DEIXADOS PARA TRÁS IV
PRÓLOGO
Extraído do final de Nicolae
O coração de Buck comoveu-se quando ele avistou a torre da Igreja Nova Esperança. Faltavam
menos de 600 metros para chegar lá, mas a terra ainda tremia, provocando colisões por todos
os lados. Árvores imensas caíam e arrastavam os fios elétricos pela rua. Quanto mais Buck se
aproximava da igreja, mais aumentava a sensação de vazio em seu coração. A torre da igreja
era a única coisa que estava em pé, com a base assentada no solo. Os faróis do Range Rover
iluminaram os bancos da igreja, dispostos em fileiras tortas. Alguns deles estavam intactos. O
restante do templo, as vigas em arco, os vitrais coloridos, tudo havia desaparecido. O prédio
da administração, as salas de aula e os escritórios estavam no chão, formando um amontoado
de tijolos, vidros e argamassa.
Via-se apenas um carro na cratera que se abrira no terreno do estacionamento. O fundo do
carro estava assentado no chão, com os quatro pneus furados e os eixos das rodas quebrados.
Projetando-se debaixo do carro havia duas pernas humanas desnudas. Buck parou o Range
Rover a cerca de trinta metros do terreno do estacionamento. A porta de seu lado não abria.
Ele soltou o cinto de segurança e desceu pelo lado do passageiro. De repente, o terremoto
cessou. O sol reapareceu na manhã clara e luminosa de uma segunda-feira em Monte Prospect,
Illinois. Buck sentia cada osso de seu corpo. Cambaleando sobre o solo irregular, ele caminhou
na direção do pequeno carro destruído. Ao aproximar-se, avistou um corpo esmagado sem um
dos pés. O outro pé confirmou o que ele temia. Loretta tinha sido esmagada pelo seu próprio
carro.
Buck tropeçou e caiu com o rosto no chão, sentindo alguma coisa cortar sua bochecha. Sem
fazer caso disso, rastejou até o carro de Loretta e empurrou-o com toda força, tentando
remover o corpo. O veículo não se movia. Buck não queria de jeito nenhum deixar o corpo de
Loretta ali. Mas para onde ele o levaria, se conseguisse retirá-lo? Chorando, ele arrastou-se no
meio dos escombros à procura de uma entrada para o abrigo subterrâneo... Finalmente,
encontrou a abertura de ventilação. Com as mãos em formato de concha ao redor da boca, ele
gritou dentro da abertura:
- Tsion! Tsion! Você está aí?
Em seguida, ele encostou o ouvido na abertura, sentindo o ar fresco que vinha do abrigo.
- Estou aqui, Buck!... Como está Loretta?
- Ela morreu!
- Aconteceu o grande terremoto?
- Aconteceu!
- Você pode vir até aqui?
- Vou chegar até aí mesmo que seja a última coisa que eu vá fazer, Tsion! Preciso de sua ajuda
para procurar Chloe!
- Por enquanto eu estou bem, Buck! Vou esperar por você!
Buck virou-se e olhou na direção da casa secreta. As pessoas andavam com passos trôpegos,
roupas esfarrapadas, sangrando. Algumas caíam no chão e pareciam estar morrendo diante
dos olhos de Buck. Ele não sabia quanto tempo ainda levaria para chegar até Chloe. Não
queria ver outra cena igual àquela que estava presenciando, mas não desistiria até encontrála.
Se houvesse uma chance em um milhão de chegar até onde ela estava, de salvá-la, ele iria
até o fim.
O sol voltara a brilhar sobre a Nova Babilónia. Rayford pediu insistentemente a Mac McCullum
que prosseguisse na direção de Bagdá. Por toda parte que Rayford, Mac e Carpathia olhavam só
havia destruição. Crateras produzidas por meteoros. Incêndios. Edifícios desabados. Estradas
devastadas.
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Ao avistar o aeroporto de Bagdá, Rayford abaixou a cabeça e chorou. Os jumbos estavam
contorcidos, alguns com partes projetando-se das enormes cavidades no solo. O terminal
desabara. A torre não mais existia. Havia corpos espalhados por toda parte.
Rayford fez um sinal para que Mac pousasse o helicóptero. Assim que examinou a área, Rayford
entendeu tudo. Agora ele só podia orar para que Amanda ou Hattie estivessem voando quando
ocorreu o terremoto.
Quando as hélices pararam de girar, Carpathia virou-se para os dois:
- Algum de vocês tem um telefone que esteja funcionando?
Rayford estava tão enojado que passou por Carpathia e abriu a porta com força. Contornou
rapidamente a poltrona de Carpathia e pulou no solo. Em seguida, ele colocou o braço dentro
do helicóptero, soltou o cinto de segurança de Carpathia, agarrou-o pelas lapelas e gritou para
que ele saísse dali. Carpathia caiu no chão e levantou-se rapidamente, como se estivesse
pronto para lutar. Rayford empurrou-o contra o helicóptero.
- Capitão Steele, sei que você está aborrecido, mas...
- Nicolae - disse Rayford, com os dentes cerrados -, você pode explicar o que aconteceu da
maneira que quiser, mas antes me deixe dizer-lhe uma coisa: Você acabou de presenciar a ira
do Cordeiro!
Carpathia deu de ombros. Rayford empurrou-o pela última vez contra o helicóptero e afastou-se
dali cambaleando. Virou o rosto na direção do terminal do aeroporto, a uma distância de pouco
menos de meio quilómetro. Orou para que essa fosse a última vez que ele teria de procurar o
corpo de uma pessoa querida no meio de entulhos.
"Quando o Cordeiro abriu o sétimo selo, houve silêncio no céu cerca de meia hora. Então vi os
sete anjos que se acham em pé diante de Deus, e lhes foram dadas sete trombetas. Veio outro
anjo e ficou de pé junto ao altar, comum incensário de ouro, e foi-lhe dado muito incenso para
oferecê-lo com as orações de todos os santos sobre o altar de ouro que se acha diante do
trono; e da mão do anjo subiu à presença de Deus o fumo do incenso, com as orações dos
santos. E o anjo tomou o incensário, encheu-o do fogo do altar e o atirou à terra. E houve
trovões, vozes, relâmpagos e terremoto. Então, os sete anjos que tinham as sete trombetas
prepararam-se para tocar"
(Apocalipse 8.1-6).
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UM
Rayford Steele estava usando o uniforme do inimigo de sua alma, e odiava a si mesmo por
isso. Caminhou pelas areias do Iraque em direção ao aeroporto de Bagdá trajando seu
uniforme azul, completamente atordoado pela incoerência de tudo aquilo.
Do outro lado da planície árida vinham lamentos e gritos de centenas de pessoas que ele nem
sequer podia começar a ajudar. Qualquer tentativa de encontrar sua mulher com vida dependia
da rapidez com que ele chegasse até ela. Mas pressa era o que não existia ali. Só areia. E o
que teria acontecido a Chloe e Buck nos Estados Unidos? E a Tsion?
Desesperado, agindo impensadamente e louco de frustração, ele rasgou seu colete de debruns
amarelos, pesadas dragonas e insígnias que o identificavam como o piloto mais importante da
Comunidade Global. Sem perder tempo para desabotoar os maciços botões dourados, Rayford
arrancou-os com força, e eles espalharam-se pelo chão do deserto. Ele deixou o paletó cair por
trás dos ombros e segurou a gola com firmeza. Com três, quatro ou cinco
movimentos, tirou o paletó pela cabeça e atirou-o ao chão, fazendo levantar uma onda de
poeira. Seus sapatos de couro ficaram cobertos de areia.
Rayford pensou em abandonar todos os vestígios de sua ligação com o regime de Nicolae
Carpathia, mas sua atenção foi dirigida novamente para as suntuosas insígnias de seu
uniforme. Investiu contra elas na tentativa de arrancá-las, parecendo querer livrar-se do posto
que ocupava a serviço do anticristo. Porém, o alfaiate não deixara um mínimo espaço entre as
costuras, e Rayford atirou outra vez o paletó ao chão. Enquanto o pisoteava e o chutava para
desabafar sua raiva, Rayford finalmente entendeu por que o paletó estava mais pesado que o
normal. Ele havia deixado seu telefone celular no bolso.
Ao ajoelhar-se para recolher o paletó do chão, Rayford voltou a raciocinar com lógica - uma de
suas características principais. Por não ter ideia do que encontraria nas ruínas do condomínio
onde morava, ele não poderia dispensar aquilo que talvez fosse sua única muda de roupas.
Vestiu novamente o paletó e arregaçou as mangas como os meninos costumam fazer em dias
quentes. Sem se importar com a areia grudada no paletó e demonstrando profundo
abatimento, Rayford caminhou em direção aos escombros do aeroporto. Ele podia passar por
um sobrevivente de acidente aéreo, um piloto que perdera o quepe e os botões de seu
uniforme.
Em todos aqueles meses que estava morando no Iraque, Rayford não se lembrava de ter
sentido arrepios de frio durante o dia, antes do pôr-do-sol. Contudo, aquele terremoto talvez
tivesse mudado não apenas a topografia, mas também a temperatura do local. Rayford
acostumara-se a sentir a camisa molhada de suor, grudada na pele como um adesivo. Mas
agora aquele vento inusitado e misterioso provocava-lhe calafrios enquanto ele discava para
Mac McCullum e encostava o fone ao ouvido.
Em questão de segundos, ele ouviu o ruído do motor e das hélices do helicóptero de Mac atrás
de si. Para onde eles estariam se dirigindo?
- Aqui é Mac - soou a voz grave de McCullum.
Rayford girou o corpo e viu a figura do helicóptero passar diante do sol poente.
- Não posso acreditar que este telefone ainda funcione - disse Rayford. Além de tê-lo atirado ao
chão e, depois, o chutado, ele imaginava que o terremoto devia ter destruído
as torres de transmissão da redondeza.
- Assim que eu sair fora da área de alcance, ele não funcionará mais, Ray - disse Mac. - Tudo o
que vejo daqui está destruído. Esses aparelhos funcionam como walkie-talkies quando a
distância é pequena. Quando precisamos que eles funcionem, não conseguimos nada.
- Então qualquer possibilidade de ligar para os Estados Unidos...
- Está fora de cogitação - disse Mac. - Ray, o potentado Carpathia quer falar com você, mas
antes...
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- Eu não quero falar com ele, e você pode dizer-lhe isso.
- Mas, antes de colocar o potentado na linha – prosseguiu Mac -, não se esqueça de que
aquela nossa reunião, sua e minha, continua marcada para esta noite. Certo?
Rayford dimhiuiu os passos e olhou para o chão, passando a mão pelos cabelos.
- O quê? De que reunião você está falando?
- Então está tudo certo, ótimo - disse Mac. - A reunião será esta noite. Agora o potentado...
- Estou entendendo que você deseja conversar comigo mais tarde, Mac, mas, se Carpathia
entrar na linha, juro que...
- Aguarde para falar com o potentado.
Rayford passou o fone para a mão direita, pronto para arremessá-lo ao chão, mas se conteve.
Quando o sistema telefónico voltasse ao normal, ele queria ter condições de comunicar-se com
as pessoas que amava.
- Capitão Steele - soou a voz de Carpathia, sem nenhum traço de emoção.
- Pois não - disse Rayford, demonstrando toda a aversão que sentia. Ele esperava que Deus o
perdoasse por tudo o que diria ao anticristo, mas engoliu as palavras.
- Apesar de nós dois sabermos como eu reagiria à sua terrível insolência e insubordinação -
disse Carpathia -, decidi perdoá-lo.
Rayford continuou a caminhar, cerrando os dentes para não gritar com aquele homem.
- Entendo o quanto você está constrangido por ter de agradecer-me - prosseguiu Carpathia -,
mas preste atenção.
Tenho um local seguro e bem abastecido onde meus assessores e embaixadores internacionais
irão ao meu encontro. Você e eu sabemos que precisamos um do outro, portanto sugiro...
- O senhor não precisa de mim - retrucou Rayford. - E eu não preciso de seu perdão. O senhor
tem um piloto competente a seu lado, por isso é melhor esquecer que eu existo.
- Esteja pronto para subir a bordo quando ele pousar - disse Carpathia, demonstrando pela
primeira vez um tom de frustração na voz.
- Eu só estava precisando de uma carona até o aeroporto - disse Rayford -, mas já estou
quase lá. Não deixe que Mac pouse perto deste caos.
- Capitão Steele - disse Carpathia, voltando a ser condescendente. - Admiro sua teimosia em
pensar que poderá encontrar sua esposa com vida, mas nós dois sabemos que isso é
impossível.
Rayford não retrucou. Temia que Carpathia estivesse certo, mas jamais lhe daria a satisfação de
admitir isso. E Rayford não desistiria de sua busca enquanto não tivesse plena certeza de que
Amanda não sobrevivera.
- Venha nos fazer companhia, capitão Steele. Suba novamente a bordo. Vou agir como se sua
explosão de raiva nunca...
- Não irei a lugar nenhum antes de encontrar minha mulher! Deixe-me falar com Mac.
- O piloto McCullum está ocupado. Posso transmitir-lhe o seu recado.
- Mac é capaz de pilotar essa coisa sem as duas mãos. Agora me deixe falar com ele.
- Se você não quiser passar seu recado, então, capitão Steele...
- Está bem, o senhor venceu. Diga a Mac que...
- O momento não é apropriado para abandonar o protocolo, capitão Steele. Um subordinado
que acabou de ser perdoado deve dirigir-se a seu superior...
- Está bem, potentado Carpathia, diga a Mac para vir me buscar se eu não conseguir sair daqui
até às 22 horas.
- E, se você conseguir sair, o abrigo fica a três quarteirões e meio a noroeste do local onde era a
sede da Comunidade Global. Você precisará desta senha: "Operação Ira".
- O quê? - Carpathia sabia que isso ia acontecer?
- Você entendeu, capitão Steele.
Cameron "Buck" Williams caminhou cuidadosamente por entre os entulhos próximos à
abertura de ventilação onde ouvira a voz clara e forte do rabino Tsion Ben-Judá, que estava preso
no abrigo subterrâneo. Tsion assegurou-lhe que não sofrera nenhum ferimento; só estava assustado
e com uma sensação de claustrofobia. O local era pequeno demais mesmo que a igreja não tivesse
desabado em cima dele. Sem ter condições de sair dali, a não ser que alguém cavasse um túnel até
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ele, em breve o rabino sentir-se-ia como um animal enjaulado.
Se Tsion estivesse em perigo iminente, Buck teria cavado um túnel com as mãos para libertá-lo.
Mas agora ele teria de agir como um médico fazendo uma triagem e decidir quem necessitava
de sua ajuda com mais urgência. Depois de afirmar a Tsion que voltaria, Buck dirigiu-se para a
casa secreta com o objetivo de encontrar sua mulher.
Para atravessar no meio dos escombros da igreja, a única que ele frequentara, Buck teve de
rastejar-se e passar novamente pelos restos mortais da querida Loretta. Que amiga ela havia
sido, primeiro de Bruce Barnes, que estava morto, e depois dos remanescentes do Comando
Tribulação. O grupo começara com quatro pessoas: Rayford, Chloe, Bruce e Buck. Amanda veio
depois. Tsion passou a fazer parte após a morte de Bruce.
Será que agora o grupo estaria reduzido apenas a Buck e Tsion? Buck não queria pensar nisso.
Ele encontrou seu relógio grudado de lama, asfalto e um caco de vidro do pára-brisa do carro.
Ao limpar o mostrador de cristal na perna da calça, aquela mistura de lama, asfalto e caco de
vidro rasgou o tecido e fez um corte em seu joelho. O relógio marcava nove horas da manhã
em Monte Prospect, e Buck ouviu o som de uma sirene aérea, outro de sirene que avisa a
chegada de tornados e um terceiro de sirene de veículos de emergência - um deles estava
próximo; os demais vinham de lugares distantes. Ouviam-se também gritos agudos, berros,
soluços, motores funcionando.
Será que ele conseguiria viver sem Chloe? Buck havia tido uma segunda chance; sua presença
ali tinha um propósito. Ele queria estar perto do amor de sua vida, e orou para que ela não
tivesse ido para o céu antes dele, apesar de saber que essa era uma atitude egoísta.
Ao olhar para baixo, Buck viu um inchaço em sua bochecha esquerda. Como o local não doera
nem sangrara, ele havia entendido que o corte devia ser pequeno, mas agora aquele ferimento
começou a preocupá-lo. Ele enfiou a mão no bolso da camisa e pegou seus óculos de sol de
lentes espelhadas. Uma delas estava esmigalhada. No reflexo da outra, ele viu a figura de um
mendigo de cabelos desgrenhados, olhos aterrorizados e boca aberta como se lhe faltasse o ar.
O corte não estava sangrando, mas parecia profundo. Não havia tempo para cuidar dele.
Buck esvaziou o bolso da camisa e só deixou ali a armação dos óculos - um presente de Chloe.
Dirigiu-se para o Range Rover, passando com cuidado por cima de vidros, pregos e tijolos como
se fosse um homem idoso tentando equilibrar-se.
Passou pelo carro de Loretta e pelo que restara dela, determinado a não voltar a ver aquela
cena. De repente, a terra moveu-se, e ele cambaleou. O carro de Loretta, que ele não
conseguira fazer sair do lugar momentos antes, rolou e desapareceu. O chão do
estacionamento abriu-se. Buck deitou-se de bruços no chão e olhou dentro da fenda recémaberta.
O carro destroçado estava apoiado em cima de uma tubulação de água a cerca de três
metros abaixo da terra. Os pneus furados apontavam para cima como se fossem pés inchados
de um andarilho. Enrolado como uma frágil bola em cima dos escombros do carro estava o
corpo de Loretta, uma santa da tribulação. Provavelmente a terra tremeria novamente.
Alcançar o corpo de Loretta seria uma missão impossível. Se ele também tivesse de encontrar
Chloe morta, seria melhor que Deus o atirasse para baixo da terra junto com o carro de Loretta.
Buck levantou-se devagar, dando-se conta de repente do quanto aquele sobe-e-desce provocado
pelo terremoto afetara suas articulações e músculos. Ele examinou os estragos de seu carro.
Apesar de ter rolado e colidido de todos os lados, o carro parecia estar em boas condições de
rodagem. A porta do lado do motorista não abria. Cacos de vidro do pára-brisa espalhavam-se por
todo o interior do carro, e o banco traseiro estava quebrado de um dos lados. Um pneu tinha
sofrido um corte até as cintas de aço, mas não se esvaziara completamente.
Onde estariam o telefone e o laptop de Buck? Ele os deixara em cima do banco da frente e
torcia para que não tivessem sido atirados para fora do carro no momento da catástrofe. Buck
abriu a porta do lado do passageiro e examinou o chão do carro. Nada. Olhou por baixo dos
bancos traseiros. Nada. Em um canto do carro, aberto e com uma das dobradiças da tela
quebrada, estava o seu laptop.
O telefone foi encontrado dentro da bolsa interna de uma das portas. Buck não esperava que
ele estivesse funcionando em razão dos estragos sofridos pelas torres de transmissão dos
telefones celulares (e tudo o mais que havia sobre a terra). Buck ligou o telefone. Após um
teste automático, o visor indicou raio de distância zero. Mesmo assim, ele tentou fazer uma
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ligação. Discou para a casa de Loretta. Não recebeu nenhum sinal de defeito, nem sequer uma
mensagem da companhia telefónica. O mesmo aconteceu quando ele ligou para a igreja e
depois para o abrigo de Tsion. Parecendo estar fazendo uma brincadeira cruel com Buck, o
telefone emitia ruídos estranhos, como se a ligação estivesse prestes a ser completada.
Depois, nada.
Buck perdera seus pontos de referência. Ainda bem que o Range Rover tinha uma bússola
embutida. Até mesmo a igreja parecia ter mudado de posição. Ele avistou postes, fios elétricos
e semáforos no chão, edifícios desabados, árvores com as raízes expostas e muros destruídos.
Buck acionou a tração nas quatro rodas. Depois de rodar pouco mais de seis metros, ele teve
de pisar fundo no acelerador para passar por cima de uma elevação. Seus olhos estavam
atentos para evitar que o Rover sofresse mais avarias - ele precisava durar até o fim da
Tribulação. Buck imaginava que isso se daria dali a cinco anos.
Enquanto passava por cima de pedaços de asfalto e concreto no local onde um dia existira
uma rua, ele olhou novamente para os escombros da Igreja Nova Esperança. Metade do
edifício estava soterrada. E aquela fileira de bancos, que antes estavam de frente para o
oeste, agora estavam de frente para o norte e brilhavam à luz do sol. Todo o piso do templo
parecia ter dado uma virada de 90 graus.
Ao passar diante da igreja, ele parou para examiná-la. Um raio de luz brilhava entre cada par
de bancos de um conjunto de dez bancos. Apenas um local não recebia essa iluminação. Havia
alguma coisa ali que bloqueava a visão de Buck. Ele engatou a marcha a ré e acelerou
devagar. No chão, diante de um daqueles bancos, ele avistou as solas furadas de um par de
ténis, com os dedos apontados para cima. O principal objetivo de Buck naquele momento era
chegar à casa de Loretta e procurar por Chloe, mas ele não podia deixar uma pessoa no meio
daqueles entulhos. Haveria algum sobrevivente?
Buck puxou o freio de mão, passou por cima do banco de passageiro e desceu, andando por
cima de objetos que poderiam cortar seus pés. Ele queria ser prático, mas não havia tempo
para isso. Perdeu o equilíbrio quando estava a uns três metros do par de ténis e caiu de frente,
aparando a queda com as palmas das mãos e o peito.
Depois de levantar-se, ele ajoelhou-se perto do par de ténis que estava calçado nos pés de um
corpo. As pernas, vestidas com calça jeans de tom azul-escuro, eram finas, e os quadris,
estreitos. A parte da cintura para cima estava sob o banco, com a mão direita oculta debaixo
do corpo, e a esquerda, aberta. Buck não encontrou pulsação, mas percebeu que a mão
grande e ossuda era de homem. No terceiro dedo, havia uma aliança. Buck a retirou
imaginando que uma possível esposa sobrevivente haveria de querê-la.
Arrastando o corpo pelo cinto, Buck conseguiu tirá-lo debaixo do banco. Quando a cabeça ficou
visível, ele reconheceu as sobrancelhas loiras de Donny Moore. O cabelo e as costeletas
estavam empastados de sangue.
Buck não sabia o que fazer com um morto em tempos como aqueles. Onde seriam colocados os
milhões de corpos do mundo inteiro? Resolveu empurrá-lo de volta para baixo do banco, mas
encontrou resistência. Ao passar a mão pelo local, encontrou a maleta robusta e surrada de
Donny. Tentou abri-la, mas o segredo estava acionado. Levou a maleta até o Range Rover e
tentou novamente encontrar um ponto de referência. Ele estava a uns quatro quarteirões da
casa de Loretta, mas será que encontraria a rua?
Rayford muniu-se de coragem para ver o que se passava nos arredores do aeroporto de Bagdá.
Havia mais escombros e corpos estendidos no chão do que gente correndo assustada, mas pelo
menos nem tudo estava perdido.
Uma pequena silhueta escura, andando de modo esquisito, surgiu no horizonte. Rayford olhou
fascinado enquanto o vulto se aproximava e viu que se tratava de um asiático de meia-idade,
trajando terno. O homem caminhou em sua direção, e ele aguardou ansioso, imaginando se
poderia ajudá-lo. Porém, quando o homem chegou mais perto, Rayford percebeu que ele não
tinha noção de direção e caminhava a esmo. Um dos pés estava calçado com um sapato social
de bico fino. O outro estava descalço, e via-se apenas uma meia escorregando pelo tornozelo.
O paletó do terno estava abotoado, e a gravata, afrouxada, pendia por cima de uma das
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lapelas. Da mão esquerda, pingavam algumas gotas de sangue. Ele tinha os cabelos
desgrenhados, mas os óculos pareciam não ter sofrido nenhum impacto, apesar das agruras
pelas quais ele devia ter passado.
- O senhor está bem? - perguntou Rayford. Não houve resposta.- Posso ajudá-lo?
O homem passou por ele resmungando em sua própria língua. Rayford virou-se para abordá-lo
novamente, mas o homem prosseguiu seu caminho e transformou-se em um vulto diante do
sol alaranjado. Não havia nada naquela direção, a não ser o rio Tigre.
- Espere! - gritou Rayford correndo atrás dele. – Volte aqui! Deixe-me ajudá-lo!
O homem não lhe deu atenção. Rayford voltou a ligar para Mac.
- Deixe-me falar com Carpathia.
- Claro - disse Mac. - Nossa reunião continua marcada para hoje à noite, certo?
- Certo. Agora deixe-me falar com ele.
- Eu estou falando da reunião entre mim e você, certo?
- Sim! Não sei o que você quer, mas, sim, já entendi. Agora preciso falar com Carpathia.
- Está bem, desculpe-me. Fale com ele.
- Mudou de ideia, capitão Steele? - perguntou Carpathia.
- Mais ou menos. Diga-me uma coisa. O senhor conhece os idiomas asiáticos?
- Alguns. Por quê?
- 0 que isto significa? - perguntou Rayford, repetindo o que o homem dissera.
- Ah, isso é fácil - respondeu Carpathia. - Significa "Você não pode ajudar-me. Deixe-me em
paz".
- Quero falar de novo com Mac, por favor. Esse homem vai morrer abandonado por aí.
- Pensei que você estivesse procurando sua mulher.
- Não posso deixar um homem andando a esmo até morrer.
- Milhões de pessoas estão mortas ou morrendo. Você não pode salvar todas elas.
- Então o senhor vai permitir que esse homem morra?
- Daqui não posso ver onde ele está, capitão Steele. Se você achar que pode salvá-lo, vá em
frente. Não quero parecer insensível, mas tenho gente demais para cuidar neste momento.
Rayford desligou o telefone e correu na direção do homem que caminhava a esmo balbuciando
algumas palavras. Quando chegou mais perto, entendeu, horrorizado, por que seu modo de
andar era tão esquisito e por que ele deixava um rasto de sangue atrás de si. Espetado em seu
corpo havia um pedaço reluzente de metal, aparentemente um fragmento de fuselagem.
Rayford não entendia como ele ainda continuava vivo, como sobrevivera ou saíra do avião. O
fragmento estava preso desde o quadril até a parte posterior da cabeça. Por pouco, não
atingira os órgãos vitais.
Rayford tocou no ombro do homem, fazendo-o recuar um pouco. Depois disso, o desconhecido
sentou-se pesadamente na areia, deu um suspiro profundo e expirou. Rayford tornou-lhe a
pulsação, mas não se surpreendeu ao não sentir nada. Arrasado, ele ajoelhou-se na areia, de
costas para o homem. Os soluços faziam todo o seu corpo estremecer.
Rayford levantou as mãos para o céu.
- Por que, meu Deus? Por que tenho de ver esta cena? Por que puseste alguém no meu
caminho que não pude sequer ajudar? Poupa a vida de Chloe e Buck! Eu te suplico que
devolvas Amanda viva para mim! Sei que não mereço nada, mas não posso viver sem ela!
Normalmente, quando Buck ia de carro da igreja até a casa de Loretta, ele costumava rodar
dois quarteirões no sentido sul e dois no sentido leste. Mas agora não havia mais quarteirões,
nem calçadas, nem ruas, nem cruzamentos. Até onde sua vista alcançava, todas as casas da
vizinhança haviam desabado. Será que essa catástrofe acontecera no mundo inteiro? Tsion
dissera que um quarto da população mundial seria vitimado pela ira do Cordeiro. Buck, porém,
ficaria surpreso se um quarto da população de Monte Prospect ainda estivesse viva.
Ele dirigiu o Range Rover para a região sudeste. Um pouco acima do horizonte, o dia mostravase
tão lindo como Buck nunca se lembrava de ter visto. O céu, sem nenhuma fumaça ou
poeira, tinha a tonalidade azul de uma roupa de bebé.. Nenhuma nuvem. Apenas o sol
reluzente.
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Dos hidrantes destroçados, a água subia em forma de chafariz. Uma mulher arrastava-se
tentando sair das ruínas de sua casa. No ombro, onde o braço havia sido arrancado, havia um
coto sangrando. Ela gritou para Buck:
- Mate-me! Mate-me!
- Não! - ele gritou, saindo do Rover.
A mulher curvou-se, pegou um caco de uma vidraça quebrada e passou-o pelo pescoço. Buck
continuou a gritar correndo em sua direção. Ele só esperava que ela não tivesse forças para
fazer um corte muito profundo no pescoço e orou para que o ferimento não atingisse a
carótida.
Quando ele se aproximou mais, ela lançou-lhe um olhar arregalado de medo, de susto. O caco
de vidro caiu no chão. Ela afastou-se cambaleando e bateu a cabeça com força em um pedaço
de concreto. Imediatamente, o sangue parou de jorrar de suas artérias expostas. Os olhos dela
estavam sem vida. Buck forçou para abrir a mandíbula da mulher e fez respiração boca a boca.
O peito dela inflou-se, e as artérias verteram um pouco mais de sangue, mas tudo foi em vão.
Buck olhou ao redor, perguntando a si mesmo se deveria cobrir o corpo da mulher. Do lado
contrário, havia um senhor idoso em pé à beira de uma cratera, parecendo prestes a atirar-se
dentro dela. Buck não podia mais suportar aquilo. Estaria Deus preparando-o para ver outra
cena igual se Chloe não tivesse sobrevivido?
Subindo exausto no Range Rover, ele decidiu que não pararia mais para ajudar outra pessoa
que não quisesse ser ajudada. Por todos os lugares que ele olhava, só via devastação, fogo,
água e sangue.
Contrariando seu modo de ser, Rayford deixou o homem morto na areia do deserto. O que ele
faria se visse outras pessoas nas mesmas condições? Como Carpathia podia ser insensível a
tudo isso? Será que ele não tinha um pingo de humanidade? Mac teria permanecido ali e
ajudado.
Rayford estava desesperado para encontrar Amanda viva. Apesar de saber que seu único
objetivo no momento seria procurá-la, ele desejava ter marcado mais cedo o encontro com
Mac. Já presenciara coisas terríveis na vida, mas a mortandade naquele aeroporto superou a
tudo. Um abrigo, mesmo que fosse do anticristo, parecia melhor do que aquela cena diante
dele.
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DOIS
Buck já fizera coberturas jornalísticas sobre desastres, mas, em sua profissão, nunca se sentira
culpado por não ter dado atenção a um moribundo. Normalmente, quando ele chegava ao
local, a equipe médica já estava em ação. Não havia nada a fazer, a não ser ficar um pouco
afastado. Como jornalista, ele se orgulhava de jamais ter forçado uma situação a fim de não
dificultar o trabalho das equipes de emergência.
Mas agora só havia ele por ali. Sons de sirenes indicavam que outras pessoas estavam
trabalhando em algum lugar, mas com certeza havia pouca gente da equipe de regaste para
atender a todos. Ele poderia trabalhar 24 horas por dia tentando encontrar sobreviventes, mas
isso seria um pingo d'água no oceano diante da magnitude daquela catástrofe. Alguém talvez
estivesse deixando de cuidar de Chloe para atender pessoas da família. Os que haviam
escapado com vida não tinham alternativa, senão aguardar que algum herói amigo ou parente
fosse resgatá-los, apesar de todas as dificuldades para chegar até eles.
Buck nunca acreditara em percepção extra-sensorial ou telepatia, mesmo antes de tornar-se
crente em Cristo. Agora, contudo, diante daquela profunda ansiedade de encontrar Chloe,
daquele desespero pela possibilidade de perdê-la, ele sentia que seu amor transpirava por
todos os poros. Como Chloe podia não sentir que ele estava pensando nela, orando por ela,
tentando chegar até ela a qualquer custo?
Desesperado e com os olhos fixos no caminho à frente, vendo pessoas feridas acenando-lhe ou
gritando por socorro, Buck parou por causa de uma nuvem de poeira. A dois quarteirões do
lado leste da rua principal, havia alguma semelhança com um local que ele conhecia. Nada
estava como antes, mas as faixas de rolamento da rua, levantadas do chão pelo terremoto,
ainda permaneciam visíveis, mais ou menos na mesma configuração de antes. O asfalto da rua
de Loretta encontrava-se na posição vertical, formando uma espécie de muro que impedia a
visão do que restara das casas. Buck saiu do carro e começou a escalar aquele muro de
asfalto. Ele achava que a rua levantada do chão tinha pouco mais de um metro de espessura e
uma camada de pedregulhos e areia do outro lado. Estendeu o braço e cravou os dedos na
parte mais macia, pendurando-se ali e fixando o olhar no quarteirão da casa de Loretta.
Anteriormente, havia quatro casas imponentes naquela parte da rua. A de Loretta era a
segunda a partir da direita. O quarteirão inteiro parecia uma caixa de brinquedos que havia
sido sacudida e atirada ao chão. A casa que estava defronte a Buck, maior ainda que a de
Loretta, havia sido arrancada dos alicerces e desabara completamente sobre a parte da frente.
O telhado estava inteiro, mas na posição invertida, o que devia ter acontecido quando a casa
tombou com força no chão. Buck conseguiu enxergar os caibros, como se estivesse no sótão.
As quatro paredes da casa estavam no chão, com os pisos espalhados. Em dois lugares
diferentes, ele avistou braços e mãos imóveis despontando dos escombros.
Uma árvore alta, com mais de um metro de diâmetro, tinha sido arrancada pela raiz e estava
esmagada no porão. No piso de cimento, havia uma camada de água de mais ou menos meio
metro, cujo nível subia aos poucos. Curiosamente, um cómodo, que se assemelhava a um
quarto de hóspedes, no canto nordeste da casa, estava em ordem, parecendo não ter sido
atingido. Em breve, a água o cobriria.
Buck obrigou-se a olhar para a casa ao lado, a de Loretta. Não havia morado muito tempo ali
com Chloe, mas ele a conhecia muito bem. A casa, agora quase irreconhecível, parecia ter sido
levantada do solo e atirada com força ao chão, fazendo com que o telhado se partisse em dois
e caísse, como um gigantesco jogo de varetas. A parte que circundava o telhado estava a um
metro do chão. Três árvores enormes do jardim tinham tombado na rua, com os galhos
entrelaçados, como se três espadachins tivessem desembainhado suas espadas ao mesmo
tempo.
Entre as duas casas destruídas, via-se um pequeno barracão de zinco, o qual, embora
estivesse inclinado, não sofrera avarias sérias, por mais incrível que pudesse parecer. Como
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seria possível um terremoto sacudir, agitar e fazer rolar duas casas de dois pavimentos com
cinco quartos cada, deixando intacto um pequeno barracão de zinco? Buck só podia deduzir
que a estrutura era tão flexível que não chegou a romper-se quando a terra rolou por baixo
dela.
A casa de Loretta desabara em cima do próprio terreno, deixando o quintal vazio
completamente exposto. Tudo isso, Buck imaginou, havia acontecido em questão de segundos.
Atrás de Buck, surgiu um caminhão do corpo de bombeiros, com alto-falantes improvisados na
traseira, rodando lentamente. Pendurado naquele muro de asfalto, ele ouviu: "Saiam de suas
casas! Não voltem para lá! Se precisarem de ajuda, cheguem até um local aberto onde
possamos encontrá-los!"
No caminhão, que conduzia uma escada muito alta, havia meia dúzia de policiais e bombeiros.
Um policial uniformizado debruçou-se na janela e gritou:
- Tildo bem aí, companheiro?
- Eu estou bem! - gritou Buck.
- Aquele carro é seu?
-Sim!
- Com certeza vamos precisar dele para resgatar feridos!
- Aqui há pessoas conhecidas minhas que estou tentando retirar! - disse Buck.
O policial fez um movimento afirmativo com a cabeça.
- Não tente entrar em nenhuma dessas casas!
Buck soltou as mãos e escorregou até o chão. Caminhou na direção do caminhão, que diminuiu
a marcha até parar.
- Ouvi o aviso de vocês, mas do que estavam falando?
- Estamos preocupados com saqueadores. E também com os perigos que essas casas
representam.
- É claro! - disse Buck. - Mas... saqueadores? Vocês são as únicas pessoas saudáveis que
encontrei até agora. Não sobrou nada de valor, e para onde alguém levaria alguma
coisa, caso a encontrasse?
- Só estamos cumprindo ordens, senhor. Não tente entrar em nenhuma das casas, certo?
- Claro que vou entrar! Vou revolver os escombros daquela casa para saber se uma pessoa que
conheço e amo ainda está viva.
- Acredite em mim, companheiro, você não vai encontrar sobreviventes nesta rua. Afaste-se
daqui.
- Você vai me prender? Será que ainda existe algum presídio em pé?
O policial virou-se para o motorista. Buck queria uma resposta. Aparentemente, o policial
estava pensando com mais sensatez que ele, porque o motorista do caminhão continuou a
dirigi-lo lentamente. Buck escalou o muro de asfalto e escorregou, caindo de bruços do outro
lado e enlameando-se todo. Tentou retirar a lama, mas ela grudara entre seus dedos. Limpou
as mãos na calça e dirigiu-se apressado para a casa desabada, passando por entre as árvores
tombadas.
Para Rayford, parecia que, quanto mais ele se aproximava do aeroporto de Bagdá, menos
conseguia enxergar. Enormes fissuras tinham engolido cada centímetro de pista em todas as
direções, formando montes de sujeira e areia que impediam a visão do terminal. Assim que
Rayford conseguiu chegar lá, ele quase perdeu a respiração. Dois jumbos - um 747 e um DC-
10, aparentemente com a lotação completa e prontos para decolar pela pista leste-oeste -
pareciam estar em fila antes de colidirem e partirem-se ao meio no momento do terremoto.
Pilhas de corpos sem vida amontoavam-se ali. Ele não podia imaginar a força de uma colisão
capaz de matar tantas pessoas sem provocar um incêndio.
De uma cratera do outro lado do terminal, a pelo menos 500 metros de onde Rayford estava,
havia uma fila de sobreviventes de outra aeronave engolida pela terra, que tentavam alcançar
a superfície. Uma fumaça negra subia do interior da terra, e Rayford sabia que, se chegasse
mais perto, poderia ouvir os gritos dos sobreviventes, que não tinham força para chegar à
beira da cratera. Os que conseguiam sair, fugiam do local, ao passo que outros, como o
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asiático, cambaleavam a esmo pelo deserto.
O terminal em si - que antes do terremoto era uma estrutura de aço, madeira e vidro - além
de ter desabado completamente, havia sido sacudido de um lado para o outro como se alguém
o tivesse passado por uma peneira. Os entulhos estavam tão espalhados que nenhuma das
pilhas era mais alta que meio metro. Centenas de corpos estendiam-se em várias posições.
Rayford sentiu como se estivesse no inferno.
Ele sabia o que estava procurando. Amanda estava programada para voar em um 747 da Pan-
Continental, a empresa aérea e o equipamento que ele costumava pilotar. Não lhe causaria
surpresa se ela estivesse em uma das aeronaves que um dia ele pilotara. O vôo estava
programado para pousar em pistas grandes, no sentido do sul para o norte.
Se o avião estivesse em pleno vôo no momento do terremoto, o piloto talvez tivesse tentado
permanecer no ar até o final da catástrofe e depois procurado um terreno plano para pousar.
Se o terremoto tivesse acontecido após a aterrissagem, o avião podia estar em qualquer lugar
daquela pista, que no momento encontrava-se totalmente soterrada e coberta de areia. A pista
era enorme e extensa, mas, se houvesse um avião enterrado ali, Rayford deveria constatar
isso antes do pôr-do-sol.
Será que a aeronave estava de frente para o outro lado, em uma das pistas auxiliares, quando
o piloto já havia começado a taxiar de volta para o terminal? Rayford orava para que houvesse
algo que ele pudesse fazer, caso acontecesse o milagre de Amanda ter sobrevivido. A melhor
das hipóteses, a menos que o piloto tivesse tido tempo suficiente para pousar em algum lugar
seguro, seria a de que o avião estivesse parado sobre a pista - ou rodando muito lentamente -
no momento do terremoto. Se o avião tivesse tido a sorte de estar no meio da pista de
aterrissagem quando a pista de decolagem afundou, havia uma possibilidade de que ele ainda
estivesse na posição normal e intacto. Se estivesse coberto de areia, quem poderia saber por
quanto tempo o suprimento de ar duraria?
Rayford achava que, na região do terminal, apenas uma pessoa entre dez conseguira
sobreviver. Aquelas que haviam escapado deviam estar fora da área do terminal quando
ocorreu o terremoto. Aparentemente, nenhuma das que estavam dentro do terminal tinha
sobrevivido. Os poucos policiais uniformizados da Comunidade Global que patrulhavam a área
com armamentos pesados pareciam tão chocados quanto as demais pessoas. Às vezes, um
policial, ao passar por Rayford, olhava mais atentamente para ele, mas não se virava nem
pedia sua identidade ao ver seu uniforme. Com fios pendurados nos lugares dos botões do
paletó, ele sabia que parecia ser um sobrevivente privilegiado da tripulação de alguma
aeronave acidentada.
Para chegar à pista de decolagem, Rayford teve de cruzar com uma fila de sobreviventes
sangrando e cambaleando, que tinham conseguido sair de uma cratera. Felizmente, nenhum
deles lhe pediu ajuda. A maioria nem se dava conta dele; simplesmente acompanhava o da
frente, como se estivesse confiando em que os primeiros da fila tinham ideia de onde encontrar
ajuda. Do fundo da cratera, vinham sons de lamento e choro que Rayford jamais seria capaz
de esquecer. Se houvesse alguma coisa a fazer, com certeza ele a faria.
Finalmente, ele se aproximou do término da longa pista de decolagem. Ali, bem no meio da
pista, reconheceu a fuselagem abaulada de um 747, totalmente coberta de areia.
Devia faltar meia hora para o pôr-do-sol; a luminosidade já era fraca. Ao passar pela beira do
precipício que a pista afundada formara na areia, Rayford balançou a cabeça e olhou de
soslaio, protegendo os olhos, para tentar entender o que presenciava. Quando chegou a uns 30
metros da parte traseira da gigantesca aeronave, ele entendeu o que acontecera. A aeronave
devia estar perto do meio da pista de decolagem quando a pavimentação afundou pelo menos
15 metros. O peso da pavimentação arrastou a areia na direção da aeronave, que agora
estava apoiada pelas pontas das asas, com a fuselagem equilibrando-se precariamente acima
da fenda.
Alguém tinha tido a presença de espírito de abrir as portas e desenrolar as rampas
deslizadoras, mas as pontas das rampas estavam penduradas no ar acima da pista afundada.
Se a distância entre um lado e outro da cratera fosse um pouco maior, as asas não teriam
suportado o peso da cabina. A fuselagem rangia por causa do peso do avião, que ameaçava
cair na cratera. Rayford acreditava que o avião poderia cair mais uns três metros na cratera
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sem ferir ninguém gravemente, desde que a queda não fosse muito brusca. Centenas de vidas
poderiam ser salvas.
Ele orou desesperadamente para que Amanda tivesse sido salva, que ela estivesse protegida,
que a aeronave tivesse parado antes de a pista ceder. Quanto mais ele se aproximava, mais
claro se tornava que a aeronave devia estar em movimento no instante em que a cratera se
abriu. As asas estavam afundadas cerca de um metro na areia. Foi isso talvez que a impediu
de cair na cratera, mas os passageiros
que estivessem sem o cinto de segurança atado poderiam ter recebido um solavanco mortal.
O coração de Rayford estremeceu quando ele chegou mais perto da aeronave e constatou que
não se tratava de um 747 da Pan-Con, mas de um jato da British Airways. Ele estava chocado
demais com as emoções conflitantes que mal conseguia separar. Seria ele uma criatura fria e
egoísta, obcecada por encontrar a esposa com vida, a ponto de sentir-se desapontado porque
centenas de pessoas daquela aeronave poderiam estar vivas? Ele tinha de enfrentar a terrível
verdade acerca de si mesmo. Estava muito mais preocupado com Amanda. Onde estaria o avião
da Pan-Con?
