O tamanho da casa às vezes confundia Rayford, mesmo quando havia quatro pessoas morando ali. Em outras ocasiões ele sentiu orgulho dela. Evidenciava sua posição social, condição de vida, grau de realizações. Agora era um lugar solitário. Rayford estava muito agradecido por ter a companhia de Chloe em casa. Apesar de ter resolvido não interferir em sua decisão caso ela desejasse retornar à faculdade, não fazia idéia de como seria sua vida durante as horas de folga. Uma coisa é ocupar a mente, cuidando de tudo o que é necessário para transportar com segurança centenas de pessoas pelo ar. Outra coisa bem diferente é não ter nada para fazer em casa a não ser comer e dormir. O lugar se tornaria insuportável.
Cada cômodo, cada bugiganga, cada toque feminino o fazia recordar-se de Irene. De vez em quando, uma coisa qualquer povoava sua mente com as lembranças de Raymie. Rayford havia encontrado um pedaço do doce favorito de Raymie debaixo da almofada do sofá. Também encontrara seus livros. Havia um brinquedo escondido atrás de um vaso de planta.
Rayford estava se transformando em um homem emotivo, mas já não se preocupava muito com isso. Agora sua tristeza provocava-lhe mais uma sensação de melancolia do que de sofrimento. Quanto mais ele se aproximava de Deus, mais ansiava pelo momento de estar na presença dele, junto com Irene e com Raymie, após o Glorioso Aparecimento.
As lembranças traziam seus entes queridos mais para perto de si, tanto no pensamento como no coração. Agora, depois de convertido, ele os compreendia e os amava mais ainda. Quando o sentimento de culpa se abatia sobre Rayford, quando ele se sentia envergonhado de sua atuação como marido e como pai, ele simplesmente orava suplicando perdão por ter sido tão cego.
Naquela noite, Rayford decidiu cozinhar para Chloe. Prepararia um dos pratos favoritos da filha — camarão acompanhado de massa e outros alimentos decorativos. Ele sorriu. Apesar de todos as características negativas que a filha herdara dele, ela era uma pessoa maravilhosa. Se havia alguém que servisse de exemplo para mostrar como Cristo pode mudar a vida de um ser humano, esse alguém era Chloe. Rayford gostaria de lhe dizer isso, e o jantar era uma forma de expressar seus sentimentos. Teria sido mais fácil comprar alguma coisa para ela ou convidá-la para jantar fora, mas Rayford queria oferecer-lhe algo feito por ele.
Passou uma hora na mercearia e mais uma hora e meia na cozinha para deixar tudo pronto antes da chegada da filha. Sentiu uma certa identificação com Irene, lembrando-se de sua expressão de expectativa quase todas as noites antes de servir o jantar. Talvez ele tivesse agradecido e elogiado a esposa o suficiente. Mas somente agora compreendia que ela se esforçava para agradá-lo com o mesmo amor e devoção que ele sentia por Chloe.
Rayford nunca se dera conta disso, e suas insignificantes tentativas de elogiá-la devem ter sido feitas com muita negligência. Agora não havia mais condições de se explicar com Irene, a não ser no reino eterno, tendo Chloe a seu lado.
Buck desligou o telefone depois de conversar com Stanton Bailey e Jim Borland, perguntando a si mesmo por que não aceitava a proposta de Carpathia para dirigir o Chicago Tribune e encerrava o assunto. Tinha convencido ambos de que estava sendo sincero e finalmente conseguiu uma aprovação de má vontade da parte do velho, porém estava em dúvida se valia a pena ficar em situação inferiorizada novamente. Seu objetivo era compilar as reportagens religiosas da melhor maneira possível de modo que Borland aprendesse como deveria realizar seu trabalho e Bailey tivesse uma noção do que era um editor-executivo.
Buck não queria aquele cargo e mantinha a mesma opinião quando ele lhe foi oferecido por ocasião da saída de Steve Plank. Porém, esperava que Bailey encontrasse alguém que gostasse de trabalhar ali.
Digitou algumas anotações em seu computador, fazendo um resumo das incumbências que assumira na negociação com Jimmy Borland. Ele havia feito as mesmas suposições iniciais que Borland fizera sobre todas as notícias que estavam pipocando. Mas isso aconteceu antes de ter estudado as profecias, antes de saber em que lugar Nicolae Carpathia se enquadrava na história.
Agora Buck esperava que todos esses fatos acontecessem ao mesmo tempo. Naquele momento, era provável que ele estivesse trabalhando diretamente nos acontecimentos relativos ao cumprimento das profecias de séculos e séculos atrás. Quer fossem reportagens de capa ou não, esses acontecimentos causariam tanto impacto no curto período que ainda restava na história da humanidade quanto o tratado com Israel.
Buck telefonou para Steve Plank. "Você já tem uma resposta?" indagou Steve. "Alguma notícia que eu possa dar ao secretário-geral?"
"É assim que você o chama?" perguntou Buck, atônito. "Não pode chamá-lo pelo nome?"
"Preferi assim. É uma questão de respeito, Buck. Até Hattie chama-o de 'Sr. Secretário-Geral' e, segundo sei, os dois estão sempre juntos tanto no trabalho como fora dele."
"Não seja fofoqueiro. Fui eu que apresentei um ao outro."
"Você se arrepende? Apresentou ao líder mundial uma pessoa a quem ele adora e mudou a vida de Hattie para sempre."
"É disso que receio", disse Buck, percebendo que estava muito perto de revelar seus verdadeiros sentimentos a um confidente de Carpathia.
"Ela era uma pessoa totalmente desconhecida, Buck, e agora está em evidência na história." Aquilo não era o que Buck desejava ouvir, mas ele também não estava planejando dizer a Steve o que desejava ouvir. "Então, qual é o assunto, Buck?"
"Ainda não me decidi", respondeu Buck. "Você sabe qual é a minha posição."
"Não compreendo você, Buck. Onde está o problema? O que poderá não dar certo? É tudo o que você sempre quis."
"Sou um jornalista, Steve, e não um relações-públicas."
"É assim que você se refere a mim?"
"É o que você é, Steve. Não o culpo por isso, mas não finja ser o que não é."
Steve sentiu-se claramente ofendido por Buck. "Ah, sim, bem, que assim seja", disse ele. "Você me telefonou, o que deseja?"
Buck contou-lhe a respeito do acordo feito com Borland.
"Foi um grande erro", disse Steve, ainda zangado. "Você há de se lembrar que nunca o escalei para uma reportagem de capa."
"Esta não deveria ser uma reportagem de capa. As outras matérias, as que ele está me passando, essas sim são importantes."
Steve levantou a voz. "Esta seria a reportagem de capa mais importante que você teve nas mãos! Será o evento de maior cobertura jornalística da história."
"Você me diz isso e fala que não é um relações-públicas?"
"Por quê? O quê?"
"A ONU assina um tratado de paz com Israel e você acha que esse evento é mais importante do que os desaparecimentos de bilhões de pessoas no mundo inteiro?"
"Bem, sim, acho. Claro."
"'Bem, sim, acho. Claro'", arremedou Buck. "Pelo amor de Deus, Steve. A notícia é o tratado, não a cerimônia. Você sabe disso."
"Então você não irá?"
"Claro que irei, mas não junto com vocês."
"Você não quer viajar no novo Air Force One1."
"O quê?"
"Vamos, Senhor Jornalista Internacional. Mantenha-se informado, homem."
Rayford aguardava ansiosamente a chegada de Chloe da mesma forma que aguardava a reunião do núcleo naquela noite. Chloe lhe havia dito que Buck não queria aceitar o emprego oferecido por Carpathia tanto quando ele, Rayford, não queria aceitar o emprego na Casa Branca. Mas ninguém ouvira ainda a opinião de Bruce. Às vezes ele tinha um modo diferente de analisar a situação e quase sempre suas opiniões eram sensatas. Rayford não conseguia imaginar de que maneira essas mudanças poderiam enquadrar-se em suas vidas de recém-convertidos, mas estava ansioso para conversar e orar sobre o assunto. Olhou para seu relógio. O jantar estaria pronto em meia hora, exatamente quando Chloe disse que chegaria.
"Não", disse Buck, "não quero viajar até lá no Air Force One, seja ele novo ou velho. Agradeço o convite para fazer parte da delegação. Mantenho minha palavra de sentar à mesa na ocasião da assinatura, mas até mesmo Bailey concorda que devo viajar por conta do Semanário Global."
"Você contou a Bailey sobre nossa proposta?!"
"Não sobre a proposta de emprego, evidentemente. Mas sobre viajar com a delegação, sim."
"Por que você acha que sua viagem a Nova York foi tão sigilosa, Buck? Acha que queríamos que o Semanário soubesse?"
"Imaginei que vocês não queriam que ele soubesse que me ofereceram um emprego, e não lhe contei isso. Mas como eu lhe explicaria o fato de estar em Israel por ocasião da assinatura?"
"Esperávamos que você não se importasse que o seu então ex-chefe soubesse."
"Não faça suposições, Steve", disse Buck.
"Nem você, Buck."
"Como assim?"
"Não pense que essa excelente proposta vai ficar à sua disposição sobre a mesa se você fizer pouco caso como fez da última vez."
"Então o emprego está ligado à minha viagem como relações públicas?"
"Se é assim que você entende."
"A idéia não me agrada, Steve."
"Sabe, Buck, não tenho certeza se nesta altura dos acontecimentos você é o homem talhado para política e jornalismo."
"Concordo que isso é querer me rebaixar mais ainda."
"Não foi minha intenção. De qualquer forma, você se lembra das previsões de seu chefão sobre a nova moeda mundial? Que tal coisa nunca aconteceria? Assista ao noticiário de amanhã, companheiro. E lembre-se que foi obra de Nicolau Carpathia, diplomacia nos bastidores."
Buck já conhecia a suposta diplomacia de Carpathia. Com essa mesma diplomacia ele conseguira que o presidente dos Estados Unidos lhe cedesse um 757 novinho em folha, isso sem mencionar as testemunhas de um assassinato que acreditaram ser suicídio.
Estava na hora de falar de sua viagem a Bruce.
"Rayford, você pode vir até aqui?" "Quando, Earl?"
"Já. Grandes novidades sobre o novo Air Force One. Você ouviu?"
"Sim, estão em todos os noticiários."
"É só me dar a sua palavra e estará voando naquele avião para Israel tendo Nicolae Carpathia a bordo."
"Ainda não estou preparado para me decidir."
"Ray, preciso de você aqui. Você vem ou não?"
"Hoje não, Earl. Estou no meio de uma tarefa neste momento e pretendo encontrar com você amanhã."
"O que há de tão importante nessa tarefa?"
"É assunto pessoal."
"O quê! Não me diga que arrumou um emprego de cozinheiro!"
"Estou cozinhando, mas não é um emprego. Estou preparando o jantar para minha filha."
Rayford não ouviu mais nenhuma palavra do outro lado da linha durante alguns instantes. Finalmente: "Rayford, sou totalmente a favor de dar prioridade à família. Só Deus sabe quantos dos nossos pilotos são mal casados e têm problemas com os filhos. Mas sua filha..."
"Chloe."
"Certo, ela tem idade para estar na faculdade, certo? Ela compreenderia, não é mesmo? Não poderia retardar o jantar com o papai por algumas horas, sabendo que ele está prestes a conseguir o melhor emprego de piloto do mundo?"
"Conversaremos amanhã, Earl. Vou para Baltimore no final da manhã e retornarei no final da tarde. Poderei me encontrar com você antes de partir."
"Nove horas?"
"Ótimo."
"Rayford, preciso alertá-lo: os outros sujeitos daquela pequena lista devem estar babando por causa desse emprego. Aposto que estão recorrendo aos seus conhecidos, pedindo apoio, tentando descobrir quem tem mais influência, essas coisas."
"Ótimo. Talvez um deles consiga e não vou ter de me preocupar mais com isso."
Earl Halliday parecia agitado. "Agora, Rayford...", ele começou a falar, mas Rayford o interrompeu.
"Earl, é melhor você e eu não perdermos tempo agora. Vamos conversar amanhã cedo. Você já sabe minha resposta e só não lhe confirmei ainda porque você me pediu para aguardar até amanhã em nome de nossa amizade. Estou pensando no assunto, orando por ele e conversando com pessoas que me dizem respeito. Não vou me atormentar nem me envergonhar de minha atitude. Se eu recusar um emprego que todos querem, e depois vier a me arrepender, será problema meu."
