domingo, 5 de setembro de 2010

DEIXADOS PARA TRÁS VB

Todos se abaixaram no carro até Stefan conseguir chegar à rua. De dentro do estádio,
ecoavam mais tiros, e Buck orava o tempo todo para que a CG não se sentisse tão
frustrada a ponto de matar pessoas inocentes.
Tsion começou a chorar ao ver o povo fugindo do local.
- Era isto que eu temia - ele disse. - Trazer estas pessoas para dentro do campo do
inimigo, conduzi-las à morte.
Chaim mantinha um comportamento estranhamente silencioso. Não dizia nada nem se
mexia no lugar, limitando-se a olhar firme para a frente. Ele só desviou o olhar quando
Stefan, ao parar no semáforo, tirou as mãos do volante, levantou os braços com os
punhos cerrados e agitou-os diante do rosto em sinal de comemoração. Chaim olhou de
relance para ele e virou-se para o outro lado.
O sinal de trânsito mudou para verde, mas um guarda da CG continuava a segurar o
tráfego, permitindo que uma fila de carros da rua transversal prosseguisse. Stefan
aproveitou o momento para olhar-se no espelho retrovisor. Afastou os
cabelos e examinou sua testa. Chaim olhou para ele, com ar de enfado, e disse:
- Você não vai conseguir ver nada, Stefan. Só os outros vêem o seu selo.
Stefan virou-se para trás.
E então? - ele perguntou.
Está aí - disse Chloe, e Tsion concordou.
Stefan tentou trocar um aperto de mão com todos os que estavam atrás dele. Chaim
levantou as duas mãos, com ar de resignação, encolheu os ombros e sacudiu a cabeça.
- Só vou ter certeza quando esse selo aparecer em minha testa.
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Buck avistou os guardas da CG correndo na direção do cruzamento.
- Vamos embora, Stefan! - ele gritou.
Stefan virou-se para trás e viu que o guarda de trânsito continuava acenando-lhe para
não prosseguir.
Mas...
Confie em mim, Stefan! Vá em frente!
Stefan pisou fundo no acelerador, e o Mercedes avançou. O guarda parou na frente do
carro, com as duas mãos levantadas, mas saltou de lado quando Stefan quase o
atropelou.
-Leve-nos para a casa de Chaim o mais rápido que puder - disse Buck. Stefan aceitou o
desafio.
- Então, Ken - disse Rayford -, como especialista em economia, você ainda confia nos
bancos?
Eu não confiava nos bancos antes de Carpathia ser oque é hoje.
Onde você escondia suas barras de ouro?
-Eu não tinha muitas. Moedas, na maioria. Quem tem troco para uma barra de ouro?
Rayford deu um longo suspiro.
Quem tem troco até mesmo para um pedacinho de ouro? Seria necessário comprar uma
loja inteira para não ter de receber um monte de troco.
Espero que não chegue o dia de precisarmos usar ouro como moeda corrente. Se, por
acaso, eu comprar Palwaukee, estarei adquirindo uma propriedade muito valiosa.
Você não está dizendo que...
Eu sei o que você está pensando. Um sujeito especialista em finanças que vai perder
milhões de dólares por aplicar seu dinheiro num negócio furado.
Exatamente. Até eu conheço um pouco essas coisas.
Faz pouco tempo que guardei todas as minhas economias debaixo da terra. Bem debaixo
do meu barraco. Durante anos, eu só guardei os lucros. Depois do Arrebatamento, que na
época eu achava que se tratava de desaparecimentos,entendi o que ia acontecer com a
economia. - Ken riu.
O quê?
Pensei ter perdido tudo no terremoto. Quase morri por ter ido atrás dele, quero dizer, do
meu tesouro escondido. O chão se partiu, e minhas barras de ouro e caixas de moedas
escorregaram por uma fissura e afundaram mais de seis metros do local onde estavam
guardadas. Poderiam ter afundado mais uns 100 metros ou chegar até o centro da terra.
Eu não sabia o quanto ia ser difícil buscar meu ouro, honestamente não sabia. Cavar
aqueles entulhos era a coisa mais estúpida que um homem podia fazer depois de um
terremoto, e com todos aqueles tremores de terra que aconteceram em seguida. Mas
meu desespero era tanto que imaginei que morreria se não encontrasse meu ouro. Resolvi
começar a cavar. Quando encontrei o que procurava, eu
parecia um garoto que achou suas bolinhas de gude. Foi aí que vi que estava errado.
Comecei a aprender com seu genro.
Como?
Achei que ele tinha virado um fanático, e, apesar de não aceitar, eu não podia deixar de
concordar que ele tinha prioridades diferentes das minhas e de qualquer outra pessoa
que eu conhecia. Quero dizer, eu sabia que ele tinha aceitado tudo o que a religião dizia,
eu tinha certeza disso. Meu futuro estava ligado aos bens que eu possuía. A vida dele
girava em torno de confiar em Jesus. Homem, aquilo me parecia uma coisa idiota, mas
ele estava se saindo bem. Cheguei a invejar seu genro, confesso. Depois daquele
terremoto que me fez ir parar no hospital, com os miolos balançando dentro da cabeça,
eu não podia imaginar o jovem Williams escarafunchando os escombros à procura de
ouro ou coisa parecida. Aí ele apareceu no hospital, e aqui estou eu fazendo mais um de
seus servicinhos malucos.
Eu gostaria que fosse apenas um servicinho – disse Rayford. - Seja lá como for, vamos ter
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uma longa noite pela frente.
Na volta, não seria melhor descermos na Grécia ou na Turquia, em vez de tentarmos voar
a noite inteira? Tenho dois amigos de confiança lá, um em cada país. Acho que ainda não
são crentes, mas eles nunca nos abandonariam, se é que você está me entendendo.
Rayford balançou negativamente a cabeça.
Se tivermos combustível suficiente, vou preferir voar direto para casa.
Você é quem manda.
Assim que o carro atravessou os portões da casa de Chaim, o ancião pediu a Stefan, em
hebraico, que dissesse alguma coisa a Jonas, o segurança. Jonas também respondeu em
hebraico, e Buck perguntou a Tsion o que eles estavam dizendo.
- Depois - disse o rabino, colocando um dedo nos lábios. Quando entraram, eles viram a
cobertura e os comentários do evento pela TV. Tsion, Buck e Chloe foram se esgueirando da
sala, um de cada vez, para não chamar a atenção, a fim de fazer as malas. Eles haviam
sincronizado seus relógios sem que ninguém visse.
Buck notou que agora Chaim parecia tão ansioso quanto Tsion de conversar sobre o
assunto de natureza espiritual. Talvez Chaim estivesse mais, pelo fato de Tsion estar um
pouco perturbado. Buck, porém, sabia que ganhar almas era muito mais importante para
Tsion que sobreviver. Ele não perderia a oportunidade de se deixar usar para a conversão
de Rosenzweig.
Buck queria pedir a chave a Jacov e ficou satisfeito por ter a chance de deixar os dois
velhos amigos conversando a sós. Mas, quando saiu à procura de seu novo irmão, Buck
descobriu que Jacov estaria fora o restante da noite.
- Onde posso encontrá-lo? - ele perguntou.
- Em casa, suponho - respondeu um dos empregados em inglês, com um acentuado
sotaque.
Ele forneceu o número, e Buck discou para lá. Ninguém atendeu.
- Onde mais ele poderia estar? - perguntou Buck. O homem falou em voz baixa:
Eu não disse nada ao senhor, mas há um bar chamado "Harém". É lá que...
Eu sei onde fica - disse Buck. - Obrigado.
Ele correu de volta para a casa e interrompeu a conversa entre Chaim e Tsion.
Desculpem-me - ele disse -, mas preciso dar uma palavrinha com Jacov, e ele não está
em seu apartamento.
Oh! - interveio Chaim. - Ele disse qualquer coisa sobre ir à casa da mãe de Hannelore.
Ele também vai estar presente no Monte do Templo amanhã.
É que eu preciso falar com ele esta noite.
Chaim forneceu a Buck o número do telefone da mãe de Hannelore, e Buck ligou para lá.
Uma voz feminina alemã atendeu e pôs Jacov na linha.
Vai ser difícil para mim sair esta noite, Sr. Williams - disse Jacov. - A mãe de Hannelore
não está aceitando o que estamos dizendo a ela, e concordamos em permanecer aqui
para conversar mais um pouco com ela. Por favor, ore por nós.
Vou orar. Mas, Jacov, eu preciso daquela chave.
Chave?
Aquela da qual você ia fazer uma cópia para o Dr. Rosenzweig.
Ele está com pressa da cópia?
Eu é que preciso dela, e quero também que você confie em mim e não me faça
perguntas.
O senhor está com medo de que algum estranho entre na casa? A porta está trancada. É
a mais resistente da casa.
Eu sei. Mas eu preciso da chave, Jacov. Por favor.
Ela não está comigo. Ficou com Stefan. Vou trabalhar amanhã, mas segunda-feira é o meu
dia de folga. Ele disse que cuidaria da cópia.
Onde ele mora?
Perto do estádio, mas eu fiquei sabendo que o trânsito naquela área foi interrompido esta
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noite.
Eu vi o noticiário pela TV, e ninguém disse nada sobre interromper o trânsito.
Eles acabaram de anunciar. Um guarda da Comunidade Global foi morto logo após a
reunião. Foi por isso que ouvimos tiros. A CG está procurando os assassinos. Eles
acreditam que o guarda foi atacado por um ou mais judeus convertidos que estavam na
reunião.
Jacov, preste atenção. Eu lhe contei o motivo dos tiros.
Mas o senhor não me disse que um guarda foi morto. Será que havia alguns judeus
armados? Talvez eles estivessem protegendo o senhor quando viram o guarda
apontando-lhe a arma.
Oh, por favor, meu Deus, espero que não.
Nunca se sabe, meu amigo. De qualquer forma, o senhor não vai conseguir chegar perto
da casa de Stefan esta noite sem ser barrado. E o senhor sabe que eles vão reconhecê-lo.
Jacov, eu preciso de um favor.
Oh! Sr. Williams, eu quero ajudá-lo, mas não posso ir à casa de Stefan esta noite.
Estamos tentando convencer minha sogra de que esta história toda não foi ideia de
Stefan. Ela sempre o detestou, sempre o culpou por tudo o que eu fiz de errado. Agora,
ela está dizendo que gostaria que ele e eu continuássemos a beber em vez de passar
para o lado desses malucos religiosos, inimigos do potentado. Ela está ameaçando tirar
Hannelore de mim.
Eu só quero que você não mencione ao Dr. Rosenzweig que eu lhe perguntei pela chave. -
Houve um silêncio prolongado. - Sei que estou lhe pedindo que não diga nada ao seu...
Ao homem a quem devo a vida. Ele tem sido um pai para mim. O senhor vai ter de me
contar tudo antes que eu decida se vou concordar ou não. Se eu tiver de esconder
alguma coisa dele que possa prejudicá-lo, jamais me perdoarei. Por que o senhor precisa
daquela chave e por que ele não pode saber?
Jacov, você sabe que ele ainda não se converteu.
Eu sei! Mas nem por isso ele é nosso inimigo! Estou orando para que eu seja a pessoa que
vai pregar para ele, embora o rabino seja amigo do Dr. Rosenzweig.
Ele não é nosso inimigo, Jacov, mas é simplório.
Simplório. Eu não conheço esta palavra.
Ele ainda é amigo do potentado.
Ele não conhece tudo o que se passa.
É por isso que digo que ele é simplório. Se usarmos aquela chave para ir embora daqui
mais cedo, ele poderá contar alguma coisa a Nicolae ou a seu pessoal antes que a CG
saiba que fugimos, e não podemos correr esse risco.
Jacov ficou em silêncio por mais alguns instantes.
Eu não sabia no que estava me metendo - ele disse finalmente. - Não vou voltar atrás.
Agora sou um crente de verdade. Mas nunca pensei que teria de fazer alguma coisa contra
Carpathia.
Jacov, você poderia pelo menos dizer a Stefan que estou precisando desesperadamente
daquela chave? Talvez ele possa dar um jeito de trazê-la até aqui. Ele é conhecido naquela
região, e seria normal sair para trabalhar, mesmo a esta hora, não?
Vou tentar. Mas aí o senhor vai ter de pedir a duas pessoas que fiquem de boca fechada.
Ele vai ficar?
Creio que sim. Mas o que o Dr. Rosenzweig vai pensar quando souber que ajudamos vocês
a fugirem e não lhe contamos nada?
Buck pensou em sugerir que eles dissessem a Rosenzweig que foram ameaçados-pelo
Comando Tribulação. Porém, uma coisa seria fazer uso de todos os meios para ludibriar
Carpathia e seu bando; outra, seria mentir ao homem que eles estavam tentando
aproximar de Deus. Buck consultou seu relógio, que marcava quase 23 horas. Seria muito
difícil Stefan chegar a tempo de entregar-lhe a chave.
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-Jacov, será que teríamos condições de arrombar aquela porta?
-Não vai ser fácil, Sr. Williams. Agora preciso desligar.
Rayford estava a uma hora de distância do aeroporto de Jerusalém, procurando entrar
em contato com as torres das proximidades para saber qual delas o localizaria nas telas
do radar. Ele identificou apenas o tipo e o prefixo de sua aeronave, e ninguém pediu mais
detalhes.
- Previsão chegada 24 horas aeroporto Jerusalém para reabastecer - ele disse.
Dez-quatro, Gulf. Câmbio e desligo. Ele discou para Chloe.
Tudo pronto, querida?
Estamos um pouco desnorteados, papai. Não vou aborrecê-lo com detalhes, mas o plano
continua em pé. Vamos dar um jeito de esperar por você no telhado à meia- noite e meia.
Estou morrendo de saudade, meu bem.
Eu também, papai. Se houver algum problema, ligarei para você.
Entendido. Ken vai buscá-los de helicóptero, e eu ficarei aguardando a bordo do
Gulfstream.
Buck deu uma batida de leve na porta e entrou na sala onde Tsion e Chaim conversavam
em voz baixa, mas animadamente. Tsion lançou um olhar de reprovação a Buck, como se
ele tivesse escolhido o momento errado para interrompê-los.
Peço desculpas, cavalheiros, mas preciso dar uma palavrinha com você, Tsion.
- Não precisa se desculpar - disse Rosenzweig. - Eu estava mesmo precisando sair por
alguns instantes. Vou deixá-los
a sós. Quero perguntar à sua esposa se ela gostaria de ir comigo ao Monte do Templo
amanhã. Jacov e eu sairemos um pouco mais tarde.
Chaim passou por Buck, sorrindo, mas visivelmente perturbado. Buck desculpou-se mais
uma vez com Tsion.
Buck, sei que nosso tempo é curto, mas ele estava quase aceitando!
Aceitando a ponto de podermos confiar nele? – Buck colocou Tsion a par dos
acontecimentos.
Tsion levantou-se e ligou a TV. A tela mostrava a imagem do rosto do guarda da CG que
atirara por cima da cabeça de Buck, errando o alvo de propósito. Abaixo da foto, havia
uma inscrição com a idade e a data da morte dele.
Fui culpado pela morte dele - disse Buck, com a voz embargada.
Mas você salvou minha vida - disse Tsion. - Louve a Deus porque ele está no céu agora.
Buck, sei que tudo isto está sendo muito difícil e eu jamais quis me tornar insensível ao
alto preço que temos de pagar. Ninguém daria um centavo pelo nosso futuro. Não sei por
quanto tempo o Senhor poupará cada um de nós para realizar sua obra. Temo, porém,
que, se permitirmos que Carpathia machuque, mate ou detenha qualquer um de nós esta
noite, a causa de Cristo sofrerá um terrível golpe. Você sabe que não me importo mais
com minha vida. Minha família está no céu, e eu gostaria muito de me reunir a ela. Mas
acredito que Deus não nos faria morrer desnecessariamente. Ainda há muito o que fazer.
Sim, penso que devemos confiar em Chaim. Ele perguntou ao segurança se seu circuito
interno de TV estava funcionando. O segurança respondeu que só o ligaria depois da
meia-noite, como de costume. Chaim pediu-lhe que o ligasse imediatamente.
Uma onda de pânico apossou-se de Buck. Será que a câmera havia captado sua imagem
na noite anterior?
Vamos ter de contar a ele - disse Buck. - Se seus seguranças ouvirem o som do motor de
um helicóptero e virem que pertence à CG, não vão saber o que fazer.
É o que eu desejo, Cameron, que haja confusão no momento da fuga. Certamente eles
não vão atirar em um helicóptero que pertença a Carpathia. Mas não vai demorar muito
para que eles liguem para perguntar, e aí a CG vai saber que usamos um equipamento de
sua propriedade.
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Como podemos convencer Chaim sem que ele pense que estamos sendo injustos com
Carpathia?
Ele assistiu à reunião desta noite, Buck. E você devia ter ouvido a reação dele. Eu estou
lhe dizendo que ele está quase aceitando.
O que o está impedindo?
Sua admiração e fascínio por Carpathia.
Então seria melhor contar a ele a conversa que Rayford ouviu no Condor 216.
Sobre mim?
E sobre ele.
Será que ele vai acreditar?
O problema é dele, Tsion. Tudo o que ele acredita e sente a respeito de Carpathia iria por
água abaixo.
Tomara.
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DOZE
Era quase meia-noite quando Rayford entrou no espaço aéreo de Israel, conforme
programado. Ele fez contato com a torre do aeroporto Ben Gurion, em Tel-Aviv, e depois
pediu autorização para pousar no aeroporto de Jerusalém para reabastecer.
Faz muito tempo que não me sinto tão apavorado – ele disse.
Sério? - perguntou Ken. - Esse tipo de pavor já está se tornando rotina para mim.
Rosenzweig voltou a reunir-se a Buck e Tsion. Atrás dele, vinha Chloe, de pijamas e
roupão. Ela lançou um olhar confuso a Buck.
- O Dr. Rosenzweig está insistindo que eu vá descansar por causa do bebé - ela disse. -
Não posso contrariar suas ordens. Só vim até aqui para dar-lhes boa-noite.
Buck sabia que ela correria de volta para o quarto a fim de trocar de roupa, mas limitouse
a dizer:
-Fique aqui conosco por alguns instantes, meu bem. Precisamos dizer uma coisa a Chaim,
e talvez você vá precisar confirmar o que o seu pai nos contou.
- TORRE de Jerusalém, aqui fala Gulfstream Alfa Tango, câmbio.
- Torre, prossiga, Alfa Tango. Inicie manobras de pouso. Rayford ajustou os comandos e
pousou em uma pista mais movimentada do que o normal. Sem demonstrar muita
curiosidade para não levantar suspeitas, ele perguntou à torre o motivo do intenso tráfego
aéreo. A torre informou-lhe que os participantes mais abastados que participaram da
grande reunião no estádio Teddy Kollek estavam voando em aeronaves de pequeno porte
até Tel-Aviv para pegar voos internacionais a seus países de origem.
Haverá demora em reabastecer?
Negativo, Alfa. Você está liberado.
Você está vendo os helicópteros? - perguntou Rayford a Ken enquanto manobrava a
aeronave em terra.
Só vejo um - respondeu Ken. - Branco e com letras de forma pretas na lateral.
Não brinque comigo.
Falo sério. O helicóptero é da CG, mas vejo apenas um..
Buck! - gritou Chloe. - Você está aparecendo na TV! Veja!
"... a polícia da Comunidade Global acredita que o homem que aparece no videoteipe seja
o assassino de um guarda da CG no começo desta noite por ocasião do Encontro das
Testemunhas no estádio Teddy Kollek. Ele foi identificado como o norte-americano
Cameron Williams, ex-funcionário da divisão editorial da CG. Dizem que Williams está
hospedado com o rabino Tsion Ben-Judá na casa do Dr. Chaim Rosenzweig, o israelense
ganhador do prémio Nobel. O supremo comandante Leon Fortunato disse que..."
Tsion e Buck acompanharam Rosenzweig até o depósito de ferramentas. Assim que
avistou o depósito de longe, Buck passou na frente de Chaim, acendeu a luz e pegou um
martelo, uma pá e uma barra de concreto.
Você tem uma marreta? - ele perguntou.
Todas as ferramentas que possuo estão aí - disse Chaim.
Precisamos agir rápido. - O telefone tocou. - Deve ser a CG.
Jonas, o segurança, falou pelo interfone em hebraico, e Buck só entendeu as palavras
"Rosenzweig" e "Fortunato".
- Peça que alguém me traga o telefone - disse Rosenzweig.
- Estou no fim do corredor.
Ele virou-se para Buck e Tsion e fez um gesto para que eles se dirigissem para a porta de
acesso ao telhado. Depois de pegar o telefone sem fio, ele dispensou o criado e continuou
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caminhando atrás de Buck enquanto falava.
- Claro que ele está aqui, Leon - disse Chaim. - E acho que já dormiu. Nem pense em
invadir minha casa no meio da noite. Você tem minha palavra de que ele estará aqui
amanhã cedo, quando poderá interrogá-lo. Terei o prazer de levá-lo até você... Oh! Leon,
é um absurdo, e você sabe disso. Ele não pode ser acusado de assassinato. Seu homem
foi morto por um de seus colegas... Vocês encontraram a arma do crime? Impressões
digitais? Verifiquem os projéteis e examinem suas armas. Conheço o Sr. Williams há anos
e nunca o vi portando uma arma. Preste atenção, Leon. Eles são meus convidados, e não
vou acordá-los!... Sim, você está avisado! Você não é meu supremo comandante... Agora
você está me ameaçando? Você conhece a posição que ocupo neste país e, posso até
dizer, meu conceito perante Nicolae! Se eu disser ao povo que você usou técnicas da
Gestapo no meio da noite... Delito? Você vai me acusar de desacato? Você liga para mim à
meia-noite, isto é, depois da meia-noite, diz que estou abrigando um suspeito de
assassinato, e espera que eu o respeite? Vou lhe dizer uma coisa, Leon. Se você vier
pessoalmente até aqui em um horário razoável, meu convidado estará à sua disposição...
Bem, fique sabendo, Leon: se você mandar alguém aqui esta noite, não vou abrir a porta.
Buck acenou desesperadamente para Chaim, pedindo-lhe que se afastasse dali para que o
ruído das pancadas na porta não fosse ouvido do outro lado da linha. Chaim entendeu e
dirigiu-se apressado para o outro extremo do corredor. Buck bateu com o martelo na
parte de trás da dobradiça superior da porta. Chloe apareceu com duas sacolas e deixouas
ali para buscar a de Tsion.
Tsion desferiu um golpe com a pá na maçaneta e ao redor dela, mas nem ele nem Buck
conseguiram muita coisa.
- Afaste-se um pouco, Tsion - disse Buck, levantando, em seguida, a barra de concreto
acima da cabeça.
O peso do concreto quase o atirou para trás. Buck o arremessou com força na metade
superior da porta e ouviu um estalo. Mais alguns arremessos, ele pensou, provocariam
um rombo na madeira.
Rayford estava reabastecendo a aeronave quando recebeu uma ligação de Ken.
Estou a caminho - ele disse.
Boa sorte.
Com os olhos atentos ao relógio, Rayford sentiu vontade de ligar para Chloe e conversar
com ela por telefone até que todos estivessem a bordo do helicóptero. Mas ele não queria
atrapalhá-los. A falta do outro helicóptero na pista o deixara surpreso, porém a
mensagem de Mac havia sido clara. Rayford gostaria muito de saber o que acontecera.
Só estou pensando no bebé. Vamos embora.
Não nos despedimos de Chaim!
Ele compreenderá. Vamos. Vamos.
Chaim retornou assim que Chloe começou a transpor a porta.
-Estou aguardando um aviso do segurança - ele sussurrou. - Um carro da CG acabou de
estacionar na frente da casa.
Buck puxou Chaim para perto de si na escuridão e deu-lhe um abraço apertado.
Em nome de todos...
Eu sei - disse Chaim. - Lamento tudo o que está acontecendo. Por favor, me avisem
quando estiverem em lugar seguro.
- Apague todas as luzes! - gritou Buck, quando finalmente conseguiu abrir um buraco na
madeira. Ele ouviu Chaim desligando apressadamente os interruptores.
Chaim deu uma ordem urgente em hebraico pelo interfone a seu segurança.
O que ele disse? - perguntou Chloe no escuro, aproximando-se de Buck e Tsion diante da
porta arrombada. Cada um deles tinha uma sacola pesada.
Ele deu ordem para não deixar ninguém entrar. Disse que todos estão dormindo. Mas essa
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ordem não vai deixar o pessoal da CG sem ação por muito tempo.
Vamos - disse Buck. - Ouvi o som de um helicóptero.
Você está imaginando coisas - disse Chloe. - Acho que há um carro da CG entrando aqui.
Vocês dois estão paranóicos - disse Tsion, passando pelo buraco aberto na porta.
Eu peguei sua sacola, meu bem - disse Buck.
Buck! Não fique me paparicando.
Uma sensação de nervosismo tomou conta de todo o corpo de Rayford. Depois de
abastecer e pagar o combustível com o cartão de crédito internacional de Ken Ritz, Rayford
taxiou o Gulfstream, afastando-o quase 200 metros do local onde Ken pousaria o
helicóptero. Dali, ele poderia avistar o aparelho e aproximar-se dele no momento do
pouso.
O telefone de Rayford tocou.
- Rayford, é Mac. Finalmente estou sozinho. Preste atenção e não diga nada. Leon
incumbiu o piloto do helicóptero que estava em Haifa de fazer um sobrevoo com ele.
Houve um incidente perto do estádio, e ele não quis arriscar-se a me escalar porque vou
levá-los de volta amanhã cedo no Condor. Achei que eles voltariam a tempo, mas isso não
aconteceu. Quando você ligou, eu lhe dei o sinal verde para usar o Helicóptero Um. Sim,
seu amigo está pilotando o helicóptero que vai ser usado por Carpathia, mas ninguém
perceberá nada se ele voltar rápido. Eu não pude conversar
- Repita, capitão.
Uma voz nervosa interrompeu o diálogo.
- McCullum não está no ar, Helicóptero Dois! Ele está aqui conosco! Descubra quem é o
sujeito!
- Helicóptero Dois para Helicóptero Um, identifique-se, câmbio.
Ken hesitou.
- Identifique-se, Helicóptero Um, ou será acusado de pirataria aérea.
Aqui é Helicóptero Um, prossiga.
Identifique-se, piloto.
Conexão prejudicada, volto a chamar.
O piloto do Helicóptero Dois soltou um palavrão.
Desça imediatamente e renda-se, Um.
A caminho de Tel-Aviv, Dois. Conversaremos lá.
Negativo! Pouse no aeroporto de Jerusalém e permaneça a bordo!
Negativo, Dois. Vou pousar no Ben Gurion.
O Helicóptero Dois enviou uma mensagem pedindo ajuda a todas as aeronaves naquela
área.
E agora? - perguntou Buck.
Vou apagar as luzes e voar baixo - disse Ken.
Não muito baixo.
Alto o suficiente para não bater nos fios elétricos – disse Ken. - Baixo o suficiente para não
ser captado pelo radar.
Vai dar certo?
Depende do lugar em que ele se encontrava quando da primeira chamada. Se estava
perto da casa de Chaim, conseguimos nos distanciar bastante dele. Duvido que ele voe
assim tão baixo ou tão depressa. Ele não é tão tolo a ponto de acreditar que estamos
indo para o Ben Gurion. Alguém foi instruído para nos localizar, e ele vai nos perseguir
até a pista. Não haverá tempo para nada no aeroporto, nem para ir ao banheiro, se é isso
o que vocês querem saber.
Sentado a bordo do Gulfstream estacionado perto da pista, Rayford ouvia a conversa pelo
rádio, contendo o impulso de orientar Ken. Se Ken não soubesse como voar baixo e
forçasse os limites do helicóptero, de nada adiantariam suas orientações.
Alguém voltou a falar pelo rádio, informando que uma aeronave convencional de pequeno
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porte avistara o helicóptero da CG voando baixo e com as luzes apagadas.
- Aqui é Helicóptero Dois. Helicóptero Um, você está violando as leis internacionais da
aviação por voar com luzes apagadas, baixo demais, velocidade exagerada e por
sequestrar uma aeronave oficial. Siga diretamente para o aeroporto de Jerusalém e
permaneça a bordo, ou sofrerá as consequências.
Os funcionários do aeroporto entraram em ação. Veículos de emergência cruzavam as
pistas.
Atenção, por favor. O aeroporto de Jerusalém está temporariamente fechado em razão de
uma emergência. Todas as manobras de pouso e decolagem estão suspensas até segunda
ordem. Cessna Extra Bravo, entendido?
Positivo.
Piper Dois-Nove Charley Alfa?
Positivo.
Gulfstream Alfa Tango?
- Positivo - disse Rayford, sem desligar os motores. Ele esperava que Ken entendesse por
que o estava aguardando no outro extremo da pista. Eles decolariam sem autorização e na
direção errada.
De repente, Rayford avistou o helicóptero. Ken não teria tempo para falar ao telefone, e o
rádio não era uma boa opção. Rayford verificou os comandos e deixou tudo preparado
para a decolagem.
Ken começou a descer no local combinado.
- O Gulfstream está lá! - gritou Buck. - E o pessoal da segurança está chegando por terra!
Ken fez uma manobra rápida para trás e pousou perto de Rayford. A porta do Gulfstream
foi aberta. Buck, Chloe e Tsion aprontaram-se para saltar do helicóptero.
- Esperem um pouco! - gritou Ken. - Se eles nos virem entrar no Gulf, vão ter condições
de impedir a decolagem! Vou ter de brincar de gato e rato com eles para que pensem que
Ray não está envolvido nesta história!
Quando os veículos de segurança se aproximaram, Ken começou a subir e descer com o
helicóptero, pairando bem acima do local onde pousara, a 200 metros do Gulfstream.
- Pouse imediatamente, Helicóptero Um! - soou a voz pelo rádio, vinda do Helicóptero
Dois. - E não desembarque. Repito, não desembarque.
Ken pousou, mas manteve a hélice funcionando enquanto os veículos em terra se
aproximavam.
Desligue o motor, Um! - gritou alguém pelo rádio. Buck viu o Helicóptero Dois descendo na
extremidade da pista em que Rayford se encontrava, de frente para eles.
Abaixem-se e esqueçam suas sacolas, pessoal – disse Ken. - Se eu conseguir deixá-los
bem perto do Gulf, vocês vão ter de correr até ele.
Vamos ter de correr? - perguntou Chloe. - Não vai ser possível!
Nada vai ser impossível enquanto estivermos respirando - disse Ken.
Dentro da cabina do Gulfstream e com os olhos fixos à frente, Rayford imaginava que, a
qualquer instante, Ken e o que restara de sua família seriam cercados pelos guardas
armados da CG. Eles jamais o denunciariam, mas será que aguentaria ficar sentado e
aguardar até o momento de o aeroporto voltar a funcionar? Seu corpo fervia de
frustração. Ele queria fazer alguma coisa, qualquer coisa.
Ken era um homem criativo, prático e esperto. Ele mantinha o motor ligado e a hélice
girando. O que pretendia fazer? Deixar que o Helicóptero Dois continuasse a persegui-lo?
Não havia esperanças.
- Desligue o motor, Um! - soou a voz novamente. – Você está cercado. Não conseguirá
fugir!
Agora, o Helicóptero Dois estava no solo, a cerca de dez metros de Ken, também com a
hélice girando. Rayford viu, assustado, quando Ken subiu uns 30 metros, apontou o
helicóptero para o Gulfstream e pareceu despencar bem na frente dele, batendo na pista
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de macadame em ângulo, o que o fez deslizar cerca de 15 metros, dar um rodopio e
parar perto da porta aberta.
- Vamos, pessoal! - Ken gritou. - Já!
Ele abriu a porta com força e agarrou Buck como se tivesse punhos de aço, arrastando-o
por cima do banco da frente e atirando-o para fora. Buck aguardou no solo para amparar
Tsion quando Ken também o atirou para fora. Tsion subiu a escada do Gulfstream e ficou
de prontidão para fechar a porta.
Buck sentiu-se grato por Ken ter sido mais cuidadoso para tirar Chloe do helicóptero.
- Vá em frente! - ele gritou. - Tsion está tomando conta da porta.
Rayford viu, aterrorizado, quando os veículos da CG começaram a correr em sua direção.
Ele precisava levantar vôo. Imaginando que o controle de terra não tinha condições de ver
o pessoal embarcando em seu avião, ele disse pelo rádio:
Gulf Alfa Tango para controle de terra, solicitando permissão para me afastar desta
confusão.
Positivo, Gulf, desde que não impeça o trânsito dos veículos de segurança.
Rayford começou a rodar na pista, apesar de saber que apenas dois do grupo estavam a
bordo. O motor do Gulfstream zunia enquanto ele rodava lentamente pela pista, quase
esbarrando no Helicóptero Um, a porta raspando no pavimento e produzindo faíscas. Ele
não podia levantar vôo enquanto todos não estivessem a bordo e teria de pressurizar o
compartimento dos passageiros antes de voar em grande altitude.
O cérebro de Buck rodava em câmera lenta, e um caleidoscópio de imagens começou a
passar em velocidade por sua mente. Em uma fração de segundo, ele se lembrou do
momento em que foi atingido por um projétil no calcanhar, no Egito, enquanto se atirava
com Tsion dentro do Learjet pilotado por Ken. Agora, enquanto corria desesperadamente
tentando agarrar a porta do Gulfstream que rodava na pista, ele viu claramente, através
das barras de pouso do helicóptero, os homens da CG apontando armas na direção deles.
- Ken! Ken! Rápido! Rápido! Rápido! - gritou Buck enquanto Ken tentava alcançá-lo.
Buck corria o mais rápido que podia, e Ken vinha logo atrás dando largas passadas com
suas pernas compridas. O Gulfstream começou a ganhar velocidade, e Buck sentia-se
prestes a esmorecer. Ele olhou para trás e viu o rosto de Ken, a poucos centímetros do
seu, com um ar de desespero e determinação nos olhos.
Buck já estava quase subindo a escada quando a testa de Ken foi perfurada. Buck sentiu
o calor e o cheiro de metal no momento em que o projétil atingiu sua orelha de raspão e
seu rosto foi borrifado pelo sangue de Ken, que caíra ao chão com os olhos arregalados e
sem expressão.
Soluçando e gritando, Buck foi arrastado, com o braço preso no fio de metal que
sustentava a porta aberta. Ele queria se soltar, correr até onde Ken estava, matar
alguém. Mas não portava nenhuma arma, e Ken devia ter morrido antes de cair ao chão.
Apesar do sofrimento, do horror e da raiva que sentia, seu instinto de sobrevivência
prevaleceu.
A velocidade do Gulfstream era cada vez maior, e as pernas de Buck não conseguiam
acompanhá-lo. Tsion inclinou-se para fora o mais que pôde, esticando o corpo para erguer
a porta e trazer Buck com ela. Porém, quanto mais ele o puxava, mais Buck se enrolava
no fio. Chloe também passou a ajudar, gritando e chorando, e Buck preocupou-se com o
bebé.
Ele levantou os pés para não queimá-los em razão do atrito do couro dos sapatos na pista.
O Gulfstream já alcançara a velocidade para decolar. A porta continuava aberta, e Buck,
preso no suporte. Ele sabia que Rayford não podia fazer outra coisa a não ser acelerar.
Buck tentou dar um giro com o corpo e apoiar o pé na escada, porém a energia cinética e
o vento o impediam de movimentar-se. Agora ele estava quase na posição horizontal, e a
vibração da chapa de alumínio da aeronave mudou quando as rodas ergueram-se do
chão. Ele semicerrou os olhos para protegê-los do vento e da areia, e pôde ver que
109
Rayford precisaria ter muita sorte para passar por cima da cerca de três metros na
extremidade de uma pista não apropriada para decolagens.