Rayford virou-se e esquadrinhou o horizonte. Que mortandade! Não havia mais lugar para
procurar o jato da Pan-Con. Enquanto não tivesse certeza, ele não aceitaria que Amanda
estivesse morta. Sem saber mais o que fazer e diante da impossibilidade de antecipar a
reunião com Mac, ele voltou a concentrar-se na aeronave da British Airways. De uma das
portas abertas da cabina, uma comissária de bordo examinava a posição precária da
aeronave, com os olhos arregalados e sem expressão. Rayford colocou as mãos em concha ao
redor da boca e gritou:
- Sou piloto! Tenho algumas ideias!
- A aeronave está em chamas? - ela gritou.
- Não! Parece que o nível de combustível está muito baixo!
Acho que vocês não estão em perigo!
- Esta coisa está balançando! - ela gritou. - Devo mandar todos os passageiros para o fundo a
fim de que a aeronave não afunde de bico?
- Vocês não vão afundar de bico! As asas estão apoiadas na areia! Mande todos os passageiros
para o meio da aeronave e veja se vocês conseguem sair por cima das asas sem quebrá-las!
- Você tem certeza disso?
- Não! Mas vocês não podem esperar até que esse equipamento pesado afunde de vez com
todos dentro! O terremoto foi mundial, e é muito improvável que vocês recebam ajuda nos
próximos dias.
- Os passageiros querem sair daqui agora! Você tem certeza de que isso vai dar certo?
- Não muita! Mas vocês não têm alternativa! Um novo tremor de terra poderá levar a aeronave
para o fundo da cratera!
Pelo que Buck sabia, Chloe estava sozinha na casa de Loretta no momento do terremoto. Para
encontrá-la, ele teria de adivinhar em que cómodo ela estava quando a casa desabou. O
quarto deles no canto sudoeste do pavimento superior estava completamente no chão. Havia
ali um amontoado de tijolos, divisórias, tábuas, vidros, vigas, pisos, pregos, fios e móveis,
cobertos por metade das ruínas do telhado.
Chloe costumava deixar seu computador no porão, que agora estava soterrado sob outros
pavimentos do mesmo lado da casa. Ou talvez ela estivesse na cozinha, na parte da frente da
casa e também do mesmo lado. Aquilo deixava Buck sem opções. Ele precisava livrar-se de
grande parte do telhado e começar a cavar. Se não encontrasse Chloe no quarto ou no porão,
sua última esperança seria a cozinha.
Buck não estava usando botas, luvas, roupas de trabalho, óculos de proteção nem capacete.
Tinha sobre o corpo roupas sujas e de tecido fino. Seus sapatos eram comuns, e suas mãos
estavam desprotegidas. Agora era tarde demais para preocupar-se com tétano. Ele pulou sobre
o telhado em ruínas e pisou na ponta de uma madeira inclinada para ver se ela aguentaria seu
peso. Parecia robusta, embora balançasse um pouco. Ele desceu até o chão e empurrou o
beiral do telhado de baixo para cima. Era impossível fazer aquilo sozinho. Será que haveria um
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machado ou um serrote no barracão de zinco?
A princípio, ele não conseguiu abri-lo. A porta estava emperrada. O barracão parecia ser muito
frágil, mas, com o abalo do terremoto, ele se inclinara e não queria sair do lugar. Buck abaixou
o ombro e investiu contra ele como um jogador de futebol americano, fazendo-o voltar à
posição original. Chutou-o seis vezes e depois abaixou o ombro novamente, afundando o
pescoço no corpo. Finalmente, ele afastou-se uns seis metros e correu na direção do barracão,
mas seus sapatos de sola lisa escorregaram na grama, fazendo-o estatelar-se no chão.
Furioso, ele afastou-se mais ainda, começou a correr mais devagar até ganhar velocidade.
Desta vez, ele bateu com tanta força na lateral do barracão que a folha de zinco despregou de
suas armações e voou sobre as ferramentas lá dentro, levando Buck junto e atirando-o ao
chão. No choque, a ponta de uma telha quebrada atingiu suas costelas, produzindo um corte
profundo. Ele pôs a mão no local e sentiu que sangrava um pouco, mas resolveu que iria em
frente, a menos que o corte tivesse atingido uma artéria.
Buck arrastou pás e machados até à casa e escorou as beiras do telhado com alguns
instrumentos de jardinagem de cibo longo. Quando Buck esbarrou neles, uma das partes do
telhado levantou-se, e alguma coisa passou correndo por baixo das poucas telhas restantes.
Ele golpeou aquela coisa com uma pá, imaginando a situação ridícula em que se encontrava e
o que seu pai diria se o visse usando uma ferramenta errada na função errada.
Porém, o que mais ele podia fazer? Não havia tempo para nada. Ele estava lutando com as
armas que possuía, por mais estranha que fosse a situação. As pessoas podiam permanecer
vivas por alguns dias debaixo de escombros. Mas, se a água se infiltrasse no alicerce da casa
ao lado, o que aconteceria com a de Loretta? E se Chloe estivesse presa no porão? Se ela
tivesse de morrer, Buck orou para que tudo acontecesse de modo rápido e indolor. Não queria
que sua mulher morresse afogada lentamente. Ele também temia eletrocussão quando a água
alcançasse os fios elétricos.
Buck começou a afastar os entulhos menores de sua frente com um pedaço de telha. Os
maiores, ele removia com as mãos. Sentia-se em forma, mas aquela missão fugia de sua
rotina. Seus músculos ardiam quando ele precisava livrar-se de pedaços grandes de paredes e
pisos. O progresso era mínimo, e ele bufava, arfava e transpirava.
Depois de livrar-se de pedaços de cano e gesso do teto, ele finalmente avistou a armação da
cama, que se transformara em lascas de madeira. Esforçou-se para encontrar a pequena
escrivaninha que Chloe costumava usar, mas levou outra meia hora cavando para chegar até
lá, chamando por ela o tempo todo. Todas as vezes que parava para descansar um pouco,
tentava ouvir algum som, por mais fraco que fosse. Será que ele conseguiria ouvir um gemido,
um choro, um suspiro? Se Chloe fizesse o menor ruído, ele a localizaria.
O desespero começou a tomar conta de Buck. Sua busca estava sendo muito lenta. Os pedaços
de madeira do piso eram muito grandes e pesados para sair do lugar. A distância entre as
tábuas do piso do quarto do pavimento superior e o chão de concreto do porão não era grande.
Qualquer pessoa que estivesse nesse meio teria sido esmagada. Mas ele não
desistiria. Se não conseguisse fazer isso sozinho, recorreria a Tsion para ajudá-lo.
Buck arrastou as ferramentas para a frente da casa e atirou-as por cima do muro de asfalto. De
onde ele estava, era mais difícil pular para o outro lado do muro por causa da lama
escorregadia. Ele examinou a rua de um lado a outro e não conseguiu enxergar até onde ela
permanecia na posição vertical. Enfiou os pés na lama e finalmente encontrou um local no topo
do muro de asfalto, onde conseguiu agarrar-se. Deu um impulso com o corpo e pulou o muro,
caindo sobre o cotovelo. Atirou as ferramentas dentro do Range Rover e sentou-se ao volante
com o corpo todo enlameado.
O sol estava se pondo no Iraque quando vários sobreviventes de outras aeronaves juntaram-se
a Rayford para observar a condição ameaçadora do 747 da British Air. Rayford não podia fazer
nada, a não ser esperar. Não queria de modo algum ser responsável por ferimento ou morte
de alguém. Mas ele estava certo de que a saída por sobre as asas da aeronave era a única
esperança daquelas pessoas e orou para que elas conseguissem passar pelos montes de areia.
A princípio, Rayford animou-se ao ver os primeiros passageiros rastejando-se sobre as asas.
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Aparentemente, a comissária de bordo havia reunido o pessoal e conseguido a colaboração de
todos. Mas, em seguida, Rayford assustou-se porque a movimentação exagerada dos
passageiros no interior da aeronave estava comprometendo o frágil local de apoio das asas. A
aeronave se partiria. E o que aconteceria com a fuselagem? Se uma das extremidades
tombasse rápido demais, dezenas de pessoas morreriam. As que não estivessem com o cinto
de segurança atado seriam atiradas para a outra extremidade, caindo umas sobre as outras.
Rayford queria gritar, suplicar para que os passageiros se espalhassem um pouco mais. Eles
precisavam fazer isso com muito cuidado. Mas agora era tarde demais, e ninguém o ouviria. O
barulho dentro da aeronave devia ser ensurdecedor. Os dois que estavam sobre a asa direita
saltaram na areia.
De repente, a asa esquerda cedeu, mas não totalmente. A fuselagem tombou para a esquerda,
e, com certeza, os passageiros também caíram para a esquerda. A parte traseira da aeronave
ia afundar primeiro. Rayford só esperava que a asa direita cedesse um pouco para dar
equilíbrio, o que aconteceu no último instante. Embora a aeronave estivesse perfeitamente
nivelada sobre os pneus, ela afundara demais na cratera. Os passageiros deviam ter colidido
uns com os outros e contra as laterais da aeronave. Quando o pneu dianteiro cedeu, o bico da
aeronave bateu com tanta força no concreto que provocou mais avalanches de areia para
dentro da cratera. Rayford guardou seu telefone no bolso da calça e desvencilhou-se do
paletó.. Com a ajuda de mais algumas pessoas, ele começou a cavar a areia com as mãos
para chegar até a aeronave e desobstruir as entradas de ar e as saídas do avião. Suas roupas
estavam empapadas de suor. Seus sapatos jamais voltariam a brilhar como antes, mas será
que algum dia ele precisaria deles?
Quando ele e alguns colaboradores chegaram finalmente à aeronave, encontraram os
passageiros cavando a areia para sair. O pessoal de resgate que vinha atrás de Rayford abriu
caminho ao ouvir o som do motor de um helicóptero. Rayford e todos os que estavam ali
entenderam que se tratava de um helicóptero de socorro. Foi então que ele se lembrou. Se
fosse Mac, já seriam 22 horas. Rayford gostaria de saber se Mac estava preocupado em salvar
vidas ou com a reunião marcada.
Rayford ligou para Mac de dentro da cratera e disse-lhe que, antes de tudo, queria ter a
certeza de que ninguém havia morrido a bordo do 747. Mac disse que o aguardaria do outro
lado do terminal.
Alguns minutos depois, aliviado porque todos os passageiros tinham sobrevivido, Rayford subiu
à superfície. Não conseguiu encontrar seu paletó. Isso não seria problema. Ele achava que em
breve Carpathia o demitiria.
Rayford dirigiu-se ao terminal desabado e contornou-o. O helicóptero de Mac estava parado a
uns cem metros de distância. Mesmo na escuridão, Rayford avistou um caminho até o
helicóptero e começou a correr. Amanda não estava com ele, e aquele era um lugar de morte.
Ele queria sair com ela do Iraque, mas por ora já se daria por satisfeito se conseguisse sair de
Bagdá. De qualquer forma, teria de suportar o abrigo de Carpathia, mas, assim que pudesse,
se afastaria de Nicolae.
Rayford começou a ganhar velocidade, ainda em forma, apesar de já ter entrado na casa dos
40 anos. Mas, de repente, ele tropeçou no quê? Corpos! Já passara por cima de um e caiu
sobre alguns outros. Levantando-se, ele passou a mão no joelho dolorido, temendo ter
profanado aqueles corpos. Ele diminuiu o ritmo dos passos até o helicóptero.
- Vamos, Mac! - ele disse assim que subiu a bordo.
- Eu não preciso que você me diga isso duas vezes - resmungou Mac, acelerando. - Quero ter
uma conversa muito séria com você.
Já passava do meio-dia na região central dos Estados Unidos quando Buck avistou novamente
os escombros da igreja. Ele estava saindo pela porta do lado do passageiro quando houve um
novo abalo de terra, que chegou a levantar o carro. Buck foi atirado para fora e caiu atrás do
carro. Ele virou-se para ver o que restara da igreja depois do abalo. Os bancos, que haviam
escapado da devastação do terremoto, agora estavam quebrados e tombados. Buck não podia
imaginar o que acontecera com o corpo do pobre Donny Moore. Talvez Deus tivesse se
encarregado de enterrá-lo ali mesmo.
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Buck estava preocupado com Tsion. Será que alguma coisa havia quebrado ou caído no abrigo
subterrâneo? Arrastando-se até a abertura de ventilação, a única fonte de ar de Tsion, ele
gritou:
- Tsion! Você está bem?
- Graças a Deus que você voltou, Cameron! - soou uma voz fraca e ofegante. - Fiquei o tempo
todo aqui com o nariz perto da abertura de ventilação quando ouvi um estrondo e algo se
movendo na minha direção. Saí do caminho a tempo. Há pedaços de tijolos por todos os lados.
Houve um novo abalo?
-Sim!
-Perdoe-me, Cameron, mas já fui corajoso o suficiente. Tire-me daqui!
Buck levou mais de uma hora cavando exaustivamente até a entrada do abrigo subterrâneo.
Enquanto ele girava o botão para desativar o segredo e abrir a porta, Tsion começou a puxá-la
de dentro. Juntos, eles conseguiram abri-la, apesar do peso das lajes de concreto e de outros
materiais. Tsion desviou o olhar da claridade e sorveu o ar com força. Abraçou Buck
fortemente e perguntou:
- E Chloe?
- Preciso de sua ajuda.
- Vamos embora. Alguma notícia dos outros?
- Talvez leve dias para que a comunicação com o Oriente Médio se restabeleça. Amanda deve
estar lá com Rayford, mas não recebi notícias deles.
- De uma coisa você pode ter certeza - disse Tsion com seu acentuado sotaque israelense. - Se
Rayford estiver perto de Nicolae, estará protegido. A Bíblia menciona claramente que o
anticristo só morrerá dentro de pouco mais de um ano a partir de agora.
- Eu não me importaria de dar uma mãozinha para ele morrer - disse Buck.
- Deus cuidará disso. Mas ainda não chegou a hora. Por mais repugnante que seja ficar perto
do demónio, pelo menos o capitão Steele deve estar em segurança.
Já no ar, Mac McCullum enviou uma mensagem de rádio para o abrigo secreto, dizendo ao
operador:
- Estamos cuidando de um resgate, portanto demoraremos mais uma hora ou duas. Câmbio.
- Positivo. Avisarei o potentado. Câmbio.
Rayford gostaria de saber qual seria o motivo tão importante para Mac arriscar-se a mentir para
Nicolae Carpathia. Assim que Rayford colocou os fones de ouvido, Mac perguntou:
- Que droga de coisa está acontecendo? O que Carpathia está pretendendo fazer? O que
significa essa tal de "ira do Cordeiro" e o que foi aquilo que eu vi e imaginei que fosse a
lua? Já presenciei um grande número de acidentes da natureza e muitos fenómenos
atmosféricos estranhos, mas juro pela minha mãe que nunca vi nada capaz de fazer uma lua
cheia transformar-se em sangue. Como um terremoto teria condições de fazer aquilo?
Caramba, pensou Rayford, esse sujeito está preparado. Mas ele também estava perplexo.
- Eu vou lhe contar o que acho, Mac, mas antes diga-me por que imagina que sei a resposta.
- Imagino que você sabe, só isso. Eu não me atreveria a fazer oposição a Carpathia nem daqui
a milhões de anos, apesar de imaginar que ele não é boa coisa. Você não parece ter nenhum
medo dele. Quase botei meu almoço para fora quando vi aquela lua vermelha, e você parecia
saber por que ela estava lá.
Rayford assentiu sem dar explicações.
- Tenho uma pergunta para você, Mac. Você sabia por que motivo fui até o aeroporto de Bagdá.
Por que não me perguntou se encontrei minha mulher ou Hattie Durham?
- Não tenho nada a ver com elas, só isso - respondeu Mac.
- Não me venha com essa. A menos que Carpathia saiba mais do que eu, ele teria perguntado
sobre o paradeiro de Hattie assim que um de nós tivesse alguma notícia.
- Não, Rayford, não é nada disso. Eu só sabia – como qualquer outra pessoa - que seria muito
improvável que sua mulher e a Srta. Durham tivessem sobrevivido a um desastre naquele
aeroporto.
- Mac! Você mesmo viu centenas de pessoas saindo daquele 747. Claro que nove entre dez
pessoas morreram naquele aeroporto, mas muitas sobreviveram. Agora, se você quer que eu
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lhe dê algumas respostas, é melhor começar a explicar-se.
Mac apontou com a cabeça para um local aberto que ele iluminara com o farol do helicóptero.
- Conversaremos lá embaixo.
Tsion carregava apenas seu telefone, seu laptop e algumas mudas de roupas que lhe foram
entregues secretamente. Buck aguardou até estacionar perto da rua destroçada da casa de
Loretta para contar-lhe acerca de Donny Moore.
- Que tragédia! - exclamou Tsion. - Ele era aquele...?
- Aquele de quem lhe falei. O especialista em computadores que montou nossos laptops. Um
daqueles génios calados. Ele havia frequentado a igreja durante anos e nunca conseguiu
entender como um homem com um QI tão elevado pôde ter sido tão cego espiritualmente. Ele
dizia que durante todo aquele tempo não chegou a entender a essência do Evangelho. Dizia
que não podia culpar a igreja nem os pastores. Naquela época, a mulher dele acompanhou-o
raras vezes porque também não entendia o Evangelho. Eles perderam um bebé no
Arrebatamento. Assim que Donny se converteu, sua mulher o acompanhou. Eles tornaram-se
crentes piedosos.
- Que morte triste! - disse Tsion balançando a cabeça. - Mas agora eles estão na companhia do
filho.
- O que você acha que devemos fazer com a maleta dele? - indagou Buck.
- Com a maleta dele?
- Donny deve ter guardado alguma coisa muito importante lá. Ele não largava dela. Mas não sei
as combinações do segredo. Será que devo deixá-la como está?
Tsion parecia estar refletindo. Finalmente, ele disse:
- Em tempos como estes, você deve julgar se existe alguma coisa lá dentro que possa ser útil
para a causa de Cristo. O jovem talvez desejasse que você tivesse acesso a ela. Se você
arrombá-la e encontrar apenas coisas pessoais, o mais certo é resguardar a privacidade dele.
Tsion e Buck saíram com dificuldade do Rover. Assim que atiraram as ferramentas por cima do
muro de asfalto e desceram pelo outro lado, Tsion disse:
- Buck! Onde está o carro de Chloe?
22
TRÊS
Rayford não podia jurar quanto à sinceridade de Mac McCullum. Ele só sabia que aquele
homem sardento e divorciado duas vezes acabara de entrar na casa dos 50 anos e não tinha
filhos. Mac era um aviador cuidadoso e competente, pilotava com facilidade vários tipos de
aeronaves tanto em voos militares como comerciais.
Mac provara ser um bom amigo, ouvia com interesse e falava de modo um pouco ríspido. Fazia
pouco tempo que ambos se conheciam, portanto Rayford não podia esperar que ele fosse mais
acessível. Apesar de Mac ser aparentemente um sujeito inteligente e responsável, o pouco
relacionamento que havia entre eles nunca passara de uma cordialidade superficial. Mac sabia
que Rayford era cristão; Rayford não escondia isso de ninguém. Contudo, Mac nunca
demonstrara o mínimo interesse no assunto. Até aquele momento.
Rayford estava mais preocupado com o que não deveria dizer. Finalmente, Mac expressara sua
frustração a respeito de Carpathia, chegando ao ponto de dizer que ele "não era boa coisa"..
Mas, e se Mac fosse um subversivo, sendo mais que um piloto para Carpathia? Estaria ele
preparando uma armadilha para Rayford? Será que Rayford devia conversar com Mac a respeito
de sua fé e revelar tudo o que ele e o Comando Tribulação sabiam sobre Carpathia? E quanto
àquele dispositivo secreto instalado no Condor 216? Mesmo que Mac demonstrasse interesse em
Cristo, Rayford manteria aquele segredo até estar certo de que o colega não era um traidor.
Mac desligou tudo no helicóptero, exceto a fonte de energia auxiliar que controlava as luzes no
painel e o funcionamento do rádio. Naquela imensidão do deserto escuro, Rayford só conseguia
enxergar a lua e as estrelas. Se não soubesse onde se encontrava, talvez acreditasse que
aquela pequena aeronave estava pousada sobre um porta-aviões que navegava lentamente no
meio do oceano.
- Mac - disse Rayford -, conte-me alguma coisa sobre o abrigo. Como ele é? E como Carpathia sabia
que ia precisar dele?
- Não sei - respondeu Mac. - Talvez por precaução, caso um ou mais de seus embaixadores se
voltassem contra ele novamente. O abrigo é profundo, feito de concreto, e protegerá Carpathia
contra radiação. E vou-lhe dizer mais uma coisa: é grande o suficiente para acomodar o 216.
Rayford estava aturdido.
- O 216? Eu o deixei no final da longa pista de decolagem na Nova Babilónia.
- Fui incumbido de tirá-lo de lá hoje de manhã.
- E para onde o levou?
- Você não me perguntou outro dia sobre aquela estrada que Carpathia tinha construído?
- Aquela estradinha de pista única que parecia servir apenas para alguém chegar até à cerca
na beira da pista de aterrissagem?
- Aquela mesma. Agora existe um portão na cerca onde a estrada termina.
- Quer dizer que basta abrir o portão - disse Rayford - para chegar lá, chegar ao outro lado do
deserto de areia?
- É o que parece - respondeu Mac. - Mas uma grande extensão daquela areia recebeu um
tratamento especial. Sem isso, um avião tão grande quanto o 216 afundaria na areia,
você não acha?
- Você está me dizendo que taxiou o 216 naquela estradinha e atravessou o portão? Que
tamanho tem esse tal portão?
- O tamanho suficiente para a fuselagem passar por ele. As asas são mais altas e passam por
cima da cerca.
- Então você conduziu o Condor por aquela pista, atravessou a areia e foi parar onde?
- A três quarteirões e meio a nordeste da sede da Comunidade Global, conforme Carpathia
disse.
- Esse abrigo não deve estar localizado em uma região muito populosa.
- Não. Duvido que alguém o tenha visto sem o conhecimento de Carpathia. Ele é gigantesco,
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Ray. Deve ter levado tempo demais para ser construído. Se fossem colocados dois aviões do
tamanho do 216 lá dentro, eles preencheriam somente metade do espaço. Localiza-se a mais
de nove metros abaixo da terra e está muito bem equipado com comida, alojamentos, água,
várias cozinhas e tudo o mais que você possa imaginar.
- Como uma construção subterrânea é capaz de suportar terremotos?
- Em parte, por causa da genialidade de alguém; em parte, por sorte - respondeu Mac. -
Aquela coisa flutua, suspensa por uma espécie de membrana cheia de fluido hidráulico e
apoiada sobre uma plataforma de molas que atuam como gigantescos amortecedores.
- Quer dizer que o resto da Nova Babilónia está em ruínas, mas o Condor e o pequeno refúgio
de Carpathia ou, melhor dizendo, o enorme refúgio de Carpathia escaparam incólumes?
- É aí que entra a genialidade, Ray. O local balançou muito, mas a tecnologia venceu. Eles
ficariam presos lá – e até isso foi previsto - se a entrada principal, o portão imenso que
permitiu que o avião o atravessasse com facilidade, estivesse totalmente coberta de pedras e
areia por causa do terremoto. Eles conseguiram fazer duas entradas menores do outro lado
para passagem do pessoal e, neste momento, as escavadeiras de Carpathia já estão reabrindo
a entrada original.
- Então ele está querendo ir para outro lugar? Não está suportando o calor?
- Não, nada disso. Ele está aguardando companhia.
- Os asseclas dele estão a caminho?
- Carpathia os chama de embaixadores. Ele e Fortunato têm grandes planos.
Rayford balançou a cabeça.
- Fortunato! Eu o vi na sala de Carpathia quando o terremoto começou. Como ele sobreviveu?
- Fiquei tão surpreso quanto você, Ray. Pelo que me lembro, não o vi sair por aquela porta no
teto do edifício.
- Imaginei que as únicas pessoas que tiveram chance de sobreviver ao desabamento daquele
lugar foram aquelas poucas que estavam no teto quando o edifício desmoronou. Estou falando
de uma queda de quase vinte metros, com concreto caindo por todos os lados, havendo,
portanto, poucas possibilidades de alguém sair vivo dali. Mas eu soube de uma notícia
estranha. Li a respeito de um sujeito na Coreia que estava no topo de um hotel que desabou.
Ele disse que teve a sensação de estar surfando sobre uma prancha de concreto. Bateu no
chão e rolou. Só quebrou um braço.
- E qual é a história de Fortunato? Como ele saiu de lá?
- Você não vai acreditar.
- Nesta altura, não duvido mais de nada.
- A história que presenciei foi esta. Levei Carpathia para o abrigo e deixei o helicóptero perto
da entrada onde eu tinha estacionado o Condor. Estava tudo camuflado, como costumo
dizer, e Carpathia me conduziu até o outro lado onde havia uma pequena abertura. Entramos,
e havia ali um grande número de funcionários trabalhando, como se nada tivesse acontecido.
Gente cozinhando, limpando, organizando, essas coisas.
- E a secretária de Carpathia?
Mac balançou a cabeça.
- Acho que ela morreu no desabamento do edifício com a maioria dos funcionários da
administração. Mas ela e os outros que pereceram já foram substituídos por Carpathia.
- Incrível. E Fortunato?
- Ele também não estava lá. Alguém disse a Carpathia que não havia sobreviventes do edifício, e
eu juro, Ray, que vi o homem empalidecer. Foi a primeira vez que o vi agitado, a não ser
quando ele finge ter um acesso de raiva com alguma coisa. Acho que essas atitudes são
sempre planejadas.
- Eu também. O que aconteceu com Leon?
- Carpathia recuperou-se rapidamente e disse: "Vamos cuidar disso." Avisou que voltaria logo, e
perguntei se ele queria que eu o levasse a algum lugar. Ele respondeu que não e saiu. Quando
foi que você viu Carpathia ir a algum lugar sozinho?
- Nunca.
- Acertou. Ele ficou fora por cerca de meia hora e, quando voltou, estava acompanhado de
Fortunato. Fortunato estava coberto de poeira da cabeça aos pés e com o terno em estado
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lastimável. Sua camisa, porém, estava presa dentro da calça, o paletó abotoado e a gravata no
lugar. Não havia um só arranhão nele.
- E o que ele contou?
- A história dele me provocou calafrios, Ray. Um grupo enorme de pessoas reuniu-se ao redor
dele, talvez umas cem. Emocionado, Fortunato pediu ordem no recinto. Ele contou que desceu
chorando e gritando no meio dos entulhos como todos os demais. Disse, de passagem, que
estava pensando na possibilidade de ter a sorte de abrigar-se em algum lugar onde pudesse
respirar e permanecer vivo até que alguém da equipe de resgate o encontrasse. Contou que
estava desprotegido e sendo esmagado por enormes pedaços de concreto do edifício, quando,
de repente, alguma coisa prendeu seu pé, fazendo com que ele caísse de cabeça no
chão. Quando sua cabeça bateu no chão, ele achou que ela havia se partido ao meio. Foi então
que o edifício caiu inteiro em cima dele. Fortunato sentiu todos os seus ossos se quebrando, os
pulmões estourando, e tudo ficou negro. Disse que parecia que alguém havia desligado o fio da
tomada de sua vida. Ele imaginava estar morto.
- E, depois de tudo isso, ele estava lá, com o terno empoeirado e sem nenhum arranhão?
- Eu o vi com meus próprios olhos, Ray. Ele disse que ficou deitado como morto, sem se dar
conta de nada, sem ter tido nenhuma experiência extracorpórea ou coisa parecida. Apenas
uma escuridão, como se estivesse dormindo um sono profundo. Depois, ele acordou da morte,
quando ouviu alguém chamar seu nome. A princípio, pensou que estivesse sonhando. Pensou
que voltara a ser menino e que sua mãe estivesse chamando carinhosamente por ele,
tentando acordá-lo. Mas, de repente, ele disse, ouviu Nicolae gritar: "Leonardo, volte à vida!"
- O quê?
- Foi isso mesmo, Ray, e aquilo me deu calafrios. Nunca fui religioso, mas conheço aquela
história da Bíblia e tenho certeza de que Nicolae estava fingindo ser Jesus ou não sei
quem.
- Você acha que foi uma história mentirosa? – perguntou Rayford. - Você deve saber que a
Bíblia diz que o homem só morre uma vez. Não há uma segunda chance.
- Eu não sabia disso, nem o que pensar quando ele contou aquela história. Carpathia
ressuscitando alguém? Você sabe que, no início, eu gostava muito de Carpathia e não via a
hora de trabalhar para ele. Houve ocasiões em que achei que ele era um homem piedoso,
talvez um tipo de divindade. Mas tudo isso acabou. Imagine só, ele me obrigando a
decolar do topo daquele edifício enquanto havia pessoas penduradas nas vigas e gritando por
socorro. Imagine só, ele censurá-lo porque você queria ajudar aquele sobrevivente no
deserto. Que tipo de homem bom é esse?
- Ele não é um homem bom - disse Rayford. - É o oposto disso.
-Você acha que ele é o anticristo, como muita gente diz?
E assim foi. Mac lhe fizera a pergunta. Rayford sabia que havia se precipitado. Será que acabara
de selar seu destino? Será que ele se revelara completamente a um lacaio de Carpathia, ou
Mac estava sendo sincero? Como ele podia saber ao certo?
Buck andava em círculos. Onde estaria o carro de Chloe? Ela costumava estacioná-lo na entrada
lateral da casa, antes da garagem onde Loretta guardava seus objetos. O carro de Loretta
ficava estacionado em outro lugar. Não faria sentido Chloe ter deixado seu carro no lugar do de
Loretta só porque Loretta havia ido à igreja.
- Ele deve estar jogado em qualquer lugar, Tsion.
- Sim, meu amigo, mas não tão longe a ponto de não conseguirmos enxergá-lo.
- Talvez esteja soterrado.
- Precisamos procurá-lo, Cameron. Se o carro estiver aqui, Chloe também deve estar aqui.
Buck percorreu a rua de cima para baixo, olhando por entre os escombros das casas desabadas
e dentro das enormes crateras. Não havia nenhum carro parecido com o de Chloe. Quando ele
voltou para perto de Tsion, no local em que um dia fora a garagem de Loretta, o rabino estava
tremendo. Apesar de ter pouco mais de 40 anos, de repente Tsion parecia um velho aos olhos de
Buck. Ele começou a andar de maneira esquisita e cambaleou, caindo de joelhos no chão.
- Tsion, você está bem?
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- Você já viu uma coisa parecida com esta? – perguntou Tsion, quase sussurrando. - Já vi
devastação e ruínas, mas isto aqui é demais. Tantas mortes e tanta destruição...
Buck pousou a mão no ombro do rabino, cujos soluços faziam estremecer todo o seu corpo.
- Tsion, não podemos permitir que a monstruosidade disso tudo penetre em nossas mentes.
Eu preciso separar as coisas, de um jeito ou de outro. Sei que não se trata de um sonho.
Sei exatamente o que estamos atravessando, mas não posso pensar muito no assunto. Não
tenho condições. Se eu me desesperar, não será bom para ninguém. Precisamos um do outro.
Precisamos ser fortes. - Buck percebeu que sua voz estava fraca no momento em que ele
disse que ambos precisavam ser fortes.
- Sim - disse Tsion com os olhos marejados, tentando recompor-se. - A glória do Senhor será
a nossa retaguarda. Devemos nos regozijar sempre no Senhor, e Ele nos exaltará.
Depois de proferir essas palavras, Tsion levantou-se e pegou uma pá. Antes que Buck tivesse
tempo de raciocinar, Tsion começou a cavar a garagem da casa.
O rádio do helicóptero fez um ruído de chamada, dando tempo a Rayford de recompor-se,
raciocinar e orar silenciosamente para que Deus o impedisse de dizer alguma tolice. Ele ainda
não sabia se Amanda estava viva ou morta. Não sabia se Chloe, Buck ou Tsion estavam aqui na
terra ou no céu. Sua prioridade era encontrá-los, reunir-se com eles. Será que justo naquele
momento ia pôr tudo a perder?
O funcionário do abrigo subterrâneo pediu que Mac estivesse lá às 22h20.
Mac olhou pesaroso para Rayford.
- É melhor fazermos de conta que estamos no ar – ele disse, acionando os motores.
O barulho era ensurdecedor.
- Continuo resgatando feridos em Bagdá - disse ele ao funcionário. - Demorarei mais uma
hora.
- Positivo.
Mac desligou os motores do helicóptero.
- Ganhamos um pouco mais de tempo - ele disse.
Rayford cobriu os olhos com as mãos por alguns instantes.
"Senhor Deus", ele orou silenciosamente, "não posso fazer nada, a não ser confiar em ti e
seguir meus instintos. Creio que este homem está sendo sincero. Se não estiver, não permitas
que eu diga algo que não deva. Se estiver sendo sincero, não quero deixar de contar-lhe o que
ele precisa saber. Tu tens sido tão claro em tuas respostas a Buck e Tsion. Poderias dar-me um
sinal? Algo que me assegurasse de estar fazendo a coisa certa?"
Terminada a oração, ele olhou de relance para Mac, cujos olhos estavam fracamente
iluminados pelas luzes do painel de controle. Naquele momento, Deus parecia silencioso.
Rayford nunca ouvira Deus falar diretamente com ele, apesar de ter sido agraciado com
respostas às suas orações. Agora não havia mais volta. Ele não recebera nenhum sinal verde
divino, mas também não recebera sinais vermelhos ou amarelos. Conhecendo qual poderia ser
o resultado de sua tolice, achou que não tinha nada a perder.
- Mac, vou lhe contar minha história inteira e tudo o que penso sobre o que aconteceu, sobre
Nicolae e o que ainda virá. Mas, antes de fazer isso, preciso que você me diga o que Carpathia
sabe, se Hattie ou Amanda devem chegar a Bagdá esta noite.
Mac suspirou e desviou o olhar. O coração de Rayford deu um salto. Com certeza, ele ia ouvir
algo que não desejava ouvir.
- Bem, Ray, a verdade é que Carpathia sabe que Hattie continua nos Estados Unidos. Ela
chegou até Boston, mas o pessoal dele o informou que ela embarcou em um vôo direto
para Denver antes do terremoto.
- Para Denver? Pensei que ela estivesse vindo de Denver.
- E estava. É lá que a família dela mora. Ninguém sabe por que ela voltou.
- E Amanda? - perguntou Rayford, com um aperto na garganta.
- O pessoal de Carpathia disse que ela estava em um vôo da Pan-Con partindo de Boston e que
deveria ter pousado em Bagdá antes do terremoto. O avião demorou um pouco mais
de tempo sobre o Atlântico por motivos desconhecidos, mas a última notícia foi a de que ele
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estava sobrevoando o espaço aéreo do Iraque. Rayford abaixou a cabeça e procurou controlarse.
- Então, ele deve estar soterrado em algum lugar – ele disse. - Por que eu não o vi no
aeroporto?
- Não sei - respondeu Mac. - Talvez ele tenha sido completamente engolido pelas areias do
deserto. Mas todos os outros aviões monitorados pela torre de Bagdá foram localizados, e
aquele não.
- Ainda resta uma esperança - disse Rayford. - Talvez, por causa daquele atraso, o avião ainda
estivesse em pleno vôo, e o piloto resolveu permanecer no ar até que a terra parasse de
tremer e ele encontrasse um local para pousar.
- Talvez - disse Mac, mas Rayford notou um tom de ceticismo em sua voz. Evidentemente, Mac
não acreditava nisso.
- Não vou parar enquanto não encontrá-la - disse Rayford. Mac assentiu, e Rayford percebeu
que o colega ainda não dissera tudo. - Mac, o que você está escondendo de mim? -
Mac olhou para baixo e balançou a cabeça. - Preste atenção, Mac. Já dei a entender o que
penso sobre Carpathia. Estou me arriscando demais. Não sei a quem você é leal, mas estou
prestes a lhe dizer mais coisas que eu não diria a alguém em quem não confiasse. Se você
sabe algo sobre Amanda que eu necessite saber, precisa me contar.
Mac deu um suspiro hesitante.
- Você não desejará saber. Confie em mim, você não vai querer saber.
- Ela está morta?
- É provável - ele disse. - Sinceramente, não sei e acho que Carpathia também não sabe.
Mas há uma coisa pior do que isso, Rayford. Pior do que ela estar morta.
Cavar a garagem da casa desabada de Loretta parecia ser uma missão impossível, mesmo
para dois homens adultos. Ela estava unida à casa e aparentemente sofrera menos danos. Não
havia porão debaixo da área da garagem, portanto as lajes de cimento e o alicerce não deviam
estar a uma profundidade muito grande. Quando o telhado desabara, as portas, divididas em
duas partes, foram comprimidas a tal ponto que chegaram a ficar sobrepostas. Uma delas
estava posicionada em ângulo, mais de meio metro fora do trilho, apontando para a direita. A
outra estava pouco mais de vinte centímetros fora do trilho e apontava para a esquerda.
Ambas não saíam do lugar. Tudo o que Buck e Tsion podiam fazer naquelas circunstâncias
seria tentar derrubá-las. Se estivessem na posição normal, as portas de madeira poderiam ser
facilmente arrombadas, mas agora havia uma parte enorme do telhado comprimindo-as contra
o concreto, que estava a cerca de meio metro abaixo da superfície.
Para Buck, cada golpe desferido na madeira com o machado parecia bater em aço. Segurando
na ponta do cabo do machado com as duas mãos, ele investia com toda a força, mas só
conseguia tirar pequenas lascas de madeira por vez. Tratava-se de uma porta de boa
qualidade, muito forte, por ser de madeira maciça.
Buck sentia-se exausto, movido apenas pelo sofrimento. A cada golpe desferido com o
machado, seu desejo de encontrar Chloe aumentava. Ele sabia que estava lutando contra
todas as circunstâncias, mas acreditava que só abandonaria sua busca se tivesse certeza de
que a perdera para sempre. Ele mantinha a esperança e orava para encontrar Chloe viva, mas,
se tivesse acontecido o pior, queria encontrá-la em uma condição que provasse que ela
morrera relativamente sem dor. De qualquer forma, ele achava que não demoraria muito para
encontrá-la.
Tsion Ben-Judá estava em boa forma para sua idade. Até o momento de esconder-se no abrigo,
ele se exercitava todos os dias. Contara a Buck que, apesar de nunca ter sido um atleta, sabia
que a saúde de sua mente erudita dependia da saúde de seu corpo. Tsion estava cumprindo
sua parte na tarefa, golpeando a porta em vários locais, tentando encontrar um ponto fraco
que lhe permitisse destruí-la mais rapidamente. Mesmo transpirando e ofegante, ele ainda
conversava enquanto trabalhava.
- Cameron, você não está querendo encontrar o carro de Chloe aqui, não é mesmo?
-Não.
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- E, se você não encontrá-lo, chegará à conclusão de que ela conseguiu escapar de um modo
ou de outro?
- Essa é a minha esperança.
- Então, estamos trabalhando por processo de eliminação?
- Isso mesmo.
- Assim que constatarmos que o carro dela não está aqui, Cameron, é melhor tentarmos retirar
da casa tudo o que pudermos.
- Tudo o quê?
- Alimentos. Suas roupas. Você não me disse que já vasculhou toda a área onde se encontrava
o seu quarto?
- Sim, mas não encontrei o guarda-roupa nem o que havia dentro. Ele não deve estar muito
longe.
- E a cómoda? Com certeza, você tinha roupas guardadas lá.
- Boa ideia - disse Buck.
Entre um e outro som das machadadas contra a porta da garagem, Buck ouviu um ruído
diferente. Interrompeu o trabalho e levantou uma das mãos para que Tsion também parasse.
Tsion encostou-se no cabo do machado para recobrar o fôlego, e Buck reconheceu o ruído do
motor de um helicóptero. O ruído tornou-se mais próximo e ficou tão forte que Buck imaginou
que fossem dois ou três helicópteros. Mas, quando conseguiu enxergar, surpreendeu-se ao ver
que se tratava de apenas um, tão grande quanto um ônibus. O único semelhante que ele
havia visto foi na Terra Santa durante um ataque aéreo alguns anos antes. Porém, o que
estava pousando a cem metros ou pouco mais se assemelhava apenas em tamanho aos
antigos helicópteros israelenses de cor cinza e preta. Tinha uma tonalidade branca brilhante e
parecia ter acabado de sair da linha de montagem. Estampava o emblema enorme da
Comunidade Global.
- Você acredita no que está vendo? - perguntou Buck.
- O que você pensa a respeito? - disse Tsion.
- Não faço ideia. Só espero que não estejam à sua procura.
- Francamente, Cameron, penso que de repente passei para o fim da lista das prioridades da
CG, você não acha?
- Logo saberemos. Vamos.
Eles abandonaram os machados e rastejaram até o muro de asfalto que, horas antes, havia
sido a rua da casa de Loretta. Através de uma fenda, viram o helicóptero da CG pousar perto
de um poste tombado. Enquanto pelo menos uma dúzia de homens do pelotão de emergência
saía do helicóptero, um fio de alta tensão partiu-se e bateu com força no chão. O líder
comunicou-se com alguém por meio de um walkie-talkie. Em questão de segundos, os fios da
energia elétrica e dos telefones foram desligados na região. O líder pegou uma tesoura especial
para cortar todos os outros fios que estavam ligados ao poste.
Dois empregados uniformizados retiraram uma enorme estrutura circular de metal de dentro
do helicóptero, e os técnicos fizeram uma ligação improvisada em uma das extremidades do
poste. Nesse ínterim, outros funcionários usaram uma imensa máquina perfuradora para cavar
um novo buraco para o poste. Uma betoneira encheu o buraco com uma mistura de concreto
preparada na hora, e uma polia portátil foi fixada sobre os quatro lados por dois funcionários
que puseram todo o seu peso sobre os pés de metal localizados em cada canto. O restante do
pessoal colocou rapidamente o poste na posição correta. Ele foi levantado até ficar em ângulo
de 45 graus, e três funcionários curvaram-se para arrastar a parte inferior do poste para
dentro do buraco. A polia esticou e endireitou o poste, afundando-o com força no buraco e
fazendo espirrar o excesso de concreto para todos os lados.
Em questão de segundos, tudo foi levado de volta para dentro do helicóptero, e a equipe da CG
levantou vôo. Em pouco menos de cinco minutos, um poste que antes servia para conduzir
energia elétrica e linhas telefónicas tinha sido transformado.
Buck virou-se para Tsion.
- Você entendeu o que acabamos de presenciar?
- Incrível - disse Tsion. - Agora ele é uma torre de telefone celular, certo?
- Sim. Ele está um pouco mais baixo do que deveria, mas resolverá o problema. Alguém
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acredita que manter as áreas dos telefones celulares funcionando é mais importante que a
eletricidade e o telefone convencional.
Buck tirou o telefone celular do bolso. O visor marcava capacidade de funcionamento total e
raio de distância total, pelo menos nas proximidades daquela nova torre.
- Eu gostaria de saber - ele disse - quanto tempo vai demorar para que muitas torres como
esta estejam em pé, permitindo que a gente possa falar com qualquer lugar novamente.
Tsion já estava retornando à garagem. Buck apertou o passo para alcançá-lo.
- Não vai demorar muito - disse Tsion. - Carpathia deve ter equipes como esta trabalhando
contra o relógio no mundo inteiro.
- É melhor voltarmos logo - disse Mac.