Buck estava entrando no estacionamento da Igreja Nova Esperança no momento em que Chloe saía. Eles emparelharam os carros e baixaram os vidros. "Oi, garotinha", disse Buck, "você sabe alguma coisa sobre esta igreja?"
Chloe sorriu. "Só sei que lota todos os domingos."
"Ótimo, vou começar a freqüentá-la. Então, aceitou o emprego?"
"Eu deveria lhe fazer a mesma pergunta."
"Eu já tenho um emprego."
"Parece que também já tenho um", ela disse. "Aprendi mais hoje do que durante um ano inteiro na faculdade."
"Como você agiu com Bruce? Quero dizer, contou-lhe que já sabe que foi ele quem enviou as flores?"
Chloe olhou por cima dos ombros, receando que Bruce pudesse ouvir. "Vou contar tudo a você", ela disse. "Quando tivermos tempo."
"Pelo cheiro, é o que estou pensando?" disse Chloe entusiasmada, vindo da garagem. "Camarões ao molho?" Entrou na cozinha e deu um beijo no pai. "Meu prato predileto! Quem são os convidados?"
"A convidada de honra acaba de chegar", ele disse. "Você prefere fazer a refeição na sala de jantar? Poderemos levar tudo para lá rapidamente."
"Não, aqui está ótimo. Qual é o motivo?"
"Seu novo emprego. Fale-me dele."
"Papai! O que deu em você?"
"Liberei o meu lado feminino", ele disse.
"Ora, por favor!" ela suspirou. "Tudo menos isso!"
Durante o jantar ela contou ao pai o serviço que Bruce lhe passara e todas as pesquisas e estudos que já havia feito.
"Então, é isso que você vai fazer?"
"Aprender, estudar e ganhar dinheiro? Acho que é uma tarefa fácil, papai."
"E sobre Bruce?"
Ela fez um movimento afirmativo com a cabeça. "E sobre Bruce?"
Enquanto Rayford e Chloe lavavam a louça do jantar, ele ouviu o relato da filha sobre seu embaraçoso encontro com Bruce. "Então quer dizer que ele não confessou ter enviado as flores?"
"Foi muito estranho, papai", ela disse. "Tentei várias vezes puxar o assunto da solidão e do quanto nós quatro necessitávamos um do outro, mas ele pareceu não captar a mensagem. Depois de concordar que todos nós estávamos carentes, ele sempre voltava ao assunto do estudo ou de outra coisa que desejava que eu examinasse. Finalmente eu falei que estava curiosa acerca dos relacionamentos amorosos durante este período da história, e ele disse que abordaria o assunto hoje à noite. Disse também que outras pessoas o haviam procurado recentemente para falar deste mesmo assunto e, como ele também tinha algumas dúvidas, resolveu aprofundar-se no estudo."
"Talvez ele esclareça tudo esta noite."
"Não é uma questão de esclarecer, papai. Não acho que Bruce vai confessar diante de você e de Buck que foi ele quem enviou as flores. Talvez possamos ler nas entrelinhas e descobrir por que ele fez isso."
Buck ainda estava no escritório de Bruce quando Rayford e Chloe chegaram. Bruce iniciou a reunião da Força Tribulação naquela noite, pedindo a permissão do grupo para contar o que estava acontecendo na vida de cada um deles. Todos concordaram.
Depois de resumir as propostas recebidas por Buck e Rayford, Bruce disse que precisava confessar que não se sentia à altura de ser o pastor de uma igreja de crentes recém-convertidos. "Eu ainda me sinto envergonhado todos os dias. Sei que fui perdoado e redimido, porém viver uma vida de mentiras durante trinta anos é desgastante demais para qualquer pessoa. Apesar de Deus ter dito que nossos pecados estão afastados dele assim como o Oriente está distante do Ocidente, para mim é difícil esquecer." Bruce também admitiu sua solidão e fadiga. "Principalmente", prosseguiu ele, "quando penso nessa tarefa de viajar para tentar unir os pequenos focos que a Bíblia chama de 'santos da tribulação'."
Buck desejava ir direto ao assunto e perguntar por que ele não havia assinado o cartão das flores de Chloe, mas achou que não seria conveniente. Bruce passou, então, a falar das novas oportunidades de trabalho recebidas por Rayford e Buck. "Talvez minha opinião escandalize a todos vocês por eu não ter-me manifestado até o momento, mas acho que vocês dois, Buck e Rayford, deveriam pensar seriamente em aceitar essas propostas."
Essas palavras causaram grande alvoroço nos participantes da reunião. Foi a primeira vez que os quatro falaram com tanta firmeza sobre seus assuntos pessoais. Buck mantinha a opinião de que jamais seria capaz de viver em paz consigo mesmo se abrisse mão de seus princípios jornalísticos, passando a manipular as notícias e ser manipulado por Carpathia. Ele tinha a impressão de que Rayford ainda não se deixara influenciar pela proposta, mas concordava com Bruce que o amigo deveria estudá-la.
"Rayford", disse Buck, "o fato de você não estar ansioso por aceitar é um bom sinal. Se estivesse ansioso depois de saber tudo o que sabe agora, estaríamos todos preocupados com você. Mas pense na oportunidade de ficar perto dos corredores do poder."
"Qual seria a vantagem?" perguntou Rayford.
"Talvez pouca no âmbito pessoal", respondeu Buck, "a não ser pela remuneração. Mas será que essa aproximação com o presidente não seria uma grande vantagem para todos nós?"
Rayford disse a Buck que considerava um erro pensar que o piloto oficial da Casa Branca tem a oportunidade de estar mais bem informado sobre a vida do presidente do que qualquer outra pessoa que leia os jornais diariamente.
"Talvez isso se aplique à situação do momento", disse Buck. "Mas se Carpathia adquirir os principais órgãos de imprensa, alguém que trabalhe próximo do presidente será um dos poucos a saber o que realmente acontece."
"Uma razão a mais para você trabalhar para Carpathia", disse Rayford.
"Talvez eu devesse aceitar o seu emprego e você o meu", disse Buck, provocando risos.
"Vejam só o que está acontecendo aqui", disse Bruce. "Nós quatro enxergamos a situação alheia com mais clareza e mais objetividade do que enxergamos a nossa própria situação.”
Rayford deu uma risadinha. "Você está dizendo que Buck e eu estamos sendo contraditórios."
Bruce sorriu. "Talvez. É possível que Deus tenha colocado essas coisas no caminho de vocês só para testar seus objetivos e o quanto são leais a ele, mas elas parecem grandes demais para serem desprezadas."
Buck perguntou a si mesmo se Rayford se sentia tão indeciso quanto ele. Antes, estava plenamente convicto de que jamais aceitaria a proposta de Carpathia. Agora, não sabia o que pensar. Chloe rompeu o silêncio. "Acho que vocês dois deveriam aceitar os empregos."
Buck achou estranho Chloe ter aguardado os quatro se reunirem para se pronunciar, e era evidente que seu pai pensava o mesmo. "Você disse antes que eu deveria pensar no assunto, Chio", disse Rayford, "e agora tem certeza de que devo aceitar?"
Chloe assentiu com a cabeça. "Não por causa do presidente. Por causa de Carpathia. Se Carpathia for o que estamos pensando, e isso nós quatro já sabemos, em breve ele será mais poderoso do que o presidente dos Estados Unidos. Pelo menos um de vocês deverá estar perto dele sempre que possível."
"Eu estive perto dele uma vez", disse Buck, "e foi o suficiente."
"Acho que vocês dois estão preocupados com sua própria segurança e equilíbrio mental", pressionou Chloe. "Sei o quanto aquela cena foi horrível para você, Buck. Mas se não houver alguém firme por perto, Carpathia vai ludibriar todo mundo."
"Mas assim que eu abrir a boca para dizer o que realmente está acontecendo", disse Buck, "serei eliminado."
"Talvez. Mas talvez Deus o proteja. Talvez vocês dois venham a ter condições de nos dizer o que está acontecendo para que possamos transmitir aos crentes."
"Eu teria de abandonar todos os meus princípios jornalísticos."
"E esses princípios são mais sagrados do que suas responsabilidades para com seus irmãos e irmãs em Cristo?"
Buck não sabia como responder. Essa era uma das características da personalidade de Chloe que ele tanto admirava. Porém, a independência e a integridade sempre estiveram tão enraizadas dentro de si desde o início de sua carreira jornalística que Buck não conseguia sequer pensar em fingir ser o que não era. A idéia de ocupar o cargo de editor e, ao mesmo tempo, fazer parte da folha de pagamento de Carpathia não lhe passava pela cabeça.
Bruce virou-se subitamente e passou a concentrar-se em Rayford. Buck ficou satisfeito por deixar de ser o foco das atenções, mas entendia como Rayford se sentia. "Acho que sua decisão é mais fácil de ser tomada, Rayford", disse Bruce. "Basta impor algumas condições, como, por exemplo, morar aqui desde que isso seja importante para você, e pôr à prova a seriedade deles."
Rayford estava confuso. Olhou para Buck. "Se colocássemos o assunto em votação, seriam três contra um?"
"Eu poderia perguntar o mesmo", disse Buck. "Aparentemente somos os únicos a achar que não devemos aceitar esses empregos."
"Talvez você deva", disse Rayford, em tom de brincadeira.
Buck riu. "Estou propenso a pensar que devo ter sido cego, ou pelo menos míope."
Rayford disse que também não sabia o que ele próprio estava propenso a pensar. Bruce sugeriu que todos se ajoelhassem para orar... algo que eles costumavam fazer reservadamente, mas não em grupo. Bruce empurrou sua cadeira para o outro lado da escrivaninha e os quatro ajoelharam-se. Rayford sempre se comoveu ao ouvir outras pessoas orando. Desejava que Deus lhe dissesse de forma audível o que deveria ser feito, mas quando ele orou, simplesmente pediu a Deus que esclarecesse a mente de todos.
Enquanto permanecia ajoelhado, Rayford se deu conta de que precisava submeter-se à vontade de Deus... novamente. Aparentemente essa deveria ser uma atitude diária, despojar-se de todas as coisas pessoais, racionais e mesquinhas às quais ele se apegava.
Rayford sentia-se tão insignificante, tão imperfeito diante de Deus que desejava render-se a ele de maneira mais submissa ainda. Curvou-se mais um pouco, apoiou as mãos no chão, encostou o queixo no peito, e mesmo assim continuava a sentir-se arrogante, em evidência. Bruce estava orando em voz alta, mas parou repentinamente. Ao perceber que ele chorava em silêncio, Rayford sentiu um nó na garganta. Apesar de sentir falta de Irene e Raymie, ele estava profundamente grato por Chloe, por sua própria salvação e por seus amigos.
Ajoelhado diante de sua cadeira, com o rosto enterrado nas mãos, Rayford orava silenciosamente. Obedeceria à vontade de Deus, mesmo que não fizesse sentido do ponto de vista humano. A sensação opressiva de ser uma criatura indigna parecia aniquilá-lo e ele prostrou-se no chão sobre o carpete. Por um breve instante veio-lhe à mente a posição ridícula em que se encontrava, mas afastou rapidamente esse pensamento. Ninguém estava olhando nem prestando atenção. E se alguém viesse a pensar que aquele orgulhoso piloto havia perdido o juízo, estaria certo.
Rayford esticou seu longo corpo no chão, enterrando o rosto nas palmas das mãos sobre o áspero carpete. De vez em quando um deles orava alto por alguns instantes, e
Rayford percebeu que todos estavam com o rosto encostado no chão.
Rayford perdeu a noção do tempo. Sabia apenas vagamente que haviam se passado alguns minutos sem que ninguém dissesse nada. Ele nunca sentira antes a presença de Deus de forma tão real. Essa era a verdadeira sensação de pisar em solo sagrado, a mesma que Moisés deve ter sentido quando Deus lhe pediu que tirasse as sandálias dos pés. Rayford desejava afundar-se ainda mais no carpete, poder cavar um buraco no chão e ocultar-se da pureza e poder infinito de Deus.
Ele não tinha certeza de quanto tempo permaneceu ali orando, ouvindo. Depois de alguns instantes, ouviu Bruce levantar-se e sentar-se, cantarolando um hino. Em seguida, os outros três começaram a cantar em voz baixa e voltaram a sentar-se. Todos tinham os olhos banhados em lágrimas. Finalmente Bruce falou.
"Tivemos uma experiência muito rara", ele disse. "Acho que precisamos selar esse acontecimento com uma renovação de compromisso com Deus e com cada um de nós. Se houver algo entre nós que necessite ser confessado ou perdoado, não devemos sair daqui sem fazer isso. Chloe, ontem à noite você abordou alguns assuntos importantes, sem deixar claro o que pretendia."
