para trás. Certamente você está assombrado, chocado, temeroso e com remorso. Gostaria que você considerasse o que tenho a dizer aqui como instruções para a vida que continuará na terra após o Arrebatamento da Igreja de Cristo. Foi o que aconteceu. Qualquer um de vocês sabe ou sabia que os que depositaram sua confiança somente em Cristo para salvação foram levados para o céu por Ele.
"Permita-me mostrar-lhe com base na Bíblia exatamente o que aconteceu. Você não vai precisar mais dessa prova, porque já terá experimentado o evento mais chocante da história. Mas, como este vídeo foi feito com antecedência e estou confiante de que serei levado, pergunte a si mesmo: Como ele sabia? Aqui está a resposta, com base em 1 Coríntios 15.51-57."
A tela começou a mostrar este trecho da Escritura. Rayford parou a cena e correu a buscar a Bíblia de Irene. Levou algum tempo para localizar 1 Coríntios, e, embora as palavras fossem ligeiramente diferentes da tradução da Bíblia dela, o sentido era o mesmo.
O pastor disse: "Vou ler para você o que o grande missionário e evangelista, apóstolo Paulo, escreveu aos cristãos da igreja da cidade de Corinto:
Eis que vos digo um mistério: nem todos dormiremos, mas transformados seremos todos, num momento, num abrir e fechar d'olhos, ao ressoar da última trombeta. A trombeta soará, os mortos ressuscitarão incorruptíveis, e nós seremos transformados. Porque é necessário que este corpo corruptível se revista da incorruptibilidade, e que o corpo mortal se revista da imortalidade. E, quando este corpo corruptível se revestir de incorruptibilidade, e o que é mortal se revestir de imortalidade, então, se cumprirá a palavra que está escrita: Tragada foi a morte pela vitória. Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão? O aguilhão da morte é o pecado, e a força do pecado é a lei. Graças a Deus, que nos dá a vitória por intermédio de nosso Senhor Jesus Cristo."
Rayford estava confuso. Pôde acompanhar alguma coisa daquilo, mas o resto era ininteligível para ele. Ele fez o teipe rodar. O pastor Billings continuou: "Permita-me parafrasear algumas palavras para que você as compreenda claramente. Quando Paulo diz que nem todos dormiremos, ele quer dizer que nem todos vamos morrer. E ele está dizendo que este ser corruptível deve revestir-se de um corpo incorruptível, que vai durar por toda a eternidade. Quando estas coisas tiverem acontecido, quando os cristãos que já morreram e aqueles que ainda estarão vivos receberem seus corpos imortais, o Arrebatamento da Igreja terá acontecido.
"Todas as pessoas que creram e aceitaram a morte sacrificial, o sepultamento e a ressurreição de Jesus Cristo previram sua segunda vinda. Enquanto você vê este vídeo, todas aquelas pessoas já terão visto o cumprimento da promessa de Cristo, quando disse: ...voltarei e vos receberei para mim mesmo, para que, onde eu estou, estejais vós também' (João 14.3).
"Creio que todas essas pessoas foram literalmente levadas da terra, deixando para trás todas as coisas materiais. Se você constatou que milhões de pessoas estão faltando e que bebês e crianças sumiram, sabe que o que estou dizendo é a verdade. Até uma certa idade, que é provavelmente diferente para cada indivíduo, acreditamos que Deus não responsabilizará uma criança por uma decisão que deve ser tomada com o coração e a mente, com plena consciência de suas conseqüências. Você poderá também constatar que crianças ainda não nascidas desapareceram do útero de suas mães. Posso apenas imaginar o sofrimento e inquietação de um mundo sem suas preciosas crianças e o profundo desespero dos pais que as perderam desse modo.
"A carta profética de Paulo aos coríntios disse que isso aconteceria num piscar de olhos. Você poderá ter visto um ser amado diante de você desaparecer de repente. Não invejo você por causa desse trauma.
"A Bíblia diz que os corações dos homens paralisarão de medo. Isto para mim significa que poderá haver ataques cardíacos devido ao abalo emocional, pessoas que se matarão por desespero, e você sabe melhor do que eu o caos que resultará do desaparecimento de cristãos arrebatados de vários meios de transportes, e da perda de bombeiros, policiais e trabalhadores em serviços de emergência de toda sorte.