A aeronave passou raspando por cima da cerca, e Buck sentiu que quase podia tocá-la
com os dedos dos pés. Uma coisa era certa: ele não ia conseguir entrar na aeronave em
pleno vôo. A porta teria de ser fechada mecanicamente. Seu braço ficaria gravemente
machucado, e ele morreria por causa da queda ou, quem sabe, teria a sorte de cair nos
arbustos um pouco mais adiante da cerca.
Buck contorceu o corpo e puxou o braço até livrar o cotovelo do fio. Os rostos
aterrorizados de sua esposa e de seu pastor foram as últimas imagens que viu antes de
dar uma cambalhota, cair em cima de um arbusto alto e se alojar ali - arranhado, ferido
e sangrando - no meio do mato.
Seu corpo tremia incontrolavelmente, e ele temia entrar em estado de choque. Logo a
seguir, ele ouviu o ruído do Gulfstream retornando. Buck sabia que Chloe jamais
permitiria que seu pai partisse sem ele. No entanto, se eles voltassem, se tivessem de
pousar para pegá-lo, seriam mortos. Ken havia morrido, e Buck não queria presenciar
mais mortes naquela noite.
Gemendo de dor, ele conseguiu soltar-se dos galhos e percebeu que seus ferimentos
necessitariam de cuidados. Aparentemente, não havia fraturas, porque ele conseguiu
ficar em pé no chão. Parado ali e tremendo na escuridão da noite, ele sentiu um volume
em seu bolso. Seria possível? Seu telefone ainda estaria funcionando?
Buck o abriu, sem esperanças. A luz do mostrador acendeu. Ele discou para o número de
Rayford.
Mac? - disse Rayford. - Estamos numa enrascada e precisamos de ajuda!
Não - Buck tentou gritar, quase sem voz -, sou eu e estou bem. Vá embora. Vou tentar
alcançá-los mais tarde.
Rayford imaginou estar sonhando. Ele tinha certeza de que seu genro havia morrido.
- Você tem certeza, Buck? - ele gritou.
Chloe, que recuperara a consciência após ter desmaiado de desespero, arrancou o
telefone da mão de Rayford.
- Buck! Buck! Onde você está?
Depois da cerca, no meio de arbustos cheios de espinhos! Acho que eles não me viram,
Chloe! Ninguém está vindo nesta direção. Se eles me viram correndo para alcançar o
avião, devem ter pensado que consegui entrar.
Como você conseguiu sobreviver?
Não faço ideia! Você está bem?
Se eu estou bem? Claro! Dez segundos atrás eu era viúva. Ken está com você?
-Não.
-Oh, não! Eles o acertaram?
- Ele morreu, Chloe.
110
TREZE
RAYFORD decidiu voar para o norte o mais rápido possível, calculando que os guardas da CG
imaginaram que ele havia seguido na direção oeste.
- Tsion, vasculhe a sacola de Ken para ver se existe algum registro sobre seus amigos na
Grécia. Ele mencionou que poderíamos descer lá ou na Turquia, se fosse necessário.
Tsion e Chloe abriram a sacola de Ken.
- É muito doloroso, Rayford - disse Tsion. - Este irmão salvou minha vida levando-me de
avião para um local seguro quando colocaram minha cabeça a prémio.
Rayford não conseguia falar. Ele e Ken haviam se entrosado tão bem, a ponto de se
tornarem amigos rapidamente. Pelo fato de terem voado muitas horas juntos, Rayford
passara mais tempo com Ken do que com qualquer outra pessoa, exceto Buck. E, por
terem quase a mesma idade, a afinidade entre ambos foi muito grande. Rayford sabia que
violência e morte eram os preços a ser pagos neste período da História, mas ele
detestava o sofrimento causado pelas perdas. Se começasse a pensar em toda a tragédia
que suportara – desde a perda de sua esposa e filho no Arrebatamento até a morte de
Bruce, Loretta, Donny e sua esposa, Amanda... e de outras pessoas conhecidas -, por
certo enlouqueceria.
Ken estava num lugar melhor, Rayford dizia a si mesmo, e isso lhe soava como um
chavão. Apesar de tudo, ele tinha de acreditar que era verdade. Foi ele quem perdeu um
amigo. Finalmente Ken estava livre de sofrimentos.
Rayford sentia-se exausto. Ele não havia programado pilotar na viagem de retorno. Ken se
poupara para ter condições de levar o Comando Tribulação de volta aos Estados Unidos.
- O que significa tudo isto? - perguntou Chloe, repentinamente. - Ele preparou uma lista
com ideias e planos para negócios, e...
- Vou lhe contar depois - disse Rayford. - Ele era um verdadeiro empresário.
- E dos bons - disse Tsion. - Eu nunca imaginei que ele fosse tão inteligente. Algumas coisas
que ele escreveu parecem um manual de sobrevivência para os santos da tribulação.
- Vocês encontraram algum nome? Algum que dê ideia de um contato na Grécia? Por via
das dúvidas, vou voar naquela direção. Não posso permanecer no ar por muito mais
tempo.
Não podemos pousar sem manter contato com a torre local, não é mesmo, papai?
Não deveríamos.
Mac pode nos ajudar?
Ele prometeu ligar para mim assim que tivesse condições de conversar. Tenho certeza de
que eles o envolveram naquele fiasco. Ore para que ele consiga ludibriá-los.
Os cortes no rosto de Buck foram profundos, mas, por estarem localizados abaixo do osso
malar, sangravam pouco. Seu polegar direito parecia ter sido empurrado até o pulso. O
ferimento na orelha esquerda, que quase foi partida ao meio pelo tiro que também matara
Ken, não parava de sangrar. Ele tirou a camisa e usou a camiseta para limpar o rosto e o
sangue que corria da orelha. Vestiu novamente a camisa, na esperança de não estar com
a aparência de um monstro caso surgisse alguém disposto a ajudá-lo.
Buck rastejou por cima da vegetação até os limites da área do aeroporto, mas não se
atreveu a aproximar-se da cerca. Embora não houvesse holofotes apontados para aquele
local, a cerca proporcionava um ângulo perfeito para alguém captar qualquer movimento
estranho. Ele sentou-se com as costas apoiadas em um arbusto para recuperar o fôlego.
Seus tornozelos, joelhos e o cotovelo direito estavam doloridos. O lado direito de seu
corpo devia ter sofrido um impacto maior quando ele caiu no meio daquela planta com
galhos pontudos. Ele abriu o telefone celular e viu sua imagem embaçada no visor
111
iluminado.
Ao sentir uma agulhada na região do tornozelo, Buck levantou as pernas da calça e notou
que as meias estavam empapadas do sangue que escorria de suas canelas. Seus
músculos doíam, mas, diante das circunstâncias, ele se sentia um homem de sorte. Tinha
um telefone e podia caminhar.
- Acho que encontramos alguma coisa - disse Tsion.
Rayford viu, pelo canto do olho, o rabino mostrando uma agenda de telefone aberta para
Chloe.
- Para mim, parece ser um nome grego. O que você acha, papai? Ken anotou o número do
telefone de Lukas Miklos, cujo apelido é Laslos.
Qual é a cidade?
Não consta.
Há mais alguma anotação? Você saberia dizer se o nome é de um amigo ou de um contato
comercial?
Ligue para lá. Não há nenhuma indicação.
Espere - disse Tsion. - Há um asterisco ao lado do nome e uma seta apontando para a
palavra linhito. Não conheço esta palavra.
Nem eu - disse Rayford. - Parece nome de um mineral ou coisa do género. Disque para lá,
Chloe. Se formos aterrissar na Grécia, vou ter de iniciar as manobras de pouso daqui a
alguns minutos.
Buck não conseguia lembrar-se do nome da sogra de Jacov e não sabia qual era o
sobrenome de Stefan. Ele não queria ligar para Chaim; sua casa devia estar repleta de
homens da CG. Caminhando na escuridão, protegido pelas sombras da noite, ele
circundou o aeroporto inteiro e avistou a estrada principal. Ali, ele poderia pegar uma
carona ou conseguir um táxi. Sem saber para onde se dirigir, resolveu tomar o caminho
do Muro das Lamentações. Nicolae havia advertido Moisés e Eli publicamente para que
sumissem dali após o encerramento das reuniões no estádio, o que deu a Buck a certeza
de que as duas testemunhas estariam lá.
- Alô, senhora - disse Chloe. - Há alguém aí que fale inglês?... Inglês!... Sinto muito, não
estou entendendo. Há alguém aí... - Ela cobriu o fone com a mão. - Eu acordei a mulher.
Ela ficou assustada. Está chamando alguém. Parece estar despertando um homem.
- Sim! Alô? Senhor?... É o Sr. Miklos?... O senhor fala inglês?... Mais ou menos?... Entende
inglês?... Que bom! Lamento tê-lo acordado, mas somos amigos de Ken Ritz, dos Estados
Unidos! - Chloe cobriu novamente o fone com a mão. - Ele conhece Ken!
Chloe perguntou onde ele morava, se havia um aeroporto na cidade e se podiam visitá-lo
para conversar a respeito de Ken, caso conseguissem pousar lá.
Após alguns minutos, Rayford conseguiu contato com a torre de Ptolemáís no norte da
Grécia.
Macedônia - disse Tsion. - Graças a Deus.
Ainda não estamos em segurança, Tsion - disse Rayford. - Estamos dependendo da
bondade de um estranho.
Pela primeira vez, Buck ficou satisfeito pelo fato de a Comunidade Global ter escolhido o
dólar norte-americano como moeda corrente. Ele possuía uma boa quantidade de
dinheiro, suficiente para fechar os olhos e a boca de muita gente. Escondida em algum
lugar de sua carteira, também havia uma identidade falsa, uma ferramenta muito útil...
desde que ele não fosse pego portando as duas identidades.
- O Sr. Miklos ficou desconfiado - disse Chloe. - Mas assim que eu o convenci de que
éramos amigos de Ken, ele me instruiu que devemos dizer à torre que estamos pedindo
permissão de pouso para um Learjet Foxtrot Foxtrot Zulu.
112
Trata-se do avião de um de seus fornecedores. Ele dirige uma empresa de mineração.
Estará lá à nossa espera.
Este aqui não se parece nem um pouco com um Lear - disse Rayford.
Ele disse que a torre não vai sequer prestar atenção.
Quando chegou à estrada, Buck ficou surpreso ao ver que o trânsito continuava
movimentado. Havia ainda muita gente saindo de Jerusalém. E todo aquele tráfego aéreo
significava que o aeroporto já reabrira. Ele não avistou nenhum bloqueio nas ruas. A CG
devia estar imaginando que ele fugira a bordo do Gulfstream.
Buck caminhou pelo acostamento da estrada na direção de Jerusalém, que estava muito
menos congestionada do que a pista contrária. Ele começou a acenar com sua camiseta
ensanguentada para os táxis vazios que vinham do aeroporto, tentando esconder o lado
mais manchado. Endireitou o corpo para dar a impressão de que estava sóbrio e sem
nenhum ferimento. Felizmente, o quarto táxi para o qual ele acenou saiu da pista e parou
no acostamento.
Você tem dinheiro, companheiro? - perguntou o taxista antes de abrir a porta traseira.
Bastante.
Os pedestres não costumam caminhar nesta direção. Você é o primeiro que vejo em
semanas.
Perdi minha carona - disse Buck, entrando no carro.
Você está bastante ferido, não?
Eu estou bem. Andei no meio de alguns espinhos.
Imagino.
Você é australiano?
Como você adivinhou? Para onde vamos, companheiro?
Muro das Lamentações.
Ah! eu só vou conseguir deixar você a quase um quilómetro de lá.
Tanto assim?
Grandes acontecimentos. Você ficou sabendo da história dos dois...
Sim, onde eles estão?
Estão lá.
Que coisa!
- Eles não deviam estar lá, você sabe. -Sei.
- Dizem que o potentado continua em Jerusalém, mas longe do Muro. Há uma grande
multidão por lá com armas na mão. Civis e militares. Uma confusão danada. Admiro muito
o potentado, mas ele não fez bem em oferecer um prémio pela cabeça dos dois.
Você acha?
Veja só o que vai acontecer. Alguém vai matar os dois esta noite para ser transformado
em herói. Estou falando de cidadãos comuns e de policiais. Quem pode afirmar que eles
não vão dar início a um tiroteio?
Você acha que os dois vão morrer esta noite?
Vão. Eles fincaram o pé naquele lugar, provocaram a ira da cidade inteira por causa da água
que virou sangue e da seca, dizendo que eram os responsáveis. E se orgulham disso.
Mataram diversas pessoas que tentaram chegar perto deles, mas que chances aqueles dois
têm agora? Eles se colocaram atrás daquela cerca para que o povo possa praticar tiro ao
alvo.
Eu digo que eles estarão lá, bem vivos, quando amanhecer.
Não acredito.
Se isso acontecer, você faria uma coisa para mim?
Depende.
Se, apesar de todas as circunstâncias contrárias, você tiver de admitir que eu acertei...
Garanto que isso não vai acontecer.
113
... vai encontrar uma Bíblia e ler o livro de Apocalipse.
Ora, você também é um deles?
Deles quem?
Dos judeus convertidos. Esta noite já fiz pelo menos três viagens para eles até o
aeroporto. Todos tentaram me fazer passar para o lado deles. Você também vai querer
me salvar, companheiro?
Eu não posso salvá-lo, meu amigo. Mas não entendo como Deus não conseguiu ainda
chamar sua atenção.
Não nego que esteja acontecendo alguma coisa estranha. Mas faço um trabalho sujo,
explorando mulheres, se é que você me entende, e acho que Deus não gosta disso.
Ganho muito dinheiro do outro lado da cidade, compreende?
E isso vale mais do que sua alma?
Talvez. Mas vou lhe dizer uma coisa. Se aqueles dois estiverem lá amanhã cedo, vou fazer
o que você me pediu.
Encontrar uma Bíblia?
Eu já lhe disse. Fiz três viagens esta noite com sujeitos iguais a você. Ganhei três Bíblias.
Você vai me dar a quarta?
Não, mas eu poderia ficar com uma das suas.
Eu vivo de negócios, companheiro. Posso vender uma para você.
Rayford estacionou o jato no final de uma pista onde havia uma aeronave de porte
semelhante. Ele, Chloe e Tsion caminharam cautelosamente em direção ao terminal
quase deserto. Em um canto escuro do terminal, um casal de meia-idade os observava
com olhos assustados. Ele era um homem atarracado, de baixa estatura, e tinha fartos
cabelos escuros e crespos. Ela era robusta e usava um lenço na cabeça, deixando à
mostra apenas alguns cachos de cabelo. Depois de um tímido aperto de mãos, Lukas
Miklos disse:
Ken Ritz falou de mim a vocês?
Encontramos seu nome na agenda de telefone dele, senhor - disse Rayford.
Miklos retraiu-se e sentou-se em uma cadeira.
Como vou saber se vocês o conhecem?
Sinto muito, mas temos má notícia para lhe dar.
Antes de me darem a má notícia, preciso saber se posso confiar em vocês. Digam-me
alguma coisa sobre Ken que só um amigo poderia saber.
Rayford olhou para os outros e disse cautelosamente.
- Ex-militar, piloto de voos comerciais, proprietário de uma empresa de táxi aéreo por
muitos anos. Alto, beirando os 60 anos.
Vocês sabiam que ele costumava pilotar o avião de um de meus fornecedores quando
comecei a trabalhar com usinas de energia?
Não, senhor. Ele não mencionou isso.
Ele nunca lhe falou de mim?
De seu nome, não. Mencionou que conhecia alguém na Grécia que poderia nos hospedar
quando estivéssemos retornando para os Estados Unidos.
Para onde vocês foram?
Israel.
E foram lá para quê?
Para o Encontro das Testemunhas. Miklos e sua esposa trocaram olhares.
Vocês são crentes? Rayford assentiu com a cabeça.
Vire o rosto para a luz.
Rayford obedeceu.
Miklos olhou para ele, depois para sua esposa e, em seguida, virou-se para a luz e
afastou a mecha de cabelo da testa.
114
Você vai me dizer que este senhor aqui é o Dr. Ben-Judá?
É ele mesmo, senhor.
Oh, oh! - disse Miklos levantando-se da cadeira e caindo de joelhos no piso de ladrilho. Ele
segurou as mãos de Ben- Judá e beijou-as. Sua esposa juntou as duas mãos diante do
rosto como se estivesse orando e fechou os olhos. - Eu vi que o senhor se parecia com
aquele homem que vimos na TV. É o senhor mesmo!
Vamos, vamos - disse Tsion. - É um prazer conhecê-los, mas a notícia que temos sobre
nosso irmão Ken não é boa.
O taxista parou em um beco atrás de uma casa noturna, onde aparentemente costumava
frequentar. Um segurança veio a seu encontro.
- Não, ele não é um qualquer, Stallion. E não vai entrar. Arrume um turbante e um lenço de
pescoço. Eu lhe pago depois. - Stallion agarrou o australiano pela gola da camisa. - Você vai
receber, seu moleque grandalhão - disse o taxista. - Vamos, arrume o que eu lhe pedi e me
deixe ir embora daqui.
Alguns instantes depois, Stallion atirou o turbante e o lenço dentro do táxi pela janela,
fazendo um gesto de ameaça para o motorista.
- Vou voltar - disse o australiano. - Confie em mim. Buck colocou o turbante na cabeça e
ajeitou o lenço de pescoço por baixo, cobrindo as orelhas e a nuca. Se ele não mexesse
muito a cabeça, ficaria também com uma parte do rosto coberta.
Onde ele conseguiu estas coisas? - perguntou Buck.
Você quer mesmo saber?
Acho que algum bêbado terá uma surpresa quando acordar.
A orelha de Buck havia parado de sangrar, mas ele ainda necessitava de cuidados médicos.
Você conhece algum lugar onde eu possa tomar uma injeção contra infecções e levar
alguns pontos sem que me façam muitas perguntas?
O dinheiro deixa muitas perguntas sem resposta, companheiro.
Às três horas da madrugada, o taxista deixou-o o mais perto possível do Monte do
Templo. Buck deu uma gorjeta considerável ao australiano.
Pela corrida - ele disse. - Pela Bíblia. E pelas roupas.
Que tal um pouco mais pelos serviços médicos? Buck pagara uma boa quantia a uma
clínica de conceito duvidoso, mas calculou que a corrida em si valia mais alguns dólares.
- Obrigado, companheiro - disse o taxista. - Vou cumprir a promessa e ficar atento às
notícias, mas não vou ficar surpreso se eles já estiverem mortos.
Lukas Miklos possuía um belo carro último tipo e morava em uma casa luxuosa que estava
sendo restaurada após o terremoto. Ele pediu insistentemente ao Comando Tribulação que
permanecesse ali por uma semana, mas Rayford lhe disse que eles necessitavam apenas
de um bom descanso e que partiriam no dia seguinte ao anoitecer.
- Ken não sabia que vocês eram crentes, sabia?
Miklos balançou a cabeça negativamente.
Quando sua esposa pediu licença para recolher-se, Rayford e Tsion levantaram-se. Ela
sorriu com timidez e curvou a cabeça em sinal de respeito.
-Ela toma conta do escritório - explicou Miklos. – Começa a trabalhar antes de mim.
Depois de instalar-se em uma poltrona confortável, Miklos continuou a falar:
Ken me enviou um e-mail contando o que aconteceu com ele. Pensamos que ele tivesse
ficado maluco. Eu sabia que o governo de Carpathia se opunha à teoria do arrebatamento.
A Comunidade Global me favoreceu tanto nos negócios que eu não queria nem sequer
conhecer alguém que fizesse oposição a ele.
Você fez muitos negócios com a CG?
Ah! sim. E continuamos a fazer. Eu não me sinto nem um pouco culpado por usar o
dinheiro do inimigo. O pessoal da CG compra quantidades enormes de linhito para suas
115
usinas termoelétricas. Ken sempre disse que o linhito parecia crescer nas árvores de
Ptolemaís. Que bom se fosse assim! Mas ele estava certo. Esta região é rica em linhito, e
sou um dos principais fornecedores.
Por que você não contou a Ken que se converteu?
Porque, Sr. Steele, só me converti quando vi o Dr. Ben- Judá na TV. Não conseguimos falar
com Ken. No computador dele, deve haver um e-mail meu.
Buck aproximou-se o mais que pôde do Monte do Templo antes de se misturar à multidão
que se acotovelava naquele local. Ninguém se atrevia a ficar a menos de 60 metros de Eli
e Moisés, inclusive os guardas da CG – principalmente eles. Muitos civis também portavam
armas, e o clima era muito tenso.
Buck sentia-se em segurança e praticamente invisível na escuridão, apesar de provocar a
ira das pessoas e levar alguns empurrões por forçar a passagem no meio delas. Algumas
vezes, ele ficava na ponta dos pés e via Eli e Moisés fartamente iluminados pelos holofotes
da TV. Eles continuavam a não usar alto-falantes, mas podiam ser ouvidos por toda
aquela região.
-Onde está o rei do mundo? - interpelou Eli. - Onde está aquele que se assenta no trono
da terra? Vós, homens de Israel, sois uma geração de serpentes e víboras, ultrajando o
Senhor vosso Deus por meio de sacrifícios de animais. Estais vos curvando diante do
inimigo do Senhor, aquele que procura afrontar o Deus vivo! O Senhor que livrou seu servo
Davi das garras do leão e do urso, também nos livrará da mão desse impostor.
A multidão riu, mas ninguém deu um passo sequer à frente, a não ser Buck. Apesar da
dor que sentia e das feridas latejando, ele ansiava por aproximar-se daqueles homens de
Deus. Ao chegar mais perto da cerca, ele constatou que o povo estava menos agressivo e
mais precavido.
-Tome cuidado, homem - alguém disse. - Proteja-se. Não se aproxime muito. Eles
possuem lança-chamas escondidos atrás daquele cómodo.
Buck poderia até ter achado graça daquilo e se sentido revigorado pelas palavras de Eli,
mas a morte horrível de Ken ainda lhe causava muito sofrimento. Ele limpou
instintivamente o rosto, como se o sangue de Ken ainda estivesse ali, e quase chorou de
dor quando passou a mão nos pontos.
Moisés tomou a palavra.
- Servo de Satanás, tu vens contra nós com espada, com lança e com escudo. Nós,
porém, vamos contra ti em nome do Senhor dos Exércitos, o Deus do povo escolhido, a
quem tens afrontado. Não terás força sobre nós até o tempo determinado!
A multidão começou a assobiar, vaiar e gritar:
Matem os dois! Atirem neles! Disparem um míssil contra eles! Atirem uma bomba neles!
Ó homens de Israel - reagiu Eli. - Não tendes temor, mesmo sem água para beber e
chuva para molhar vossas plantações? Temos o poder de fazer com que o sol queime
vossas plantações e a água se transforme em sangue enquanto estivermos profetizando,
para que toda a terra saiba que existe um Deus em Israel. E todo este povo aqui reunido
saberá que o Senhor não salva com espada nem com lança: porque a batalha pertence ao
Senhor. Ele vos entregou em nossas mãos.
- cabem com os dois! Atirem neles!
O povo ofegava irado e afastou-se quando Buck conseguiu ficar a três metros da cerca. Ele
ainda estava longe das testemunhas, mas, após o que acontecera na noite anterior, sua
atitude parecia ser a de um homem corajoso ou tolo. A multidão silenciou.
Agora, Moisés e Eli estavam em pé lado a lado, sem se mexer, com os braços caídos ao
longo do corpo. Eles olhavam fixamente para a multidão e para Buck, parecendo
determinados a desafiar Carpathia, que dera permissão para qualquer pessoa matá-los
caso aparecessem em qualquer lugar após as reuniões no estádio. E continuavam no
mesmo lugar em que apareceram todos os dias desde a assinatura do tratado entre a
Comunidade Global e Israel.
116
Buck sentia-se atraído na direção deles, apesar de seu desespero para não ser
reconhecido. Mesmo assim, ele avançou um pouco mais, provocando risos de zombaria
diante de sua imprudência.
Nenhuma das testemunhas abriu a boca, mas Buck as ouviu falar em uníssono. A
mensagem parecia ser exclusiva para ele. Será que alguém mais poderia ouvi-la?
- Pois todo aquele que quiser salvar sua vida, perdê-la-á; porém todo aquele que perder
a sua vida por amor de Cristo e do Evangelho, salvá-la-á.
Será que os dois sabiam que Ken morrera? Estariam consolando Buck? De repente, Moisés
olhou para a multidão e gritou:
-Que aproveitará o homem se ganhar o mundo inteiro e perder sua alma? Ou o que dará
o homem em troca de sua alma? Porque qualquer um que, nesta geração adúltera e
pecadora, se envergonhar de Jesus Cristo e das suas palavras, também o Filho do homem
se envergonhará dele, quando vier na glória de seu Pai com os santos anjos.
E, de repente, mais uma vez os dois falaram em uníssono, sem movimentar os lábios,
como se suas palavras fossem dirigidas somente a Buck.
Alguns que aqui se encontram não passarão pela morte antes de verem o Filho do
homem vindo em seu Reino.
Sentindo necessidade de falar, Buck murmurou estas palavras de costas para a multidão
para que ninguém pudesse ouvi-lo:
Queremos estar entre os que não passarão pela morte - ele disse. - Mas perdemos um
dos nossos esta noite.
Buck não conseguiu prosseguir.
O que ele disse? - gritou alguém.
Ele vai ser queimado.
Os dois voltaram a falar diretamente ao coração de Buck.
-Homem nenhum há que tenha deixado casa, ou irmãos, ou irmãs, ou pai, ou mãe, ou
esposa, ou filhos, ou terras, por causa de Jesus e do Evangelho, que não receba, já no
presente, o cêntuplo de casas, irmãos, irmãs, mães, filhos e terras, e com eles
perseguição; e, no mundo por vir, a vida eterna.
Deus proporcionara a Buck um lugar para viver e novos irmãos e irmãs em Cristo! Buck
desejava muito se aproximar das testemunhas e perguntar o que deveria fazer, para onde
deveria ir. Como ele poderia se reunir à sua esposa depois de passar a ser um fugitivo da
CG? Teria ele de desaparecer dali como fizera quando libertou Tsion?
Um guarda da CG advertiu-o por meio de um megafone para afastar-se daquele local.
- E, aos dois que estão presos - prosseguiu o guarda -, dou 60 segundos para que se
rendam pacificamente. Temos bombas poderosas estrategicamente colocadas, explosivos
e morteiros capazes de atingir um raio de 200 metros. Saiam já, ou não nos
responsabilizaremos por suas vidas! O cronometro será ligado assim que terminar a
última tradução deste aviso. Nesse ínterim, um oficial graduado da Comunidade Global,
sob as ordens diretas do supremo comandante e do potentado, escoltará os fugitivos até
um veículo de nossa propriedade.
Enquanto o aviso era traduzido para vários idiomas, o povo começou a dispersar-se
alegremente, distanciando-se do raio de ação dos explosivos e agachando-se atrás dos
carros e das barreiras de concreto. Buck afastou-se sem despregar os olhos de Moisés e
Eli, cujas mandíbulas estavam cerradas.
Um guarda da CG trajando uniforme militar de gala, mas desarmado, apareceu de
repente, vindo do lado direito, e correu na direção das testemunhas com as mãos para
cima. Quando ele estava a dez metros das testemunhas, Eli gritou tão alto que o homem
pareceu ficar paralisado pelo som que ecoou em seus ouvidos.
- Não ouses chegar perto dos servos do Deus Altíssimo, mesmo sem arma na mão! Salva
tua vida! Procura abrigo nas grutas ou atrás das pedras!
O homem da CG escorregou e caiu. Quando tentou levantar-se para fugir dali, caiu
novamente. Buck continuou a afastar-se, sem tirar os olhos das testemunhas. De um
117
galho acima de sua cabeça ecoaram dois tiros de um rifle. O atirador estava a uns quinze
metros de Eli e Moisés, mas Buck não conseguiu ver aonde os projéteis foram parar. Um
sopro de fogo foi expelido da boca de Moisés diretamente no soldado, que se manteve
agarrado à arma até seu corpo em chamas bater com força no piso de pedra. O rifle foi
atirado a uma distância de mais de cinco metros. O corpo do soldado queimou-se
rapidamente até transformar-se em uma pilha de cinzas como se estivesse dentro de uma
fornalha. O rifle também queimou e derreteu.
Um profundo silêncio tomou conta do local enquanto os guardas, o povo e Buck
aguardavam novos estampidos das armas. Buck estava agora no meio dos espectadores
que restaram, escondido sob o telhado de um pórtico nas proximidades. Depois de
passado um minuto, a temperatura baixou como se fosse inverno. Buck tremia
incontrolavelmente. Os que estavam perto dele gemiam e choravam de medo. Uma rajada
de vento fez com que as pessoas se aglomerassem tentando cobrir as partes expostas do
corpo a fim de se protegerem do frio intenso. Começou a cair uma chuva de granizo como
se um caminhão cósmico estivesse despejando, de uma só vez, toneladas de pedras de
gelo do tamanho de uma bola de golfe. Em dez segundos, a chuva parou, e a área ficou
coberta com mais de 20 centímetros de gelo.
A fonte de energia que fornecia eletricidade para os
holofotes da TV começou a pipocar. As luzes se apagaram, e a área ficou mergulhada na
mais profunda escuridão. Simultaneamente, em três locais, algo parecido com caixa de
explosivos detonando emitiu uma série de estouros abafados que, em seguida, se
desintegraram em cinzas.
Este foi o melancólico resultado do ataque criminoso às testemunhas.
Dois helicópteros apontavam seus faróis gigantescos para o Monte do Templo à medida
que a temperatura subia, chegando a ultrapassar 30 graus centígrados, segundo os
cálculos de Buck. O gelo derreteu-se rapidamente, e o som da água corrente era
semelhante ao de um riacho borbulhante. Em poucos minutos, a lama transformou-se em
pó como se o sol estivesse a pino.
A multidão choramingava e lamentava todas as vezes que os helicópteros, rodando em
círculos, iluminavam a área perto do Muro. Eli e Moisés continuavam imóveis, sem mexer
um dedo sequer.
Rayford agradeceu a Lukas Miklos enquanto se dirigia, na companhia de Chloe e Tsion,
para os quartos de hóspedes.
-Você foi uma resposta às nossas orações, meu amigo. Tsion prometeu enviar a Miklos
uma lista dos crentes da Grécia.
Lukas, você oraria conosco pelo marido de Chloe, genro do capitão Steele?
Certamente - disse Miklos.
Os quatro deram-se as mãos e curvaram a cabeça. Quando chegou a vez de Miklos orar,
ele disse:
-Amado Senhor Jesus Cristo, protege aquele rapaz.
Amém.
118
OUATORZE
ALÉM de emocionado, Buck também sentia-se muito triste e exausto quando pegou outro
táxi que o deixou a dois quarteirões da casa de Chaim Rosenzweig. Sem tirar o turbante e
o lenço, ele aproximou-se furtivamente da casa e constatou que os guardas da CG já
haviam deixado o local. Jonas, o segurança, cochilava em seu posto. Buck teve um
momento de hesitação. Ele sabia que Jonas e Chaim ainda não haviam se convertido.
Chaim já conhecia a verdade a respeito de Carpathia e não o denunciaria, mas Jonas era
uma incógnita. Buck não sabia se o segurança falava ou entendia inglês, pois o ouvira
proferir apenas algumas palavras em hebraico. Porém, como segurança da casa, ele
deveria conhecer um pouco de inglês; caso contrário, como poderia fazer contato com
visitantes estrangeiros?
Encorajado pelos desafios de Eli e Moisés, Buck deu um suspiro profundo, tocou de leve
um dos pontos do ferimento abaixo do olho, que o incomodava, e caminhou diretamente
para o portão da casa. Ele não queria assustar o homem, mas tentou despertá-lo
atirando uma pedrinha no vidro da guarita. Jonas não se mexeu. Buck bateu levemente
no vidro, e depois com força, mas não conseguiu acordá-lo. Finalmente, Buck resolveu
abrir a porta e tocou levemente o braço de Jonas.
O segurança, um homem robusto beirando os 60 anos, deu um pulo e arregalou os olhos.
Só depois de arrancar o disfarce foi que Buck se deu conta de que seu rosto devia estar
com um aspecto horrível. Os hematomas, o inchaço e os pontos de sutura o haviam
deixado com a aparência de um monstro.
A atitude de Buck ao tirar o turbante e o lenço aparentemente foi considerada por Jonas
como uma afronta. Sem arma na mão, ele pegou uma enorme lanterna presa no cinto,
apontou-a para Buck e deu um passo para trás. Buck desviou o olhar do foco da lanterna,
receando levar um soco no rosto machucado.
Sou eu, Jonas! Cameron Williams!
Jonas colocou a mão livre sobre o coração, esquecendo-se de abaixar a lanterna.
Oh, Sr. Williams! - ele disse em um inglês tão precário que Buck mal conseguiu
reconhecer seu nome. Finalmente Jonas apagou a lanterna e usou as duas mãos para
comunicar-se, gesticulando enquanto falava. - Eles - prosseguiu Jonas em tom de medo,
apontando para o lado de fora e movimentando as mãos como querendo dizer que havia
um mar de gente - estar olhando procurando o senhor. - Jonas apontou para os próprios
olhos.
Só eu ou todos nós?
Jonas lançou-lhe um olhar de quem não havia entendido nada.
Só eu? - ele repetiu, confuso.
Procurando só eu? - Buck apontou para si mesmo, tentando imitar os gestos de Jonas. -
Ou também Tsion e minha esposa?
Jonas fechou os olhos, sacudiu a cabeça e levantou uma das mãos.
Não aqui - ele disse. - Tsion, esposa, embora daqui. Voando. - Ele fez o gesto de bater as
asas.
E Chaim? - Buck perguntou.
Dormir. - Jonas colocou a mão na face e fechou os olhos.
Posso entrar para dormir, Jonas?
O segurança olhou de soslaio para Buck, demonstrando hesitação.
Eu chamar - ele disse, esticando o braço para pegar o telefone.
Não! Deixe Chaim dormir! Conte a ele mais tarde.
Mais tarde?
- De manhã - disse Buck. - Depois que ele acordar. Jonas concordou, mas continuava
com a mão no telefone como se fosse discar.
119
- Vou entrar e dormir - complementou Buck, interpretando o significado de suas palavras.
- Vou deixar um bilhete na porta do quarto de Chaim para que ele não fique assustado.
OK?
-OK!
- Posso entrar?
-OK!
- Tudo bem?
- Tudo bem!
Enquanto se dirigia para a porta, Buck virou-se para observar Jonas. O segurança também
o observava. Em seguida, ele colocou o telefone no lugar, acenou para Buck e sorriu. Buck
retribuiu o aceno, mas, ao tentar abrir a porta, constatou que estava trancada. Ele teve
de voltar e pedir a Jonas que a abrisse. Finalmente, Buck conseguiu entrar na casa e
relaxar pela primeira vez desde que o helicóptero levantara vôo do telhado algumas horas
antes. Ele deixou um bilhete na porta do quarto de Chaim sem fornecer detalhes,
mencionando apenas que estava no quarto de hóspedes e que tinha muita coisa a lhe
contar na manhã seguinte. Buck olhou-se no espelho do banheiro. Os ferimentos estavam
horríveis, e ele orou para que a tal clínica tivesse, pelo menos, realizado uma boa
assepsia no local. A sutura parecia ter sido feita por um profissional, mas sua aparência
era medonha - olhos injetados, rosto com hematomas e todo remendado. Ele não
gostaria que Chloe o visse naquela circunstância.
Depois de trancar a porta do quarto, ele se despiu e estendeu-se na cama gemendo de
dor. Em seguida, ouviu um leve toque de seu celular. Devia ser Chloe, mas Buck não
queria levantar-se. Ele rolou de lado e estendeu o braço para pegar a calça. Enquanto
tentava retirar o telefone do bolso, ele se desequilibrou e caiu da cama.