Rayford olhou de relance para Chloe. "Peço desculpas", ela disse. "Foi um mal-entendido. Já está esclarecido."
"Não vamos precisar de uma reunião para discutir a pureza sexual durante a Tribulação?"
Ela sorriu. "Não, acho que o assunto está bastante claro para todos nós. No entanto, há uma coisa que eu gostaria de esclarecer e lamento fazer esta pergunta diante de todos..."
"Não há problema", disse Bruce. "Faça."
"Bem, recebi flores de um anônimo e gostaria de saber se esse gesto partiu de alguém desta sala."
Bruce olhou ao redor. "Buck?"
"Não", respondeu ele, com um leve sorriso. "Já fui castigado por ser considerado suspeito."
Em seguida, Bruce olhou para Rayford, que apenas sorriu balançando negativamente a cabeça.
"Então só restei eu", disse Bruce.
"Você?" perguntou Chloe.
"Você limitou suas suspeitas às pessoas que estão aqui nesta sala, não foi?"
Chloe fez um movimento afirmativo com a cabeça.
"Acho que você deverá ampliar a lista de suspeitos", disse Bruce, corando. "Não fui eu, mas sinto-me lisonjeado por ser um deles. Gostaria de ter tido essa idéia."
A surpresa de Rayford e Chloe deve ter-se evidenciado, porque Bruce imediatamente passou a dar explicações. "Oh, não é o que vocês estão pensando", disse Bruce. "Acontece que... bem, acho que enviar flores é um gesto maravilhoso e espero que você tenha gostado de recebê-las, Chloe, não importa de quem tenham partido."
Bruce pareceu aliviado ao mudar de assunto e voltar ao tema principal da reunião. Pediu que Chloe falasse de suas pesquisas naquele dia. Às dez horas, quando todos já estavam prontos para partir, Buck virou-se para Rayford. "Por mais maravilhosos que tenham sido estes momentos de oração, não recebi nenhuma orientação direta sobre o que fazer."
"Nem eu."
"Só vocês não receberam", disse Bruce olhando de relance para Chloe, que concordou com um movimento de cabeça. "Ficou claro para nós o que vocês devem fazer. E ficou claro para cada um de vocês o que o outro deve fazer. Mas ninguém poderá tomar decisões por vocês."
Buck acompanhou Chloe até a saída da igreja.
"Foi uma maravilha", ela disse.
Ele assentiu. "Não sei o que seria de mim sem aqueles dois."
"Aqueles dois?" Ela sorriu. "Você não deveria ter dito sem vocês?"
"Como eu poderia dizer isso a alguém que tem um admirador secreto?"
Ela piscou para ele. "Talvez você saiba melhor que eu."
"Falando sério, quem você acha que é?"
"Nem sei por onde começar."
"Há tantas possibilidades assim?"
"Poucas. Para falar a verdade, nenhuma."
Rayford estava começando a imaginar que Hattie Durham tinha algo a ver com as flores de Chloe, mas não queria mencionar essa desconfiança à filha. Que espécie de idéia maluca teria passado pela mente de Hattie para maquinar tal coisa? Seria outro de seus trotes?
Na manhã de quarta-feira, Rayford teve a surpresa de ver o presidente da Pan-Con, Leonard Gustafson, no escritório de Earl em O'Hare. Já se encontrara com ele duas vezes. Quando desceu do elevador no piso inferior, Rayford deveria ter imaginado que havia algo anormal. O lugar parecia diferente. Mesas bem arrumadas, funcionários atarefados, gravatas com laços impecáveis e nenhum sinal de desorganização. As pessoas lançavam olhares inquiridores enquanto Rayford caminhava em direção ao escritório de Earl.
Gustafson, um ex-militar, era mais baixo que Rayford e mais magro que Earl, mas sua presença ali parecia tomar conta do pequeno escritório de Earl. Havia uma cadeira extra na sala. Quando Rayford entrou, Gustafson levantou-se rapidamente, com a capa de uniforme ainda pendurada no braço, e cumprimentou-o efusivamente.
"Steele, como vai você, homem?" ele disse, apontando uma cadeira como se estivesse em seu próprio escritório. "Precisei vir a Chicago hoje para tratar de outro assunto, e quando soube que você tinha um encontro com Earl, bem... quis passar por aqui para felicitá-lo e liberá-lo e desejar-lhe muito sucesso."
"Liberar-me?"
"Bem, não para demiti-lo, é claro, mas para deixá-lo à vontade. Fique tranqüilo porque não haverá nenhum ressentimento de nossa parte. Você teve uma carreira extraordinária, ou melhor, brilhante na Pan-Con. Sentiremos sua falta e estamos orgulhosos de você."
"A notícia já foi liberada oficialmente?" indagou Rayford.
Gustafson deu uma sonora gargalhada. "A notícia poderá ser liberada imediatamente e fazemos questão de divulgá-la. Isso será motivo de orgulho para você tanto quanto para nós. Você é dos nossos e a partir de agora será dele. Você nem está acreditando, não?"
"Os outros candidatos foram eliminados?"
"Não, mas temos informações confidenciais de que o emprego é seu, se você quiser."
"Como foi possível? Houve troca de favores?"
"Não, Rayford, trata-se de uma coisa meio maluca. Você deve ter amigos influentes."
"Para ser franco, não. Não tive nenhum contato com o presidente e não conheço nenhum de seus assessores."
"Aparentemente você foi recomendado pelo pessoal de Carpathia. Você o conhece?"
"Nunca o vi."
"Conhece alguém que o conheça?"
"A bem da verdade, conheço", murmurou Rayford.
"Você deu a cartada na hora certa", disse Gustafson, dando uma leve palmada no ombro de Rayford. "Você é perfeito para a função, Steele. Estaremos torcendo por você."
"Então não posso recusar, se quiser?"
Gustafson sentou-se, com o corpo inclinado para frente e os cotovelos apoiados nos joelhos. "Earl me contou que você estava apreensivo. Não cometa o maior erro de sua vida, Rayford. Você quer esse emprego. Sabe que quer. Ele está em suas mãos. Agarre-o. Eu o agarraria. Earl o agarraria. Qualquer outra pessoa da lista daria tudo por ele."
"E tarde demais para eu cometer o maior erro de minha vida", disse Rayford.
"Como é que é?" perguntou Gustafson, mas Rayford viu Earl tocar no braço dele, como se o estivesse lembrando de que estava lidando com um fanático religioso que acreditava ter perdido a oportunidade de ir para o céu. "Ah, sim, entendi. Eu quis perguntar desde quando é tarde demais", emendou Gustafson.
"Sr. Gustafson, como é possível Nicolae Carpathia determinar ao presidente quem deve ser o piloto de seu avião?"
"Não sei! E daí? Política é política, seja ela da parte dos democratas ou republicanos, como acontece neste país, ou da parte dos trabalhistas ou bolcheviques em outro lugar qualquer."
Rayford não gostou muito da analogia, mas não podia discutir sua lógica. "Então alguém está fazendo negociatas e eu sou apenas o instrumento."
"Não é o que acontece com todos nós?" disse Gustafson. "Mas todos amam Carpathia. Ele parece estar acima da política. Se eu tivesse o poder de adivinhar, diria que o presidente está lhe cedendo o novo 757 só porque gosta dele."
Ah, sim, pensou Rayford, e eu sou o coelhinho da Páscoa.
"Então, vai aceitar o emprego?"
"Nunca fui pressionado a aceitar um emprego."
"Você não está sendo pressionado, Rayford. Gostamos muito de você. Apenas não teríamos como justificar por que um de nossos melhores pilotos recusou o melhor emprego do mundo."
"E sobre meu prontuário? Houve o registro de uma queixa contra mim."
Gustafson deu um sorriso de compreensão. "Uma queixa? Não ouvi falar de queixa nenhuma. Você ouviu, Earl?"
"Nada chegou à minha mesa, senhor", ele disse. "E se tivesse chegado, teria sido encaminhada imediatamente."
"A propósito, Rayford", disse Gustafson, "você conhece bem Nicholas Edwards?"
Rayford fez um movimento afirmativo com a cabeça.
"Ele é seu amigo?"
"Foi meu primeiro-piloto duas vezes. Gostaria de pensar que somos amigos."
"Você soube que ele foi promovido a capitão?"
Rayford balançou negativamente a cabeça. Política, ele pensou, carrancudo.
"Bom, não?" disse Gustafson.
"Muito bom", disse Rayford, com a cabeça rodando.
"Há outra coisa atrapalhando seu caminho?" perguntou Gustafson.
Rayford percebeu que suas desculpas estavam acabando. "No mínimo eu teria de permanecer aqui em Chicago, e mesmo assim não estou afirmando que vou aceitar o emprego."
Gustafson fez um trejeito com a boca e balançou a cabeça. "Earl já me contou isso. Não compreendo. Achei que você gostaria de estar longe daqui, longe das lembranças de sua mulher e de sua filha."
"Filho."
"Sim, o que estava na faculdade."
Rayford não o corrigiu, mas viu Earl estremecer levemente.
"De qualquer forma", disse Gustafson, "você poderia afastar sua filha de quem a esteja perseguindo e..."
"Como?"
"...e arrumar um bom lugar para morar nos arredores de Washington."
"Perseguindo?"
"Bem, talvez isso não seja tão evidente ainda, Rayford, mas com certeza eu não ia gostar que minha filha recebesse presentes anônimos de quem quer que fosse."
"Mas como o senhor...?"
"Rayford, você nunca se perdoaria se algo acontecesse à sua filha se tivesse a oportunidade de afastá-la de quem a esteja ameaçando."
"Minha filha não está sendo perseguida nem ameaçada! Do que o senhor está falando?"
"Estou falando das rosas ou de um buquê de flores. O que está por trás disso?"
"É o que eu gostaria de saber. Até onde sei, apenas três pessoas, além da que enviou as flores, sabe disso. Como o senhor descobriu?"
"Não me lembro. Alguém já mencionou que às vezes uma pessoa tem um bom motivo para sair de onde está da mesma forma que tem um bom motivo para aceitar uma nova oportunidade."
"Mas se o senhor não estiver me pressionando, não terei nenhum motivo para sair de onde estou."
"Nem mesmo se sua filha estiver sendo seguida por alguém?"
"Qualquer um que queira seguir minha filha poderá encontrá-la tanto em Washington quanto aqui com a mesma facilidade", disse Rayford.
"Mas ainda..."
"Não me agrada a idéia de que o senhor esteja sabendo disso."
"Não recuse um emprego que vale uma vida inteira só por causa de um mistério insignificante."
"Não é insignificante para mim."
"Gustafson levantou-se. "Não estou acostumado a implorar para que façam o que peço."
"Então, se eu não aceitar o emprego, estarei liquidado na Pan-Con?"
"Deveria estar, mas acho que teríamos de enfrentar um processo de sua parte depois de termos incentivado você a aceitar o emprego de piloto do presidente."
Rayford não tinha nenhuma intenção de dar entrada em um processo, mas permaneceu calado.
Gustafson sentou-se novamente. "Faça-me um favor", ele disse. "Vá até Washington. Converse com algumas pessoas, principalmente com os assessores do presidente. Diga-lhes que concorda em pilotar o avião que voará até Israel para a assinatura do tratado de paz. Depois decida o que fazer. Você me faria esse favor?"
Rayford sabia que Gustafson jamais lhe diria quem o informou a respeito das flores de Chloe e achou que o melhor seria perguntar a Hattie. "Sim", respondeu ele. "Farei isso."
"Ótimo!" disse Gustafson, cumprimentando Rayford e Earl. "Penso que já percorremos metade do caminho. Earl, providencie para que o vôo de hoje de Rayford para Baltimore seja o último antes de sua viagem a Israel. Ou melhor, como Rayford estará bem perto de Washington, arrume outro piloto para trazer o avião de volta de modo que ele possa encontrar-se com o pessoal da Casa Branca ainda hoje. Você pode providenciar isso?"
"Já está providenciado, senhor."
"Earl", disse Gustafson, "se você fosse dez anos mais novo, seria o homem ideal para esse emprego."
Rayford percebeu uma expressão de mágoa no rosto de Earl. Gustafson não sabia o quanto Halliday havia desejado aquela posição. No caminho para tomar o avião, Rayford verificou sua caixa de correspondência. Entre outros pacotes e memorandos internos havia um bilhete. Dizia simplesmente o seguinte: "Obrigado por seu aval à minha recente promoção. Agradeço muito. E boa sorte a você. Capitão Nicholas Edwards."