"Dependendo de quando você estiver vendo este vídeo, talvez já esteja ciente de uma lei marcial que deve entrar em vigor em muitos lugares, medidas de emergência para tentar impedir elementos de má índole de promoverem pilhagens e disputarem os bens que foram deixados. Governos cairão, e haverá desordens internacionais.
"Você desejará saber a razão por que isso aconteceu. Alguns crêem que é o julgamento de Deus para um mundo cheio de impiedade. Na realidade, isto virá mais tarde. Por mais estranho que lhe pareça, este é o esforço final de Deus para alertar cada pessoa que o tem ignorado ou rejeitado. Ele está permitindo a partir deste evento que um longo período de provações e tribulações tenha início para você e todos os que ficaram. Ele transladou sua Igreja de um mundo corrupto que procura seguir seu próprio caminho, seus próprios prazeres, seus próprios fins.
"Creio que o propósito de Deus com isso é permitir àqueles que ficaram que façam uma avaliação de si mesmos e abandonem sua busca alucinada por prazer e auto-realização, voltando-se para a Bíblia, a fim de conhecerem a verdade e se entregarem a Cristo para se salvarem.
"Quero tranqüilizar você sobre os desaparecimentos de seus amados, seus filhinhos e bebês, amigos e conhecidos. Eles não foram levados por alguma força maldosa ou por invasores do espaço. Esta poderá ser uma explicação comum. O que antes lhe parecia ridículo e fantasioso pode ser agora lógico e possível, mas não é.
"A Escritura também nos previne de que haverá uma grande mentira, anunciada com a ajuda da mídia e perpetrada por um líder mundial autodeclarado. O próprio Jesus profetizou sobre essa pessoa. Disse Ele: 'Vim em nome de meu Pai, e não me recebestes; se um outro vier em seu próprio nome, vós o recebereis.'
"Quero também exortá-lo a precaver-se de tal líder da humanidade, que pode surgir na Europa. Ele se tornará um grande enganador. Mostrará sinais e maravilhas tão convincentes que muitos crerão que ele terá vindo da parte de Deus. Ele conseguirá um grande número de seguidores entre os que foram deixados, e muitos acreditarão que ele será um operador de milagres.
"O enganador prometerá força, paz e segurança, mas a Bíblia diz que ele falará contra o Altíssimo e derrotará os santos do Altíssimo. Eis por que estou alertando-o para ter cuidado com esse novo líder de grande carisma, tentando assumir o controle do mundo durante o terrível período de caos e confusão. Essa pessoa é conhecida na Bíblia como o anticristo. Ele vai fazer muitas promessas, mas não as cumprirá. Você deve confiar nas promessas do Deus Todo-poderoso, por meio de seu Filho, Jesus Cristo.
"Creio que a Bíblia ensina que o Arrebatamento da Igreja é o prenuncio de um período de sete anos de provação e tribulação, durante o qual coisas terríveis vão acontecer. Se você não tiver recebido Cristo como seu Salvador, sua alma estará em perigo. E, por causa dos eventos cataclísmicos que terão lugar durante esse período, sua vida estará em risco. Se você se voltar para Cristo, talvez morra como mártir."
Rayford interrompeu o vídeo. Ele tinha se preparado para ouvir o pastor falar de salvação. Mas tribulação e provação? Perder seus entes queridos, enfrentar o orgulho e o egocentrismo que o impediram de ir para o céu - isto já não era o suficiente? Ainda haveria mais?
E quanto a esse "grande enganador" a que o pastor se referiu? Talvez ele tivesse levado esse assunto de profecia muito longe. Mas ele não era um vendedor de panacéias. Era um homem sincero, honesto, digno de confiança - um homem de Deus. Se o que o pastor disse sobre os desaparecimentos era verdade - e Rayford sabia em seu íntimo que era -, então o homem devia merecer sua atenção, seu respeito.
Chegara o momento de deixar de ser um crítico, um analista sempre insatisfeito com a evidência. A prova estava diante de seus olhos: as cadeiras vazias, a cama solitária, o abismo em seu coração. Havia somente um modo de agir. Ele apertou novamente o botão para rodar o teipe.
"Não faz qualquer diferença, a esta altura, saber o porquê de você ainda estar na terra. Você pode ter sido muito egoísta, orgulhoso ou ocupado, ou talvez simplesmente não reservou tempo para examinar as palavras de Cristo dirigidas a você. A questão agora é que você tem outra oportunidade. Não a deixe escapar.