O tombo não foi sério, mas o ruído acordou Chaim. Enquanto atendia ao telefone, ele
ouviu Chaim dizer choramingando pelo interfone: - Jonas! Jonas! A casa está sendo
invadida! Quando Buck terminou de contar toda a história a Chaim e pôr Chloe a par da
situação, o sol já estava começando a despontar no horizonte. Ficou combinado que
Chloe, Tsion e Rayford seguiriam para Monte Prospect e que Chaim tentaria descobrir um
meio de Buck voltar para casa depois de recuperar-se dos ferimentos.
Buck achou que Chaim estava mais zangado ainda do que quando conversou por telefone
com Leon. Ele contou que os telejornais passaram e repassaram a imagem de Buck no
videoteipe conversando com o guarda da CG que foi assassinado alguns segundos depois.
- O teipe deixa bem claro que você não portava arma, que o guarda estava vivo quando
você o deixou, e que você não se virou para trás nem retornou ao local. O tiro dado pelo
guarda passou por cima de sua cabeça, Buck, e o corpo dele girou quando foi atingido a
curta distância pelos rifles poderosos da CG. Todos nós sabemos que os tiros foram
disparados pelas armas dos companheiros do guarda. Mas essa verdade nunca vai ser
divulgada. O assunto será abafado, o guarda será acusado de trabalhar com você ou para
você, e quem sabe o que mais poderá acontecer?
Esse "o que mais" passou a fazer parte das notícias forjadas pela CG. Os telejornais
diziam que um terrorista norte-americano chamado Kenneth Ritz havia sequestrado um
helicóptero de propriedade de Nicolae Carpathia para ajudar na fuga de Tsion Ben-Judá e
seu grupo da casa de Chaim Rosenzweig, onde eles se encontravam em prisão domiciliar.
As notícias davam conta de que Rosenzweig acolhera Ben-Judá em sua casa, bem como o
suspeito de assassinato Cameron Williams e sua esposa, e que ele havia concordado em
mantê-los em prisão domiciliar para serem interrogados pela CG. As cenas da porta que
dava acesso ao telhado da casa do Dr. Rosenzweig, visivelmente arrombada de dentro
para fora, mostravam como os norte-americanos conseguiram fugir.
Um porta-voz da Comunidade Global disse que Ritz foi morto por um atirador depois de
abrir fogo contra a polícia da CG no aeroporto de Jerusalém. Os outros três fugitivos
estariam escondidos em algum lugar do mundo, e havia suspeitas de que Williams, exfuncionário
da Comunidade Global, fosse um excelente piloto de aviões a jato.
120
De volta aos Estados Unidos, os componentes do Comando Tribulação acompanhavam as
notícias atentamente, mantendo contato com Chaim e Buck sempre que possível. Rayford
ficou surpreso diante das melhoras de Hattie em tão pouco tempo. Sua enfermidade,
desespero e obstinação haviam-se transformado em ódio e determinação. Ela chorava
tanto a perda do bebé que Rayford chegava a acordar assustado com seus lamentos no
meio da noite. Chloe também demonstrava estar irada.
Eu sei que não devemos esperar nada deste sistema mundial, papai - disse ela a Rayford
-, mas sinto-me tão impotente que estou a ponto de explodir. Se não encontrarmos um
meio de fazer Buck voltar para casa, vou até lá sozinha. Você já chegou a desejar ser
aquele que Deus vai usar para matar Carpathia no tempo determinado?
Chloe! - disse Rayford, na esperança de que sua reação soasse como uma censura e não
para ocultar o fato de que ele já orara para ter esse privilégio. O que estava acontecendo
com eles? No que estavam se transformando?
Buck comunicou que Jacov o ajudara a esconder-se na casa de Stefan. Rayford sentiu-se
melhor com essa notícia, pois a permanência de Buck na casa de Chaim o preocupava.
Certamente a polícia da Comunidade Global acreditava que Buck fugira com seus
companheiros. Viver sob o teto de uma pessoa desconhecida em um bairro de gente
simples o deixava menos vulnerável e dava-lhe a chance de recuperar-se dos ferimentos.
Buck contou a Rayford por telefone que dali a algumas semanas ele tentaria retornar aos
Estados Unidos em um vôo comercial, provavelmente saindo de um dos principais
aeroportos da Europa.
- Já que eles não estão à minha procura aqui - ele dissera -, talvez eu possa sair usando
um nome falso.
Nesse ínterim, Rayford fizera contato com Mac McCullum e David Hassid. Ele usou os
préstimos de David para substituir os computadores de todos os componentes do
Comando Tribulação e adquiriu unidades de tamanho reduzido que podiam ser ligadas à
Internet e servir como telefones movidos a luz solar, conectados por satélite ao mundo
inteiro.
Tsion sempre manifestava sua satisfação a Rayford por ter recebido um novo computador
- um laptop leve, estreito e fácil de ser transportado que podia ser conectado a um posto
no cais, dando-lhe a condição de receber em casa todos os tipos de acessórios disponíveis.
Tratava-se do modelo mais recente, mais rápido e mais potente que havia no mercado.
Tsion passava a maior parte do dia comunicando-se com seu rebanho internacional, que
aumentara de modo significativo antes das reuniões em Israel e agora se multiplicava
sensivelmente a cada dia.
Em razão das melhoras apresentadas por Hattie, pelo menos na parte física, o Dr. Floyd
Charles agora dispunha de tempo para assumir o lugar de Ken como conselheiro técnico
do Comando Tribulação. Ele instalou um programa para impedir que os telefones e os
computadores do grupo fossem rastreados.
A tarefa mais difícil para Rayford era lidar com suas emoções a respeito de Ken. Ele sabia
que todos sentiam a falta do companheiro. A mensagem de Tsion proferida em um rápido
culto em memória de Ken levara todos às lágrimas. Chloe passou dois dias na Internet
tentando encontrar algum Parente de Ken, mas não conseguiu nada. Rayford deu a noticia
a Ernie, em Palwaukee, o qual prometeu informar o Pessoal daquele aeroporto e guardar
os pertences de Ken até que Rayford pudesse buscá-los. Ele não contou nada a Ernie sobre
o ouro de Ken, sabendo que os dois, apesar de serem irmãos em Cristo, se conheciam
havia pouco tempo.
Buck comprou um computador para poder conectá-lo à Internet e aprender os
ensinamentos de Tsion. Porém, ele não conseguiu encontrar um programa que lhe
permitisse comunicar-se com Chloe sem ser rastreado. A conversa tinha de ser feita por
telefone. Ele sentia muito a falta dela, mas ficou feliz por saber que a esposa e o bebé em
121
gestação estavam saudáveis, apesar de Chloe ter admitido que o médico manifestara
uma certa preocupação com a fragilidade dela.
Chloe mantinha-se ocupada montando um ramo de negócio com base nas anotações de
Ken. Dentro de um mês, ela disse a Buck, esperava dirigir um comércio pelo computador,
ligando em rede todos os crentes do mundo.
- Alguns terão a missão de plantar e colher - ela disse. - Outros, a missão de comprar e
vender. Esta será a nossa única esperança, uma vez que somente os que tiverem a
marca da besta poderão participar do comércio legal.
Ela contou a Buck que sua prioridade seria arregimentar agricultores, produtores e
fornecedores. Assim que tudo estivesse em ordem, ela expandiria o mercado.
Mas como vai ser quando você tiver um bebé para cuidar? - ele perguntou.
- Espero que, nessa ocasião, meu marido já tenha voltado para casa - ela respondeu. -
Vou ensinar-lhe, porque ele não vai ter muito serviço além de dirigir uma revista pela
Internet.
Ensinar-lhe o quê? Como dirigir seu comércio ou tomar conta do bebé?
As duas coisas - ela disse.
No fim do dia de uma sexta-feira, ela mencionou a Buck por telefone que Rayford estava
planejando visitar o aeroporto de Palwaukee no dia seguinte.
- Ele vai dar uma olhada nos aviões de Ken e tentar conhecer um pouco melhor esse tal de
Ernie. Talvez o rapaz seja um bom mecânico, mas Ken mal o conhecia.
Naquela noite, Buck conectou seu computador à Internet e encontrou a mensagem de
Tsion para o dia. O rabino parecia abatido, mas Buck sabia que as pessoas que não o
conheciam pessoalmente não notariam esse abatimento. Tsion escreveu sobre o
sofrimento pela perda de amigos e familiares. Ele não mencionou o nome de Ken, mas
Buck o leu nas entrelinhas.
Tsion concluiu sua mensagem para aquele dia relembrando a seus leitores que,
recentemente, havia transcorrido o segundo aniversário da assinatura do pacto de paz
entre a Comunidade Global (conhecida dois anos antes como Organização das Nações
Unidas) e o Estado de Israel.
"Eu gostaria de lembrá-los, meus queridos irmãos e irmãs, de que estamos a apenas um
ano e meio daquele tempo ao qual a Bíblia dá o nome de Grande Tribulação. Até agora, a
situação tem sido muito difícil, mais do que difícil. Sobrevivemos aos dois anos mais
terríveis da história de nosso planeta, e este próximo ano e meio será pior. Contudo, os
últimos três anos e meio deste período farão com que os que já atravessamos pareçam
ter sido uma grande festa."
Buck sorriu diante da insistência de Tsion de sempre terminar sua mensagem com uma
palavra de incentivo, independentemente da dura verdade que teve de transmitir. Ele
encerrou a mensagem citando Lucas 21: "Haverá sinais
no sol, na lua e nas estrelas; sobre a terra, angústia entre as nações em perplexidade
por causa do bramido do mar e das ondas; haverá homens que desmaiarão de terror e
pela expectativa das coisas que sobrevirão ao mundo; pois os poderes dos céus serão
abalados. Então se verá o Filho do homem vindo numa nuvem, com poder e grande
glória. Ora, ao começarem estas coisas a suceder, exultai e erguei as vossas cabeças;
porque a vossa redenção se aproxima."
Na manhã seguinte, às sete horas em Israel, Buck estava assistindo ao noticiário da TV
sobre a resposta de Nicolae Carpathia a Eli e Moisés, que continuavam a causar destruição
em Jerusalém. O apresentador citou as palavras do supremo comandante Leon Fortunato,
que falou em nome do potentado:
"Sua Excelência declarou os pregadores como inimigos do sistema mundial e autorizou
Peter Matthews, o sumo pontífice da Fé Mundial Enigma Babilónia, a fazer o que bem lhe
aprouver com os criminosos. O potentado acredita, e eu tenho a mesma opinião, que não
122
deve envolver-se pessoalmente em assuntos de competência da divisão religiosa da
Comunidade Global. Sua Excelência disse-me o seguinte ontem à noite: 'A menos que
venhamos a descobrir que o nosso Supremo Pontífice não tem condições de lidar com
aqueles dois que usam de artifícios e hipnose em massa para paralisar um país inteiro'."
Evidentemente, por estar assistindo a uma transmissão "imparcial", Buck não se
surpreendeu ao ver Peter Matthews dar uma resposta furiosa:
"Oh! quer dizer então que o problema passou a ser meu? Será que Sua Excelência
finalmente resolveu transferir a autoridade a quem de direito? Sabemos que ele só abriu
mão dessa autoridade quando ficou provado que seu exército não tinha poderes sobre
esses impostores. Assim que os
dois morrerem, a chuva voltará a cair sobre Israel, límpida, pura, refrescante, e o mundo
saberá onde reside o verdadeiro poder."
Uma semana antes, Buck levara Chaim para visitar os pregadores diante do Muro, e o
ancião admitiu que ficou comovido pela experiência e mais desiludido ainda com Carpathia.
- Porém, Cameron - ele disse -, enquanto Nicolae cumprir com sua parte no pacto que
assinou com Israel, continuarei confiando nele. Não tenho escolha. Eu desejo e preciso
confiar nele.
Buck o havia pressionado.
- Se ele traísse Israel, o que você acharia de tudo o que aprendeu com Tsion e de tudo o
que meu sogro ouviu clandestinamente? Você capitularia e se juntaria a nós?
Rosenzweig não quis se comprometer.
Sou um velho com costumes arraigados - ele havia respondido. - Lamento ser tão
inflexível. Você e seus companheiros crentes são muito cativantes, e espero que não
venham a ter razão no final, porque vou me sentir o mais desprezível de todos os
homens. Mas eu lancei minha sorte em um mundo que posso tocar, sentir e ver. Não
estou disposto a abandonar a intelectualidade em prol de uma fé cega.
Em sua opinião, é isto o que Tsion tem feito?
Por favor, não lhe diga nada. Tsion Ben-Judá é um erudito brilhante que não se encaixa na
imagem que tenho dos crentes. Tampouco vocês, que são seus amigos íntimos. Acho Que
tudo isso devia me dizer alguma coisa.
Deus está tentando chamar sua atenção, Dr. Rosenzweig.espero que não haja necessidade
de uma ação drástica.
Rosenzweig o dispensara com um gesto. ~ Obrigado por preocupar-se comigo.
Agora Buck balançava a cabeça diante das notícias veiculadas pela TV, sabendo que eram
23 horas em Illinois e que sua família e amigos ainda não haviam tomado conhecimento
dos últimos fatos. Ele queria enviar-lhes uma mensagem por e-mail para que assistissem
ao noticiário. Mas não podia transmitir a mensagem sem expor Stefan e a si mesmo
diante da CG.
Buck pensou em fazer uma ligação telefónica e deixar um recado, mas Chloe passara a ter
um sono tão leve que sempre acordava e enviava-lhe uma resposta, mesmo que fosse no
meio da noite. Ela precisava descansar.
Stefan saíra para trabalhar, e Buck resolveu dar um passeio sob o sol da manhã. Ele
desejava tanto voltar para a casa secreta que quase chorou. A luminosidade do céu claro
e sem nuvens fê-lo semicerrar os olhos, e ele apreciou o calor de um dia sem nenhuma
brisa sequer. De repente, uma sombra cobriu o céu, como se alguém tivesse estendido
um manto acima de sua cabeça.
Mesmo com o sol a pino no céu límpido, a manhã transformou-se em crepúsculo, e a
temperatura caiu vertiginosamente. Buck sabia muito bem o que estava acontecendo: a
profecia de Apocalipse 8.12. O quarto anjo tocara a trombeta, "e foi ferida a terça parte do
sol". O mesmo aconteceria com a terça parte da lua e das estrelas. Considerando que o
sol brilha durante 12 horas por dia na maior parte do mundo, ele agora só brilharia oito,
com apenas dois terços de sua luminosidade normal.
123
Apesar de saber o que estava acontecendo, Buck ficou amedrontado diante do poder de
Deus. Sentindo um nó na garganta e um aperto no peito, ele correu até a casa vazia de
Stefan e ajoelhou-se. - Senhor - ele orou -, tu me tens provado tua fidelidade
constantemente, e, mesmo assim, sinto que minha fé se intensifica todas as vezes que
presencio o teu poder em ação. Tu cumpres tudo o que prometes. Tudo o que predizes
cumpre-se. Oro para que este fenómeno, propagado ao mundo inteiro por Tsion e pelas
144.000 testemunhas, alcance milhões de almas para o teu Reino. Como pode ainda
existir alguém que duvide de teu poder e de tua grandeza? Tu és tremendo, mas também
és um Deus de amor, de misericórdia e de bondade. Obrigado por me teres concedido a
salvação. Obrigado por Chloe e nosso bebé, por Rayford, Tsion e o médico. Obrigado pelo
privilégio de ter conhecido Ken. Protege nosso povo onde quer que esteja e dá-me a
oportunidade de conhecer Mac e David. Mostra-nos o que devemos fazer. Guia-nos para
que possamos te servir melhor. Eu me entrego em tuas mãos e estou disposto a ir aonde
quiseres e fazer o que me pedires. Louvo a ti por Jacov, Hannelore, Stefan e por todos os
novos irmãos e irmãs que puseste em meu caminho. Quero que Chaim te conheça,
Senhor. Graças te dou por seres um Deus benevolente e grandioso.
Buck estava profundamente envolvido pelo poder de Deus, sabendo que a escuridão teria
efeito sobre tudo no mundo, não apenas sobre a luminosidade do sol e a temperatura da
terra, mas também sobre o transporte, a agricultura, os sistemas de comunicação e as
viagens - tudo o que tivesse a ver com ele próprio e com seus entes queridos.
Buck queria avisar o Comando Tribulação, mas aguardou até ser sete horas da manhã em
Chicago. Eles gostavam de se levantar logo que o sol despontava no horizonte, mas agora
o sol não despontaria para eles. Buck se perguntava como seria o aspecto das estrelas
quando elas escurecessem. Não ia demorar muito.
Ele discou para Chloe e a despertou.
Rayford acordou mais cedo do que costumava e olhou para o relógio. Eram 6h45, e ainda
não havia clareado. Ele continuou deitado olhando para o teto, imaginando que o dia
devia estar chuvoso ou nublado. Às sete horas, ele ouviu o telefone de Chloe tocar. Devia
ser Buck, e Rayford queria falar com ele. Resolveu aguardar alguns minutos para dar
tempo a ela de conversar com o marido. Depois, ele desceria e lhe faria um sinal.
Ainda deitado de costas, ele deu um longo suspiro. Será que sua ida a Palwaukee naquele
dia teria algum proveito? Deveria ele mencionar a Ernie o assunto do tesouro escondido?
Talvez sim, dependendo do rumo da conversa. Levaria algum tempo para que ele
confiasse plenamente em Ernie. O rapaz era muito jovem.
A voz de Chloe parecia agitada. E ela o estava chamando. Ele sentou-se na cama. Ainda
não estava na época de o bebé nascer. Haveria algum problema com Buck?
- Papai! Venha aqui!
Rayford vestiu apressadamente o roupão. Chloe foi ao encontro dele no pé da escada,
com o telefone celular encostado ao ouvido.
- São sete horas, e ainda está um pouco escuro – ela disse. - Buck está me contando
que o sol parou de brilhar às sete horas da manhã no horário de lá. Enquanto estávamos
dormindo. Buck, converse com papai, meu bem. Vou chamar o pessoal para nos
reunirmos aqui.
Buck percebeu que Rayford ficou atónito.
Incrível - ele disse repetidas vezes. - Vamos ter de verificar o que vai acontecer com
nossos aparelhos movidos a luz solar.
Pensei que Floyd já estivesse cuidando do assunto.
Ele estava. Só que não gostamos das conclusões a que ele chegou. Por algum motivo que
desconhecemos, em um caso como este a soma dos elementos não é igual. Não dá para
expressar numericamente que vamos ter um terço de energia a menos. Ele usou uma
calculadora possante e disse que, além de haver um terço a menos de energia solar,
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haverá um terço a menos de tempo a cada 24 horas. Ele nos deu um exemplo do que
isso vai significar para nós, e não gostamos do que vimos. Não podemos contraargumentar
nem podemos acumular muita energia por antecipação, mas esperamos que
ele esteja errado.
- Ele não errou - disse Buck. - Sujeitos inteligentes como ele nunca erram. Aguarde um
instante, Rayford. Há uma outra pessoa ligando para mim e preciso saber quem é.
Buck apertou a tecla de identificação de chamada e voltou a falar com Rayford.
É Rosenzweig. Volto a ligar para Chloe em seguida.
Eu digo a ela. Veja como está a fonte de energia de seu celular.
Está tudo bem. - Ele apertou o botão. - Dr. Rosenzweig!
Cameron, quero conversar pessoalmente com você. Estou necessitando de alguns
conselhos.
Precisa ser agora?
Você tem condições?
Suponho que você já saiba o que está acontecendo - disse Buck.
Claro que sei! Eu estive presente na última reunião em Tsion falou sobre esta profecia.
Então você está admitindo que o fenómeno é óbvio demais e que não pode ser outra
coisa.
Qualquer pessoa que saiba raciocinar será forçada a admitir.
Obrigado, meu Deus!, pensou Buck.
Preciso conversar com você para saber o que vou dizer. A imprensa está alvoroçada e
quer que eu comente o assunto em um programa a ser levado ao ar amanhã. Eu disse a
uma meia dúzia de repórteres que sou botânico e que só sei explicar o que esse
fenómeno significará para a fotossíntese.
A propósito, o que ele significará para a fotossíntese?
Bem, se você deseja uma resposta técnica, digo que ele vai confundir tudo. O pessoal da
imprensa, porém, está me fazendo lembrar que sempre falei sobre assuntos científicos,
mesmo fora de minha área de atuação. Você deve se lembrar de que Nicolae me fez
algumas perguntas sobre as causas dos desaparecimentos. Eu quase fiquei convencido
com aquela bobagem de que houve uma reação atómica espontânea.
E você quase me convenceu também, e na época eu era um jornalista internacional.
Fortunato acabou de me ligar. Ele deseja que eu confirme a teoria da Comunidade Global
sobre este fenómeno.
Como poderei ajudá-lo?
Vamos ter de montar uma estratégia. Estou pensando em desmascará-los. Vou dar a
entender que apoio as ideias deles, e, quando eu estiver no ar, direi o que quiser. Preciso
me vingar de Leon, pelo menos uma vez.
Acho que você está preocupado com o que Carpathia vai pensar.
Claro.
Será um teste para o relacionamento entre vocês dois.
Exatamente. Vou descobrir até que ponto sou um cidadão livre. Fiz Leon passar por tolo
deixando transparecer que estava cooperando com ele para prender vocês três. Eu
poderia ter desmascarado o regime inteiro, mas Nicolae desculpou-se pessoalmente e
pediu-me que eu não lhe causasse nenhum constrangimento.
Ele se desculpou? Você não me contou nada.
Achei que não seria apropriado. Você não faz ideia do quanto cheguei perto de dizer a ele
que trocaria a saída de um amigo do país pela minha promessa de não deixar a notícia
vazar para a imprensa. Só que não tive coragem de pedir-lhe uma coisa destas.
Você agiu com sabedoria - disse Buck. - Não creio que ele aceitaria essa barganha. Se
Carpathia soubesse que estou aqui, bem debaixo do nariz deles, ficaria furioso.
Eu me atrevi a perguntar se ele não imaginava que suas táticas contra Ben-Judá e seus
seguidores poderiam ser a causa de todas estas pragas e julgamentos. Ele me censurou
por eu estar concordando com toda esta ficção. Eu preciso conversar pessoalmente com
125
você, Cameron.
Você conhece algum lugar onde pudéssemos ter uma conversa reservada?
Rosenzweig sugeriu um local subterrâneo chamado apropriadamente de "O Porão". Buck
pediu uma mesa em um canto fracamente iluminado onde eles poderiam ler o texto de
Chaim sem serem incomodados. Rosenzweig tinha em mãos um fax da declaração oficial
da Comunidade Global sobre o acontecimento que surpreendeu a todos naquela manhã.
Buck teve de se segurar para não cair na gargalhada.
O fax continha todos os tipos de baboseiras legais, insistindo em que o assunto fosse
mantido em absoluto Sigilo e que não poderia ser visto por outra pessoa que não o Dr.
Chaim Rosenzweig, e quem não cumprisse aquelas instruções seria punido pelo supremo
comandante da Comunidade Global por ordem de Sua Excelência, blablablá...
O texto dizia o seguinte: "Dr. Rosenzweig, Sua Excelência encarregou-me de transmitir-lhe
os mais profundos agradecimentos por sua aquiescência em endossar a declaração oficial
do Ministério da Aeronáutica e de Assuntos Espaciais da Comunidade Global a respeito do
fenômeno astronômico natural que ocorreu às sete horas desta manhã, horário da Nova
Babilônia."
- Eu só concordei em examinar o texto, mas Leon sempre usa um tom tipicamente
presunçoso. De qualquer forma, aqui estão as diretrizes.
Buck leu: "O MAECG tem o prazer de assegurar ao povo que a sombra que tomou conta
do céu esta manhã é resultado de um fenômeno explicável da natureza e não deve ser
motivo de alarme. Pesquisadores cientistas abalizados concluíram que a situação deverá
ser normalizada, sem a interferência de ninguém, dentro de 48 a 96 horas.”
"O fenômeno não terá influência significativa sobre as temperaturas, a não ser a curto
prazo, e a falta de luminosidade não deve ser confundida com falta de energia solar.
Embora alguns pequenos aparelhos movidos a luz solar, tais como telefones celulares,
computadores e calculadoras, possam sofrer alguma conseqüência momentânea, não
deverá haver impacto substancial nas reservas de energia sob a responsabilidade da
Companhia de Força e Luz da Comunidade Global.
"A explicação fornecida pelos especialistas no assunto quanto ao fenômeno que aconteceu
no espaço é a seguinte: houve a explosão de uma estrela maciça (uma supernova) que
resultou na formação de uma magnetar (ou estrela supermagnetizada). O diâmetro desse
corpo celeste tem, no máximo, 15 quilômetros, mas pesa duas vezes mais do que o sol.
Ele se forma quando a estrela maciça explode e seu núcleo se encolhe em contato com a
gravidade. A magnetar rira em torno de si com uma rapidez tremenda, fazendo com que
os elementos de seu núcleo cresçam e se tornem intensamente magnéticos.”
"Os sinais luminosos de tais eventos podem emitir uma quantidade de energia igual à que o
sol produziria em centenas de anos. Normalmente essas explosões ficam contidas na
camada superior da atmosfera, que absorve toda a radiação. Apesar de não termos
detectado níveis nocivos de radiação, estes sinais luminosos ocorreram a uma altitude
menor, mas suficiente para afetar o brilho do sol. Nossos cálculos mostram uma diminuição
da claridade entre 30 e 35%.
"O MAECG permanecerá atento a esse fenômeno e informará se houver mudanças
significativas. Esperamos que a situação se normalize antes do final da próxima semana."
Rosenzweig meneou a cabeça e fitou Buck.
- Uma fantasia convincente, não?
- Eu aceitaria, se não conhecesse a verdade - disse Buck.
- Bem, esta não é a minha área, você sabe. Mas, mesmo assim, posso compreender
alguma coisa. A formação de uma magnetar não teria efeito nenhum sobre o brilho do
sol, da lua ou das estrelas, a não ser talvez acentuar sua luminosidade. Pode ser que
tenha influência sobre as ondas de rádio e destrua satélites. Se esse fenômeno tivesse
ocorrido a uma altitude menor, dentro da atmosfera, conforme eles dizem, sem condições
de afetar a Terra, provavelmente teria deslocado a Terra de seu eixo. Seja qual for a
explicação, a magnetar não foi formada pela explosão de uma supernova.
126
Dificilmente aquele grupo encontrava motivos para sorrir, a não ser quando Tsion contava
um caso como aquele ou quando alguém fazia algum comentário engraçado. Gargalhadas
ou brincadeiras haviam deixado de fazer parte da vida deles. O sofrimento era
desgastante demais, Tsion sacrificado do grupo - perdera a esposa e dois filhos. Chloe
perdera a mãe e o irmão e, mais recentemente, dois amigos. Rayford perdera duas
esposas, um filho, seu pastor e várias outras pessoas conhecidas. Todos ao redor daquela
mesa, inclusive o Dr. Charles e Hattie, tinham motivos para enlouquecer se insistissem no
assunto. pensava Rayford. Ele aguardava com ansiedade o dia em que Deus enxugaria as
lágrimas dos olhos de seu povo, o dia em que não haveria mais guerras.
Este era um dos motivos que o estimulavam a assistir ao noticiário das 22 horas que
havia sido anunciado o dia inteiro com grande alarde pela Rede de Televisão da
Comunidade Global. A CG estava reunindo especialistas que confirmariam a declaração
oficial do governo referente à escuridão que já começara a causar problemas no mundo
inteiro. Buck insinuara que os comentários de Chaim seriam divertidos. Embora não
estivesse antevendo motivos para uma boa gargalhada, Rayford gostaria de poder
alegrar-se por alguns instantes.
- Eu só espero - disse Tsion -, que possamos detectar alguma mudança no modo de
pensar de Chaim. Quando lhe falei várias vezes sobre as profecias, eu o desafiei com esta
pergunta: "Chaim, como uma pessoa tão inteligente como você pode ignorar as
probabilidades matemáticas, uma vez que existem dezenas de profecias referentes a um
único homem afirmando que ele é o Messias?" Ele me veio com o típico argumento de que
não sabia se a Bíblia é autêntica. Eu disse: "Meu mentor! Então você duvida da Tora? Onde
você acha que descobri todas estas coisas?" Ouçam o que eu lhes digo, meus jovens, não
vai demorar muito para Chaim se convencer. Só não quero que ele espere muito tempo.
Rayford, que era cerca de três anos mais novo do que Tsion, gostou muito de ser incluído
entre os jovens. Hattie interpelou o rabino com voz firme.
- O senhor também pensa a mesma coisa sobre mim, Dr. Ben-Judá? Ou será que já o
convenci de que sou um caso perdido?
Tsion colocou o garfo na mesa e empurrou o prato.
Srta. Durham - ele disse tranqüilamente -, você tem certeza de que deseja ouvir na
frente de outras pessoas o que penso sobre sua situação?
Pode dizer - ela respondeu com o semblante sério. – Não tenho segredos e sei que seu
pessoal também não tem.
Tsion entrelaçou os dedos.
- Muito bem. Já que você me deu permissão, vou dizer. Nós dois não tivemos muitas
oportunidades de conversar. Sei qual é a sua posição, e você sabe que minha vida agora é
inteiramente dedicada a proclamar aquilo em que acredito. Portanto minha opinião
também não é segredo para você. Somos de sexos opostos, e você tem quase 20 anos
menos do que eu. Estas diferenças criam uma barreira entre nós, o que me força a ser
menos franco com você do que seria com outra pessoa. Mas acho que você ficaria surpresa
se soubesse quantas vezes por dia Deus me faz lembrar de você.
Rayford percebeu que Hattie parecia mais do que surpresa. Ela segurava um copo d'água,
com um sorriso forçado nos lábios.
Bem-Judá complementou:
- Eu não pretendia constrangê-la...
Oh, o senhor não vai me constranger, doutor. Prossiga. - Ao dizer isto, ela deu um
grande sorriso.
Peço que me permita falar do fundo de meu coração...
Por favor - ela disse, colocando o copo na mesa e dando a entender que estava ansiosa
por ouvi-lo. Rayford achou que ela estava gostando de ter atraído a atenção de Tsion só
para si.
- Sinto muita compaixão por você - disse Tsion. - Eu gostaria muito que você aceitasse
Jesus. - O rabino não conseguiu prosseguir. Seus lábios tremiam, e ele não conseguia
127
proferir as palavras.
Hattie franziu a testa, olhando firme para ele.
- Perdoe-me - ele conseguiu dizer em voz baixa, depois de beber um pouco de água para
tentar recompor-se. Lágrimas começaram a correr por seu rosto. - Deus me concedeu a
graça de poder vê-la através dos olhos dele - uma jovem assustada, irada e desiludida,
que tem sido usada e abandonada por muita gente. Deus a ama com um amor puro.
Certa vez, Jesus olhou para as pessoas que o cercavam e disse: "Jerusalém, Jerusalém,
que matas os profetas e apedrejas os que foram enviados! Quantas vezes quis eu reunir
teus filhos como a galinha ajunta os do seu próprio ninho debaixo das asas, e vós não o
quisestes!"
- Srta. Durham, você conhece a verdade. Eu a ouvi dizer que conhece. E, mesmo assim,
não está disposta a aceitá-la. Não, eu não a considero um caso perdido. Oro por você
tanto quanto oro por Chaim. Porque Jesus prosseguiu dizendo o seguinte a respeito do
povo de Jerusalém que tinha o coração empedernido: "E em verdade vos digo que não
mais me vereis até que venhais a dizer: Bendito o que vem em nome do Senhor."
- Eu olho para você, uma jovem de delicada e rara beleza, e vejo o que a vida lhe fez.
Gostaria muito que você tivesse paz Penso no quanto você poderia fazer pelo Reino de
Deus nestes tempos perigosos que atravessamos e estou ansioso para que você faça parte
de nossa família. Receio que você esteja arriscando a vida por não entregá-la a Deus e
não gostaria de vê-la sofrer antes que Ele a alcance com sua misericórdia. Lamento muito
se a deixei constrangida, mas você me pediu que falasse.
Hattie balançava a cabeça de um lado para o outro, e Rayford teve a impressão de que ela
estava mais surpresa do que constrangida. Em seguida, ela parou de balançar a cabeça,
fez um gesto de concordância e perguntou:
Quando vai começar o tal noticiário?
Agora - disse Chloe, e todos terminaram rapidamente a refeição.
Sentado diante do aparelho de TV em Jerusalém, acompanhado de seu notebook, Buck
sentia-se fascinado pelas sombras tenebrosas que cobriam a terra ao alvorecer. Era dia de
folga de Jacov e Stefan, e ele ficou satisfeito por poder assistir à entrevista coletiva à
imprensa na companhia dos dois.
Evidentemente, "entrevista coletiva à imprensa" não era o nome apropriado, uma vez que
a Comunidade Global havia adquirido todos os meios de comunicação. Os leitores so
tinham acesso a matérias de real interesse por meio de Publicações clandestinas como a
de Buck. Era por isso que a aparição de Chaim na TV estava causando tanta polêmica. Se
ele tivesse a coragem de expor tudo o que dissera a Buck, sua apresentação seria a mais
controvertida que a TV já mostrara esde o estarrecedor testemunho de Tsion. Não,
Rosenzweig ao se convertera, pelo menos por enquanto. Porém, ele estava visivelmente
cansado de ser usado pelo pessoal da CG.
O programa teve início com a costumeira bajulação sobre os convidados. Parecia que
todas as vezes que desejava persuadir a população de alguma teoria absurda, a CG
exibia os sabichões com grande pompa diante das câmeras e distribuía fartos elogios
falsos.
O apresentador mencionou a presença do Ministro da Aeronáutica e de Assuntos Espaciais
da Comunidade Global, o Diretor da Companhia de Força e Luz da Comunidade Global,
vários cientistas, autores, dignitários e personalidades do mundo artístico. Cada convidado
exibia um sorriso tímido enquanto o apresentador citava uma ladainha de suas
qualificações e realizações.
Buck deu uma gargalhada quando o apresentador proferiu a frase "E por último, mas
certamente tão importante quanto os demais convidados". A câmera focalizou um homem
franzino, de porte físico semelhante ao de Albert Schweitzer, enquanto a legenda na parte
inferior da tela exibia seu nome. Chaim não demonstrava timidez nem modéstia. Parecia
estar confuso, como se tudo aquilo fosse demais para ele.
Chaim balançava a cabeça para a frente e para trás, com ar de quem estava rindo de si
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mesmo, enquanto o apresentador enumerava seus títulos, um título após o outro: exprofessor,
escritor, botânico, ganhador do Prêmio Nobel, doutor nisto, doutor naquilo,
palestrante, diplomata, embaixador, amigo pessoal e confidente de Sua Excelência o
potentado. Chaim traçou um círculo com a mão aberta dando a entender que não havia
necessidade de mencionar mais títulos. O anfitrião concluiu, dizendo:
- Eleito uma vez o Homem do Ano pelo Semanário Global e inventor da fórmula que
transformou Israel em uma potência mundial, o Dr. Chaim Rosenzweig!
Não foi permitida a presença de pessoas estranhas no stúdio, e o pessoal da imprensa da
CG era contra aplausos. A apresentação tão veemente teve um final insípido, e o programa
prosseguiu.
Em primeiro lugar, o apresentador leu a declaração inteira da CG enquanto o texto era
exibido na tela. A tensão de Buck aumentou quando - conforme ele temia - o
apresentador começou a entrevista pedindo a opinião e os comentários do primeiro
convidado à esquerda, o que significava que ele continuaria na mesma ordem em que fez
as apresentações. Buck receava que, quando chegasse a vez de Chaim, os telespectadores
já tivessem perdido o interesse e a paciência. O controle total que a CG exercia sobre os
meios de comunicação tinha uma vantagem: apesar de haver centenas de canais à
disposição dos telespectadores, todos estavam exibindo o mesmo programa.
Naquele momento, Buck se deu conta de que a repentina escuridão era assustadora,
mesmo para os milhões de pessoas que não levaram em conta as palavras de Tsion Ben-
Judá por considerá-las delírio de um homem desequilibrado mentalmente. Todos estavam
com a TV ligada à procura de respostas de seus respectivos governos e consideravam
aquele programa o mais importante que já haviam visto. Buck só esperava que os
telespectadores aguardassem a fala do último convidado. O desfecho seria sensacional.