Algumas horas depois, quando saía da cabina de piloto de seu 747 em Baltimore, Rayford deparou com um funcionário da Pan-Con que lhe entregou as credenciais para entrar na Casa Branca. Assim que lá chegou, passou com facilidade pelo portão. Um segurança cumprimentou-o pelo nome e desejou-lhe boa sorte. Quando finalmente chegou ao escritório de um assistente do chefe de gabinete, Rayford deixou claro que concordava apenas em ser o piloto do avião que voaria para Israel na segunda-feira da semana seguinte.
"Muito bem", disse o assistente. "Já começamos a providenciar a checagem de suas referências e atestado de idoneidade, a investigação no FBI e a entrevista com o Serviço Secreto. Como esse processo é um pouco demorado, por ora o senhor poderá demonstrar suas aptidões para nós e para o presidente, sem ser responsável por ele, até que as investigações sobre sua vida sejam finalizadas.”
"Então, os senhores estão me autorizando a transportar o secretário-geral da ONU com menos burocracia do que necessitam para o presidente?"
"Exatamente. De qualquer forma, o senhor já foi aprovado pela ONU."
"Fui?"
"Foi."
"Por quem?"
"Pelo próprio secretário-geral.”.
Buck estava falando ao telefone com Marge Potter, do Semanário Global em Nova York, quando tomou conhecimento da notícia. O mundo inteiro passaria a usar o dólar como moeda corrente dentro de um ano. O plano seria iniciado e dirigido pela Organização das Nações Unidas, sendo que um décimo do imposto de um por cento sobre cada dólar seria revertido à ONU.
"Parece razoável, não?" perguntou Marge.
"Pergunte ao editor financeiro, Marge", disse Buck. "A arrecadação será de montanhas de dinheiro por ano."
"E o que representa isto?"
"Mais do você e eu somos capazes de contar", disse Buck, com um suspiro. "Você ficou de fazer alguns contatos, Marge, a respeito de encontrar alguém que pudesse ajudar a organizar as entrevistas sobre religião."
Ele percebeu que Marge mexia em papéis sobre a mesa. "O pessoal ligado à religião universal está aqui em Nova York", ela disse. "Eles irão embora na sexta-feira, mas poucos seguirão para Israel. Tentaremos entrar em contato com aqueles dois malucos do Muro das Lamentações, mas os entendidos daqui aconselham a não contarmos com isso."
"Vou aproveitar as oportunidades."
"E para onde você quer que seus restos mortais sejam enviados?"
"Vou sobreviver."
"Ninguém conseguiu."
"Não vou ameaçá-los, Marge. Vou ajudá-los a divulgar a mensagem deles."
"Se é que eles têm."
"Você entende por que precisamos fazer uma reportagem sobre eles."
"A vida é sua, Buck."
"Obrigado."
"E quando você estiver por aqui, será conveniente ter um encontro com o cardeal Mathews. Ele está viajando constantemente de Nova York até a arquidiocese de Cincinnati para participar das reuniões da religião universal. Em seguida, irá para o Vaticano para a eleição do papa, logo após a assinatura do tratado na próxima segunda-feira."
"Ele estará em Jerusalém?"
"Ah, sim. Se o cardeal Mathews for eleito o novo papa, há rumores de que ele fará alguns contatos em Jerusalém para erigir ali um santuário ou coisa parecida. Mas os católicos jamais deixarão o Vaticano, não?"
"Nunca se sabe, Marge."
"Bem, isso é verdade. Mal tenho tempo para pensar nessas coisas porque estou sempre trabalhando para você e para todo o pessoal daqui que não consegue andar com as próprias pernas."
"Você é excelente, Marge."
"A bajulação vai atrapalhar você."
"Atrapalhar no quê?"
"Sei lá, vai atrapalhar."
"E quanto ao assunto do rabino?"
"O rabino recusa-se a dar qualquer entrevista antes de apresentar os resultados de sua pesquisa."
"E quando vai ser isso?"
"Fiquei sabendo hoje que a CNN lhe está concedendo uma hora ininterrupta em sua comunicação internacional via satélite. Os judeus do mundo inteiro poderão ver o programa ao mesmo tempo, mas evidentemente alguns terão de acordar no meio da noite."
"E esse programa, quando será?"
"Na segunda-feira à tarde, após a assinatura do tratado, que será às dez da manhã, horário de Jerusalém. O pronunciamento do rabino Ben-Judá irá ao ar durante uma hora, a partir das duas da tarde."
"Um plano muito astuto. O programa irá ao ar exatamente quando a nata da imprensa mundial estiver em Jerusalém."
"Todos aqueles religiosos são astutos, Buck. O indivíduo que provavelmente será o novo papa estará presente por ocasião da assinatura do tratado, fazendo média com os israelitas. O rabino se considera tão importante que a assinatura do tratado terá um brilho muito maior em razão da leitura de sua pesquisa. Com certeza, naquele momento estarei assistindo ao meu programa favorito de TV. Não quero ver de maneira nenhuma essa baboseira."
"Ora, vamos, Marge. Ele vai contar como você poderá encontrar o Messias."
"Não sou judia."
"Também não sou judeu, mas eu gostaria muito de poder reconhecer o Messias. E você?"
"Você está querendo me tirar do sério para que eu lhe diga a verdade pelo menos uma vez, Buck? Acho que já vi o Messias. Acho que o conheço. Se é que existe realmente alguém enviado por Deus para salvar o mundo, acho que esse alguém é o novo secretário-geral da ONU."
Buck sentiu um calafrio.
O nome de Rayford constava da lista de prioridade como passageiro de primeira classe para o próximo vôo de Baltimore para Chicago. Ele telefonou para Chloe do aeroporto informando que chegaria um pouco mais tarde.
"Hattie Durham está à sua procura."
"O que ela quer?"
"Está tentando marcar uma entrevista entre você e Carpathia antes que você seja seu piloto."
"Serei seu piloto na viagem de ida e volta a Tel-Aviv. Por que deveria encontrar-me com ele?"
"Talvez seja por esse motivo que ele queira ver você antes. Hattie lhe contou que você é cristão."
"Que maravilha! Ele jamais vai confiar em mim."
"Talvez ele queira vigiá-lo."
"De qualquer forma, preciso conversar com Hattie pessoalmente. Quando Carpathia quer me ver?"
"Amanhã."
"De repente, minha vida passou a ser muito agitada. Você tem alguma novidade?"
"Hoje recebi mais um presente de meu admirador secreto", ela disse. "Bombons, desta vez."
"Bombons!" exclamou Rayford, assustado depois do que ouviu de Leonard Gustafson. "Você não comeu nenhum, não?"
"Ainda não. Por quê?"
"Não toque nessa coisa antes de saber quem mandou."
"Ora, papai!"
"Nunca se sabe, querida. Por favor, não corra riscos."
"Está bem, mas são meus bombons prediletos! Parecem apetitosos.”
"Não tente abri-los até sabermos de onde vieram, está bem?"
"Está bem, mas você vai querer experimentar um. São iguais aos que você sempre me traz de Nova York, daquela pequena rede de lojas de departamentos."
"Bombons Windmill com recheio de hortelã, da Holman Meadows?"
"Exatamente."
Aquilo era o maior dos insultos. Quantas vezes Rayford havia mencionado a Hattie que precisava comprar bombons com recheio de hortelã naquela loja durante suas escalas em Nova York! Ela chegou a acompanhá-lo mais de uma vez. Então Hattie não estava tentando esconder que partiam dela os misteriosos presentes. Qual seria o objetivo? Não poderia ser uma vingança uma vez que ele sempre a tratara como cavalheiro. O que isso tinha a ver com Chloe? Será que Carpathia tinha conhecimento — ou estava por trás — de uma coisa tão banal?
Rayford descobriria, disso ele tinha certeza.
Buck sentia-se animado novamente. Depois dos desaparecimentos, sua vida esteve tão tumultuada que ele pensava consigo mesmo se conseguiria voltar à rotina agitada da qual tanto gostava. Sua jornada espiritual não tinha nada a ver com seu rebaixamento de cargo e transferência. Mas agora ele parecia ter voltado a cair nas graças da diretoria do Semanário Global, e usara sua sensibilidade para fazer a troca das reportagens consideradas por ele as mais sensacionais do mundo inteiro.
Sentou-se em seu escritório doméstico improvisado e voltou a fazer suas tarefas costumeiras, tais como enviar fax e e-mails, trabalhar com Marge e com os repórteres do Semanário e fazer contatos telefônicos. Ele precisava entrevistar muitas pessoas em curto espaço de tempo e todos os acontecimentos pareciam estar pipocando na mesma hora.
Embora estivesse horrorizado com o que acontecera, Buck gostava de seu trabalho agitado. Desejava muito convencer sua família a respeito da verdade. Contudo, seu pai e seu irmão, não lhe dariam ouvidos, e se ele não estivesse tão atarefado com seu trabalho empolgante e polêmico, aquele fato em si teria sido suficiente para deixá-lo completamente desnorteado.
Buck tinha apenas poucos dias, antes e depois da assinatura do tratado, para aprontar seu trabalho. Parecia que sua vida inteira estava agora girando em alta velocidade, e ele procurava aproveitar ao máximo esse período de sete anos. Ele não sabia como seria o reino celestial na terra, embora Bruce estivesse tentando explicar isso a ele, a Rayford e a Chloe. Buck aguardava com ansiedade o Glorioso Aparecimento e o reinado de Cristo na terra durante mil anos. Porém, pelo que aprendera até aquele momento, qualquer coisa normal que ele desejasse fazer — como, por exemplo, reportagens e artigos sobre fatos a serem investigados, paixão por uma mulher, casamento e talvez filhos — teria de ser feita em breve.
Chloe era o que Buck tinha de melhor em sua nova vida. Mas será que haveria tempo para aprender a lidar com um relacionamento que prometia ir além das experiências que ele já tivera? Ela era diferente de qualquer mulher que ele conhecera e, mesmo assim, não sabia distinguir essa diferença. A nova fé de Chloe a enriquecera e transformara em outra pessoa, mas ele sentiu atração por ela antes de ambos aceitarem a Cristo.
A idéia de que o encontro de ambos foi obra de um plano divino deixava Buck maravilhado. Como ele gostaria de tê-la conhecido alguns anos antes e serem arrebatados juntos! Se ele quisesse passar algum tempo ao lado dela antes de sua viagem a Israel, teria de ser naquele mesmo dia.
Buck olhou para o relógio. Havia tempo para mais um telefonema antes de falar com Chloe.
Rayford cochilava na primeira classe, com os fones de ouvido ligados. As imagens do noticiário povoavam a tela à sua frente, mas ele perdera o interesse por reportagens sobre os índices de criminalidade nos Estados Unidos. Ao ouvir o nome de Carpathia, despertou. O Conselho de Segurança das Nações Unidas estava se reunindo várias horas por dia com o objetivo de finalizar os planos para a moeda universal e o desarmamento em massa que o secretário-geral havia estabelecido. Originalmente, a idéia era destruir 90 por cento das armas e doar à ONU os 10 por cento restantes. Agora, os países aliados teriam de alistar seus soldados na força militar da ONU em prol da paz.
Carpathia pedira ao presidente dos Estados Unidos que encabeçasse o comitê de inspeção, uma atitude altamente controvertida. Os países inimigos dos Estados Unidos chamaram Fitzhugh de tendencioso e desleal, considerando-se prejudicados porque estariam destruindo suas armas ao passo que os Estados Unidos estariam aumentando seu potencial bélico.
Carpathia estava abordando esses assuntos, como sempre de maneira direta e simpática. Rayford deu de ombros enquanto ouvia. Se não tivesse se tornado cristão, com certeza ele teria defendido esse homem e confiado nele.
"Os Estados Unidos têm sido um país mantenedor da paz desde muito tempo", disse Carpathia. "Este país dará o exemplo, destruindo seus armamentos e enviando os 10 por cento restantes para a Nova Babilônia. Os povos do mundo inteiro poderão vir até aqui e inspecionar o trabalho feito pelos Estados Unidos, para verem com seus próprios olhos o cumprimento desta determinação e seguirem o exemplo.”
"Permitam-me fazer um adendo", disse o secretário-geral. "Esta é uma tarefa importante e grandiosa que talvez levasse anos para ser concluída. Cada país poderia retardar mês após mês o processo de remessa, mas não devemos permitir que isso aconteça. Os Estados Unidos da América do Norte darão o exemplo e nenhum outro país deverá demorar mais do que eles para destruir suas armas e doar o restante. Quando a nova sede da Organização das Nações Unidas estiver instalada na Nova Babilônia, as armas estarão em seu devido lugar.”