"O desaparecimento dos santos e dos pequeninos, o caos que ficou para trás e a desventura dos corações partidos são a evidência de que o que estou dizendo é verdadeiro. Ore para que Deus o ajude. Receba a dádiva da salvação agora mesmo. E resista às mentiras e propósitos do anticristo, que certamente logo aparecerá. Lembre-se: ele vai enganar muitos. Que você não seja incluído entre eles.
"Cerca de 800 anos antes de Jesus vir a este mundo pela primeira vez, Isaías, no Velho Testamento, profetizou que os reinos das nações entrariam em grande conflito e seus rostos seriam como chamas de fogo. Para mim, tais palavras anunciam a Terceira Guerra Mundial, uma guerra termonuclear que varrerá milhões de pessoas da face da terra.
"A profecia bíblica é a história escrita antecipadamente. Insisto em que você procure livros sobre este assunto ou pessoas especialistas nesta área, mas que por alguma razão não receberam Cristo em seus corações em tempo e foram deixadas para trás. Estude e examine tudo, para saber o que virá, a fim de estar preparado.
"Você vai notar que o governo e a religião vão mudar, a guerra e a inflação explodirão, haverá uma hecatombe que reduzirá terrivelmente a população do globo, acompanhada de grande destruição, martírios de santos, e até mesmo um terremoto devastador. Esteja preparado.
"Deus quer perdoar os seus pecados e reservar-lhe um lugar seguro no céu. Ouça Ezequiel 33.11: '...não tenho prazer na morte do perverso, mas em que o perverso se converta do seu caminho e viva.'
"Se você aceitar a mensagem da salvação de Deus, o Espírito Santo de Deus entrará em sua vida e fará com que você renasça espiritualmente. Você não precisa ter uma compreensão teológica de tudo isso. Você pode tornar-se um filho de Deus orando a Ele agora mesmo enquanto eu o conduzo nesta oração..."
Rayford interrompeu novamente o teipe, congelando a imagem na tela, e viu a preocupação estampada no rosto do pastor, a compaixão que havia em seu olhar. Rayford tinha amigos e conhecidos que o tomariam por louco, talvez até mesmo sua filha. Mas isto tudo soava-lhe verdadeiro e límpido como cristal. Ele não havia entendido o significado dos sete anos de tribulação nem do novo líder, o mentiroso que deveria surgir. Mas sabia que precisava de Cristo em sua vida.
Precisava do perdão de seus pecados e da segurança de que um dia se reuniria com sua esposa e seu filho no céu.
Rayford sentou-se com a cabeça entre as mãos, o coração martelando. Não se ouvia nenhum ruído vindo de cima, onde Chloe descansava. Ele estava a sós com seus pensamentos, a sós com Deus, cuja presença sentiu naquele instante. Levantou-se da poltrona e dobrou os joelhos sobre o carpete. Ele jamais dobrara os joelhos para orar ou adorar, mas sentia naquele momento um sopro de santidade e reverência. Pressionou de novo a tecla para fazer rodar o teipe e colocou de lado o controle remoto. Juntou as mãos em atitude de prece, erguidas à altura do peito, e apoiou nelas a cabeça, rosto voltado para o chão. "Repita as palavras desta oração", disse o pastor, e Rayford o seguiu: "Querido Pai, admito que sou um pecador. Estou arrependido dos meus pecados. Perdoa-me e salva-me. Peço-te em nome de Jesus, que morreu por mim. Confio nele agora. Creio que seu sangue sem mácula é suficiente para pagar o preço de minha salvação. Obrigado por me ouvires e me aceitares. Graças te dou por salvares minha alma."
Enquanto o pastor continuava com palavras de ânimo e conforto, citando versículos que prometiam que todo aquele que invocasse o nome do Senhor seria salvo, e que Deus não rejeitaria aqueles que o buscassem com sinceridade, Rayford permaneceu onde estava. Ao terminar sua mensagem, o pastor disse: "Se você foi sincero em sua confissão, está salvo, nasceu de novo, é filho de Deus." Rayford queria falar mais com Deus. Queria ser específico sobre seus pecados. Sabia que estava perdoado, mas, de uma forma que lhe pareceu infantil, queria que Deus soubesse que tipo de pessoa ele tinha sido.