- Oh, é claro. Quer dizer que vou deixá-lo levar-me até Carpathia e a seu abrigo secreto antes
que você me conte uma coisa sobre minha mulher que é pior do que ela estar morta?
- Ray, não me obrigue a dizer mais nada. Já falei demais. Não tenho meios de provar tudo isso
e não confio em Carpathia.
- Quero que me conte tudo - disse Rayford.
- Mas, se sua reação for a que eu espero, você não vai me dizer o que quero saber.
Rayford já havia quase esquecido. E Mac estava certo. A perspectiva de receber más notícias a
respeito de sua mulher o tornara tão obsessivo que ele se esquecera dos outros assuntos
importantes que precisavam ser discutidos.
- Mac, dou-lhe a minha palavra de que responderei a qualquer pergunta e falarei sobre o que
você quiser. Mas você precisa me dizer o que sabe sobre Amanda.
Mac continuava relutante.
- Bem, uma coisa é certa. Não sei se aquele vôo da Pan-Con teria combustível suficiente para
ficar voando a esmo até encontrar um local de pouso. Se o terremoto aconteceu
antes da aterrissagem e ficou claro para o piloto que não havia condições de pousar em Bagdá,
ele não teria tido a chance de ir muito longe.
- Essa é uma boa hipótese, Mac. Como não encontrei o avião em Bagdá, ele deve estar em
algum lugar próximo. Vou continuar a busca. Nesse meio-tempo, conte-me tudo o que
você sabe.
- Está certo, Ray. Nesta altura dos acontecimentos, acho que não faz sentido escondermos o
jogo. Se tudo o que já lhe contei não serviu para convencê-lo de que não sou um dos
espiões de Carpathia, nada mais o convencerá.. Se ele souber que lhe contei isso, serei um
homem morto. Portanto, independentemente do que você pensa ou de como será sua
reação ou ainda o que vai querer dizer a ele sobre tudo isso, jamais revele a fonte. Entendido?
- Sim, sim! E daí?
Mac respirou fundo, mas não disse nada, o que era de deixar qualquer um furioso. Rayford
estava a ponto de explodir.
- Preciso sair da minha poltrona - disse Mac finalmente, desatando o cinto de segurança. -
Vamos, Rayford. Saia. Não me faça pular sobre você.
Mac ficou em pé entre sua poltrona e a de Rayford, com o corpo curvado para não bater a
cabeça no teto do helicóptero. Rayford desatou seu cinto e abriu a porta, saltando na areia.
Ele estava a ponto de implorar, determinado a não permitir que Mac voltasse ao helicóptero
sem antes lhe contar o que ele precisava saber.
Mac permaneceu do lado de fora do helicóptero, com as mãos enfiadas nos bolsos da calça. O
clarão da lua cheia iluminava seus cabelos loiro-avermelhados, as marcas acentuadas e as
sardas de seu rosto cansado. Ele parecia um homem que ia para a forca.
De repente, Mac deu um passo à frente e colocou as palmas das mãos na lateral do
helicóptero, de cabeça baixa. Por fim, ele levantou a cabeça e virou-se para Rayford.
- Tudo bem, vou contar. Não se esqueça de que foi você quem me forçou... Carpathia fala de
Amanda como se a conhecesse.
Rayford fez um trejeito com a boca, levantou as mãos abertas e deu de ombros.
- Ele a conhece. E daí?
- Não foi isso o que eu disse! Eu disse que ele fala dela como se a conhecesse muito bem.
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- E o que isso significa? Um caso amoroso? Não me venha com essa.
- Ray! Estou dizendo que ele fala dela como se a conhecesse muito antes de você.
Rayford quase caiu sentado na areia.
- Você não está dizendo que...
- Estou dizendo que, a portas fechadas, Carpathia faz comentários sobre Amanda. Ela faz
parte da equipe, ele costuma dizer. Está no lugar certo. Desempenha muito bem seu papel.
Esse tipo de coisa. O que posso deduzir disso?
Rayford não conseguia falar. Não estava acreditando. Não, claro que não. Mas que ideia! Que
atrevimento daquele homem em tirar conclusões sobre o caráter da mulher que Rayford
conhecia tão bem!
- Mal conheço sua mulher, Ray. Não tenho ideia de que isso seja possível. Só estou lhe
contando o que...
- Não é possível - Rayford conseguiu dizer finalmente. - Sei que você não a conhece, mas eu a
conheço.
- Eu não esperava que você acreditasse, Ray. Nem mesmo estou dizendo que tenho alguma
suspeita.
- Você não deve suspeitar de nada. Aquele homem é um mentiroso. Ele trabalha para o pai da
mentira. Ele diria qualquer coisa sobre uma pessoa para tirar algum proveito. Não sei por que
ele precisa manchar a reputação de Amanda, mas...
- Ray, eu não lhe disse que acho que ele está certo. Mas você tem de admitir que ele está
extraindo informações de algum lugar.
- Não me venha insinuar que...
- Não estou insinuando nada. Estou apenas dizendo...
- Mac, não posso dizer que conheço Amanda há muito tempo. Não posso dizer que ela me deu
filhos como minha primeira mulher. Não posso dizer que vivemos juntos há vinte anos como
vivi com Irene. Mas posso dizer que não somos apenas marido e mulher. Somos irmãos em
Cristo. Se eu tivesse compartilhado da fé de Irene, ela e eu teríamos sido companheiros de
alma também, mas foi aí que falhei. Amanda e eu nos encontramos depois de nos
convertermos e nos ligamos um ao outro instantaneamente. Trata-se de um vínculo que
ninguém pode quebrar. Aquela mulher não é mentirosa, nem traidora, nem subversiva, nem
vira-casaca. Ninguém pode ser melhor do que ela. Ninguém pode dormir a meu lado, olhar
fundo nos meus olhos, prometer me amar e ser fiel a mim de maneira tão sincera e, ao
mesmo tempo, ser uma pessoa mentirosa, sem que eu desconfie de nada. De jeito nenhum.
- Para mim, é o suficiente, capitão - disse Mac.
Rayford estava furioso com Carpathia. Se não tivesse
empenhado sua palavra com Mac, seria difícil alguém impedi-lo de acionar o rádio naquele
momento e pedir para falar diretamente com Nicolae. Ele gostaria de saber como encararia o
homem. O que diria ou faria quando estivessem frente a frente?
- Por que eu devia esperar algo diferente de um homem como ele? - disse Rayford.
- Boa pergunta. Agora é melhor irmos embora, você não acha?
Rayford queria dizer a Mac que ainda estava disposto a conversar sobre as perguntas que ele
levantara, mas não tinha ânimo para isso. Se Mac voltasse a lhe fazer perguntas, Rayford as
responderia. Mas, se Mac o deixasse quieto, ele preferiria aguardar um momento mais
adequado.
- Mac - disse Rayford enquanto ambos atavam os cintos de segurança dentro do helicóptero -,
já que estamos supostamente em uma missão de resgate, você se importaria de darmos uma
busca, sobrevoando 40 quilómetros em círculos?
- Com certeza, seria melhor durante o dia – respondeu Mac. - Você quer que eu o traga de
volta aqui amanhã?
- Sim, mas, de qualquer maneira, vamos dar uma volta. Se aquele avião pousou em algum
lugar perto de Bagdá, a única esperança de achar sobreviventes é encontrá-los o mais
rápido possível.
Rayford notou uma expressão de simpatia no rosto de Mac.
- Eu sei - prosseguiu Rayford. - Estou sonhando. Mas não posso voltar para Carpathia e
aproveitar-me do abrigo e de suas instalações enquanto não esgotar todas as tentativas de
30
encontrar Amanda.
- Eu estava aqui pensando - disse Mac. - Se houvesse um fundo de verdade no que Carpathia
diz...
- Não há, Mac, e estou certo disso. Vamos esquecer o assunto.
- Estou só dizendo que, se houvesse, você não acha que existiria a possibilidade de Carpathia
ter colocado Amanda em outro avião? Só para protegê-la?
- Oh, já entendi! - disse Rayford. - O lado bom da história de minha mulher trabalhar para o
inimigo é que ela pode estar viva?
- Eu não estava olhando por esse ângulo - disse Mac.
- Então aonde você quer chegar?
- A lugar nenhum. Não devemos mais conversar sobre esse assunto.
- Claro que não.
Porém, assim que Mac começou a rodar com o helicóptero em círculos concêntricos cada vez
maiores, partindo do terminal de Bagdá, Rayford só avistava fendas e areias afundadas no solo.
Agora ele queria encontrar Amanda, não só para tê-la a seu lado, mas também para provar que
ela era uma pessoa de bem.
Quando eles resolveram desistir da busca e Mac prometeu ao funcionário do abrigo que ambos
estavam a caminho, uma ponta de dúvida começou a surgir na cabeça de Rayford. Ele sentiase
culpado por levar adiante essa dúvida, mas não conseguia afastá-la. Temia o estrago que
isso faria ao seu amor e respeito por aquela mulher que completara sua vida e estava
determinado a tirar a dúvida da mente de uma vez por todas.
Seu problema era que, a despeito do quanto ele se tornara romântico depois de conhecê-la, do
quanto se tornara emotivo desde sua conversão (e de ter presenciado mais tragédias do que
qualquer outra pessoa poderia suportar), seu raciocínio ainda era prático, analítico e científico,
o que fizera dele um piloto tão bem conceituado. Rayford detestava ter de simplesmente
abandonar essa dúvida apenas por ela não condizer com o que seu coração sentia. Ele teria de
livrar Amanda dessa acusação provando de uma maneira ou de outra sua lealdade e a
sinceridade de sua fé - com a ajuda dela, se estivesse viva, ou sem ela, se estivesse morta.
A tarde já estava no meio quando finalmente Buck e Tsion conseguiram abrir um buraco em
uma das portas da garagem com tamanho suficiente para que Tsion pudesse atravessar por
ele.
A voz de Tsion era tão rouca e fraca que Buck precisou encostar o ouvido na abertura.
- Cameron, o carro de Chloe está aqui. Consegui abrir um
pouco a porta para acender a luz interna. Dentro do carro
estão apenas o telefone e o computador dela.
- Vamos até os fundos da casa! - gritou Buck. - Rápido, Tsion! Se o carro dela está aqui, é sinal
de que ela ainda está por aqui!
Buck pegou todas as ferramentas que pôde e correu para os fundos da casa. Essa era a
evidência pela qual ele tanto esperara e orara. Se Chloe estivesse debaixo daqueles
escombros, e houvesse uma possibilidade em um milhão de estar viva, ele não desistiria até
encontrá-la.
Buck começou a retirar os escombros com toda a força, precisando lembrar-se de parar por
alguns instantes para recuperar o fôlego. Tsion apareceu e pegou uma pá e um machado.
- Devo começar por outro lugar? - ele perguntou.
- Não! Temos de trabalhar em conjunto, se quisermos ter alguma esperança!
31
QUATRO
- O que aconteceu com as roupas empoeiradas? - Rayford sussurrou quando ele e Mac
atravessaram a porta da entrada auxiliar do gigantesco abrigo subterrâneo de Carpathia,
conduzidos por um segurança. Do outro lado, um pouco adiante do Condor 216 e no meio de
numerosos subordinados e assistentes, lá estava Fortunato, com aparência animada e trajando
outro terno.
- Nicolae providenciou roupas limpas para ele - murmurou Mac.
Rayford não comera nada durante um período de mais de 12 horas, mas não havia pensado
em fome até aquele momento. Os lacaios de Carpathia, demonstrando uma surpreendente
animação, tinham acabado de servir-se em um bufe e estavam sentados equilibrando pratos e
copos sobre os joelhos.
Um grande apetite tomou conta de Rayford quando ele avistou presunto, frango e carne
bovina, além de toda sorte de guloseimas do Oriente Médio. Fortunato cumprimentou-o com um
sorriso e um aperto de mão. Rayford não retribuiu o sorriso e mal apertou a mão do homem.
- O potentado Carpathia pediu que fôssemos ao encontro dele em seu escritório dentro de
alguns instantes. Mas, por favor, coma alguma coisa antes.
- É o que vou fazer - disse Rayford. Apesar de ser um funcionário, ele tinha a sensação de
estar comendo no campo do inimigo. Contudo, seria uma tolice passar fome só para provar
alguma coisa. Ele precisava se fortalecer.
- Enquanto ele e Mac serviam-se no bufe, Mac sussurrou:
- É melhor não deixar transparecer que somos muito amigos.
- Sim - disse Rayford. - Carpathia conhece minha posição, mas talvez ache que você é leal a
ele.
- Não sou, mas não há futuro para quem admitir isso.
- Como eu, por exemplo? - perguntou Rayford.
- Um futuro para você? Ele não será muito longo. Mas o que posso dizer? Carpathia gosta de
você. Talvez se sinta seguro por saber que você não esconde nada dele.
Para Rayford, as iguarias em seu prato assemelhavam-se a escolhas que ele havia feito. Talvez
seja a comida do inimigo, ele pensou, mas serve como alimento.
Quando ele e Mac foram conduzidos ao escritório de Carpathia, Rayford sentia-se bem
alimentado. A presença de Mac ali causou surpresa a Rayford. Ele nunca participara de uma
reunião com Carpathia.
Como sempre acontecia em tempos de crises internacionais e catástrofes, Nicolae mal
conseguia conter um sorriso de satisfação. Ele também havia trocado de roupa e demonstrava
estar bem descansado. Rayford sabia que ele próprio estava com uma aparência horrível.
- Por favor - disse Carpathia efusivamente -, capitão Steele e piloto McCullum. Sentem-se.
- Se o senhor não se importar, prefiro ficar em pé – disse Rayford.
- Não há necessidade. Você parece exausto, e temos assuntos importantes na agenda.
Rayford acomodou-se com relutância em uma poltrona. Ele não entendia aquela gente. Aquele
escritório lindamente decorado competia com o edifício principal de Carpathia, agora
transformado em uma pilha de ruínas a pouco mais de meio quilómetro de distância. Como
aquele homem podia estar preparado para toda e qualquer eventualidade?
Leon Fortunato estava em pé, perto de um dos cantos da mesa de Carpathia. Sentado na beira
da mesa, Carpathia encarava Rayford, o qual decidiu ir direto ao assunto.
- Senhor, minha mulher. Eu...
- Capitão Steele, tenho más notícias para você.
- Oh, não. - A mente de Rayford passou imediatamente para a posição de defesa. A sensação
era a de que Amanda não estava morta, e ponto final. Rayford não se importava com o que
aquele mentiroso - aquele que se atrevera a chamar Amanda de compatriota - tinha a lhe
32
contar. Se Carpathia dissesse que ela estava morta, Rayford não sabia se conseguiria manter a
palavra dada a Mac nem se teria condições de conter-se para não agredi-lo e fazê-lo retratar-se
da calúnia que ele dissera sobre Amanda.
- Sua mulher, que sua alma descanse em Deus, foi...
Rayford agarrou o braço da poltrona com tanta força que as pontas de seus dedos pareciam
estar prestes a arrebentar. Ele cerrou os dentes. Que ousadia do anticristo dizer "que sua alma
descanse em Deus" ao se referir à sua mulher! Rayford tremia de raiva. Orou
desesperadamente para que, se isso fosse verdade, se tivesse perdido Amanda para sempre,
que Deus o usasse para matar Nicolae Carpathia. Mas a morte dele só ocorreria depois de três
anos e meio a partir do início da Tribulação, e a Bíblia dizia que o anticristo ressuscitaria e se
transformaria em Satanás. Mesmo assim, Rayford suplicou a Deus que lhe concedesse o
privilégio de matar aquele homem. Mas até que ponto ele se sentiria satisfeito e vingado? Era
essa dúvida que o impedia de tomar uma atitude naquele instante.
- Conforme você sabe, ela estava a bordo de um 747 da Pan-Continental que partiu hoje de
Boston para Bagdá. O terremoto aconteceu momentos antes de o avião pousar. O melhor que
conseguimos apurar foi que aparentemente o piloto viu o caos, entendeu que não tinha
condições de pousar perto do aeroporto, arremeteu e deu meia-volta.
Rayford sabia o que viria a seguir, se a história fosse verdadeira. O piloto não teria conseguido
ganhar altitude por ter arremetido e dado meia-volta com muita rapidez.
- O pessoal da Pan-Con contou-me - prosseguiu Carpathia - que o avião não teve condições
de manter-se no ar naquela velocidade. Testemunhas oculares dizem que ele passou raspando
pela margem do Tigre, bateu com força na água quando estava no meio do rio, afundou de
bico e desapareceu.
O corpo inteiro de Rayford estremecia a cada batida de seu coração. Ele abaixou a cabeça,
encostando o queixo no peito, tentando recompor-se. Depois, ergueu os olhos para Carpathia,
aguardando detalhes, mas não conseguiu abrir a boca, nem mesmo proferir um som qualquer.
- A correnteza é muito forte ali, capitão Steele. O pessoal da Pan-Con me disse que um avião
como aquele afundaria como uma pedra. Nada foi encontrado rio abaixo. Nenhum corpo.
Temos de esperar alguns dias até conseguirmos um equipamento de resgate. Lamento muito.
Rayford não acreditava nos sentimentos pesarosos de Carpathia nem que Amanda estivesse
morta. E acreditava menos ainda que ela agira em conluio com Nicolae Carpathia.
Buck trabalhava como louco. Seus dedos estavam machucados e com bolhas. Chloe tinha de
estar ali. Ele não queria conversar. Só queria cavar. Mas Tsion era um homem detalhista.
- Eu não entendo, Cameron - ele disse - porque o carro de Chloe está na garagem onde Loretta
costumava guardar o dela.
- Eu também não - disse Buck com negligência. - Mas ele está lá, e isso significa que ela está
por aqui.
- Talvez o terremoto tenha arremessado o carro para dentro da garagem - sugeriu Tsion.
- Não creio - disse Buck. - Eu não estou me importando muito com isso. Continuo sem
entender por que não dei falta do carro dela quando cheguei aqui.
- O que você tinha deduzido?
- Que ela havia fugido de carro daqui! Que se salvara.
- Você continua achando isso possível?
Buck endireitou o corpo e comprimiu os nós dos dedos nas costas, tentando aliviar os músculos
doloridos.
- Ela não teria chegado a lugar nenhum a pé. Tudo aconteceu muito rápido. Não houve aviso.
- Houve sim.
Buck encarou o rabino.
- Você estava debaixo da terra, Tsion. Como pode saber?
- Ouvi alguns estrondos minutos antes do início do terremoto.
Quando o terremoto começou, Buck estava no Range Rover. Ele avistara animais na pista, cães
latindo e correndo e bichos que não costumam ser vistos durante o dia. Antes que o céu
escurecesse completamente, ele não observara nenhuma folha se movendo, mas os semáforos
33
e as placas de sinalização balançavam para a frente e para trás. Foi então que ele entendeu
que o terremoto estava começando. Tinha havido pelo menos um rápido aviso. Será que Chloe
pressentira alguma coisa? O que ela teria feito? Para onde teria ido?
Buck voltou a cavar.
- O que você disse que encontrou no carro dela, Tsion?
- Só o computador e o telefone.
Buck parou de cavar.
- Será que ela está na garagem?
- Receio que não, Cameron. Revistei tudo. Se ela estava lá quando tudo desabou - disse Tsion
-, acho que você não haveria de querer encontrá-la.
Talvez eu não queira, pensou Buck, mas preciso ter certeza.
O corpo de Rayford retesou-se quando Carpathia tocou em seu ombro. Ele imaginou a cena de
dar um pulo da cadeira e estrangulá-lo. Mas permaneceu sentado, espumando de raiva, olhos
fechados, sentindo-se prestes a explodir.
- Eu me solidarizo com seu sofrimento - disse Nicolae. - Talvez você possa entender como eu
também me sinto ao ver tantas vidas ceifadas por causa desta calamidade. O fenómeno foi
mundial e atingiu todos os continentes. Só a região de Israel foi poupada.
Rayford esquivou-se do toque de Carpathia e recuperou a voz.
- O senhor não acha que isso foi a ira do Cordeiro?
- Rayford, Rayford - disse Carpathia. - Com certeza, você não responsabilizaria algum Ser
Supremo por um ato tão desalmado, tão caprichoso, tão implacável quanto este.
Rayford balançou a cabeça. O que ele estava pensando? O que poderia convencer o anticristo de
que ele estava errado?
Carpathia contornou sua mesa e sentou-se em uma poltrona de couro preto e de espaldar alto.
- Vou lhe contar o que direi ao restante de meus subordinados para que você não precise
participar da reunião e vá para os seus aposentos a fim de descansar um pouco.
- Eu não me importo de ouvir isso com os demais funcionários.
- Quanta generosidade, capitão Steele! No entanto, há algumas coisas que preciso tratar só
com você. Hesitei em levantar este assunto após uma perda tão recente, mas você sabe que
eu poderia mantê-lo preso aqui.
- Claro que poderia - disse Rayford.
- Mas preferi não fazer isso.
Rayford deveria sentir-se agradecido ou desapontado? Alguns dias na prisão, até que não seria
mau. Se ele soubesse que sua filha, seu genro e Tsion estivessem bem, poderia suportar isso.
Carpathia prosseguiu:
- Eu o compreendo mais do que você imagina. Deixaremos de lado nossas desavenças, e você
continuará a trabalhar para mim como tem feito até agora.
- E se eu pedir demissão?
- Você não pode optar por isso. Atravessará esta crise com espírito de nobreza, como tem feito
em outras ocasiões semelhantes. Caso contrário, vou acusá-lo de insubordinação, e você será
preso.
- É isso que significa deixar de lado nossas desavenças? O senhor quer manter um empregado
que prefere ser demitido?
- Com o tempo, vou conquistar sua simpatia – disse Carpathia. - Você já soube que seu
apartamento foi destruído?
- Não posso dizer que isso me surpreende.
- Há equipes trabalhando na tentativa de recuperar tudo o que possa ser útil. Enquanto isso,
providenciamos uniformes e artigos de primeira necessidade para você. Seu novo alojamento é
funcional, apesar de não ser luxuoso. A prioridade de minha administração é reconstruir a
Nova Babilónia. Ela será a nova capital do mundo. Bancos, comércio, religião e governos
iniciarão e terminarão aqui. O maior desafio no restante do mundo é restabelecer os sistemas
de comunicação. Já começamos a restabelecer uma rede internacional que...
- Sistemas de comunicação são mais importantes que pessoas? Mais que limpar áreas que
34
possam causar doenças? Mais que enterrar corpos? Mais que reunir famílias?
- No devido tempo, capitão Steele. Essas providências também dependem dos sistemas de
comunicação. Felizmente, a ocasião de meu projeto mais ambicioso não poderia ter sido mais
propícia. Recentemente, a Comunidade Global comprou todas as empresas de comunicações de
satélites internacionais e telefones celulares. Dentro de alguns meses, teremos a primeira
verdadeira rede mundial de comunicações de telefones celulares, movida por luz solar. Dei a
ela o nome de Celular-Solar. Assim que as torres de celulares forem reerguidas e os satélites
entrarem em órbita em sincronismo com a terra, qualquer pessoa será capaz de comunicar-se
com quem quer que seja, a qualquer hora e em qualquer lugar.
Carpathia parecia ter perdido a capacidade de esconder a alegria que sentia. Se essa tecnologia
funcionasse, solidificaria seu poder sobre a terra. Seu domínio seria completo. Ele possuiria e
controlaria tudo e todos.
- Assim que estiver em condições, capitão Rayford, você e o piloto McCullum deverão trazer
meus embaixadores para cá. Há alguns aeroportos grandes funcionando ao redor do
mundo, mas, com o uso de aeronaves menores, meus homens principais serão levados a um
lugar onde você possa apanhá-los com o Condor 216 e conduzi-los até aqui.
Rayford não conseguia se concentrar.
- Tenho dois pedidos a fazer - ele disse.
- Adoro quando você me pede alguma coisa – disse Carpathia.
- Eu gostaria de ter informações sobre minha família.
- Encarregarei alguém disso. E o que mais?
- Necessito de um ou dois dias para ser treinado por Mac para pilotar helicópteros. Talvez eu
seja chamado para levar alguém onde só um helicóptero tenha condições de chegar.
- Providenciarei tudo o que você necessitar, capitão, você sabe disso.
Rayford olhou de relance para Mac, que parecia atónito. Rayford não devia surpreender-se
diante da reação de Mac. Se Mac não estava em conluio com Carpathia, havia assuntos
importantes que eles deveriam discutir. Não poderiam fazer aquilo dentro do abrigo, onde
todos os cómodos com certeza eram vigiados. Rayford queria atrair Mac para o reino de Deus.
Mac seria uma maravilhosa adição ao Comando Tribulação, principalmente enquanto ambos
desfrutassem da confiança de Carpathia.
- Estou morrendo de fome, Cameron - disse Tsion.
Eles haviam cavado os escombros até a metade, e Buck se desesperava a cada golpe de pá.
Por toda parte, havia evidências de que Chloe morava naquela casa, mas nenhuma de que ela
estivesse ali, viva ou morta.
- Se eu cavar mais uma hora, conseguirei chegar ao porão, Tsion. Comece pela cozinha.
Talvez lá você encontre alguma coisa para comermos. Eu também estou faminto. Mesmo
sabendo que Tsion estava do outro lado da casa, Buck sentiu o peso da solidão. Seus olhos
ardiam e lacrimejavam enquanto ele cavoucava, afastava, levantava e atirava para longe os
entulhos, em um esforço talvez inútil de encontrar sua mulher.
À noitinha, Buck subiu exausto do porão localizado no canto dos fundos da casa. Arrastou sua
pá até a frente, disposto a ajudar Tsion, mas na esperança de que o rabino tivesse encontrado
algo para eles comerem.
Tsion levantou uma escrivaninha toda esmagada, e ela caiu perto dos pés de Buck.
- Oh, Cameron! Não vi que você estava aqui.
- Você está tentando chegar à geladeira?
- Exatamente. A energia elétrica está desligada há horas, mas deve haver alguma coisa lá que
ainda não se estragou.
Duas vigas enormes impediam a passagem até a geladeira. Enquanto Buck tentava afastá-las,
seu pé enroscou-se na ponta da escrivaninha esmagada. Papéis e agendas telefónicas
espalharam-se pelo chão. Uma das agendas continha nomes e endereços dos membros da
Igreja Nova Esperança. É melhor deixar isso à mão, Buck pensou, enrolando-a e colocando-a no
bolso da calça.
Passados alguns minutos, Buck e Tsion estavam sentados de costas para a geladeira,
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mastigando alguma coisa, que serviu para aliviar um pouco a fome de ambos. Buck tinha a
sensação de que, se deitasse, dormiria uma semana inteira. Porém, o mais importante de tudo
era terminar a escavação.
O simples pensamento de encontrar Chloe morta o deixava apavorado. Felizmente, Tsion estava
em silêncio. Buck precisava pensar. Onde eles passariam a noite? O que comeriam no dia
seguinte? Mas, por ora, Buck só queria continuar sentado, comer e envolver-se nas lembranças
de Chloe.
Ele a amava demais. Como seria possível amá-la tanto, se a conhecera havia menos de dois
anos? Quando eles se conheceram, ela parecia uma moça madura para seus vinte anos, mas
agora vinha-se comportando como uma pessoa dez ou quinze anos mais velha. Ela havia sido
uma dádiva de Deus, a mais preciosa que ele recebera, excetuando a salvação. Como teria
sido sua vida após o Arrebatamento, se não tivesse conhecido Chloe? Talvez se sentisse
agradecido e satisfeito por saber que estava com Deus, mas seria um homem muito solitário.
Naquele momento, Buck também sentia-se grato a seu sogro e Amanda. Grato por sua
amizade com Chaim Rosenzweig. Grato por sua amizade com Tsion. Ele e Tsion teriam de
persuadir Chaim, mas o israelense continuava fascinado por Carpathia. Aquilo precisava mudar.
Chaim necessitava de Cristo. O mesmo acontecia com Ken Ritz, o piloto que Buck contratara
tantas vezes. Ele teria de procurar Ken, saber se ele estaria bem, se seus aviões ainda
tivessem condição de voar. Empurrando a comida para o lado, ele abaixou a cabeça e começou
a cochilar.
- Preciso voltar para Israel - disse Tsion.
- Hum? - murmurou Buck.
- Preciso voltar para a minha terra.
Buck ergueu a cabeça e olhou para Tsion.
- Não temos onde morar - ele disse. - Mal temos condição ile chegar até o próximo
quarteirão. Não sabemos se estaremos vivos amanhã. Você é um homem procurado pela
polícia de Israel. Pensa que eles já o esqueceram, agora que estão trabalhando para resgatar
feridos do terremoto?
- É claro que não. Mas entendo que a maioria das 144.000 testemunhas - e eu sou uma delas
- são procedentes de Israel. Nem todas procederão de lá. Muitas virão de tribos espalhadas no
mundo inteiro. Porém, a grande maioria está em Israel. E essa maioria deve ser tão fervorosa
quanto Paulo, mas neófita e destreinada. Sinto que estou sendo chamado para conhecê-las,
saudá-las e doutriná-las. Elas devem ser mobilizadas para sair a campo.
- Digamos que eu o leve até Israel. Como poderei preservar sua vida?
- O quê? Você acha que preservou minha vida em nossa fuga através do Sinai?
- Ajudei.
- Ajudou? Você me faz rir, Cameron. De certa maneira, sim, devo-lhe a vida. Mas você estava
tão a perigo quanto eu. Aquilo foi obra de Deus, e ambos sabemos disso.
Buck levantou-se.
- Está bem, está bem. Mesmo assim, levá-lo de volta a um lugar onde você é considerado um
fugitivo parece loucura.
Buck ajudou Tsion a levantar-se.
- Espalhe a notícia de que morri no terremoto - disse o rabino. - Depois, viajarei disfarçado
com um daqueles nomes que você costuma inventar.
- Não sem antes fazer uma cirurgia plástica - disse Buck. - Você é uma pessoa conhecida,
ainda mais em Israel, onde todos de sua idade são mais ou menos parecidos.
O sol começava a desaparecer no horizonte quando eles terminaram de vasculhar a cozinha.
Tsion encontrou sacos plásticos e alimentos embalados que poderiam ficar guardados no carro.
Buck conseguiu retirar algumas roupas da confusão em que o quarto dele e de Chloe se
transformara. Tsion foi até a garagem e pegou o computador e o telefone de Chloe.
Nenhum dos dois tinha força suficiente para escalar o muro de asfalto diante da casa de
Loretta, portanto resolveram contorná-lo. Quando chegaram ao Range Rover, ambos tiveram de
entrar pela porta do passageiro.
- E então? O que você está pensando agora? – perguntou Tsion. - Se Chloe estivesse viva no
meio daquelas ruínas, teria nos ouvido e gritado nosso nome, você não acha?
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Buck assentiu com profunda tristeza.
- Estou tentando aceitar o fato de que ela está soterrada. Eu estava errado, só isso. Nós não
a encontramos no quarto, nem na cozinha, nem no porão. Talvez ela tenha corrido para uma
outra parte da casa. Nesse caso, precisaríamos de ferramentas maiores e mais adequadas
para arrastar todos aqueles entulhos até encontrá-la. Não posso imaginar deixá-la lá, mas
também não tenho condições de prosseguir a escavação esta noite.
Buck dirigiu o Range Rover rumo à igreja.
- Devemos dormir no abrigo esta noite? - ele perguntou.
- Ele não está firme - respondeu Tsion. - Se houver um novo abalo, poderá cair sobre nós.
Buck continuou rodando. Faltava um quilómetro e meio para chegar à igreja quando ele passou por
um local na vizinhança cujas construções estavam retorcidas e abaladas, mas não haviam
desabado. Apesar de danificadas, muitas estruturas continuavam em pé. Um posto de gasolina,
iluminado por lâmpadas de butano, atendia a uma pequena fila de carros.
- Não somos os únicos cidadãos sobreviventes – disse Tsion.
Buck entrou na fila. O homem que dirigia o posto tinha uma espingarda encostada nas bombas e
gritava acima do ruído de um gerador movido a gasolina:
- Pagamento só em dinheiro! Máximo de 75 litros! Quando acabar, acabou.
Buck completou o tanque do carro e disse:
- Eu lhe pago mil dólares em dinheiro pelo...
- Pelo gerador, sim, eu sei. De jeito nenhum. Posso conseguir dez mil por ele amanhã.
- Você sabe onde posso encontrar um outro?
- Não sei de nada - respondeu o homem, com ar de aborrecimento. - Minha casa desapareceu.
Vou dormir aqui esta noite.
- Está precisando de companhia?
- Para dizer a verdade, não. Se você se sentir desesperado, volte aqui. Não vou mandá-lo
embora.
Buck não podia culpar o homem. Em tempos como esses, até que ponto alguém pode acolher
pessoas desconhecidas?
- Cameron - disse Tsion quando Buck retornou ao carro -, eu estava aqui pensando. Será que
a mulher do técnico do computador sabe que o marido dela morreu?
Buck meneou a cabeça.
- Vi a mulher dele apenas uma vez. Não me lembro do
nome dela. Ei, espere um pouco. - Ele enfiou a mão no bolso e tirou de dentro o livro de
endereços dos membros da igreja.
- Aqui está. Sandy. Vou ligar para ela.
Após discar os números, Buck não se surpreendeu ao ver que a ligação não pôde ser
completada, mas animou-se quando ouviu uma mensagem gravada de que todos os circuitos
estavam ocupados. Pelo menos, já era algum progresso.
- Onde eles moram? - indagou Tsion. - Talvez a casa não esteja em pé, mas poderíamos
verificar.
Buck leu o nome da rua.
- Não sei onde fica - disse ele, avistando, em seguida, um carro da polícia, com as luzes
piscando. - Vou perguntar.
O policial estava encostado no carro, fumando.
- Você está em serviço? - Buck perguntou.
- Descansando um pouco - respondeu o policial. - Já vi coisas demais hoje que não quero ver
pelo resto da minha vida, se é que você me entende.
Buck mostrou-lhe o endereço.
- Não temos mais pontos de referência, mas, ah, siga-me.
- Você está falando sério?
- Não há nada mais que eu possa fazer por alguém esta noite. Para lhe dizer a verdade, não fiz
nada de bom a ninguém. Siga-me. Vou indicar a rua que você procura. Depois vou embora.
Alguns minutos depois, Buck piscou os faróis em sinal de agradecimento ao policial e parou
diante de uma casa geminada. Tsion abriu a porta do passageiro, mas Buck segurou seu braço.
- Deixe-me ver o celular de Chloe.
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Tsion arrastou-se até o fundo do carro e retirou o aparelho dentre uma pilha de objetos que
ele embrulhara em um cobertor. Buck abriu o aparelho e viu que ele havia sido deixado ligado.
Remexeu o porta-luvas e encontrou um adaptador de acendedor de cigarros que se encaixou
ao telefone e o fez funcionar. Buck apertou o botão indicador do último número ligado e deu um
suspiro. Era o dele.
Tsion fez um sinal afirmativo com a cabeça, e ambos desceram do carro. Buck pegou uma
lanterna em sua caixa de ferramentas. A casa geminada do lado esquerdo tinha as janelas
quebradas em toda a sua volta, e um muro de arrimo desmoronara, deixando a frente da
construção inclinada. Buck colocou-se em uma posição onde conseguiu iluminar o local através
das janelas.
- Vazio - ele disse. - Nenhum móvel.
- Veja! - exclamou Tsion, apontando para uma tabuleta na grama onde se lia "Aluga-se".
Buck consultou novamente o livro de endereços.
- A casa de Donny e Sandy é a do lado - ele disse.
O local parecia extraordinariamente intacto. As cortinas estavam abertas. Buck agarrou-se na
grade de ferro do parapeito da janela e iluminou a sala de estar com a lanterna. Parecia uma
sala confortável. Buck girou a maçaneta da porta da frente e encontrou-a destrancada.
Enquanto ele e Tsion caminhavam pela casa nas pontas dos pés, tornou-se evidente que havia
algo errado naquela mesinha no fundo da sala. Buck olhou assustado, e Tsion virou-se de
costas e curvou o corpo.
Sandy Moore estava tomando o café da manhã naquela mesinha, segurando um jornal,
quando um imenso carvalho caiu sobre o telhado com tanta força que a esmagou com a
pesada mesa de madeira. O dedo da jovem senhora continuava enroscado na asa da xícara de
café, e sua face estava encostada na seção do serviço de meteorologia do Chicago Thbune.. Se
o corpo daquela senhora não estivesse completamente esmagado, alguém diria que ela estava
cochilando.
- Ela e o marido devem ter morrido quase que no mesmo instante. - disse Tsion em voz
baixa. - A quilómetros de distância.
Buck fez um movimento afirmativo com a cabeça naquele ambiente fracamente iluminado.
- Precisamos sepultar esta senhora.
- Jamais conseguiremos tirá-la debaixo daquela árvore - disse Tsion.
- Temos de tentar.
Buck encontrou algumas pranchas de madeira no corredor externo da casa, que foram
colocadas por baixo da árvore como alavancas, mas aquele tronco tão grande, com capacidade
para destruir um telhado, uma parede, uma janela, uma mulher e uma mesa, não queria sair
do lugar.
- Precisamos de instrumentos mais pesados - disse Tsion.
- Para quê? - disse Buck. - Ninguém será capaz de enterrar todos os mortos.
- Confesso que não estou pensando muito no que fazer com o corpo desta senhora. Estou
pensando na possibilidade de termos encontrado um lugar para morar. Buck encarou-o,
como se não tivesse ouvido bem.
- - E daí? - prosseguiu Tsion.
- Não é o lugar ideal? É verdade que o pavimento diante da casa quase foi destruído
totalmente. Esta sala, exposta às intempéries, pode ser facilmente reparada. Não sei por
quanto tempo ficaremos sem energia elétrica, mas...
- Já entendi - disse Buck. - Não temos alternativa.
Buck passou com o Range Rover por cima do que restara da casa ao lado. Estacionou-o nos
fundos, fora da vista de curiosos. Ele e Tsion descarregaram o carro. Ao atravessar a porta dos
fundos, Buck percebeu que eles tinham condições de retirar o corpo da Sra. Moore debaixo da
árvore. Os galhos estavam pousados contra um armário enorme no canto da sala. Isso
impediria que a árvore caísse um pouco mais, caso eles pudessem serrar o assoalho por baixo.
- Estou tão cansado que mal consigo ficar em pé, Cameron - disse Tsion enquanto ambos
desciam a escada estreita que dava para o porão.
- Eu também estou a ponto de desmoronar - disse Buck.
Ele apontou a lanterna para o teto do porão e viu que o cotovelo de Sandy atravessara a
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madeira do assoalho e estava visível. No porão, aparentemente só havia peças de
computadores desmontados, mas, de repente, eles avistaram a caixa de ferramentas de
Donny. Um martelo, alguns formões, um pé-de-cabra e um serrote seriam o suficiente,
pensou Buck, arrastando uma escada portátil até o local. Tsion segurou-a enquanto Buck
enroscava as pernas no último degrau para equilibrar-se. Em seguida, Buck começou a árdua
tarefa de atravessar o pé-de-cabra pelo assoalho do pavimento superior com a ajuda de um
martelo. Seus braços doíam, mas ele não desistiu até conseguir abrir alguns buracos com
tamanho suficiente para encaixar o serrote no lugar. Ele e Tsion começaram a serrar,
revezando-se, a madeira resistente, uma tarefa que parecia não terminar nunca em razão da
lâmina sem corte do serrote.
Eles tomaram o devido cuidado para não atingir o corpo de Sandy Moore com o serrote. O
formato do local serrado fazia lembrar os caixões de pinho nos quais os vaqueiros eram
enterrados no velho oeste. Quando eles serraram o assoalho até a altura da cintura de Sandy,
o peso da parte superior de seu corpo fez a madeira do assoalho ceder, e ela caiu nos braços
de Buck. Ele prendeu a respiração, lutando para manter o equilíbrio. Sua camisa ficou coberta
de sangue pegajoso, e Sandy parecia leve e frágil como uma criança.
Tsion ajudou Buck a descer da escada. Enquanto levava o corpo para o quintal da casa, Buck
pensava que talvez tivesse de fazer o mesmo com o de Chloe na casa de Loretta. Ele deitou
cuidadosamente o corpo sobre a grama umedecida pelo orvalho. Em seguida, Buck e Tsion
começaram a cavar uma sepultura rasa. O trabalho era fácil porque o terremoto remexera a
parte superior do solo. Antes de enterrarem o corpo, Buck enfiou a mão no bolso, pegou a
aliança de Donny, colocou-a na palma da mão de Sandy, e fechou-a. Depois de cobrirem-na
com terra, Tsion ajoelhou-se, e Buck fez o mesmo.
Tsion não conhecera Donny nem sua mulher. Ele não fez um ofício fúnebre. Simplesmente
recitou a letra de um hino antigo, fazendo com que Buck rompesse em soluços tão altos
que podiam ser ouvidos do outro lado do quarteirão. Porém, não havia ninguém por perto, e
ele não conseguia conter os soluços.
“Eu te amarei na vida, e te amarei na morte,
E, enquanto neste mundo eu viver, eu te louvarei;
Quando o frio da morte sobre mim se abater,
Será esse, Jesus, o momento em que mais te amarei.”
Buck e Tsion encontraram dois quartos pequenos no pavimento superior, um com uma cama
de casal, o outro com uma cama de solteiro.
- Fique com a cama maior - insistiu Tsion. - Vou orar para que em breve Chloe esteja aqui a
seu lado.
Buck aceitou. Ele entrou no banheiro e tirou as roupas sujas de barro e sangue. Tendo apenas
a lanterna para iluminar o ambiente, ele lavou-se na pia. Encontrou uma toalha grande para
enxugar-se e desabou na cama de Donny e Sandy Moore.
Buck dormiu o sono da morte, orando para que nunca mais precisasse acordar.
Depois de um tempo que pareceu uma eternidade, Rayford foi despertado por um telefonema
de seu co-piloto. O relógio marcava nove horas da manhã de terça-feira na Nova Babilónia, e
ele tinha de enfrentar um novo dia, quisesse ou não. Pelo menos, contava com a possibilidade
de conversar com Mac sobre Deus.
39
CINCO
Rayford estava participando de um farto desjejum ao lado de um bando de gente desnorteada.
Do outro lado, dezenas de asseclas debruçavam-se sobre mapas e tabelas, falavam ao mesmo
tempo ao telefone e aglomeravam-se perto do rádio. Ele comia em completo estado de torpor,
enquanto Mac, sentado a seu lado, tamborilava com os dedos na mesa e balançava um dos
pés. Carpathia estava sentado diante de uma mesa não muito distante da sua sala, na
companhia de Fortunato e outros funcionários graduados. Com o telefone celular colado ao
ouvido, ele conversava animadamente, de costas para o resto do pessoal.
Rayford olhou-o com desinteresse. No momento, estava menos preocupado consigo mesmo,
com sua decisão. Se fosse verdade que Amanda morrera no 747, ele agora só teria de
preocupar-se com Chloe, Buck e Tsion. Ou seria ele o único membro do Comando Tribulação que
sobrevivera?
Rayford não tinha o mínimo interesse em saber com quem Carpathia estava conversando. Se
ele dispusesse de um aparelho de escuta clandestina, não faria o menor gesto para ligá-lo. Ele
havia orado antes de comer, uma oração ambivalente de agradecimento pelo alimento
proporcionado pelo anticristo. Mesmo assim, ele se alimentou. E isso lhe fez bem. Seu estado
de espírito animou-se. Não poderia de jeito nenhum compartilhar sua fé com Mac, se ele
permanecesse atemorizado. A inquietação de Mac o deixava nervoso.
- Ansioso para voar? - perguntou Rayford.
- Ansioso para falar, mas não aqui, onde há muitos ouvidos. Mas você está disposto a
conversar, Rayford? Com tudo o que está sofrendo?