"A era da paz está próxima, e o mundo finalmente estará no limiar de tornar-se uma comunidade global."
O pronunciamento de Carpathia foi seguido de aplausos ensurdecedores, até mesmo por parte da imprensa.
Mais tarde, no mesmo noticiário, Rayford assistiu a uma breve edição especial sobre o novo Air Force One, um 757 que pousaria no Aeroporto Dulles, em Washington, e em seguida voaria para Nova York a fim de aguardar seu vôo inaugural sob a direção de "um novo capitão a ser anunciado em breve. Esse homem foi selecionado de uma lista dos melhores pilotos das principais empresas aéreas".
Um outro noticiário mencionava que Carpathia havia dito que ele e o conselho ecumênico dos líderes religiosos do mundo inteiro fariam um importante pronunciamento na tarde do dia seguinte.
Buck conseguiu falar por telefone com o assistente do cardeal arcebispo Peter Mathews em Cincinnati. "Sim, ele está aqui, descansando. Partirá amanhã cedo para Nova York para estar presente na reunião de encerramento do conselho ecumênico. De lá seguirá para Israel e depois para o Vaticano."
"Eu estou às ordens para ir a qualquer lugar, a qualquer hora, como ele preferir.", disse Buck.
"Ligarei para o senhor de volta dentro de trinta minutos, dando-lhe uma resposta."
Buck telefonou para Chloe. "Meu tempo está muito escasso", ele disse, "mas será que poderíamos nos encontrar, só nós dois, antes da reunião desta noite?"
"Claro, o que houve?"
"Nada específico", ele respondeu. "Eu só gostaria de passar alguns momentos com você, agora que sabe que sou um homem livre."
"Livre? É isso que você é?"
"Sim, madame! E você?"
"Acho que também sou livre. Isso significa que temos algo em comum."
"Você tinha algum plano para hoje à noite?"
"Não. Papai chegará mais tarde. Ele foi entrevistado na Casa Branca hoje."
"Então ele vai aceitar o emprego?"
"Ele vai fazer a vôo inaugural e decidir depois."
"Eu poderia estar naquele vôo."
"Eu sei."
"Então, posso buscá-la às seis?" perguntou Buck.
"Eu adoraria."
Conforme prometeu, o assistente do cardeal Mathews telefonou para Buck, dando boas notícias. Por ter gostado muito da entrevista que concedera anteriormente a Buck, a qual seria brevemente publicada como reportagem de capa, o cardeal mandou o assistente dizer que o convidava para viajar junto com ele para Nova York na manhã seguinte.
Buck reservou lugar no último vôo daquela noite, de O'Hare para Cincinnati. Surpreendeu Chloe ao aparecer em sua casa às seis horas da tarde levando comida chinesa. Contou a ela sobre seus planos de viajar ainda naquela noite e complementou: "Eu não quis perder nosso precioso tempo tentando descobrir um lugar para jantarmos."
"Meu pai ficará com inveja quando chegar", ela disse. "Ele adora comida chinesa."
Enfiando a mão dentro de uma grande sacola, Buck retirou um prato extra e disse sorrindo. "É preciso deixar o papai feliz."
Buck e Chloe sentaram-se na cozinha para comer e conversaram por mais de uma hora. A conversa girou em torno dos mais variados assuntos — a infância de ambos,
suas famílias, principais acontecimentos, esperanças, temores e sonhos. Buck gostava muito de ouvir Chloe falar, não só pelo que ela dizia, mas pelo som de sua voz. Ele não sabia se ela era a melhor pessoa com quem já conversara ou se simplesmente estava apaixonado. Provavelmente as duas coisas, ele concluiu.
Quando Rayford chegou, encontrou Buck e Chloe diante do computador de Raymie, que não havia sido ligado desde a semana dos desaparecimentos. Em poucos minutos Buck havia estabelecido conexão entre Chloe e a Internet e conseguido um endereço eletrônico para ela. "Agora você poderá localizar-me em qualquer lugar do mundo", ele disse.
Rayford deixou Buck e Chloe sozinhos diante do computador e examinou os bombons da Holman Meadows. Ainda estavam embalados em papel celofane e tinham sido entregues por uma empresa conceituada. Estavam endereçados a Chloe, mas não havia nenhum cartão. Rayford notou que não havia sinal de violação na embalagem. Decidiu que, mesmo que tivessem sido enviados por Hattie Durham por algum motivo inexplicável, não faria sentido deixar de saboreá-los.
"Seja lá quem for que esteja apaixonado por sua filha, com certeza tem bom gosto", disse Buck.
"Obrigada", disse Chloe.
"Eu quis dizer bom gosto para escolher bombons com recheio de hortelã."
Chloe corou. "Entendi o que você quis dizer."
Por insistência de Rayford, Buck concordou em deixar seu carro na garagem da casa dos Steeles durante sua viagem. Buck e Chloe saíram mais cedo da reunião da Força
Tribulação direto para o aeroporto. O trânsito estava menos congestionado do que o normal e eles chegaram ao aeroporto com mais de uma hora de antecedência. "Poderíamos ter ficado mais tempo na igreja", disse Buck.
"É melhor chegar com antecedência, você não acha?" ela disse. "Detesto chegar em cima da hora."
"Eu também", ele disse, "mas é o que sempre acontece comigo. Você poderá deixar-me no meio-fio."
"Eu posso até a hora do vôo, se você não se importar de pagar o estacionamento."
"Você não tem medo de voltar sozinha para pegar o carro a esta hora da noite?"
"Já fiz isso muitas vezes", ela disse. "Há muitos seguranças por aqui."
Ela estacionou o carro e ambos atravessaram juntos o enorme terminal. Ele levava sua sacola de couro a tiracolo, contendo tudo o que havia de mais precioso em sua vida. Chloe parecia embaraçada, mas não havia outra sacola para ela carregar. Como eles ainda não haviam chegado à fase de andar de mãos dadas, continuaram a caminhar lado a lado. Todas as vezes que Buck virava-se para que ela pudesse ouvi-lo, sua sacola saía do lugar e a tira escorregava do ombro, portanto resolveram seguir em silêncio até o portão.
Ao fazer o check-in, Buck constatou que havia poucos passageiros em seu vôo. "Gostaria que você fosse comigo", ele disse suavemente.
"Eu gostaria...", ela começou a falar, mas aparentemente arrependeu-se.
"Do quê?"
Ela balançou a cabeça.
"Você também gostaria de ir comigo?"
Ela assentiu. "Mas não posso e não vou, portanto não há o que discutir."
"E o que eu faria com você?" perguntou ele. "Colocaria você dentro da sacola?"
Ela riu.
Ambos permaneceram diante das paredes envidraçadas, observando os carregadores de malas e os controladores do tráfego de terra. Buck fingia olhar através do vidro, mas fixava-se no reflexo de Chloe a pouca distância dele. Por duas vezes Buck percebeu que Chloe desviou o olhar da pista para o vidro, e imaginou que deveria estar atraindo o olhar dela. Assim fosse verdade, ele pensou.
"O vôo atrasará vinte minutos", avisou a funcionária do balcão.
"Não se sinta obrigada a aguardar, Chloe", disse Buck. "Quer que eu a acompanhe até o carro?"
Ela riu novamente. "Você é paranóico quanto a estacionamentos grandes e antigos, não é mesmo? Combinamos que eu o traria até aqui, ficaria a seu lado para você não sentir-se sozinho e aguardaria até você entrar no avião. No momento da decolagem vou acenar para você, fingir que não consigo sair do lugar e só voltarei para o estacionamento quando o avião desaparecer de vista."
"O quê? Você sempre faz isso quando acompanha alguém?"
"Claro. Agora sente-se, relaxe e finja que está acostumado a viajar pelo mundo inteiro."
"Gostaria de fingir pelo menos uma vez que não estou acostumado."
"Então você ficaria nervoso e precisaria de minha companhia?"
"Preciso de você em qualquer circunstância."
Ela desviou o olhar. Vá devagar, ele disse a si mesmo. Essa era a parte mais divertida, a fase de defesa mútua, mas também era extremamente incerta. Ele não queria dizer coisas a ela que não teria dito se não fosse pelo fato de permanecer longe durante alguns dias.
"Preciso de você aqui", ela disse suavemente, "mas você está me abandonando." "Eu jamais faria isso." "O quê? Abandonar-me?"
"Jamais", ele disse em tom de brincadeira para não afugentá-la. "Isso é animador. Não gosto dessa história de abandonar."
Rayford aguardava a chegada de Chloe enquanto arrumava as coisas para sua rápida viagem a Nova York na tarde do dia seguinte. Earl telefonara querendo saber se Rayford recebera algum telefonema do escritório de Carpathia.
"Essa tal de Hattie Durham é a mesma que trabalhou conosco?" perguntou Earl.
"Exatamente a mesma."
"Ela é secretária de Carpathia?"
"Mais ou menos isso.
"Que mundo pequeno!"
"Acho que seria tolice de minha parte dizer-lhe para tomar cuidado em Cincinnati, Nova York e Israel, considerando tudo o que você já passou", disse Chloe.
Buck sorriu. "Não comece com suas despedidas antes de estar pronta para ir embora."
"Vou ficar aqui até seu avião desaparecer de vista. Eu já disse isso."
"Temos tempo para comer um doce", ele disse, apontando para um balcão no corredor.
"Já comemos a sobremesa", ela disse. "Chocolates e doces."
"Biscoitinhos da sorte não valem", ele disse. "Vamos. Você se lembra do nosso primeiro doce?"
No dia em que se conheceram, Chloe havia comido um doce e ele retirara com o polegar um pedacinho de chocolate que ficou grudado no canto de sua boca. Em seguida, sem saber o que fazer, ele havia lambido o polegar.
"Eu fui uma tola", ela disse. "E você tentou levar na brincadeira."
"Você gostaria de comer um doce?" perguntou Buck, iniciando a mesma brincadeira que ela fizera com ele no dia em que se conheceram em Nova York.
"Por quê? Eu pareço um?"
Buck riu, não porque a brincadeira foi mais engraçada do que na primeira vez, mas porque foi um fato tolo acontecido entre eles.
"Não estou com fome", ela disse enquanto ambos observavam através do vidro um jovem atendente aguardando o pedido com ar de tédio.
"Eu também não", disse Buck. "É para comermos mais tarde."
"Mais tarde ainda hoje ou mais tarde amanhã?" ela perguntou.
"Quando nossos relógios estiverem sincronizados."
"Vamos comer os doces juntos? Quero dizer, na mesma hora?"
"Não seria ótimo?"
"Sua imaginação não tem fim."
Buck pediu dois doces, em pacotes separados.
"Não posso fazer isso", disse o jovem.
"Então quero um só", disse Buck, com o dinheiro na mão e entregando algumas moedas a Chloe.
"E eu também quero um", ela disse, mostrando as moedas.
O jovem fez uma careta, resolvendo atender ao pedido inicial de Buck, e fez o troco.
"Um jeito a mais de convencer alguém", disse Buck.
Eles caminharam lentamente de volta ao portão. Havia mais alguns passageiros à espera e a funcionária do balcão avisou que o avião deles finalmente tinha chegado. Buck e Chloe sentaram-se observando os passageiros que caminhavam em fila, parecendo cansados.
Buck embrulhou cuidadosamente seu doce e colocou-o na sacola. "Estarei voando para Nova York amanhã cedo, às oito horas", ele disse. "Vou comer este doce na hora do café, pensando em você."
"Aqui serão sete horas", disse Chloe. "Ainda estarei na cama, pensando em meu doce e sonhando com você."
Ainda estamos nos testando, pensou Buck. Nenhum de nós quer falar sério.
"Então vou esperar você se levantar", ele disse. "Diga-me quando vai comer seu doce."
"Chloe olhou para cima. "Hummm, ela brincou. "A que horas você estará em sua reunião mais importante, mais formal?"
"Provavelmente no final da manhã em um dos grandes hotéis de Nova York. Carpathia estará lá para fazer um pronunciamento em conjunto com o cardeal Mathews e outros líderes religiosos."
"Então vou comer meu doce nessa hora", disse Chloe. "E duvido que você também coma o seu nessa hora."
"Você vai aprender a não duvidar de mim." Buck sorriu, mas não estava brincando. "Não sei o que é medo."
"Pois sim!" ela disse. "Você tem medo do estacionamento daqui e não é capaz de atravessá-lo sozinho!"
Buck pegou o pacote de doce da mão dela.
"O que você está fazendo?" ela perguntou. "Não estamos com fome, lembra-se?"