Ele confessou seu orgulho. Orgulho de sua inteligência. Orgulho de seu modo de olhar. Orgulho de sua capacidade. Confessou sua lascívia, a forma como negligenciou o relacionamento com sua esposa, como tinha procurado o próprio prazer. Como adorou o dinheiro e as coisas fúteis. Ao terminar seu desfile de erros cometidos, sentiu-se limpo, purificado. O teipe o havia apavorado com aquelas palavras sobre os terríveis anos vindouros, mas sabia que poderia enfrentá-los como um verdadeiro crente, não nas condições em que vivera antes.
Sua primeira oração depois daquele momento foi em favor de Chloe. Ele se preocupava com ela e oraria em seu favor constantemente, até que estivesse seguro de que a filha teria uma nova vida a seu lado.
Buck chegou ao aeroporto Kennedy, em Nova York, e ligou para Steve Plank imediatamente.
- Fique aí onde está, Buck, seu renegado. Sabe quem deseja falar com você?
- Nem imagino.
- Nicolae Carpathia, em pessoa.
- Ah! sei.
- Estou falando sério, cara. Ele está aqui em companhia de seu velho amigo Chaim Rosenzweig. Pelo jeito, Chaim elogiou você para ele, e, apesar de ter toda a mídia atrás de si, o homem está procurando por você. Por isso, estou indo apanhá-lo aí, e você vai me dizer em que andou metido por esse mundo afora. Para nós, você está vivo e pode fazer aquela grande entrevista que pretendia.
Buck desligou e deu um soco na palma da mão de contentamento. Isto é bom demais para ser verdade, pensou. Se há um cara que está acima dos terroristas e vigaristas internacionais e acima da sujeira da Bolsa de Londres e da Scotland Yard, é esse Carpathia. Se Rosenzweig gosta dele, é porque ele deve ser o máximo.
Rayford aguardava com ansiedade o momento de ir à Igreja Nova Esperança na manhã seguinte. Começou a ler o Novo Testamento e vasculhou cada canto da casa para encontrar livros ou guias de estudo bíblico que Irene tinha colecionado. Embora muita coisa ainda fosse difícil de entender, ele se sentia tão faminto e sedento por histórias da vida de Cristo que leu de uma só vez os quatro Evangelhos até quase atravessar a noite e cair de sono.
Tudo o que Rayford pôde apreender por meio da leitura era que agora pertencia à família que incluía sua esposa e seu filho. Embora assustado com as predições do pastor no videoteipe sobre as coisas terríveis que ocorreriam no mundo após o Arrebatamento da Igreja, ele estava, por outro lado, eufórico e esperançoso acerca de sua nova fé. Sabia que um dia estaria com Deus e com Cristo e, mais do que nunca, desejava o mesmo para Chloe.
Rayford evitou aborrecê-la. Ele estava determinado a não lhe dizer nada a respeito do que tinha decidido, a menos que ela perguntasse. E ela nada perguntou antes de ele sair para a igreja naquela manhã, mas desculpou-se por não acompanhá-lo. "Irei com você em outra oportunidade", disse ela. "Prometo. Não estou contra. Apenas não me considero preparada."
Rayford lutou contra o impulso de admoestá-la a não protelar sua decisão. Ele queria também apelar para que ela visse o videoteipe; Chloe sabia que ele tinha visto, mas se manteve calada a esse respeito. Rayford havia rebobinado o teipe e deixou-o no videocassete, esperando e orando para que ela visse a gravação enquanto ele estivesse fora.
Rayford chegou à igreja um pouco antes das dez horas e ficou surpreso ao ter de estacionar a três quadras do templo. O lugar estava lotado. Poucos levavam Bíblias, e raramente se via alguém bem vestido. Pessoas assustadas, desesperadas ocupavam todos os bancos, incluindo a galeria. Rayford teve de se contentar em ficar em pé na parte de trás por não ter encontrado um único lugar.
Às dez horas em ponto, Bruce começou a falar. Pediu a Loretta que ficasse à porta e cuidasse para que cada retardatário fosse bem recebido. Apesar da multidão, ele não acendeu as luzes da plataforma nem utilizou o púlpito. Apenas colocou um único microfone logo à frente da primeira fila de bancos, falando ao público sem qualquer formalidade.