Nunca ninguém parecera estar tão disposto a conversar sobre Deus quanto Mac. Por que tudo
aconteceu desta maneira? Na ocasião em que Rayford estava ansioso demais para falar sobre
Deus, tentou a conversão de seu antigo chefe, o piloto Earl Halliday, que não demonstrara
nenhum interesse e agora estava morto. Tentou sem sucesso falar sobre Deus com Hattie
Durham, e agora ele só podia orar suplicando que ainda houvesse tempo para ela converter-se.
E ali estava Mac, implorando para conhecer a verdade, e Rayford só pensava em voltar para a
cama.
Ele cruzou as pernas e os braços. Precisava esforçar-se para não permanecer parado. Carpathia
deu meia-volta na poltrona giratória e encarou-o, ainda falando ao telefone. Nicolae acenou-lhe
efusivamente, mas em seguida pareceu pensar melhor e desistiu de demonstrar entusiasmo a
um homem que acabara de perder a esposa. Sua expressão tornou-se sombria e seu aceno
esmoreceu. Rayford não esboçou nenhuma reação e manteve o olhar fixo em Carpathia.
Nicolae chamou-o com um gesto.
- Oh, não - disse Mac. - Vamos embora, vamos embora. Mas eles não podiam desprezar
Carpathia.
Rayford estava irritado. Não queria conversar com Carpathia; Carpathia queria conversar com
ele. Carpathia podia prejudicar Rayford. No que eu me tornei?, pensou Rayford. Ele estava
fazendo jogo com o potentado do mundo. Atitude mesquinha. Tola. Imatura. Mas não me
importo.
Carpathia desligou o telefone e colocou-o no bolso. Acenou para Rayford, o qual fingiu não
perceber e deu-lhe as costas. Rayford inclinou-se para Mac e perguntou-lhe:
- Então, o que você vai me ensinar hoje?
- Não olhe agora, mas Carpathia deseja falar com você.
- Ele sabe onde estou.
- Ray! Ele ainda pode mandá-lo para a prisão.
- Eu gostaria que ele me mandasse para lá. Então, o que você vai me ensinar hoje?
- Ensinar você! Você já pilotou helicópteros.
- Isso foi há muito tempo - disse Rayford. - Faz mais de vinte anos.
- Pilotar helicóptero é o mesmo que andar de bicicleta - disse Mac. - Em uma hora, você estará
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tão craque quanto eu.
Mac olhou por cima do ombro de Rayford, levantou-se e estendeu a mão.
- Pois não, potentado Carpathia.
- Preciso falar alguns instantes com o capitão Steele. Você nos daria licença, piloto McCullum?
- Espere-me no hangar, Mac - disse Rayford.
Carpathia arrastou a cadeira de McCullum para perto de Rayford e sentou-se. Desabotoou o
paletó e inclinou-se para a frente com os antebraços apoiados nos joelhos. Rayford continuou de
pernas e braços cruzados.
- Rayford - disse Carpathia demonstrando sinceridade -, espero que você não se importe por
eu chamá-lo pelo primeiro nome. Sei que está sofrendo muito.
Rayford sentiu um gosto amargo na boca. "Senhor", ele orou silenciosamente, "mantém minha
boca fechada." Ele só podia deduzir que aquela incorporação do demónio era o mais repugnante
de todos os mentirosos. Imagine só! Dar a entender que Amanda era espia ele, uma informante
infiltrada no Comando Tribulação a serviço da Comunidade Global, e depois fingir tristeza por sua
morte? Um golpe fatal na cabeça seria bom demais para ele. Rayford imaginou estar torturando
o homem que conduzia as forças do mal contra o Deus do universo.
- Eu gostaria que você tivesse chegado aqui mais cedo, Rayford. De qualquer forma, estou feliz
por você ter conseguido descansar. Mas a maioria de nós ficou entretida com a história que Leon
Fortunato contou ontem à noite.
- Mac me contou por alto.
- Sim, o piloto McCullum ouviu a história duas vezes. Você deveria pedir-lhe que a contasse
novamente. Melhor ainda, marque um encontro com o Sr. Fortunato.
- Conheço a dedicação de Leon ao senhor - foi tudo o que Rayford pôde dizer como homem
civilizado.
- Por eu ser como sou. Mas até eu fiquei comovido e lisonjeado com as palavras dele.
Rayford conhecia a história, mas não pôde resistir à tentação de apoquentar Carpathia.
- Não me causa surpresa o fato de Leon estar agradecido porque o senhor o salvou.
Carpathia endireitou-se na cadeira, com ar divertido.
- McCullum ouviu a história duas vezes e disse isso? Você não ficou sabendo? Eu não salvei
Fortunato! Eu não salvei a vida dele! Conforme ele disse, eu o ressuscitei.
- De fato.
- Não sou eu que estou dizendo isso, Rayford. Estou lhe contando o que Fortunato diz.
- O senhor estava presente. Qual é a sua história?
- Bem, quando soube que meu assessor de confiança e meu confidente pessoal estava no meio
das ruínas de nossa sede, algo tomou conta de mim. Simplesmente, recusei-me a acreditar. Não
queria que fosse verdade. Cada fibra de meu ser dizia que eu devia ir, sozinho, até o local e
trazê-lo de volta.
- Que pena o senhor não ter levado testemunhas.
- Você não acredita em mim?
- Parece história da carochinha.
- Você precisa conversar com o Sr. Fortunato.
- Não estou nem um pouco interessado.
- Rayford, aquela pilha de 15 metros de tijolos, argamassa e escombros tinha sido um edifício de
60 metros de altura. Leon Fortunato estava comigo no último andar quando o edifício começou
a desabar. Apesar de todas as precauções que tomamos contra terremotos, todos os que lá
estavam devem ter morrido. E morreram. Você sabe que não houve sobreviventes.
- O senhor está querendo dizer que, segundo afirmação de Leon e sua, ele morreu na queda.
- Eu chamei por ele no meio daquelas ruínas. Ninguém podia ter sobrevivido.
- Mas ele sobreviveu.
- Ele não sobreviveu. Estava morto. Tinha de estar morto.
- E como o senhor o tirou de lá?
- Eu ordenei que ele voltasse a viver, e assim foi.
Rayford inclinou-se para a frente.
- Isso deve fazer o senhor acreditar na história de Lázaro.
Que pena ela estar escrita em um livro de contos de fadas, hein?
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- Preste atenção, Rayford, tenho sido tolerante demais e nunca menosprezei suas crenças. Nem
tenho escondido que, em minha opinião, você é, no mínimo, um homem mal orientado. Mas
minha resposta é sim. Sua pergunta me fez parar para pensar que este incidente refletiu uma
história que acredito ter sido fantasiosa.
- É verdade que o senhor usou as mesmas palavras que Jesus usou para ressuscitar Lázaro?
- É o que o Sr. Fortunato diz. Não sei exatamente o que eu disse. Saí daqui com plena confiança
de que voltaria com ele, e minha determinação jamais vacilou, nem mesmo quando vi aquela
montanha de ruínas e sabia que as equipes de resgate não haviam encontrado nenhum
sobrevivente.
Rayford sentia vontade de vomitar.
- Então o senhor passou a ser uma espécie de divindade?
- Não sou eu quem deve dizer isso, embora tenha de admitir que ressuscitar um homem é um
ato divino. O Sr. Fortunato acredita que eu possa ser o Messias.
Rayford levantou as sobrancelhas.
- Se eu fosse o senhor, trataria de desmentir isso rapidamente, a não ser que eu tivesse
certeza de ser o Messias.
Carpathia acalmou-se.
- O momento não é apropriado para eu fazer tal afirmação, mas não estou tão certo de que
isso não seja verdade.
Rayford semicerrou os olhos.
- O senhor pensa que talvez seja o Messias.
- Só posso lhe dizer, principalmente depois do que aconteceu ontem à noite, que não descarto
essa possibilidade.
Rayford colocou as mãos nos bolsos e olhou para um ponto distante.
- Vamos, Rayford. Não pense que não estou vendo sua ironia. Não sou cego. Conheço uma
facção por aí, da qual fazem parte muitos dos que vocês chamam de santos da tribulação, que
me classifica como um anticristo, ou como o próprio anticristo. Eu gostaria muito de provar o
contrário.
Rayford inclinou-se para a frente, tirou as mãos dos bolsos e entrelaçou os dedos.
- Deixe-me ver se eu entendi. Existe uma possibilidade de que o senhor seja o Messias, mas o
senhor ainda não sabe ao certo?
Carpathia assentiu solenemente.
- Isso não faz sentido - disse Rayford.
- Os assuntos referentes à fé são misteriosos – prosseguiu Carpathia. - Insisto em que você
converse com o Sr. Fortunato e tire suas conclusões.
Rayford não prometeu nada. Olhou em direção à porta de saída.
- Sei que você precisa ir, capitão Steele. Eu só queria contar-lhe o tremendo progresso já
alcançado quanto às minhas iniciativas de reconstrução. Até amanhã cedo, esperamos ter
condições de nos comunicar com metade do mundo. Nessa ocasião, farei um pronunciamento a
todos os que puderem me ouvir. - Carpathia retirou uma folha de papel do bolso do paletó. -
Nesse ínterim, gostaria que você e o Sr. McCullum equipassem o 216 com tudo o que for
necessário e dessem um giro ao redor do mundo a fim de trazer os embaixadores
internacionais para fazerem companhia aos que já estão aqui.
Rayford examinou a lista. Parecia que ele teria de voar mais de vinte mil milhas.
- Onde o senhor está reconstruindo pistas para aeronaves? - ele indagou.
- As forças da Comunidade Global estão trabalhando contra o relógio em todos os países do
mundo. O sistema Celular-Solar ligará o mundo inteiro dentro de algumas
semanas. Todos os que não estão trabalhando neste projeto estão reconstruindo pistas para
aeronaves, estradas e centros de comércio.
- E a minha incumbência é esta - disse Rayford secamente.
- Eu queria que você conhecesse seu itinerário assim que fosse estabelecido. Você observou
que há um nome no verso?
Rayford virou a folha, onde se lia: "Supremo Pontífice Peter Mathews, Fé Mundial Enigma
Babilónia."
- Devo trazê-lo também?
42
- Embora ele esteja em Roma, pegue-o em primeiro lugar.
Eu gostaria que ele estivesse no avião quando os demais embaixadores embarcarem.
Rayford deu de ombros. Ele não sabia ao certo por que Deus o colocara naquela posição, mas,
enquanto não sentisse que chegara o momento de abandonar tudo, iria em frente.
- Mais uma coisa - disse Carpathia. - O Sr. Fortunato irá com você para servir de anfitrião ao
pessoal.
Rayford deu de ombros novamente.
- Agora posso fazer-lhe uma pergunta? - disse Rayford.
Carpathia assentiu, levantando-se. - O senhor poderia me informar quando começará a
operação dragagem?
- Operação o quê?
- A retirada do Pan-Con 747 do rio Tigre – respondeu Rayford, sem demonstrar nenhuma
emoção.
- Ah, sim. Devo dizer-lhe, Rayford, que me informaram que será um trabalho inútil.
- O senhor está pensando em não fazer isso?
- É bem provável que não faremos. A empresa aérea nos passou a lista dos que estavam a
bordo, e sabemos que não houve sobreviventes. Já temos problemas demais com os
corpos de tantas vítimas desta catástrofe. Fui aconselhado a considerar aquela aeronave como
uma cripta funerária sagrada.
Rayford sentiu o rosto arder, e um completo abatimento tomou conta dele.
- O senhor não vai querer provar-me que minha mulher está morta, vai?
- Ora, Rayford, ainda existe alguma dúvida?
- Acho que sim. Não parece que ela está morta, se é que o senhor sabe o que estou querendo
dizer... bem, claro que não sabe.
- Sei que é difícil acreditar que alguém que amamos morreu enquanto não virmos o corpo. Mas
você é um homem inteligente. O tempo se encarrega de curar...
- Quero que o avião seja retirado do rio. Quero saber se minha mulher está viva ou morta.
Carpathia aproximou-se de Rayford por trás e colocou as mãos em seus ombros. Rayford
fechou os olhos, desejando que aquele homem sumisse dali. Carpathia falou em tom de
conforto.
- Agora só falta você me pedir que ressuscite sua mulher.
Rayford retrucou com os dentes cerrados:
- Se o senhor é o que pensa ser, tem o dever de retirar aquele avião do rio para um de seus
funcionários mais confiáveis.
Buck dormira por cima da colcha da cama. Agora, bem depois da meia-noite, ele achava que
seu sono não durara mais de duas horas. Sentou-se na cama e enfiou-se debaixo dos
cobertores, sem querer sair dali. Mas o que o despertara? Será que ele vira luzes tremeluzindo
no corredor?
Só podia ter sido um sonho. Com certeza, a energia elétrica só seria restabelecida em Monte
Prospect dentro de dias, talvez semanas. Buck prendeu a respiração. Agora ele ouvia um ruído
vindo do outro quarto, o som baixo e cadenciado da voz de Tsion Ben-Judá. Será que algum
barulho também o havia despertado? Tsion estava orando em seu idioma. Buck
gostaria de entender hebraico. A oração foi ficando cada vez mais fraca, e Buck ajeitou-se na
cama e virou para o outro lado. Enquanto adormecia, ele lembrou-se de que na manhã
seguinte precisava dar uma última olhada nos arredores da casa de Loretta - em mais uma
tentativa desesperada de encontrar Chloe.
Rayford encontrou Mac sentado na poltrona do piloto do helicóptero, com o motor desligado. Ele
estava lendo.
- Finalmente ele o largou, não? - disse Mac. Rayford sempre ignorava perguntas óbvias. Apenas
meneou a cabeça.
- Não sei como ele consegue isto - prosseguiu Mac.
- Isto o quê?
Mac balançou a revista.
43
- A última edição da Modern Avionics [Aviação Moderna].Onde Carpathia conseguiu isto? E como
ele sabia que devia guardá-la no abrigo?
- Quem é capaz de saber? - disse Rayford. - Talvez ele seja o deus que pensa ser.
- Ontem à noite, eu lhe falei sobre a heresia de Leon.
- Carpathia me contou a história de novo.
- O quê? Então ele concorda com Leon que é uma divindade?
- Ele ainda não chegou lá - disse Rayford. - Mas vai chegar. A Bíblia diz que ele vai.
- Caramba! - exclamou Mac. - Você vai ter de começar pelo princípio.
- Está bem, está bem - disse Rayford, desdobrando a folha de papel com a lista dos
passageiros de Carpathia. - Antes de tudo, deixe-me mostrar-lhe isto. Depois de meu
treinamento, quero que você planeje um roteiro para estes países.
Primeiro, pegaremos Mathews em Roma. Depois, iremos para os Estados Unidos e pegaremos
todos os outros embaixadores no caminho de volta. Mac analisou a folha.
- Deve ser fácil. Preciso de uma hora ou pouco mais para planejar esse roteiro. Há locais de pouso
em todos estes lugares?
- Chegaremos o mais perto que pudermos. Como precaução, colocaremos o helicóptero e um
avião no compartimento de carga.
- E quando começaremos a falar do nosso assunto?
- O período de treinamento deve durar até às 17 horas, você não acha?
- Não! Eu já lhe disse que você não precisa ser treinado.
- Faremos uma pausa para almoçar em algum lugar – disse Rayford. - E depois ainda teremos
várias horas para o treinamento, certo?
- Você não está me entendendo, Ray. Você não precisa de um dia inteiro para aprender a
manejar este brinquedo. Você sabe que estas coisas voam sozinhas.
Rayford curvou-se em direção a Mac.
- Quem não está entendendo quem? - ele perguntou. - Você e eu estamos longe do abrigo
hoje, treinando até às 17 horas. Entendido?
Mac sorriu timidamente.
- Oh! Você aprende a pilotar isto até mais ou menos às 13 horas, e ainda teremos tempo até às
17.
- Você entende rápido.
Rayford tomava notas enquanto Mac lhe explicava cada comando, cada botão, cada chave. Com
as hélices funcionando à velocidade máxima, Mac manipulou os controles até o helicóptero
levantar vôo. Continuou a fazer uma série de manobras, virando de um lado para o outro,
descendo e subindo.
- Logo, logo vou passar o comando para você, Ray.
- Antes deixe-me perguntar-lhe uma coisa, Mac. Você está trabalhando há muito tempo nesta
área, não?
- Há muitos anos - respondeu Mac, voando lentamente em direção ao sul.
- Então conhece as pessoas daqui.
- Os locais, é isto o que você quer dizer? Sim. Tenho condições de dizer se algum deles resistiu
ao terremoto. O que você está procurando?
- Equipamento de mergulho.
Mac olhou de relance para Rayford, o qual não o encarou.
- Há um novo para o meio do deserto. Onde você quer mergulhar? No Tigre? - Mac deu um
sorriso irónico, mas Rayford lançou-lhe um olhar sério, e ele empalideceu. - Oh, desculpe-me,
Rayford. Homem, você não está disposto a fazer isso, está?
- É o que mais quero no momento, Mac. Você conhece ou não alguém que tenha esse
equipamento?
- Deixe que eles façam o trabalho, Ray.
- Carpathia diz que vai deixar o avião como está.
Mac meneou a cabeça.
- Não conheço, Ray. Você já mergulhou em algum rio?
- Sou um bom mergulhador. Mas nunca mergulhei em rio.
- Bem, eu já, mas não é a mesma coisa, acredite em mim. A correnteza é igual tanto na
44
superfície como no fundo. A gente passa a metade do tempo tentando não ser levado pela
correnteza. Você pode conseguir um equipamento desses a pouco menos de 500 quilómetros a
sudeste do Golfo Pérsico.
Rayford não estava para brincadeiras.
- Que história é essa, Mac? Você sabe onde posso encontrar um?
- Sim, conheço um sujeito que sempre consegue qualquer coisa que quero. Nunca vi um
equipamento de mergulho por aqui, mas se houver e se o sujeito ainda estiver vivo, ele é capaz
de conseguir.
- Quem é ele e onde podemos encontrá-lo?
- Ele é cidadão daqui. Dirige a torre da pista de aterrissagem em Al Basrah. Fica a noroeste de
Abada, onde o rio Tigre passa a ser chamado de Chatt-el-Arab. Eu não me atreveria a
pronunciar o nome daquele sujeito. Todos os seus clientes o conhecem por Al B. Eu o chamo de
Albie.
- E qual é a dele?
- Ele assume todos os riscos. Cobra o dobro e não quer saber de perguntas. Se você for pego
com material contrabandeado, ele vai dizer que nunca o viu na vida.
- Você tentaria localizá-lo para mim?
- Seu pedido é uma ordem.
- Você sabe do que estou falando, Mac.
- O risco é grande.
- Ser honesto com você já é um risco, Mac.
- Como você sabe que pode confiar em mim?
- Não sei. Não tenho alternativa.
- Muitíssimo obrigado.
- Você sentiria o mesmo se estivesse em meu lugar.
- É verdade - disse Mac. - Só o tempo provará que não sou um vira-casaca.
- Sim - disse Rayford, sentindo-se descuidado como nunca havia sido. - Se você não for um
amigo, não há nada que eu possa fazer no momento.
- Hã, hã. Mas será que um delator faria um mergulho tão perigoso com você?
Rayford encarou Mac.
- Eu não poderia pedir-lhe isso.
- Você não vai me impedir. Se o sujeito conseguir roupas de mergulho e um tanque de oxigénio
para você, poderá conseguir também para mim.
- E por que você faria isso?
- Bem, não é só para me testar. Eu gostaria de ter você por perto por mais uns tempos. Você
merece saber se sua mulher está debaixo d'água. Se aquele mergulho é perigoso para
duas pessoas, imagine para uma só.
- Preciso pensar no assunto.
- Pare de pensar tanto, pelo menos uma vez na vida. Vou com você, e ponto final. Tenho de
encontrar um jeito de manter você vivo o tempo suficiente para me contar o que o demónio
está fazendo desde os desaparecimentos.
- Pouse o helicóptero - disse Rayford -, e eu lhe contarei.
- Aqui? Agora?
-Já.
Mac voou alguns quilómetros até onde Rayford pôde avistar a cidade de Al Hillah. Derivou para
a esquerda e rumou para o deserto, pousando no meio de um lugar qualquer. Desligou o
motor rapidamente para evitar levantamento de areia. Mesmo assim, a areia grudou nas costas
das mãos e nos lábios de Rayford.
- Deixe-me passar para o seu lugar - disse Rayford, desatando o cinto de segurança.
- De jeito nenhum - disse Mac. - A próxima coisa que você vai fazer é tentar ligar o helicóptero
e levantar vôo. Sei que você pode fazer isso e que não é perigoso, mas Deus sabe que
ninguém aqui pode me dar ordens. Agora desça, vamos.
Rayford saltou na areia. Mac fez o mesmo. Caminharam a esmo meia hora debaixo do sol. As
roupas de Rayford estavam encharcadas de suor. Finalmente, Rayford decidiu voltar ao
helicóptero, onde eles se encostaram do lado onde havia sombra.
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Ele contou a Mac a história inteira de sua vida, começando a falar do lar onde cresceu - uma
família decente, trabalhadora, mas sem cultura. Rayford demonstrava inclinação para
matemática e ciências e sentia-se fascinado pela aviação. Tirava boas notas, mas seu pai não
tinha condições de mandá-lo para a faculdade. Uma conselheira do curso secundário disse-lhe
que ele poderia conseguir uma bolsa de estudo, mas precisava incluir algo mais em seu
currículo.
"Por exemplo?", perguntara-lhe Rayford.
"Atividades extracurriculares, cursos em escolas do governo, essas coisas."
"Que tal eu pilotar um avião sozinho antes de me formar?"
"Seria bom demais", ela admitiu.
"Já pilotei."
Aquilo o ajudou a estudar na faculdade e depois a receber treinamento em voos militares e
comerciais. Durante todo o tempo, ele repetia:
- Eu era um sujeito legal. Bom cidadão - você sabe como é, disciplina rigorosa. Bebia pouco,
paquerava pouco. Nunca fazia nada ilegal. Nunca me considerei um malandro. Sempre fui um
patriota. Cheguei a frequentar a igreja. Rayford contou a Mac que se apaixonou por Irene desde
o início.
- Eu a achava muito sentimental - ele admitiu -, mas ela era bonita, carinhosa e altruísta. Ela
me surpreendeu. Eu a pedi em casamento, ela aceitou, e, apesar de gostar muito mais que eu
de frequentar a igreja, eu não queria perdê-la.
Rayford contou como ele quebrou sua promessa de ser um frequentador assíduo da igreja.
- Tivemos nossas brigas, e Irene chorava muito, mas percebi que ela se conformou com o fato
de que, pelo menos na área da religião, eu era um sujeito em quem não se podia confiar. Fui
um marido fiel, abastecia minha casa e respeitava a comunidade. Achei que ela vivia bem com
o que eu lhe proporcionava. De qualquer forma, ela nunca me forçou a nada. Irene jamais
poderia ser feliz, mas eu dizia a mim mesmo que não me importava. E não me importava
mesmo. Quando Chloe nasceu, virei uma página nova da minha vida. Acreditava ser um novo
homem. O nascimento dela me fez acreditar em milagres, forçou-me a reconhecer a presença
de Deus, e desejei ser o melhor pai e marido do mundo. Não fiz nenhuma promessa. Apenas
voltei a frequentar a igreja com Irene.
Rayford prosseguiu explicando como se deu conta de que frequentar a igreja não era tão mau
assim.
- Víamos na igreja as mesmas pessoas que víamos no clube de campo. Comparecíamos,
entregávamos nossas ofertas, cantávamos hinos, fechávamos os olhos na hora das orações e
prestávamos atenção nas pregações. De vez em quando, um sermão ou parte dele me
ofendia. Mas eu não fazia caso. Ninguém estava me controlando. Nossos amigos também se
ofendiam com as mesmas coisas. Eu achava que estavam pisando em meus calos, mas isso
nunca aconteceu duas vezes seguidas.
Rayford disse que nunca parou para pensar em céu ou inferno.
- Eles não falavam muito sobre esses assuntos. Bem, não falavam nunca sobre o inferno. O
céu era um lugar para onde todos iriam. Eu não queria ficar constrangido no céu por ter
praticado muitas coisas más. Eu me comparava com os outros sujeitos e ficava imaginando
que, se eles conseguissem ir para o céu, eu também conseguiria. Uma coisa é certa, Mac, eu
era feliz. Conheço gente que diz sentir um vazio na vida, mas eu não. Para mim, a vida era
assim. O mais interessante de tudo era que Irene dizia sentir-se vazia. Eu discutia com ela. Às
vezes, discutíamos muito. Eu a forçava a lembrar-se de que voltara para a igreja e que ela não
precisava fazer chantagem comigo. Que mais ela poderia desejar?
Rayford prosseguiu contando que Irene desejava algo mais. Algo mais profundo. Suas amigas
falavam-lhe de um relacionamento pessoal com Deus, e isso a intrigava.
- Aquilo me assustava demais - ele disse. - Eu repetia a frase para que ela entendesse que
essa afirmação soava como maluquice de alguém: "Relacionamento pessoal com Deus?"
E ela respondia: "Sim. Por meio de seu Filho, Jesus Cristo." -
Rayford meneou a cabeça. - Bem, você pode imaginar como me senti.
Mac balançou a cabeça afirmativamente.
- Sei o que você deve ter pensado - ele disse.
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- A religião que eu professava era suficiente para me fazer sentir bem. Dizer em voz alta
palavras como Deus ou Jesus Cristo diante de outras pessoas? Aquilo era tarefa para
pastores, sacerdotes e teólogos. Eu concordava com aqueles que diziam que religião é assunto
de foro íntimo. Qualquer um que tentasse me convencer de alguma coisa extraída da Bíblia ou
compartilhar sua fé comigo era considerado direitista, zelote, fundamentalista ou coisa
parecida. Eu me mantinha afastado deles o mais que podia.
- Entendo o que você está dizendo - interrompeu Mac. - Havia sempre alguém por perto
tentando "ganhar almas para Jesus".
Rayford assentiu.
- Bem, agora vou avançar alguns anos. Nasceu Rayford Júnior. A sensação foi a mesma de
quando Chloe nasceu. E devo admitir que sempre quis ter um filho homem. Imaginei que Deus
devia estar satisfeito comigo e abençoou-me com um filho. E agora vou dizer-lhe uma coisa que
pouquíssimas pessoas sabem, Mac. Fui infiel a Irene enquanto ela estava grávida de Raymie.
Bebia, arrumava companhia nas festas de Natal da empresa, e isso foi uma tolice minha. Eu
sentia muita culpa, não por causa de Deus, mas por causa de Irene. Ela não merecia aquilo.
Mas nunca desconfiou de nada, o que era pior ainda. Eu sabia que ela me amava. Cheguei à
conclusão de que eu era um crápula e fazia todos os tipos de barganha com Deus. Em
determinado momento, cheguei a pensar que Ele poderia me castigar. Eu lhe disse que
abandonaria tudo e supliquei que Ele não permitisse que nosso bebé em gestação morresse.
Se tivesse acontecido alguma coisa errada com nosso bebé, não sei o que eu teria feito. Mas o
bebé nasceu perfeito.
Rayford contou que logo a seguir foi promovido e recebeu aumento de salário. A família mudouse
para uma bela casa em um bairro elegante. Ele continuou a frequentar a igreja e voltou a
apreciar a vida.
- Mas...
- Mas? - perguntou Mac. - O que aconteceu depois?
- Irene mudou de igreja - disse Rayford. - Você está com fome?
- O que você disse?
- Você está com fome? Já são quase 13 horas.
- Que belo contador de histórias você é! Deixar-me neste suspense para que você possa
almoçar? Depois de me contar toda essa história, inclusive que Irene mudou de igreja, você
deduziu que eu estou com fome.
- Escolha um lugar para almoçarmos - disse Rayford. – Eu dirijo o helicóptero até lá.
- Você é quem sabe.
47
SEIS
Rayford passou vinte minutos pondo em risco a sua vida e a de Mac. A habilidade para pilotar
um helicóptero nunca termina, mas, com o avanço da tecnologia, ele precisaria acostumar-se
para saber lidar com o que tinha em mãos. Rayford se lembrava de ter pilotado helicópteros
grandes, lentos, pesados. Este voava como uma libélula. O acelerador de mão era tão sensível
quanto um manche, e Rayford constatou que não estava apto a pilotá-lo. Derivou para um
lado - com uma manobra muito forte e muito rápida - e depois para o outro, endireitando o
corpo rapidamente, mas inclinando-se outra vez.
- Estou quase vomitando! - gritou Mac.
- Em meu helicóptero não, de jeito nenhum! – disse Rayford.
Ele diminuiu a altitude quatro vezes; na segunda, a manobra foi forte demais.
- Isso não acontecerá novamente - ele prometeu. – Agora peguei o jeito - disse assim que
ganhou altitude pela última vez. - Agora vai ser fácil manter a direção e o equilíbrio.
- Eu mereço tudo isso - disse Mac. - Você vai querer pilotar o tempo todo, até onde Albie
trabalha?
- Você está dizendo pousar em um aeroporto, diante de pessoas estranhas?
- Um batismo de fogo. - Mac indicou-lhe a rota. - Mantenha o helicóptero naquela direção, e
poderemos tirar uma soneca até enxergarmos a torre de Al Basrah. Alinhe-o, deixe que ele vá
sozinho e me conte a história da nova igreja de Irene.
Rayford passou a viagem terminando sua história. Contou que o fato de Irene sentir-se
frustrada por não encontrar nada profundo, nem substancioso, nem pessoal na igreja que
frequentavam serviu como desculpa para ele comparecer com menos assiduidade. Quando
Irene chamou-lhe a atenção, ele retrucou que ela também não se sentia satisfeita naquela
igreja.
- Quando eu parei de acompanhá-la, ela começou a procurar outra denominação. Conheceu
algumas mulheres simpáticas de uma igreja desconhecida, e elas a convidaram para um estudo
bíblico. Foi lá que Irene ouviu falar alguma coisa sobre Deus que até então nunca soubera
encontrar na Bíblia. Ela descobriu onde ficava a igreja, começou a frequentá-la e conseguiu
arrastar-me até lá.
- O que ela ouviu de diferente?
- Já estou chegando lá.
- Não enrole muito.
Rayford conferiu os controles para ver se estava na altura correta.
- Eu disse para você não enrolar muito a história – disse Mac.
- Bem, eu não entendi a nova mensagem da igreja - prosseguiu Rayford. - Na verdade, nunca
entendi até Irene ser arrebatada. A igreja era completamente diferente da que eu conhecera.
Eu me sentia desconfortável. Quando os crentes não me viam por lá, imaginavam que eu
estivesse trabalhando. Quando eu comparecia, faziam perguntas sobre meu trabalho, e eu me
limitava a sorrir e dizer-lhes que a vida era maravilhosa. Mesmo quando eu estava em casa,
comparecia esporadicamente. Na época, minha filha Chloe era adolescente, e ela seguia meu
exemplo. Se o pai não precisava ir, ela também não precisava. Irene, contudo, gostava demais
da nova igreja. Ela me deixava nervoso quando começava a falar sobre pecado, salvação da
alma, perdão e sangue de Cristo. Dizia que aceitara Cristo e nascera de novo. Ela começou a
me pressionar, mas eu não queria saber de nada. Aquilo me soava como uma esquisitice. Um
fanatismo. As pessoas pareciam satisfeitas, mas eu estava certo de que seria pressionado a
bater nas portas das casas e entregar folhetos ou coisa parecida. Encontrei mais motivos ainda
para não ir à igreja. Um dia, Irene começou a falar que o pastor Billings estava pregando sobre
o fim dos tempos e a volta de Cristo. Ele chamava isso de Arrebatamento. Ela me disse mais ou
menos isto: "Não seria maravilhoso não morrer e ir ao encontro de Jesus no ar?" Eu lhe
respondi: "Ah, sim, isso faria de mim um homem morto." Ela ofendeu-se. Disse-me para ser
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menos petulante e que eu não sabia para onde estava indo. Aquilo me deixou furioso. Eu lhe
disse que me sentia feliz por ela estar tão certa de tudo isso. Disse-lhe que ela iria para o céu,
e eu, direto para o inferno. Ela não gostou nem um pouco daquilo.
- Posso imaginar - disse Mac.
- O assunto sobre a igreja tornou-se tão banal que passamos a evitá-lo. Comecei a ter
novamente meus acessos de paixão e fiquei de olho em minha comissária de bordo.
- Oh! - disse Mac.
- Vou contar-lhe. Saímos para tomar alguns drinques, jantamos juntos, mas tudo não passou
disso. Não que eu não quisesse. Uma noite, decidi que a convidaria para sairmos juntos
quando chegássemos a Londres. De repente, decidi antecipar o convite. Estávamos
sobrevoando o Atlântico no meio da noite num 747 completamente lotado. Liguei o piloto
automático e saí à procura dela.
Rayford fez uma pausa, indignado consigo mesmo por ter afundado tanto. Mac olhou para ele.
- E daí?
- Todos se lembram de onde estavam no momento dos desaparecimentos.
- Você não está dizendo que... - disse Mac.
- Eu estava tentando marcar um encontro quando todas aquelas pessoas desapareceram.
- Caramba!
Rayford respirou fundo.
- Ela queria saber o que estava acontecendo. Íamos morrer? Eu disse a ela que não
morreríamos, mas não sabia o que iria acontecer. Na verdade, eu sabia. Irene estava certa.
Cristo viera para arrebatar sua igreja, e nós havíamos sido deixados para trás.
Rayford tinha muito mais para contar, é claro, mas antes queria que o assunto fosse
compreendido. Mac olhava firme para a frente. De vez em quando, ele virava, suspirava e
depois voltava à posição anterior enquanto ambos se dirigiam para Al Basrah.
Mac verificou sua prancheta de anotações e examinou os relógios do painel.
- Já estamos perto - ele disse. - Vou verificar. - Ele ajustou a frequência e apertou o botão
do microfone. - Golf Charlie Nove Nove para torre Al Basrah. Estática.
- Torre Al Basrah, aqui é Golf Charlie Nove Nove. Estou mudando para canal onze,
câmbio. - Mac fez a mudança e repetiu a chamada.
- Torre Al Basrah - veio a resposta. - Prossiga Nove Nove.
- Albie está aí?
- Permaneça na escuta, nove.
Mac virou-se para Rayford.
- Daqui até lá é um pulinho - ele disse.
- Golf Charlie, Albie falando, câmbio.
- Albie, seu malandro! Aqui é Mac! Você está bem?
- Não muito, meu amigo. Acabamos de levantar uma torre provisória. Perdemos dois
hangares. Estou andando de muletas. Por favor, não traga aeronaves grandes para cá.
Pelo menos nos próximos dois ou três dias.
- Estamos num helicóptero - disse Mac.
- Então sejam bem-vindos - disse Albie. - Precisamos de ajuda. Precisamos de
companhia.
- Não vamos ficar muito tempo aí, Albie. Chegaremos em trinta minutos.
- Positivo, Mac. Acompanharemos seu vôo.
Rayford viu Mac morder os lábios.
- Que alívio! - Mac murmurou, com voz trémula. Verificou os controles, guardou a
prancheta e virou-se para Rayford. - Continue sua história.
Rayford não entendeu por que Mac estava tão preocupado com aquele seu amigo.
Rayford perguntou a si mesmo se leve um amigo assim antes de converter-se. Será que
já havia se preocupado com outro homem a ponto de emocionar-se como Mac?
Rayford olhou para baixo e viu a devastação causada pelo terremoto. Nos lugares das casas
desaparecidas, haviam sido erguidas tendas. Alguns carros fúnebres improvisados chegavam
para retirar os corpos espalhados por toda parte. Grupos de pessoas com pás e picaretas
tentavam recuperar uma estrada pavimentada. Se elas conseguissem ver do alto, como
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Rayford, constatariam que a estrada inteira ainda levaria meses para ser restaurada, mesmo
que passassem dias trabalhando com equipamentos mais pesados naquela pequena faixa de
pavimento retorcido.
Rayford contou a Mac como conseguiu pousar em O'Hare após os desaparecimentos. Caminhou
até o terminal, viu as notícias devastadoras procedentes do mundo inteiro e, mais tarde, ficou
sabendo que seu co-piloto se suicidara. Pegou uma carona até sua casa, e seus temores foram
confirmados.
- Irene e Raymie haviam desaparecido - ele disse. - Chloe estava tentando sair de Stanford
para voltar para casa. Ela era tão cética quanto eu. A culpa foi minha. Ela seguiu meu exemplo.
E nós dois fomos deixados para trás.
Para Rayford, parecia que tudo isso havia acontecido ontem. Ele não se importava de contar a
história porque o final foi bom, mas detestava essa parte, não só pela angústia e pela solidão,
mas pela culpa que sentira. Se Chloe não tivesse aceitado Cristo, talvez ele nunca se
perdoasse.
Rayford não sabia nada a respeito de Mac. Decidiu que contaria a ele o que estava
acontecendo, quem Nicolae Carpathia era de fato, a história toda. Falaria das profecias do
Apocalipse, dos julgamentos que já haviam chegado, revelaria como eles haviam sido
profetizados e por que não poderiam ser contestados. Mas, se Mac fosse um traidor a serviço
de Carpathia já teria passado por uma lavagem cerebral. Ele poderia fingir estar emocionado,
demonstrar interesse. Poderia até mesmo insistir em acompanhar Rayford naquele mergulho
perigoso, só para mostrar-se amigo.
Rayford, porém, não podia mais voltar atrás. Orou silenciosamente mais uma vez suplicando
um sinal de Deus quanto à sinceridade de Mac. Se ele não estivesse sendo sincero, era um dos
melhores atores que Rayford já conhecera. Seria muito difícil confiar em alguém no futuro.
Quando finalmente eles avistaram o campo de aviação em Al Basrah, Mac ensinou Rayford
como fazer um pouso suave. Quando Rayford desligou o motor, Mac disse:
- É ele. Abaixe a escada.
Os dois desceram do helicóptero enquanto um homem de pele escura, nariz alongado,
descalço e usando turbante descia lentamente de uma torre que mais parecia uma guarita de
prisão. Ele havia atirado as muletas lá de cima e, quando chegou ao chão, pegou-as e usou-as
habilmente para ir ao encontro de Mac. Os dois se abraçaram.
- O que houve com você? - perguntou Mac.
- Eu estava no refeitório - respondeu Albie. - Quando tudo começou a desmoronar, entendi
imediatamente o que estava acontecendo. Cometi o erro de correr até a torre. Não havia
ninguém lá. Não estávamos esperando nenhum vôo dentro das próximas duas horas. Não sei
o que fui fazer lá. A torre começou a desabar antes de eu chegar. Consegui correr, mas
um caminhão de combustível foi atirado na minha frente. Eu vi quando ele vinha na minha
direção e tentei saltar por cima da cabina, que estava virada de lado. Quase cheguei ao outro
lado, mas enrosquei o tornozelo no pneu e raspei a canela no parafuso da maçaneta. Mas o pior
não foi isso. Quebrei o pé. Não há material para engessá-lo, e sou um dos últimos na lista de
prioridades. Vou ficar bem. Alá vai me abençoar.
Mac apresentou Rayford a Albie.
- Quero saber a história de vocês - disse Albie. – Onde vocês estavam no momento do
terremoto? Quero que me contem tudo. Mas, antes, se vocês tiverem tempo, poderiam
dar uma mãozinha. Máquinas pesadas já estavam nivelando uma área enorme, preparando-a
para ser asfaltada.
- Seu patrão, ele mesmo, o potentado, ficou satisfeito com nossa cooperação. Estamos
tentando fazer o possível para ajudar a manter a paz mundial. Que tragédia isso ter
acontecido depois de tudo o que ele tem feito.
Rayford permaneceu calado.
- Albie - disse Mac -, podemos ajudar mais tarde, mas agora precisamos comer alguma coisa.
- O refeitório não existe mais - disse Albie. - Não tenho notícias de seu restaurante favorito na
cidade. Vamos ver como ele está?
- Você tem um carro?
- Aquela velha picape - disse Albie. - Rayford e Mac o acompanharam enquanto ele se dirigia
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até a picape de muletas. - Está difícil pisar na embreagem - ele disse. – Você poderia dirigi-la?
Mac sentou-se ao volante. Albie sentou-se no meio, com os joelhos abertos para não atrapalhar
a mudança de marchas. A picape seguiu sacolejando e trepidando sobre estradas de terra até
chegar aos arredores da cidade. O cheiro do local provocava náuseas em Rayford. Ele ainda
achava difícil aceitar que isso fazia parte do plano supremo de Deus. Será que tantas pessoas
como estas teriam de sofrer para que seu plano fosse cumprido? Ele se consolava ao pensar
que esse não era o resultado desejado por Deus. Rayford acreditava que Deus era fiel à sua
palavra, que Ele concedera oportunidades suficientes ao povo, e o que estava acontecendo
agora servia para chamar a atenção da humanidade.
Homens e mulheres chorando e gemendo carregavam corpos sem vida nos ombros ou em
carrinhos de mão pelas ruas apinhadas. Parecia que todos os quarteirões haviam sido
destruídos pelo terremoto. Uma das paredes de concreto do restaurante favorito de Mac tinha
desabado, mas a administração instalara uma cortina improvisada e a casa continuava
funcionando. Por ser um dos poucos estabelecimentos abertos, o local estava lotado e os clientes
comiam em pé. Mac e Rayford abriram caminho com os ombros, atraindo olhares irados, que só
se abrandaram quando viram Albie acompanhando os dois. Os clientes abriram caminho, o
mais que puderam, mas o espaço era mínimo.
Rayford não confiava muito na higiene daquela comida, mas, mesmo assim, sentiu-se
agradecido. Após duas mordidas em um rolo de massa folhada recheado com carne de carneiro
moída e temperos, ele cochichou no ouvido de Mac:
- Depois de ver e cheirar isto, e comer neste lugar, acho que a fome é o melhor tempero.
No caminho de volta, Mac parou à beira de um terreno poeirento e desligou o motor.
- Eu queria saber se você estava bem, Albie - ele disse. - Mas esta é uma visita de negócio.
- Ótimo - disse Albie. - Como posso ajudar?
- Equipamento de mergulho - respondeu Mac.
Albie franziu a testa e mordeu os lábios.
- Mergulho - ele disse simplesmente. - Você precisa de tudo? Roupa, máscara, tubo de
respiração, tanque de oxigénio, nadadeiras?
- Tudo,tudo.
- Pesos? Lastro? Luzes?
- Talvez.
- Pagamento em dinheiro?
- Claro.
- Preciso verificar - disse Albie. - Tenho um fornecedor. Não ouvi notícias dele desde o
terremoto. Se você precisa do material, eu posso arrumar. Vamos combinar assim: se você
não receber notícias minhas, volte daqui a um mês que estará tudo providenciado.
- Não posso esperar tanto tempo assim - disse Rayford impulsivamente.
- Não posso garantir nada antes disso. Nas circunstâncias atuais, esse tempo parece ser pouco
para mim. - Rayford não tinha condições de argumentar. - Pensei que fosse para você, Mac -
complementou Albie.
- Precisamos de dois equipamentos.
- Vocês vão passar a trabalhar como mergulhadores?
- Mais ou menos - respondeu Mac. - Por quê? Você acha que podemos alugar, em vez de
comprar?
- Existe essa possibilidade? - perguntou Rayford.
Albie e Mac olharam para Rayford e caíram na gargalhada.
- No mercado negro, não se aluga nada - disse Albie.
Rayford foi obrigado a rir de sua ingenuidade, mas o riso parecia algo que ficara para trás.
De volta ao aeroporto, Rayford e Mac pegaram uma pá cada um enquanto um caminhão
despejava uma camada de pedregulho para restaurar a pista. Eles se esqueceram do tempo, e
várias horas se passaram. Pediram a uma pessoa que fosse chamar Albie.