"Quero só cheirá-lo", ele disse. "O aroma ajuda a memória."
Buck abriu o pacote do doce de Chloe e aproximou-o do nariz. "Que cheiro bom! Não sei se é da massa, do chocolate, das nozes ou da manteiga."
Ele aproximou o doce do nariz de Chloe. "Adoro esse cheiro", ela disse.
Com a outra mão, Buck segurou o queixo de Chloe. Ela não se retraiu e fixou os olhos nos dele. "Lembre-se deste momento", ele disse. "Estarei pensando em você enquanto estiver longe."
"Eu também", ela disse. "Agora feche o pacote. O doce precisa permanecer fresco para que o cheiro me faça lembrar de você."
Rayford despertou mais cedo que Chloe e dirigiu-se para a cozinha. Pegou o pacote de doce que estava no balcão. Sobrou um, ele pensou, e teve vontade de comê-lo. Em vez disso, escreveu o seguinte bilhete a Chloe: "Espero que você não se importe. Não pude resistir." No verso ele escreveu: "Foi brincadeira", e colocou o bilhete em cima do pacote. Tomou café e suco. Depois, trocou de roupa e saiu para sua corrida matinal.
Buck sentou-se na primeira classe com o cardeal Mathews no vôo da manhã de Cincinnati para Nova York. Mathews tinha pouco menos de 60 anos e era um homem forte de rosto redondo e cabelos bem aparados, cuja cor parecia natural. Sua posição eclesiástica era evidenciada apenas por seu colete clerical. Carregava uma fina maleta e um computador portátil. Buck notou que ele havia embarcado quatro malas.
Mathews tinha um acompanhante, que simplesmente desviava a atenção das pessoas e falava pouco. O acompanhante mudou-se para a poltrona da frente de modo que Buck pudesse sentar-se ao lado do arcebispo. "Por que o senhor não me contou que era candidato a sucessor do papa?" indagou Buck.
"É melhor não entrarmos desde já neste assunto", disse Mathews. "Você gosta de tomar champanhe de manhã?"
"Não, obrigado."
"Bem, se você não se importar, preciso tomar algo estimulante."
"Esteja à vontade. Avise-me quando o senhor estiver disposto a conversar."
O acompanhante de Mathews ouviu a conversa e fez um sinal para a comissária de bordo, que imediatamente trouxe uma taça de champanhe ao cardeal. "O de sempre, não é mesmo?" ela perguntou.
"Obrigado, Caryn", ele disse, como se a comissária fosse uma velha amiga. Aparentemente era. Depois que ela foi embora, ele sussurrou: "Ela é da família Litewski, de minha primeira paróquia. Foi batizada por mim. Trabalha neste vôo há anos. Mas sobre o que estávamos falando?"
Buck não respondeu. Sabia que o cardeal ouvira o que ele disse e se lembrava da pergunta. Se quisesse que fosse repetida para satisfazer seu próprio ego, ele que a repetisse.
"Ah, sim, você queria saber por que não mencionei que era candidato a sucessor do papa. Pensei que todos soubessem. Carpathia sabia."
Aposto que sim, pensou Buck. Provavelmente maquinou isso. "Carpathia espera que o senhor seja o próximo papa?"
"Trata-se de um assunto confidencial", sussurrou Mathews. "Já está tudo acertado. "Nós temos os votos."
"Nós?"
"É uma forma de dizer. Nós, eu. Eu tenho os votos, você entende?"
"Como o senhor pode ter tanta certeza assim?"
"Fui membro do Sacro Colégio por mais de dez anos. O fato de vir a ser papa não me surpreende. Você sabe como Nicolae me chama? Ele me chama de P.M."
Buck deu de ombros. "Ele o chama por suas iniciais? Existe algum significado?"
O acompanhante de Mathews olhou para trás por entre as poltronas e balançou a cabeça. Eu devia saber, conjeturou Buck. Mas ele nunca receou fazer perguntas tolas.
"Pontifex Maximus", disse Mathews, radiante. "Supremo Papa."
"Parabéns", disse Buck.
"Obrigado, mas espero que você saiba que Nicolae tem outros planos em mente para meu pontificado do que meramente ser o líder da Santa Madre Igreja Católica Romana."
"Diga-me quais são."
"Serão anunciados no final desta manhã, e se você não mencionar que fui eu quem disse, vou lhe dar a notícia em primeira mão."
"Por que o senhor faria isso?"
"Porque gosto de você."
"O senhor mal me conhece."
"Mas conheço Nicolae."
Buck afundou-se na poltrona. "E Nicolae gosta de mim."
"Exatamente."
"Então esta viagem em sua companhia não aconteceu por causa de meu trabalho."
"Ah, não", disse Mathews. "Carpathia deu boas referências suas. Quer que eu lhe conte tudo. Só não me julgue um homem mau nem pense que estou fazendo autopromoção ao lhe contar isso."
"O pronunciamento dará essa idéia do senhor?"
"Não, porque o próprio Carpathia fará o pronunciamento."
"Estou ouvindo."
"Escritório do secretário-geral Carpathia. Quem fala é a Srta. Durham."
"Aqui é Rayford Steele."
"Rayford! Como vai..."
"Deixe-me ir direto ao assunto, Hattie. Quero chegar um pouco mais cedo esta tarde para poder conversar com você em particular por alguns minutos."
"Seria maravilhoso, capitão Steele. Porém, devo dizer-lhe antecipadamente que já tenho alguém em vista."
"Não achei graça."
"Eu não quis fazer graça."
"Você terá um tempo disponível?"
"Com certeza. Sua reunião com o secretário-geral Carpathia está marcada para as quatro horas. Posso esperá-lo às três e meia?"
Rayford desligou o telefone enquanto Chloe entrava na cozinha, vestida para trabalhar na igreja. Ela leu o bilhete. "Oh, papai! Não acredito que você tenha feito isso!" Rayford achou que a filha estava prestes a romper em prantos. Ela pegou o pacote e chacoalhou-o. Assim que virou o bilhete do outro lado, fez uma expressão de alívio e riu. "Seja adulto, papai. Pelo menos uma vez na vida, aja de acordo com sua idade."
Ele estava se aprontando para dirigir-se para o aeroporto, e ela para o trabalho, quando a CNN mostrou ao vivo uma entrevista coletiva à imprensa diretamente da reunião dos líderes religiosos em Nova York. "Veja isto, papai", ela disse. "Buck está lá."
Rayford colocou sua bagagem de mão no chão e postou-se ao lado de Chloe, que segurava uma caneca de café com as duas mãos. O correspondente da CNN explicava o que estava acontecendo. "Estamos aguardando um pronunciamento em conjunto da coalizão dos líderes religiosos e da Organização das Nações Unidas, representada pelo novo secretário-geral Nicolae Carpathia. Ele parece ser a personalidade do momento. Ajudou a elaborar as proposições e a reunir os representantes de uma ampla gama de crenças. Desde que ele assumiu o cargo, não passou um dia sequer sem que houvesse um importante acontecimento.”
"Especula-se por aqui que as religiões do mundo vão fazer uma nova tentativa no sentido de lidar com as questões de natureza global de uma forma mais coesiva e tolerante como nunca fizeram. O ecumenismo fracassou no passado, mas em breve veremos que desta vez existe uma nova maneira de fazer com que finalmente ele seja posto em prática. Neste momento está subindo à tribuna o cardeal arcebispo Peter Mathews, prelado da arquidiocese da Igreja Católica Romana em Cincinnati e considerado por muitos como um forte candidato a sucessor do Papa João XXIV, cuja atuação polêmica durou apenas cinco meses até ser incluído na lista dos que desapareceram algumas semanas atrás."
A TV exibiu uma imagem panorâmica da plataforma diante dos jornalistas, onde mais de duas dúzias de religiosos do mundo inteiro, todos vestidos com trajes de seus países de origem, dirigiam-se para seus respectivos lugares. Assim que o arcebispo Mathews abriu caminho até o lugar destinado aos microfones, Rayford ouviu Chloe dar um grito.
"Lá está Buck, papai! Olhe! Bem ali!"
Ela apontava para um repórter que não se encontrava no meio da multidão de jornalistas, mas que parecia estar balançando na beira da plataforma. Era Buck, tentando manter o equilíbrio. Por duas vezes ele desceu e subiu novamente na plataforma.
Enquanto Mathews discorria em tom monótono a respeito da cooperação internacional, Rayford e Chloe fixavam os olhos em um canto no fundo da plataforma onde estava Buck. Ninguém mais teria notado sua presença. "O que ele tem nas mãos?" perguntou Rayford. "Parece um bloco de anotações ou um gravador."
Chloe aproximou-se do aparelho de TV e respirou fundo. Correu até a cozinha e voltou com o pacote de doce. "E o doce dele!" ela disse. "Vamos comer nossos doces na mesma hora!"
Rayford não entendeu nada, mas com certeza gostou de não ter comido aquele doce. "O quê...?" ele começou a falar, mas Chloe pediu-lhe silêncio.
"Tem o mesmo cheiro de ontem à noite!" ela disse.
Rayford deu uma risada de desdém. "O que tem o mesmo cheiro de ontem à noite?"
"Silêncio!"
Enquanto ambos fitavam a tela da TV, Buck enfiou rapidamente a mão dentro do pacote e, de modo disfarçado e quase invisível pegou o doce, colocou-o na boca e deu uma mordida. Chloe acompanhou os gestos dele e Rayford notou que ela ria e chorava ao mesmo tempo.
"Você não deve estar regulando bem", ele disse, e saiu para o aeroporto.
Buck não fazia idéia se sua pequena artimanha tinha sido notada por alguém, muito menos por Chloe Steele. O que aquela moça estava fazendo com ele? Algo estranho havia acontecido. Ele, que era um famoso jornalista internacional, de repente passara a ser um homem romântico cometendo tolices para chamar a atenção. Não muita atenção, assim ele esperava. Poucas pessoas costumam notar o que se passa nos cantos de uma tela de TV. Chloe poderia estar assistindo ao noticiário sem tê-lo visto.
Mais importante do que seus esforços para chamar a atenção foi um acontecimento maior ainda que, em outra ocasião, poderia ter sido rotulado de típica confabulação internacional. Quer fosse pelo fato de prometer apoio ao pontificado de Mathews quer fosse por sua sinistra habilidade em cativar as pessoas, Nicolae Carpathia tinha conseguido que aqueles líderes religiosos elaborassem uma proposição de um incrível significado.
Além de anunciarem seus esforços e cooperação no sentido de serem mais tolerantes uns com os outros, eles também estavam anunciando a formação de uma religião totalmente nova, que incorporaria os dogmas de todas as já existentes.
"E para que isso não pareça impossível aos seguidores de cada uma das religiões que aqui representamos", disse Mathews, "houve unanimidade de nossa parte, de todos nós. Nossas religiões têm sido a causa de muitas divisões e derramamento de sangue no mundo inteiro como acontece com qualquer governo, exército ou armamento. A partir de hoje nos uniremos sob a bandeira da Fé da Comunidade Global. Nosso emblema terá os símbolos sagrados de todas as religiões, e daqui em diante abrangerá todos esses símbolos. Quer acreditemos em Deus como um ser real ou simplesmente como um conceito, Deus está em tudo, acima de tudo e ao redor de tudo. Deus está em nós. Deus é igual a nós. Nós somos Deus."
Quando a sessão foi aberta para perguntas, muitos astutos editores religiosos dispararam suas flechas. "O que vai acontecer com a liderança do, digamos, catolicismo romano? Haverá necessidade de um papa?"
"Elegeremos um papa", respondeu Mathews. "E esperamos que as outras principais religiões continuem a nomear seus líderes. Porém esses líderes prestarão contas à Fé da Comunidade Global e esperamos que preservem a lealdade e a devoção de seus paroquianos à causa maior."
"Existe um dogma principal que tenha a concordância de todos vocês?"
Esta pergunta provocou gargalhadas nos participantes. Mathews convocou um rastafariano (membro de uma seita da Jamaica que considera os negros como o povo escolhido por Deus para a salvação, n.t.) para responder. Por meio de um intérprete, ele disse: "Acreditamos de fato em duas coisas. Em primeiro lugar acreditamos na bondade fundamental do ser humano. Em segundo lugar acreditamos que os desaparecimentos foram uma purificação de natureza religiosa. Em algumas religiões, muitas pessoas desapareceram. Em outras, poucas. Em diversas, nenhuma. Porém o fato de muitas pessoas terem sido deixadas para trás, independentemente da religião que professam, prova que nenhuma é melhor que a outra. Seremos tolerantes com todas as pessoas, acreditando que as melhores ficaram."