Todos os entrevistados, evidentemente, teceram elogios ao rápido e eficiente trabalho do
MAECG e garantiram ao público que se tratava de um fenômeno insignificante, uma
situação temporária.
Por mais alarmante que seja esta escuridão - disse uma mulher pertencente ao alto
escalão da Companhia de Força e Luz da Comunidade Global -, temos certeza de que as
conseqüências serão insignificantes na qualidade de vida
de todos nós e que a situação se normalizará sozinha em questão de dias.
Quando, finalmente, chegou a vez de Chaim, Buck sentiu-se ligado a seu pessoal nos
Estados Unidos. A idéia de que eles estavam assistindo ao mesmo programa fez com que
a enorme distância que os separava se reduzisse momentaneamente. Ele queria muito
que sua esposa estivesse ali a seu lado.
- Bem - iniciou Chaim em tom dramático -, quem sou eu para complementar ou eliminar
qualquer coisa que foi dita por estes brilhantes estudiosos dos fenômenos astronômicos
intergalácticos? Permitam-me dizer que estou profundamente decepcionado com a
promessa desta prezada senhora de que as conseqüências serão insignificantes na
qualidade de vida de todos nós. Nestes últimos anos, nossa qualidade de vida tem
deixado muito a desejar.
Sou um simples botânico que descobriu, sem querer, uma combinação que se
transformou em mágica. De repente, passei a ser solicitado a dar opinião sobre tudo,
desde o preço da lingüiça até se os pregadores do Muro das Lamentações são verdadeiros
ou fictícios.
Os senhores desejam saber minha opinião? Está bem, vou dá-la. A bem da verdade, não
sei. Não sei quem apagou as luzes e não tenho certeza se quero saber quem são aqueles
dois cavalheiros diante do Muro. Eu só gostaria que eles trouxessem de volta a água pura
e permitissem que a chuva caísse do céu de vez em quando. Seria pedir demais?
Porém, quero lhes dizer uma coisa, agora que consegui atrair sua atenção. Consegui atrair
a atenção de todos, não?
A câmera, que voltara a focalizar o assustado apresentador, exibiu as expressões abaladas
dos outros convidados. Havia ficado claro que todos imaginaram que Rosenzweig se
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perdera nas palavras.
Todos devem saber que não sou um homem religioso. Nasci judeu e me orgulho disto.
Não há como mudar. Mas, para mim, trata-se de uma nacionalidade, não de uma religião.
Tudo o que tenho a dizer é o seguinte: muitas pessoas, inclusive eu, ficaram horrorizadas
quando souberam o que aconteceu à família de meu amado protegido e ex-aluno que se
tornou um respeitável lingüista e estudioso da Bíblia, o rabino Tsion Ben-Judá.
Sou obrigado a confessar, do fundo do coração, que cheguei a imaginar se não havia sido
ele mesmo o causador de tudo o que lhe aconteceu. Perdoar aos assassinos? Jamais
enquanto eu viver. Contudo, será que eu aconselharia um homem a aparecer em um
programa de TV, de âmbito internacional, falando do próprio país onde o nome de Jesus
Cristo é anátema para seus vizinhos, e dizer ao mundo que virou a casaca? Que passou a
ser um seguidor de Cristo? Que passou a acreditar que Jesus é o Messias? Loucura.
Fiquei duplamente horrorizado quando ele se tornou um fugitivo, exilado de sua terra
natal. Sua vida já não valia mais nada. Mas será que perdi o respeito por ele? Passei a
admirá-lo menos? Como eu poderia fazer isso a um homem que se arriscou tanto, que foi
tão corajoso?
Obrigado, Dr. Rosenz... - interrompeu o apresentador, deixando claro que recebera
instruções pelo fone de ouvido.
Oh, o senhor não vai me interromper - disse Rosenzweig. - Tenho o direito de falar mais
alguns minutos e exijo que eu não seja retirado do ar. Só quero dizer que continuo a ser
um homem sem religião, mas meu amigo religioso, o rabino que acabei de mencionar,
falou sobre este mesmo assunto do qual estamos tratando hoje. Podem ficar tranqüilos.
Vou retornar ao ponto em que parei.
- Ben-Judá foi ridicularizado por sua crença, por suas argumentações de que as profecias
bíblicas podiam ser interpretadas literalmente. Ele disse que viria um terremoto. E veio.
Ele disse que viria chuva de granizo, sangue e fogo que queimaria as plantações. E
vieram. Ele disse que cairiam coisas do céu, envenenando a água, matando pessoas,
afundando embarcações. E caíram.
- Ele disse que o sol, a lua e as estrelas seriam feridos e que o mundo ficaria um terço
mais escuro. Bem, já estou terminando. Não tenho mais nada a dizer, a não ser que me
sinto um grande tolo a cada dia que passa. Desejo apenas complementar que gostaria de
saber o que o Dr. Ben-Judá vai nos contar sobre o que virá a seguir! Os senhores também
não gostariam?
Em seguida, Chaim informou rapidamente o endereço do site de Tsion.
O apresentador estava sem fala e limitou-se a olhar para Chaim com a testa franzida.
- Agora podem ir em frente - disse Chaim. – Desliguem o meu microfone.
Rayford ficou frustrado por não ter conseguido ir a Palwaukee naquele dia. Também não
seria possível ir no dia seguinte, nem no outro. A redução da energia solar estava tornando
a vida cada vez mais complicada por criar problemas em todos os setores, prejudicando
inclusive a transmissão dos ensinamentos de Tsion. O apoio do Dr. Rosenzweig às doutrinas
pregadas por Tsion aumentou sensivelmente o número de visitas a um site que já era dez
vezes mais popular do que qualquer outro. Contudo, a transmissão das mensagens diárias
de Tsion tornou-se uma tarefa muito difícil, forçando Rayford a adiar qualquer outra
atividade. As falhas repetitivas ocorridas na Internet eram decorrentes de problemas com
a energia solar. Os crentes do mundo inteiro tentavam copiar as mensagens e passá-las
adiante, mas era impossível saber se os resultados haviam sido satisfatórios.
Os esforços de Chloe no sentido de organizar um comércio para evitar futuros problemas
referentes à marca da besta quase fracassaram. Nas semanas seguintes, o clima
modificou-se completamente. As principais cidades do Meio-Oeste assemelhavam-se ao
Alasca na época do inverno rigoroso. As reservas de energia estavam no fim. Centenas de
milhares de pessoas do mundo inteiro morreram por ficar expostas ao frio. Até mesmo a
arrogante CG, que, por conveniência, não mudou sua declaração inicial, agora procurava
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alguém sobre quem pudesse lançar a culpa por essa desgraça. No centro de todo o pânico
gerado pela situação estava Ben-Judá. Teria ele predito esse acontecimento, conforme
Rosenzweig havia declarado, ou clamado por uma vingança do céu?
Peter Mathews tachou publicamente Ben-Judá e os dois pregadores de irresponsáveis e
praticantes de magia negra, comprovando sua acusação com cenas ao vivo do Muro das
Lamentações. Enquanto a neve caía, acumulando-se no solo, e os israelenses pagavam
preços altíssimos por roupas de frio e usavam material de construção como combustível,
Eli e Moisés continuavam no mesmo lugar. E descalços! Trajavam as mesmas vestes de
aniagem desprovidas de mangas. Sem ter nenhuma proteção contra o frio, a não ser sua
pele rija e bronzeada, suas barbas e cabelos compridos, eles pregavam, Pregavam,
pregavam.
Certamente - vociferou o supremo pontífice -, se o diabo existe, ele é o mestre desses
dois! Que outros seres Perturbadores da ordem e demoníacos poderiam suportar este frio
intenso e continuar a proferir diatribes irracionais?
Nicolae Carpathia mantinha-se em estranho silêncio. Suas aparições eram raras.
Finalmente, quando a Comunidade Global parecia ter perdido o controle da situação, ele
fez um pronunciamento ao mundo. Durante um breve período de sol ao meio-dia no
Oriente Médio, Mac conseguiu fazer uma ligação para Rayford, cujo telefone celular estava
funcionando com baterias velhas que haviam sido recarregadas por um gerador. A ligação
estava horrível, e eles não puderam conversar por muito tempo.
- Se você tiver condições, Ray, veja o potentado na TV esta noite! - gritou Mac. - Apesar
de nevar lá fora, estamos morrendo de calor aqui dentro porque ele direcionou toda a
energia de que necessitamos para seu palácio. Porém, quando ele aparecer na TV, estará
usando um enorme agasalho de pele vindo do Pólo Norte.
Mac estava certo. Rayford e Floyd trabalharam para armazenar a maior quantidade
possível de energia para que pudessem assistir ao programa no menor aparelho de TV da
casa secreta. O grupo todo se aconchegou a um canto para manter-se aquecido.
Hattie continuava a dizer:
- Não sei como vocês se sentem, mas eu estou recebendo o que mereço.
Tsion disse:
- Minha amiga, você verá que nenhum dos selados por Deus morrerá por causa deste
julgamento, cujo objetivo é chamar a atenção dos que ainda não se converteram.
Estamos sofrendo porque o mundo inteiro sofre, mas não morreremos por causa deste
julgamento. Você não gostaria de receber a mesma proteção? Hattie não respondeu.
Buck tiritava de frio no subsolo em companhia de Stefan e Jacov, sem ter conseguido
armazenar energia para ver Carpathia na TV. Os três ouviram o programa pelo rádio, e o
sinal era tão fraco que até a respiração deles atrapalhava a recepção do som.
Em Monte Prospect, Rayford, Tsion, Chloe, Floyd e Hattie viram quando Carpathia apareceu
na TV, dentro de um estúdio vazio, esfregando as mãos enluvadas e mexendo as pernas
como se estivesse lutando contra o frio.
"Cidadãos da Comunidade Global", ele disse com voz melodiosa, "aplaudo sua coragem,
sua colaboração, seu senso de lealdade e união no momento em que temos diante de nós
o desafio de suportar mais uma catástrofe.”
"Dirijo-me aos senhores para anunciar meu plano de visitar pessoalmente os dois
pregadores do Muro das Lamentações, que se confessaram responsáveis pelas pragas que
assolaram Israel. Eles serão forçados a admitir que estão por trás desta agressão covarde
ao nosso novo modo de vida.”
"Aparentemente, eles são invulneráveis a um ataque físico. Vou apelar para o senso de
decência, de justiça e de compaixão desses indivíduos e irei até eles com o coração
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aberto, disposto a negociar. É evidente que eles estão desejando alguma coisa. Se houver
algo que eu possa barganhar com eles, desde que não ofenda a dignidade e meu cargo
nem prejudique os cidadãos a quem dedico minha vida, estou disposto a ouvir e levar em
consideração qualquer pedido que me façam.”
Viajarei para Israel amanhã, e a visita será transmitida ao vivo pela TV. Como a sede da
Comunidade Global na Nova Babilônia possui mais reservas de energia do que a maioria
dos outros países, gravaremos esse encontro histórico, esperançosos de que todos os
senhores tenham a possibilidade de assisti-lo assim que esta minha penosa missão
termine.
"Tenham ânimo, meus queridos. Creio que este pesadelo está chegando ao fim."
- Ele vai pessoalmente ao Muro? - perguntou Buck. – Será que eu entendi bem?
Sim - disse Stefan. - Devemos ir também.
Eles não vão permitir que alguém se aproxime do local - disse Jacov.
- Espero que permitam - disse Buck, sugerindo, em seguida, que eles três saíssem bem
agasalhados para encontrar um lugar de onde tivessem uma visão privilegiada da cerca
de ferro. - Poderíamos montar um esconderijo lá com a aparência de uma caixa de
madeira.
Restaram apenas algumas folhas de madeira compensada no porão para serem usadas
como combustível - disse Stefan -, mas ainda não estão no ponto.
Poderemos trazê-las de volta - disse Buck - e usá-las como combustível quando estiverem
secas.
O plano de Buck era muito arrojado. Seu rosto ainda estava dolorido em alguns lugares e
insensível em outros desde que os pontos foram retirados algumas semanas atrás. Ele
não esperava ter de enfrentar um frio tão rigoroso como aquele em Israel.
Os três encontraram uma escadaria que dava acesso a uma casa abandonada, com as
portas lacradas, localizada a menos de cem metros do Muro. Sabendo que Carpathia
chegaria meio-dia, eles montaram o esconderijo na escuridão da madrugada, sem serem
vistos. Ninguém se aventurava a andar por ali sob aquela nevasca tão forte.
Buck e seus amigos estavam quase congelados quando entraram na caixa, que possuía
algumas frestas para que eles pudessem ver o que se passava fora. Buck, um jornalista
nato, resolveu ver qual seria o aspecto da caixa quando vista por um transeunte.
Eu já volto - ele disse.
Você vai sair daqui? - perguntou Jacov.
Só por alguns instantes.
Buck afastou-se alguns metros e teve dificuldade para enxergar a caixa por causa da
intensa nevasca. A lâmpada de um poste nas proximidades não era suficiente para
iluminá-la. Perfeito, ele pensou. Ela não atrairia a atenção de ninguém. Quando voltava, ele
virou-se em direção ao Muro com os olhos semicerrados, sabendo que as testemunhas
estavam ali, mas não conseguiu enxergá-las. Resolveu, então, aproximar-se um pouco
mais.
Buck notou que os dois não estavam perto da cerca. Munido de coragem, aproximou-se
mais ainda, confiante de que eles não se assustariam porque sabiam quem ele era. Ao
chegar bem perto da cerca, ele lembrou-se da primeira vez Que conversara com as duas
testemunhas a apenas alguns metros de distância.
Entre uma rajada e outra de vento, ele avistou os dois sentados no chão e encostados no
cômodo de pedra, com
velos aPoiados nos joelhos, conversando em voz baixa. Parentemente, o frio intenso não
os incomodava. Buck queria dizer alguma coisa, mas não lhe veio nada à mente. Eles não
necessitavam de palavras de incentivo. Não necessitavam de nada.
De repente, os dois olharam ao mesmo tempo para ele. Sem saber como proceder, Buck
fez um movimento afirmativo com a cabeça e levantou as duas mãos fechadas em sinal
de apoio. Seu coração deu um salto quando ele os viu sorrindo pela primeira vez. Eli
levantou a mão para saudá-lo.
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Buck correu de volta para o esconderijo.
- Por onde você andou, homem? - perguntou Jacov. - Pensamos que você estivesse
perdido ou congelado.
Buck sentou-se, passou os braços ao redor dos joelhos, curvou os ombros e limitou-se a
dizer:
- Eu estou bem.
Os guardas da CG mantiveram o povo a vários quarteirões de distância no momento em
que o ônibus conduzindo Nicolae e sua comitiva se aproximou. O vento e a neve haviam
cessado, mas o sol do meio-dia era fraco demais para aquecer a área.
Carpathia permaneceu no ônibus enquanto o pessoal da TV fazia a instalação de luzes,
som e câmeras. Assim que o potentado recebeu um sinal positivo, seus principais
assessores desceram do ônibus acompanhados de Fortunato. Carpathia foi o último a
descer. Ele aproximou-se da cerca, atrás da qual as testemunhas continuavam sentadas.
Diante das câmeras de TV que mostravam sua imagem ao mundo inteiro, Carpathia disse:
- Apresento-lhes as cordiais saudações da Comunidade Global. Em razão de seus
manifestos poderes sobrenaturais, penso que vocês sabiam que eu viria.
Eli e Moisés permaneceram sentados. Moisés disse:
Somente Deus é onipotente, onisciente e onipresente.
Seja como for, estou aqui em nome dos cidadãos da terra para decidir que direção
devemos tomar para que cesse esta desgraça que se abateu sobre o planeta.
As testemunhas levantaram-se e deram um passo à frente.
_ Só falaremos quando estiveres sozinho.
Carpathia fez um sinal para que seus assessores se afastassem. Fortunato, visivelmente
contrariado, os conduziu de volta ao ônibus.
Agora podemos prosseguir? - perguntou Carpathia.
Só falaremos quando estiveres sozinho. Carpathia lançou-lhes um olhar confuso, e disse:
- Restaram apenas os técnicos de TV e os operadores de câmera.
- Só falaremos quando estiveres sozinho. Nicolae empinou a cabeça em sinal de resignação
e ordenou que o pessoal da TV se afastasse.
Podemos deixar as câmeras ligadas? - ele perguntou. - Está bem assim?
Tua contenda não é conosco - disse Eli.
Como assim? Vocês não são os responsáveis pela escuridão, pelo caos em que o mundo se
encontra?
Somente Deus é onipotente.
Vim pedir a ajuda de dois homens que dizem falar em nome de Deus. Se esta desgraça
veio de Deus, então peço a vocês que, se puderem, me ajudem a tomar uma providência,
chegar a um acordo, assumir um compromisso.
Tua contenda não é conosco.
Está certo. Eu entendo, mas se vocês tiverem acesso a Ele...
Tua contenda não é con...
Já sei! Estou querendo saber...
De repente, Moisés falou tão alto que chegou a prejudicar 0 sistema de som.
- Como te atreves a falar desta maneira aos escolhidos do Deus Todo-Poderoso?
Peço desculpas. Eu...
Tu não és aquele que propagou que morreríamos antes do tempo determinado?
- É verdade, admito que...
- Tu não és aquele que nega o único e verdadeiro Deus, o Deus de Abraão, de Isaque e de
Jacó?
- No espírito do ecumenismo e da tolerância, sim, sustento a teoria de que ninguém deve
limitar seu conceito de divindade a uma só imagem. Mas...
Há um só Deus e um único mediador entre Deus e o homem: o homem Cristo Jesus.
Trata-se de uma opinião válida, evidentemente, como muitas outras opiniões...
Está escrito: "Cuidado que ninguém vos venha a enredar com sua filosofia e vãs sutilezas,
133
conforme a tradição dos homens, conforme os rudimentos do mundo, e não segundo
Cristo."
Vocês não vêem que seus argumentos são exclusivis...
Tua contenda não é conosco.
Não vamos voltar a este ponto, certo? No espírito da diplomacia, permitam-me sugerir...
As duas testemunhas deram-lhe as costas e sentaram-se novamente.
- Então, é isto? Diante dos olhos do mundo, vocês se recusam a conversar? A negociar? A
única resposta que recebi é que minha contenda não é com vocês? Então me digam com
quem é? Tudo bem, ótimo!
Carpathia marchou em direção à câmera principal e olhou firme para a lente a uma curta
distância. Seu tom de voz era maçante, mas suas palavras foram proferidas com a clareza
de sempre.
- Até posterior análise, a morte do guarda da Comunidade Global no Encontro das
Testemunhas não foi de responsabilidade de nenhum dos judeus convertidos nem de
nenhum membro do círculo de amizade do Dr. Ben-Judá. O homem morto pelas tropas da
CG no aeroporto não era terrorista. Meu bom amigo Dr. Chaim Rosenzweig em momento
algum e de maneira alguma deu acolhida ao Dr. Ben-Judá ou seu pessoal sem nosso
consentimento. A partir de agora, nenhuma pessoa que demonstre simpatia ao Dr. Ben-
Judá e a seus ensinamentos será considerada fugitiva ou inimiga da Comunidade Global.
Todos os cidadãos estão livres para viajar e viver em espírito de liberdade. Não sei com
quem estou negociando ou devo negociar, mas asseguro a quem quer que seja que estou
disposto a fazer quaisquer outras concessões que nos livrem desta praga da escuridão.
Ele deu meia-volta, saudou sarcasticamente as duas testemunhas e entrou no ônibus.
Enquanto o pessoal da TV ajuntava apressadamente seus equipamentos, as testemunhas
falaram em uníssono do lugar em que estavam sentadas, mas tão alto e de maneira tão
clara que puderam ser ouvidas por todos, inclusive por Carpathia.
- Ai, ai, ai daqueles que não olharem para cima e não levantarem a cabeça!
Dois dias depois, o sol voltou a brilhar com toda a sua intensidade, e o gelo acumulado na
terra começou a derreter-se. Buck fez planos para voltar para casa usando seu nome
verdadeiro.
Não posso seguir direto para Chicago em um vôo comercial - ele disse a Rayford -, mesmo
sabendo que o aeroporto foi reconstruído. Preciso passar pela Europa.
Que tal fazer uma conexão em Atenas?
Vou verificar. Por quê?
Rayford contou-lhe sobre Lukas Miklos.
- Vou ver se ele tem condições de encontrar-se com você no aeroporto - disse Rayford. -
Essa conexão não vai atrasar Sua viagem de volta e será um incentivo para ele.
Em Monte Prospect, Tsion contou a Rayford que estava elaborando um sermão contendo
sua advertência mais dramática e terrível até aquele momento. Nesse ínterim, ele
divulgou a seguinte mensagem ao mundo inteiro via Internet: "Em razão da verdade
citada em Lucas 21, apelo a todos, crentes e não-crentes, que comecem a olhar para o
céu. Creio que esta é a mensagem das duas testemunhas."
O Dr. Charles encontrou e limpou o telescópio de Donny Moore e, seguindo o exemplo de
milhões de pessoas do mundo inteiro, começou a examinar o céu. Porém, quando Tsion
comunicou em uma de suas mensagens diárias que estava investigando uma maneira de
montar um website que permitisse que outras pessoas vissem o céu através de um
mesmo telescópio, Rayford recebeu um telefonema apressado de David Hassid, da Nova
Babilônia.
Que bom ter conseguido falar com você – disse David, ofegante. - Como estão os planos
sobre o website mencionado pelo rabino?
Ficará pronto daqui a alguns dias. Logo nosso pessoal vai ter acesso a ele.
Vocês não podem fazer isso. Um pequeno programa de computador e um astrônomo
esperto são suficientes para localizar onde vocês estão.
134
Rayford levou a mão à cabeça.
Muito obrigado por essa informação, David. Não pensei nessa possibilidade.
O potentado autorizou a compra de um telescópio gigantesco, e estou trabalhando com
os sujeitos que vão montá-lo. Várias pessoas podem monitorá-lo ao mesmo tempo por
meio de computadores.
Bem, David, você sabe o que estamos querendo ver.
Claro que sei.
135
DEZESSEIS
NA semana seguinte, os noticiários informaram que os astrônomos do mundo inteiro
estavam analisando um corpo celeste que, a princípio, parecia ser uma estrela cadente.
Esse corpo celeste, porém, visto pela primeira vez durante a noite na Ásia, não riscava o
céu como um raio nem desaparecia em seguida como faziam as estrelas cadentes.
Tampouco colidia com outro objeto em sua trajetória orbital.
Os astrônomos acreditavam que, em razão da velocidade da luz e da distância entre a
terra e as estrelas mais próximas, as cadentes eram fenômenos que ocorreram anos
antes e só agora estavam sendo vistas.
Porém, após várias horas de pesquisas telescópicas feitas por amadores e profissionais do
mundo, tornou-se cada vez mais evidente que não se tratava de uma estrela comum.
Nem se tratava de um fenômeno ocorrido anos antes.
Impossibilitados de identificar o corpo celeste, os especialistas no assunto concluíram que
era um objeto minúsculo, que caía em linha reta, e que seu curso se iniciara tempos
atrás. Ele irradiava pouco calor, mas parecia emitir luz própria e também refletia a luz das
estrelas e do sol, dePendendo do período do dia.
Após muitos estudos, concluiu-se que, aparentemente, ele não seria uma ameaça à Terra.
O Ministro da Aeronáutica e de Assuntos Espaciais da Comunidade Global disse que o
objeto teria todas as chances de se queimar totalmente em contato com a atmosfera
terrestre.
- Mesmo que não se queime - ele disse -, existe uma grande possibilidade de que caia
na água sem causar nenhum dano. Pelo que conseguimos descobrir a respeito de sua
massa e densidade, se ele cair na terra, o efeito será mais danoso sobre si mesmo do
que sobre a terra. As probabilidades são de que ele se evapore.
Apesar dessas explicações, todos os telescópios continuavam apontados para ele.
Finalmente, concluiu-se que o objeto não-identifícado cairia em algum lugar de uma
região desabitada do Vale Fértil [localizado entre os rios Tigre e Eufrates], perto do local
que muitos acreditavam ter sido o berço da civilização.
Os cientistas da CG calcularam o ponto da queda a tempo de assistir ao impacto, mas
relataram que o. objeto teria atravessado a superfície da terra e desaparecido em uma
fenda. Estudos aéreos da região mostraram a impossibilidade da aproximação por meio de
veículos ou a pé para analisar mais de perto se o objeto havia ou não causado algum
efeito na crosta terrestre.
Mas enquanto os aviões sobrevoavam a área em círculos, filmando e tirando fotografias,
houve uma explosão geológica que alcançou um alto nível na escala Richter dos sensores
sismológicos do mundo inteiro. A queda do objeto provocou uma erupção semelhante a
de um vulcão nas profundezas da terra.
As ondas de choque foram tão intensas que desviaram os aviões da rota, e os pilotos
tiveram de fazer um esforço enorme para permanecer no ar e afastar-se da área. Para a
grande surpresa dos cientistas, a primeira manifestação do nue aconteceu debaixo da
terra surgiu no formato de uma nuvem produzida quando se explode uma bomba
atômica, só que milhares de vezes maior, e com uma força e velocidade jamais vistas na
história do mundo. Outro fato inédito a respeito dessa erupção foi que ela se originou de
uma fenda abaixo do nível do mar, e não de uma típica montanha vulcânica.
Câmeras de TV instaladas a milhares de quilômetros do local da erupção captaram
imagens durante um período de 12 horas. Em vez de ser dispersada indiscriminadamente
pelos ventos, essa nuvem - maciça e cada vez maior por ser alimentada pelos gases no
interior da terra - espalhou-se igualmente em todas as direções, ameaçando bloquear a
luz do sol em toda a superfície terrestre.
136
Não se tratava de uma nuvem comum que se tornaria menos densa à medida que se
dissipasse. A fumaça espessa que se formava de baixo para cima era negra como se
tivesse sido provocada por incêndio, em um gigantesco depósito de gasolina. Os cientistas
temiam que a origem da fumaça fosse um fogo colossal que se elevaria, atirando chamas
pelo ar a quilômetros de distância.
No início da tarde da segunda-feira seguinte em Jerusalém, Buck ficou arrasado ao saber
que seu vôo para Atenas, com conexão para os Estados Unidos, havia sido cancelado. A
nuvem negra de fumaça que cobria a terra também estava Prejudicando a luminosidade
do sol. Buck havia aguardado com ansiedade aquela escala de duas horas em Atenas
durante a qual conheceria Lukas Miklos. Em seguida, ele trocaria de avião e pegaria um
vôo direto para o aeroporto Midway de Chicago. De lá, ele só viajaria para Monte rospect
depois de certificar-se de que não estava sendo Seguido até a casa secreta. Buck e o
Comando Tribulação haviam descoberto caminhos alternativos que confundiriam qualquer
pessoa que se atrevesse a segui-los.
Frustrado pelo fracasso de seus planos, Buck dirigiu-se apressado à casa de Chaim
Rosenzweig, aproveitando a escuridão.
- Não confie na afirmação de Carpathia de que ele não o considera mais um suspeito de
assassinato - disse-lhe Chaim. - Nicolae não tem conversado comigo. Leon está furioso.
Apesar de não poder voltar atrás em sua palavra, Nicolae em breve vai encontrar uma
justificativa.
Não se preocupe. É que estou muito ansioso por ver Chloe. Talvez eu encontre um meio
de voar para lá.
Tome cuidado com a Enigma Babilônia.
O que o tal do Peter resolveu fazer agora?
Você ainda não sabe?
Buck balançou a cabeça negativamente.
- Ando atarefado demais cuidando de minha viagem – ele disse.
Chaim ligou a TV.
- Tenho ouvido aquele homem falar tantas vezes que até já decorei o que ele disse. É a
única coisa que aparece nos noticiários além da fumaça do vulcão.
Mathews, voltando a usar seus trajes clericais pomposos, estava falando diante da
câmera.
"A Comunidade Global fez um acordo tácito com os terroristas religiosos praticantes de
magia negra, mas é chegada a hora de aplicar a lei. A Fé Mundial Enigma Babilônia é a
única religião aceita no mundo inteiro. Dentro da autoridade que me foi conferida - o que
confirmei após cuidadosa leitura dos estatutos da Comunidade Global -, vou instaurar
processo contra os agressores. Para deixar tudo bem claro, digo que considero
exclusivista, intolerante e bitolada qualquer crença que se oponha à verdadeira religião.
Se, questões de diplomacia, a Comunidade Global achar que deve permitir digressões da
verdade cósmica, a Fé Mundial Enigrna Babilônia partirá sozinha para a ofensiva.
"Uma coisa é ser ateu ou agnóstico. Até mesmo eles são bem-vindos à nossa fé
abrangente. Porém é ilegal praticar uma forma de religião que insulta nossa missão. Tais
praticantes e seus seguidores sofrerão as conseqüências.
"Como primeiro passo para nos livrarmos de vez do mundo da intolerância, declaramos
que, a partir da meia-noite de terça-feira, horário de Greenwich, qualquer pessoa que
visite o website desse tal Comando Tribulação será processada por ato criminoso. Os
ensinamentos do guru dessa seita, Dr. Tsion Ben-Judá, são substâncias venenosas para
as pessoas cujo amor e fé são verdadeiros, e não permitiremos que essa toxina mortal
seja disseminada como droga.
"A tecnologia nos dá condições de rastrear qualquer cidadão que tenha acesso à Internet,
e todos aqueles que visitarem esse site após o horário estipulado estarão sujeitos a multa
e detenção."
O pronunciamento foi interrompido por um repórter da Comunidade Global.
137
"Apenas duas perguntas, supremo pontífice. Primeira, o ato de prender as pessoas que
tenham acesso ao site não está em desacordo com os princípios de uma religião que
prega tolerância, fé e amor? Segunda, se o senhor tem condições de rastrear qualquer
pessoa que tenha acesso à Internet, por que não descobre de onde Ben-Judá faz suas
transmissões e manda interditar o local?"
"Lamento muito", disse um dos assessores de Peter Mathews enquanto ele era retirado
do local, "mas foi estabelecido com antecedência que não haveria espaço para Perguntas".
Eu gostaria de dar uma espiada na testa daquele repórter,
pensou Buck. Seria muito bom que aquele homem não fosse descoberto e que
continuasse trabalhando dentro do sistema
Acabara de amanhecer na região de Chicago quando Rayford saiu da casa secreta dirigindo
o Range Rover de Buck. Apesar da fumaça que cobria o céu, ele precisava ir a Palwaukee
para verificar as condições em que se encontrava o carro de Ritz. Parecia estar em melhor
estado que o Rover. O Comando Tribulação poderia usá-lo, mas Rayford não sabia como
dispor dos pertences de um homem morto, principalmente de alguém que não tinha
nenhum parente vivo.
De repente, Rayford ouviu uma voz, como se houvesse alguém dentro do carro com ele.
O rádio estava desligado, e ele viajava sozinho, mas a voz foi bem clara, melhor do que se
tivesse sido produzida por um aparelho de som.
"Ai, ai, ai dos que moram na terra, por causa das restantes vozes da trombeta dos três
anjos que ainda têm de tocar."
O telefone de Rayford tocou. Era David, da Nova Babilônia.
Capitão Steele, estou em uma área ao ar livre e não sei que tipo de explicações temos
para este acontecimento, mas aposto minha vida que ele não vai virar notícia.
Eu ouvi. Ele não precisa virar notícia.
Todos aqui o viram antes de ouvi-lo. Bem, pelo menos nosso equipamento conseguiu
detectá-lo. Não podemos ver nada no meio desta nuvem de fumaça. Eu perguntei a um
colega turco, e ele me disse que ouviu em sua língua. Eu ouvi em inglês, por isso você
deve saber o que penso a respeito.
Você viu o anjo?
Trabalhamos a noite inteira porque uma sonda detectou alguma coisa. O fac-símile digital
reproduziu uma espécie de corpo celeste, um cometa ou coisa parecida. O responsável
pela sonda conseguiu localizar e medir o objeto reproduzido, e começamos a estudá-lo.
Não sou astrônomo, por isso não faço nem idéia do que estou tentando descobrir. Eu
disse a meus colegas que, para mim, ele parece ser bem menor e não tão compacto. Eles
me deram os parabéns porque o meu comentário deu uma idéia ao chefe do grupo. Ele
disse: "Tudo bem, vamos supor que ele esteja mais perto e seja menor. Muito menor."
Depois, ele reposicionou a sonda e fez alguns ajustes. De repente, o computador começou
a exibir imagens que podemos ver e compreender. A figura parece transparente e tem
aspecto humano, mas não muito. De qualquer forma, continuamos acompanhando o
assunto. O patrão disse para apontarmos todas as antenas parabólicas de rádio para essa
figura e tentar descobrir sua localização, da mesma maneira que fazemos com as estrelas
durante o dia. Em seguida, conforme você sabe, ouvimos a voz.
- A recepção do som não foi boa - prosseguiu David -, e perdemos a primeira palavra,
mas, como tenho acompanhado os ensinamentos do Dr. Ben-Judá, eu sabia do que se
tratava. As duas palavras seguintes são iguais à primeira. Vou dizer-lhe uma coisa,
capitão, todo mundo aqui está abalado, todo mundo mesmo. Algumas pessoas caíram ao
chão, chorando. Eles estão repassando o teipe repetidas vezes, e eu cheguei a copiá-lo
em minha máquina de ditados. Mas sabe o que aconteceu? A gravação está em grego.
Todos ouviram a voz na própria língua, mas a gravação está em grego.
Buck ouviu a voz do anjo e confundiu-a com o som da TV ' v ate ver a expressão no
rosto de Chaim. O ancião estava petrificado. Como ele, ou qualquer outra pessoa, podia
continuar duvidando da existência de Deus? A questão agora não era ignorar. Era optar.
138
Rayford estacionou perto do hangar onde Ken Ritz morava antes de mudar-se para a casa
secreta. Ernie, o crente recém-convertido, estava examinando o motor do carro de Ritz,
com a cabeça embaixo do capo aberto. Quando Rayford se aproximou, ele ergueu a
cabeça e fitou-o com os olhos semicerrados por causa da fumaça. Ernie sorriu, balançou
a cabeça com entusiasmo e ergueu o boné sujo de graxa. A marca em sua testa
continuava visível, e ele parecia orgulhoso disso, embora estivesse um pouco trêmulo.
Foi assustador, não? - ele disse.
Não deveria ter sido para nós que já sabíamos o que viria - disse Rayford. - Você não
deve ter medo de nada. Nem da morte. Nenhum de nós deseja morrer, mas sabemos o
que virá em seguida.
Ah, sim - disse Ernie, ajeitando o boné na cabeça. – Mas cheguei a ficar com medo!
- Como está o carro de Ken? Ernie voltou a trabalhar no motor.
Depois de tudo o que aconteceu, eu diria que está bom demais.
Você considera este trabalho terapêutico?
Não entendi - disse Ernie. - Nunca fui bom aluno. O que o senhor está dizendo?
Este trabalho o ajuda a lembrar-se de Ken sem muito sofrimento?
Oh, bem, fazia pouco tempo que eu o conhecia. Isto é, fiquei chocado e sinto falta dele.
Mas eu fazia este trabalho para ele. E ele me pagava, o senhor sabe. Mas vocês dois
sendo crentes...
- Ah, sim, foi bom. Ele me deu o endereço do site daquele tal de Ben-Judá.
Um carro parou perto da torre reconstruída, e dois homens - usando camisa social e
gravata - desceram. Um deles era alto e negro, o outro, atarracado e branco. O primeiro
entrou na torre. O outro se aproximou de Ernie e Rayford. Ernie tirou a cabeça debaixo do
capo e cobriu a testa com o boné.
- Ei, Bo! - ele disse. - Você ouviu aquela voz que veio do céu?
Ouvi - respondeu Bo, visivelmente contrariado. - Se você acredita que a voz veio do céu,
é mais pirado do que pensei.