- Você pode enviar uma mensagem para a Nova Babilónia? - perguntou Mac.
- Será necessário um relê, mas tanto Qar como Wasit estão no ar desde hoje de manhã. Sim, é
possível.
Mac escreveu a mensagem, pedindo que fosse enviada, via rádio, para a base da Comunidade
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Global informando que Steele e McCullum estavam participando de um trabalho voluntário na
reconstrução de um aeroporto e que retornariam no início da noite.
O relógio marcava perto de nove e meia da manhã de terça-feira, horário da região central dos
Estados Unidos, quando Buck acordou sobressaltado. O dia estava claro e ensolarado, e ele
dormira profundamente após aquele sonho rápido no meio da noite. Um som constante
chegava até seu subconsciente. Mas por quanto tempo? Assim que seus olhos se acostumaram
à claridade, ele entendeu que o barulho não era recente. Parecia vir do quintal da casa, mais
além do Range Rover.
Buck caminhou vagarosamente até a janela e abriu-a, encostando o rosto na vidraça para
enxergar o mais longe que pudesse. Talvez fossem equipes de emergência trabalhando para
restabelecer a energia elétrica na região, e ele e Tsion seriam beneficiados mais cedo do que
imaginavam.
Mas e aquele cheiro? Será que algum caminhão estava trazendo comida para os trabalhadores?
Buck se vestiu e viu luz acesa no corredor. Então não havia sido um sonho? Ele desceu a
escada de dois em dois degraus, descalço.
- Tsion! Temos energia elétrica! O que está havendo?
Tsion apareceu na porta da cozinha com uma frigideira cheia de comida e transferiu-a, com uma
colher, para um prato sobre a mesa.
- Sente-se, sente-se, meu amigo. Você não está orgulhoso de mim?
- Você encontrou comida!
- Encontrei mais que isso, Buck! Descobri um gerador, daqueles grandes!
Buck curvou a cabeça e proferiu uma breve oração.
- Você já comeu, Tsion?
- Sim, sirva-se. Não consegui esperar. Acordei no meio da noite e não dormi mais, por isso fui
pé ante pé até seu quarto e peguei sua lanterna. Espero não ter acordado você.
- Não - disse Buck de boca cheia. - Mas depois pensei estar sonhando quando vi luzes no
corredor.
- Não foi um sonho, Buck! Transportei sozinho aquele gerador da adega até o quintal. Levei
uma eternidade até enchê-lo de gasolina e limpar a vela de ignição para acendê-lo. Mas assim
que eu o conectei ao fio no porão, as luzes se acenderam, a geladeira ligou e tudo começou a
funcionar. Lamento ter incomodado você. Voltei pé ante pé até meu quarto e ajoelhei-me ao
lado da cama para agradecer ao Senhor a nossa sorte.
- Eu ouvi você orando.
- Perdoe-me.
- Sua oração soou-me como uma música - disse Buck. – E esta comida parece um néctar.
- Você precisa alimentar-se. Vai voltar para a casa de Loretta. Eu ficarei aqui para ver se
consigo conectar a Internet. Se não conseguir, vou estudar e escrever mensagens a fim de que
estejam prontas para ser enviadas para os fiéis quando for possível. Porém, antes de você sair,
vai me ajudar a abrir a maleta de Donny, não?
- Você decidiu que vamos abri-la?
- Em outras circunstâncias, não. Mas temos pouquíssimas ferramentas de sobrevivência,
Cameron. Precisamos aproveitar tudo o que estiver por aqui. Felizmente, a caixa d'água da
casa de Donny permanecera intacta, e, após um banho quente alguns minutos depois, Buck
sentiu-se revigorado. Por que será que o conforto pessoal deixava o dia mais brilhante, mesmo
diante de um momento tão crucial? Buck sabia que estava sendo contraditório. Todas as vezes
que seu lado prático e realista de homem da imprensa assumia o controle, ele tinha de lutar
contra isso. Desejava pensar que Chloe escapara da morte, mas o carro dela ainda estava na
casa. Por outro lado, ele não encontrara seu corpo. Toneladas de entulhos cobriam o local, e
ele não havia feito muito progresso em suas escavações. Será que teria de retirar todo aquele
entulho para provar a si mesmo que ela estava lá ou não? Estava disposto a isso. Só esperava
que houvesse um jeito melhor.
Pouco antes de sair da casa, Buck ficou intrigado por Tsion não tê-lo esperado para tirar a
maleta de Donny do Rover. O rabino a colocara em cima da mesa. Seu rosto estampava um ar
estranho, cauteloso. Eles estavam prestes a arrombar uma maleta contendo coisas pessoais de
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alguém, mas ambos tinham-se convencido de que Donny aprovaria essa atitude. Também
estavam preparados para fechá-la e desfazer-se dela caso encontrassem apenas assuntos de
natureza pessoal.
- Há ferramentas de todos os tipos no porão - disse Tsion.
- Eu poderia ser extremamente cuidadoso e abri-la de maneira a não prejudicar sua estrutura.
- O quê!? - exclamou Buck. - Prejudicar sua estrutura? Você não está querendo estragar esta
maleta barata? Que tal eu poupar-lhe tempo e esforço?
Sentado na cadeira da cozinha, Buck virou a maleta de plástico de pouco mais de dez
entímetros de profundidade na posição vertical e prendeu-a entre os joelhos. Virou ambos os
joelhos para a esquerda e deu um tranco na maleta com o punho, forçando-a a cair entre seus
tornozelos e bater com um dos cantos no chão. As fechaduras separaram-se, e a maleta abriuse.
As pernas de Buck impediram que ela se abrisse totalmente e seu conteúdo voasse longe.
Com uma sensação de dever cumprido, ele a colocou em cima da mesa e virou-a de frente para
Tsion.
- Então era isto o que aquele jovem transportava dentro de sua maleta de um lado para o
outro? - disse Tsion.
Buck inclinou-se para olhar. Arrumados em pilhas, estavam dezenas de cadernos espirais, mais
ou menos do tamanho de um bloco de anotações para taquigrafia. Cada um deles tinha uma
etiqueta com datas escritas manualmente. Tsion retirou algumas e Buck pegou outro tanto. Ele
folheou-os e constatou que cada um continha anotações de aproximadamente dois meses.
- Isto aqui parece ser o diário dele - disse Buck.
- Sim - disse Tsion. - Se for, não devemos violar sua privacidade.
Eles se entreolharam. Buck perguntou a si mesmo qual deles examinaria os cadernos para
saber se continham anotações particulares que deveriam ser inutilizadas ou anotações técnicas
que talvez fossem úteis ao Comando Tribulação. Tsion ergueu as sobrancelhas e fez um sinal
afirmativo para Buck. Buck abriu um caderno no meio. Estava escrito o seguinte: "Conversei
com Bruce B. sobre os equipamentos necessários para o abrigo subterrâneo. Ele ainda parece
relutante em mencionar o local. Eu não preciso saber. Apenas sugeri especificações tais como
eletricidade, água, telefone, ventilação, etc."
- Isto não é assunto pessoal - disse Buck. - Vou estudá-los hoje para ver se há alguma coisa
que possamos usar. É estranho o modo como ele os empilhou. Não creio que ele tenha perdido
a sequência das datas, e ele usou todos os espaços possíveis.
- O que é isto? - perguntou Buck, virando as páginas até o fim. - Veja só. Ele desenhou uma
planta à mão.
- É a planta de meu abrigo! - exclamou Tsion. - Foi onde eu fiquei. Então foi ele quem
desenhou a planta do local.
- Mas parece que Bruce nunca lhe contou onde estava construindo o abrigo.
Tsion apontou para um trecho na página seguinte: "A construção de um abrigo duplo em meu
quintal está sendo mais trabalhosa do que eu esperava. Sandy está achando tudo muito
divertido. A tarefa de encher sacos de terra e guardá-los na camioneta dela tem nos ajudado a
superar nossa perda. Ela gosta muito da natureza clandestina desse trabalho. Nós nos
revezamos para descarregar a terra em vários lugares. Hoje, a camioneta ficou tão pesada que
os pneus traseiros pareciam que iam estourar. Foi a primeira vez que eu a vi sorrir depois de
meses."
Buck e Tsion entreolharam-se.
- É possível? - disse Tsion. - Um abrigo no quintal deles?
- Como não vimos esse abrigo? Cavamos lá perto ontem à noite.
Ambos caminharam até a porta dos fundos e examinaram o gramado. A cerca que havia entre
a casa de Donny e os escombros da casa ao lado havia sido arrancada do chão pelo terremoto.
- Talvez eu tenha estacionado acima da entrada – disse Buck.
Ele manobrou o Rover e afastou-o dali.
- Não vejo nada aqui - disse Tsion. - Mas o diário indica que isto não foi um sonho. Eles
estavam tirando terra.
- Tentarei hoje encontrar algumas barras de metal – disse Buck. - Vamos fazê-las atravessar a
grama para ver se encontramos essa coisa.
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- Então vá. Termine sua tarefa na casa de Loretta. Tenho muito o que fazer no computador.
O sol estava se pondo no Iraque.
- É melhor voltarmos - disse Rayford, ofegante.
- O que será que eles vão fazer conosco? - disse Mac. - Demitir-nos?
- Assim que ele souber que você está por perto, Mac, poderá cumprir sua ameaça de me
prender.
- Só um sujeito como ele pode pensar que um homem sozinho é capaz de dar uma volta ao
mundo com aquele Condor e retornar. A propósito, você parou para pensar por que ele chama
aquela coisa de 216? O número de seu escritório também era 216, apesar de estar localizado
no último andar de um edifício de 18 andares.
- Nunca pensei nisso - disse Rayford. - Não vejo motivos para me preocupar. Talvez seja o
número de sorte dele. Enquanto Rayford e Mac marchavam de volta à torre com as pás sobre
os ombros, Albie foi ao encontro deles equilibrando-se nas muletas.
- Não tenho palavras para agradecer a ajuda de vocês, cavalheiros. Vocês são amigos
verdadeiros de Alá e do Iraque. Amigos verdadeiros da Comunidade Global.
- Talvez a Comunidade Global não goste de ouvir você reverenciar Alá - disse Rayford. - Você,
um homem tão leal, ainda não se converteu à Fé Enigma Babilónia?
- Juro sobre o túmulo de minha mãe que nunca vou afrontar Alá com tamanha blasfémia.
Então, pensou Rayford, os cristãos e os judeus não são os únicos que estão contra o novo papa
Peter Mathews.
Albie os conduziu até o local onde eles deveriam deixar as pás. Em voz baixa, ele disse:
- Estou feliz por poder informar-lhes que já fiz alguns contatos iniciais. Acho que não vou ter
problemas em encontrar o equipamento para vocês.
- Completo? - perguntou Mac.
- Completo.
- Quanto? - perguntou Mac.
- Tomei a liberdade de anotar o valor - disse Albie.
Ele tirou um papel do bolso e apoiou-se nas muletas para abri-lo sob uma luz fraca.
- Caramba! - disse Rayford. - Isso é quatro vezes mais o que eu pagaria por dois
equipamentos de mergulho.
Albie guardou o papel no bolso.
- Este é exatamente o dobro do preço no varejo. Nem um centavo a mais. Se vocês não
quiserem a mercadoria, digam já.
- O preço parece alto - disse Mac. - Mas você nunca me passou para trás. Confiaremos em
você.
- É necessário um depósito? - perguntou Rayford, na esperança de sensibilizar o homem.
- Não - ele disse, fixando o olhar em Mac, não em Rayford. - Você confia em mim, eu confio em
você.
Rayford assentiu.
Albie estendeu sua mão ossuda e apertou a de Rayford com força.
- Até daqui a trinta dias, a menos que eu entre em contato com vocês antes.
Mac assumiu os controles para o vôo de volta. - Conseguiu força suficiente para terminar sua
história, Ray?
A caminho da casa de Loretta, Buck parou diante das ruínas da Igreja Nova Esperança e
passou a pé pela cratera onde o carro dela estava caído a mais de seis metros da superfície. O
corpo de Loretta ainda estava lá, mas Buck não teve coragem de olhar. Se alguns animais a
tivessem encontrado, ele não queria ver a cena. Também evitou olhar para o local onde
encontrara Donny Moore. Novos abalos haviam derrubado mais escombros por cima dele.
Buck caminhou cuidadosamente até onde se localizava o abrigo. Havia mais escombros por ali.
Ele escorregou e quase caiu da escada de concreto que conduzia até a porta de entrada.
Talvez houvesse ali alguma coisa que pudesse ser aproveitada. Mas ele poderia voltar em
outro dia. Enquanto se dirigia para o Range Rover, Buck passou os dedos em sua bochecha
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inchada. Por que os machucados pioraram e ficaram mais sensíveis no dia seguinte?
Havia muito trânsito naquela área. Aparentemente, todos os caminhões basculantes,
escavadeiras ou reboques que não haviam desaparecido tinham sido convocados para
trabalhar. Buck não pôde estacionar no local do dia anterior. Equipes de trabalho tentavam pôr
no lugar o asfalto da rua de Loretta. Caminhões de lixo transportavam pedaços enormes de
concreto. Buck não tinha ideia do lugar onde seriam descarregados e que fim teriam. Ele só
sabia que a única coisa que alguém poderia fazer seria começar a reconstruir tudo. Não
conseguia imaginar que essa área voltaria a ser como antes, mas sabia que não demoraria
muito para ser reconstruída.
Buck passou com o Range Rover por cima de um pequeno monte de entulhos e estacionou
perto de uma das árvores tombadas no jardim da casa de Loretta. Os trabalhadores não lhe
deram atenção quando ele começou a rodear lentamente a casa, imaginando se deveria
continuar a escavar o que restara dela.
Um homem com uma prancheta na mão analisava os escombros da casa ao lado. Tirava
fotografias e fazia anotações.
- Acho que não existe cobertura de seguro para um ato de Deus como este - disse Buck.
- Não existe - retrucou o homem. - Não trabalho para nenhuma empresa de seguro. - Ele
virou-se, e Buck viu um crachá preso em sua roupa, onde se lia: "Sunny Kuntz, Supervisor de
Campo, Equipe de Socorro da Comunidade Global."
Buck fez um sinal afirmativo com a cabeça.
- Qual é a próxima etapa? - ele perguntou.
- Vamos enviar fotografias e estatísticas via fax para a sede da CG. Eles mandam o dinheiro.
Nós reconstruímos.
- A sede da CG continua em pé?
- Não. Está sendo reconstruída também. Os que sobreviveram estão em um abrigo
subterrâneo equipado com alta tecnologia.
- Você pode comunicar-se com a Nova Babilónia?
- Desde hoje de manhã.
- Meu sogro trabalha lá. Você acha que eu poderia comunicar-me com ele?
- É claro que pode. - Kuntz consultou seu relógio. – Ainda não são nove horas da noite na Nova
Babilónia. Conversei com uma pessoa de lá cerca de quatro horas atrás. Eu queria que eles
soubessem que pelo menos encontramos um sobrevivente desta área.
- Encontraram? Quem?
- Não estou autorizado a lhe dar esta informação, Sr...
- Oh, desculpe-me. - Buck pegou seu crachá que também o identificava como funcionário da
CG.
- Ah, você é da imprensa - disse Kuntz. Ele destacou duas folhas de sua prancheta. - O nome é
Cavenaugh. Helen. Setenta anos.
- Ela morava aqui?
- Morava. Disse que correu para o porão quando sentiu a casa balançar. Nunca ouvira falar de
um terremoto nesta região, portanto pensou tratar-se de um tornado. Ela teve muita sorte. O
último lugar para estar no momento de um terremoto é onde tudo pode cair sobre a gente.
- Então ela sobreviveu, heín?
Kuntz apontou para um alicerce a cerca de seis metros a leste da casa de Loretta.
- Você está vendo aquelas duas aberturas, uma aqui e a outra nos fundos? - ele perguntou.
Buck balançou a cabeça afirmativamente. - Trata-se de um quarto comprido no porão.
Primeiro ela correu para a frente. Quando a casa inteira balançou e as vidraças daquela janela
estouraram, ela correu para o outro lado. As vidraças já haviam se desprendido da janela,
portanto ela não saiu do lugar e aguardou. Se ela tivesse permanecido na frente, não teria
sobrevivido. Ficou no único canto da casa de onde foi possível escapar com vida.
- Ela lhe contou isso?
-Sim.
- Não disse se viu alguém na casa ao lado?
- A bem da verdade, disse.
Buck quase perdeu o fôlego.
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- O que ela disse?
- Só disse que viu uma moça saindo correndo da casa. Pouco antes de a janela cair deste
lado, a moça pulou para dentro do carro, mas quando a rua começou a levantar-se,
ela entrou com o carro na garagem.
Buck tremia, tentando desesperadamente manter-se calmo até ouvir a história inteira.
- E depois?
- A Sra. Cavenaugh disse que teve de afastar-se por causa daquela janela, e, quando a outra
casa começou a tombar, ela acha que viu a moça sair pela porta lateral da garagem e
correr para o quintal.
Buck perdera toda a objetividade.
- Aquela moça era minha mulher. Você tem mais detalhes?
- Não me lembro de mais nenhum.
- Onde está a Sra. Cavenaugh?
- Num abrigo a cerca de dez quilómetros a leste. Numa loja de móveis que foi pouco atingida.
Há provavelmente 200 sobreviventes lá, os que sofreram ferimentos leves. Parece mais um
albergue que um hospital.
- Diga-me exatamente onde fica esse lugar. Preciso conversar com ela.
- Está bem, Sr. Williams, mas devo adverti-lo de que não tenha muitas esperanças de encontrar
sua mulher.
- Do que você está falando? Eu não tinha esperanças antes de descobrir que ela fugiu daqui.
Nem sei se tinha esperanças quando tentei cavar estas ruínas. Mas agora não venha dizer que
não devo mais ter esperanças.
- Sinto muito. Só estou tentando ser realista. Trabalhei em equipes de socorro por mais de 15
anos antes de ser admitido na CG. Esta é a pior catástrofe que já vi, e preciso perguntar-lhe se
você chegou a ver o caminho que sua mulher deve ter tomado, caso a Sra. Cavenaugh esteja
certa ao dizer que ela correu para o quintal.
Buck acompanhou Kuntz até o quintal. Kuntz esquadrinhou o horizonte com o braço.
- Para onde você teria ido? - ele perguntou. - Para onde alguém teria ido?
Buck assentiu pesarosamente. Entendeu o recado. Até o ponto onde sua vista alcançava, só
havia montes de entulhos, fendas, crateras, árvores tombadas e postes caídos. Com certeza,
não havia lugar por onde alguém poderia ter fugido.
56
SETE
- Então - disse Mac - sua filha foi o verdadeiro motivo para você descobrir o que aconteceu com
sua mulher e filho. Certo.
- Você tinha ideia do que o levou a isso?
- Você quer dizer culpa? Em parte, talvez. Mas eu me senti culpado, Mac. Eu havia sido
negligente com minha filha. Não queria que isso voltasse a acontecer.
- Você não podia forçá-la a acreditar.
- Não. E por uns tempos achei que ela não acreditaria. Ela era uma pessoa irredutível e
analítica como eu havia sido.
- Bem, Ray, nós, os pilotos, somos mais ou menos parecidos. Levantamos do chão por causa
da aerodinâmica. Não há mágicas nem milagres, nada que possamos ver, sentir ou ouvir.
- Eu sempre pensei assim.
- E o que aconteceu depois? O que fez a diferença?
O sol se punha no horizonte. Do helicóptero, Rayford e Mac viram a bola amarela desaparecer
aos poucos no infinito. Rayford estava concentrado em sua história, tentando sinceramente
convencer Mac acerca da verdade. Rayford sentiu um calor repentino. Embora a temperatura no
deserto do Iraque caísse rapidamente após o pôr-do-sol, ele se desvencilhou do paletó.
- Não há armários nem cabides aqui, Ray. Eu costumo deixar o meu atrás da poltrona.
Depois de acomodar-se novamente, Rayford prosseguiu:
- Ironicamente, tudo aquilo que serviu para convencer-me da verdade eu devia ter aprendido
antes, a tempo de ser arrebatado com Irene quando Cristo voltou. Eu frequentava a
igreja havia anos e já ouvira expressões como "nascer de uma virgem", "expiação de
pecados", essas coisas. Mas nunca parei para pensar no que elas significavam. Eu
conhecia a história de que Jesus nascera de uma mulher que nunca tivera relacionamento
físico com um homem. Eu não sabia dizer se acreditava nisso, nem mesmo se esse fato era
importante. Parecia apenas uma história religiosa e, em minha opinião, explicava por que
muitas pessoas consideravam o sexo um ato pecaminoso.
Rayford contou a Mac como encontrou a Bíblia de Irene, como achou o telefone da igreja que
ela amara tanto, como conheceu Bruce Barnes e viu a fita de vídeo preparada pelo pastor
Billings especialmente para os que seriam deixados para trás.
- Ele já sabia de tudo? - perguntou Mac.
- Oh, sim. Todos os que foram arrebatados sabiam. Não sabiam quando, mas aguardavam o
Arrebatamento com ansiedade. Aquela fita tocou-me realmente, Mac.
- Eu gostaria de vê-la.
- Talvez eu consiga reproduzir uma cópia para você, se a igreja ainda estiver em pé.
Buck pediu a Kuntz que lhe indicasse o caminho até o abrigo improvisado e correu em direção ao
Range Rover. Tentou ligar para Tsion e frustrou-se ao ouvir som de ocupado. Mas aquilo
também era um bom sinal. O som não era o de um telefone com defeito. Era o som de ocupado
mesmo, como se Tsion estivesse falando com alguém. Buck ligou para o número particular de
Rayford. Se funcionasse, por meio da tecnologia celular e fonte de energia solar, eles teriam
condições de conversar em qualquer lugar da terra que estivessem.
O problema era que Rayford não estava em terra. O ronco do motor, o toc-toc-toc das lâminas
da hélice e a estática em seu fone de ouvido produziam uma sinfonia de ruídos. Ele e Mac
ouviram ao mesmo tempo o toque do telefone. Mac enfiou a mão no bolso e retirou o seu.
- Não é o meu - ele disse.
Rayford virou-se para pegar o dele no paletó dobrado, mas, quando conseguiu desvencilhar-se
dos fones de ouvido, abrir o telefone e colocá-lo próximo ao ouvido, só conseguiu ouvir um som
de linha aberta. Talvez as torres de celulares não estivessem próximas o suficiente para enviar
um sinal. Aquele toque devia ter vindo de um satélite. Ele virou-se na poltrona e colocou o
telefone em ângulo, posicionando melhor a antena para tentar receber um sinal mais forte.
- Alô! Fala Rayford Steele. Você está me ouvindo? Se estiver, ligue novamente! Estou em pleno
ar e não consigo ouvir nada. Se for alguém de minha família, ligue de volta dentro de vinte
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segundos para fazer este telefone tocar novamente, mesmo que a gente não consiga se
comunicar. Ou, então, ligue dentro de... - Ele olhou para Mac.
- Noventa minutos.
- Dentro de noventa minutos estaremos em terra. Alô!
Nada.
Buck ouvira o telefone de Rayford tocar. Em seguida, nada, a não ser estáticas. Pelo menos o
som não era de chamada sem resposta. Um outro som de ocupado teria sido um bom sinal.
Mas o que seria aquilo? Um clique, estática, sons incompreensíveis. Ele recolocou o telefone no
bolso.
Buck conhecia a loja de móveis. Localizava-se no caminho do Edens Expressway. Normalmente,
o percurso não levaria mais de dez minutos, mas a topografia do local mudara. Ele teve de
desviar alguns quilómetros para contornar montanhas e montanhas de destroços. Não
existiam mais pontos de referência. Seu restaurante favorito foi identificado apenas por um
imenso letreiro atirado ao chão. A uma distância de cerca de 12 metros, apenas o telhado
despontava de uma cratera que engolira a casa inteira. Equipes de resgate entravam e saíam
da cratera, sem demonstrar nenhuma pressa. Aparentemente, ali só havia corpos para serem
retirados.
Buck discou para a sucursal de Chicago do Semanário Global. Não houve resposta. Ligou para a
sede em Nova York. Logo após o ataque aéreo sobre Nova York, o escritório luxuoso, que
ocupava três andares de um arranha-céu, havia sido reconstruído em um armazém
abandonado. Aquele ataque custara a vida de todos os amigos que Buck conquistara no
Semanário.
Após vários toques, uma voz feminina aflita atendeu:
- O escritório está fechado. Se não for uma emergência, |por favor não congestione as linhas.
- Buck Williams, de Chicago - ele disse.
- Sim, Williams. Já soube da notícia?
- Que notícia?
- Você não entrou em contato com ninguém do escritório de Chicago?
- Nossos telefones acabaram de voltar a funcionar. Liguei, mas ninguém atendeu.
- Ninguém vai atender. O prédio desabou completamente. Quase todos os funcionários estão
mortos.
- Oh, não.
- Sinto muito. Uma secretária e um interno sobreviventes verificaram o que aconteceu com os
demais funcionários. Eles não entraram em contato com você?
- Eu estava fora do circuito.
- É um alívio saber que você está bem. Você está bem?
- Estou à procura de minha mulher, mas estou bem, sim.
- Os dois sobreviventes estão colaborando com o Tnbune e já temos uma página na Web. Digite
um nome qualquer para saber qual é a situação: vivo, morto, em tratamento ou paradeiro
desconhecido. Estou sozinha aqui para atender os telefones. Estamos aniquilados, Williams.
Você sabe que nossas publicações são impressas em dez ou doze lugares ao redor do mundo...
- Quatorze.
- Sim. Pelo que sei, uma no Tennessee e outra no sudeste da Ásia ainda estão em condições de
imprimir alguma coisa. Quem sabe quanto tempo demorará para a situação se normalizar?
- E o que você sabe sobre o pessoal daqui dos Estados Unidos?
- Estou com o computador ligado - ela disse. Tenho a confirmação de que cerca de 50% estão
mortos e 40% ainda não foram encontrados. É o fim, não?
- Fim do quê? Do Semanário7.
- E de que mais eu poderia estar falando?
- Pensei que você estivesse falando de seres humanos.
- Os seres humanos foram muito mais atingidos, você não acha, Williams?
- O quadro é desolador - disse Buck. Mas ainda estamos longe do fim. Talvez possamos
conversar sobre isso em outra ocasião. - Buck ouviu ao fundo o som de telefones tocando.
- Talvez - ela disse. - Preciso atender outras ligações.
Após dirigir por mais de 40 minutos, Buck teve de parar para dar passagem a uma fila de
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veículos de emergência. Havia uma montanha de entulhos sobre uma fissura em uma estrada
que não havia sido danificada pelo terremoto. Ninguém podia atravessá-la enquanto a
máquina de terraplenagem não conseguisse nivelar a pista. Buck pegou seu laptop e ligou-o no
acendedor de cigarros. Procurou o site do Semanário Comuniáade Global para obter
informações. Não estava funcionando. Entrou na página do Tribune e percorreu a lista da qual
a secretária lhe falara. Havia um aviso mencionando que ninguém podia garantir a
autenticidade da informação, uma vez que as notícias sobre mortes só seriam confirmadas dali
a alguns dias.
Buck digitou o nome de Chloe e não se surpreendeu ao verificar que ela estava enquadrada na
categoria "paradeiro desconhecido". O nome dele, bem como os de Loretta, Donny e Sandy
também se encontravam na mesma categoria. Buck atualizou as informações sobre cada um,
mas decidiu não incluir o número de seu telefone particular. Quem necessitasse falar com ele
já tinha esse número. Em seguida, ele digitou o nome de Tsion. Seu paradeiro também era
ignorado.
Com um aperto no coração, Buck digitou "Rayford Steele, Capitão, Administração da
Comunidade Global". Prendeu a respiração até obter a resposta: "Confirmado vivo; sede
temporária da Comunidade Global, Nova Babilónia, Iraque."
Buck jogou a cabeça para trás e deu um suspiro de alívio.
- Obrigado, meu Deus - ele murmurou.
Endireitou o corpo e ajeitou o espelho retrovisor. Havia vários carros atrás dele, e o seu era o
quarto da fila. O serviço na pista ainda demoraria alguns minutos. Ele digitou "Amanda White
Steele".
O computador demorou um pouco para processar a informação e indicou com um asterisco:
"Verificar empresas aéreas domésticas, Pan-Continental, vôo internacional."
Ele clicou nessa linha. "Informação sujeita a confirmação sobre vôo sem escalas de Boston para
a Nova Babilónia; aeronave caiu e submergiu no rio Tigre; não há sobreviventes."
Pobre Rayford!, ele pensou. Buck não chegara a conhecer Amanda como gostaria, mas sabia que
ela era uma pessoa encantadora e uma verdadeira dádiva concedida a Rayford. Agora ele estava
ansioso por falar com seu sogro.
Buck verificou o nome de Chaim Rosenzweig, que foi confirmado vivo e a caminho de Israel
para a Nova Babilónia. Ótimo, ele pensou. Digitou o nome de seu pai e irmão, e eles não
haviam sido localizados. Se não há notícias, Buck pensou, já é um bom sinal.
Em seguida, ele digitou o nome de Hattie Durham. O nome não foi identificado. O nome dela
não devia ser Hattie. Qual seria seu nome verdadeiro? Hilda? Hildegard? Que outros nomes
começam com H? Harriet? Este era o mais parecido com Hattie. Deu certo.
Novamente, ele foi orientado a consultar as empresas aéreas, desta vez para voos domésticos.
Ele encontrou o nome de Hattie confirmado em um vôo sem escalas de Boston para
Denver. "Não há notícias sobre a chegada do vôo."
Então, pensou Buck, se Amanda viajara naquele vôo, está morta. Se Hattie viajam no
outro vôo, talvez esteja morta. Se a Sra. Cavenaugh estivesse certa, e vira Chloe fugir da
casa de Loretta, Chloe poderia estar viva.
Buck não conseguia pensar na possibilidade de Chloe estar morta. Não conjeturaria sobre
aquela hipótese enquanto não tivesse certeza absoluta.
- Tenho de admitir, Mac, que grande parte daquilo tinha lógica disse Rayford. - O pastor
Billings havia sido arrebatado. Mas, antes, ele preparou aquela fita de vídeo, onde falou
sobre tudo o que acabara de acontecer, o período que estávamos atravessando e o que
poderíamos estar pensando. Ele me deixou aniquilado. Sabia que eu ficaria apavorado,
que sofreria, que me desesperaria. E ele mostrou as profecias da Bíblia que mencionavam
aquele acontecimento. Fez-me lembrar que talvez eu já tivesse ouvido aquilo. Chegou a
falar de coisas que deveríamos observar. Mas, acima de tudo, ele respondeu à minha
pergunta mais importante: Eu ainda teria uma segunda oportunidade? Eu não sabia que
muitas pessoas também tivessem a mesma dúvida. O Arrebatamento seria o fim de tudo?
Os deixados para trás estariam perdidos para sempre, somente porque não creram? Eu
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nunca havia pensado nisso, mas acho que muitos pregadores acreditavam que ninguém
poderia converter-se após o Arrebatamento. Eles usavam esse argumento para assustar
o povo e forçar uma decisão por antecipação. Eu gostaria de ter ouvido isso antes,
porque talvez tivesse acreditado.
Mac lançou um olhar penetrante para Rayford.
- Não, você não teria acreditado. Se tivesse de acreditar antes, teria acreditado em sua mulher.
- Provavelmente. Mas naquele momento eu não podia argumentar. Que outra explicação havia?
Eu estava preparado. Queria dizer a Deus que, se houvesse outra oportunidade, se o
Arrebatamento tivesse sido sua última tentativa para chamar minha atenção, seu plano tinha
dado certo.
- Mas, e daí? Você tinha de fazer alguma coisa? Dizer alguma coisa? Conversar com um pastor?
- Na fita, o pastor Billings discorreu sobre o que ele chamava de plano bíblico de salvação.
Aquela era uma expressão estranha para mim. Eu a ouvira uma ou duas vezes, mas não em
nossa primeira igreja. E, quando eu frequentava a Igreja Nova Esperança, não prestava
atenção em nada. Só estava prestando atenção naquele momento.
- Então, qual é o plano?
- É simples e direto, Mac. - Rayford falou de memória a respeito dos elementos básicos sobre o
pecado do homem que o separava de Deus, e o desejo de Deus de tê-lo de volta.
- Todos nós somos pecadores. Antes, eu não aceitava isso. Mas, ao ver que tudo o que minha
mulher disse tornou-se realidade, constatei quem eu era. Sei que existem pessoas piores.
Muita gente dizia que eu era melhor que a maioria, mas eu me sentia indigno diante de Deus.
- Esse é um problema que eu não tenho, Ray. Tudo o que posso dizer sobre mim é que não
passo de um salafrário.
- Está vendo só? A maioria das pessoas o considera um cara legal.
- Talvez. Mas eu me conheço.
- O pastor Billings salientou que a Bíblia diz: "Não há um só justo", que "somos como ovelhas
perdidas" e que "todas as nossas justiças são semelhantes a trapos de imundícia". Isso não me
fez sentir melhor por saber que não era o único. Eu apenas estava grato por existir um plano
para restabelecer minha ligação com Deus. Quando o pastor explicou por que um Deus santo
tinha de punir o pecado mas não queria que nenhum de seus filhos morresse, eu finalmente
comecei a entender. Jesus, o Filho de Deus, o único homem que viveu na terra sem pecado,
morreu pelos pecados de todos nós. Tudo o que tínhamos a fazer era crer, arrepender de
nossos pecados e receber a dádiva da salvação. Seríamos perdoados e "reconciliados" com
Deus, conforme disse o pastor Billings.
- Quer dizer que, se eu acreditar nisso, estou salvo? - indagou Mac.
- Você também tem de acreditar que Deus ressuscitou Jesus dentre os mortos. Isso
proporcionou a vitória sobre o pecado e a morte e também provou que Jesus era divino.
- Eu acredito em tudo isso, Ray, e daí? Estou salvo? O sangue de Rayford gelou nas veias. O que
o estava afligindo? Ele acreditava, mesmo sem ter nenhuma prova, que Amanda estava viva e
agora também estava acreditando na sinceridade de Mac. Isso era fácil demais. Mac presenciara
o caos de quase dois anos do período da Tribulação. Mas isso seria suficiente para convencê-lo?
Ele parecia sincero. Rayford, porém, não o conhecia muito, não conhecia sua história. Mac
poderia ser um espião de Carpathia. Rayford já se expusera ao perigo mortal, caso Mac
estivesse preparando uma armadilha para ele. Rayford orou silenciosamente: "Senhor, como
poderei saber ao certo?"
- Bruce Barnes, meu primeiro pastor, incentivou-me a memorizar a Bíblia. Não sei se voltarei
a encontrar minha Bíblia, mas lembro-me de muitas passagens. Uma das primeiras que aprendi
está em Romanos 10.9-10: "Se com a tua boca confessares a Jesus como Senhor, e em teu
coração creres que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo. Porque com o coração se
crê para justiça, e com a boca se confessa a respeito da salvação."
Mac olhava firme para a frente, como se estivesse concentrado no vôo. De repente, ele parecia
menos animado. Falava com mais cautela. Rayford não sabia o que fazer.
- O que significa confessar com a boca? - perguntou Mac.
- Significa isso mesmo que você entendeu. Você precisa falar. Precisa falar a quem quer que
seja. Na verdade, você precisa falar a muita gente.
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- Você pensa que Nicolae Carpathia é o anticristo. A Bíblia menciona que devemos falar a ele?
Rayford balançou a cabeça.
- Que eu saiba, não. Poucas pessoas precisam fazer isso. Carpathia conhece minha posição
porque tem ouvidos em todos os lugares. Sabe que meu genro é crente, apesar de Buck nunca
lhe ter contado. Ele acha conveniente guardar isso só para si. - Rayford não sabia se estava
convencendo Mac ou cavando sua própria sepultura.
Mac permaneceu calado por vários minutos. Por fim, deu um suspiro.
- E como isso funciona? Como ficamos sabendo que fizemos o que Deus queria que fizéssemos?
- O pastor Billings orientou como os espectadores daquela fita deviam orar. Devíamos confessar
a Deus que somos pecadores e que necessitamos de seu perdão. Devíamos dizer a Ele que
acreditamos que Jesus morreu por nossos pecados e que Deus o ressuscitou dentre os mortos.
Depois, devíamos aceitar a salvação que Ele nos oferece e agradecer-lhe por isso.
- Parece fácil demais.
- Acredite que teria sido mais fácil ainda se eu tivesse feito isso antes. Mas naquela época não
era tão fácil assim.
Mac voltou a ficar calado por um longo tempo. Cada vez que isso acontecia, Rayford sentia-se
mais abatido. Estaria entregando-se ao inimigo?
- Mac, isso é algo que você deve fazer por conta própria. Se quiser, posso orar com você ou...
- Não. Isso é algo que devo fazer por conta própria. Você estava sozinho, não?
- Estava - disse Rayford.
Mac parecia nervoso. Perturbado. Não olhava para Rayford. Rayford não sabia se devia
pressioná-lo e ainda não tinha certeza se Mac era um futuro convertido ou se estava apenas
fingindo. Se a primeira hipótese fosse verdadeira, ele não queria deixar de convencer Mac só
para demonstrar cortesia.
- O que você acha, Mac? O que vai fazer a esse respeito?
Rayford sentiu o coração estremecer ao ver que Mac não respondia e olhava para o outro lado.
Rayford gostaria de ser clarividente. Também gostaria de saber se havia sido contundente
demais ou se Mac revelaria ser um farsante.
Mac inspirou profundamente e prendeu a respiração. Depois de soltá-la, ele balançou a cabeça.
- Ray, estou satisfeito por você ter-me contado isso. É uma bela história. Impressionante. Estou
comovido. Entendo por que você se converteu, e, com certeza, isso lhe está fazendo bem.
Então era isso? pensou Rayford. Mac o estava dispensando com estas palavras corriqueiras?
- Trata-se de um assunto pessoal e particular, não é mesmo? - prosseguiu Mac. - Quero tomar
muito cuidado para não fingir nem tomar uma atitude precipitada, movido pela emoção do
momento.
- Eu entendo - disse Rayford, querendo desesperadamente saber o que se passava no coração
de Mac.
- Você não vai se ofender se eu lhe disser que preciso de tempo para pensar?
- De jeito nenhum - respondeu Rayford. - Espero que não haja mais nenhum tremor de terra
ou guerra que possa vitimá-lo fatalmente antes de você ter a certeza de que vai para o céu,
mas...
- Tenho de pensar que Deus sabe o quanto estou perto de me decidir e que Ele não permitiria
que isso acontecesse.
- Não posso afirmar que conheço os pensamentos de Deus - disse Rayford. - Só quero lhe
dizer que eu não contaria tanto com a sorte.
- Você está me pressionando?
- Sinto muito. Você está certo. Ninguém pode obrigar ninguém.
Rayford temia ter ofendido Mac. Mac estava fazendo uso da técnica de protelação. Por outro
lado, se Mac fosse um subversivo, seria até capaz de simular uma experiência de salvação só
para agradá-lo. Rayford perguntou a si mesmo quando teria certeza de poder confiar em Mac.
Quando finalmente Buck chegou à loja de móveis, constatou que se tratava de uma construção
precária. Não havia nem sinal de ruas ou estradas por ali, e os veículos de emergência
congestionavam o local, sem deixar espaço ou caminho para pessoas estranhas chegarem até
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a porta da loja. As forças pacificadoras de emergência da Comunidade Global entravam e saíam
transportando alimentos e pacientes.
Buck só conseguiu entrar por causa do nível de autorização que constava em seu crachá de
identificação da Comunidade Global. Ele perguntou pela Sra. Cavenaugh e indicaram-lhe uma
fileira de uma dúzia de catres de madeira e lona encostados em uma parede. Estavam tão
próximos um do outro que não havia condição de caminhar entre eles.
Buck sentiu o odor de madeira recém-cortada e ficou surpreso ao ver duas tábuas sendo
pregadas juntas para fazer um tapume. Os fundos da construção haviam afundado cerca de
um metro, forçando o piso de concreto a partir-se ao meio. Quando Buck chegou perto da
fenda, teve de apoiar-se nas tábuas porque a inclinação era muito acentuada. Blocos de
madeira sustentavam o piso para impedir que os catres deslizassem. O pessoal da emergência
dava passos curtos, prestando muita atenção para não tropeçar em alguma coisa.
Cada catre tinha uma tira de papel presa na parte dos pés, onde constava um nome escrito à
mão ou produzido por computador. Enquanto Buck passava ali, os feridos conscientes viravamse,
apoiando-se nos cotovelos, para ver se era alguém da família, e voltavam à posição anterior
ao constatarem que não o conheciam.
No papel preso ao terceiro catre, lia-se "Cavenaugh, Helen".
Ela estava dormindo. Buck avistou dois homens, um de cada lado dela. Um deles, que parecia
não ter casa para morar, estava sentado de costas para a parede, segurando firme uma sacola
de papel cheia de roupas. Ele lançou um olhar desconfiado para Buck e retirou da sacola um
catálogo de loja de departamentos, ao qual fingia ler com grande interesse.
Do outro lado de Helen Cavenaugh estava um jovem franzino com pouco mais de vinte anos.
Seus olhos moviam-se com rapidez e ele passava as mãos pelos cabelos.
- Preciso de uma tragada - ele disse. - Você tem cigarros?
Buck meneou a cabeça. O homem virou-se de lado, encostou os joelhos no peito e começou a
balançar o corpo. Buck não teria se surpreendido se o visse chupando o polegar.
Cada minuto era crucial, mas que trauma a Sra. Cavenaugh teria sofrido a ponto de dormir
tanto? Ela quase morrera e viu o que restara da casa dela quando a retiraram de lá. Buck
pegou uma cadeira de plástico e sentou-se aos pés do catre. Não a acordaria, mas conversaria
com ela após o primeiro sinal de consciência.
Rayford não sabia desde quando se tornara pessimista. E por que esse pessimismo não
influenciara sua fé inabalável de que Amanda estava viva? Ele não acreditava na insinuação de
Carpathia de que ela vinha trabalhando para a Comunidade Global. Ou seria apenas uma história
inventada por Mac?
Desde que se convertera, Rayford sempre procurou ver o lado bom da situação, apesar de todo
aquele caos. Mas, agora, uma terrível e sombria sensação de mau presságio tomava conta
dele enquanto Mac, ainda em silêncio, pousava o helicóptero. Eles guardaram o helicóptero e
conferiram a lista pós-vôo. Antes de passarem pela guarita para entrarem no abrigo, Mac
disse:
- Isso tudo torna-se ainda mais complicado, capitão, pelo fato de você ser meu chefe.
Tal fato não exercera nenhuma influência durante aquele dia. Eles voaram mais como
companheiros do que como chefe e subordinado. Rayford não teria nenhum problema em
manter o decoro, mas talvez Mac tivesse.
Rayford desejava terminar a conversa de maneira concreta, mas não quis dar um ultimato a
Mac nem cobrar-lhe uma resposta posterior.
- Até amanhã - ele disse.
Mac assentiu. Enquanto ambos dirigiam-se para os seus alojamentos, um funcionário
uniformizado interpelou-os.
- Capitão Steele e piloto McCullum? Dirijam-se ao setor de comando central. - O funcionário
entregou um cartão a cada um deles.
Rayford leu o seu em silêncio: "Compareça ao meu escritório o mais breve possível. Leonardo
Fortunato." Desde quando Leon começara a usar seu primeiro nome por inteiro?
- O que Leon desejaria a esta hora da noite? – ele perguntou.
Mac olhou para o cartão de Rayford.
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- Leon? Estou sendo chamado para uma reunião com Carpathia - ele disse, mostrando seu
cartão a Rayford.