Buck postou-se diante dos líderes religiosos e levantou a mão. "Cameron Williams, do Semanário Global", ele disse. "Esta pergunta é dirigida ao cavalheiro que está diante do microfone, ao cardeal Mathews ou outro líder religioso. Como esse dogma da bondade fundamental do ser humano se coaduna com a idéia de que as pessoas más foram separadas de nós? Elas não possuíam a bondade fundamental do ser humano?"
Nenhum deles se movimentou para responder. O rastafariano olhou para Mathews, que fitava Buck de maneira inexpressiva, deixando claro que não desejava demonstrar aborrecimento mas desejando também dar a entender que se sentia traído.
Finalmente Mathews pegou o microfone. "Não estamos aqui para debater teologia", ele disse. "Sou um daqueles que acredita que os desaparecimentos constituíram uma purificação e que a bondade fundamental do ser humano é o denominador comum dos que ficaram. E grande parte dessa bondade fundamental é encontrada no secretário-geral da Organização das Nações Unidas Nicolae Carpathia. Vamos saudá-lo, por favor!"
Os líderes religiosos levantaram as mãos para saudar Carpathia. Alguns jornalistas aplaudiram. Pela primeira vez Buck notou o enorme público que se aglomerava atrás do pessoal da imprensa. Em razão dos holofotes, ele não conseguira enxergar o público e não ouvira sua manifestação até Carpathia aparecer.
Carpathia, com seu típico jeito dominador, dava todo crédito à liderança do corpo ecumênico e apoiava aquela "idéia histórica e perfeita, que há muito tempo deveria ter sido implantada".
Ele respondeu a algumas perguntas, inclusive sobre o que aconteceria com a reconstrução do templo judeu em Jerusalém. "Tenho a satisfação de dizer que a reconstrução continuará. Conforme a maioria de vocês já sabe, uma grande soma de dinheiro tem sido doada para esta causa durante décadas, e há alguns anos estão sendo preparados blocos pré-moldados em outros lugares do mundo para a reconstrução do templo. Assim que a reconstrução for iniciada, terminará rapidamente."
"E o que acontecerá com a Cúpula Islâmica do Rochedo?"
"Fico muito satisfeito por você ter feito esta pergunta", disse Carpathia, enquanto Buck indagava a si mesmo se o próprio Carpathia não a teria planejado. "Nossos irmãos muçulmanos concordaram em mudar o santuário e a parte sagrada do rochedo para a Nova Babilônia, deixando os judeus à vontade para reconstruírem seu templo onde acreditam ser o seu lugar primitivo.’”
“E agora, peço a permissão dos senhores para alongar-me um pouco mais. Eu gostaria de dizer que estamos vivendo o momento mais decisivo da história mundial. Com a consolidação da moeda universal, com a cooperação e tolerância de muitos líderes religiosos, com o desarmamento mundial e o compromisso rumo à paz, o mundo será verdadeiramente unificado.”
"Muitos de vocês ouviram-me pronunciar a expressão Comunidade Global. Trata-se de um nome digno para a nossa nova causa. Podemos nos comunicar uns com os outros, professar nossa fé uns com os outros, comercializar uns com os outros. Em razão dos avanços nas comunicações e nas viagens, não somos mais um conglomerado de países e nações, mas uma comunidade global completa, uma aldeia composta de cidadãos iguais. Agradeço aos líderes aqui presentes que compuseram esta linda peça de mosaico, e gostaria de fazer um pronunciamento em homenagem a eles.”
"Com a mudança da sede da ONU para a Nova Babilônia nossa grande organização receberá um nome novo. Seremos conhecidos como Comunidade Global!" Depois que os aplausos cessaram, Carpathia concluiu: "Portanto, o nome da nova religião universal, Fé da Comunidade Global, aplica-se com precisão."
Carpathia estava sendo conduzido para fora enquanto as equipes de TV e som começavam a deixar o local da entrevista. Nicolae avistou Buck e parou, avisando seus guarda-costas que queria conversar com alguém. Eles formaram uma barreira humana enquanto Carpathia abraçava Buck. Sem poder recuar, Buck só conseguiu sussurrar o seguinte no ouvido de Carpathia: "Tome cuidado com o que o senhor está fazendo com minha independência jornalística."
"Alguma notícia boa para mim?" perguntou Carpathia, segurando no braço de Buck e lançando-lhe um olhar penetrante.
"Ainda não, senhor.
"Nós nos encontraremos em Jerusalém?"
"Claro."
"Você manterá contato com Steve?"
"Sim."
"Diga-lhe o que você vai precisar e será feito. É uma promessa."
Buck desviou-se para um pequeno grupo onde Peter Mathews estava rodeado de admiradores. Quando o arcebispo notou sua presença, Buck inclinou-se para frente e' sussurrou: "O que eu deixei de ver?"
"Como assim? Você esteve presente."
"O senhor disse que Carpathia faria um pronunciamento a respeito de uma função mais abrangente para o novo papa, algo maior e mais importante até mesmo que a Igreja Católica."
Mathews balançou a cabeça. "Talvez eu tenha supervalorizado sua capacidade, amigo. Ainda não sou papa, mas pela declaração do secretário-geral você deveria ter deduzido que haverá necessidade de um chefe para a nova religião. E qual o melhor lugar para sua sede a não ser o Vaticano? E quem estaria mais apto a dirigi-la do que o novo papa?" "Então o senhor será o papa dos papas."
Mathews sorriu e balançou a cabeça afirmativamente. "P.M.", ele disse.
Duas horas mais tarde, Rayford chegou à sede da Organização das Nações Unidas. Continuava a orar em silêncio depois de ter telefonado a Bruce Barnes pouco antes de embarcar. "Parece que vou encontrar-me com o demônio", dissera Rayford. "Não que exista algo nesta vida que me assuste, Bruce. Sempre me orgulhei disso. Mas preciso lhe dizer que isto é horrível."
"Em primeiro lugar, Rayford, se você fosse encontrar-se com o Anticristo na segunda metade da Tribulação, aí é que estaria lidando com o próprio Satanás."
"Então, o que Carpathia é? Um demônio de segundo escalão?"
"Não, você necessita de orações. Sabe o que aconteceu diante dos olhos de Buck."
"Buck é dez anos mais novo que eu e está em melhor forma física", disse Rayford. "Achou que vou desmoronar lá."
"Não vai. Permaneça firme. Deus sabe onde você está, e o tempo dele é perfeito. Estarei orando e você sabe que Chloe e Buck também estarão."
Essa conversa foi muito confortadora para Rayford, e ele se sentia particularmente animado por saber que Buck estava em Nova York. O fato de saber que ele estava próximo fez Rayford sentir-se menos solitário. Mesmo assim, em sua ansiedade por ter de encarar Carpathia, não queria deixar passar a provação de enfrentar Hattie Durham.
Hattie estava aguardando quando ele desceu do elevador. Ele esperava ter alguns momentos para fazer o reconhecimento do terreno, refrescar-se, respirar fundo. Mas lá estava ela, jovem e linda, mais deslumbrante do que nunca em razão de uma tez bronzeada e roupas caras confeccionadas sob medida para um corpo escultural. Rayford não esperava vê-la tão linda e teve a sensação de estar pecando quando um lampejo de saudade dela invadiu sua mente.
A velha índole de Rayford imediatamente fê-lo lembrar-se do motivo de ter sentido atração por ela durante um período crítico de seu casamento. Orou em silêncio, agradecendo a Deus por não ter permitido que ele tivesse feito algo do qual viesse a arrepender-se para sempre. Assim que Hattie abriu a boca, ele voltou à realidade. Sua dicção e articulação eram mais refinadas, mas ela ainda era uma mulher misteriosa, e ele percebeu isso em seu tom de voz.
"Capitão Steele", disse efusivamente. "Que maravilha vê-lo novamente! Como vão todos os outros?"
"Todos os outros?"
"Você sabe. Chloe, Buck e todos os outros."
Chloe e Buck são todos, ele pensou, mas não disse.
"Todos estão bem."
"Ah, que ótimo."
"Existe um lugar reservado onde possamos conversar?"
Ela o conduziu para seu local de trabalho que era demasiadamente exposto. Não havia ninguém por perto para ouvi-los, mas o teto tinha uma altura de no mínimo seis metros. A escrivaninha, as mesas e os arquivos dela estavam instalados em uma local que fazia lembrar uma estação ferroviária, sem paredes ao redor. Os passos de ambos ecoavam e Rayford teve a nítida impressão de que eles estavam muito distantes do escritório do secretário-geral.
"Então, quais são as novidades depois da última vez que nos encontramos, capitão Steele?"
"Hattie, não quero ser indelicado, mas peço que você pare com esse 'capitão Steele' e deixe de fingir que não sabe das novidades. A novidade é que você e seu novo chefe invadiram meu trabalho e minha família, e parece que estou sem forças para tomar uma atitude."
TREZE
Stanton Bailey segurou firme nos braços de sua enorme poltrona e encostou-se no espaldar, analisando Buck Williams.
"Cameron", ele disse, "nunca vou conseguir entender você. Qual o significado daquele pacote?"
"Era apenas um doce. Eu estava com fome."
"Eu também sinto fome", vociferou Bailey, "mas não costumo comer diante das câmeras de TV!"
"Achei que não seria visto por ninguém."
"Bem, agora você já sabe que foi visto. E se Carpathia e Plank ainda quiserem que você esteja presente durante a assinatura do tratado em Jerusalém, nada de lanches."
"Era só um doce."
"Nada de doces também."
Depois de anos como capitão de Hattie Durham, agora Rayford sentia-se como se fosse seu subordinado, sentado do outro lado daquela imensa mesa. De repente ela ficou séria, talvez por ele ter abordado o assunto de forma tão direta.
"Ouça, Rayford", ela disse, "continuo a gostar de você apesar de ter-me desprezado, está certo? Não quero magoá-lo por nada deste mundo."
"Tentar protocolar uma queixa contra mim na empresa em que trabalho não é uma forma de me magoar?"
"Foi só uma brincadeira. Você sabe disso."
"Causou-me muita dor de cabeça. E quanto ao bilhete enviado para mim em Dallas, mencionando que o novo Air Force One era um 757?"
"Foi a mesma coisa, eu já lhe disse. Uma brincadeira."
"Não achei graça. Foi muita coincidência."
"Bem, Rayford, se você não gosta de brincadeiras, tudo bem, não vou ficar aborrecida. Como somos amigos, achei que um pouco de divertimento não faria mal a ninguém."
"Vamos, Hattie. Você acha que acredito nessa história? Não é de seu feitio. Você não costuma passar trotes em seus amigos. Não faz parte de seu modo de ser."
"Está bem, sinto muito."
"Isso não basta."
"Perdoe-me, mas lembre-se que não me reporto mais a você."
Hattie tinha a capacidade de confundir Rayford mais do que qualquer outra pessoa. Ele deu um suspiro profundo e lutou para controlar-se. "Hattie, quero que você me conte a história das flores e dos bombons."
Hattie não tinha o mínimo talento para blefar. "Flores e bombons?" ela repetiu após uma pausa, demonstrando culpa.
"Pare com esse jogo", disse Rayford. "Admita que foi você e explique-se."
"Só faço o que me pedem, Rayford."
"Viu? Não consigo compreender. Será que eu deveria perguntar ao homem mais poderoso do mundo por que ele enviou flores e bombons para minha filha, se nem ao menos a conhece? Ele a está perseguindo? E se estiver, por que não se identifica?"
"Ele não a está perseguindo, Rayford! Ele tem alguém em vista."
"Como assim?"
"Ele tem interesse em alguém."
"Alguém que conhecemos?" Rayford lançou-lhe um olhar de desagrado.
Hattie parecia conter o riso. "Só posso dizer que temos uma novidade, mas a imprensa ainda não sabe, portanto gostaríamos..."
"Vamos fazer um trato. Você pára de mandar presentes anônimos a Chloe, me explica os motivos e eu guardo seu pequeno segredo, que tal?"
Hattie inclinou-se para frente, como se estivesse conspirando. "Está bem. Vou dizer o que penso, certo? Quero dizer, não sei. Conforme já lhe disse, faço o que me pedem. Mas existe uma mente brilhante por trás disso."
Rayford não tinha dúvidas. Só gostaria de saber por que Carpathia estava gastando tempo com uma coisa tão banal.
"Prossiga."
"Ele deseja realmente que você seja seu piloto."
"Está bem", disse Rayford, tentando fazê-la prosseguir.
"Você vai aceitar?"