Bruce apresentou-se e disse:
- Não vou ocupar o púlpito, porque aquele é um lugar para pessoas preparadas e chamadas por Deus para essa missão. Estou liderando esta reunião e lhes dirigindo a palavra por ter sido negligente. Normalmente, nós, nesta igreja, estaríamos entusiasmados ao ver um público tão numeroso como este. Mas não estou aqui para dizer-lhes o quanto nos alegramos de vê-los. Sei que estão aqui procurando saber o que aconteceu a seus filhos pequenos e a outros entes queridos. Creio ter a resposta. Na realidade, eu não tinha essa resposta antes, porque, se a tivesse, também não estaria aqui. Não vamos cantar hinos nem fazer avisos sobre a programação da igreja, a não ser comunicar-lhes que teremos um estudo bíblico na próxima quarta-feira, às sete da noite. Não faremos levantamentos de ofertas, embora tenhamos de recomeçar a recolhê-las na próxima semana, a fim de fazer frente às nossas despesas. A igreja dispõe de algum dinheiro no banco, mas temos uma hipoteca a liquidar e despesas com meu sustento.
Em seguida, Bruce contou a mesma história que tinha contado a Rayford e Chloe no dia anterior, e sua voz era o único som que se ouvia no templo. Muitos choravam. Ele exibiu o videoteipe, e mais de uma centena de pessoas acompanhou-o na oração feita no final da exibição. Bruce recomendou-lhes que começassem a freqüentar assiduamente a Igreja Nova Esperança.
Ele acrescentou:
- Sei que muitos de vocês ainda estão céticos. Talvez acreditem que o que aconteceu foi obra de Deus, mas continuam insatisfeitos e ressentidos. Se quiserem voltar à noite para desabafar e fazer perguntas, estarei aqui. Resolvi não fazer uma sessão de perguntas e respostas nesta manhã, porque muitos que se encontram aqui são recém-convertidos, e não quero misturar assuntos. Estaremos abertos a qualquer pergunta honesta.
- Quero dar oportunidade a qualquer pessoa que tenha recebido Cristo nesta manhã e queira professar sua decisão diante de nós. A Bíblia diz que devemos fazer isso - tornar pública nossa decisão e nossa condição. Sintam-se à vontade para vir ao microfone.
Rayford foi o primeiro a se manifestar, mas, ao caminhar pelo corredor, notou que muitos o acompanhavam com o mesmo propósito. Todos queriam contar suas histórias, dizer onde se encontravam em sua jornada espiritual. A situação de muitos era igual à dele. Estiveram perto da verdade por intermédio de uma pessoa da família ou de algum amigo, mas nunca aceitaram plenamente a verdade sobre Cristo.
As histórias eram comoventes, e ninguém abandonou o recinto, mesmo quando o relógio marcava mais de meio-dia e havia ainda 40 ou 50 pessoas na fila. Todos pareciam necessitados de falar dos seus que haviam partido. Às duas horas, quando todos estavam famintos e cansados, Bruce disse:
- Vejo-me impelido a terminar. Hoje, eu não pretendia realizar uma cerimônia semelhante a um culto, nem mesmo cantar hinos. Mas sinto que precisamos louvar a Deus pelo que aconteceu aqui neste dia. Permitam-me ensinar-lhes um simples cântico de adoração.
Bruce entoou um breve cântico extraído da Escritura, dando glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo. Quando o povo acompanhou, calmo, reverente e sincero, Rayford ficou muito emocionado e não conseguiu cantar. Uns após outros foram parando de cantar e apenas diziam baixinho as palavras ou as sussurravam com os lábios cerrados, com um nó na garganta, tomados pela emoção. Rayford acreditava que aquele tinha sido o momento mais forte e comovente de sua vida. Como ele desejaria ter podido compartilhá-lo com Irene, Raymie e Chloe.
O público parecia relutante em sair, mesmo depois que Bruce encerrou com uma oração. Muitos permaneceram para estabelecer relacionamentos, e parecia evidente que uma nova congregação estava começando. O nome da igreja nunca fora tão apropriado. Nova Esperança. Bruce apertava a mão de cada pessoa que saía. Ninguém se esquivava nem se apressava. Quando Rayford apertou-lhe a mão, Bruce perguntou:
- Você vai estar ocupado esta tarde? Poderíamos tomar um lanche juntos?
- Gostaria de ligar primeiro para minha filha, mas será um prazer.