Rayford perguntou a si mesmo se aquilo causara surpresa a Mac ou se seria uma grande
encenação? Os dois não haviam discutido por que Rayford e o restante do Comando Tribulação
acreditavam que Carpathia estampava as características do anticristo. Mesmo assim, Mac
possuía informações suficientes para aniquilar Rayford. E, aparentemente, ele ia conversar com
a pessoa certa.
Buck estava inquieto. A Sra. Cavenaugh parecia saudável, mas continuava deitada imóvel, e
ele mal conseguia ver o tórax dela movimentar-se para cima e para baixo dando sinais de
respiração. Ele foi tentado a cruzar as pernas e dar um leve pontapé por baixo do catre, mas
qual seria a reação de uma senhora idosa? Talvez ela rolasse do catre. Impaciente, Buck ligou
para Tsion. Quando a ligação foi completada, Buck contou-lhe entusiasmado que tinha motivos
para acreditar que Chloe estava viva.
- Que maravilha, Cameron! Eu também estou me saindo bem aqui. Consegui conectar a
Internet e tenho motivos suficientes para voltar para Israel.
- Temos de conversar sobre isso - disse Buck. – Continuo achando muito perigoso e não sei
como faremos para você chegar lá.
- Cameron, há notícias espalhadas por toda a Internet de que a prioridade de Carpathia é
restabelecer os sistemas de transporte.
Buck começou a falar mais alto do que precisava, na esperança de despertar a Sra. Cavenaugh.
- Voltarei o mais rápido que puder e pretendo levar Chloe comigo.
- Orarei por isso - disse Tsion.
Buck acionou o botão de ligação rápida para o número de Rayford.
Rayford surpreendeu-se ao ver que o escritório de Leon era apenas um pouco menor que o de
Nicolae e decorado de maneira tão primorosa quanto o dele. Tudo no abrigo era luxuoso, mas
a opulência começava e terminava naqueles dois escritórios.
Fortunato demonstrava uma expressão carrancuda. Apertou a mão de Rayford, curvou a
cabeça com mesura, gesticulou apontando para uma cadeira e sentou-se atrás de sua mesa.
Rayford sempre olhou com curiosidade para aquele homem de tez e olhos escuros, baixo e
atarracado. Ao sentar-se, Fortunato não desabotoou o paletó, que ficou apertado em seu
peito, pondo a perder toda e qualquer formalidade que ele estava tentando demonstrar.
- Capitão Steele - Fortunato começou a falar, mas, antes de prosseguir, o telefone de Rayford
tocou. Fortunato levantou a mão e abaixou-a logo em seguida, demonstrando não acreditar que
Rayford atenderia uma ligação naquele momento.
- Com licença, Leon, deve ser alguém de minha família.
- Você não pode atender ligações aqui - disse Leon.
- Mas vou atender - disse Rayford. - Ainda não recebi notícias de minha filha e meu genro.
- Estou dizendo que não há condições técnicas de receber ligações aqui - disse Leon. Rayford só
ouviu ruídos de estática. - Estamos abaixo do solo e cercados de concreto. Pense um pouco,
homem.
Rayford sabia que as linhas procedentes do centro estavam ligadas a painéis solares e antenas
parabólicas na superfície. Claro que seu telefone celular não funcionaria ali. Mesmo assim, ele
continuava esperançoso. Poucas pessoas conheciam seu número, e as que conheciam eram as
mais importantes do mundo para ele.
- Sou todo ouvidos, Leon.
- Deduzo que não por vontade própria - disse Leon.
Rayford deu de ombros.
- Chamei-o aqui por alguns motivos - ele prosseguiu.
Rayford perguntou a si mesmo se aquela gente tinha tempo para dormir.
- Recebemos informações sobre sua família, pelo menos sobre parte dela.
- Sério? - perguntou Rayford, inclinando-se para a frente. - Que notícias? De quem? De minha
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filha?
- Não, sinto muito. Sua filha está desaparecida. No entanto, seu genro foi localizado em um
bairro de Chicago.
- São e salvo?
- Pelo que sabemos, sim.
- E como estão as comunicações entre aqui e lá?
Fortunato deu um sorriso condescendente.
- Creio que as linhas estão abertas - ele disse -, mas é claro que não aqui embaixo, a menos que
você use nosso equipamento. Ponto para Fortunato, pensou Rayford.
- Eu gostaria de ligar para ele o mais rápido possível para saber notícias de minha filha.
- Claro. Mas antes deixe-me dizer-lhe mais algumas coisas. As equipes de resgate estão
trabalhando contra o relógio no conjunto onde você morava. Você precisa nos entregar uma
lista detalhada de seus objetos de valor, caso eles consigam encontrar algum. Qualquer objeto
de valor sem prévia identificação será confiscado.
- Isso não faz sentido - disse Rayford.
- Não obstante... - disse Fortunato sem levar em conta a observação de Rayford.
- Mais alguma coisa? - perguntou Rayford, demonstrando ansiedade para sair dali.
- Sim - respondeu Fortunato lentamente. Rayford teve a impressão de que Fortunato estava
protelando para deixá-lo atormentado antes de ligar para Buck. - Um dos conselheiros
internacionais mais confiáveis de Sua Excelência acaba de chegar de Israel. Estou certo de que
você conhece o Dr. Chaim Rosenzweig.
- Claro - disse Rayford. Mas Sua Excelência7. A princípio pensei que você estivesse se referindo a
Mathews.
- Capitão Steele, estou querendo conversar com você sobre protocolo. Você tem-se referido a
mim pelo primeiro nome, o que não é correto. Às vezes, você se refere ao potentado pelo
primeiro nome. Todos nós sabemos que você não demonstra simpatia pela crença do Sumo
Pontífice Peter Mathews; no entanto, é falta de respeito referir-se a ele apenas pelo último
nome.
- Apesar disso, você está usando um título, que há muito tempo tem sido restrito a líderes
religiosos e a realeza, para referir-se a Carpat... hã, Nicolae Carpat... ao potentado Carpathia.
- Sim, e creio que já é tempo de nos referirmos a ele dessa maneira. O potentado tem dado sua
contribuição à união mundial mais que qualquer outra pessoa. Ele é amado pelos cidadãos de
todos os países. E, agora que demonstrou poderes sobrenaturais, Excelência é um título mais
que merecido.
- Demonstrou poderes para quem?
- Ele pediu-me que lhe contasse o que aconteceu comigo.
- Já ouvi a história.
- De mim?
- De outras pessoas.
- Então não vou aborrecê-lo com detalhes, capitão Steele.
Só deixe-me dizer-lhe que, apesar de nossas divergências de ideias, estou disposto a uma
reconciliação após a experiência pela qual passei. Quando alguém é literalmente trazido de
volta à vida, seu modo de pensar muda. Você verá que passarei a respeitá-lo, quer seja
merecedor ou não. E minha atitude será sincera.
- Mal posso esperar. E quanto a Rosen...
- Capitão Steele! Você está sendo sarcástico, e eu fui sincero. E lá vem você de novo. Diga Dr.
Rosenzweig. Esse homem é um dos botânicos mais importantes da História.
- Está bem, Leon. Isto é, Dr. Fortunato...
- Não sou doutor! Você deve referir-se a mim como comandante Fortunato.
- Não sei se vou ser capaz de chamá-lo assim - disse Rayford com um suspiro. - Quando você
conseguiu esse título?
- A bem da verdade, meu título mudou recentemente para supremo comandante. Foi concedido a
mim por Sua Excelência.
- Isso tudo parece uma loucura - disse Rayford. - Você não achava mais divertido quando
éramos apenas Rayford e Leon?
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- Parece que você não consegue levar nada a sério – disse Fortunato fazendo uma careta.
- Vou levar a sério qualquer coisa que você tenha a me dizer sobre Rosenzweig, isto é, Dr.
Rosenzweig.
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OITO
Enquanto aguardava a Sra. Cavenaugh despertar, Buck pensou em dar uma chegada até o
Range Roger para verificar o número do telefone de Ken Ritz em seu computador. Se Ken
pudesse levá-lo com Tsion para Israel, ele também levaria Chloe. Não queria perdê-la de vista
nunca mais.
Buck estava prestes a sair dali quando finalmente a Sra. Cavenaugh remexeu-se no catre. Ele
não queria assustá-la. Limitou-se a observá-la. Quando ela abriu os olhos, ele sorriu. Ela
parecia confusa. Sentou-se e apontou para ele.
- Vocês estão arruinados, moço, não é verdade?
- Arruinados?
- Você e sua mulher. Vocês moravam com Loretta, certo?
- Sim, senhora.
- Mas você não estava lá ontem de manhã.
-Não.
- E sua mulher? Eu a vi! Ela está bem?
- É sobre isso que quero conversar com a senhora. A senhora está em condições?
- Oh, eu estou muito bem! Só não tenho mais onde morar. Aquele inferno me afugentou de lá,
e não quero ver o que restou de minha casa, mas estou muito bem.
- A senhora gostaria de caminhar um pouco?
- É tudo o que quero, mas não irei a lugar nenhum com um homem cujo nome não sei.
Buck desculpou-se e apresentou-se.
- Eu já sabia - ela disse. - Nunca fomos apresentados, mas eu o vi por lá, e Loretta falou-me
sobre você. Conheci sua esposa. Qual é mesmo o nome dela?
- Chloe.
- Ah, é claro! Eu deveria me lembrar, porque gosto muito desse nome. Então, vamos. Ajude-me.
O homem com o polegar na boca não fazia nada, a não ser balançar o corpo. O sem-teto
parecia circunspecto e segurava com força a sacola de roupas. Buck pensou em pedir ajuda a
um deles para levantar a Sra. Cavenaugh do catre. Mas ele não queria provocar uma cena.
Posicionou-se aos pés do catre e estendeu a mão para ela. Assim que ela se sentou em uma
das extremidades daquele frágil leito, a outra começou a dobrar e ficou na posição vertical,
ameaçando cair sobre a cabeça da Sra. Cavenaugh. Buck segurou o catre com a mão e bateu
com tanta força para fazê-lo voltar à posição normal que o sem-teto gritou e o outro deu um
salto e ficou em pé. Buck abriu o catre novamente e empurrou-o para longe. O sem-teto
abaixou a cabeça e encostou-a na sacola de roupas, e Buck não entendeu se ele estava rindo
ou chorando. O outro homem parecia estar pensando que Buck fizera aquilo de propósito. A
Sra. Cavenaugh, que não vira a cena, enroscou o braço no de Buck, e ambos caminharam para
um lugar onde poderiam conversar em particular.
- Eu já disse isto a um jovem da equipe de socorro, mas pensei que toda essa confusão tivesse
sido causada por um tornado. Quem já ouviu falar de terremoto no Meio-Oeste? Já houve
pequenos abalos um pouco mais abaixo, mas não um terremoto dessas proporções que derruba
prédios e mata pessoas. Pensei que fosse esperta, mas fui uma tola. Corri para o porão. Claro
que corri não é o termo certo. Significa que eu não desci um degrau por vez, como costumo
fazer. Desci aquela escada como se fosse uma menina. A única dor que sinto agora é nos
joelhos. Fui até a janela para tentar enxergar a aproximação do tornado. O dia estava claro e
ensolarado, mas o barulho foi ficando cada vez mais alto, e a casa começou a balançar em volta
de mim. Eu continuava achando que se tratava de um tornado. Foi aí que vi sua mulher.
- Onde, exatamente?
- Aquela janela era muito alta para eu enxergar alguma coisa. Eu só via o céu e as árvores.
Tudo balançava. Meu falecido marido tinha deixado uma escada portátil no porão.
Subi por ela para conseguir enxergar a rua. Foi então que sua mulher, Chloe, saiu correndo da
casa. Ela estava carregando alguma coisa. Essa coisa devia ser mais importante do que
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calçar sapatos. Ela estava descalça.
- E para onde ela correu?
- Para o carro. Foi uma estupidez minha, mas gritei para ela. Sua mulher tentava abrir o carro
com a mão que estava
livre, e eu continuei a gritar: "Não fique aí fora, moça!" Eu esperava que ela se desvencilhasse
do que estava carregando e entrasse no carro antes que o tornado chegasse, mas ela nem
sequer olhou para cima. Finalmente, conseguiu abrir o carro e dar partida, e foi então que
tudo começou a tremer. Juro que uma das paredes do porão saiu do lugar. Nunca vi coisa
semelhante em minha vida. O carro começou a rodar, e a árvore enorme da casa de Loretta foi
levantada do chão com raiz e tudo, levando junto metade do jardim. A árvore caiu na rua,
provocando um estrondo, bem na frente do carro de sua mulher. Ela deu marcha à ré, e a
árvore do outro lado do jardim de Loretta começou a tombar. Continuei gritando para a moça
como se ela pudesse me ouvir de dentro do carro. Eu tinha certeza de que a segunda árvore
cairia bem em cima do carro. Ela fez uma manobra para a esquerda, e o asfalto inteiro subiu e
ficou na posição vertical. Se ela tivesse manobrado o carro em direção ao asfalto um segundo
antes, a rua teria caído por cima dela. Sua mulher deve ter levado um tremendo susto, imagine
só, uma árvore obstruindo sua passagem, a outra, ameaçando tombar sobre ela, e a rua inteira
levantando-se do chão. Ela contornou rapidamente a primeira árvore e entrou na garagem. Eu
estava torcendo por ela. Esperava que ela se lembrasse de descer ao porão. Mesmo sem ver o
tornado, eu não acreditava que ele pudesse causar tamanho estrago. Quando ouvi tudo caindo
no chão como se a casa inteira estivesse se despedaçando - bem, é claro que estava - minha
cabeça dura entendeu que não se tratava de um tornado. As duas outras árvores do jardim de
Loretta tombaram, e os vidros da janela do porão espatifaram-se. Desci da escada e corri para o
outro lado. Quando os móveis da sala da frente despencaram bem no lugar onde eu havia
estado, passei por cima da bomba da fossa e me aproximei de um vão aberto na parede. Eu
estava completamente confusa. Só esperava que Chloe pudesse me ouvir. Gritei como louca
naquele vão. Ela apareceu na porta lateral da casa, branca como um fantasma, ainda descalça
e sem nada na mão. Correu para o quintal o mais rápido que pôde. Foi a última vez que a vi. O
resto de minha casa desabou, e a tubulação inclinou-se um pouco, deixando apenas um
pequeno espaço, onde fiquei até alguém me encontrar.
- Fico satisfeito ao ver que a senhora está bem.
- A cena foi terrível. Espero que você encontre Chloe.
- A senhora se lembra da roupa que ela estava usando?
- Claro. Um daqueles vestidos soltos, de cor creme.
- Obrigado, Sra. Cavenaugh. Ela fixou o olhar em um ponto distante e balançou a cabeça
vagarosamente. Chloe ainda está viva, pensou Buck.
- A primeira coisa que o Dr. Rosenzweig perguntou foi se você estava bem, capitão Steele.
- Mal conheço esse homem, Supremo Comandante Fortunato - disse Rayford, acentuando bem
as palavras.
- Comandante é suficiente, capitão.
- Pode me chamar de Ray.
Fortunato ficou zangado.
- Eu poderia chamá-lo de recruta - ele disse.
- Oh, um ótimo título, comandante.
- Você não vai conseguir me tirar do sério, capitão. Já lhe disse que sou um novo homem.
- Novinho em folha - disse Rayford -, se for verdade que estava morto ontem e está vivo hoje.
- A verdade é que o Dr. Rosenzweig também perguntou por seu genro, por sua filha e por Tsion
Ben-Judá.
Rayford gelou. Rosenzweig não podia ter sido tão estúpido assim. Por outro lado, Buck sempre
disse que Rosenzweig estava fascinado por Carpathia. Ele não sabia que Carpathia era tão
inimigo de Ben-Judá quanto o Estado de Israel. Rayford não desviou os olhos de Fortunato,
cujo semblante demonstrava ter certeza de que Rayford estava com a corda no pescoço.
Rayford orou silenciosamente.
- Eu o coloquei a par de tudo e contei que sua filha está desaparecida - disse Leon. Ele parou
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de repente, deixando o assunto no ar. Rayford não esboçou nenhuma reação. - E o que você
tem para nos contar a respeito de Tsion Ben-Judá?
- O que eu tenho para contar? - disse Rayford. - Não faço ideia de seu paradeiro.
- Então, por que o Dr. Rosenzweig perguntou sobre ele logo após ter mencionado sua filha e seu
genro?
- Por que você não faz essa pergunta a ele?
- Por que estou fazendo a pergunta a você, capitão! Você pensa que não estamos sabendo que
Cameron Williams ajudou e incentivou a fuga dele do Estado de Israel?
- Você acredita em tudo o que ouve?
- Sabemos que é verdade - disse Fortunato.
- Então, por que vocês precisam que eu lhes forneça mais detalhes?
- Queremos saber onde Tsion Ben-Judá se encontra. O Dr. Rosenzweig acha importante que Sua
Excelência socorra o Dr. Ben-Judá.
Rayford estava na escuta na ocasião em que aquele pedido fora feito a Carpathia. Nicolae caíra
na gargalhada, dizendo a seu pessoal que deixaria transparecer que estava ajudando Ben-
Judá, mas que, na verdade, estaria informando os inimigos do rabino sobre seu paradeiro.
- Mesmo que eu soubesse onde Tsion Ben-Judá está - disse Rayford - não revelaria a você.
Antes, eu precisaria pedir autorização a ele.
Fortunato levantou-se. Aparentemente, a reunião chegara ao fim. Ele conduziu Rayford até a
porta.
- Capitão Steele, sua deslealdade não vai levá-lo a lugar algum. Vou dizer-lhe novamente que
agora sou um homem de paz. Peço-lhe o favor de não dar a entender ao Dr. Rosenzweig que
Sua Excelência está tão ansioso quanto ele para saber do paradeiro do Dr. Ben-Judá.
- E por que eu lhe faria um favor?
Fortunato levantou as mãos e balançou a cabeça.
- Eu desisto - ele disse. - Nicolae, o poten... Sua Excelência tem mais paciência que eu. Você
nunca seria meu piloto.
- Concordo plenamente, Supremo Comandante. No entanto, na próxima semana serei o piloto
do avião que vai buscar o restante da rapaziada da Comunidade Global.
- Entendo que você está se referindo aos outros líderes mundiais.
- E a Peter Mathews.
- O Sumo Pontífice, sim. Mas ele não pertence à CG.
- Mas tem muito poder - disse Rayford.
- Sim, porém mais no âmbito popular que no diplomático.
Ele não tem nenhuma autoridade política.
- Você é que está dizendo.
Buck conduziu a Sra. Cavenaugh de volta a seu catre, mas, antes de ajudá-la a acomodar-se,
aproximou-se de uma mulher encarregada de supervisionar aquela área e perguntou-lhe:
- Ela precisa ficar no meio destes dois malucos?
- Você pode colocá-la em qualquer catre vazio – respondeu a mulher. Só não se esqueça de
levar junto o adesivo com o
nome dela.
Buck levou a Sra. Cavenaugh até um catre perto de outras pessoas idosas. A caminho da porta,
ele abordou a mulher novamente.
- Que providências vocês estão tomando a respeito de pessoas desaparecidas?
- Pergunte a Ernie - ela respondeu, apontando para um homem de baixa estatura e meiaidade
que demarcava algo em um mapa pendurado na parede. - Ele trabalha para a CG
e é o encarregado da transferência de pacientes de um abrigo para outro.
Ernie não lhe deu muita atenção.
- Pessoas desaparecidas? - ele repetiu, continuando a demarcar o mapa, sem olhar para
Buck. - De modo geral, quase todas serão encontradas mortas. São tantas que não
sabemos por onde começar.
Buck retirou uma foto de Chloe da carteira.
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- Comece por aqui - ele disse.
Finalmente, Ernie lhe deu atenção. Analisou a foto, virando-a em direção à iluminação gerada
por bateria. -Caramba! - ele exclamou. - Sua filha?
- Ela tem 22 anos. Para ser seu pai, eu precisaria ter pelo menos 40.
- E daí?
- Tenho 32 - ele disse, atónito por demonstrar tanta vaidade em um momento como aquele. -
É minha mulher, e fiquei sabendo que ela conseguiu fugir de nossa casa antes de ter sido
destruída pelo terremoto.
- Mostre-me onde fica sua casa - disse Ernie, virando-se para o mapa. Buck apontou o
quarteirão onde Loretta morava. - Hummm. Não é um bom lugar. O terremoto foi mundial,
mas a CG detectou vários epicentros. Aquela parte de Monte Prospect estava muito perto do
epicentro ocorrido na zona norte de Illinois.
- Então foi pior ali?
- Não houve nenhum lugar bom, mas este foi o pior deste Estado. - disse Ernie, apontando para
uma faixa de mais de um quilómetro partindo em linha reta dos fundos da casa de Loretta até o
lugar onde eles se encontravam. - Foi o lugar mais devastado. Ela não teria sido capaz de
atravessar por ali.
- Para onde ela teria ido?
- Não sei dizer. Mas posso fazer alguma coisa. Vou tirar uma cópia ampliada da fotografia dela e
enviá-la por fax para os outros abrigos. É tudo o que posso fazer.
- Eu lhe seria muito grato.
Ernie fez todo aquele trabalho sozinho. Buck ficou impressionado com a nitidez da cópia
ampliada.
- Só conseguimos fazer esta máquina funcionar há cerca de uma hora - disse Ernie. -
Evidentemente, ela funciona por sistema celular. Você já ouviu falar da empresa de
comunicações do potentado?
- Não - disse Buck com um suspiro. - Mas não ficarei surpreso se você me contar que ele
monopolizou o mercado.
- E isso é bom - disse Ernie. - A empresa chama-se Celular-Solar, e o mundo inteiro será ligado
novamente em um piscar de olhos. A sede da Comunidade Global abreviou o nome para Cel-Sol.
Ernie escreveu o seguinte na foto ampliada: "Pessoa Desaparecida: Chloe Irene Steele Williams.
22 anos. 1,68 de altura. 57 kg. Cabelos loiros. Olhos verdes. Nenhuma cicatriz ou sinal
característico." Ele acrescentou seu nome e número de telefone.
- Diga-me onde posso encontrá-lo, Williams. Não tenha muitas esperanças.
- Tarde demais para me dizer isso, Ernie - disse Buck, escrevendo o número de seu telefone.
Ele agradeceu e virou-se para sair. De repente, voltou.
- Você disse que o pessoal da sede chama o sistema de comunicações do potentado de Cel-Sol?
- Sim. É a abreviação de...
- Celular-Solar, eu sei. - Buck saiu, balançando a cabeça.
Enquanto entrava no Range Rover, ele sentiu um completo desânimo. Mas não podia
abandonar aquela sensação de que Chloe estava por ali. Resolveu seguir para a casa de Loretta
por outro caminho. Continuaria a procurá-la. Sempre.
Já era tarde, e Rayford estava cansado. O escritório de Carpathia estava fechado, mas por
baixo da porta via-se luz acesa. Ele supôs que Mac ainda estivesse lá. Sempre cauteloso,
Rayford não confiava que Mac fosse leal a ele. Naquele momento, Mac devia estar revelando
tudo o que ouvira durante o dia.
Sua prioridade antes de dormir era tentar ligar para Buck. Um funcionário do posto de
comando das comunicações lhe informou que ele teria de pedir permissão a um superior para
usar uma linha externa. Rayford surpreendeu-se.
- Veja o nível de minha credencial - ele disse.
- Lamento, senhor. Estou cumprindo ordens.
- Quanto tempo você vai ficar aqui? - perguntou Rayford.
- Mais vinte minutos, senhor.
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Rayford sentiu-se inclinado a interromper a reunião de Carpathia com Mac. Sabia que Nicolae
lhe daria permissão para usar o telefone, e, se entrasse na sala sem ser anunciado,
demonstraria que não tinha nada a temer sobre a reunião de Sua Excelência o Potentado com
seu subordinado. Porém, pensou melhor quando viu Fortunato desligar a luz de seu escritório e
trancar a porta.
Rayford interpelou-o animadamente, dizendo sem nenhum traço de sarcasmo:
- Senhor comandante Fortunato, tenho um pedido a lhe fazer.
- Pois não, capitão Steele.
- Necessito da permissão de um superior para usar uma linha telefónica externa.
- E você vai ligar para...?
- Meu genro nos Estados Unidos.
Fortunato encostou-se na parede com as pernas separadas e cruzou os braços.
- Que interessante, capitão Steele! Você acha que o Leonardo Fortunato da semana passada teria
atendido a esse pedido?
- Não sei. Provavelmente, não.
- Se eu lhe desse permissão, a despeito da maneira como você me tratou esta noite, isso lhe
serviria como prova de que mudei?
- Bem, já seria um bom sinal.
- Sinta-se à vontade para usar o telefone, capitão. Fale o tempo que precisar, e faço votos que
você encontre tudo bem em casa.
- Obrigado - disse Rayford.
Enquanto dirigia, Buck orava por Chloe, imaginando que ela estava em lugar seguro e que
simplesmente aguardava notícias dele. Ele ligou para Tsion a fim de contar-lhe as novidades,
mas não ocupou a linha por muito tempo. Tsion parecia abatido, perturbado. Algo o
atormentava, mas Buck não quis prosseguir a conversa, para manter a linha desocupada.
Ele abriu seu laptop e verificou o número de Ken Ritz. Alguns instantes depois, atendeu uma
secretária eletrônica: "Estou voando, comendo, dormindo ou falando na outra linha. Deixe seu
recado."
Os curtos bips que indicavam as mensagens já recebidas por Ken Ritz pareciam intermináveis.
Buck começou a impacientar-se, não querendo ocupar sua linha por muito tempo. Finalmente,
soou um bip mais longo. "Ken", ele disse. "Aqui é Buck Williams. Os dois que você ajudou a
retirar de Israel com seu avião precisam retornar brevemente para lá. Ligue para mim."
Rayford não podia acreditar que o telefone de Buck estivesse ocupado. Fechou o telefone com
força e aguardou alguns minutos para discar novamente. Ocupado de novo! Rayford deu um
soco na mesa. O jovem supervisor do sistema de comunicações disse:
- Temos um dispositivo que continua a discar o número automaticamente e deixa um recado.
- Se eu deixar um recado para a pessoa me chamar neste número você me acordaria?
- Infelizmente, não. Mas o senhor pode pedir que a pessoa ligue às sete horas da manhã, no
início do expediente.
Buck estava em dúvida quanto à secretária eletrônica de Ritz. E se ele tivesse morrido no
terremoto? Ritz morava sozinho, e a secretária poderia gravar recados até preencher todo o
espaço.
Quando ele estava a meia hora de distância da casa de Donny e Sandy, seu telefone tocou.
"Meu Deus, tomara que seja Ernie", ele suplicou.
- Buck falando.
"Buck, esta é uma mensagem gravada de Rayford. Lamento muito não ter conseguido falar com
você. Por favor, ligue para mim neste número às sete horas da manhã, meu horário. Aí deverá
ser 22 horas, se você estiver na região central dos Estados Unidos. Estou orando para que Chloe
esteja bem. E orando também por você e pelo nosso amigo, claro. Quero saber tudo o que
aconteceu. Continuo à procura de Amanda. Meu coração diz que ela ainda está viva. Ligue para
mim."
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Buck olhou para o seu relógio. Por que ele não poderia ligar para Rayford naquele momento?
Buck pensou em ligar para Ernie, mas não queria irritá-lo. Resolveu ir ao encontro de Tsion.
Assim que entrou na casa, Buck percebeu algo estranho. Tsion não o fitava nos olhos.
- Não encontrei nenhuma barra de metal para espetar o quintal. - disse Buck. Você localizou o
abrigo?
- Sim - disse Tsion secamente. - Trata-se de uma duplicata do abrigo da igreja onde morei.
Você quer vê-lo?
- O que há de errado, Tsion?
- Precisamos conversar. Você quer ver o abrigo?
- Isso pode esperar. Só quero saber como você o localizou.
- Você não vai acreditar que estivemos muito perto dele ontem à noite quando realizamos
aquela tarefa desagradável. A porta que parece ser de uma despensa conduz a outra bem
maior. O abrigo fica depois dessa porta. Vamos orar para que nunca precisemos usá-lo.
- Devíamos agradecer a Deus sua existência, caso precisarmos usá-lo - disse Buck. - Mas o que
está havendo? Já passamos por muitas situações juntos para você começar a esconder coisas
de mim.
- Não estou escondendo de você para proveito meu – disse Tsion. - Se eu fosse você, não
gostaria de ouvir o que tenho a lhe dizer.
Buck afundou-se numa cadeira.
- Tsion! Não venha me dizer que o assunto tem a ver com Chloe!
- Não, não. Lamento muito, Cameron. Não é nada disso. Continuo orando por ela. A verdade é
que os diários encontrados na maleta de Donny me fizeram tomar conhecimento de uma coisa
que eu não desejava saber.
Tsion sentou-se com o mesmo semblante abatido de quando sua família foi trucidada. Buck
pousou a mão no braço do rabino.
- Tsion, o que está havendo?
Tsion levantou-se, olhou pela janela por cima da pia e depois virou-se encarando Buck. Com as
mãos nos bolsos, ele caminhou até a porta corrediça que separava a cozinha da saleta
reservada para o café da manhã. Buck esperava que ele não abrisse a porta. Não queria
lembrar-se do momento em que retirou o corpo de Sandy Moore de sob a árvore. Tsion abriu a
porta e caminhou até o ponto em que o assoalho havia sido serrado.
Buck estava chocado com a excentricidade do local em que se encontrava e com o que via à
sua frente. Como ele chegara àquela situação? Havia estudado em uma das melhores
faculdades dos Estados Unidos e mudara-se para Nova York no auge de sua profissão. Agora
estava vivendo em uma pequena casa geminada de um bairro de Chicago, que pertencera a
um casal falecido que ele mal conheceu. Em menos de dois anos, ele viu milhões de pessoas
desaparecerem do planeta, tornou-se crente em Cristo, conheceu o anticristo e passou a
trabalhar para ele, apaixonou-se e casou-se, conquistou a amizade de um famoso conhecedor
da Bíblia e sobreviveu a um terremoto.
Tsion fechou a porta e caminhou de volta com passos arrastados. Sentou-se exausto com os
cotovelos apoiados na mesa e cobriu o rosto angustiado com as mãos. Finalmente, ele disse:
- Donny era um génio, Cameron, e isso não é nenhuma novidade. Fiquei intrigado com seus
diários, mas não tive tempo de ler todos. Depois de descobrir o abrigo, resolvi examiná-lo.
Impressionante. Em seguida, passei algumas horas dando alguns toques finais em um dos
estudos muito bem elaborados de Bruce Barnes. Acrescentei alguns estilos de linguagem que,
em minha modesta opinião, darão mais clareza ao texto, e depois tentei conectar a Internet.
Você vai gostar de saber que fui bem-sucedido em minhas tentativas.
- Espero que você tenha ocultado seu endereço eletrônico.
- Assimilei bem suas orientações. Enviei a mensagem para uma central divulgadora de boletins.
Espero e oro para que a maioria das 144.000 testemunhas leia a mensagem, tire proveito dela
e me mande comentários. Vou verificar isso amanhã. Há muitas informações de péssima
qualidade na Internet, Cameron. Espero que os crentes não se deixem levar por elas. Buck
assentiu.
- Mas estou me desviando do assunto - prosseguiu Tsion. - Quando terminei meu trabalho, voltei
a examinar os diários de Donny desde o início. Até agora, só consegui ler um quarto do total.
71
Quero terminar a leitura, mas estou muito triste.
- Por quê?
- Antes de tudo, quero dizer-lhe que Donny era um crente verdadeiro. Ele fez um relato
eloquente de seu remorso por ter perdido sua primeira chance de aceitar a Cristo. Contou
sobre a perda do bebé e como sua mulher encontrou Deus. Ele descreveu de maneira muito
triste e comovente como ambos voltaram a sentir um pouco de alegria diante da possibilidade
do reencontro que teriam com o filho. Peço a Deus que tenha sido assim. - A voz de Tsion
começou a tremer. - Mas, Cameron, encontrei por acaso uma informação que não gostaria de
ter descoberto. Talvez eu não devesse ter lido. Donny ensinou Bruce a escrever mensagens
cifradas que não poderiam ser lidas sem uma senha. Você deve lembrar-se de que ninguém
conhecia aquela senha. Nem Loretta. Nem mesmo Donny.
- É verdade - disse Buck. - Cheguei a perguntar a Donny.
- Donny devia estar protegendo a privacidade de Bruce quando lhe disse que não a conhecia.
- E Donny conhecia a senha de Bruce? Poderíamos tê-la usado. Havia informações de cerca de
um gigabyte às quais nunca conseguimos ter acesso no computador de Bruce.
- Donny não conhecia a senha - disse Tsion -, mas criou seu próprio programa de
decodificação e incluiu-o em todos os computadores que lhe vendeu. Conforme você sabe,
durante o tempo em que estive no abrigo, transferi para o meu computador - que tinha uma
capacidade imensa de armazenamento de dados - tudo o que havia no de Bruce. Tínhamos
também aqueles milhares e milhares de páginas impressas, que muito me ajudaram quando
meus olhos se cansavam de ficar diante da tela. No entanto, achei que seria bom fazer um
backup eletrônico daquele material.
- Você não foi o único a fazer isso - disse Buck. – Esse material deve estar no computador de
Chloe e talvez no de Amanda.
- Não deixamos nada de fora. Até os arquivos cifrados foram copiados porque, se fôssemos
escolher, teríamos retardado o processo. Mas nunca tivemos acesso a eles.
- Até hoje, certo? - disse Buck fitando o teto. - É sobre isso que você deseja me falar?
- Infelizmente, sim - disse Tsion.
Buck levantou-se.
- Se você está prestes a contar-me alguma coisa que vai prejudicar minha estima por Bruce e
sua memória - ele disse -, tome muito cuidado. Ele foi o homem que me conduziu a Cristo,
que me ajudou a crescer espiritualmente e...
- Fique tranquilo, Cameron. Minha estima pelo pastor Barnes só aumentou depois do que li.
Encontrei os arquivos decodificadores em meu computador. Apliquei-os aos arquivos de Bruce
e, após alguns minutos, tudo pôde ser lido em minha tela. Os arquivos não estavam
bloqueados. Confesso que dei uma olhada e percebi que muitos eram de natureza pessoal. Na
maior parte, lembranças de sua mulher e filhos. Ele escreveu sobre seu remorso de tê-los
perdido, de não ter ido com eles, esse tipo de coisa. Senti-me culpado e não li tudo. Mas meu
antigo modo de ser me atraiu para ler outros arquivos particulares. Cameron, confesso que isso
me deixou extremamente alvoroçado. Pensei ter encontrado outros estudos preciosos de Bruce,
mas achei melhor não me atrever a imprimir o que vi. Está no computador em meu quarto. Por
mais doloroso que seja, você precisa ver.
Buck queria dar uma olhada no que Tsion encontrara. Mas ele subiu a escada com a mesma
relutância que sentira ao cavar os escombros da casa de Loretta. Tsion acompanhou Buck até o
quarto e sentou-se na beira de uma cama alta que rangia quando ele se movimentava. Havia
uma cadeira de plástico dobrável diante do toucador sobre o qual estava o laptop de Tsion. O
descanso de tela exibia a mensagem "Eu Sei Que Meu Redentor Vive".
Buck sentou-se e limpou o teclado com os dedos. A data do arquivo indicava que havia sido
iniciado duas semanas depois que ele oficiara a dupla cerimónia de casamento de Buck com
Chloe e de Rayford com Amanda.
Buck falou ao microfone do computador: "Abrir documento."
Na tela, lia-se o seguinte:
Diário de oração pessoal. 6h35 da manhã: Minha pergunta desta manhã, Pai, é o que devo
fazer com esta informação? Não sei se é verdadeira, mas não posso ignorá-la. Sinto o peso de
minha responsabilidade como pastor e mentor do Comando Tribulação. Se uma pessoa intrusa
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está comprometendo nosso trabalho, preciso enfrentar a questão.
Será possível? Será verdade? Não me vanglorio de ter poderes especiais de discernimento,
contudo gostei muito dessa mulher, confiei e acreditei nela desde o momento em que a
conheci. Considerei-a perfeita para Rayford, e ela pareceu ser uma mulher muito dedicada
espiritualmente.
Buck levantou-se com tanta força que a cadeira tombou no chão. Ele curvou-se sobre o laptop
com as palmas da mão apoiadas sobre o toucador. Não pode ser Amanda! ele pensou. Por
favor! Que mal ela poderia ter causado?
O diário de Bruce prosseguia:
"Eles estão planejando visitar-me em breve. Buck e Chloe virão de Nova York, e Rayford e
Amanda, de Washington. Nessa época, estarei retornando de uma viagem internacional.
Precisarei ter uma conversa reservada com Rayford e mostrar-lhe o que encontrei. Nesse
ínterim, não posso fazer nada, uma vez que eles estão muito próximos da Carolina do Norte.
Senhor, dá-me sabedoria."
O coração de Buck batia acelerado, e ele ofegava.
- E onde está o tal arquivo? - ele perguntou. - O que ele soube e de quem conseguiu a
informação?
- Está anexo ao diário do dia anterior.
- Seja o que for que esteja lá, não vou acreditar.
- Sinto a mesma coisa, Cameron, bem no fundo de meu coração. E, apesar disso, aqui
estamos, em completo desespero.
Buck falou ao microfone: "Dia anterior. Abrir documento."
Ele leu:
"Meu Deus, sinto-me igual a Davi quando recusaste a dar-lhe uma resposta. Davi suplicou que
tu não desses as costas para ele. A minha súplica de hoje é a mesma. Sinto-me
completamente desolado. Como devo proceder?"
"Abrir anexo", disse Buck.
A mensagem tinha sido enviada da Europa. Estava endereçada a Bruce, mas seu sobrenome
tinha sido escrito erroneamente. Barns. O remetente era "um amigo interessado".
"Rolar o texto", disse Buck, sentindo o estômago embrulhar. Quando o computador respondeu,
o telefone tocou em seu bolso.
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NOVE
Ele atendeu ao telefone.
- Buck falando.
- Estou tentando falar com Cameron Williams, da Revista Semanário Global.
- Sou eu mesmo.
- Aqui fala o tenente Ernest Kivisto. Conversamos hoje de manhã.
- Sim, Ernie. Que notícias você conseguiu?
- Em primeiro lugar, preciso dizer-lhe que o pessoal da sede está à sua procura.
- O pessoal da sede?
- O chefão. Ou pelo menos alguém próximo a ele. Na tentativa de ampliar a busca, enviei
aquela fotografia, via fax, para todos os Estados vizinhos. Nunca se sabe, pensei.
Se ela estiver ferida ou conseguiu escapar, deve ter procurado abrigo em algum lugar. Deu
certo, porque alguém reconheceu o nome. Um homem chamado Kuntz disse que o conhecia.
Não sei explicar como, mas seu nome foi parar no centro de processamento de informações, e
soubemos que a sede está à sua procura.
- Obrigado. Vou me apresentar.
- Sei que não sou seu chefe e que não posso obrigá-lo a nada, mas, como fui a última pessoa a
vê-lo, vou ser repreendido se você não se apresentar.
- Eu disse que vou me apresentar.
- Não estou pressionando você. Só estou dizendo que...
Buck estava cansado de precisar submeter-se a essa espécie de vigilância militar. Mas esse era
o homem a quem ele teria de recorrer se Chloe fosse localizada.
- Ernie, agradeço tudo o que você está fazendo por mim e fique tranquilo que ligarei para a
sede e mencionarei que foi você quem me deu o recado. Você poderia soletrar seu
sobrenome?
Ernie soletrou seu sobrenome.
- Agora vou lhe dar uma boa notícia. Um funcionário do Cel-Sol recebeu o fax. Ele me criticou
por eu ter enviado a fotografia para todos os lugares. Disse que eu não devia ter
congestionado a rede inteira da CG para transmitir o boletim de uma pessoa desaparecida. Mas
disse também que eles viram uma moça com as características de sua mulher sendo colocada
em uma daquelas ambulâncias tipo furgão no fim da tarde de ontem.
- Onde?
- Não sei exatamente, mas foi entre aquele quarteirão que você me indicou e o local onde me
encontro neste momento.
- A área é muito grande, Ernie. Você não tem mais nenhum detalhe?
- Sinto muito, gostaria de ter.
- Posso falar com esse funcionário?
- Duvido. Ele disse que estava acordado deste o começo do terremoto. Agora deve estar
dormindo em um dos abrigos.
- Não vi nenhuma ambulância tipo furgão no abrigo que você toma conta.
- Estamos aceitando apenas pessoas com ferimentos leves.
- A moça estava muito machucada?
- Aparentemente, não. Se estivesse em estado grave, teria sido levada para... espere um
pouco... Kenosha. Dentro dos limites da cidade, há dois hotéis muito próximos um do outro
que se transformaram em hospitais.
Ernie forneceu a Buck o número do telefone do centro médico de Kenosha. Buck agradeceu-lhe
e perguntou:
- Se eu não conseguir completar a ligação, existe alguma possibilidade de chegar lá de carro?
- Seu carro tem tração nas quatro rodas?
- Sim.
- Você vai precisar disso. Todas as pontes da 1-94 foram destruídas daqui até Madison. Há dois
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lugares por onde você poderá passar, mas antes de chegar à ponte seguinte, terá de rodar por
estradas de pista única, cidadezinhas ou campos abertos e torcer para que tudo dê certo.
Milhares de pessoas estão tentando. A situação está caótica. Não há alternativa, uma vez que
não possuo um helicóptero.
- Ligue antes para mim. Não faz sentido tentar uma aventura como essa por nada.
Buck tinha a sensação de que Chloe estava por perto. Talvez estivesse ferida, mas pelo menos
estava viva. O que ela pensaria sobre o caso de Amanda?
Buck voltou a rolar o texto do diário de Bruce e encontrou o e-mail que o pastor havia recebido.
A mensagem do "amigo interessado" dizia o seguinte:
"Suspeite da senhora "root beer" (N. da T: Bebida sem álcool feita de raízes). Investigue seu
nome de solteira e tome cuidado porque ela é espia da Nova Babilónia. Forças militares
especiais não são nada quando comparadas às fontes de informações que eles possuem.
Insurreição começa em casa. Batalhas são perdidas no campo, mas guerras são perdidas
dentro de casa." Buck virou-se e encarou Tsion.
- O que você deduziu disto?
- Alguém estava avisando Bruce sobre um dos componentes do Comando Tribulação. Temos
apenas duas mulheres. A única cujo nome de solteira Bruce desconhecia só poderia ser
Amanda. Continuo não entendendo por que essa pessoa se referiu a ela como "root beer".
- Por causa das iniciais dela.
- A.W. - disse Tsion em voz baixa enquanto endireitava a cadeira de Buck. - Não estou
entendendo.
- A&W é uma antiga marca de bebida sem álcool feita de raízes, produzida neste país - disse
Buck. - Como Amanda pode ser considerada espia de Carpathia? É isso que devemos entender
quando a tal pessoa falou em Nova Babilónia? O segredo está no nome de solteira - disse
Tsion. – Eu pretendia buscar algumas informações, mas Bruce já tinha feito isso. O sobrenome
de solteira de Amanda era Recus, o que não significava nada para Bruce e o deixou atordoado
por alguns instantes.
- Para mim também não significa nada - disse Buck.
- Bruce foi mais fundo. Aparentemente, o sobrenome de solteira da mãe de Amanda, antes de
casar-se com Recus, era Fortunato.
Buck empalideceu e afundou-se na cadeira novamente.
- Bruce deve ter tido a mesma reação - disse Tsion. – Ele escreveu aqui: "Por favor, Senhor,
não permitas que seja verdade. O que significa aquele nome?"