Então, de onde ela veio? - perguntou Ernie, enquanto Bo encarava Rayford.
São aqueles fundamentalistas malucos brincando de novo com a gente. Alguma espécie
de truque com alto-falantes. Não caia nessa.
Ernie deu uma risadinha amarela e olhou para Rayford.
Como vai? - disse Bo, dirigindo-se a Rayford. – Posso ajudá-lo em alguma coisa?
Não, obrigado. Fui amigo de Ken Ritz.
Ah, pois não. Foi muito triste.
Vim até aqui para cuidar de seus pertences. Acho que ele não tinha nenhum parente vivo.
Ernie endireitou o corpo e virou-se tão rapidamente que até mesmo Bo pareceu surpreso.
Estava claro que ambos queriam dizer alguma coisa, mas eles se entreolharam e
hesitaram. Em seguida, resolveram falar ao mesmo tempo.
Bo disse:
- Então, quer dizer que você pensou em passar por aqui para ver o que poderia...
Ernie encobriu as palavras dele.
- Não, está tudo bem. Não há nenhum parente. Ele me contou há mais ou menos uma
semana que...
Ernie parou repentinamente, e Bo concluiu seu pensamento.
- ... para ver o que poderia descolar, é isto? Rayford estremeceu diante de tanta
grosseria, principalmente por ter partido de um estranho.
- De jeito nenhum, senhor. Eu...
- Por que você está me chamando de senhor! Você não me conhece!
Apesar de ter sido pego desprevenido, o velho instinto de Rayford prevaleceu.
O quê? Será que estou falando com um alienígena? Como uma pessoa educada se dirige a
um estranho em seu planeta, Bo? - Ele pronunciou o nome com o máximo sarcasmo
possível. Rayford era bem mais alto, mas Bo era corpulento.
É melhor você dar o fora daqui enquanto é tempo - disse Bo.
139
Rayford estava espumando de raiva, mas arrependeu-se de sua atitude por estar sendo
tão venenoso.
- Por que você não cuida de sua vida enquanto converso em particular com Ernie?
Bo aproximou-se de Rayford fazendo-o ficar em posição de defesa.
- Porque Ernie é meu empregado - disse Bo -, e tudo o que existe nesta propriedade é
da minha conta. Inclusive as coisas de Ritz.
Rayford deu um longo suspiro e readquiriu o controle.
Então vou conversar com Ernie quando ele tiver tempo...
... e na casa dele - complementou Bo.
Ótimo, mas quem lhe deu o direito de ficar com as coisas de Ken Ritz?
E que direito você tem?
_ Eu não estou reivindicando nenhum direito - disse Rayford. - Só acho que minha
pergunta tem lógica.
Ernie estava visivelmente nervoso.
_ Bo, senhor, Ken me disse que, se alguma coisa acontecesse com ele, eu poderia ficar
com suas coisas.
_ Ah, sim! Até parece!
- Ele me disse! Os aviões, este carro, seus objetos pessoais. Tudo o que eu quisesse.
Rayford olhou para Ernie com desconfiança. Ele não queria questionar um companheiro
crente, principalmente diante de um estranho, mas foi forçado a isso.
Pensei ter ouvido você dizer que mal conhecia Ken.
Deixe tudo por minha conta - disse Bo. - Você está falando bobagens, Ernie, e sabe disto!
Ritz era dono de uma parte deste aeroporto e...
Rayford empinou a cabeça. Aquilo não condizia com o que Ken lhe contara sobre seu
desejo de comprar o local.
Bo notou a reação de Rayford e entendeu que ele sabia de mais alguma coisa.
- Bem - ele tentou remendar -, ele fez uma oferta. Ou ia fazer. Quer dizer, foi feita uma
oferta. Por isso, se houver alguma coisa de valor na casa dele vai passar a pertencer ao
dono do Palwaukee.
Rayford sentiu o sangue ferver novamente.
Que bela explicação! - ele exclamou. - Ele morreu antes de haver um acordo, e você vai
pegar seus pertences em troca do quê? Você vai mudar o nome deste lugar para Memorial
de Ritz? Vai pegar o que é dele, e ele recebe o quê? Propriedade póstuma, enquanto você
dirige o aeroporto para ele e fica com os lucros?
Então, qual é a sua, sabichão?
Rayford quase chegou a rir. Será que ele voltara a ser um menino da quarta série? Por
que estava discutindo aos gritos com um estranho?
Conforme eu lhe disse, não estou reivindicando nada. Só quero ter certeza de que a
vontade de meu amigo seja feita.
Ele queria que eu ficasse com as coisas dele - disse Ernie. - Eu já falei!
Ernie - disse Bo -, volte para o seu trabalho e fique fora disto, está bem? E trate de
limpar essa mancha de sua testa. Você está parecendo um rato com o focinho sujo.
Ernie afundou o boné na cabeça e voltou a cuidar do motor do carro, resmungando:
- Estou pegando o que ele disse que era meu. Você não vai tirar de mim o que é meu. De
jeito nenhum.
Rayford não gostou das mentiras de Ernie e muito menos de o rapaz se sentir
envergonhado por ter o selo de Deus na testa.
De repente, ele caiu em si. Somente os outros crentes podiam ver o selo. Será que
Rayford havia discutido com um santo da tribulação? Ele olhou rapidamente para a testa
de Bo, que esteve à mostra o tempo todo, uma vez que o homem usava cabelos curtos e
ficara a poucos centímetros de seu rosto durante a discussão.
Mesmo no meio de uma densa fumaça, a pele de Bo estava limpa como a de um bebê.
140
Buck estava inquieto. Sentado em frente a Chaim Rosenzweig na sala de estar da casa
dele, Buck sentia uma grande compaixão por seu amigo.
- Doutor - ele disse -, depois de ver, conhecer e sentir o que todos nós, inclusive você,
temos sofrido nestes últimos anos, como é possível continuar resistindo ao chamado de
Deus em sua vida? Peço-lhe que não se ofenda. Você sabe eu me preocupo com você
tanto quanto Tsion, minha esposa e o pai dela. Você disse em um programa de TV
transmitido ao mundo inteiro que Ben-Judá provou estar correto em suas interpretações
sobre as profecias. Perdoe-me por ser tão insistente, mas o tempo está se encurtando.
- Confesso que tenho andado um pouco confuso – disse Rosenzweig -, principalmente
depois que Ben-Judá esteve hospedado aqui. Você ouviu meus argumentos contra Deus
no passado, mas não, não posso negar que estas coisas são obras dele. Tudo está muito
claro. Mas tenho de dizer que não entendo o seu Deus. Para mim, Ele parece estar
agindo de maneira mesquinha. Por que Ele não atrai a atenção do povo por meio de
milagres estupendos, como fez nos tempos bíblicos? Por que está tornando a situação
cada vez pior até que as pessoas não tenham mais escolha? Eu estou me negando a fazer
uma escolha forçada por causa desse mesmo Deus que deseja que eu dedique minha vida
a Ele. Se eu vier a me aproximar dele, quero que seja por livre e espontânea vontade.
Buck levantou-se e abriu uma parte da cortina. O céu estava cada vez mais escuro, e ele
ouviu um estrondo ao longe. Seria melhor afastar-se da janela? Não havia prenuncio de
chuva. Que estrondo teria sido aquele? A fumaça era tão densa que ele não conseguia
enxergar nada a mais de três metros.
- Doutor, Deus o tem abençoado mais do que qualquer outro ser humano merece. Se
tudo o que você possui - arnigos, ótima formação acadêmica, cultura, criatividade,
admiração de muita gente, boa renda e conforto - não serve. Para aproximá-lo dele, o
que mais vai ser necessário? Deus não quer que nenhuma alma pereça. É por isso que Ele
envia julgamentos. Para forçar as pessoas a se aproximarem ou se afastarem dele de vez.
Estamos orando para que você se decida pela primeira opção.
Rosenzweig parecia mais velho do que realmente era. Fatigado, abatido, solitário, um
homem necessitando de descanso. A vida, porém, estava difícil para todos. Buck sabia
que a situação pioraria ainda mais. O ancião cruzou as pernas, demonstrando
desconforto, e, em seguida, voltou a apoiar os dois pés no chão. Parecia confuso. Ele e
Buck tiveram de falar mais alto para serem ouvidos.
- Preciso lhe dizer que suas orações por mim significam muito mais do que eu... - Chaim
franziu a testa. – Que barulho é este?
O ruído do estrondo aumentara e tinha um som metálico.
Parecem elos de corrente batendo uns nos outros – disse Buck.
Será algum avião voando baixo?
Os aeroportos estão fechados, doutor.
O ruído está cada vez mais alto! Está escurecendo! Parece noite lá fora! Abra a cortina
toda, Cameron, por favor. Oh, que coisa horrível!
O céu estava negro como piche, e o ruído, ensurdecedor. Buck olhou para Chaim, cuja
expressão era de terror. O som de metal que ressoava obrigou os dois homens a
tamparem os ouvidos. Alguma coisa começou a bater com força na vidraça, provocando
uma cacofonia de sons agudos, irritantes, estridentes que pareciam atravessar as
paredes.
Buck olhou pela janela, e seu coração bateu com tanta força como se fosse explodir. Do
meio da fumaça, surgiam seres alados - feios, horrendos, como se fossem monstros
voadores de cores marrom, preta e amarela. Voando em bandos como gafanhotos, esses
seres pareciam cavalos em miniatura, com 12 a 15 centímetros de comprimento e cauda
semelhante à de escorpião. E mais horripilante ainda: estavam atacando, tentando entrar
na casa. O alvo deles parecia ser Chaim. Em pé no meio da sala, o ancião começou a
gritar:
141
- Cameron, eles querem me atacar! Diga que estou sonhando! Diga que isto não passa de
um pesadelo!
Pairando no ar, as criaturas batiam as asas e arremessavam a cabeça contra a vidraça.
Sinto muito, doutor - disse Buck, tremendo e com os braços arrepiados. - É uma
realidade. Este é o primeiro dos três ais de advertência dos anjos.
O que eles querem? O que vão fazer?
Tsion disse que eles não atacarão as folhas como os gafanhotos costumam fazer.
Atacarão só aqueles que não têm o selo de Deus na testa. - Chaim empalideceu, e Buck
achou que ele ia desmaiar. - Sente-se, doutor. Vou abrir a janela...
Não! Eles não podem entrar! Tenho certeza de que querem me devorar!
Talvez possamos prender um ou dois entre a tela de proteção e a vidraça para vê-los
melhor.
Eu não quero vê-los! Quero matá-los antes que eles me matem!
Chaim, eles não foram autorizados a matá-lo.
Como você sabe? - Chaim falava agora como um menino duvidando do médico que lhe disse
que a injeção não ia doer.
Eles só vão atormentar você. A Bíblia diz que as vítimas atacadas por eles vão desejar
morrer, mas não conseguirão.
Oh, não!
Buck girou uma manivela para abrir a vidraça. Vários espécimes voaram para perto da tela,
e ele voltou a fechar raPidamente a vidraça, prendendo alguns entre o vidro e a tela. Eles
batiam as asas alucinados, tentando entrar à orÇa, batendo uns nos outros. O som metálico
estridente aumentou.
Você não está nem um pouco curioso? - perguntou Buck lutando para não desviar os
olhos deles. - São seres híbridos fascinantes. Como cientista, você não gostaria pelo
menos de ver...
Eu já volto - gritou Chaim, afastando-se rapidamente. Logo a seguir, ele voltou com uma
aparência ridícula, vestido da cabeça aos pés com trajes de tratador de abelhas: botas,
avental de lona cobrindo todo o corpo, luvas e chapéu com visor transparente que o
protegia até o pescoço, tendo nas mãos um taco para jogar críquete.
Gritos horripilantes elevavam-se acima dos ruídos metálicos. Chaim correu até a outra
janela, fechou a cortina e ajoelhou-se.
- Oh, Deus - ele orou -, salva-me destas criaturas! E não permitas que Jonas morra!
Buck olhou por cima do ombro de Chaim na direção do portão. Ele avistou Jonas se
debatendo, gritando, batendo nas pernas e no tronco, tentando cobrir o rosto. Seu corpo
estava coberto de gafanhotos.
Precisamos trazê-lo para dentro de casa! - gritou Buck.
Eu não posso sair! Eles vão me atacar!
Buck hesitou. Ele acreditava que não seria atacado pelos ferrões daquelas criaturas, mas
seu cérebro não conseguia emitir impulsos para suas pernas se movimentarem.
Vou até lá! - ele disse.
Como você vai fazer para que esses bichos não entrem?
Vou fazer o que for possível. Você tem outro taco?
Não, mas tenho uma raquete de tênis.
Acho que vai servir.
Buck dirigiu-se para a escada com a raquete na mão. Chaim gritou para ele:
- Vou me trancar neste quarto. Veja se consegue matar todos eles ou impedir que entrem
quando você voltar, coloque Jonas no quarto de hóspedes da frente. Ele vai morrer?
_ Ele vai desejar morrer.
Buck parou diante da porta. A fumaça que pairara sobre a cidade durante dias havia
desaparecido, deixando uma nuvem de criaturas horripilantes que se espalhavam por
toda parte. Orando por coragem, Buck abriu a porta e correu até Jonas, que agora estava
deitado no chão com o corpo encolhido e tremendo.
142
- Jonas! Vou levar você para dentro de casa.
Mas ele perdera a consciência.
Buck colocou a raquete no chão e usou as duas mãos para agarrar aquele homenzarrão
pelos ombros e virá-lo de costas. Seu rosto havia levado uma pancada e estava
começando a inchar. Jonas era grande e corpulento, e seria muito difícil arrastá-lo. Buck
tentou lembrar-se de como faziam os bombeiros para transportar um homem, mas não
tinha equilíbrio suficiente para levantar Jonas do chão.
Os gafanhotos, uma designação muito branda para aqueles bichos asquerosos, voavam
ameaçadoramente ao redor da cabeça de Buck, e alguns chegaram a pousar nela. O peso
e o volume dos bichos deixaram-no surpreso. Apesar de sentir-se aliviado por saber que
não seria atacado por eles, Buck ouvia seus zumbidos e achava que eles estavam
tentando afastá-lo de Jonas. Quando um deles pairou sobre o rosto de Jonas, Buck pegou
a raquete e deu-lhe uma pancada com toda torça, fazendo com que o gafanhoto
atravessasse a vidraça da janela frontal da casa. Ao dar a pancada no bicho com a
raquete, ele teve a sensação de ter esmagado um carrinho de brinquedo de metal. A
primeira coisa que Buck deveria fazer em seguida, se conseguisse entrar novamente na
casa, era subir naquela janela e livrar-se do bicho.
Buck colocou a raquete embaixo do braço e começou a arrastar Jonas pelos pulsos até a
casa. Quando chegou a três metros da escada, Buck constatou que pedaços de grama
haviam-se enrascado no cós da calça e no cinto de Jonas enquanto ele estava sendo
arrastado. Buck virou-o com os pés na direção da porta, encaixou seus tornozelos
embaixo dos braços e continuou a arrastá-lo. Quando chegou ao pé da escada, ele
respirou fundo, ajoelhou-se para levantar Jonas e carregou-o nas costas. Buck calculou
que o homem era quase 50 quilos mais pesado do que ele.
Ao entrar na casa, ele atirou Jonas em uma cadeira, equilibrando-se para não levar um
tombo. Outro gafanhoto entrou voando na casa antes que Buck tivesse tempo de fechar
a porta, e ele também o esmagou com a raquete. O gafanhoto arrastou-se no chão,
voou de encontro à parede e caiu, fazendo um ruído metálico enquanto rolava.
Atordoado, o bicho tentava voar novamente. Buck escolheu aquele momento para atacálo
outra vez e conseguiu abatê-lo no ar. Buck tentou pisar em cima de um deles, mas
sua couraça era dura demais para ser quebrada. Ele espancou os dois com a raquete e
arrastou-os com os pés para fora da porta, fechando-a rapidamente para que outros não
entrassem. Depois de cobrir a vidraça quebrada, ele arrastou Jonas até o quarto de
hóspedes e deitou-o na cama. Jonas balbuciava palavras incoerentes e choramingava,
arrancando os botões da camisa.
Sabendo que não havia remédio para aquela tortura e agonia, Buck deixou-o sozinho e
retornou à sala de estar no pavimento superior. Igual a uma pessoa que se sente atraída
a voltar para o local do acidente, Buck queria examinar aqueles seres mais de perto,
tendo uma barreira de vidro entre eles.
Antes de destrancar a porta do quarto, Chaim perguntou a
Buck se ele tinha certeza absoluta de não ter trazido algum gafanhoto para dentro de
casa. Chaim continuava protegido
los trajes de tratador de abelhas e segurava o taco de críquete. Depois de certificar-se de
que Jonas estava vivo, Chaim agarrou o braço de Buck e puxou-o até a janela. Os
gafanhotos irados, presos entre a vidraça e a tela de proteção, estavam bem no centro,
em condições de ser analisados. Buck sabia que todas as pessoas não-crentes que
estavam na rua haviam sofrido tanto quanto Jonas e que não levaria muito tempo para
que os gafanhotos começassem a entrar nas casas e apartamentos, um sofrimento mais
terrível ainda.
143
DEZESSETE
RAYFORD agarrou Ernie pela gola da camisa e puxou-o para perto de si, sentindo a ira
de um pai que vê alguém ameaçar sua família.
- Então, quer dizer que você é um impostor, hein, Ernie?
Em vez de lutar para se desvencilhar de Rayford, Ernie tentava segurar o boné com
as duas mãos. Rayford o soltou e levou a mão em direção ao bico do boné. Ernie
estremeceu, pensando que ia levar um soco no nariz, e desviou o rosto no momento
em que Rayford atirou seu boné para longe.
Não era de admirar que a marca de Ernie estivesse tão evidente. Ele a havia
reforçado com o mesmo material que usara na primeira vez.
- Você falsificou a marca, Ernie? Falsificou o selo de Deus? É preciso ter muita
coragem.
Ernie empalideceu e tentou afastar-se, mas Rayford agarrou-o pela nuca e passou o
polegar da outra mão na marca falsificada de Ernie. A mancha desapareceu.
Você deve ter aprendido muito bem as lições de Tsion Para fazer a réplica de uma
marca que nunca viu.
O que é aquilo? - perguntou Bo, como se estivesse paralisado de medo.
Ele falsificou a marca de...
Eu já sabia - disse Bo, com os olhos arregalados e apontando para um ponto adiante de
Rayford. – Estou falando daquilo!
Rayford olhou para o horizonte, onde uma nuvem de fumaça estava se transformando
em um bando enorme de gafanhotos. Mesmo a uma distância de centenas de metros, eles
pareciam enormes. E o ruído era ensurdecedor!
Sinto muito, cavalheiros, mas vocês vão ter um grande problema pela frente.
Por quê? - gritou Bo. - O que é isto?
Um dos últimos avisos para você. Ou outro truque dos fundamentalistas. Você decide.
Faça o que bem entender, Bo! - disse Ernie. - Vou dar o fora daqui!
Ele correu em direção à torre, e Bo também teve a mesma idéia. Ernie teve problemas
para abrir a porta, e Bo, que corria em alta velocidade, não conseguiu parar e colidiu com
ele. Os dois caíram no chão. Ernie segurou o joelho, gemendo de dor.
Levante-se e entre aí, seu maricás - disse Bo.
Maricás é você! Bo maricás!
Bo abriu a porta com força, e ela bateu na cabeça de Ernie. Ernie soltou um palavrão, deu
um rodopio e chutou a porta. Enquanto tentava entrar, Bo prendeu o dedo no vão da
porta e caiu sobre um dos joelhos, chupando o dedo machucado. Ernie deu um salto,
pulou por cima dele e entrou na torre. Rayford chegou à porta e tentou ajudar Bo a
levantar-se, mas o homem afastou-se correndo. Um bando de gafanhotos o atacou. Ele os
chutava, gritava e corria em círculos. Quando Ernie abriu a porta para ridicularizá-lo,
também foi atacado. O homem negro que viera de carro com Bo apareceu, olhando
horrorizado para os dois.
Ele balançou a cabeça lentamente e olhou para Rayford. Ambos viram seus respectivos
selos, e Rayford sabia que o do homem era verdadeiro porque os gafanhotos não o
atacaram.
Rayford ajudou-o a afastar os gafanhotos e conduziu os dois até um patamar no pé da
escada. Enquanto Ernie e Bo lutavam para respirar, Rayford aceitou o aperto de mão do
homem negro.
T. M. Delanty - ele disse. - Sou conhecido por T.
-Rayf...
Eu sei quem você é, capitão. Ken me falou sobre você.
144
- Desculpe-me a grosseria - disse Rayford -, mas ele nunca mencionou seu nome.
O mais estranho de tudo, pensava Rayford, era eles terem se conhecido no momento em
que duas vítimas sofriam a seus pés.
- Eu pedi a Ken que não mencionasse. É muito bom saber que ele era um homem de
palavra.
Rayford queria conversar com T, mas sentiu-se obrigado a fazer alguma coisa por Bo e
Ernie.
- Há algum lugar onde a gente possa colocar estes dois? T apontou para uma sala de
recepção onde havia sofás e cadeiras, mas ninguém para atender.
-Entendo que eles vão desejar morrer mas não conseguirão, não é mesmo?
Rayford fez um movimento afirmativo com a cabeça.
-Você tem estudado um bocado, não?
Estou assistindo às aulas de Tsion pela Internet, como quase todos os crentes do mundo.
Preciso ver como Tsion e os outros estão - disse Rayford, Pegando seu celular.
Chloe atendeu.
Oh, papai! Que coisa horrível! Hattie foi atacada.Rayford ouviu os gritos dela ao fundo.
O doutor tem condições de fazer alguma coisa?
Ele está tentando, mas ela não pára de amaldiçoar Deus e quer morrer. Tsion diz que isto
é apenas o começo. Ele acredita que Hattie viverá neste tormento por cinco meses. Até lá,
nós vamos ter de dar um jeito de tirá-la deste sofrimento.
Podemos orar para que ela se converta antes.
É verdade, mas Tsion acha que isso não garante um alívio imediato do sofrimento.
Aquelas palavras pareceram estranhas a Rayford. Ele teria de perguntar a Tsion mais
tarde.
O resto do pessoal está bem?
Penso que sim. Estou aguardando notícias de Buck.
Buck ficou surpreso consigo mesmo por ter coragem de olhar para aqueles bichos
repugnantes. Ajoelhado ao lado de Chaim perto da janela, a poucos centímetros dos
gafanhotos, ele viu a profecia bíblica tornar-se realidade. Não poderia haver no mundo
nada mais feio, mais repugnante do que os seres que estavam diante dele. Tsion dissera
que aquelas criaturas não faziam parte do reino animal. Eram demônios assumindo a
forma de bichos.
Enquanto analisava atentamente suas características singulares, Buck sentiu pena de
Chaim. Ambos sabiam que os trajes de tratador de abelhas não lhe serviriam como
proteção. Os bichos estavam ali para atacá-lo. Seria apenas uma questão de tempo. Eles
entrariam, de um jeito ou de outro, e não teriam piedade de Chaim.
- Oh, céus, que criaturas horripilantes! - disse Chaim.
Buck limitou-se a menear a cabeça. Contrastando com as maravilhas da criação de Deus,
era evidente que aqueles pequenos monstros vieram do abismo. Tinham asas e o corpo
semelhante a um cavalo em miniatura, armado para a guerra. Quando um deles pousou
no parapeito da janela, Buck aproximou-se para vê-lo mais de perto.
Chaim - disse Buck. Sua voz parecia distante e amedrontada. - Você tem uma lupa?
Você quer ver esses bichos mais de perto ainda? Eu mal consigo olhar para eles!
Eles se parecem com cavalos, mas não têm focinho nem boca de cavalo.
Tenho uma lupa possante em meu escritório, mas não quero sair daqui.
Buck correu até o escritório perto do quarto de Chaim e pegou a lupa. Quando ele voltou,
ouviu um grito medonho, como o urro de um animal, e sons de pancadas no chão. O grito
era de Chaim.
Um dos gafanhotos havia conseguido entrar e agarrar-se ao pulso de Chaim no espaço entre
a luva e a manga. O ancião se contorcia no chão, gemendo e gritando, ao tempo em que
batia a mão com força no piso, tentando livrar-se do bicho.
-Tire essa coisa de mim! - ele berrava. - Por favor, Cameron, por favor! Estou morrendo!
145
Buck agarrou o bicho, que parecia estar grudado no braço de Chaim. Seu corpo parecia ser
feito de amálgama de metal, com saliências pontudas, e era viscoso como o de um inseto.
Buck enfiou os dedos entre o abdome do bicho e o pulso de Chaim e puxou-o com força. O
gafanhoto se soltou e enroscou-se na mão de Buck, tentando fincar o ferrão nele e mordêlo.
Mesmo sabendo que não seria atacado pelo bicho, Buck atirou-o instintivamente contra a
parede com tanta força que ele afundou uma parte do reboque e caiu rolando no chão
fazendo um ruído metálico.
Ele está morto? - gritou Chaim. - Diga-me que ele está morto!
Não sei se somos capazes de matá-los - disse Buck -, mas eu consegui deixar dois deles
atordoados, e este aqui está imóvel.
Esmague-o - insistiu Chaim. - Bata com força nele! Use o taco!
Chaim rolou de lado contorcendo-se em convulsões. Buck gostaria de poder ajudá-lo, mas
Tsion dissera que a Bíblia não mencionava nada que pudesse aliviar o sofrimento das
vítimas dos gafanhotos.
A lupa estava no chão a mais ou menos um metro do gafanhoto imóvel. Sem tirar os
olhos do bicho, Buck segurou a lupa acima dele, aproveitando a luz que incidia
diretamente no local, vinda de uma luminária. Ele quase vomitou ao ver aquela figura
grotesca ampliada.
O gafanhoto estava deitado de lado, tentando se levantar. As quatro pernas semelhantes
às patas de cavalos sustentavam um corpo também com a aparência de cavalo. O
abdômen era dividido em duas partes. A primeira localizava-se na área do torso e consistia
de sete segmentos cobertos por uma couraça metálica que fazia ruídos durante o vôo. A
parte posterior do abdome consistia de cinco segmentos e terminava em uma cauda com
ferrão semelhante ao dos escorpiões, quase transparente. Buck conseguiu ver o líquido
venenoso se movimentando dentro da cauda.
O gafanhoto tinha os olhos abertos e parecia olhar fixamente para Buck. Mesmo que isso
fosse estranho, fazia sentido. Se aquelas criaturas fossem demônios, conforme Tsion
dissera, elas deviam estar em terrível conflito. Queriam matar os crentes, mas foram
autorizadas por Deus para atormentar somente os incrédulos. Aquilo que Satanás
pretendia usar para o mal, Deus estava usando para o bem.
Buck prendeu a respiração quando moveu a lupa na direção da cabeça do gafanhoto. Ele
nunca vira uma cabeça como aquela. O rosto assemelhava-se ao de um homem. O bicho
olhou para Buck com expressão zangada e fez uma careta exibindo uma arcada dentária
desproporcional ao seu tamanho. Eram dentes iguais aos de um leão, com longos caninos,
cujos pares superiores saíam para fora da boca. Havia ainda uma característica muito
estranha. O gafanhoto tinha cabelos longos e esvoaçantes de mulher, que apareciam por
baixo de uma espécie de capacete misturado com coroa, de cor dourada.
Apesar de não ter mais de um palmo de comprimento, aquela combinação grosseira de
inseto, artrópode e mamífero parecia ser invencível. Buck chegou a imaginar que poderia
destruí-lo com um soco forte, mas sabia que não conseguiria matá-lo nem sequer
machucá-lo. Sem poder atirar o bicho para fora da casa sem permitir a entrada de vários
outros, Buck olhou ao redor da sala e avistou um vaso pesado dentro do qual havia uma
planta grande. Chaim balbuciava palavras sem nexo, arrastando-se pelo chão.
- Cama - ele dizia. - Água.
Buck arrancou a planta do vaso com raízes e terra e colocou-a no chão. Virou o vaso de
boca para baixo e colocou-o em cima do gafanhoto, que começara a Movimentar-se
novamente. Após alguns instantes, ele ouviu o som metálico de uma batida atrás da outra
nas paredes do vaso emborcado.
O bicho tentou sair por um pequeno orifício no fundo do vaso, mas só conseguiu pôr a
cabeça para fora. Buck levou um grande susto, e suas pernas bambearam quando ele ouviu
urn grito, como se alguém estivesse pedindo socorro.
A palavra foi repetida várias vezes, mas Buck não conseguiu entendê-la.
146
- Você ouviu isto, Dr. Rosenzweig? - perguntou Buck. Deitado no chão perto da porta,
Chaim ofegava.
- Sim - ele respondeu com voz fraca, gemendo -, mas não quero ouvir! Queime esse
bicho, afogue-o, faça alguma coisa! Mas antes me ajude a ir até a cama e me dê um
pouco de água!
A criatura emitia um som de lamento que soava aos ouvidos de Buck como "Abandono!
Abandono!"
- Estas coisas falam! - disse Buck a Chaim. - Penso que é inglês!
Rosenzweig tremia como se a temperatura estivesse baixa demais.
Hebraico - ele disse. - A criatura está invocando Abadom.
Claro! - disse Buck. - Tsion nos falou sobre isto! O rei destas criaturas é o demônio do
abismo, aquele que governa os anjos das profundezas do inferno. Em grego, ele se chama
Apoliom.
Que me interessa saber o nome do monstro que está me matando? - disse Rosenzweig.
Ele esticou o braço para alcançar a maçaneta da porta, porém não conseguiu abri-la por
causa das luvas. Ele as retirou, mas não teve mais força para levantar o braço.
Buck o ergueu do chão. Enquanto ambos afastavam-se lentamente da sala, ele olhou para
trás. O gafanhoto continuava tentando sair pelo orifício do vaso e lançou-lhe um olhar com
tanto ódio e desprezo que Buck quase ficou paralisado.
-Abadom! - Os gritos do bicho ecoavam pelo corredor. Buck deu um chute na porta do
quarto e entrou amparando Chaim. Depois de despi-lo dos trajes de tratador de abelhas,
ele o ajudou a deitar-se na cama por cima das cobertas.
As convulsões recomeçaram, e Buck notou que as mãos, o pescoço e o rosto estavam
inchando.
Q-q-quero u-u-m p-p-pouco de água, p-p-por f-f-favor!
Não vai adiantar - disse Buck.
Mesmo sabendo que não adiantaria, ele foi buscar água para Chaim. Depois de saciar a
própria sede, ele encheu um copo com água e retornou ao quarto de Chaim, deixando-o
na mesinha ao lado da cama. Chaim parecia estar inconsciente. Ele estava virado de lado,
cobrindo as orelhas com um travesseiro para abafar os gritos medonhos que vinham da
sala de visitas.
- Abadom! Abadom! Abadom!
Buck pousou a mão no ombro do ancião e perguntou-lhe:
Você está me ouvindo, Chaim? Rosenzweig afastou o travesseiro da orelha.
Hein? O quê?
Não beba esta água. Ela se transformou em sangue.
Parados do lado de fora da recepção vazia na base da torre de Palwaukee, Rayford e T. M.
Delanty olhavam para Bo e Ernie, que amaldiçoavam um ao outro, contorcendo-se no chão.
- Não há nada que a gente possa fazer por eles? -perguntou T.
Rayford sacudiu a cabeça.
- Lamento muito por eles e por qualquer outra pessoa que tenha de passar por este
sofrimento. Se ao menos eles tivessem prestado atenção! A mensagem está sendo
pregada desde antes do Arrebatamento. A propósito, você conhece a história deles? Ernie
chegou a me convencer de que era crente. Eu vi o selo.
- Fiquei muito surpreso ao ver que ele foi atacado – disse T -, mas acho que tive um
pouco de culpa nisso. Ernie pareceu interessado durante alguns dias, dizendo que Ken
estava insistindo com ele para que prestasse atenção aos ensinamentos de Tsion Ben-
Judá. Ele fez tantas perguntas, principalmente a respeito do selo, que conseguiu falsificá-lo
com base no que aprendeu com Tsion e ouviu de Ken.
Rayford olhou para fora. O céu ainda estava repleto de gafanhotos, e poucos haviam se
afastado da porta.
Nunca pensei que alguém pudesse ser capaz de falsificar o selo - ele disse. - Imaginei
147
que, por ser visto apenas pelos outros crentes, ele fosse uma prova segura para
sabermos quem está do nosso lado e quem não está. O que vamos fazer de agora em
diante? Fazer o teste em qualquer pessoa que tenha o selo?
Não - respondeu T. - De jeito nenhum.
Por que não?
Você não fez o teste em mim, fez? Por que acha que o meu é verdadeiro?
Porque você não foi atacado.
Correto. Este será o nosso teste para os próximos dez meses.
De onde você tirou esses dez meses?
- Você não leu a mensagem de hoje do Dr. Ben-Judá? Rayford balançou a cabeça
negativamente.
Ele diz que os gafanhotos têm cinco meses para encontrar suas vítimas e ferroá-las e que
as vítimas sofrerão por cinco meses. Apesar de ser apenas uma conjectura, ele acha que
os gafanhotos mordem a pessoa apenas uma vez e partem para outra.
Você já deu uma olhada nestes bichos? – perguntou Rayford, analisando um que estava
do outro lado da vidraça.
Será que devo? - disse T, aproximando-se. - Eu não gostava nem de ler o que o Dr. Ben-Judá
escrevia sobre eles. Oh, rapaz, veja só! Aquele ali é tão feio que parece um monstro.
_ Ainda bem que eles estão do nosso lado.
_ Que ironia! - disse T. - Ben-Judá diz que eles são demônios.
_ Ah, sim, mas eles estão a serviço de Deus apenas por uns tempos.
Os dois empinaram a cabeça.
Que barulho é este? - perguntou Rayford. - Tsion disse que o barulho das asas deles
soariam como carros e muitos cavalos correndo para a batalha, mas estou ouvindo uma
outra coisa.
Será que estão recitando uma ladainha?
Eles abriram uma fresta na porta, e um gafanhoto tentou passar por ela. Rayford prendeuo
entre a porta e o batente, e o bicho se contorceu e tentou escapar. Rayford abriu um
pouco mais a porta, e ele voou para fora.
- É isso mesmo! - disse Rayford. - Eles estão recitando uma ladainha.
Os dois homens ficaram em silêncio. A nuvem de gafanhotos, voando em busca de mais
vítimas, gritava em uníssono: "Apoliom, Apoliom, Apoliom!"
- Por que Deus está fazendo isto comigo? - choramingava Chaim. - O que eu fiz para Ele?
Você me conhece, Cameron! Não sou um homem mau.
- Não foi Ele que fez, Dr. Rosenzweig. Foi você que causou todo este mal a si mesmo.
- O que fiz de tão errado? Qual foi o meu pecado?
- Orgulho, por exemplo - disse Buck, pegando uma cadeira Para sentar-se. Ele sabia que
não podia fazer nada por seu amigo, a não ser ficar a seu lado, mas precisava dizer-lhe
algumas verdades.
Orgulho? Por acaso, sou orgulhoso?
Talvez não intencionalmente, doutor, mas você não levou em consideração nada do que
Tsion lhe disse a respeito de como aproximar-se de Deus. Você confiou em seu poder de
sedução, em seu valor, no fato de ser uma boa pessoa. Você teve todas as provas de que
Jesus é o Messias, mas preferiu prender-se à sua escolaridade, à sua confiança apenas
naquilo que vê, ouve e sente. Quantas vezes você ouviu Tsion citar Tito 3.5 e Efésios 2.8-
9? Mesmo assim você...
Chaim gritou em meio ao sofrimento:
- Cite esses textos para mim novamente, Cameron. Por favor.
- "Não por obras de justiça praticadas por nós, mas segundo sua misericórdia, ele nos
salvou... Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de
Deus; não de obras, para que ninguém se glorie."
Chaim assentiu com a cabeça, desolado.
148
Cameron, estou sofrendo demais!