Rayford disse a Chloe onde ele estaria. Ela nada perguntou sobre a reunião na igreja, dizendo apenas: "Demorou, hein? Havia muita gente?" E ele simplesmente respondeu sim a ambas observações. Havia decidido a não dizer mais nada, a menos que ela perguntasse. Esperava e orava para que a curiosidade de Chloe a levasse finalmente a se interessar pelo assunto, e, se mais tarde ele pudesse contar-lhe o que realmente havia acontecido naquele dia, talvez ela manifestasse o desejo de tomar uma atitude. No mínimo, ela teria de reconhecer o quanto aquilo o afetou.
Num pequeno restaurante perto de Arlington Heights, Bruce parecia exausto, mas feliz. Ele disse a Rayford que sentiu uma tal carga de emoções que dificilmente saberia o que fazer delas.
- Minha aflição pela perda de minha família continua tão viva que mal consigo agir normalmente. Sinto ainda vergonha de minha hipocrisia. E, no entanto, desde que me arrependi de meus pecados e recebi verdadeiramente Cristo, em apenas uns poucos dias Ele me tem abençoado mais do que eu poderia imaginar. Minha casa está solitária, fria e cheia de lembranças dolorosas. Mas, apesar disso, veja o que aconteceu hoje. Foi-me dado um rebanho para pastorear, uma razão para viver.
Rayford apenas sinalizava afirmativamente com a cabeça. Ele percebeu que Bruce precisava de alguém com quem desabafar.
- Ray - disse Bruce -, as igrejas são geralmente formadas por pastores diplomados em seminários e presbíteros que têm sido cristãos na maior parte de suas vidas. Nós não tivemos esse privilégio. Não sei que modelo de liderança vou implantar. Não faz sentido ter presbíteros quando o pastor interino, que é tudo o que posso dizer de mim mesmo, é um cristão recém-convertido como todos os demais. Mas vamos precisar de um grupo de pessoas que se comprometam umas com as outras e sejam dedicadas aos crentes. Loretta e algumas pessoas que conheci na noite do Arrebatamento já fazem parte desse grupo, além de dois senhores idosos que freqüentaram a igreja durante anos, mas por alguma razão também perderam a chance de ser arrebatados.
- Sei que isto é novidade para você, mas sinto que devo pedir-lhe que faça parte de nosso pequeno grupo. Estaremos juntos na igreja no culto matutino de domingo, na reunião ocasional no domingo à noite, no estudo bíblico na quarta-feira à noite e nos reuniremos em minha casa uma ou duas noites por semana. Oraremos uns pelos outros, estabeleceremos a responsabilidade de cada um e estudaremos com um pouco mais de profundidade como estar à frente da nova congregação. Você está disposto?
Rayford aprumou-se na cadeira.
- Uau - disse ele. - Não sei. Sou muito novo nisto.
- Todos somos.
- Sim, mas você foi criado nesse meio, Bruce. Você conhece o assunto.
- Só que perdi o mais importante de tudo.
- Bem, vou dizer-lhe o que me atrai nisso. Estou faminto de conhecer a Bíblia. E preciso de um amigo.
- Eu também - disse Bruce. - Este é o risco. Com o tempo, poderemos nos desentender.
- Estou disposto a assumir o risco, se você estiver -disse Rayford. - Desde que eu não exerça nenhum papel de liderança.
- Combinado - disse Barnes, estendendo-lhe a mão. Rayford a apertou com força. Nenhum deles sorriu. Rayford tinha a sensação de que este era o começo de um relacionamento nascido da tragédia e da necessidade. Ele apenas esperava que desse certo. Quando Rayford finalmente chegou ao lar, encontrou Chloe ansiosa por saber tudo a respeito do que se passara. Ela ficou assombrada diante do que o pai lhe contou e sentiu-se embaraçada ao dizer que ainda não tinha visto o videoteipe. - Mas vou vê-lo agora, papai, antes de irmos a Atlanta. Você está realmente envolvido nisto, certo? Parece-me que se trata de algo que preciso investigar, mesmo que não tome nenhuma decisão favorável.
Rayford tinha chegado a casa havia uns vinte minutos e vestira um pijama e um roupão, para relaxar o resto da noite, quando Chloe lhe deu um recado.
- Papai, quase me esqueci. Uma tal de Hattie Durham telefonou várias vezes. Ela parecia muito agitada. Disse que trabalha com você.
- Sim - disse Rayford. - Ela queria ser escalada para o meu próximo vôo, e eu não quis. Ela provavelmente descobriu e quer saber por quê.
- Por que você não quis?
- Esta é uma longa história. Contarei a você qualquer dia. Rayford dirigia-se ao telefone, quando ele tocou. Era Bruce.