- O homem de confiança de Carpathia, que não passa de um parasita - disse Buck com um
suspiro -, chama-se Leonardo Fortunato.
Buck voltou a concentrar-se no computador de Tsion.
"Fechar arquivos. Recodificar. Abrir ferramenta de busca. Encontrar Chicago Tnbune. Abrir busca
por nome. Ken ou Kenneth Ritz, Illinois, E.U.A."
- O nosso piloto! - disse Tsion. - Finalmente, você me levará para casa!
- Só quero saber se o sujeito ainda está vivo.
Ritz estava relacionado "entre pacientes em condição estável, Arthur Young Memorial Hospital,
Palatine, Illinois".
- Por que todas as notícias boas só se referem a outras pessoas?
Buck discou o número de Kenosha que Ernie lhe fornecera. Estava ocupado. E continuou
ocupado por mais 15 minutos.
- Continuarei tentando enquanto estivermos na estrada - ele disse.
- Estrada?
- É só modo de falar - disse Buck, consultando seu relógio, que marcava pouco mais de 19
horas de terça-feira.
Duas horas depois, ele e Tsion ainda estavam em Illinois. O Rover sacolejava lentamente ao
lado de centenas de outros carros que ziguezagueavam rumo ao norte. A mesma quantidade
de carros vinha em sentido contrário, a uma distância de 15 a 30 metros da 1-94, onde
anteriormente os veículos corriam a 130 quilómetros por hora ou mais em ambas as direções.
Enquanto Buck procurava caminhos alternativos ou tentava ultrapassar os veículos mais lentos,
Tsion manejava o telefone. Eles o haviam ligado no acendedor de cigarros para economizar
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bateria, e a cada minuto ou pouco mais Tsion apertava o botão de rediscagem. Ou o número
de Kenosha estava congestionado ou não estava funcionando.
Pelo segundo dia consecutivo, Rayford foi despertado por Mac McCullum, seu co-piloto. Pouco
depois das 6h30 da manhã de quarta-feira na Nova Babilónia, Rayford ouviu uma batida na
porta, leve mas insistente. Ele sentou-se na cama, enrolado no lençol e cobertores.
- Só um minuto - ele resmungou, imaginando que fosse a ligação de Buck. Abriu a porta e, ao
ver que era Mac, desabou na cama. - É muito cedo ainda. O que houve?
Mac acendeu a luz, fazendo com que Rayford escondesse o rosto no travesseiro.
- Eu consegui, capitão. Eu consegui!
- Conseguiu o quê? - disse Rayford, com a voz abafada pelo travesseiro.
- Eu orei. Consegui orar.
Rayford virou-se, cobrindo o olho esquerdo com a mão e olhando para Mac com o direito
semicerrado.
- Sério?
- Sou um crente, rapaz. Você acredita?
Ainda protegendo os olhos da claridade, Rayford estendeu a mão livre para apertar a de Mac.
Mac sentou-se na beira da cama de Rayford.
- Rapaz, isso é maravilhoso! - ele disse. - Acordei há poucos minutos e resolvi deixar de
pensar e tomei uma decisão.
Rayford sentou-se de costas para Mac, esfregando os olhos. Passou as mãos pelos cabelos
caídos na testa, quase cobrindo as sobrancelhas.
Poucas pessoas tiveram a oportunidade de vê-lo naquelas condições.
Como Rayford devia proceder? Ele nem sequer perguntara a Mac como havia transcorrido sua
reunião com Carpathia na noite anterior. Como seria bom se Mac estivesse falando a verdade.
Mas, e se tudo não passasse de uma grande encenação, um conluio para enredá-lo e deixá-lo
sem ação? Só podia ser um plano de Carpathia a longo prazo - deixar pelo menos um membro
da oposição fora de combate.
Enquanto não tivesse absoluta certeza, tudo o que Rayford podia fazer naquele momento era
fingir que acreditava. Se Mac tinha capacidade para simular uma conversão e encenar uma
emoção tão grande, Rayford também tinha capacidade de fingir estar comovido. Depois que
seus olhos acostumaram-se à claridade, ele virou-se e encarou Mac. Elegante como sempre, o
co-piloto trajava seu uniforme. Rayford nunca o vira mal vestido. Mas o que seria aquilo?
- Você já tomou banho hoje, Mac?
- Sim, como sempre. Por quê?
- Porque você está com uma mancha na testa.
Mac passou os dedos logo abaixo da linha dos cabelos.
- Não saiu - disse Rayford. - A mancha parece aquilo que os católicos usam na quarta-feira de
cinzas.
Mac levantou-se e foi olhar no espelho pendurado na parede do quarto de Rayford. Aproximouse
bem do espelho, virou de um lado e de outro.
- Do que você está falando, Ray? Não vejo nada.
- Talvez tenha sido alguma sombra - disse Rayford.
- Eu tenho sardas, você sabe.
Quando Mac virou-se, Rayford viu nitidamente a mancha de novo. Sentiu-se um tolo por estar
fazendo tanto alarde a respeito disso, mas sabia que Mac era muito cuidadoso com a aparência.
- Você não consegue vê-la? - perguntou Rayford levantando-se, segurando Mac pelos ombros
e forçando-o a olhar no espelho novamente.
Mac olhou de novo e balançou a cabeça negativamente. Rayford empurrou-o mais para perto
do espelho e inclinou-se até seus rostos ficarem lado a lado.
- Está bem ali! - ele disse, apontando para o espelho. Mac continuava olhando, sem enxergar
nada. Rayford virou o rosto de Mac de frente para ele, colocou um dedo no local e
o fez olhar novamente no espelho. - Aqui. A mancha, que parece ter sido produzida por
carvão, tem o tamanho da impressão digital de um polegar.
Mac curvou os ombros e meneou a cabeça.
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- Ou você está vendo coisas ou estou cego - ele disse.
- Espere um pouco - disse Rayford lentamente. Um arrepio percorreu sua espinha. - Deixe-me
ver essa mancha novamente.
Mac parecia desconfortável por ter Rayford muito perto de seu rosto, quase encostando seu
nariz no dele.
- O que você está procurando? - Mac perguntou.
- Não diga nada!
Segurando Mac pelos ombros, Rayford prosseguiu:
- Mac - disse ele solenemente -, você conhece aquelas imagens em 3-D que parecem borradas
até conseguirmos vê-las com nitidez?
- Ah, sim, e você vai me dizer que está vendo isso.
- Sim! Ela está aí! Posso ver!
- O quê?!
- Uma cruz! Oh, palavra de honra! É uma cruz, Mac!
Mac soltou-se dele e voltou a se olhar no espelho. Inclinou-se até quase encostar no vidro e
afastou o cabelo da testa.
- Por que eu não consigo ver nada?
Rayford aproximou-se do espelho e afastou o cabelo da testa.
- Espere! Será que tenho uma também? Não, não vejo nada.
Mac empalideceu.
- Tem, sim - ele disse. - Deixe-me chegar mais perto.
Rayford mal conseguia respirar enquanto Mac o observava.
- Incrível! - disse Mac. - É uma cruz. Eu posso ver a sua, e você, a minha; mas você não vê
a sua, tampouco eu vejo a minha.
Buck sentia o pescoço e os ombros tensos e doloridos.
- Acho que você nunca dirigiu um veículo como este, Tsion - ele disse.
- Não, irmão, mas estou disposto a dirigi-lo.
- Não, eu estou bem - disse Buck, olhando para o relógio.
- Falta menos de meia hora para eu ligar para Rayford.
A fila de carros sem destino finalmente cruzou os limites de Wisconsin, e o tráfego desviou
para o oeste da via expressa. Milhares começaram a desbravar novos caminhos. A velocidade
máxima permitida era de 50 a 55 quilómetros por hora, mas sempre havia motoristas malucos
que se aproveitavam da situação porque as leis haviam deixado de existir. Quando entrou no
perímetro urbano de Kenosha, Buck pediu orientações de direção a uma funcionária da Força
Pacificadora da Comunidade Global.
- Siga mais ou menos cinco quilómetros no sentido leste - disse-lhe a moça. - O local não
parece um hospital. São dois...
- Hotéis, sim, eu sei.
O tráfego dentro de Kenosha era mais livre que o anterior rumo ao norte, mas em breve
congestionou-se também. Buck chegou até um quilómetro e meio de distância do hospital. As
forças da CG estavam desviando o trânsito, deixando claro que o acesso aos hotéis só poderia
ser feito a pé. Buck estacionou o Range Rover e dirigiu-se para o leste na
companhia de Tsion.
Quando eles avistaram os hotéis, já estava na hora de ligar para Rayford.
- Mac - disse Rayford, tentando conter as lágrimas. - Mal posso acreditar nisto. Orei pedindo
um sinal, e Deus respondeu. Eu precisava de um sinal. Como podemos saber em quem confiar
nesta época?
- Eu imaginei - disse Mac. - Estava ansioso à procura de Deus e sabia que você tinha o que eu
necessitava, mas fiquei com medo de você desconfiar de mim.
- De fato, achei que você estivesse a serviço de Carpathia, mas já havia falado demais.
Mac olhava fixamente para o espelho enquanto Rayford se vestia. De repente, a porta do
quarto abriu-se após uma rápida batida. Um jovem assistente do centro de comunicações
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disse:
- Com licença, senhores, há uma ligação para o capitão Steele.
- Já estou indo - disse Rayford. - Mas, antes, diga-me uma coisa. Eu tenho uma mancha na
testa, bem aqui?
O jovem examinou a testa de Rayford e disse:
- Não, senhor. Acho que não.
Rayford olhou para Mac. Em seguida, vestiu uma camiseta, enfiando-a por dentro da calça, e
seguiu pelo corredor de meias. Alguém como Fortunato - ou, pior ainda, Carpathia -poderia
levá-lo à corte marcial por aparecer vestido daquela maneira diante de seus subordinados. Ele
sabia que não poderia continuar a trabalhar para o anticristo por muito tempo.
Em pé e em silêncio nas terras devastadas de Wisconsin, Buck segurava com força o telefone
colado ao ouvido. Por fim, Rayford atendeu dizendo rapidamente:
- Buck, responda apenas sim ou não. É você que está na linha?
-Sim.
- Este telefone não é confiável; portanto, diga-me como
está o pessoal sem mencionar nomes, por favor.
- Eu estou bem - disse Buck. - O mentor está bem e em lugar seguro. Acreditamos que ela
escapou. Estou perto de me encontrar com ela.
- E os outros?
- A secretária morreu. O técnico do computador e a esposa também.
- Isso é muito triste.
- Eu sei. E você?
- Fui informado de que Amanda afundou no Tigre com o avião da Pan-Con em que ela voava -
disse Rayford.
- Pelas informações recebidas da Internet, ela está relacionada na lista de passageiros, mas
você não está acreditando nisso, certo?
- Não. Só vou acreditar quando a vir com meus próprios olhos.
- Entendo. Rapaz, que bom ouvir sua voz!
- Que bom ouvir a sua também! E sua família?
- Na lista dos desaparecidos, mas é o que acontece com quase todas as pessoas.
- E quanto ao prédio e à casa?
- Desabaram.
- Você tem onde morar? - perguntou Rayford.
- Sim. Estou tentando não aparecer muito.
Eles combinaram de trocar e-mails e desligaram. Buck virou-se para Tsion:
- Ela não poderia ser tão dissimulada. Ele é muito perspicaz, muito atento.
- Talvez estivesse cego de amor - disse Tsion. Buck lançou-lhe um olhar penetrante. - Cameron,
eu não quero acreditar nisso tanto quanto você. Mas, aparentemente, Bruce tinha fortes
suspeitas.
Buck balançou a cabeça.
- É melhor você ficar por aqui, meio escondido, Tsion.
- Por quê? No momento, ninguém vai querer se preocupar comigo.
- Talvez, mas, com o sistema de comunicações da CG, o mundo passou a ser pequeno. Se
Chloe estiver aqui, eles sabem que vou aparecer mais cedo ou mais tarde. E, se ainda
estiverem à sua procura e se Verna Zee quebrou nosso acordo e me delatou a Carpathia, é
provável que eles esperem encontrar você comigo.
- Você tem uma mente criativa, Buck. E paranóica também.
- Talvez. Mas é melhor não arriscar. Se eu estiver sendo seguido quando sair já tendo Chloe ao
meu lado, assim espero -, não se aproxime. Vou pegá-lo a cerca de 200 metros a oeste de onde
estacionei o carro.
Buck caminhou no meio do caos. Além do som ensurdecedor de equipamentos e vozerio de
funcionários competindo para provar quem tinha mais autoridade, ouvia-se também muitos
gritos. Tudo tinha de ser rápido, e não havia tempo para gentilezas.
Buck levou tempo para atrair a atenção de uma mulher da recepção. Ela parecia estar
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cuidando da admissão de pacientes, fazendo também uma espécie de triagem. Ele conseguiu
chegar perto da mulher depois de abrir caminho entre duas macas, cada uma delas com
pacientes ensanguentados que pareciam sem vida.
- Com licença, senhora, estou à procura desta mulher - disse ele, mostrando-lhe uma cópia do
fax que Ernie divulgara.
- Pelo que vejo, ela não deve estar aqui - resmungou a mulher. - Ela tem nome?
- O nome está na fotografia - disse Buck. - Será que vou precisar ler o nome dela em voz alta?
- Não me venha com sarcasmo, companheiro. Para dizer a verdade, eu preciso que você leia o
nome dela para mim.
Buck atendeu ao pedido dela.
- Não reconheço o nome, mas dei entrada a centenas de pacientes hoje.
- Quantos sem nome?
- Talvez um quarto. A maioria estava dentro ou debaixo de suas casas, e tivemos muito
trabalho para verificar os endereços. Quase todos os que estavam fora de casa portavam
documento de identidade.
- Digamos que ela estava fora de casa, não portava nenhum documento e não tinha condições
de falar.
- Então nós dois teremos de adivinhar. Não temos alas especiais para pessoas não-identificadas.
- Eu posso dar uma olhada por aí?
- O que você pretende fazer? Verificar cada paciente?
- Se for necessário, sim.
- Não pode, a menos que seja funcionário da CG e...
- Eu sou - disse Buck exibindo sua credencial.
- ... não obstrua o caminho.
Buck percorreu o primeiro hotel inteiro, parando diante do leito de cada paciente nãoidentificado.
Passou direto por pacientes de grande estatura e não perdeu tempo com pessoas
de cabelos grisalhos ou brancos. Quando ele via uma mulher franzina como Chloe, parava e a
examinava atentamente.
Ele já estava a caminho do outro hotel quando um homem negro e alto saiu de uma sala,
trancando a porta. Buck cumprimentou-o com um movimento de cabeça e continuou a andar,
mas o homem notou o fax em sua mão.
- Procurando alguém?
- Minha mulher - respondeu Buck, exibindo a fotografia.
- Eu não a vi, mas talvez você queira verificar aqui.
- Mais pacientes?
- Aqui é o nosso necrotério, senhor. Não precisa entrar, se não quiser, mas eu tenho a chave.
- Talvez seja melhor - Buck disse, mordendo os lábios.
Buck postou-se atrás do homem enquanto ele destrancava a porta. No entanto, quando a
porta foi empurrada, não abriu completamente, e Buck foi de encontro ao homem. Ele
desculpou-se. O homem virou-se para trás.
- Não foi n... - ele disse, parando e olhando fixamente para o rosto de Buck. - Você está bem?
Sou médico.
- Oh, a minha bochecha. Está tudo bem. Levei um tombo.
Parece que está tudo bem, não?
O médico aprumou a cabeça para examinar melhor.
- Parece ser superficial. Pensei ter visto um hematoma em sua testa, logo abaixo da linha dos
cabelos.
- Não há nada. Não me lembro de ter batido a testa em lugar nenhum.
- Algumas pancadas podem causar hemorragia subcutânea. Não é perigoso, mas, depois de
um ou dois dias a pessoa fica com aparência de guaxinim. Você se importaria se eu examinasse
mais atentamente?
Buck deu de ombros.
- Estou com um pouco de pressa. Mas vá em frente.
O médico retirou um par de luvas de borracha sem uso de dentro de uma caixa em seu bolso e
calçou-as.
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- Oh, por favor, não perca muito tempo com isto – disse Buck. - Não sofro de doença
nenhuma.
- Talvez não - disse o médico, afastando os cabelos de Buck da testa. - Não posso dizer o
mesmo a respeito de todos aqueles corpos com os quais tenho de lidar. - Eles se encontravam
dentro de uma sala enorme, cujo piso estava abarrotado de corpos cobertos por lençóis.
- Você tem uma marca aqui - disse o médico, apalpando o local. - Dói?
- Não. E sabe de uma coisa? - disse Buck. - Você também tem uma coisa diferente na testa.
Parece uma mancha.
O médico passou a mão enluvada na testa e disse:
- Talvez eu tenha segurado algum jornal.
O médico ensinou a Buck como cobrir novamente a cabeça de cada corpo com o lençol. Ele
deveria examinar atentamente o rosto e deixar o lençol cair novamente.
- Não perca tempo com esta fileira. É só de homens.
Buck sobressaltou-se ao ver o primeiro corpo. Era o de uma mulher idosa, sem dentes e com os
olhos arregalados.
- Sinto muito - disse o médico. - Não manipulei os corpos. Alguns parecem estar dormindo.
Outros ficaram deste jeito. Desculpe-me, eu não queria assustá-lo.
Buck tornou-se mais cauteloso e murmurava uma oração desesperada antes de levantar cada
lençol. Sentia-se horrorizado ao ver tantos mortos, mas agradecia a Deus todas as vezes que
constatava que o corpo não era o de Chloe. Quando terminou a verificação, Buck agradeceu ao
médico e dirigiu-se para a porta. O médico olhou-o com curiosidade e, depois de pedir licença,
esfregou a "mancha" de Buck mais uma vez com o polegar, como se pudesse removê-la dali.
- Desculpe-me - ele disse, dando de ombros.
Buck abriu a porta.
- A sua também continua aí, doutor.
No primeiro quarto do outro hotel, Buck avistou duas senhoras de meia-idade que pareciam
ter fugido de uma guerra. Quando estava saindo do quarto, ele viu sua imagem num espelho.
Afastou o cabelo da testa. Não havia nada ali.
O elevador demorou tanto que Buck pensou em subir pelas escadas. Mas, finalmente, o
elevador chegou, e ele conseguiu entrar, balançando a fotografia de Chloe na ponta dos dedos.
Um médico corpulento e mais velho que o outro tomou o elevador no terceiro andar e olhou
firme para a fotografia. Buck levantou-a até o nível dos olhos.
- Com licença - disse o médico, estendendo a mão para pegar a fotografia. - Parente sua?
- Minha mulher.
- Eu a vi.
Buck sentiu um nó na garganta.
- Onde ela está?
- Você não gostaria de saber como ela está?
- Ela está bem?
- Quando eu a vi pela última vez, estava viva. Vamos descer no quarto andar para conversar.
Buck tentava conter sua euforia. Chloe estava viva, e isso era o mais importante de tudo.
Ambos desceram do elevador, e o médico grandalhão fez um gesto chamando-o a um canto.
- Eu sugeri que ela fosse submetida a uma cirurgia, mas não temos condições de operar
ninguém aqui. Se eles seguiram meus conselhos, devem tê-la levado para Milwaukee, Madison
ou Mineápolis.
- O que houve com ela?
- A princípio, pensei que tivesse sido atropelada. O lado direito estava muito machucado desde
o tornozelo até a cabeça. Parece que pedaços de asfalto penetraram naquele lado do corpo;
ela quebrou alguns ossos e talvez tenha fraturado o crânio, tudo do mesmo lado. Mas, se ela
tivesse sido atropelada no asfalto, apresentaria lesões também do outro lado. E não havia
nada lá, a não ser uma leve escoriação no quadril.
- Ela vai sobreviver?
- Não sei. Não temos raio X nem aparelhos de ressonância magnética aqui. Não faço ideia se os
ferimentos atingiram os ossos ou alguns órgãos internos. No entanto, posso imaginar o que
aconteceu com sua mulher. Acho que ela foi atingida por uma parte do telhado, que a
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derrubou no chão, causando aquele ferimento. Ela foi trazida até aqui numa ambulância
tipo furgão. Creio que estava inconsciente, e ninguém sabe quanto tempo levou para ser
atendida.
- Ela recuperou a consciência?
- Sim, mas não foi capaz de comunicar-se.
- Ela não conseguiu falar?
- Não. E também não apertou minha mão, nem piscou os olhos, nem balançou a cabeça.
- Você tem certeza de que ela não está aqui?
- Não seria bom se ela estivesse aqui. Estamos enviando todos os casos graves para
Milwaukee, Madison ou Mineápolis, conforme eu já lhe disse.
- Quem pode me informar para onde ela foi transportada?
O médico apontou para o fim do corredor.
- Pergunte àquele homem ali o que foi feito da Mãe Coelha.
- Muito obrigado - disse Buck, andando apressado em direção ao corredor. De repente, ele
parou e deu meia-volta.
- Mãe Coelha?
- Percorremos o alfabeto várias vezes para dar um nome às mães não-identificadas. No
momento em que sua mulher chegou, não havia tempo para encontrarmos uma palavra
mais apropriada.
- Mas ela não é.
- Não é o quê?
- Mãe.
- Bem, se sua mulher e o bebé sobreviverem, ela será mãe dentro de mais ou menos sete
meses.
O médico afastou-se dali a passos largos. Buck quase perdeu os sentidos.
Sentados diante da mesa do café da manhã, Rayford e Mac planejavam o extenso roteiro que
fariam com o condor 216 a partir de sexta-feira.
- O que Sua Excelência queria ontem à noite? – perguntou Rayford.
- Sua Excelência?
- Ainda não lhe informaram que é assim que devemos chamá-lo de agora em diante?
- Oh, irmão!
- Recebi essas instruções diretamente de Leon, ou, melhor dizendo, do "Supremo Comandante
Leonardo Fortunato".
- Então, esse é o novo título dele? - perguntou Mac.
Rayford assentiu. Mac balançou a cabeça. - Esses caras estão cada vez mais partidários da
linha-dura. Carpathia só queria saber por quanto tempo eu achava que você continuaria a
trabalhar para ele. Eu disse a ele que isso não era da minha conta, mas ele acha que você
anda muito agitado. Eu também disse a Carpathia que ele deveria passar por cima daquele
pequeno incidente perto do aeroporto. Ele já se esqueceu do assunto. Mencionou que poderia
ter sido muito rígido com você, mas, como não foi, esperava que você continuasse trabalhando
para ele por mais uns tempos.
- Quem sabe? - disse Rayford. - E o que mais?
- Ele queria saber se eu conhecia seu genro. Eu respondi que sabia quem ele era mas que não
o conheço pessoalmente.
- Por que você acha que ele lhe fez essa pergunta?
- Não sei. Ele estava tentando ser bonzinho comigo por algum motivo. Talvez quisesse extrair
mais informações sobre você. Disse que achava estranho ter recebido um relatório confidencial
mencionando que o Sr. Williams, conforme ele gosta de chamar seu genro, tinha sobrevivido,
mas ainda não dera notícias. Contou-me que o Sr. Williams era editor do Semanário
Comuniáade Global, como se isso fosse novidade para mim.
- Buck ligou-me hoje cedo. Tenho certeza de que a ligação foi grampeada ou até mesmo
gravada. Se eles queriam tanto falar com Buck, por que não interceptaram a ligação e
resolveram o problema na hora?
- Talvez estejam dando corda para ele se enforcar. Por quanto tempo você acha que Carpathia
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continuará confiando num crente que ocupa essa posição?
- A lua-de-mel já terminou. Você precisa tomar suas próprias decisões, Mac, mas, se eu fosse
você, não me precipitaria em declarar que sou um recém-convertido.
Ninguém pode ver estas marcas, a não ser nossos companheiros de fé.
- Sim, mas e quanto àquele versículo que manda "confessar com a boca"?
- Não faço ideia. Será que as regras prevalecem em tempos como estes? Você acha que deve
confessar sua fé ao anticristo? Eu não sei responder.
- Bem, já confessei minha fé a você. Não sei se basta, mas, por enquanto, você está certo.
Serei mais útil a você dessa maneira. Se eles não souberem, não ficarão ofendidos, e isso
só poderá nos ajudar.
82
DEZ
Com um nó na garganta, Buck orou silenciosamente enquanto caminhava em direção ao
médico no fim do corredor: "Senhor, permite que ela esteja viva. Não faço questão de saber
onde Chloe está, desde que tomes conta dela e de nosso bebé." Alguns instantes depois, ele
estava dizendo:
- Mineápolis! Fica a quase 500 quilómetros daqui.
- Levei seis horas de carro para chegar lá na semana passada - disse o médico. - Mas penso
que as montanhas tão lindas que fazem parte do cenário do lado oeste de Wisconsin e que
contornam Tomah devem ter-se transformado em montinhos depois do terremoto.
Rayford e Mac estavam a caminho do Condor 216 para verificar as condições de vôo da
aeronave. Rayford passou o braço ao redor do ombro de Mac e puxou-o para perto de si.
- Há uma coisa que quero lhe mostrar quando estivermos a bordo - ele cochichou. - Foi
instalada para mim por um amigo que não está mais entre nós.
Rayford ouviu passos atrás de si. Era um jovem uniformizado trazendo uma mensagem que
dizia o seguinte: "Capitão Steele: Favor comparecer imediatamente ao meu escritório para uma
breve reunião comigo e com o Dr. Chaim Rosenzweig, de Israel. Não o segurarei por muito
tempo. Assinado: Supremo Comandante Leonardo Fortunato."
- Obrigado - disse Rayford. - Diga-lhe que já estou indo. - Ele virou-se para Mac e deu de
ombros.
- Existe alguma possibilidade de ir de carro a Minnesota? -perguntou Buck.
- Claro, mas você levaria a vida inteira - respondeu o médico.
- Quais seriam minhas chances de pegar uma carona em um daqueles aviões Medivac?
- Isso está fora de cogitação.
Buck mostrou-lhe sua credencial.
- Trabalho para a Comunidade Global - ele disse.
- Não é o que a maioria faz?
- Como posso descobrir se ela foi transportada para lá?
- Se ela não tivesse ido para lá, teríamos sido informados. Ela está lá.
- E se aconteceu o pior, ou se ela... você sabe...
- Também seríamos informados. A informação está no computador para que todos possam
tomar conhecimento.
Buck desceu quatro lances de escada e saiu do outro lado do segundo hotel. Esquadrinhou o
estacionamento e avistou Ben-Judá no lugar onde o deixara. Dois oficiais uniformizados da CG
conversavam com ele. Buck prendeu a respiração. Por um motivo ou outro, a conversa não
parecia hostil. Dava a impressão de uma brincadeira entre amigos.
Tsion virou-se e começou a afastar-se dos oficiais. Depois de dar alguns passos, virou-se
novamente e lhes acenou timidamente. Ambos responderam ao aceno e Tsion continuou a
caminhar. Buck perguntou a si mesmo para onde Tsion estava indo. Diretamente para o Rover
ou para o local combinado?
Buck permaneceu nas sombras enquanto Ben-Judá passava serenamente diante dos hotéis e
dirigia-se para um terreno pedregoso, devastado pelo terremoto. Quando Ben-Judá já estava
quase fora de visão, os homens da CG começaram a segui-lo. Buck suspirou e orou para que
Tsion fosse esperto o suficiente para não conduzi-los até o Range Rover. Vá para o
local combinado, amigo, ele pensou, e pare a uns 200 metros adiante desses bobocas.
Buck movimentou o corpo de um lado para o outro a fim de descontrair-se e acelerar a
corrente sanguínea. Passou lentamente pelos fundos do segundo hotel, contornou os fundos
do primeiro, e saiu no estacionamento, mantendo uma distância de 50 metros à esquerda dos
oficiais da CG. Andava com passos lentos e firmes como se estivesse fazendo uma caminhada
noturna. Se os oficiais o viram, não prestaram atenção. Eles estavam concentrados no homem
83
idoso de estatura baixa. Buck esperava que, se Tsion tivesse notado sua presença, não o
chamasse nem o seguisse.
Havia muito tempo que Buck não fazia esse tipo de caminhada de mais de um quilómetro e
meio, principalmente assustado como estava. Quando chegou ao local onde estacionara o
Range Rover, ele estava ofegante. Havia uma fila de carros estacionados ali, e ele teve de
procurar o seu.
Tsion caminhava com passos arrastados, tentando encontrar caminho no meio dos escombros.
Os homens da CG continuavam a 100 metros ou pouco mais atrás dele. Buck imaginou que
Tsion sabia que estava sendo seguido. Ele não se dirigiu para o carro, mas para o local
combinado. Quando Buck deu a partida e acendeu os faróis, Tsion tocou o nariz com a mão e
acelerou o passo. Buck passou com o Ranger por alguns caminhos livres, sacolejando de um
lado para o outro, mas na velocidade certa para interceptar Tsion. O rabino apertou o passo, e
os homens da CG começaram a correr. Buck rodava a cerca de 50 quilómetros por hora, uma
velocidade inadequada para aquele terreno irregular. Sacudindo-se no banco e preso apenas
pelo cinto de segurança, Buck inclinou o corpo para a direita e levantou a maçaneta da porta
do passageiro. Quando ele parou na frente de Tsion, a porta abriu-se. Tsion agarrou-se na
maçaneta interna e Buck pisou fundo no acelerador. A porta voltou a fechar com força e bateu
no traseiro de Tsion, atirando-o de atravessado no banco, perto do colo de Buck. Tsion ria
histericamente.
Atordoado, Buck olhou para ele, deu uma guinada para a esquerda e acelerou o carro tão
rapidamente que os homens da CG não tiveram tempo de ver a cor do veículo, e muito menos
o número da chapa.
- O que há de tão engraçado? - ele perguntou a Tsion, que gargalhava tanto a ponto de verter
lágrimas.
- Eu me chamo José Padeiro - disse Tsion, com um sotaque americano ridiculamente
elaborado. – Sou proprietário de uma padaria e asso pães para você, e por isso meu nome é
José Padeiro! - Ele não conseguia parar de rir e cobriu o rosto, deixando que as lágrimas
corressem.
- Você ficou louco? - perguntou Buck. - O que houve?
- Aqueles oficiais! - disse Tsion, apontando para trás por cima dos ombros. - Aqueles cães de
caça espertos e muito bem treinados! - Ele ria tanto que mal conseguia respirar.
Buck também foi forçado a rir. Ele havia pensado que jamais voltaria a sorrir.
Tsion continuava cobrindo os olhos com uma das mãos. Com a outra, ele fez um gesto dando a
entender a Buck que precisava de um tempo para acalmar-se antes de contar a história.
Finalmente, ele conseguiu falar.
- Eles me cumprimentaram de maneira cordial. Tomei muito cuidado. Camuflei meu sotaque
hebraico e não falei muito, esperando que eles se cansassem e fossem embora. Mas os dois
continuaram a me encarar sob a luz fraca do local. Por fim, perguntaram quem eu era. - Tsion
começou a rir novamente e teve de recompor-se. - Foi aí que eu disse: "Meu nome é José
Padeiro. Sou padeiro e tenho uma padaria."
- Não acredito! - exclamou Buck, caindo na gargalhada.
- Eles me perguntaram de onde eu era, e eu lhes pedi que adivinhassem. Um dos oficiais disse
que eu era da Lituânia, e eu apontei para ele, sorri e disse: "Sim! Sim, sou José Padeiro, da
Lituânia!"
- Você é louco!
- Sim - disse Tsion. - Mas não sou um bom ator?
-É.
- Eles me perguntaram se eu tinha documentos. Eu lhes disse que estavam na padaria. Contei
que tinha saído para dar um passeio a fim de ver os estragos. Minha padaria não sofreu
nenhum dano, você sabe.
- Fiquei sabendo.
- Eu os convidei para visitarem minha padaria e comerem umas rosquinhas grátis. Eles
disseram que talvez fossem e pediram o endereço da Padaria do José. Eu lhes disse que
seguissem no sentido oeste, onde encontrariam o único estabelecimento da Rota 50 que
continuava em pé. Eu disse também que Deus deve gostar de rosquinhas, e eles riram.
84
Quando decidi ir embora, despedi-me deles com um aceno, mas os dois começaram a me
seguir. Eu tinha certeza de que você saberia onde me encontrar se eu não estivesse no local
combinado. Mas me preocupei, porque, se você demorasse mais tempo nos hotéis, eles teriam
me alcançado. Como sempre, Deus estava cuidando de nós.
- Você já conhece o Dr. Rosenzweig, tenho certeza - disse Fortunato.
- Claro, comandante - disse Rayford cumprimentando Chaim com um aperto de mão.
Como sempre, Rosenzweig deixava transparecer todo o seu entusiasmo. Ele era um
septuagenário franzino como um duende, de feição afável, rosto marcado por linhas
acentuadas e tufos de cabelos brancos encaracolados que teimavam em parecer sempre
despenteados.
- Capitão Steele! - ele disse. - Que prazer vê-lo novamente! Eu estou aqui para saber notícias
de Cameron, seu genro.
- Conversei com ele esta manhã, e ele está bem. – Rayford olhava Rosenzweig diretamente
nos olhos, na esperança de fazê-lo lembrar-se do assunto confidencial. - Todos estão bem,
doutor - ele disse.
- E o Dr. Ben-Judá? - indagou Rosenzweig.
Rayford sentiu o olhar de Fortunato cravado nele.
- O Dr. Ben-Judá?
- Claro que você o conhece. Ele é um antigo protegido meu. Cameron ajudou-o a livrar-se dos
zelotes de Israel, com a ajuda do poten..., isto é, de Sua Excelência Carpathia.
Leon pareceu gostar de ver Rosenzweig empregar o título correto, e disse:
- Sua Excelência tem o senhor em alto conceito, doutor. E o senhor sabe disso. Prometemos
fazer tudo o que estiver a nosso alcance.
- E para onde Cameron o levou? - perguntou Rosenzweig.
- E por que ele não comunicou o fato à Comunidade Global?
Rayford lutava para manter o controle.
- Se o que o senhor está dizendo for verdade, Dr. Rosenzweig, não tive participação nisso.
Acompanhei a notícia da tragédia que se abateu sobre o rabino e de sua fuga, mas eu estava
aqui.
- Com certeza, o seu genro lhe contou...
- Conforme eu já lhe disse, doutor, não tive conhecimento nenhum desse fato. Eu nem sequer
sabia que a Comunidade Global estava envolvida.
- Então ele não levou Tsion para os Estados Unidos?
- Não tenho ideia do paradeiro do rabino. Meu genro está nos Estados Unidos, mas não tenho
condições de dizer se está com o Dr. Ben-Judá.
Rosenzweig curvou os ombros e cruzou os braços.
- Oh, isso é terrível! - ele disse. - Eu tinha muita esperança de saber que ele está em lugar
seguro. A Comunidade Global poderia dar-lhe uma tremenda ajuda e protegê-lo. Cameron
duvidava do quanto Sua Excelência Carpathia preocupava-se com Tsion, mas ele provou isso
quando ajudou a tirá-lo do país!
Que história Fortunato e Carpathia teriam contado ao Dr. Rosenzweig? Fortunato resolveu falar.
- Conforme eu lhe disse, doutor, nós providenciamos homens treinados e equipamentos para
escoltar o Sr. Williams e o rabino Ben-Judá até a fronteira de Israel com o Egito. A partir dali,
eles fugiram, aparentemente de avião, saindo de Al Arish e sobrevoando o Mediterrâneo.
Evidentemente, esperávamos ser informados o mais rápido possível, mesmo que fosse apenas
para uma simples manifestação de agradecimento. Se o Sr. Williams acha que o Dr. Ben-Judá
está em lugar seguro, mesmo que seja ele quem o tenha escondido, não temos nada contra.
Simplesmente queremos colaborar até o senhor nos dizer que não será mais necessário.
Rosenzweig inclinou-se para a frente e disse gesticulando:
- Esta é a questão! Eu não gostaria de deixar o assunto nas mãos de Cameron. Ele é um
homem muito ocupado, importante para a Comunidade Global. Sei que quando Sua Excelência
pede sua ajuda, ele atende. E depois da história pessoal que você acaba de me contar,
comandante Fortunato, bem... esse assunto é muito mais complicado para o meu jovem amigo
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Nicolae... perdoe minha familiaridade com ele... do que aparenta à primeira vista!
Passava da meia-noite no Meio-Oeste. Buck já contara a Tsion as novidades sobre Chloe. Agora
ele estava falando ao telefone com o Arthur Young Memorial Hospital de Palatine.
- Já entendi. Diga-lhe que é seu velho amigo, Buck.
- Senhor, o estado do paciente não é grave, mas ele está dormindo. Não posso dizer-lhe nada
esta noite.
- Tenho urgência de falar com ele.
- O senhor já disse isso. Por favor, tente de novo amanhã.
- Eu só...
Cliqne.
Buck não percebeu que havia uma estrada em reconstrução à sua frente e freou o carro quase
em cima de uma barreira. Um guarda de trânsito aproximou-se.
- Sinto muito, senhor, mas vou ter de segurá-lo aqui por alguns minutos. Estamos
preenchendo uma fissura.
Buck deixou o carro na posição de estacionar e encostou a cabeça no espaldar do banco.
- Então, o que você acha, Zé Padeiro? Devemos fazer um teste com Ritz até Minneapolis antes
que ele nos leve para Israel?
Tsion sorriu ao ouvir Buck chamá-lo de Zé Padeiro, mas de repente seu semblante voltou a ficar
sério.
- O que houve? - perguntou Buck.
- Espere um pouco - disse Tsion.
Uma escavadeira a poucos metros de distância tinha virado na direção deles e seus faróis
iluminaram o Range Rover.
- Eu não notei que você também tinha machucado a testa - disse Tsion.
Buck endireitou o corpo rapidamente e olhou no espelho retrovisor.
- Não vejo nada. Você é a segunda pessoa esta noite que disse ter visto alguma coisa em
minha testa. - Ele afastou os cabelos. - Onde? O que é?
- Olhe para mim - disse Tsion, apontando para a testa de Buck.
- Ei, olhe para você! - disse Buck. - Há alguma coisa em sua testa também.
Tsion ajeitou o espelho retrovisor.
- Não há nada - ele resmungou. - Você está brincando comigo.
- Tudo bem - disse Buck, frustrado. - Deixe-me ver novamente. De fato, a sua continua aí. E a
minha?
Tsion balançou a cabeça afirmativamente.
- A sua se parece com aquelas imagens em 3-D – disse Buck. - A minha também é assim?
- A mesma coisa. Parece uma sombra ou um machucado ou... o que mais pode ser? Uma
saliência?
- Sim - disse Buck. - Ei! É igual a um daqueles quebra-cabeças que parecem um punhado de
varetas até a gente inverter a imagem na mente e conseguir enxergar o segundo plano como
se fosse o primeiro, e vice-versa. Há uma cruz em sua testa.
Tsion olhava com ar de ansiedade para Buck. De repente, ele disse:
- Sim, Cameron! Nós temos o selo que só os outros crentes conseguem enxergar.
- Do que você está falando?
- O capítulo 7 de Apocalipse menciona que "os servos de nosso Deus" receberão um selo na
testa. Deve ser isso!
Buck não havia percebido que alguém estava acenando para ele prosseguir. O guarda
aproximou-se do carro.
- O que há com vocês? O caminho está livre!
Buck e Tsion entreolharam-se, com um sorriso amarelo. Depois, caíram na gargalhada e
prosseguiram a viagem. De repente, Buck deu uma freada brusca.
- O que foi? - indagou Tsion.
- Encontrei um outro crente lá!
- Lá onde?
- No hospital! O médico negro, responsável pelo necrotério, também tinha o mesmo sinal. Ele
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viu o meu, e eu, o dele, mas nenhum de nós sabia do que se tratava. Preciso ligar para ele.
Tsion procurou o número e informou Buck.
- Ele vai ficar entusiasmado, Cameron.
- Espero conseguir falar com ele. Talvez seja necessário voltarmos para encontrá-lo.
- Não! E se aqueles dois homens da CG descobriram quem eu sou? Mesmo que pensem que sou
o tal José Padeiro, vão querer saber por que saí de lá correndo.
- Está tocando! - disse Buck.
- Hospital Comunidade Global, Kenosha.
- Quero falar com o médico responsável pelo necrotério.
- Ele tem um telefone celular, senhor. Anote o número.
Buck anotou o número e discou.
- Necrotério. Fala Floyd Charles.
- Doutor Charles! Foi você quem me autorizou a entrar no necrotério para procurar minha
mulher esta noite?
- Sim, conseguiu alguma coisa?
- Penso que já sei onde ela está, mas...
- Que bom. Estou feliz por...
- Mas não é por causa disso que estou ligando. Você se lembra daquela mancha em minha
testa?
- Sim - disse o doutor Charles lentamente.
- É o sinal dos servos selados de Deus! Você também tem um e é crente. Certo?
- Louvado seja Deus! - disse o médico. - Sou, mas acho que não tenho esse sinal.
- A gente não consegue ver o próprio. Só os outros.
- Puxa! Ei, deixe-me perguntar-lhe uma coisa! Sua mulher é a Mãe Coelha?
Buck teve um sobressalto.
- É. Por quê?
- Então eu sei quem você é. E eles também sabem. Você está seguindo para Mineápolis. Isso vai
dar tempo para eles tirarem sua mulher de lá.
- Por que eles querem fazer isso?
- Porque você tem algo ou alguém que eles querem... Você continua na linha?
- Sim. De irmão para irmão, diga-me o que você sabe. Quando eles vão tirá-la de lá e para
onde vão levá-la?
- Não sei. Mas ouvi alguma coisa sobre levar alguém de avião partindo do Posto Aéreo Naval de
Glenview... você sabe, aquela antiga base aérea inativa que...
- Eu sei.
- Amanhã, no fim do dia.
- Você tem certeza?
- Foi o que ouvi.
- Vou dar-lhe meu número de telefone particular, doutor. Se você souber de qualquer novidade,
telefone-me, por favor.
- E se você precisar de alguma coisa, a qualquer hora e em quaisquer circunstâncias, entre em
contato comigo. - Obrigado, Sr. Coelho.
Rayford mostrou a Mac McCullum o botão secreto que ligava os fones de ouvido do piloto ao
compartimento dos passageiros. McCullum sussurrou entre os dentes:
- Ray, quando eles descobrirem isto e afastarem você daqui para sempre, vou negar tudo.
- Faz parte de nosso trato. Mas caso alguma coisa me aconteça antes que eles descubram o
botão, você sabe onde está.
- Não, não sei - disse Mac, sorrindo.
- Invente alguma coisa para sairmos daqui. Preciso fazer uma ligação para Buck em meu
telefone.
- Podemos verificar se os ganchos aéreos daquele helicóptero têm alguma utilidade para nós -
disse Mac.
- Ganchos o quê?
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- Os ganchos aéreos. Aqueles que costumo prender no céu, que levantam o helicóptero do chão
e não o deixam cair.
- Oh, aqueles ganchos aéreos! Sim, vamos verificá-los.
Já passava muito da meia-noite quando Buck e Tsion entraram exaustos na casa onde estavam
morando.
- Não sei o que vou encontrar em Mineápolis - disse Buck-, mas tenho de chegar lá em melhor
forma do que estou agora. Ore para que Ken Ritz esteja apto a pilotar um avião.
Não sei se devo ter esperanças quanto a isso.
- Nós não vivemos de esperança - disse Tsion. – Nós oramos.
- Então ore pelo seguinte: Primeiro, que Ritz esteja em boas condições de saúde. Segundo, que
ele tenha um avião que funcione. Terceiro, que exista um aeroporto para ele decolar.
Buck estava no topo da escada quando seu telefone tocou.
- Rayford! - ele disse.
Rayford contou rapidamente a Buck sobre o fiasco com Rosenzweig.