Sinto muito ter de dizer-lhe, mas seu sofrimento vai aumentar. A Bíblia diz que a pessoa
vai querer morrer mas não conseguirá suicidar-se.
Chaim virava de um lado para o outro, gemendo de angústia.
Será que Deus me aceitaria se eu me aproximasse dele só para aliviar meu sofrimento?
Deus conhece tudo, doutor. Até seu coração. Se você soubesse que seu sofrimento seria
cada vez maior durante cinco meses, mesmo depois de ter tomado uma decisão,
continuaria querendo aproximar-se dele?
Eu não sei! - ele disse. - Que Deus me perdoe, mas não sei!
Buck ligou o rádio e encontrou uma emissora pirata que, naquele momento, levava ao ar a
pregação de Eli e Moisés diretamente do Muro das Lamentações. Eli estava proferindo uma
dura mensagem.
"Estais irados com Deus por causa da terrível praga que se abateu sobre vós! Apesar de
serdes os últimos a sofrer, não sois a primeira geração que forçou a mão amorosa de
Deus a agir com disciplina.”
"Dai ouvidos a estas palavras do Senhor Deus de Israel: Retive de vós a chuva, três
meses ainda antes da ceifa; e fiz chover sobre uma cidade, e sobre a outra não; um
campo teve chuva, mas o outro, que ficou sem chuva, se secou.”
"Andaram duas ou três cidades, indo a outra cidade, para beberem água, mas não se
saciaram: contudo não vos convertestes a mim...”
"Feri-vos com o crestamento e a ferrugem; a multidão das vossas hortas... devorou-a o
gafanhoto: contudo não vos convertestes a mim... Enviei a peste contra vós outros à
maneira do Egito; os vossos jovens matei-os à espada... contudo não vos convertestes a
mim... Subverti alguns dentre vós, como Deus subverteu a Sodoma e Gomorra, e vós
fostes como um tição arrebatado da fogueira: contudo não vos convertestes a mim...
"Portanto, assim te farei, ó Israel! E porque isso te farei, prepara-te, ó Israel, para te
encontrares com o teu Deus. Porque é ele quem forma os montes, e cria o vento, e declara
ao homem qual é o seu pensamento; e faz da manhã trevas, e pisa os altos da terra: o
Senhor, Deus dos Exércitos, é o seu nome...
Pois assim diz o Senhor à casa de Israel: Buscai-me, e vivei... Vós que converteis o juízo
em afronta, e deitais por terra a justiça, procurai o que faz o Sete-estrela, e o Órion, e
torna densa treva em manhã, e muda o dia em noite; o que chama as águas do mar, e
as derrama sobre a terra: o Senhor é o seu nome...
"Portanto, o que for prudente guardará então silêncio, porque é tempo mau. Buscai o
bem e não o mal, para que vivais: e assim o Senhor, o Deus dos Exércitos, estará
convosco, como dizeis. Aborrecei o mal e amai o bem, e estabelecei na porta o juízo:
talvez o Senhor, o Deus dos Exércitos, se compadeça do restante de José...
"E, ainda que me ofereçais holocaustos e vossas ofertas de manjares, não me agradarei
deles, nem atentarei para as ofertas pacíficas de vossos animais cevados. Afasta de mim
o estrépito dos teus cânticos; porque não ouvirei as melodias das tuas liras.”
"Antes corra o juízo como as águas, e a justiça como ribeiro perene."
Que maravilha! - disse Buck.
Por favor, Cameron! - exclamou Chaim. - Desligue esse rádio! Eu não agüento mais.
Buck permaneceu mais duas horas ao lado de Chaim, sem poder aliviar seu sofrimento. O
ancião se debatia, transpirava e ofegava. Quando, finalmente, seu sofrimento foi aliviado
por alguns instantes, ele disse:
- Você tem certeza de que esta angústia vai piorar cada vez mais até o ponto de eu querer
dar um fim à minha vida?
Buck assentiu com a cabeça.
Como você sabe? - perguntou Chaim.
Eu creio na Bíblia.
- E a Bíblia diz isto? Nestas mesmas palavras? Buck havia memorizado o texto.
- "Naqueles dias os homens buscarão a morte e não a acharão; também terão ardente
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desejo de morrer, mas a morte fugirá deles."
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DEZOITO
DURANTE os cinco meses seguintes, os gafanhotos demoníacos atacaram todas as pessoas
que não tinham o selo de Deus na testa. E, nos cinco meses subseqüentes, aqueles que
foram últimos a receber as ferroadas e mordidas continuavam a sofrer.
A situação mais dramática de um sofrimento interminável foi vivida por Hattie na casa
secreta do Comando Tribulação em Monte Prospect, Illinois. Seu tormento era tão grande
que todos - Rayford, Tsion, Chloe e Floyd - imploravam para que ela entregasse sua vida a
Cristo. Apesar de seus gritos angustiantes a qualquer hora do dia ou da noite, ela teimava
em dizer que estava recebendo o castigo que merecia.
A situação tornou-se tão estressante para o Comando Tribulação que Rayford tomou a
decisão de transferi-la para o Porão onde Ken morou por alguns tempos. À medida que as
semanas passavam, ela ia definhando a olhos vistos. Todas as vezes que descia até o
porão para vê-la, Rayford sentia que estava visitando um esqueleto vivo. O quadro era
assustador.
O Dr. Charles tentou cuidar dos sintomas dela, mas constatou rapidamente que seria
inútil. O restante do grupo se revezava levando-lhe um pouco de alimento, que
raramente era tocado. Hattie comia muito menos do que seria necessário para manter-se
viva, mas, de acordo com a Bíblia, ela não morreria por causa desse sofrimento.
Rayford decidiu visitá-la acompanhado de outro membro do grupo, e, mesmo assim, ele
não conseguia dormir bem naquela noite. A aparência de Hattie era cadavérica. Seus
olhos estavam afundados no rosto, e seus lábios finos mal cobriam os dentes, que
pareciam grandes demais para sua boca.
Às vezes, ela não tinha forças para falar. Apenas se comunicava por meio de grunhidos e
gestos até chegar o dia em que se recusou a virar-se para ver quem estava descendo a
escada.
Finalmente Hattie foi forçada a falar quando Chloe conseguiu localizar sua irmã Nancy,
que trabalhava em uma clínica de aborto no oeste do país. Todos os outros membros da
família de Hattie haviam morrido antes da praga dos gafanhotos. Ela conversou com a
irmã pela primeira vez depois de muitos meses. Nancy descobrira uma forma de não ser
atacada pelos gafanhotos durante um ou dois meses, mas agora também se tornara uma
das vítimas.
- Nancy, você precisa acreditar em Jesus - disse Hattie, com voz enrolada, como se sua
boca estivesse cheia de feridas. - É a única solução. Ele a ama. Faça isto.
Floyd ouvira à distância o final da conversa de Hattie e pediu a Rayford e Tsion que o
ajudassem a convencê-la. Ela, porém, reagiu com agressividade.
Você deixou claro que conhece a verdade - disse Tsion. - E a verdade a libertará.
Você não vê que não quero me libertar? Só quero viver o tempo suficiente para matar
Nicolae, e vou conseguir. Depois, não vou me importar com o que venha a acontecer
comigo.
Mas nós nos importamos - disse Rayford.
O problema é de vocês - ela retrucou, virando-se para o outro lado.
Chloe, que estava chegando ao fim da gravidez, não podia mais descer e subir a escada.
Ela contou a Rayford que passara a orar o tempo todo para que Buck conseguisse voltar
para casa antes que o bebê nascesse.
Tsion estava atarefadíssimo passando adiante relatos milagrosos das 144.000
testemunhas que se dispuseram a trabalhar como missionários em outros países, além
dos seus. Ele recebia um grande número de histórias de grupos tribais localizados em
regiões longínquas que entendiam as mensagens na própria língua e se tornaram santos
da tribulação.
151
Tsion escrevia diariamente a quase um bilhão de visitantes do website que aquele seria o
último período do final dos tempos no qual os crentes teriam um pouco de liberdade.
"É chegada a hora, meus amados irmãos e irmãs", ele escreveu certo dia. "Sabemos que
todas as pessoas vulneráveis aos ataques dos gafanhotos permanecerão dentro de casa;
só sairão se estiverem usando equipamentos de proteção. Esta é a nossa oportunidade de
desenvolvermos mecanismos que nos permitam sobreviver quando o sistema mundial
exigir que todos estampem a marca criada por eles. Ninguém terá permissão para
comprar e vender sem a tal marca. Trata-se de uma marca que, uma vez estampada,
Jamais poderá ser eliminada - da mesma forma que o selo na testa nos deu a garantia da
salvação eterna.”
Peço a todos que, ao presenciarem o intenso sofrimento das ótimas dos gafanhotos, não
considerem esse julgamento como um capricho ou maldade de Deus. O julgamento faz
parte do propósito maior que Ele tem de atrair as pessoas para si a fim de demonstrar seu
amor. A Bíblia nos ensina que Deus é perdoador, clemente e misericordioso, tardio em irarse,
e grande em bondade. Como deve ser doloroso para Deus ter de lançar mão desses
recursos para alcançar quem Ele ama!
"Estamos também tristes ao ver que, mesmo aqueles que aceitaram Cristo após a
chegada deste último julgamento, ainda vão sofrer por cinco meses, conforme está
escrito na Bíblia. Contudo, creio que fomos chamados a considerar este sofrimento como
um fato de que o pecado e a rebelião têm suas conseqüências. Permanecerão cicatrizes.
Se a vítima aceitar Cristo, Deus a perdoará, e ela será salva. Mas os efeitos do pecado
permanecerão.”
"Oh, meus queridos, meu coração se comove ao saber que agora existem mais seguidores
de Cristo do que na ocasião do Arrebatamento. Até mesmo países onde o cristianismo não
teve grande impacto no passado estão vendo crescer o número de pessoas buscando a
salvação.”
"Evidentemente, nós também estamos vendo que o mal continua em ascensão. A Bíblia
nos diz que, aqueles que permanecerem rebeldes após esta terrível praga, amarão mais a
si mesmos e a seus pecados do que a Deus. Por mais que o sistema mundial tente
minimizar, a nossa sociedade tem presenciado um crescimento catastrófico de consumo
de drogas, imoralidade sexual, assassinatos, roubos, adoração satânica e idolatria.”
"Não desanimem mesmo diante do caos e das pragas, meus amados. A Bíblia nos diz que
o rei dos demônios, o anjo do abismo, está fazendo jus a seu nome - Abadom em
hebraico e Apoliom em grego, que significa Destruidor - por liderar os gafanhotos que
entraram em ação. Nós, porém, que fomos selados pelo Senhor Deus, não temos nada a
temer, porque está escrito: 'Aquele que está em vós é maior do que aquele que está no
mundo... Nós somos de Deus. Aquele que conhece a Deus nos ouve; aquele que não é da
parte de Deus não nos ouve. Nisto reconhecemos o espírito da verdade e o espírito do
erro.”
"Testem sempre as minhas palavras, confrontando-as com a Bíblia. Leiam-na diariamente.
Peço aos novos crentes - e a todos os que lêem minhas mensagens, porque nenhum de
nós é crente antigo, não é mesmo? - que façam da leitura e do estudo da Bíblia uma
rotina diária. Quando vemos estas criaturas horripilantes que invadiram a terra, torna-se
óbvio para nós que também temos o dever de partir para a guerra.”
"Finalmente, meus irmãos, faço minhas as palavras do apóstolo Paulo: '...sede fortalecidos
no Senhor e na força do seu poder. Revesti-vos de toda a armadura de Deus, para
poderdes ficar firmes contra as ciladas do diabo; porque a nossa luta não é contra o
sangue e a carne, e, sim, contra os principados e potestades, contra os dominadores
deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais do mal, nas regiões celestes.
"'Portanto, tomai toda a armadura de Deus, para que possais resistir no dia mau, e,
depois de terdes vencido tudo, permanecer inabaláveis. Estai, pois, firmes, cingindo-vos
com a verdade, e vestindo-vos da couraça da justiça. Calçai os pés com a preparação do
evangelho da paz; embraçando sempre o escudo da fé, com o qual podereis apagar todos
152
os dardos inflamados do maligno.”
"'Tomai também o capacete da salvação e a espada do Espírito, que é a palavra de Deus;
com toda oração e súplica, orando em todo tempo no Espírito, e para isto vigiando com
toda perseverança e súplica por todos os santos, e também Por mim; para que me seja
dada, no abrir de minha boca, a palavra, para com intrepidez fazer conhecido o mistério
do evangelho.”
"Aguardando ansiosamente nosso próximo encontro por meio deste milagre da tecnologia
que o Senhor usou para edificar uma igreja poderosa, mesmo diante de tantas condições
desfavoráveis, despeço-me como servo de todos vocês e dele. Tsion Ben-Judá."
Buck teve a certeza de que Jacov, Hannelore e Stefan haviam fortalecido sua fé no Senhor
no momento em que eles manifestaram o desejo de mudar-se para a propriedade de
Rosenzweig a fim de cuidar de Chaim e Jonas durante vários meses. Eles levaram consigo
a mãe de Hannelore, que aceitara Cristo no primeiro dia do ataque dos gafanhotos.
Apesar do sofrimento, ela lia e estudava a Bíblia, orava e insistia com Chaim e Jonas para
que eles também aceitassem Cristo. Jonas aceitou, mas Chaim continuou irredutível.
Diante da impossibilidade de encontrar um vôo comercial com tripulação completa, Buck
começou a procurar freneticamente entre os crentes alguém que pudesse levá-lo de avião
aos Estados Unidos para o nascimento de seu filho. No auge do desespero, ele fez uma
ligação para Mac na Nova Babilônia, mas não conseguiu completá-la. Resolveu, então,
enviar-lhe um e-mail em código. Uma hora depois, recebeu uma longa resposta.
Continuo aguardando o momento de conhecê-lo, Williams. Seu sogro me contou tudo
sobre você, mas, não se preocupe, não acreditei em uma só palavra.
O que você está achando deste sistema de e-mail que David desenvolveu para mim? Ele o
cercou de todas as proteções e garantias imagináveis. Se alguém se aproximasse de mim
neste momento, não seria capaz de ler o que acabei de escrever.
Estou entendendo que você precisa encontrar um vôo para retornar aos Estados Unidos.
Tente Abdullah Smith, na Jordânia. O nome parece estranho, mas ele tem motivos para
ser chamado desta maneira. E ele é crente. Se você mencionar meu nome, ele cobrará o
dobro (é brincadeira). Ele vai fazer o que puder para ajudá-lo.
Vou enviar uma cópia desta mensagem para seu pessoal. Assim eles saberão o que está
se passando. David Hassid e eu tivemos de simular ferroadas de gafanhotos no corpo para
que ninguém desconfiasse de nós. Descobrimos vários outros crentes ocultos por aqui.
Carpathia e Leon estão isolados em um abrigo radiativo que tem servido para manter os
gafanhotos afastados. Porém, quase todos aqui, inclusive os dez reis e até mesmo Peter
Segundo, foram atacados e estão sofrendo muito. Quando você vir Carpathia aparecer nos
telejornais com um gafanhoto pousado em seu ombro, como se fosse um animal de
estimação, e dizendo ao mundo inteiro que as histórias sobre ferroadas e mordidas são
exageradas, não acredite. Trata-se de um truque fotográfico. É claro que os gafanhotos
verdadeiros não morderiam Nicolae nem Leon por motivos óbvios.
Nós, os crentes daqui, conseguimos fingir que estamos nos recuperando mais rápido, para
não termos de ficar na enfermaria o dia inteiro ouvindo a agonia dos outros. Carpathia me
encarregou de algumas missões de caridade, Para levar ajuda a alguns dos reis que estão
em agonia. Mas ele não sabe que David conseguiu passar a mão ern algumas remessas
clandestinas de literatura - cópias os estudos de Tsion em vários idiomas - e lotou o
compartimento de cargas do Condor 216 com esse material. Quando pouso em qualquer
lugar do mundo, os crentes descarregam a literatura e fazem a distribuição.
Leon ficou furioso quando soube que toda essa literatura cristã está se espalhando pelo
mundo. Peter Segundo também. Espero que um dia eles saibam como ela foi
transportada. Mas por enquanto não. Ore por nós. Somos os olhos e os ouvidos dos
crentes aqui na Nova Babilônia e procuramos fazer o possível, mas estamos correndo
riscos. Os subversivos são punidos com a morte. Dois assessores de Peter Mathews foram
executados por terem mencionado ao pessoal da Comunidade Global algo que Peter
153
considerava assunto particular. Carpathia ficou sabendo das execuções e enviou-lhe uma
nota de congratulações. É claro que Peter está no topo da lista das próximas vítimas de
Nicolae, ou na de Leon, com certeza. Leon acredita que não há motivos para existir outra
religião, porque ele tem Sua Excelência o potentado para adorar.
Estou dizendo isto com ironia, mas Leon está seguindo à risca essa sua idolatria. David
estava na sala quando Leon sugeriu que fosse aprovada uma lei obrigando todas as
pessoas a se curvarem na presença de Nicolae. Se essa lei vingar, será o meu fim.
Os crentes daqui não podem conversar entre si para não levantar suspeitas, mas damos
força uns aos outros de maneiras sutis. Felizmente, David foi promovido a uma posição
que exige que ele trabalhe bem próximo ao piloto sênior (este seu criado). Daqui em
diante, vamos poder conversar bastante. Adoramos a idéia do falecido Ken Ritz de
organizar uma cooperativa de mercadorias para os crentes, e achamos que sua esposa
seria uma excelente diretora-executiva. Você deve saber quem será o concorrente direto
dela. A partir de agora, Carpathia passou a tomar conta pessoalmente (é verdade) do
comércio global. É o que estão dizendo por aqui. Ele quer ter aqueles dez reis no bolso,
não é verdade?
Sabe de uma coisa, Williams? Alguns dias atrás, antes do ataque dos gafanhotos, ouvi
uma conversa no Condor que provou um dos argumentos do Dr. Ben-Judá. Você se lembra
que ele escreveu que este período, além de ser uma guerra entre o bem e o mal, seria
também uma guerra entre o mal e o mal? Acho que ele quis dizer que devíamos amar uns
aos outros para que a crise não provocasse disputas em nosso meio entre o bem e o bem.
Mathews, o Santo Nick e Leon, o bajulador de Sua Excelência, estão a bordo do Condor
216. (Finalmente consegui descobrir por que Carpathia tem obsessão por este número.
Bem, na verdade foi David que me contou. Ele achou que todos nós sabíamos. Deixo a
charada para você decifrar esta semana.)
Voltando ao assunto do avião, o velho Mathews está pressionando Carpathia, exigindo isto
e mais aquilo e pedindo maior participação nos impostos por tudo o que a maravilhosa Fé
Mundial Enigma Babilônia vai fazer pela Comunidade Global. Nicolae está concordando com
ele só para deixá-lo mais calminho. Quando Mathews foi ao banheiro, Nicolae disse a
Fortunato: "Se você não cuidar dele, cuidarei disso sozinho."
Leon respondeu com toda a presteza: "Ele já deixou de ser útil, e estou tratando do
assunto."
Bem, eu não queria me alongar tanto, mas, com toda esta aflição por aqui, tenho ficado
muito tempo sozinho.
Desejo que tudo corra bem com o bebê. Vamos orar para que você volte para casa a
tempo e que a mamãe possa voltar logo ao trabalho e ensinar você a ser papai. Envie
minhas saudações a todos. Em nome de Cristo, Mac M.
Sofrendo a perda de Ken Ritz e sentindo falta de conversar com Mac McCullum, Rayford
resolveu dedicar seu tempo livre para conhecer melhor T. M. Delanty. O episódio do selo
falsificado na testa de Ernie não lhe saía da mente. Enquanto Ernie e o irreprimível Bo
estavam internados no Arthur Young Memorial Hospital, em Palatine, Rayford fez várias
viagens ao aeroporto de Palwaukee para vasculhar os pertences de Ken. Vez por outra,
encontrava-se com T.
Eles contaram suas histórias um ao outro, e Rayford teve a certeza de que já o
considerava um amigo quando teve coragem de perguntar:
- O que significam as iniciais T. M.? T lançou-lhe um olhar de censura.
Se eu quisesse que todos soubessem, não usaria o recurso das iniciais.
Desculpe-me. Eu só queria saber por que você gosta de ser chamado de T.
Meu primeiro nome é horroroso, o que mais posso lhe dizer? Minha mãe era afo-mericana,
e meu pai, scocês-irlandês. Ela me deu esse nome por causa de um professor.
Tyrola talvez fosse um sobrenome razoável, mas, se alguém o chamasse assim, o que você
faria?
154
Iria embora da cidade, T. Peço desculpa por ter perguntado. E o segundo nome? Não seria
uma opção?
Mark.
Rayford encolheu os ombros.
- O que há de errado com esse nome?
- Nada, só que eu não tenho cara de Mark. Sou forçado a admitir que tenho cara de T.
Tyrola Mark Delanty foi o único membro de sua pequenina igreja a ser deixado para trás no
Arrebatamento.
- Pensei em me matar - ele disse. - Sofri muito até o dia em que me acertei com Deus. Eu
era casado havia 14 anos. Perdi minha esposa, seis filhos pequenos, todos os parentes,
cmigos, o pessoal da igreja, tudo.
Rayford perguntou-lhe com quem ele convivia agora.
- Há mais ou menos 30 crentes no bairro onde moro. O número está aumentando. Bairro
não é a palavra certa, é claro. Estamos todos morando em casas que já não valem nada.
Como não chegaram a desmoronar completamente, há algum espaço para a gente viver.
Após mais alguns encontros, Rayford e T finalmente resolveram abordar os assuntos
relativos a Ken, Palwaukee, Bo e Ernie. Rayford ficou sabendo que T era o dono principal do
aeroporto que pertencera ao condado. Ele o adquiriu dois anos antes do Arrebatamento.
- Não ganhei muito dinheiro com o aeroporto. A margem de lucro era pequena, mas
estava melhorando. Ken e vários outros pilotos faziam vôos regulares partindo daqui.
Conforme você sabe, Ken morou aqui até o dia do terremoto. Dali em diante, ele passou a
morar com vocês.
Bo era filho único de um investidor abastado que possuía 5% do negócio. O pai de Bo
morreu em um acidente de carro quando o Arrebatamento levou os motoristas dos
veículos que estavam na frente e atrás dele.
- Logo em seguida ao caos, Bo apareceu aqui como o único herdeiro, querendo mandar em
tudo. Eu contornei a situação ate o dia em que ele trouxe Ernie para cá. A princípio, era
contra. Ernie era um rapaz de 19 anos que abandonou a escola quando tinha 14, mas
tinha a fama de ser bom mecânico. Bem, o resto você já sabe. E ele me ajudou muito
aqui. Eu só atinei que Ernie e Bo tinham um esquema montado no dia do ataque dos
gafanhotos.
- Por que eles queriam que Ernie se infiltrasse em nosso grupo?
- Corria o boato que Ken tinha muito dinheiro. Acho que Ernie estava tentando ganhar a
simpatia dele. Ernie e Bo fizeram alguma malandragem para tentar tirar dinheiro dele.
Quando Ken morreu, eles ficaram eufóricos. E você viu o resultado de todo aquele esforço.
Rayford analisava T, imaginando se devia perguntar o que ele achava dos boatos sobre o
dinheiro de Ken, mas resolveu adiar a pergunta. Nesse ínterim, T matou a curiosidade de
Rayford.
Os boatos eram verdadeiros, você sabe.
A bem da verdade, sei - disse Rayford. - E você? Como ficou sabendo?
Ken queria comprar o aeroporto, e eu queria vendê-lo. Sempre tive vontade de vendê-lo,
mas, quando ele demonstrou interesse, eu tinha um motivo mais forte. A reconstrução do
aeroporto após o terremoto deixou-me de bolsos vazios, e eu estava precisando de
dinheiro. Queria destinar uma verba à nossa pequenina congregação para ver se
poderíamos ser úteis a Deus nos poucos anos que ainda nos restavam. Perguntei a Ken
se ele tinha todo o dinheiro para comprar o aeroporto, e ele me assegurou que sim.
- Ele chegou a dizer onde o guardava? T sorriu.
Nós dois estamos apalpando o terreno, não é verdade? Continuamos a brincar de gato e
rato.
Era só uma curiosidade - disse Rayford.
Entendo. Acho que é melhor tratarmos logo do assunto.
O que você acha que deve ser feito com os bens de Ken, T?
_ Devem ser usados para Deus. Até o último centavo. Era o que ele queria.
155
Concordo. Será que o dinheiro pertence a alguém mais? Legalmente, quero dizer.
Não.
E você tem acesso a ele?
Você está querendo me ajudar a cavar, Rayford?
Não sei. O que você tem em mente?
Se Ken não lhe disse que você poderia ficar com as coisas dele, creio que elas me
pertencem. Foram deixadas em minha propriedade. Não sei onde, e nem sei qual é o
valor. Mas quero pegar tudo antes que Bo e Ernie se recuperem.
Sua pequenina congregação vai precisar de todo este dinheiro?
Conforme eu lhe disse, queremos fazer alguma coisa significativa. Não vamos construir um
templo nem reformar nossas casas.
Você tem idéia de quanto dinheiro está em jogo? - perguntou Rayford.
Talvez mais de um milhão de dólares.
E se eu lhe disser que essa quantia deve ser cinco vezes maior?
Você está negociando, Rayford? Quer uma parte? Acha que tem direito?
Rayford sacudiu a cabeça.
Eu gostaria de poder comprar os aviões dele. Não estou reivindicando dinheiro ou qualquer
outra coisa.
Preste atenção no que vou lhe dizer, Rayford. Se houver metade do dinheiro que você
mencionou, eu lhe darei os aviões de presente.
Quanto você quer pelo Gulfstreaml
Repito, se houver tanto dinheiro como você diz, poderá ficar com ele também.
E vou poder fazer decolagens deste aeroporto?
Se você quiser, poderá guardá-los aqui e viver aqui ao lado deles.
Você autorizaria um jordaniano a pousar aqui nestas 24 horas para trazer meu genro, sem
fazer nenhuma pergunta?
Claro, irmão.
Rayford contou-lhe sobre o plano da criação de uma cooperativa de mercadorias entre os
crentes, coordenada diretamente da casa secreta do Comando Tribulação.
Você teria algum interesse em trabalhar conosco, fazendo entregas, cuidando de vôos
fretados, este tipo de coisa?
Agora comecei a ficar empolgado - disse T. - Acho que meu pequeno grupo de crentes
também ficará.
Buck encontrou-se com Abdullah Smith em um café ao ar livre dirigido por uma moça que
estava perto de recuperar-se do ataque dos gafanhotos. Buck nunca conhecera uma
pessoa tão calada e discreta. Mas ele estampava o selo na testa, e seu aspecto era
saudável. Apesar de ser um homem de poucas palavras, Abdullah abraçou Buck com
força.
- O nome McCullum basta para mim. Somos irmãos, nós três. Eu vôo. Você paga. Só isso.
E a conversa terminou ali. Pelo menos para Abdullah. Buck lhe contou que precisava fazer
uma visita a um amigo antes de partir e que o encontraria no aeroporto de Amã às 18
horas daquele dia.
- Eu gostaria de fazer uma escala no norte da Grécia e depois voar direto para a região de
Chicago.
Abdullah assentiu com a cabeça.
As ruas de Jerusalém estavam quase desertas. Buck ainda não se habituara a ouvir o
choro e os gemidos que vinham de cada canto da cidade. Parecia que havia muitas
pessoas sofrendo em uma mesma casa. Ele ficou sabendo que milhares de pessoas em
Jerusalém cortaram os pulsos, tentaram enforcar-se, tomaram veneno, colocaram a
cabeça dentro de fornos a gás, vestiram a cabeça com sacos plásticos, fecharam-se
dentro de garagens com o motor do carro funcionando, atiraram-se na frente de trens e
saltaram de prédios. Todos se machucaram gravemente, e alguns ficaram com a
156
aparência horrível. Mas ninguém morreu. As tentativas de suicídio só serviram para
aumentar sua aflição.
Ao chegar à casa de Rosenzweig, Buck notou que a situação estava mais calma. Jacov lhe
contou que Chaim não estava comendo nada - nada mesmo - havia mais de uma
semana. Ele queria morrer de fome ou chegar ao ponto de uma desidratação fatal. Seu
aspecto era medonho - magro, debilitado e abatido.
Jonas e a sogra de Jacov demonstravam ser mais corajosos. Apesar do visível sofrimento,
eles faziam o possível para sobreviver. Dormiam, comiam, levantavam-se da cama e
caminhavam. Também tomavam medicamentos, embora não fizessem efeito. O principal
era tentar alguma coisa. Ambos aguardavam ansiosos o dia em que ficariam livres dos
efeitos das ferroadas dos gafanhotos. Jonas, principalmente, parecia empolgado como
uma criança para estudar a Bíblia com Jacov e ler as mensagens diárias de Tsion Ben-Judá
pela Internet.
Chaim só queria morrer. Sentado ao lado dele, Buck ouvia os gritos de agonia do ancião.
Tenho dores em todas as partes do corpo, Cameron. Se você se importasse um pouco
comigo, me livraria deste sofrimento. Tenha piedade. Faça a coisa certa. Deus o perdoará.
Você está me pedindo o impossível. De qualquer forma, eu não faria isso. Eu não me
perdoaria se não lhe desse a oportunidade de converter-se.
Deixe-me morrer!
Chaim, eu não entendo você. Não entendo mesmo. Você conhece a verdade. Seu
sofrimento vai terminar dentro de algumas semanas e...
Eu não vou viver por tanto tempo!
... você vai ter um propósito de vida.
Chaim silenciou e ficou imóvel por um bom tempo, como se estivesse protegido sob o
manto da paz. Mas não estava.
Para lhe dizer a verdade, meu jovem, eu também não me entendo. Confesso que quero
me aproximar de Cristo. Mas há um enorme conflito dentro de mim, e eu não posso.
Você pode!
Não posso!
O problema não é poder, não é mesmo, doutor? Chaim sacudiu a cabeça desoladamente.
Não vou conseguir.
E você continua negando minha acusação de que se afasta de Deus por causa de seu
orgulho.
Agora estou admitindo! É orgulho! Mas ele existe e é verdadeiro. Um homem não pode
transformar-se naquilo que não é.
É aí que você se engana, Chaim! Paulo, que foi um judeu ortodoxo, escreveu: "Se alguém
está em Cristo, é nova criatura: as coisas antigas já passaram; eis que se fizeram novas."
Chaim se contorceu de dor durante alguns minutos, mas não retrucou. Para Buck, aquilo
já era algum progresso.
Chaim? - ele o chamou suavemente.
Deixe-me em paz, Cameron!
Continuarei orando por você.
Será perda de tempo.
Jamais. Eu gosto muito de você, Chaim. Todos nós gostamos. E Deus o ama.
Se Deus me amasse, me deixaria morrer.
Não enquanto você não pertencer a Ele.
Isso nunca vai acontecer.
Suas últimas palavras vão ficar famosas. Adeus, meu amigo.
Espero vê-lo novamente.
157
DEZENOVE
RAYFORD amava muito sua filha. Sempre a amou. Não porque ela era agora o único
membro que restara de sua família. Ele também amara Raymie e ainda sofria a falta dele.
Perder duas esposas em menos de três anos havia sido um golpe muito grande, e ele sabia
que seu sofrimento só terminaria quando Jesus voltasse.
Seu relacionamento com Chloe sempre foi especial. Era verdade que eles tiveram
momentos de desavença quando a filha se afastou da família para tornar-se uma mulher
independente. Chloe era muito parecida com ele nas atitudes.
No início, foi difícil para ela acreditar que Deus estivesse por trás dos desaparecimentos.
Lisonjeado pelo fato de Chloe ser parecida com ele e, ao mesmo tempo, temeroso de que
sua natureza prática pudesse afastá-la de Cristo, Rayford havia sofrido muito por causa
dela. O dia mais feliz de sua vida - exceto quando ele próprio se converteu - foi quando
Chloe decidiu aceitar Cristo.
Rayford ficou emocionado quando ela e Buck se casaram, apesar de haver uma diferença
de dez anos entre os dois. Ficou sem fala no dia em que Chloe lhe contou que estava
grávida e que ele seria avô, sabendo que lhe restavam apenas pouco menos de cinco
anos aqui na terra.
Ao ver Chloe em estado avançado de gravidez, ele voltou no tempo. Lembrou-se de
Irene, que, apesar de ter atravessado períodos difíceis na gravidez, parecia cada vez mais
radiante à medida que seu corpo se avolumava. Ele lera todos os livros sobre o assunto,
sabia o que poderia acontecer. Irene não acreditava no marido quando ele dizia que ela
ficava mais linda à medida que a gravidez avançava.
Ela dizia as mesmas coisas que Chloe dizia agora - que se sentia como uma elefanta, uma
baleia. Detestava o inchaço nas articulações, a dor nas costas, a respiração curta, a
dificuldade para movimentar-se.
- Até certo ponto, estou feliz pelo fato de Buck não ter conseguido sair de Israel - disse
Chloe. - Isto é, quero que ele volte, mas ele vai ver que estou o dobro do que eu era.
Rayford aproveitou a ocasião para conversar com a filha.
Querida - ele disse -, peço que me ouça. Talvez não seja correto dizer que você está
reclamando muito. Sei que você é mais do que uma simples máquina procriadora e que
tem coisas incríveis para oferecer a este mundo. Você foi corajosa antes mesmo do
Arrebatamento, mas, desde então, tem sido um soldado valente. Você vai salvar a vida de
milhões de crentes com essa cooperativa de mercadorias. Antes, porém, você precisa me
fazer um favor. Pare de lamentar o que a gravidez está fazendo com o seu corpo.
Eu sei, papai - ela disse. - Mas é que estou tão...
Linda. Absolutamente linda.
Rayford disse aquelas palavras com tal sentimento que ela resolveu calar-se. Chloe estava
diferente, é claro. Faltando apenas algumas semanas para o parto, ela estava com o rosto
redondo e o corpo pesado. Mas, para ele, Chloe era ainda uma garotinha, curiosa e cheia
de vida.
- Estou frustrado por Buck não poder vê-la neste momento. Não me olhe assim. Falo sério.
Ele vai achar você linda e atraente, pode acreditar. Você não é a primeira futura mamãe
que ganha excesso de peso durante a gravidez. Os maridos não pensam assim. Ele vai
vê-la da mesma maneira que eu via sua mãe quando carregava você no ventre. Vai ficar
emocionado ao ver que você está carregando o filho dele no ventre. Chloe estava
gostando da conversa.
Estou preocupada com a viagem dele - ela disse. – Sei que ele vai sair de Israel às 18
horas, horário de lá, mas quem sabe por quanto tempo permanecerá na Grécia?
Não muito. Ele quer voltar logo para casa.
E, por ser um vôo fretado, acho que ele vai sair logo de lá. Eu gostaria de buscá-lo no
aeroporto.
O doutor disse que você não deve...
158
Dirigir carro, principalmente nestas estradas, eu sei. Não quero fazer isso. Mas Buck e eu
estamos afastados há muito tempo. Por mais que a gente se preocupe em trazer um filho
ao mundo neste período da História, já estamos tão ligados a este bebê que mal podemos
esperar pelo nascimento dele... ou dela.
Eu não vejo a hora de ser avô - disse Rayford. - Tenho orado por esta criança desde que
você engravidou. Só lamento uma coisa. A vida vai ser tão difícil para todos nós que não
vou ter a oportunidade de ser o vovô que gostaria.
Você será um excelente vovô. Estou feliz por você ter deixado de pilotar os aviões de
Carpathia. Eu não gostaria de estar me preocupando com você o tempo todo.
Rayford levantou-se e olhou através da janela. O sol da manhã estava quente.
Vou voltar para a guerra - ele disse.
Como assim?
Talvez a culpa seja sua. Você levou a idéia de Ken tão a sério que vou passar a trabalhar
em período integral. Vou voar tanto quanto voava no tempo em que trabalhava para a
Pan-Con.