- Esqueci-me de confirmar - disse ele. - Já que você concordou em participar do grupo, a primeira responsabilidade é a reunião de hoje à noite com os desalentados e os céticos.
- Você está sendo um capataz muito severo, não está?
- Posso compreender. Talvez essa reunião não estivesse em seus planos.
- Bruce - disse Rayford -, além do céu, não há outro lugar ao qual preferiria ir. Não posso perder essa reunião. Talvez eu leve Chloe.
- Que reunião é essa? - perguntou ela quando ele desligou.
- Espere um minuto - disse ele. - Deixe-me falar com Hattie e acalmar a situação.
Rayford ficou surpreso por Hattie não mencionar o fato de não ter sido escalada para seu vôo.
- Ouvi uma notícia desconcertante - disse ela. - Lembra-se do redator do Semanário Global que estava em nosso vôo, aquele que tinha um computador ligado ao telefone interno do avião?
- Vagamente.
- Seu nome era Cameron Williams, e conversei com ele umas duas vezes depois do vôo. Tentei ligar para ele do aeroporto em Nova York na noite passada, mas não consegui.
- Hã-hã.
- Acabo de ouvir pelo noticiário da televisão que ele foi morto na Inglaterra na explosão de uma bomba dentro de um carro.
- Você não está falando sério!
- Estou. Você não acha isso muito estranho? Rayford, às vezes não sei o quanto essas coisas me afetam. Eu mal conhecia essa pessoa, mas fiquei tão chocada que me senti arrasada quando ouvi a notícia. Sinto ter incomodado você, mas pensei que se lembrasse dele.
- Não, não, você fez bem, Hattie. E imagino o quanto isso a abateu, porque aconteceu comigo também. Na verdade, tenho muita coisa a lhe contar.
- É mesmo?
- Poderíamos nos encontrar proximamente?
- Eu me inscrevi para ser escalada num de seus vôos - disse ela. - Talvez dê certo.
- Talvez - disse ele. - E, se não der certo, talvez você possa vir jantar conosco, Chloe e eu.
- Eu gostaria, Rayford. Gostaria mesmo.
TREZE
BUCK Williams sentou-se perto de uma das saídas do aeroporto Kennedy e leu seu próprio necrológio. "Redator de Revista Supostamente Assassinado", dizia a manchete.
Cameron Williams, 30 anos, o mais jovem e importante redator no círculo das mais prestigiosas revistas semanais, morreu tragicamente após a explosão de uma bomba dentro de um carro, diante de um bar-restaurante de Londres no último sábado à noite, morrendo no acidente também um investigador da Scotland Yard.
Williams, contratado há cinco anos pelo Semanário Global, recebeu o Prêmio Pulitzer como repórter da Boston Globe antes de ingressar na equipe atual de repórteres do Semanário aos 25 anos. Ele chegou rapidamente à primeira linha de redatores e, desde então, escreveu mais de três dúzias de reportagens de capa, tendo conquistado por quatro vezes no Semanário o prêmio pela reportagem "O Fazedor da Notícia do Ano".
O jornalista ganhou o honroso Prêmio Ernest Hemingway como correspondente de guerra, quando escreveu uma crônica a respeito da destruição da força aérea russa sobre o território de Israel há 14 meses. De acordo com Steve Plank, editor-executivo do Semanário Global, a administração da revista se recusa a confirmar a notícia da morte de Williams "até que obtenha sólida evidência do acontecido".
O pai de Williams e seu irmão casado vivem em Tucson, onde Williams perdeu sua cunhada, uma sobrinha e um sobrinho nos desaparecimentos da última semana.
A Scotland Yard informa que a bomba que explodiu em Londres aparenta ter sido um ato cometido por terroristas da Irlanda do Norte, podendo significar um caso de retaliação. O capitão Howard Sullivan considerou a vítima Alan Tompkins, seu subordinado de 29 anos, "um dos homens mais eminentes e brilhantes entre os investigadores que teve o privilégio de comandar".
Sullivan acrescentou que Williams e Tompkins tornaram-se amigos depois que o repórter entrevistou o investigador há vários anos para um artigo sobre o terrorismo na Inglaterra. Os dois tinham acabado de sair da taverna Armitage Arms, em Londres, quando uma bomba explodiu no veículo da Scotland Yard, que estava sendo dirigido por Tompkins.
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