- Adoro aquele velho safado - disse Buck -, mas ele é muito ingénuo. Eu disse várias vezes
para ele não confiar em Carpathia. Mas ele adora o cara.
- Ele faz mais que adorar Carpathia, Buck. Acha que ele é divino.
- Oh, não.
Rayford e Buck contaram um ao outro rapidamente tudo o que acontecera naquele dia.
- Não vejo a hora de conhecer Mac - disse Buck.
- Se você está tão enrolado como parece, Buck, talvez nunca tenha oportunidade de conhecêlo.
- Bem, talvez não aqui, deste lado do céu.
Rayford levantou o assunto de Amanda.
- Você acredita que Carpathia tentou convencer Mac de que ela estava trabalhando para ele?
Buck não sabia o que dizer.
- Trabalhando para Carpathia? - ele disse, vacilante.
- Imagine só! Eu a conheço tanto quanto me conheço e vou lhe dizer mais uma coisa. Estou
convencido de que ela está viva. Estou orando para que você encontre Chloe antes do pessoal
da CG. Ore para que eu encontre Amanda.
- Ela não estava no avião que afundou no rio?
- É tudo o que ouvi até agora - disse Rayford. - Se viajou naquele avião, está morta. Mas vou
verificar isso também.
- Como?
- Depois eu lhe conto. Não quero saber onde Tsion está, mas só me diga uma coisa. Você não
vai levá-lo junto para Minnesota, vai? Se alguma coisa der errado, talvez queiram obrigar você a
trocá-lo por Chloe.
- De jeito nenhum. Tsion acha que vou levá-lo comigo, mas ele entenderá. Acho que ninguém
sabe onde estamos, e há aquele abrigo do qual eu lhe falei.
- Perfeito.
Na quarta-feira de manhã, Buck teve de contar a Tsion que não o levaria nem mesmo até
Palatine. O rabino compreendeu o perigo de ir a Minnesota, mas insistiu que poderia ajudar
Buck a tirar Ken Ritz do hospital.
- Se você precisar desviar a atenção de alguém, poderei ser o José Padeiro novamente.
- Eu gostaria muito de ver essa cena, Tsion, mas não sei quem está atrás de nós. Nem mesmo
sei se alguém descobriu que foi Ken Ritz quem me levou a Israel e nos trouxe de volta. Quem
sabe se aquele hospital não está sendo vigiado?
Talvez Ken não esteja lá. Tudo isso pode ter sido uma cilada.
- Cameron! Já não temos preocupações suficientes para você começar a inventar outras?
Tsion concordou, com relutância, em ficar. Buck insistiu para que ele preparasse o abrigo, caso
as coisas não dessem certo em Mineápolis e as forças da Comunidade Global começassem a
segui-lo para valer. Eles combinaram que Tsion divulgaria, via Internet, os ensinamentos e
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transmitiria ânimo às 144.000 testemunhas e outros crentes clandestinos do mundo inteiro.
Aquilo irritaria Carpathia - sem mencionar Peter Mathews - e ninguém sabia dizer quando a
tecnologia chegaria a um ponto tão avançado de poder rastrear essas mensagens.
A viagem normalmente curta entre Monte Prospect e Palatine agora era uma jornada árdua de
duas horas. O prédio do Arthur Young Memorial Hospital não havia sido seriamente atingido. O
restante de Palatine, com poucas exceções, tinha desabado. Parecia estar nas mesmas
condições de Monte Prospect. Buck estacionou perto de algumas árvores tombadas a cerca de
50 metros da entrada do hospital. Como não avistou nada suspeito, ele seguiu diretamente
para lá. O hospital estava cheio e movimentado. Pelo fato de ser um hospital de verdade e não
um improvisado como os da noite anterior, o atendimento parecia ser mais eficiente.
- Estou aqui para visitar Ken Ritz - ele disse.
- Seu nome? - perguntou uma funcionária de roupa listrada.
Buck hesitou.
- Herb Katz - ele disse, usando um cognome que Ken Ritz reconheceria.
- Posso ver seus documentos?
- Não, não pode.
- Como assim?
- Minha identidade foi perdida com minha casa em Monte Prospect, que agora não passa de um
monte de resíduos de terremoto, está bem?
- Monte Prospect? Perdi uma irmã e um cunhado lá. Acho que foi o local mais atingido.
- Palatine não está em melhores condições.
- Estamos com poucos funcionários, mas muitos de nós tiveram sorte - ela disse batendo na
madeira.
- Bem, e daí? Posso ver Ken?
- Vou tentar. Mas minha supervisora é muito mais durona que eu. Ela não deixa ninguém entrar
sem carteira de identidade. Vou contar a ela qual é a sua situação.
A moça afastou-se da mesa e enfiou a cabeça no vão de uma porta atrás dela. Buck foi
tentado a entrar sem autorização no hospital e encontrar Ritz, principalmente ao ouvir o
diálogo entre as duas.
- Absolutamente não. Você conhece as regras.
- Mas ele perdeu a casa e a identidade e...
- Se você não quiser dizer a ele, eu mesma vou fazer isso.
A funcionária virou-se, fez um gesto dando a entender que sentia muito e sentou-se. De
repente, sua supervisora, uma mulher atraente, de cabelos pretos e beirando os trinta anos,
apareceu na porta. Buck viu o sinal na testa dela e sorriu, perguntando a si mesmo se ela já
sabia disso. Ela sorriu timidamente, mas voltou a ficar séria quando a funcionária virou-se para
olhar.
- Quem o senhor gostaria de visitar?
- Ken Ritz.
- Tiffany, por favor, conduza este cavalheiro até o quarto de Ken Ritz. - ela disse, fitando Buck
nos olhos. Depois virou-se e entrou em sua sala.
Tiffany meneou a cabeça.
- Ela sempre teve preferência por loiros - ela disse, conduzindo Buck até a ala dos pacientes. -
Preciso ter a certeza de que o paciente quer receber visitas.
Buck aguardou no corredor enquanto Tiffany batia na porta e entrava no quarto de Ken Ritz.
- Sr. Ritz, o senhor está em condições de receber visitas?
- Não muito - soou uma voz grave, mas fraca, que Buck logo reconheceu. - Quem é?
- Um tal de Herb Katz.
- Herb Katz, Herb Katz. - Ritz parecia querer lembrar-se do nome. - Herb Katz! Mande-o entrar
e feche a porta.
Quando eles ficaram a sós, Ken sentou-se trémulo na cama. Estendeu a mão que estava ligada
ao soro e apertou levemente a de Buck.
- Herb Katz, você ainda está vivo?
- Eu ia lhe fazer a mesma pergunta. Você está com uma aparência horrível.
- Muito obrigado por me dizer isso. Fui ferido da maneira mais estúpida possível, mas, por
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favor, diga que você tem um serviço para mim. Preciso sair daqui e fazer alguma
coisa, senão vou enlouquecer. Eu queria ligar para você, mas perdi minha agenda telefónica. É
muito difícil encontrar você.
- Tenho dois serviços para você, Ken, mas você acha que está em condições?
- Estarei novinho em folha amanhã - ele respondeu. – Só levei uma pancada na cabeça com
um de meus pequenos aviões.
- O quê?
- O danado do terremoto aconteceu quando eu estava no ar. Fiquei rodando em círculos
aguardando que aquela coisa parasse e quase despenquei quando o sol sumiu. Com muito
custo, consegui pousar em Palwaukee. Não enxerguei a cratera. Na verdade, eu nem sabia que
ela estava ali enquanto não cheguei ao chão. Eu já estava quase parado, apenas rodando
lentamente na pista, quando o avião caiu dentro daquela cratera. Eu não sofri nada, mas o
avião não caiu do jeito que eu imaginava. A minha preocupação era com o combustível e com
outras coisas mais, e eu queria saber como estava meu outro avião e o que havia acontecido
com as outras pessoas. Pulei para fora do avião e corri pela asa para sair do buraco. Pouco
antes de dar o último passo, meu peso fez aquele pequeno Piper inclinar-se, e a outra asa
bateu com força na parte de trás da minha cabeça. Fiquei pendurado na beira da cratera,
tentando de todo jeito sair dali. Eu sabia que tinha um corte profundo na cabeça. Consegui me
segurar com a mão, sentindo uma parte do couro cabeludo pendurada, e comecei a perder os
sentidos. Soltei a mão e escorreguei para baixo do avião. Eu estava apavorado pensando que
ele ia cair em cima de mim. Não me mexi do lugar até que alguém apareceu e tirou-me dali.
Perdi tanto sangue que quase morri.
- Você está um pouco pálido.
- Você não está animado nem um pouco hoje.
- Desculpe.
- Você quer ver?
- Ver o quê?
- Meu ferimento!
- Acho que sim.
Ritz virou-se para que Buck pudesse ver a parte de trás de sua cabeça. Buck fez uma careta. O
ferimento era muito feio. A parte do couro cabeludo que havia sido arrancada e depois suturada
estava raspada, inclusive toda a área ao redor.
- Disseram que o ferimento não atingiu o cérebro, por isso não tenho desculpas para parecer
maluco.
Buck contou seu dilema a Ritz, dizendo que precisava chegar a Mineápolis antes que o pessoal
da CG fizesse alguma coisa com Chloe.
- Quero que você me recomende um piloto, Ken. Não posso aguardar até amanhã.
- Nem pense que eu vou recomendar alguém - disse Ken, desligando o soro e arrancando o
esparadrapo.
- Calma, Ken. Não posso permitir que você faça isso. Você precisa receber alta antes de...
- Esqueça disso, está bem? Talvez eu tenha de fazer as coisas devagar, mas nós dois sabemos
que, se não houve trauma no cérebro, não haverá perigo de acontecer coisa pior. Vou sentir um
pouco de desconforto, só isso. Agora vamos, ajude-me a vestir uma roupa e sair daqui.
- Agradeço muito, mas...
- Williams, se você não me deixar fazer isso, vou odiá-lo pelo resto da vida.
- Só não quero ser responsável pelo que você está fazendo.
Não houve jeito de convencê-lo. Buck passou o braço ao redor de Ken e segurou-o por baixo da
axila. Eles estavam agindo o mais rápido possível, mas um enfermeiro entrou no quarto.
- Ei! Ele não pode sair da cama! Socorro! Alguém me ajude! Chamem o médico dele!
- Isto aqui não é uma prisão - gritou Ken. – Assinei quando entrei aqui e agora estou saindo!
Buck e Ken estavam sendo conduzidos até o saguão quando um médico correu na direção
deles. A moça da recepção chamou sua supervisora. Buck fez um apelo a ela com os olhos. A
supervisora olhou firme para ele e postou-se na frente do médico. Ele tentou afastá-la do
caminho.
- Deixe que eu cuido disso - ela disse.
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O médico afastou-se com olhar desconfiado, e a supervisora ordenou que a moça da recepção
fosse até a farmácia para pegar os remédios receitados para Ken. A supervisora sussurrou:
- Ser crente não significa ser idiota. Estou dando um jeito nisso, mas espero que seja por uma
causa justa.
Buck assentiu e agradeceu.
Sentado dentro do Rover, Ken não se movia, segurando com cuidado a parte de trás da cabeça.
- Você está bem? - perguntou Buck.
Ritz assentiu.
- Leve-me até Palwaukee - ele disse. - Deixei algumas coisas numa sacola que eles estão
guardando para mim. E precisamos ir a Waukegan.
- Waukegan?
- Sim. Meu Learjet voou pelos ares lá, mas está em boas condições. O único problema é que os
hangares foram destruídos. Dizem que os tanques de combustível estão em ordem. Mas há um
outro problema.
- Diga logo.
- As pistas de decolagem.
- O que houve com elas?
- Acho que desapareceram.
Buck estava cortando caminho o mais rápido que podia. Uma das vantagens de não haver mais
estradas era que se podia rodar de um lugar a outro livremente.
- Você pode fazer o Learjet decolar sem pista pavimentada?
- Nunca tive de me preocupar com isso antes. Mas vamos dar um jeito, não?
- Ritz, você é mais louco que eu.
- É o que você pensa. Todas as vezes que estou com você, tenho certeza de que vou morrer. -
Ritz calou-se por alguns momentos. Depois, prosseguiu. - Por falar em morrer, eu não
estava querendo ligar para você só porque precisava de serviço.
- Não?
- Li seu artigo. Aquela história sobre a "ira do Cordeiro" em sua revista.
- O que você achou?
- A pergunta está errada. Você não deveria perguntar o que achei quando li a história, porque,
francamente, não achei muita coisa. Estou dizendo que sempre fico impressionado com o que
você escreve.
- Eu não sabia disso.
- Pode me censurar, se quiser, mas eu não queria que você ficasse muito convencido. De
qualquer forma, eu não gostava de suas teorias. E não acreditava que íamos sofrer
ira do Cordeiro. Mas você devia me perguntar o que penso disso agora.
- Tudo bem. Diga.
- Acho que um sujeito teria de ser muito tolo para pensar que o primeiro terremoto mundial na
história da humanidade foi uma coincidência, principalmente depois do que você profetizou em
seu artigo.
- Ei, eu não profetizei nada. Fui totalmente objetivo.
- Eu sei. Mas nós dois conversamos sobre esse assunto antes, e eu sabia o que você pensava a
respeito. Você escreveu igual a todos aqueles estudiosos da Bíblia, que emitem uma opinião
atrás da outra contra os seres extraterrestres e alguns conspiradores malucos. Mas, de
repente, paft, puft, minha cabeça partiu-se ao meio, e um sujeito mais louco que eu foi quem
descobriu o que ia acontecer.
- Então, quer dizer que você queria me encontrar. Aqui estou.
- Ótimo. Eu imaginei que, se tudo o que aconteceu no mundo foi por causa da ira do Cordeiro,
seria melhor ser amigo desse Cordeiro.
Buck sempre achou que Ritz era esperto demais para não ter visto todos os sinais.
- Posso ajudá-lo nisso - ele disse.
- Achei que você poderia.
Já era perto de meio-dia quando Buck saiu do caminho esburacado onde antes existia a
rodovia Green Bay e rodou lentamente sobre um tapume desabado e contornou as lâmpadas
esmigalhadas no solo do aeroporto de Waukegan. As pistas de decolagem estavam afundadas
91
ou retorcidas, com enormes pedaços de concreto que se estendiam de uma extremidade a
outra.
Ali, em um dos poucos espaços livre, estava o Learjet de Ken Ritz, aparentemente em condições
de uso.
Ritz movimentava-se com lentidão, mas conseguiu taxiar cuidadosamente o Learjet por entre
os entulhos até a bomba de combustível.
- Este aqui faz uma viagem ou mais de ida e volta a Mineápolis com um tanque de combustível
- ele disse.
- A questão é o tempo de vôo - disse Buck.
- Menos de uma hora.
Buck consultou seu relógio.
- De onde você vai decolar?
- O local está inclinado, mas da cabina eu vi um caminho sobre um campo de golfe, do outro
lado da Wadsworth, que parece ser a nossa salvação.
- Como você vai atravessar a estrada e passar por aquele mato?
- Oh, vou conseguir. Porém vai levar um pouco mais de tempo do que voar direto para
Minneapolis. Você fará a maior parte do serviço. Eu dirijo o Learjet, e você limpa o
caminho. Não será nada fácil.
- Se for necessário, abrirei um caminho com as mãos até Minneapolis - disse Buck.
92
ONZE
Rayford estava aprendendo a sentir alegria em meio à tristeza. Seu coração dizia que Amanda
estava viva. A razão dizia que ela estava morta. E quanto à traição dela em relação a ele, ao
Comando Tribulação e principalmente a Deus, nem o coração nem a razão de Rayford
aceitavam esse fato.
Apesar dessas emoções conflitantes e confusão de espírito, Rayford sentia-se agradecido pela
conversão de Mac, bem como pela sua, de Chloe e de Buck. E pelo momento certo que Deus
escolheu quando colocou seu sinal nele! Rayford estava ansioso para saber a opinião de Ben-
Judá sobre isso.
Já era tarde da noite de quarta-feira na Nova Babilónia. Rayford e Mac haviam trabalhado lado
a lado o dia inteiro. Rayford lhe contara toda a história do Comando Tribulação e sobre como foi
a conversão de cada um deles. Mac parecia intrigado pelo fato de Deus ter-lhes proporcionado
um pastor/professor/mentor desde o início, na pessoa de Bruce Barnes. E por que, após a
morte de Bruce, Deus lhes enviou um novo líder espiritual com mais conhecimentos bíblicos
ainda.
- Deus tem-se revelado a cada um de nós - disse Rayford.
- Nem sempre Ele responde às nossas orações da maneira como pensamos, mas aprendemos
a conhecê-lo melhor. Temos de ser cuidadosos para não pensar que tudo o que sentimos no
fundo do coração é necessariamente verdadeiro.
- Não estou entendendo - disse Mac.
- Por exemplo, não posso abandonar a sensação de que Amanda está viva. E não posso jurar
que esse sentimento provém de Deus. - Rayford hesitou, subitamente emocionado. - Se eu
estiver errado, quero ter a certeza de que não vou culpar Deus por isso.
Mac assentiu.
- Não posso imaginar alguém culpar Deus por alguma coisa, mas entendo o que você quer
dizer.
Rayford estava emocionado ao ver o quanto Mac desejava aprender. Mostrou-lhe onde procurar
na Internet os ensinamentos de Tsion, seus sermões, seus comentários sobre as mensagens
de Bruce Barnes, e principalmente o quadro em que, de acordo com os estudos dele, a igreja
estava posicionada na sequência dos sete anos de tribulação.
Mac mostrava-se fascinado pelas evidências que apontavam Nicolae Carpathia como o
anticristo.
- Se a ira do Cordeiro e a lua se transformando em sangue não serviram para me convencer,
homem, com certeza me convenci de que Carpathia é o anticristo. Assim que suas rotas foram
definidas, Rayford enviou um e-mail para Buck sobre seu itinerário. Depois de pegarem Peter
Mathews em Roma, ele e Mac levariam o papa e Leon para Dallas a fim de pegarem um exsenador
pelo Estado do Texas, recentemente empossado embaixador da Comunidade Global dos
Estados Unidos da América do Norte.
- Imagine só, Mac, se esse sujeito, quando resolveu seguir a carreira política, chegou a sonhar
que um dia seria um dos dez reis profetizados na Bíblia.
Um pouco mais da metade do aeroporto Dallas/Fort Worth tinha condições de funcionar, e o
restante estava sendo rapidamente recuperado. Para Rayford, a reconstrução ao redor do
mundo já se iniciara a um ritmo coordenado. Dava a impressão de que Carpathia havia
estudado as profecias e, apesar de insistir que os acontecimentos não foram tão trágicos como
diziam, ele parecia ter-se preparado para começar a reconstruir tudo imediatamente.
Rayford sabia que Carpathia era mortal. Mesmo assim, gostaria de saber se aquele homem
dormia. Ele via Nicolae circulando o tempo todo, sempre de terno e gravata, sapatos lustrosos,
rosto barbeado, cabelo bem aparado. Era um homem surpreendente. Em geral, vivia cercado
de pessoas, com ar sorridente e confiante. Apesar de tantas horas de trabalho, ele apenas se
descontrolava quando lhe convinha. No momento apropriado, fingia sofrimento e empatia. Por
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ser um homem bonito e charmoso, era fácil saber por que ele iludia tanta gente.
No começo daquela noite, Carpathia fizera um pronunciamento ao vivo ao mundo inteiro pela
TV e pelo rádio, dizendo o seguinte: "Irmãos e irmãs da Comunidade Global, estou falando da
Nova Babilónia. Assim como vocês, meus caros amigos, perdi muitos entes queridos e
colaboradores leais nessa tragédia. Quero que aceitem meus mais profundos e sinceros pesares
em nome da administração da Comunidade Global. "Ninguém poderia ter previsto esse ato
fortuito da natureza, o pior da História, que abalou o mundo inteiro. Estávamos nas fases finais
de nossos trabalhos de reconstrução após a guerra contra uma minoria resistente. Agora,
conforme vocês podem testemunhar em qualquer lugar que estiverem, a reconstrução foi
reiniciada.
"Em pouco tempo, a Nova Babilónia se transformará na cidade mais deslumbrante que o mundo
já conheceu. Esta nova capital mundial será o centro bancário e comercial, o quartel-general de
todas as agências governamentais da Comunidade Global e, conseqiientemente, a nova Cidade
Santa, para onde a Fé Mundial Enigma Babilónia será transferida.
"Terei imensa alegria em acolher todos vocês neste lugar maravilhoso. Aguardem alguns meses
até terminarmos a reconstrução e, depois, planejem suas viagens. Cada cidadão deve ter como
objetivo viver esta nova utopia e ver o protótipo para todas as demais cidades."
Rayford e Mac assistiram ao pronunciamento em um aparelho de TV instalado no alto de um
dos cantos do refeitório, na companhia de cerca de 200 funcionários da CG. Nicolae, em um
pequeno estúdio no fim do corredor, manipulava um disco de realidade virtual que exibia ao
telespectador toda a cidade reconstruída, reluzente, como se já estivesse pronta, o que
deixava qualquer um boquiaberto e impressionado.
Carpathia mostrava todas as tecnologias avançadas, cuja finalidade era proporcionar maior
conforto ao homem, que se mesclavam com a maravilha da nova metrópole. Mac cochichou ao
ouvido de Rayford:
- Essas torres de ouro me fazem lembrar os antigos quadros do céu que eu via na Escola
Dominical.
Rayford assentiu.
- Bruce e Tsion disseram que o antícristo simula o que Deus faz.
Carpathia terminou o pronunciamento de maneira animada.
"Vocês sobreviveram, e tenho a confiança inabalável em sua diligência, determinação e
compromisso de trabalhar em conjunto, jamais esmorecer e, de mãos dadas, reconstruir nosso
mundo.
"Estou humildemente a serviço de vocês e me comprometo a fazer tudo o que estiver a meu
alcance, desde que me concedam esse privilégio. Gostaria também de dizer-lhes que, em razão
de uma reportagem especulativa divulgada em uma de nossas publicações da Comunidade
Global, tomei conhecimento de que muitas pessoas estão confusas quanto aos recentes
acontecimentos. Embora o terremoto mundial pareça ter coincidido com a chamada ira do
Cordeiro, preciso fazer alguns esclarecimentos. Aqueles que acreditam que essa catástrofe foi
um ato de Deus são os mesmos que acreditam que, por ocasião dos desaparecimentos
ocorridos há quase dois anos, as pessoas foram arrebatadas para o céu.
"Evidentemente, cada cidadão da Comunidade Global é livre para acreditar no que quiser e
exercitar sua fé, desde que não prejudique a liberdade dos outros. O ponto fundamental da Fé
Mundial Enigma Babilónia é tolerância e liberdade religiosa.
"Por esse motivo, não desejo criticar a crença de outras pessoas. No entanto, apelo para o
bom senso. Não tenho nada contra o direito de se acreditar em um deus pessoal. Contudo,
não entendo como um deus que é descrito como justo e amoroso pode ser tão caprichoso a
ponto de decidir quem é e quem não é digno do céu e tomar essa decisão em 'um piscar de
olhos', conforme eles dizem.
"Será que o mesmo deus amoroso voltou dois anos depois para nos impingir mais desgraças?
Será que ele manifesta sua ira àqueles infelizes que foram deixados para trás, devastando o
mundo em que vivem e matando uma enorme porcentagem deles?" Carpathia sorriu de modo
condescendente. "Peço humildemente aos que acreditam nesse Ser Supremo que me perdoem
se eu retratei erroneamente o seu deus. Mas qualquer cidadão que raciocine com clareza
percebe que essa crença não leva a nada.
94
"Portanto, meus irmãos e irmãs, não culpem Deus pelo que estamos sofrendo. Vejam isso
como parte das provações da vida, um teste para nosso espírito e determinação, uma
oportunidade para fazermos um exame introspectivo e extrair de dentro de nós aquela fonte
inesgotável de bondade que nos abastece desde o nascimento. Vamos trabalhar juntos para
fazer de nosso mundo uma fénix, renascendo das cinzas da tragédia para transformar-se na
maior comunidade que já existiu na face da terra. Despeço-me carinhosamente, aguardando
uma próxima oportunidade para voltar a me dirigir a vocês."
Quando os funcionários da Comunidade Global levantaram-se para aplaudir, Rayford e Mac
também fizeram o mesmo para não dar na vista. Rayford notou que Mac olhava firmemente
para a esquerda.
- O que houve? - ele perguntou.
- Espere um minuto - disse Mac. Rayford estava prestes a sair depois que todos voltaram a
sentar-se, ainda com os olhos pregados na TV. - Percebi que outra pessoa também demorou
um pouco mais para levantar-se - cochichou Mac.
- Um jovem. Trabalha no setor de comunicações, acho.
Todos já estavam acomodados no lugar, porque na tela lia-se a seguinte mensagem: "Por favor,
aguardem o pronunciamento do Supremo Comandante Leonardo Fortunato."
Fortunato não ostentava a mesma figura imponente de Carpathia, mas tinha uma postura
dinâmica diante das câmeras. Era simpático, comunicativo, humilde, porém direto, parecendo
olhar o telespectador nos olhos. Contou a história de sua morte no terremoto e como Nicolae o
ressuscitou.
"Só lamento", ele complementou, "o fato de não ter havido testemunhas. Mas passei por essa
experiência e acredito de todo o coração que nosso Supremo Potentado possui esse dom e que
o usará em público no futuro. Um homem investido desse poder é digno de um novo título.
Estou sugerindo que, daqui em diante, ele seja chamado de Sua Excelência Nicolae Carpathia.
Já estabeleci essa política dentro da administração da Comunidade Global e peço
encarecidamente a todos os cidadãos, que respeitam e amam nosso líder, que sigam esse
exemplo.
"Conforme vocês devem saber, Sua Excelência nunca exigiu nem sequer solicitou esse título.
Apesar de ter-se tornado líder com relutância, ele tem manifestado a disposição de dar a sua
vida pela dos cidadãos que o apoiam. Embora ele nunca tenha insistido em receber uma
consideração especial, conto com a colaboração de vocês.
"Não consultei Sua Excelência a respeito do que vou dizer-lhes, e espero que ele compreenda o
significado de minhas palavras e não se sinta constrangido. Talvez muitos de vocês não saibam
que ele está atravessando um período de grande sofrimento pessoal.
- Mal posso acreditar aonde isso vai chegar - murmurou Rayford.
"Nosso líder e sua noiva, o amor da vida dele, têm a satisfação de comunicar antecipadamente
o nascimento de um bebé dentro de alguns meses. Porém, a futura Sra. Carpathia está
desaparecida. Ela planejava retornar dos Estados Unidos da América do Norte, após uma visita
à sua família, quando o terremoto tornou impossível qualquer viagem internacional. Se alguém
souber do paradeiro da Srta. Hattie Durham, informe, por favor, ao representante da
Comunidade Global de sua cidade o mais rápido possível. Obrigado."
Mac caminhou na direção do jovem que ele observara. Rayford dirigiu-se para o Condor 216 e já
estava perto da escada quando Mac o alcançou.
- Rayford, aquele rapaz tem o sinal na testa. Quando eu disse que sabia que ele era crente, o
jovem empalideceu.
Mostrei-lhe o meu sinal, falei de você e de mim, e ele quase chorou. Seu nome é David Hassid.
Ele é um judeu da Europa Oriental que passou a trabalhar na CG por ter ficado impressionado
com Carpathia. Começou a fazer pesquisas na Internet há seis meses e passou a considerar
Tsion Ben-Judá seu mentor espiritual.
- Quando ele se converteu?
- Faz apenas algumas semanas, mas ele ainda não está preparado para tornar isso público.
Achava que era o único aqui. Ele diz que Tsion divulgou um estudo pela Internet chamado
"Estrada dos Romanos" para a salvação. Acho que todos os versículos encontram-se em
Romanos. Ele quer conhecer você. Não consegue acreditar que você conhece Ben-Judá
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pessoalmente.
- Como não? Talvez eu dê um autógrafo ao rapaz.
Fazer o Learjet de Ken Ritz atravessar o devastado aeroporto de Waukegan até a confusão do
local onde antes existia a rodovia Wadsworth foi fácil. Buck permanecia sentado ao lado de Ken
enquanto ele taxiava lentamente até encontrar pela frente um monte de entulhos e pedaços de
concreto que precisavam ser removidos ou destruídos, além de fissuras que teriam de ser
preenchidas. As ferramentas de que Buck dispunha não eram apropriadas para esse serviço,
mas seus músculos doloridos e os calos nas mãos provavam que ele estava fazendo algum
progresso.
A parte mais complicada seria atravessar a rodovia Wadsworth até o campo de golfe. Em
primeiro lugar, havia uma vala para ser ultrapassada.
- Não é a melhor coisa para se fazer com um Learjet - disse Ken -, mas acho que terei de
passar por dentro da vala, subir e sair. Será necessário aproveitar o momento certo, e
vou ter de parar a uma distância de alguns metros. O pavimento tinha formado uma curva
saliente de cerca de 2,5 metros, uma altura que até mesmo um automóvel teria dificuldade
para transpor.
- De lá, para onde vamos? - perguntou Buck.
- Cada ação tem uma reação, certo? - disse Ritz de forma enigmática. - Se existe uma
elevação, deve existir uma depressão em seguida. Eu só não sei até que ponto precisarei
ir para conseguir atravessar.
Buck andou cerca de 200 metros até avistar uma trinca enorme no pavimento. Se Ritz
pudesse conduzir o avião até aquela distância, mantendo a asa esquerda sem tocar o
pavimento elevado e a roda direita afastada da vala, teria condições de manobrar para a
esquerda e cruzar a estrada. Depois de guiar Ken para não cair na vala daquele lado, Buck
ainda teria de remover uma cerca e alguns arbustos que cercavam o campo de golfe.
Ritz transpôs a primeira vala com facilidade, mas calculou mal o momento de parar antes da
elevação do pavimento, e o Learjet rolou para trás. Com as rodas dentro da vala, Ritz não
podia recuar e, depois de muitas tentativas, ele conseguiu avançar. Finalmente, ele saiu da
vala, mas constatou que a parte frontal do trem de pouso havia sido amassada.
- Isso nao vai afetar muita coisa, mas eu não gostaria de fazer muitas aterrissagens nestas
condições - ele disse.
Buck estava preocupado. Caminhou na frente enquanto Ritz taxiava no sentido leste. Ken
mantinha os olhos fixos na asa esquerda, que passava rente à elevação do pavimento. Buck
tomava conta da roda direita para que ele não caísse na vala.
Depois de atravessar a estrada e transpor outra vala, Ken pisou fundo no freio para não bater
na cerca. Ele desceu e começou a ajudar Buck a remover a cerca, mas, quando chegou o
momento de afastar os arbustos, ele precisou sentar-se.
- Economize suas forças - disse Buck. - Posso fazer isso sozinho.
Rítz consultou seu relógio.
- É melhor você se apressar. A que horas você quer chegar a Minneapolis?
- Não muito depois das 15 horas. Disseram-me que os homens da CG chegarão de Glenview no
fim do dia.
Quando Rayford e Mac terminaram a verificação no Condor, Rayford disse:
- Eu vou sair primeiro. Não devemos ser vistos sempre juntos. Você precisa continuar a ser um
homem de confiança da chefia.
Rayford estava cansado e ao mesmo tempo ansioso para cumprir sua obrigação naquela longa
viagem e voltar logo para iniciar a aventura no fundo do rio. Ele orava para que sua intuição
estivesse certa e que não encontraria Amanda no avião submerso. Depois disso, ele exigiria
saber o que Carpathia fizera com ela. Se Amanda estivesse viva e fosse encontrada, ele não
levaria em conta as ridículas afirmações de que ela era uma espia.
Um funcionário cumprimentou Rayford assim que ele chegou à porta de seus aposentos.
- Sua Excelência gostaria de vê-lo, senhor.
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Rayford agradeceu-lhe e disfarçou sua revolta. O dia havia sido ótimo sem Carpathia. Sua
decepção duplicou quando ele avistou Fortunato na sala de Carpathia. Aparentemente, eles não
sentiram necessidade de saudá-lo com a costumeira cordialidade bajuladora. Nenhum dos dois
levantou-se para cumprimentá-lo nem lhe estendeu a mão. Carpathia apontou para uma
cadeira e referiu-se a uma cópia do itinerário de Rayford que ele havia recebido.
- Vejo que você programou uma escala de 24 horas na América do Norte.
- O avião e os pilotos necessitam de um período de descanso.
- Você vai encontrar-se com sua filha e seu genro?
- Por quê?
- Não estou insinuando que seu tempo gasto com assuntos pessoais seja de meu interesse -
disse Carpathia. – Mas preciso de um favor.
- Pois não.
- Trata-se do mesmo assunto sobre o qual conversamos antes do terremoto.
- Hattie.
- Sim.
- O senhor sabe onde ela está? - perguntou Rayford.
- Não, mas imagino que você saiba.
- Se o senhor não sabe, como eu posso saber?
Carpathia levantou-se.
- Você não acha que chegou a hora de acabarmos com essa cerimónia, capitão Steele? Você
pensa que eu seria capaz de dirigir um governo internacional sem ter olhos e ouvidos por toda
parte? Tenho fontes de informações onde você nem sequer imagina. Pensa que não sei que
você e a Srta. Durham viajaram no mesmo vôo na última vez que foram para os Estados
Unidos?
- Não a vi mais desde então, senhor.
- Mas ela conversou com seu pessoal. Quem sabe o que aquela gente colocou na cabeça dela?
Ela devia ter voltado muito tempo antes. Você tinha obrigações a cumprir. Seja lá o que for que
ela estava fazendo, perdeu o avião, e sabemos que ela viajou com sua mulher.
- Também entendi isso.
- Ela não entrou naquele avião, capitão Steele. Se tivesse entrado, conforme você sabe, não
seria mais problema.
- Ela voltou a ser problema? - perguntou Rayford.
Carpathia não respondeu. Rayford prosseguiu.
- Vi seu pronunciamento. Tive a impressão de que o senhor estava desesperado à procura de
sua noiva.
- Eu não disse isso.
- Eu disse - interveio Fortunato. - Falei o que pensava.
- Oh - disse Rayford -, agora entendi. Sua Excelência não tinha ideia de que você ia falar dos
dons divinos dele e depois exagerar seu sofrimento por causa do sumiço da noiva.
- Não seja ingénuo, capitão Steele - disse Carpathia. – Só quero saber se você vai ter aquela
conversa com a Srta. Durham.
- A conversa na qual eu devo dizer que ela pode ficar com a aliança, morar na Nova Babilónia
e, depois... o que ela deve fazer mesmo com o bebé?
- Estou entendendo que ela já tomou a decisão certa, e você pode garantir-lhe que arcarei com
todas as despesas.
- Com as despesas da criança pelo resto da vida?
- Não é disso que estou falando - disse Carpathia.
- Só estou querendo entender. Então o senhor pagará para alguém matar o bebé?
- Não seja sentimental, Rayford. Trata-se de um procedimento simples e seguro. Só quero que
você dê a ela este recado. Ela entenderá.
- Quer o senhor acredite ou não, não sei onde ela está. Mas, se eu der a ela este recado, não
posso garantir que ela fará o que o senhor deseja. E se ela decidir ter o bebé?
Carpathia balançou a cabeça.
- Preciso terminar esse relacionamento, porém será mais complicado se houver uma criança.
- Compreendo - disse Rayford.
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- Então, estamos combinados.
- Eu não disse isso. Só disse que compreendia.
- Mas você vai conversar com ela?
- Não tenho ideia de seu paradeiro nem se ela está bem.
- Será que ela desapareceu no terremoto? – perguntou Carpathia, com um brilho nos olhos.
- Não seria a melhor solução? - sugeriu Rayford com um sentimento de revolta.
- A bem da verdade, sim - disse Carpathia. - Porém meus contatos acreditam que ela esteja
escondida.
- E o senhor pensa que sei onde ela se escondeu.
- Ela não é a única pessoa no exílio com quem você mantém contato, capitão Steele. É por isso
que você ainda não foi preso.
Rayford estava se divertindo. Carpathia o havia superestimado. Se Rayford tivesse imaginado
que levaria alguma vantagem por dar abrigo a Hattie e Tsion, teria feito isso de propósito. Mas
Hattie estava agindo por conta própria. E Tsion era assunto de Buck.
No entanto, saiu da sala de Carpathia naquela noite com uma vantagem temporária, de acordo
com o próprio inimigo.
Buck transpirava e estava exausto quando finalmente sentou-se ao lado de Ken Ritz e atou o
cinto de segurança. O avião estava pousado na extremidade sul do campo de golfe, que havia
sido destruído pelo terremoto. Adiante deles, havia uma longa tira de grama em bom estado.
- Você precisaria ir até lá para ver se ela é tão firme quanto parece - disse Ken - mas não
temos tempo.
Mesmo sem concordar, Buck não protestou. Ken continuava parado, analisando o local.
- Não estou gostando - ele disse finalmente. - Parece bem longa, e saberemos imediatamente
se é resistente. A pergunta é a seguinte: será que consigo ganhar velocidade para subir?
- É possível interromper, caso você não consiga?
- Posso tentar.
Quando Ken Ritz dizia que podia tentar, era melhor que uma outra pessoa qualquer prometer.
- Vamos fazer isso - disse Buck.
Ritz acelerou e aumentou gradativamente a velocidade. Buck sentiu sua pulsação bater mais
forte enquanto eles subiam e desciam as elevações do gramado, como se estivessem em uma
montanha-russa. Os motores do Learjet produziam um som estridente. Ken chegou a uma
superfície plana e acelerou ao máximo. A força motriz grudou Buck na poltrona, mas, enquanto
ele passava os braços ao redor de si para a decolagem, Ritz reduziu a velocidade.
- Tenho de acelerar mais forte na superfície plana – ele disse, depois de balançar a cabeça. -
Só retrocedi três quartos. - Ele fez uma manobra e retrocedeu o mais que pôde. - Basta
acelerar mais rápido no início. É como pisar na embreagem. Se você rodopiar, não pode
acelerar muito. Se você fizer tudo certo, tem chances de se sair bem.
O processo recomeçou lento, mas desta vez Ken acelerou o mais rápido que pôde. Eles quase
levantaram do chão enquanto passavam rente a depressões e transpunham pequenas
elevações. Chegaram à superfície plana no dobro da velocidade anterior. Ken gritou:
- Agora estamos falando a mesma língua, neném!
O Learjet levantou vôo como um foguete, e Ken manobrou-o de tal forma que parecia que eles
estavam subindo na vertical. Grudado no encosto de sua poltrona, Buck não podia se mexer.
Ele mal podia respirar, mas, quando conseguiu, soltou um gemido, e Ritz riu.
- Se eu não morrer desta vez - disse Buck -, vou levá-lo para a igreja!
O telefone de Buck estava tocando. Ele teve de forçar a mão para retirá-lo do bolso por causa
da força da gravidade.
- Buck falando! - ele gritou.
Era Tsion.
- Você ainda está no avião? - ele perguntou.
- Acabamos de decolar. Mas vamos chegar a tempo.
Buck contou a Tsion sobre o ferimento de Ken e como o tirara do hospital.
- Ele é um homem surpreendente - disse Tsion. - Ouça, Cameron, acabei de receber um e98
mail de Rayford. Ele e seu co-piloto descobriram que uma das testemunhas judaicas trabalha lá
no abrigo. É um jovem. Vou mandar um e-mail para ele. Enviei há poucos instantes para uma
central de divulgação de boletins o resultado de vários dias de estudo.
Dê uma olhada quando você tiver oportunidade. Dei ao estudo o nome de "A Colheita de Almas
Está Próxima", e tem a ver com as 144.000 testemunhas, os milhões de almas que vão ganhar
para Cristo, o selo visível e o que podemos esperar dos julgamentos que ocorrerão no próximo
ano ou pouco depois.
- O que podemos esperar?
- Leia o que está na Internet quando você voltar. E, por favor, pergunte a Ken se ele pode nos
levar a Israel.
- No momento, isso parece impossível - disse Buck. - Rayford não lhe contou que o pessoal de
Carpathia anda dizendo que ajudou você a fugir para poderem encontrá-lo novamente?
- Cameron! Deus não permitirá que aconteça alguma coisa comigo por uns tempos. Sinto uma
enorme responsabilidade em relação ao restante das testemunhas. Leve-me para Israel e deixe
minha segurança nas mãos do Senhor!
- Você tem mais fé que eu, Tsion - disse Buck.
- Então comece a cultivar a sua, meu irmão!
- Ore por Chloe! - disse Buck.
- Tenho orado sempre. Por todos vocês.
Menos de uma hora depois, Ritz comunicou-se por rádio com Minneapolis para obter instruções
de pouso e pediu para entrar em contato com uma locadora de automóveis. Em razão do
número reduzido de funcionários e veículos, os preços haviam duplicado. No entanto, havia
carros disponíveis, e Ritz recebeu orientações de como chegar ao hospital da Comunidade
Global.
Buck não tinha ideia do que encontraria no hospital. Sabia que não seria fácil ter acesso a
Chloe e tirá-la de lá. O pessoal da CG só chegaria para pegá-la no fim do dia, mas com certeza
ela estava sendo vigiada. Ele gostaria de ter alguma pista sobre o estado de Chloe. Seria
prudente removê-la? Haveria condições de sequestrá-la?
- Ken, se você concordar, eu gostaria de usar você e seu ferimento na cabeça para desviar a
atenção. Talvez estejam à minha procura, e espero que não seja tão logo assim, mas acho que
ninguém vai relacionar seu nome com o meu.
- Espero que você esteja falando sério, Buck, porque adoro ação. E mais, você é um bom
sujeito. Alguém está vigiando você e seus amigos. Já nos arredores de Mineápolis, Ritz foi
informado de que o tráfego aéreo estava mais congestionado do que o normal, e ele teria de
aguardar mais dez minutos para pousar.
- Positivo - ele disse. - Tenho uma emergência aqui. Não é caso de vida ou morte, mas um
passageiro deste avião tem um ferimento grave na cabeça.
- Positivo, Lear. Veremos se será possível transferir você para uma outra pista. Informe-nos se
houver qualquer outro problema.
- Gostei da astúcia - disse Buck.
Quando finalmente Ritz recebeu autorização para pousar, ele inclinou o Learjet e sobrevoou o
terminal, que havia sido muito atingido pelo terremoto. A reconstrução já havia começado, mas
os serviços essenciais, desde balcões de vendas de passagens até agências locadoras de
automóveis, estavam instalados em unidades móveis. Buck surpreendeu-se diante da
movimentação que havia naquele aeroporto, com apenas duas pistas funcionando
normalmente.
O aflito gerente de controle de solo desculpou-se por não ter um hangar disponível para abrigar
o Learjet. Ken prometeu-lhe que não deixaria o avião ali por mais de 24 horas.
- Espero que não - sussurrou Buck.
Ritz taxiou até perto de uma das antigas pistas onde máquinas pesadas estavam removendo
grandes quantidades de terra. Ele estacionou o Learjet próximo a aeronaves de todos os tipos,
desde monomotores Piper até Boeings 727. As agências locadoras de automóveis ficavam
distantes dali.
Tremendo, respirando com dificuldade e caminhando lentamente, Ken insistia para que Buck se
apressasse. Buck temia que ele não aguentasse.
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- Não finja que vai desmaiar por causa de seu ferimento - disse Buck, em tom de brincadeira. -
Pelo menos, espere até chegarmos ao hospital.
- Se você me conhecesse - disse Ritz -, saberia que não é fingimento.
- Não acredito no que estou vendo - disse Buck, quando finalmente eles chegaram ao setor de
locação de automóveis e pararam no fim de uma longa fila.
- Parece que as pessoas precisam pegar o carro do outro lado do estacionamento.
Ken, que era bem mais alto que Buck, ficou na ponta dos pés e olhou à distância.
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