Vai trabalhar para a cooperativa? Ele assentiu com a cabeça e disse:
Já lhe contei a respeito de T.
Hã, hã.
- Todas as decolagens serão feitas de Palwaukee. Vou voar pelo mundo inteiro. Se aqueles
pescadores do estreito de Bering forem tão bem-sucedidos como você acha, vou fazer
muitos negócios com eles até o dia do Glorioso Aparecimento.
Floyd Charles deu uma batida de leve no batente da porta.
Está na hora de fazermos um rápido exame. Você quer que seu pai espere lá fora?
Que tipo de exame? - perguntou Chloe.
Verificar as batidas cardíacas, suas e do bebê.
O papai pode ficar. Ele pode ouvir as batidas?
Claro.
Floyd tomou o pulso de Chloe e depois ouviu as batidas do coração dela pelo estetoscópio.
Em seguida, passou uma substância gelatinosa sobre o ventre volumoso de Chloe e usou
um monitor movido a bateria para ampliar o som das batidas cardíacas do feto.
Emocionado, Rayford lutava para conter as lágrimas. Chloe estava radiante.
- Acho que vai ser um garotão - disse o Dr. Charles. Assim que ele terminou os exames,
Chloe perguntou:
Continua tudo bem?
Não detectei nenhum problema importante – ele respondeu.
Rayford olhou de relance para Floyd. O médico não aparentava a calma de sempre. Nem
sequer sorriu quando brincou que Chloe teria um menino. Ela não queria saber o sexo do
bebê, e ele nunca havia feito o teste para averiguar.
- Existem problemas de menor importância, Floyd? – ela perguntou. - Você sempre diz
que está tudo ótimo.
Chloe fez a pergunta que estava na mente de Rayford, e o coração dele deu um salto
quando Floyd pegou uma cadeira para sentar-se.
- Você notou alguma coisa estranha? - perguntou Rayford.
Oh, não - lamentou Chloe. Floyd pousou a mão no ombro dela.
Chloe, preste atenção no que vou dizer.
Oh, não! - ela repetiu.
Chloe, o que foi que eu disse? Eu disse que não detectei nenhum problema importante, e é
verdade. Você acha que não fui sincero?
Então qual é o problema de menor importância?
A pulsação do bebê está um pouco lenta.
Você está brincando! - exclamou Rayford. - Se eu tivesse de adivinhar, diria que ouvi
batidas muito rápidas.
A pulsação de todos os fetos é mais rápida do que a nossa - disse Floyd. - E a redução do
159
ritmo das batidas é tão mínima que não levei em consideração no exame da semana
passada.
- Isto está acontecendo há uma semana? – perguntou Chloe.
Floyd assentiu com a cabeça.
- Estamos falando de uma fração de porcentagem em seis dias. Nem sempre isso significa
alguma coisa.
Mas e se significar alguma coisa - retrucou Chloe?
Não é bom haver um decréscimo na pulsação fetal. Como, por exemplo, 5%, e
principalmente se passar de 10%.
Por quê?
Porque isso pode causar problemas de viabilidade.
Traduza em miúdos, doutor.
Quando o bebê estiver em posição de nascer, o cordão umbilical poderá enrolar-se no
peito ou no pescoço.
Você acha que o problema é este?
Não. Estou apenas observando o ritmo das batidas cardíacas, Chloe. Só isso.
É uma possibilidade?
Qualquer coisa é uma possibilidade. É por isso que não estou mencionando tudo o que
pode dar errado.
Se não é tão importante, por que você está me contando?
Porque você me perguntou. Se o problema persistir, quero prepará-la para um tipo de
tratamento.
Mas você disse que por ora não precisamos nos preocupar com a redução nas batidas.
Certo, só vamos nos preocupar se os sintomas piorarem.
O que seria necessário fazer?
No mínimo, você teria de inalar oxigênio durante uma boa parte do dia.
- Eu preciso me levantar por alguns instantes - disse Chloe. Ela começou a se levantar, e
Rayford estendeu o braço para ajudá-la. Floyd não saiu do lugar.
Eu gostaria que você ficasse calma até que eu possa sair para buscar um tubo de oxigênio
amanhã.
Eu não posso nem me levantar?
Somente se for necessário. Se for apenas para mudar de posição, é melhor não tentar.
Tudo bem - ela disse -, meu pai e eu somos pessoas de fibra. Diga-me quais são as
piores probabilidades.
Já tratei de muitas mulheres grávidas, principalmente neste estágio da gestação, e
aprendi que não vale a pena cogitar possibilidades negativas.
Eu não faço parte dessas suas clientes grávidas, doutor. Sou Chloe, e você me conhece.
Sabe que não vou parar de atormentá-lo enquanto você não me contar tudo.
Está bem - ele disse. - Acho que o oxigênio resolverá o problema. Se não resolver, vou
ligá-la a um monitor o tempo todo para que ele nos avise caso haja alguma mudança
significativa na pulsação fetal. Em último caso, poderemos fazer parto induzido. Haveria
necessidade de uma cesariana para evitarmos um possível problema com o cordão
umbilical.
Chloe calou-se e olhou para Rayford.
Você não gostaria que o parto fosse induzido, certo? -ele perguntou a Floyd.
Claro que não. Eu sempre disse que a natureza é sábia. Que o bebê deve nascer quando
estiver pronto. Agora sei que Deus é mais sábio. Ele, porém, nos deu inteligência,
remédios milagrosos e tecnologias para agirmos quando as coisas não saem como
gostaríamos.
Chloe parecia desconfortável.
- Diga-me uma coisa, Floyd. Será que eu contribuí para esta situação? Será que fiz
alguma coisa que não deveria ter feito, ou deveria ter feito de maneira diferente?
Floyd balançou a cabeça negativamente.
160
- Não fiquei entusiasmado com sua viagem a Israel. Quando você deu aquela corrida do
helicóptero até o jato, ainda estava no início da gravidez. Mas uma ação exaustiva
naquela fase teria acarretado problemas diferentes.
Quais?
Não aconteceu nada, portanto não vou falar sobre hipóteses. Você já atravessou todas as
fases previsíveis: disse que ia dar à luz um monstro, achou que o bebê estava morto,
depois se convenceu de que ele não tinha todos os membros. Você não precisa se
preocupar com o que poderia ter causado este problema mas não causou. Quando o
futuro papai vai chegar?
A qualquer hora desta noite - ela disse. - É tudo o que sei.
Abdullah Smith ficou satisfeito ao ver que Buck retornou no horário combinado.
- Ouvi falar que você é um homem de palavra - disse Buck - e queria mostrar que eu
também sou.
Abdullah, como sempre, permaneceu calado. Ele pegou uma das sacolas de Buck e
caminhou na frente, dirigindo-se a seu avião. Buck tentava adivinhar qual seria o dele.
Abdullah passou por alguns helicópteros, e Buck sabia que nenhum deles teria condições
de cruzar o Atlântico. Abdullah também passou por um Learjet e um Hajiman novinho em
folha, uma versão menor do Concorde.
Buck parou e olhou quando Abdullah empurrou para trás a cabina de plexiglas (matéria
plástica transparente, dura e termoplástica empregada como vidro de segurança nas
indústrias da aviação aérea) de um jato que ele identificou como um caça egípcio. Esse
jato voava a quase duas mil milhas por hora e a grandes altitudes, mas possuía um
tanque de combustível pequeno.
Seu avião é este? - perguntou Buck.
Por favor, entre - disse Abdullah. - Tanque de combustível aumentado. Pequeno
compartimento de carga adaptado. Escala na Grécia, escala em Londres, escala na
Groenlândia, escala em Wheeling.
Buck assustou-se quando viu o que o esperava. Ele não poderia esticar o corpo, ler um
pouco, nem sequer cochilar.
- Passageiro entra primeiro - disse Abdullah.
Buck subiu a bordo tentando mostrar que conhecia esse tipo de aeronave por ter escrito
uma série de artigos sobre suas aventuras ao lado de pilotos de caça norte-americanos.
Isso havia ocorrido antes de Nicolae Carpathia assumir o poder e antes de tais aeronaves
serem vendidas a cidadãos comuns.
Quando Buck fez um gesto para prender seu capacete e a máscara de oxigênio, Abdullah
suspirou fundo e disse:
- Cinto.
Buck estava sentado em cima dele. Que papelão! Ele precisou dar um jeito de levantar-se
naquele local apertado enquanto Abdullah puxava o cinto debaixo dele. Depois de prender
o cinto, ele tentou colocar o capacete. Novamente o piloto precisou ajudá-lo a
desembaraçar as tiras, girar o capacete na posição correta e apertá-lo contra a cabeça de
Buck. O capacete ficou muito justo, pressionando suas têmporas e os ossos malares.
Quando ele começou a colocar o bocal para engatar o tubo de oxigênio, Abdullah lhe
disse:
Só depois. Em grande altitude.
Certo. Eu já sabia.
O banco de Abdullah era um pouco mais alto do que o de Buck e dava a impressão de
que eles estavam em um trenó. A cabeça de Abdullah estava a alguns centímetros do
nariz de Buck.
Nos Estados Unidos, o processo de tirar um caça a jato da área militar, levá-lo até a pista
de macadame, alinhá-lo e dirigi-lo para a pista de decolagem levaria meia hora. O
aeroporto de Ama parecia uma feira livre. Quem chegasse primeiro, sairia primeiro, cada
161
um por sua conta. Abdullah resmungou algumas palavras pelo rádio parecidas com jato,
vôo fretado, passageiro, carga e Grécia, enquanto taxiava o caça na direção da pista de
decolagem. Ele não aguardou instruções do controle de terra.
O aeroporto de Amã havia reaberto recentemente após ter sido reconstruído. Embora o
tráfego aéreo estivesse menor por causa da praga dos gafanhotos, havia vários vôos na
fila, prontos para decolar. Buck avistou duas aeronaves enormes nos primeiros lugares da
fila, seguidas de um jato comum, um Learjet e outro avião de porte grande. Abdullah
virou-se para Buck e apontou o mostrador do tanque de combustível, cujo ponteiro
marcava "cheio".
Buck fez um sinal de positivo com os dois polegares, como se quisesse dizer que gostou
de saber que havia bastante combustível no tanque. Abdullah entendeu que Buck queria
decolar - imediatamente. Ele taxiou o caça ao redor dos outros aviões, aproximou-se da
fila de aeronaves autorizadas a decolar, e foi passando por elas. Buck ficou sem fala. Se os
aviões tivessem buzinas, os pilotos teriam feito um barulho tremendo como fazem os
motoristas nas estradas quando alguém passa pelo acostamento.
Quando Abdullah passou pelo segundo avião da fila, o primeiro começou a rodar na pista.
Abdullah enfiou-se no espaço entre eles e passou a ser o segundo da fila. Buck esticou o
pescoço para ver se havia veículos de emergência se aproximando. A torre não emitiu
nenhum aviso. Assim que o primeiro avião da fila se distanciou na pista, Abdullah acelerou
o seu.
- Eduardo Zulu Zulu Dois Nove decolando, torre -disse ele pelo rádio.
Buck esperava ouvir alguém dizer "Aonde você pensa que vai, rapaz?", mas nada disso
aconteceu.
- Dez-quatro, Abdullah - alguém da torre disse. Não houve aquecimento de turbinas nem
excesso de aceleração. Abdullah dirigiu o caça até o final da pista, posicionou-o e acelerou
mais forte. A cabeça de Buck foi atirada para trás, e seu estômago quase grudou nas
costas. Mesmo que quisesse, ele não conseguiria movimentar o corpo para a frente.
Contrariando todas as regras da aviação internacional, Abdullah alcançou a velocidade de
decolagem depois de rodar algumas centenas de metros e já estava no ar. Ele subiu como
se fosse um foguete e passou à frente do jato que decolou antes. Para Buck, parecia que
eles estavam voando na vertical.
Suas costas grudaram no encosto, e ele só via nuvens diante de si. Alguns minutos
depois, Abdullah chegou ao ápice da subida e começou a descer na mesma velocidade.
Parecia que eles estavam em uma montanha-russa, subindo e descendo
vertiginosamente. Abdullah apertou um botão que lhe permitia conversar com Buck.
Amã para Atenas subindo e descendo - ele disse.
Nós não vamos para Atenas, você se lembra? Abdullah deu um tapa no capacete.
Problemas, certo?
Certo.
O avião começou a subir na vertical novamente. Abdullah desenrolou alguns mapas e
disse:
-Nenhum problema.
E ele estava certo. Minutos depois, o caça descia na pista do pequeno aeroporto.
- Quanto tempo com amigos? - ele perguntou, taxiando em direção às bombas de
combustível.
Rayford tranqüilizou Chloe, e ambos concordaram que foi melhor Floyd contar a verdade
do que dourar a pílula e haver problemas mais tarde. Depois de servir um copo d'água à
filha, ele subiu a escada para conversar com Tsion. O rabino cumprimentou-o
efusivamente.
- Estou quase terminando minha mensagem de hoje – ele disse. - Vou transmiti-la dentro
de uma hora ou pouco mais. Mas sempre tenho tempo para você.
Rayford lhe falou sobre o problema com o bebê.
162
Vou orar - disse Tsion. - E gostaria que você também orasse por mim.
Claro, Tsion. Algum problema específico?
Para ser sincero, sim. Estou me sentindo sozinho e oprimido, e não gosto disso.
É perfeitamente compreensível.
Eu sei. Ao mesmo tempo, tenho uma sensação de intensa alegria, semelhante àquela que
toma conta de nós quando estamos em comunhão com o Senhor. É claro que já contei
meus problemas a Ele, mas gostaria muito que alguém mais orasse por mim.
Esteja certo de que todos nós estamos orando por você, Tsion.
Sou um homem muito abençoado por ter tido uma família tão carinhosa quanto a que eu
perdi. Todos nós temos sofrido. Às vezes, fico surpreso com tudo o que está acontecendo.
Eu sabia que essa praga do gafanhoto seria enviada por Deus, mas nunca pensei nas
conseqüências. Penso que eu devia estar mais preparado. Faz meses que nosso inimigo
não tem condições de nos atacar. Contudo, como dependemos dessa gente para muitas
coisas, como, por exemplo, transporte e comunicação, também estamos tolhidos.
Não sei - prosseguiu Tsion, levantando-se para esticar o corpo. - Não sei se voltarei a ser
feliz. Estou aguardando com ansiedade o nascimento desse bebê como se fosse meu filho.
Ele vai ser o nosso raio de sol.
E nós queremos que você seja um outro pai para ele, Tsion.
Há um estranho contraste nessa situação, você não acha?
Contraste?
Essa criancinha inocente não saberá por que Hattie está chorando. Não saberá quantas
pessoas queridas perdemos. Não entenderá por que vivemos aterrorizados, por que
somos inimigos do governo. E não haverá necessidade de contar a esse pequenino todo o
desespero que passamos, como se ele estivesse sendo criado para chegar à idade adulta.
Pense um pouco. Na época em que esse bebê tiver cinco anos, Jesus Cristo já terá
instalado seu reino de mil anos aqui na terra.
Tsion tinha uma maneira própria de visualizar as situações. No entanto, Rayford
surpreendeu-se com a amargura do rabino. Milhões de pessoas no mundo inteiro
consideravam o Dr. Ben-Judá seu líder espiritual. Elas precisavam sentir que ele estava em
paz em sua caminhada com Deus. Mas ele também era um crente novato. Apesar de ser
um grande estudioso e teólogo, ele também era humano. E, como a maioria das pessoas,
passara por terríveis sofrimentos. Ele ainda tinha seus dias de desespero.
Rayford começou a sentir que, em breve, sua vida passaria a ser solitária. Floyd teria
muito o que fazer na casa secreta cuidando do recém-nascido e de Hattie, ainda enferma.
Buck contara a Rayford que estava aguardando um período de calmaria e normalidade
para que sua revista virtual pudesse competir com as publicações da Comunidade Global
controladas por Carpathia. Chloe estaria muito atarefada com o bebê e cuidando dos
detalhes da cooperativa de mercadorias. E Hattie, depois de recuperar-se, daria um jeito
de ir embora dali.
Rayford seria o único a ter de procurar uma ocupação. Ele queria muito voltar a seu
antigo posto na cabina de comando. Já havia se resignado diante do fato de que, dali em
diante, deveria trabalhar com afinco e tomar cuidado para ' continuar livre e tentar
permanecer vivo. Porém, o Glorioso Aparecimento parecia muito distante. Como ele
almejava estar com Jesus! Voltar a reunir-se com sua família!
Sua vida como piloto de vôos comerciais parecia ter-se perdido no tempo. Era difícil
compreender que, pouco menos de três anos antes, ele era um simples marido e pai
pacato, igual a qualquer outro, cuja preocupação girava apenas em torno de saber
quando seria seu próximo vôo e para onde.
Rayford não podia queixar-se de não ter tido nada importante para ocupar seu tempo. E
quanto lhe custou chegar a este ponto! Ele entendia muito bem a posição de Tsion. Se
dirigir o Comando Tribulação era uma tarefa difícil para um cidadão comum como Rayford,
muito mais difícil ainda era a missão de ser o líder de 144.000 testemunhas e pregar a
um bilhão de novos crentes.
163
No início da tarde, Rayford recebeu um telefonema de T Delanty.
Quero começar a cavar amanhã - ele disse. – Você continua disposto a me ajudar?
Claro. Se meu genro chegar em um horário conveniente, estarei pronto quando você
desejar.
Que tal às sete horas da manhã?
Por que tanta pressa?
Ouvi dizer que Ernie está melhorando. Bo também já deve estar quase bom, mas ele
tentou se matar três vezes. Está confuso demais.
Compre a parte dele.
É o que pretendo, e será muito fácil porque, no pé em que as coisas estão, basta fazer
uma oferta irrecusável. Ele ficou com um pouco de dinheiro, mas sua participação no
aeroporto é muito pequena. Não vou ter problemas para me desvencilhar dele. Sinto
muito por Ernie.
Por quê?
Ele era amigo de Ken, Ray. Um amigo quase íntimo. Ken achava que ele era crente.
Também fui enganado.
Fui o último da lista dos três patetas - disse Rayford.
É possível que Ken tenha confiado em Ernie.
Não. Ele só me contou seu segredo durante o vôo a Israel.
Você fala de Ken como se ele fosse seu amigo há anos. Ele mal o conhecia, Rayford, e,
mesmo assim, contou-lhe onde enterrou o ouro. Eu ouvi alguns boatos e nunca me
considerei amigo íntimo de Ken. Ernie trabalhava com ele, devem ter feito amizade. Não
acredito que Ken lhe tenha prometido alguma coisa. Não faz sentido. Mas continuo
apostando que Ernie sabe mais do que deixa transparecer.
Você acha que ele vai aparecer aqui com uma pá depois de sarar?
Não duvido nem um pouco.
- Pode me chamar de Laslos, Sr. Williams. É uma mistura de meu primeiro nome, Lukas,
com o sobrenome Miklos. Está bem?
Buck concordou enquanto ambos se abraçavam no pequeno terminal aéreo.
- E você pode me chamar de Buck.
- Pensei que seu primeiro nome fosse Cameron.
- Meus amigos me chamam de Buck.
- Está bem, Buck. Quero que você conheça os crentes daqui.
- Oh, Laslos, sinto muito. Não posso. Eu adoraria. Talvez venha a fazer isso quando voltar
aqui. Não sei se você sabe que estou longe de minha esposa há muitos meses...
Laslos pareceu ter-se ofendido.
Sim, mas...
... e que ela está no estágio final da gravidez.
Então você vai ser pai! Que maravilha! Tudo estaria bem se esta não fosse a pior época...
bem, você sabe.
Buck assentiu.
Meu sogro pediu-me que conversasse com você a respeito de sua função na cooperativa
internacional de mercadorias.
Ah, sim! - disse Laslos, sentando-se e apontando uma cadeira para Buck. - Tenho lido o
que o Dr. Ben-Judá diz sobre isso. É uma idéia brilhante. O que faríamos sem essa
cooperativa? Todos nós morreríamos. É o que o demônio deseja, certo? Você não acha que
sou um bom aluno?
- Seu trabalho seria pessoal ou você incluiria sua empresa? Laslos empinou a cabeça.
- Farei o que puder. Minha empresa trabalha com linhito, que é usado em centrais ou
usinas elétricas. Se houver utilidade para esse produto na comunidade dos crentes, eu
ficaria feliz se pudesse cooperar.
Buck inclinou-se para frente.
164
- Laslos, você entende o que acontecerá quando exigirem que os cidadãos da Comunidade
Global tenham a marca da besta na mão ou na testa?
Acho que sim. Sem ela, ninguém poderá comprar nem vender. Mas eu não me considero
um cidadão da Comunidade Global e preferiria morrer a usar a marca do anticristo.
Isso é muito bom, amigo - disse Buck. - Mas você entende o quanto será prejudicado?
Você não poderá vender. Sua empresa e seu sustento estão baseados no produto que
você vende.
Mas eles vão precisar de meu produto!
Eles vão colocar você na cadeia e tomar suas minas.
Lutarei até a morte.
Provavelmente, sim. O que estou sugerindo é que você procure outra mercadoria para
negociar, algo que tenha um comércio internacional, algo que seus irmãos e irmãs em
Cristo necessitem e não possam adquirir quando a marca da besta estiver em vigor.
Laslos mergulhou em pensamentos. Em seguida, disse:
Tenho uma outra idéia. Vou incrementar meu negócio de linhito e vendê-lo antes que eles
parem de comprar de mim.
Grande idéia!
Isso acontece o tempo todo, Buck. A gente se torna tão indispensável ao nosso cliente
mais importante que ele não tem outra saída a não ser comprar a nossa parte.
E qual é o seu cliente mais importante?
Laslos endireitou o corpo na cadeira e sorriu tristemente, mas Buck detectou um brilho em
seu olhar.
- A Comunidade Global.
165
VINTE
RAYFORD cruzou inesperadamente com Floyd Charles, que demonstrava irritação, batendo
em tudo o que estava por perto.
Que carro eu posso usar? - perguntou Floyd.
Qualquer um, doutor - respondeu Rayford. - O Rover está em boas condições. Amanhã
vou levar o carro de Ken para T. Talvez a pequena congregação dele possa usá-lo. De
qualquer forma, o carro é dele.
Vou pegar o de Buck.
Aonde você vai?
Preciso conseguir oxigênio, Ray. Não quero ser pego desprevenido. Também não quero que
Chloe fique tão estressada quanto eu.
Ela está tão mal assim? Devo me preocupar?
Não! O problema maior é com Hattie. Ela acha que está melhor. Quer levantar da cama e
sair, mas não pode fazer isso sem ajuda, e não vou ajudá-la. Ela melhorou um pouco,
mas está magra demais, e seus órgãos vitais ainda não voltaram ao normal. Mas,
conforme você diz, não temos autoridade sobre essa moça.
Você quer que eu converse com ela? Depois de tudo o que fizemos por ela, talvez eu possa
convencê-la a fazer o que você quer.
Se você acha que vai conseguir, tudo bem.
Onde você vai conseguir oxigênio? Em Kenosha?
Eu não me atreveria a aparecer por lá novamente. Telefonei para Leah no Arthur Young.
Ela conseguiu dois tubos para mim.
Você sabe quem está naquele hospital? Ernie, o amiguinho de Hattie.
Sério?
T me contou que Ernie e seu amigo Bo estão internados lá.
Buck estava passando mal quando Abdullah pousou no aeroporto de Heathrow. Sentia
cãibras e náuseas, estava exausto e tenso. Seu estado era lastimável. Ele não via a hora
de chegar à casa secreta e ver Chloe.
Heathrow estava muito diferente do que havia sido antes da Terceira Guerra Mundial e do
grande terremoto. Carpathia injetara dinheiro naquele aeroporto, equipando-o com
aparelhos de alta tecnologia e tornando-o mais eficiente, porém com dimensões menores.
A população mundial se reduzira, e não havia mais necessidade de um aeroporto tão
grande.
A torre de Heathrow rejeitou categoricamente as seqüências anunciadas por Abdullah. Ele
pareceu frustrado, mas não se rebelou. Buck gostaria de saber o que Abdullah fazia antes
de se converter. Talvez tivesse sido um terrorista.
Abdullah entendeu o desejo de Buck de seguir viagem o mais rápido possível. Depois de
reabastecer a aeronave, ele retornou com dois sanduíches de queijo embrulhados em
papel celofane que pareciam estar prontos havia dias. Ofereceu um a Buck, que recusou
apenas por causa da náusea que sentia. Abdullah devia ter percebido que Buck estava
ansioso demais para querer comer, porque, assim que o controle de terra o liberou para
decolar, eles já estavam voando rapidamente rumo à Groenlândia.
Para Buck, aquela era uma viagem interminável. Ele pensou que poderia dispor de alguns
minutos para tentar relaxar, mas o jato parecia estar a ponto de explodir no ar a
qualquer momento. Quando o celular vibrou em seu bolso, Buck se contorceu de todas as
maneiras para conseguir pegá-lo, mas não conseguiu.
Abdullah percebeu e perguntou se havia alguma coisa errada.
Devo fazer um pouso de emergência? - ele perguntou.
166
Não! - gritou Buck, notando um ar de expectativa na voz de Abdullah.
Aparentemente, um vôo normal da Jordânia até os Estados Unidos não era considerado
uma aventura emocionante para Abdullah. Mas onde alguém poderia fazer um pouso de
emergência entre Londres e a Groenlândia? Certamente Abdullah teria de retornar a
Londres, mas ele parecia mais disposto a encontrar um porta-aviões.
Quando, finalmente, eles chegaram à Groenlândia para o último reabastecimento, Buck
conseguiu sair do lugar e ficou sabendo que a ligação tinha sido do Dr. Charles. Buck ligou
de volta para ele.
Não posso falar com você neste momento, Buck. Sinto muito. Estou pegando alguns
suprimentos em um hospital.
Só me diga uma coisa, doutor. Está tudo bem?
Digamos que estou esperando que você chegue no horário.
Não gostei da resposta. Chloe está bem?
Todos nós precisamos de você aqui, Buck.
Desembuche, doutor. Ela está bem?
Buck, aguarde mais alguns instantes até eu poder conversar com você.
Por favor!
Buck ouviu Floyd pedindo a uma pessoa chamada Leah que aguardasse um pouco.
Tudo bem, Buck. Você vai chegar no horário programado?
Eu achava que chegaria antes, mas estamos programados para pousar às 22 horas.
Tão tarde assim?
Você está me deixando assustado, doutor.
O fato, Buck, é que não contei toda a verdade a Chloe e Rayford hoje. As batidas cardíacas
do feto estão mais lentas nos últimos dias e chegaram a um estágio alarmante.
O que isso significa?
Vou pôr Chloe no oxigênio assim que voltar para lá. Eu queria ter feito isto algumas horas
antes, mas me deparei com um pequeno problema no hospital. Eu me encontrei com um
conhecido de Rayford que está se recuperando aqui. Ele pareceu realmente interessado
em ouvir o que significam os julgamentos, e acabei gastando tempo .demais com ele.
Hattie conversou algumas vezes com o amigo dele, um rapaz mais jovem, que
aparentemente já recebeu alta.
Em pé no meio de um vento gelado, Buck precisou gritar para ser ouvido.
- Doutor, não faço a mínima idéia do que você está falando. Desculpe minha grosseria,
mas vá direto ao ponto. Por que você achou necessário não contar a verdade a Chloe e
Ray, que estão aí e podem lidar com o problema, e resolveu descarregar tudo em mim,
que estou em algum lugar perdido deste mundo e não posso fazer nada?
- Se você tivesse visto como eles reagiram quando falei de leve sobre o problema,
compreenderia meus motivos. Preciso que Chloe esteja otimista, e, se ela souber o quanto
o caso é grave, não estará em condições de cooperar.
Abdullah fez um sinal para Buck subir a bordo.
Posso continuar falando ao telefone?
Sim, sim!
Mas o barulho no ar era ensurdecedor. Buck e Floyd tiveram de repetir cada frase.
Finalmente Buck conseguiu entender o caso todo.
Existe alguma possibilidade de você ter de fazer parto induzido antes que eu chegue?
Não posso prometer nada.
Faça o que for melhor para Chloe e o bebê!
É o que eu precisava ouvir.
Será que ele precisa de permissão para fazer isso?, pensou Buck.
Diga a verdade a Rayford, doutor! Acho que Chloe também pode saber, mas, se você acha
que ela vai ficar agitada demais, use o bom senso. Ela é muito valente, você sabe.
Mas está grávida, Buck. A gravidez espalha um hormônio no organismo das mulheres,
deixando-as parecidas com uma galinha que quer proteger os pintinhos.
167
Eu só quero que você não diga nem faça algo de que venha a arrepender-se mais tarde.
Ela vai querer saber por que não foi informada de toda a verdade.
Rayford vai esperá-lo no aeroporto, Buck. Tenho de atender outra ligação. Boa sorte!
Rayford ficou aliviado quando, finalmente, Floyd atendeu.
- Onde você estava, homem? Faz horas que você saiu daqui!
Floyd contou-lhe sobre o encontro com Bo e que se atrasou por ter conversado com ele a
respeito de Deus.
O outro rapaz recebeu alta hoje de manhã. Mas qual é o problema?
Chloe não está se sentindo bem, e, é claro, começou a preocupar-se. Há alguma coisa que
a gente possa fazer por ela?
Do que ela se queixa?
Respiração curta. Muito cansaço.
Chegarei aí o mais rápido que puder. Coloque-a em uma posição confortável de modo que
os pulmões possam expandir-se ao máximo. Você é capaz de lidar com o monitor fetal?
Se for muito importante, poderei pedir a ajuda de Chloe.
Ligue para mim dentro de dez minutos informando os resultados.
Buck gostou do médico e estranhou ter ficado zangado com ele. Mas um profissional
experiente devia ser mais tranqüilo e menos enrolado. Depois de depositar sua vida nas
mãos de Abdullah, voando de volta para casa como se estivesse dentro de um foguete e
ansioso por ver sua esposa, ele ainda precisava ter ouvido aquela notícia? O que ele devia
fazer além de orar? Buck acreditava na oração e orava sempre que podia. Mas agora a
ansiedade tomava conta dele, e o médico poderia tê-lo poupado disso. Haveria tempo
suficiente para preocupar-se assim que chegasse lá.
Ao lidar desajeitadamente com o monitor fetal, Rayford achou, a princípio, que as batidas
cardíacas do bebê haviam cessado.
Meu Deus, por favor, ele orou silenciosamente, não nos envies mais este sofrimento.
Havia um consenso entre o grupo que não seria apropriado trazer uma criança ao mundo
durante o período da Tribulação, e todos na casa estavam apreensivos com a chegada do
bebê.
De repente, ele ouviu sons de batidas rápidas.
Basta contar e multiplicar? - perguntou Rayford a Chloe.
Não sei - respondeu Chloe, ofegante. - Você consegue contar? Elas são rápidas demais.
Continuam rápidas, mas será que estão mais lentas do que antes?
Passaram poucas horas desde a última medição. Somente este aparelho terá condição de
nos informar.
- Então, mãos à obra.
Os números apareceram na tela do monitor. Quando Rayford passou a informação a Floyd,
o médico lhe disse para preocupar-se mais com Chloe que com o bebê.
Enquanto eu não chegar aí, quero que ela inspire profundamente e encha os pulmões
com todo o oxigênio que puder. Mas Ray, há um problema. Estou sendo seguido.
Você tem certeza?
Absoluta. Já desviei o caminho várias vezes, mas não consegui despistá-lo.
Que carro é?
Uma motocicleta. É uma daquelas que rodam em qualquer estrada. Não há jeito de correr
mais que ela.
Comece a dar voltas. Veja se ele se cansa. Alguns rapazes gostam de amedrontar os
outros.
Ele não está me acossando, Ray. Permanece a uma distância razoável para não dar na
vista, mas faz tempo que ele está me seguindo. Não quero que ninguém descubra a casa
secreta, mas preciso levar o oxigênio a Chloe.
168
Pode deixar que eu tomo conta dela. Mantenha-me informado.
É que estou com pouco combustível e não sei até quando essa moto vai ter condições de
ficar rodando.
A que distância você está de Palwaukee?
Perto.
Vou ligar para T. Essa criatura que está atrás de você não vai continuar a segui-lo dentro
do aeroporto. T poderá conseguir um pouco de combustível para você.
Ótimo.
Rayford ligou para T e o pôs a par de tudo.
Oh, não - disse T.
O que foi?
Ernie é corredor de moto. Provavelmente ele está seguindo seu amigo desde o hospital,
tentando descobrir onde Hattie mora. Eles têm conversado bastante.
Como você sabe?
A telefonista daqui disse que Hattie ligou perguntando por Ernie, e ela informou que ele
estava internado no Young Memorial. Mas, se Hattie queria vê-lo, será que ela não contou
a Ernie onde está morando?
Ela não sabe, T. Sabe apenas que está em Monte Prospect, mas não tem condições de
ensinar o caminho a ninguém.
Se Ernie seguir seu amigo até aqui, deixe-o por minha conta. Ele não vai encontrar a casa
de vocês, eu lhe garanto. Que carro seu amigo está dirigindo e com quem ele se parece?
Um Rover e você.
Não entendi.
Ele está dirigindo o Rover de Buck e se parece muito com você.
Rayford ajeitou os travesseiros para que Chloe pudesse deitar-se de costas e levantou os
braços dela acima da cabeça, tomando cuidado para não machucá-la nem o bebê. Esse
exercício ajudou a abrir os pulmões de Chloe, e ela disse que estava se sentindo melhor.
Rayford assustou-se quando, ao virar-se, avistou Hattie no topo da escada que dava
acesso ao porão.
Ela tinha uma aparência horrível, como se fosse um fantasma ou coisa pior, um zumbi.
Magra, olhos fundos, tez pálida. Ela aproximou-se de Chloe, caminhando com dificuldade.
Hattie! - disse Chloe. - Faz tanto tempo que não a vejo.
Eu queria saber como vai meu afilhado.
Ele ainda não nasceu, Hattie. Nós lhe daremos a notícia.
Eu também queria dizer que não estou com inveja de você.
Rayford olhou de soslaio para Chloe, observando a reação dela.
Eu sei - ela disse. - Nunca pensei que você estivesse.
E quem poderia me censurar por isso? Perdi meu bebê, mas você vai ter o seu. Você é
uma mulher de sorte, eu não. Minha vida sempre foi assim.
Rayford gostaria de poder conversar com Hattie a sós. Ele não queria de jeito nenhum que
Chloe soubesse o que estava se passando.
Sentimos muito a perda de seu bebê, Hattie - ele disse. - E estamos agradecidos por você
continuar desejando ser a madrinha do bebê de Chloe.
Nós vamos ser comadres - ela disse.
Em meio a muito sofrimento - disse Chloe.
Sofrimento para uma só pessoa - disse Hattie.
Peço que nos dê licença, Hattie - disse Rayford. – Estamos tentando fazer um
acompanhamento médico por telefone.
Ele discou para Floyd. Hattie afastou-se sem dizer uma só palavra. Floyd disse a Rayford
que estava a um quilômetro e meio de Palwaukee.
- O sujeito continua me seguindo - ele disse. Rayford não queria sair de perto de Chloe,
mas também não queria alarmá-la.
169
- Se você achar que pode ficar sozinha por alguns instantes, querida, vou conversar com
Hattie.
Buck lutava contra o sono, o que não era surpresa para ele. Não dormia desde as
primeiras horas do dia no Oriente Médio. Apesar do ruído e do ar rarefeito, ele estava
desesperado para conversar com alguém de Monte Prospect. Não queria incomodar Chloe,
e Rayford devia estar cuidando dela. Hattie não se comunicava com ninguém havia meses.
Só restava Tsion.
Que horas seriam nos Estados Unidos? Final da tarde? O rabino deveria estar dando os
toques finais à sua mensagem diária. Buck ligou para ele. Os dois tiveram de gritar para
serem ouvidos e repetir as palavras. Apesar disso, o importante era conversar com
alguém.
Cameron, meu amigo! Que bom ouvir sua voz! Onde você está?
Antes de tudo, Tsion, preciso saber se não estou atrapalhando seu trabalho. O mundo
está ansioso aguardando uma palavra sua...
Enviei a mensagem há menos de 20 minutos, Cameron. O momento é perfeito para
conversarmos. Estamos todos eufóricos aguardando a chegada do bebê e seu retorno.
Mas onde você está?
Eu também gostaria de saber. Estamos indo de encontro ao pôr-do-sol, mas voando tão
alto em um antigo caça a jato que não consigo nem olhar para baixo. Se pudesse, acho
que estaria vendo o Atlântico. É tudo o que sei.
Dentro de algumas horas, você estará aqui. Restaram poucos prazeres na vida, Buck, e o
reencontro com amigos, irmãos e cônjuges é um deles. Temos orado por você todos os
dias, e você sabe que Chloe está mais empolgada que todos nós. Você chegará a tempo
de assistir ao parto, que provavelmente será feito no hospital em Palatine.
Buck hesitou.
Tsion, você vai ser franco comigo, não?
Como sempre.
Você está tentando me animar porque desconhece as complicações com Chloe e o bebê ou
porque já sabe de tudo?
Seu sogro me pôs a par. O Dr. Charles parece ter a situação sob controle. Rayford lhe
contou alguma coisa?
Foi Floyd quem me contou, e o caso é mais grave que Rayford e Chloe imaginam.
Ele não contou para os dois?
Floyd tem seus motivos. Eu só queria saber se ele conversou com você.
Não. Ouvi alguém saindo algumas horas atrás. Acho que foi ele.
Ele está preocupado, com receio de que eu não chegue a tempo, caso seja necessário
fazer parto induzido.
Parto induzido? Por que, então, ele não a levou ao hospital?
Francamente, Tsion, estou me fazendo uma pergunta atrás da outra desde que ele me
ligou. Não sei o que Floyd esperava de mim. Houve uma pausa. Em seguida, Tsion disse:
Cameron, não há nada que você possa fazer enquanto não chegar aqui, a não ser orar.
Deixe tudo nas mãos do Senhor.
Nunca fui bom nessas coisas, Tsion. Sei que não devemos nos preocupar, mas...
Ora, Cameron, penso que até mesmo o Senhor vai permitir que nos preocupemos um
pouco durante a Tribulação. A admoestação para não nos preocuparmos foi escrita ao
povo que viveu antes dos julgamentos. Se não nos preocupássemos com o próximo
julgamento que virá do céu, não seríamos humanos. Não se sinta culpado. Apenas confie
ao Senhor as coisas que você não pode controlar. Esta é uma delas.
Buck adorava conversar com Tsion. Eles haviam atravessado muitos momentos difíceis
juntos. De repente, Buck se deu conta de que estava choramingando as complicações da
gravidez de Chloe a um homem cuja esposa e filhos haviam sido assassinados. Tsion,
170
contudo, possuía sabedoria e uma visão clara dos problemas das outras pessoas, e sabia
como acalmá-las. Buck não queria desligar.
Você pode conversar mais um pouco comigo, Tsion?
Claro. A propósito, eu estava começando a me sentir sozinho.
Como está Hattie?
Mais tranqüila. O pior já passou, embora o período de recuperação ainda seja longo.
Chloe me disse que ela continua irredutível espiritualmente.
Um caso difícil, Cameron. Temo por essa moça. Eu esperava que ela estivesse
desabafando tudo o que tinha guardado no peito e que, depois de pôr para fora toda a
amargura, se voltasse para Deus. Porém, ela está sendo sincera. Acredita em Deus, sabe
que Ele a ama, sabe o que Ele tem feito por ela. Mas decidiu que sabe mais que Ele e que
é a única pessoa que optou por não aceitar o dom da salvação pelo mesmo motivo que
todos nós o aceitamos sem pestanejar.
Ela se considera indigna.
É difícil argumentar. Ela é adulta e independente. A escolha é dela, não nossa. Mas é
doloroso ver alguém que amamos tomar uma decisão que pode custar-lhe a alma.
Eu não quero abusar de seu tempo, Tsion, mas qual foi sua mensagem de hoje?
Provavelmente não terei condições de ler suas pregações nos próximos dias e estou
precisando reunir forças para enfrentar a situação.
Bem, Cameron, como já chegamos ao fim do sofrimento causado pelos gafanhotos, é
tempo de começarmos a pensar nos próximos dois "ais".
O próximo Julgamento das Trombetas será o sexto. O que você tem a dizer sobre ele?
Tsion deu um longo suspiro.
- O ponto fundamental, Cameron, é um exército composto de 200 milhões de cavaleiros
que exterminarão a terça parte da população do mundo.
Buck não sabia o que dizer. Ele lera a profecia, mas nunca havia assimilado sua essência.
Que palavra de ânimo você daria ao povo depois que todos souberem o que terão pela
frente?
Direi apenas que todo o sofrimento pelo qual passamos e todo o horror que presenciamos
passarão a ser insignificantes diante do próximo julgamento.
E os seguintes serão piores ainda?
É difícil imaginarmos, não?
Diante dessas perspectivas, minha preocupação com o bebê parece não ter nenhuma
importância. Não estou falando de mim, mas que prazer alguém poderia ter na vida
sabendo que um terço da humanidade será em breve eliminado da terra?
Apenas a quarta parte das pessoas que foram deixadas para trás no Arrebatamento
sobreviverá até o dia do Glorioso Aparecimento, Cameron. Eu não tenho medo da morte,
mas peço a Deus todos os dias que me conceda o privilégio de vê-lo retornar para
estabelecer seu reino na terra. Se Ele me levar antes disso, estarei reunido com minha
família e meus amigos, mas, oh! como será grande a alegria de estar aqui quando Jesus
chegar!
Rayford encontrou Hattie nos arredores da casa.
O que você está fazendo? - ele perguntou.
Tomando um pouco de ar. É bom demais poder andar um pouco.
O doutor acha que ainda é muito cedo.
O doutor está apaixonado por mim, Rayford. Ele quer me manter aqui, e confinada dentro
de casa, se necessário.
Rayford fingiu estar esquadrinhando o horizonte.
De onde você tirou essa idéia?
Ele não me disse com todas as letras, mas uma mulher conhece essas coisas. Aposto que
você percebeu.
Rayford ficou satisfeito por dizer que não havia percebido nada. Ele se surpreendeu
171
quando Floyd lhe contou sobre seus sentimentos, mas também surpreendeu-se ao ver
que Hattie percebera.
Ele lhe contou, Rayford?
Por que você está me perguntando?
Ele contou! Tenho certeza! Bem, não estou interessada.
Ele teve uma paixonite aguda. Tenho certeza de que você já tirou as esperanças dele.
Hattie pareceu desapontada.
Quer dizer que ele acha que não tem mais chance? Rayford deu de ombros.
Não conversamos muito sobre esse assunto.
Ele sabe que você também já teve uma paixonite aguda por mim?
Hattie, você está agindo como uma colegial.
Não negue.
Negar o quê? Que eu senti uma atração que não devia por uma moça? Nós dois sabemos
que isto não deu em nada e...
Só porque um bando de pessoas desapareceu e você começou a sentir-se culpado.
Rayford virou-se, fazendo menção de voltar para a casa.
- Essa história ainda deixa você nervoso, não? – ela perguntou.
Ele virou-se novamente.
Vou lhe dizer o que me deixa nervoso. É sua obsessão por aquele garoto do aeroporto.
Ernie? Quero conhecê-lo, só isso.
Você lhe contou onde estamos, como chegar até aqui?
Nem eu sei.
Você lhe contou que Floyd ia ao hospital? Hattie desviou o olhar.
Por quê?
Você contou?
Acho que sim.
- Foi uma atitude estúpida, Hattie. Qual é o plano? O amiguinho dele, Bo, distrai Floyd o
tempo suficiente para que Ernie pegue sua moto e siga Floyd para conhecer você?
Hattie demonstrou surpresa.
Como você sabe de tudo isso?
Ele é um adolescente, Hattie. E você está agindo como se também fosse. Se você queria
tanto conhecer esse garoto, por que não pediu que um de nós a levasse até lá?
Porque Floyd está com ciúmes e não quer nem mesmo que eu converse com ele por
telefone. Floyd convenceu você de que estou doente demais para ir a qualquer lugar,
assim você não me levaria.
- Ernie está tentando vir aqui para quê? Para conhecê-la?
-Sim.
- Que estupidez! Você sabe que ele fingiu ser crente para aproximar-se de Ken e que
poderia ter-se infiltrado em nosso meio se não tivéssemos descoberto tudo?
Hattie parecia estar contendo um sorriso, o que enfureceu Rayford.
Você também sabia disto? - ele perguntou asperamente.
Quando contei a Ernie que não fazia parte do Comando Tribulação, ele me contou seu
plano. É por isso que gosto dele.
Gosta que ele ponha nossas vidas em perigo? Gosta que ele seja um oportunista? Um
cavador de ouro?
Ela encolheu os ombros.
Os outros homens de minha vida estão me cansando. Rayford sacudiu a cabeça.
Espero que você se sinta feliz com ele.
Ele está vindo para cá?
- Floyd está tentando despistá-lo, mas talvez não consiga. Chloe não pode receber
oxigênio porque há um garoto seguindo Floyd. Espero que você esteja feliz. Se aquele
garoto souber quem somos, não poderemos confiar nele de jeito nenhum. Teremos de
nos mudar daqui, e para onde iremos? E como poderíamos, tendo uma mulher prestes a
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dar à luz e depois um recém-nascido para cuidar? Você teima em dizer que não é digna
do perdão de Deus, e está tentando provar isso.
Rayford entrou na casa e deixou que a porta batesse com força atrás de si. Ele queria
dizer mais alguma coisa a Hattie, mas não sabia o quê. Ela abriu a porta.
Volte aqui, Rayford. Chloe está com problema?
Talvez. Precisa daquele oxigênio.
Floyd deve ter levado o telefone com ele.
Levou.
Ligue para ele. Deixe-me falar com ele. Rayford fez a ligação.
Oi, Rafe - disse Floyd. - Ele não entrou no aeroporto atrás de mim, mas, depois que
conheci T, fiquei sabendo o motivo. Estamos pensando em trocar de carro para ver se o
garoto vai atrás dele. Esta é a vantagem de sermos muito parecidos.
Ótima idéia. Hattie quer falar com você.
Oi, doutor. Preste atenção. Deixe Ernie conversar comigo. Segure o telefone fora da janela
do carro e pare... Acho que sim. Vale a pena tentar.
173
VINTE E UM
ESTOU voando rápido demais!
Buck despertou assustado. Será que Abdullah havia dito alguma coisa?
O que foi? - ele gritou.
Estou voando rápido demais!
Teria Abdullah infringido alguma norma de tráfego aéreo?
- Quer dizer que chegaremos antes do horário programado? - perguntou Buck.
- Sim, mas consumi mais combustível do que planejei. Precisamos reabastecer em Nova
York.
Buck não via a hora de chegar à casa.
Onde você vai pousar? Nova York foi posta em último lugar na lista dos aeroportos a
serem reconstruídos por Carpathia. Talvez porque ele ainda culpe os Estados Unidos por
causa daquela rebelião.
Eu conheço um lugar. Você estará em Wheeling daqui a duas horas.
Buck consultou seu relógio. Eram 19 horas no meio-oeste. Se Abdullah pousasse por volta
das 21 horas para reabastecer, Buck chegaria à casa secreta antes das 22. Não haveria
tempo de tirar outro cochilo.
Sentado ao lado de Chloe, que estava pálida e com os lábios azulados, Rayford imaginava
que a situação chegaria a um ponto crítico. Ele tinha a sensação de que o bebê nasceria
naquela noite e que teria de fazer o possível para que tudo desse certo.
Está tudo bem, querida?
Sinto-me exausta, papai.
Chloe mudava constantemente de posição para poder respirar melhor. Rayford sabia que
ela não tinha consciência da gravidade do caso. Quando seu telefone tocou, ele o abriu tão
rápido que quase o deixou cair no chão.
Desculpe-me - ele disse, agarrando o telefone. – Aqui é Steele.
Ray, é Floyd. Transferimos o oxigênio para o jipe vermelho de T, e estou a caminho. Como
está Chloe?
-Sim.
Você está ao lado dela?
Correto.
Em uma escala de zero a dez, em que número você a enquadraria?
Cinco.
Eu deveria pedir que você fizesse mais uma contagem das batidas cardíacas do feto, mas
não há nada que eu possa fazer enquanto não chegar aí.
Rayford levantou-se, deu as costas a Chloe e caminhou até a janela. Hattie continuava do
lado de fora, conversando animadamente ao telefone.
O que está acontecendo com T? - ele perguntou a Floyd.
Acho que o rapaz da moto mordeu a isca, mas ele vai reconhecer seu antigo patrão. Só
esperamos que ele pare e converse com Hattie.
Não tenho certeza, doutor, mas penso que ele está conversando com ela neste momento.
Venha rápido.
O que está havendo, papai? - perguntou Chloe.
Floyd demorou no hospital mais do que imaginava e teve um pequeno contratempo no
caminho de volta, mas já está vindo com o oxigênio.
Ótimo. E ele achou que podia aguardar até amanhã.
Era o que ele esperava.
Vai ficar tudo bem com o bebê, não?
174
Sim, desde que você continue a fazer o exercício de respiração até o oxigênio chegar.
Rayford estava ansioso por conversar com Hattie.
Vou tomar um pouco de ar lá fora - ele disse.
Vá - ela disse, com um leve sorriso.
Faça deste jeito, Ernie - Hattie estava dizendo, de costas para Rayford, quando ele fechou
a porta atrás de si. – Prove que você é homem.
Ao ouvir o ruído da porta, ela desligou o telefone.
Consegui acalmá-lo - ela disse.
Conseguiu? Como?
Eu contei a ele qual era a situação e que seria uma estupidez minha pedir-lhe que viesse
até aqui. Disse que talvez você me leve a Palwaukee um dia destes, se eu estiver melhor.
Quem sabe? O que ele vai fazer agora?
Voltar para casa, acho.
Ele mora no aeroporto.
Foi o que eu disse.
Ele foi atacado pelos gafanhotos no mesmo dia em que você foi. Como ele está?
Muito fraco, mas disse que gostou de voltar a pilotar sua moto.
O telefone de Rayford tocou.
Com licença, Hattie - ele disse, mas ela não saiu do lugar. - Devo entrar ou você entra?
Desculpe-me! - ela disse, afastando-se.
Aqui é Steele.
É T. O pobre do Ernie mudou de cor três vezes quando descobriu que era eu quem dirigia
o carro. Ele quis fugir, mas eu disse: "Sua amiguinha quer falar com você." Ele pegou o
telefone, e a primeira coisa que disse foi: "Não, não é." Tenho certeza de que minha voz
não é parecida com a do Dr. Charles, e ela deve ter perguntado a Ernie quem eu era. Em
seguida, ela deve ter dito ao rapaz para cair fora porque ele se desculpou e disse sim
mais de uma dúzia de vezes.
Ela me contou que o fez desistir da idéia dizendo que se encontraria com ele em outra
ocasião.
Faz tempo que o doutor saiu. Ernie está fora da jogada. Ele voltou para Palwaukee. Pelo
menos foi o que ele disse.
Você tem compromisso para esta noite, T?
Mandei o resto do pessoal para casa e pretendo cuidar da chegada de Buck. Recebemos
uma mensagem de Nova York dizendo que eles reabasteceram e devem chegar aqui por
volta das 21 horas. Você sabia que seu genro está voando em um Z-Dois-Nove?
Um caça egípcio? Você está brincando.
Foi o que disseram. O vôo de Nova York até aqui pode ser feito em uma hora. Mas você me
ligou para quê?
Fique de olho em Ernie. Não confio nele nem em Hattie.
O que ele pode fazer? Não sabe onde vocês estão.
Ele poderá me seguir quando eu for pegar Buck. Quem sabe o que se passa na cabeça
desse rapaz?
Se Ernie estiver por aqui quando Buck chegar, não vou permitir que ele saia das minhas
vistas. Está bem assim?
Buck teve uma sensação de claustrofobia quando Abdullah cruzou o espaço aéreo de Ohio,
mas o desconforto deu lugar à euforia. Seu objetivo final era ver Chloe. O problema que
ela estava enfrentando com a gravidez estava fora de seu alcance. Ele só podia orar.
Juntos, eles venceriam qualquer coisa. Os próximos anos que lhes restavam também não
seriam nada fáceis.
Ele inclinou o corpo para a frente e tocou no ombro de Abdullah.
Obrigado por me trazer até aqui, amigo!
Obrigado por me contratar, senhor. Conte depois a McCullum como a viagem foi agradável.
Buck riu mas não deixou que Abdullah percebesse. Ele jamais voltaria a viajar em um
175
caça, mas estava agradecido por poder voltar para casa.
Está tudo bem? - ele perguntou. - Rota? Horário? Combustível?
Tudo certo, Sr. Williams. Vou precisar de um lugar para dormir.
Creio que há acomodações no aeroporto. Eu gostaria de convidá-lo para dormir em nossa
casa, mas estamos escondidos e não temos condições de hospedar ninguém.
Eu preciso de pouca coisa - disse Abdullah. - Só um lugar para dormir e uma tomada
elétrica.
Para seu computador?
Ben-Judá.
Buck fez um movimento afirmativo com a cabeça. O que mais precisava ser dito?
Rayford nunca se sentiu tão feliz ao avistar um veículo chegando pelo lado norte da casa.
Ele correu para ajudar Floyd a descarregar os tubos de oxigênio.
Eu tomo conta deles, doutor. Entre para ver Chloe.
Deixe um dos tubos no carro por enquanto. Ela precisa receber oxigênio o mais rápido
possível.
Rayford entrou na casa um minuto após o médico, mas, assim que ele se aproximou com
o tubo, viu que Floyd já havia ligado o monitor a Chloe. Seu semblante era de
preocupação. Tsion observava de longe, perto do pé da escada. Hattie estava em pé no
canto oposto, no topo da escada que dava para o porão, com os olhos atentos.
- Vamos lá, minha gente - disse Floyd -, todos devem prestar atenção, a começar pela
paciente. Vamos ter de trabalhar juntos. Quero que o ambiente esteja o mais limpo
possível. Hattie, pegue uma panela grande e...
Mas Hattie parecia não estar ouvindo, limitando-se a olhar para um ponto fixo como se
estivesse em estado de choque. De repente, ela começou a tremer e desceu a escada.
Farei o que for necessário - disse Tsion, arregaçando as mangas.
O bebê vai nascer esta noite? - perguntou Chloe em tom de desespero. - Antes que Buck
chegue?
Não, se eu conseguir evitar - respondeu o médico.- Mas você precisa ficar calma. Só fale
o estritamente necessário.
- Está bem - ela disse -, mas preciso saber de tudo o que está acontecendo, e falo sério.
O médico olhou para Rayford, que levantou as sobrancelhas e assentiu com a cabeça.
Conte a ela - ele disse.
Está bem, Ray. Ligue o oxigênio a ela. Chloe, está havendo um decréscimo significativo na
pulsação do feto. Não tenho aparelho para verificar a posição do cordão umbilical e não
gostaria de fazer uma cesariana aqui. Uma viagem de carro até o Young Memorial seria
negativa do ponto de vista médico.
Chloe, que já havia recuperado um pouco a cor rosada, retirou a máscara de oxigênio da
boca.
Negativa do ponto de vista médico? - ela disse. – Você não vai me acalmar usando essa
linguagem complicada. Você quer dizer que eu morreria durante a viagem?
Esta é uma pergunta inútil. Você não vai viajar até lá. Agora fique quieta. Tsion, faça
apenas o que eu lhe pedir. Mantenha as mãos limpas. Ray, lave as mãos também. Tragame
duas cadeiras. Puxe aquelas duas luminárias e coloque uma delas acima da mesa. Dême
aquele frasco de remédio.
Assim que a sala foi preparada e iluminada da melhor maneira possível, os três homens
carregaram Chloe e a colocaram em cima da mesa de parto improvisada.
Onde está minha dignidade? - ela resmungou por trás da máscara.
Quieta! - disse Floyd, beliscando o pé dela por brincadeira.
Eu preciso fazer uma pergunta - disse Tsion, que estava perto do fogão. - Como você vai
decidir se haverá necessidade de uma cesariana?
Ela só será necessária se a pulsação do bebê diminuir demais ou parar. Aí, então, vamos
ter de fazer o que for preciso. Chloe estará meio zonza naquele momento, portanto ela
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terá de decidir agora. Você será anestesiada, Chloe, mas não tanto quanto eu gostaria
para uma cesariana. Agora...
Nem uma pergunta sequer - ela disse, apesar da máscara de oxigênio. - Cuide do bebê e
preocupe-se comigo depois.
Mas se...
Não discuta comigo, doutor.
Está bem, mas tudo o que temos aqui é precário. Eu gostaria de não precisar fazer parto
induzido. Vou adiar o mais que puder, na esperança de que a pulsação do bebê se
estabilize.
Espere até Buck chegar - disse Chloe.
Nem mais uma palavra - disse o médico.
Desculpe-me, Floyd - ela murmurou.
O que vai acontecer quando eu tiver de sair para buscar Buck? - perguntou Rayford depois
de consultar seu relógio.
Francamente, vou precisar de você aqui. O carro de Buck ainda está no aeroporto. Ele
pode vir sozinho.
T vai ficar sem condução.
Ele poderá vir junto com Buck e pegar o carro dele aqui.
T não quer saber o caminho até aqui. Assim, ficará mais fácil para ele se alguém lhe fizer
perguntas.
Mas você confia nele - disse o médico.
Totalmente.
É um risco que ele tem de correr.
Abdullah entrou no espaço aéreo de Illinois alguns minutos antes das 21 horas.
Buck ligou para Rayford.
Quer dizer, então, que vou levar T comigo?
E tome cuidado para não ser seguido. É uma longa história.
Estamos sempre observando se há alguém atrás de nós. Quem é desta vez?
T lhe contará tudo. Trata-se de um rapaz que mora no aeroporto.
Abdullah vai dormir lá. Vou pedir que ele fique de guarda.
Abdullah! Você está viajando com Abdullah Smith?
Eu não sabia que você o conhecia.
Quero falar com ele!
Buck bateu de leve no ombro de Abdullah e disse:
Meu sogro quer falar com você. Rayford Steele. Abdullah virou quase todo o corpo para
trás.
Rayford? Verdade?
Rayford rapidamente pôs Abdullah a par da situação. Vou tomar conta para que ele não
vá a lugar nenhum - disse o piloto. - Você me conhece.
E como! A que horas está prevista a chegada?
Quatorze minutos, mas calculo onze.
Rayford desligou o telefone e disse que ia ver Hattie. Depois de descer três degraus, ele
curvou-se e viu que ela se encontrava encolhida em posição fetal sobre um velho sofá. Ele
balançou a cabeça e subiu novamente.
O que vamos fazer, doutor?
Vamos induzir o parto, mas posso começar esse procedimento bem devagar para que
Buck chegue a tempo.
Todos concordam? A pulsação do feto ainda não chegou a um nível crítico, mas chegará
dentro de uma hora. Por mim, eu começaria a aplicar o soro desde já.
Chloe apontou para Floyd.
- Ela está dizendo que a decisão é sua, doutor - explicou Rayford.
- Aeroporto pequeno - disse Abdullah ao fazer as manobras de pouso.
Mas não é pequeno demais para você, certo?
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Sou capaz de pousar em um envelope sem destruir o selo.
Buck não conseguiu parar de rir até descer do avião, talvez por causa da tensão nervosa.
Ele esticou tanto o corpo que chegou a sentir tontura, e imaginou que se partiria em dois.
- Aquele sujeito que conversou com você pelo rádio era T - disse Buck a Abdullah. - Ele vai
indicar um lugar para você dormir e talvez o apresente a Ernie. Você sabe o que fazer.
Abdullah sorriu.
Menos de dez minutos depois, Abdullah estava tirando suas roupas da sacola ao lado do
quarto de Ernie. Buck e T trocaram números de telefone com Abdullah. Buck sentou-se ao
volante do Rover, e ambos partiram.
Vocês devem ter passado por momentos emocionantes - disse Buck.
Ainda vamos ter outros tantos pela frente.
Não vejo a hora de chegar. Vou ligar para Chloe.
Não seria conveniente. Entendi que ela está recebendo oxigênio e que o médico vai induzir
o parto, mas eles estão protelando até você chegar.
Buck pisou fundo no acelerador. O carro começou a sacolejar, e eles tiveram de se segurar
com uma das mãos no teto.
- O que é aquilo? - disse Buck, olhando pelo espelho retrovisor e, em seguida, fazendo
uma manobra rápida para não bater em uma gigantesca pilha de concreto que havia na
Estrada Willow e da qual ele não se lembrava.
Não estou vendo nada - disse T, olhando para trás. Buck deu de ombros.
Pensei ter visto uma moto. T olhou para trás novamente.
- Se houver uma moto atrás de nós, está com o farol apagado. Deve ser sua imaginação.
Buck olhou no espelho retrovisor novamente. Será que estava vendo coisas? Seria melhor
ter deixado T dirigir o carro, mas ele não conhecia o caminho.
- Você quer que eu ligue para Abdullah? - perguntou T. - Só para termos certeza de que
Ernie continua lá?
- Talvez seja melhor. T fez a ligação.
- Como vão as coisas, meu amigo?... Tudo bem?... Sim, ele é um cara legal. Você não
permitiria que ele lhe passasse a perna, não?... É apenas uma expressão que usamos
aqui. Significa enganar, ludibriar, passar alguém para trás... Assim é que se diz, Abdullah.
É melhor você dormir um pouco. Você distraiu o rapaz por um bom tempo.
Buck e T estacionaram no quintal da casa secreta quando faltavam poucos minutos para
as dez horas. Antes que o motor parasse de funcionar, Buck já estava fora do carro.
Chloe, que acabara de sentir a primeira contração, sorriu feliz ao vê-lo. O Dr. Charles o
cumprimentou com um gesto de cabeça e apontou para uma pia.
- Em primeiro lugar, o mais importante de tudo - ele disse. Buck se lavou, aproximou-se
de Chloe e segurou-lhe a mão.
Obrigado, meu Deus - ele disse em voz alta. - Eu não queria perder este momento.
Eu também quero orar - disse Tsion.
Eu gostaria que você orasse - disse Buck.
Doutor, você tem permissão para ficar de olhos abertos - disse Tsion. - Deus Todo-
Poderoso, estamos gratos por tua bondade e proteção. Obrigado por teres trazido Buck
até aqui. Sabemos que não podemos contestar tua soberana vontade, mas suplicamos-te
que o parto seja bem-sucedido, que o bebê seja perfeito e que Chloe seja uma mãe
saudável.Necessitamos deste pequenino raio de sol em um mundo tão tenebroso. Atende
ao nosso pedido, Senhor, mas, acima de tudo, seja feita a tua vontade.
Rayford teve um sobressalto ao ouvir o som de alguém dando partida no carro no quintal.
Ele correu os olhos pela sala, olhou para T e disse:
Hattie.
Corra atrás dela! - gritou Buck. - Ela não pode nos expor desta maneira!
Chloe tentou sentar-se.
- Relaxe, Chloe! - disse Floyd. - Buck e Tsion darão conta do recado se vocês dois
precisarem ir atrás dela. Mas fiquem longe daqui.
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Rayford passou apressado por T, desceu correndo a escada e saiu. Ele ouviu o som do
motor de uma motocicleta, e o Rover não estava mais ali. Rayford e T pularam dentro do
jipe de T, mas as chaves não estavam no contato. Rayford voltou a entrar correndo na
casa.
Floyd! As chaves!
Droga! - disse Charles. - Tsion, pegue-as no bolso do lado direito de minha calça e depois
lave as mãos novamente.
Tsion atirou as chaves para Rayford, que, instantes depois, já estava rodando com T em
direção a Palwaukee.
No final das contas, Ernie conseguiu seguir você.
Impossível - disse T. - Conversamos com Abdullah, e ele disse que Ernie continuava lá.
Mas Buck imaginou ter visto alguma coisa atrás de nós.
Talvez Ernie tenha apontado uma arma para Abdullah, forçando-o a dizer aquilo.
Abdullah foi muito convincente. Conversou tranqüilamente, contou detalhes.
Francamente, Abdullah não seria capaz de nos enganar. Ligue para ele.
Abdullah atendeu após o segundo toque.
- Eu o acordei?... Preste atenção, diga apenas sim ou não. Ernie continua aí?...
Continua?... O que ele está fazendo?... Cavando? Ponha-o na linha. Quero falar com ele.
Rayford sacudiu a cabeça.
Eu lhe disse, ele não seria capaz...
Ernie? Ei, como vai você, rapaz? Está fazendo o quê?... Limpando a casa de Ken? Que bom!
Abdullah disse que você estava cavando... Só varrendo, hein?... Ah, sim, ele deve ter
confundido e pensado que você estivesse cavando. Diga a ele que estaremos aí dentro de
algumas horas.
Buck não podia imaginar o que Hattie estava aprontando. Fazia muito tempo que ele
deixara de tentar adivinhar o que ela tinha em mente. Aonde ela poderia ter ido no meio
da noite? Estaria maluca? Talvez tivesse se sentido enclausurada e quis fugir. Ela poderia
se perder e acabar levando alguém até a casa secreta.
Chloe apertou a mão dele e deu um gemido. Buck olhou para o médico, que ligara o
monitor fetal à cabeça do bebê através do útero. Floyd disse que a situação estava sob
controle e que ele se sentia mais animado.
- O bebê vai nascer esta noite - ele disse. - E vai dar tudo certo.
Buck deu um longo suspiro, eufórico demais para perceber o quanto estava cansado. Mas
ele também era um homem realista e sabia que Floyd demonstrava otimismo por causa
de Chloe. Buck sentia-se feliz por estar ali, apesar de tudo o que acontecera. Ele não
queria que Chloe passasse por tudo aquilo sozinha, qualquer que fosse o desfecho.
- Então, Ernie é mesmo um cavador de ouro - disse Rayford. T assentiu com a cabeça.
E aposto cem contra um que Bo também já deve ter recebido alta do hospital. Seria
conveniente verificar?
Claro.
Que estranho! - disse T alguns minutos depois, cobrindo o fone com a mão. - Informaram
que ele ainda está internado.
Peça para falar com ele. Não, espere. É melhor chamar Leah. Eu falo com ela.
T pediu para falar com Leah e passou o telefone a Rayford.
Leah, aqui é Rayford Steele, amigo do Dr. Charles.
O que está havendo agora? - ela perguntou secamente.
Precisamos saber se um paciente pode ter saído daí sem receber alta. O nome dele é Bo
alguma coisa. Espere um instante, vou...
Beauregard Hanson - ela disse. - Não temos muitos Bos aqui, você sabe. Sim, ele
continua internado.
Você tem certeza?
Quer que eu verifique?
179
Você poderia?
Isto é simples comparado a tudo o que já fiz por vocês.
É por isto que nós amamos você.
Aguarde na linha.
O Dr. Charles parecia animado, o que fez Buck se sentir melhor.
- Estamos fazendo a coisa certa - disse o médico. - Não podíamos aguardar mais, e já faz
um pouco de tempo que o pulso está batendo em ritmo constante. Vai dar tudo certo.
Você está se sentindo bem, mamãe?
Chloe, que transpirava muito, fez um movimento afirmativo com a cabeça.
- Ele foi embora?
- Sumiu daqui - disse Leah. - Eu não gostei dele nem do rapaz que estava no mesmo
quarto. Ele desapareceu hoje cedo sem dizer nada, se não eu teria tomado conhecimento.
Ficamos lhe devendo este favor, Leah - disse Rayford.
Só este?
Está bem, Leah. Algum dia nós a recompensaremos.
Ah, sim - ela disse. - Talvez daqui a cinco anos ou mais.
- Eu gostaria que meu pai estivesse aqui - disse Chloe.
Talvez ele volte a tempo - disse Buck. - Quando você acha que o bebê vai nascer, doutor?
Não quero precipitar nada. Às vezes, o soro é suficiente para apressar o parto. Tudo
depende da mãe e da criança. Mas por enquanto está tudo bem, e é isto o que interessa.
Amém - disse Tsion.
Buck nunca vira o rabino tão empolgado.
- Você acreditou nesta história? - perguntou Rayford, sacudindo a cabeça. Os dois são tão
idiotas que nem sabem que foram seguidos.
O Rover estava estacionado, com o motor ligado, em frente ao barraco que havia sido a
casa de Ken e que agora abrigava Ernie e o hóspede temporário Abdullah. T estacionou o
jipe a cerca de 15 metros e desligou o motor e os faróis. Ambos ficaram observando de
longe.
- Abdullah sabe tomar conta de si - disse Rayford -, mas está sozinho contra os outros.
T desceu do carro.
- Vamos ver o que eles estão aprontando.
Quando os dois se aproximaram do barraco, ouviram vozes lá dentro.
- O motor do Rover deve continuar ligado - disse Rayford -, para que eles não percebam
que estamos aqui.
Rayford e T agacharam-se perto de uma janela com a cortina fechada.
- Deixe-me ver se entendi - estava dizendo Abdullah. -
Você vai me dar um bloco de ouro maciço para eu levá-la até a Nova Babilônia.
Exatamente - disse Hattie.
E esse ouro lhe pertence?
Pertence ao meu noivo.
Este jovem aqui é seu noivo?
Sim, sou! - disse Ernie. - Eu vou dar esse ouro a você. Vamos, aceite.
Você já pensou - disse Abdullah - que esse ouro vale dez vezes mais o que eu cobraria
pelo vôo?
Mas nós queremos partir já - disse Hattie. - E eu sei o quanto essa viagem vale.
Se vocês querem ir embora já, escolheram o piloto errado. Não posso voar 24 horas
seguidas.
Carpathia rescindiu todas as leis aéreas internacionais -disse Hattie. - Eu sei. Trabalhei
para ele.
Você fez mais que trabalhar para ele, madame. Não foi noiva dele? Quantos noivos você
180
tem?
- Um a menos, se não sairmos rápido daqui - ela disse.
Rayford fez um sinal a T, e os dois se afastaram a uns 30 metros da janela. Rayford ligou
para Abdullah.
Alô, sim?
Abdullah, é Rayford Steele. Não diga nada. Apenas repita o que vou dizer, certo?
Certo.
Milícia da Comunidade Global?... Roubaram um Range Rover?... Ouro?... Cadeia?... Sim,
pode vir para me interrogar, mas o ouro está aqui e o carro também... Sim, estarei aqui
quando você chegar... Não, eu não quero ser preso.
De repente, Abdullah disse:
Está dando certo, Rayford.
Rayford? - gritou Hattie. - Ernie, espere!
Mas Ernie e Bo já estavam montados na moto, deixando um rasto de poeira atrás
enquanto rodavam para longe do aeroporto.
Rayford e T encontraram Abdullah, que parecia exausto mas orgulhoso de si mesmo.
Hattie estava sentada no chão, encostada em um catre do exército.
- Vamos embora, Hattie - disse Rayford. - Talvez a gente consiga chegar a tempo de
assistir ao nascimento do bebê.
Quatro horas depois, na escuridão da madrugada, Chloe Steele Williams deu à luz um
menino saudável. Em meio às lágrimas enquanto o amamentava, ela comunicou a todos o
nome dele.
Kenneth Bruce.
Até Hattie chorou.
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EPÍLOGO
"O primeiro ai passou. Eis que, depois destas coisas, vêm ainda dois ais. O sexto anjo
tocou a trombeta, e ouvi uma voz procedente dos quatro ângulos do altar de ouro que se
encontra na presença de Deus, dizendo ao sexto anjo, o mesmo que tem a trombeta:
Solta os quatro anjos que se encontram atados junto ao grande rio Eufrates. Foram,
então, soltos os quatro anjos que se achavam preparados para a hora, o dia, o mês e o
ano..."
Apocalipse 9.12-15

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