"Aceitar o quê? Eu só mencionei que estava entendendo o que você dizia, apesar de não ter certeza disso. Ele quer que eu seja seu piloto, e...?"
"Mas ele sabe que você se sente feliz onde está."
"Continuo tentando entender."
"Ele quer oferecer-lhe um emprego sedutor e, ao mesmo tempo, forçá-lo a sair do lugar onde você vive."
"Ele persegue minha filha e eu vou trabalhar com ele por causa disso?"
"Não, seu bobo. Para todos os efeitos, você não sabe que foi ele!"
"Entendo. Eu ficaria preocupado com alguém de Chicago e tentaria procurar outro emprego longe de lá." "Agora você entendeu." "Tenho muitas perguntas a fazer, Hattie." "Pergunte."
"Por que eu iria embora de lá só pelo fato de alguém estar perseguindo minha filha? Ela já tem quase vinte e um anos. É normal que tenha admiradores."
"Mas nós agimos anonimamente. Deveria ter dado a impressão de algo um pouco perigoso, um pouco preocupante."
"E foi."
"Então conseguimos o que queríamos."
"Hattie, você não imaginou que eu descobriria tudo quando enviou os bombons favoritos de Chloe, vendidos só na Holman Meadows em Nova York?"
"Opa!", ela disse. "Parece que não fui muito esperta."
"Está bem, digamos que funcionou. Acho que minha filha está sendo perseguida por alguém que parece sinistro. Se Carpathia está tão íntimo do presidente, ele não sabia que a Casa Branca me quer como piloto do Air Force One!"
"Rayford! Entenda! "É esse o emprego que ele deseja para você."
Rayford afundou-se na cadeira e suspirou. "Hattie, por tudo o que há de mais sagrado no mundo, diga-me o que está acontecendo. Recebo informações da Casa Branca e da Pan-Con que Carpathia quer que eu seja piloto do presidente. Sou aprovado sem burocracia para conduzir a delegação da ONU até Israel. Carpathia me quer como seu piloto mas primeiro quer que eu seja o capitão do Air Force One, é isso?"
Hattie dirigiu um sorriso tolerante e condescendente a Rayford, o que o deixou furioso. "Rayford Steele", ela disse em tom de voz professoral, "você ainda não entendeu nada, não? Você não sabe quem Carpathia realmente é."
Rayford ficou desorientado por alguns instantes. Ele sabia mais do que ela quem Carpathia realmente era. A dúvida era se ela suspeitava disso. "Então me conte quem ele é", disse Rayford. "Ajude-me a entender."
Hattie olhou para trás, como se estivesse aguardando a chegada de Carpathia a qualquer momento. Rayford sabia que ninguém conseguiria entrar sorrateiramente naquele enorme edifício com piso de mármore sem que o eco de seus passos fossem ouvidos. "Nicolae não vai devolver o avião."
"Como?"
"Você ouviu. O avião já está em Nova York. Você vai vê-lo hoje. Está sendo pintado."
"Pintado?"
"Você verá."
A mente de Rayford girava. O avião tinha sido pintado em Seattle antes de seguir para Washington, D.C. Por que seria pintado novamente?
"Como ele vai fazer para não devolvê-lo?"
"Ele vai agradecer ao presidente o presente que recebeu e..."
"Ele já agradeceu. Eu ouvi."
"Mas desta vez ele deixará claro que está agradecendo um presente e não um empréstimo. Você vai ser contratado pela Casa Branca e vai trazer o avião, recebendo seu salário como funcionário do presidente. O que o presidente poderá fazer? Dizer que foi traído? Dizer que Nicolae está mentindo? Ele apenas vai desejar ser tão generoso quanto Nicolae diz que ele é. Você não acha uma idéia brilhante?"
"Trata-se de uma grosseria, de um roubo. Por que eu deveria querer trabalhar para um homem como esse? E você? Por quê?"
"Vou trabalhar para Nicolae pelo tempo que ele me quiser aqui, Rayford. Nunca aprendi tanto em tão pouco tempo. Não se trata de roubo nenhum. Nicolae diz que os Estados Unidos estão tentando encontrar uma forma de ajudar a ONU, e a forma é esta. Você sabe que o mundo está se unificando e alguém vai precisar ser o líder desse novo governo universal. A doação do avião é uma prova de que o presidente Fitzhugh tem o secretário-geral Carpathia em alta consideração."
Hattie falava como um papagaio. Carpathia a doutrinara bem, talvez não para entender, mas pelo menos para acreditar.
"Está bem", resumiu Rayford. "Carpathia consegue de uma maneira ou outra que a Pan-Con e a Casa Branca coloquem meu nome em primeiro lugar na lista dos candidatos a piloto do Air Force One. Ele faz com que você me perturbe a ponto de eu querer mudar de cidade. Eu aceito o emprego, ele pega o avião e nunca mais o devolve. Eu sou o piloto, mas quem me paga é o governo dos Estados Unidos. E tudo isso tem relação com o fato de Carpathia finalmente tornar-se o líder do mundo."
Hattie apoiou o queixo nos dedos cruzados, com os cotovelos sobre a mesa, empinando a cabeça. "Não foi tão complicado assim, foi?"
"Eu só não entendo por que sou tão importante para ele."
"Ele me perguntou qual foi o melhor piloto com quem trabalhei e por quê."
"E eu venci", disse Rayford.
"Venceu."
"Você lhe contou que quase tivemos um caso?"
"Tivemos?"
"Não importa."
"Claro que não lhe contei e nem você vai querer lhe contar, se quiser preservar um bom emprego."
"Mas você contou-lhe que sou cristão."
"Sim, por que não? Você conta a todo mundo. Eu acho que ele também é cristão."
"Nicolae Carpathia?"
"Claro! Pelo menos ele vive de acordo com os princípios cristãos. Está sempre preocupado em fazer o bem. Esta é uma de suas frases prediletas. Assim como o assunto do avião. Ele sabe que os Estados Unidos querem presenteá-lo com o avião, mesmo que não estejam pensando nisso. Talvez eles se sintam um pouco confusos a princípio, mas como é para o bem do mundo, ficarão satisfeitos com este gesto. Parecerão heróis generosos aos olhos de todos, por causa de Carpathia. Não é uma atitude cristã?"
Buck estava escrevendo à mão rapidamente. Havia deixado seu gravador no hotel, dentro da mala, na esperança de apanhá-lo quando retornasse do escritório do Semanário Global para entrevistar o rabino Marc Feinberg, um dos principais defensores da reconstrução do templo judaico. Porém, assim que entrou no saguão do hotel, quase esbarrou em Feinberg, que arrastava um enorme baú, com rodas na base. "Lamento muito, meu amigo. Consegui lugar em um vôo mais cedo e estou de saída. Acompanhe-me."
Buck tirou o caderno de anotações de um dos bolsos e uma caneta do outro. "O que o senhor tem a dizer sobre os pronunciamentos?" perguntou Buck.
"Tenho a dizer o seguinte: Hoje eu me transformei em uma espécie de político. Se acredito que Deus é um conceito? Não! Acredito que Deus é uma pessoa! Se acredito que todas as religiões do mundo podem unir-se e tornar-se uma só? Não, provavelmente não. Meu Deus é um Deus cioso de seus direitos e não compartilhará sua glória com ninguém. Se temos condição de tolerar uns aos outros? Com certeza.
"Você talvez vai me perguntar por que estou dizendo que me tornei um político. Porque vou me empenhar na reconstrução do templo. Vou tolerar e cooperar com qualquer pessoa que tenha um bom coração, desde que minha fé no verdadeiro Deus de Abraão, Isaque e Jacó não venha a ser sacrificada. Não concordo com as idéias e os métodos de grande parte dessa gente, mas se eles quiserem prosseguir, vou fazer o mesmo. Acima de tudo, quero que o templo seja reconstruído em seu local primitivo. E essa idéia será levada adiante a partir de hoje. Tome nota de minhas palavras. O templo será reconstruído dentro de um ano."
O rabino atravessou rapidamente a porta de saída e pediu ao porteiro que chamasse um táxi. "Mas, senhor", disse Buck, "se o dirigente da nova religião universal considera-se um cristão..."
Feinberg fez um gesto de irritação com a mão. "Ora! Todos nós sabemos que o chefe da nova religião será Mathews e que ele provavelmente também será o novo papa! Considera-se um cristão? Ele é um cristão do princípio ao fim! Ele acredita que Jesus foi o Messias. Logo, logo vou acreditar que Carpathia é o Messias."
"O senhor está falando sério?"
"Creia-me, já pensei nisso. A missão do Messias é trazer justiça e paz duradoura. Veja o que Carpathia fez em questão de semanas! Ele não preenche todos os requisitos? Constataremos isso na segunda-feira. Você sabia que meu colega, o rabino Tsion Ben-Judá, está..."
"Sim, e vou continuar atento." Havia inúmeras outras questões que Buck poderia levantar acerca de Carpathia, mas antes ele precisava conversar pessoalmente com Ben-Judá. De Feinberg, ele só queria extrair a história do templo, portanto redirecionou o assunto. "O que há de tão importante a respeito da reconstrução do templo?"
O rabino Feinberg deu um passo à frente e virou o corpo, observando a fila de táxis, visivelmente preocupado com o pouco tempo de que dispunha. Apesar de não fitar Buck nos olhos, ele continuou sua explanação. Fez uma breve preleção, como se estivesse lecionando a um grupo de gentios interessados na história dos judeus.
"O rei Davi desejava construir um templo ao Senhor", ele disse. "Deus, porém, achou que Davi havia provocado muito derramamento de sangue por ser um guerreiro. Portanto, quem construiu o templo foi Salomão, o filho de Davi. O templo era magnífico. Jerusalém era a cidade onde Deus estabeleceria seu nome e onde seu povo se reuniria para adorá-lo. A glória de Deus tornou-se visível no templo e ele passou a ser um símbolo da mão de Deus protegendo a nação. O povo sentia-se tão protegido que, mesmo quando se voltava contra Deus, acreditava que Jerusalém era uma cidade intocável, enquanto o templo permanecesse ali."
Um táxi aproximou-se e o porteiro colocou a maleta dentro do baú. "Pague o porteiro e acompanhe-me", disse Feinberg. Buck sorriu, tirou uma nota do bolso e colocou-a na mão do porteiro. Mesmo que tivesse de pagar a corrida de táxi, a entrevista em si valeria a pena.
"Kennedy", disse Feinberg ao motorista.
"Este carro tem telefone?" perguntou Buck ao motorista.
O motorista entregou-lhe um telefone celular. "Só para chamadas com cartão de crédito."
Buck pediu a Feinberg que lhe mostrasse a conta do hotel onde constava o número do telefone. Chamou a chefe da administração e disse-lhe que sua mala deveria ficar guardada ali por mais tempo do que ele esperava. "Alguém já pegou a mala para o senhor."
"Alguém o quê?"
"Pegou a mala para o senhor. Disse que era seu amigo e que a entregaria ao senhor."
Buck estava perplexo. "A senhora deixou minha mala ser levada por um estranho que disse ser meu amigo?"
"Senhor, o caso não é tão grave assim. Acho que o homem poderá ser localizado facilmente, se for necessário. Ele aparece todas as noites nos noticiários."
"O Sr. Carpathia?"
"Sim, senhor. Um de seus assessores, um tal de Sr. Plank, prometeu entregar a mala ao senhor."
Feinberg demonstrou um ar de satisfação quando Buck desligou o telefone. "Vamos voltar ao templo!" ele gritou e o motorista tirou o pé do acelerador. "Você não!" disse Feinberg. "Nós!"
Buck perguntou a si mesmo o que um homem com tanta energia e entusiasmo faria em outra profissão. "O senhor seria um exímio racquetball player [jogador de um tipo semelhante ao squash]."
"Eu sou um exímio jogador de squash!" retrucou Feinberg. "Categoria 'menos A. E você?"
"Aposentado."
"Tão jovem!"
"Tão atarefado."
"Ninguém é atarefado demais para praticar exercícios físicos", disse o rabino, batendo de leve em seu estômago firme e rijo. "Ah, o templo", ele disse. O trânsito estava congestionado e Buck continuou a fazer anotações.
Quando Hattie se desculpou para atender ao telefone, Rayford tirou do bolso seu Novo Testamento que incluía o livro dos Salmos, dos quais ele havia memorizado alguns versículos. À medida que sua ansiedade sobre a reunião com Carpathia começou a intensificar-se, ele passou a tentar localizar seus versículos favoritos.
Encontrou o Salmo 91 e leu os versículos que ele havia sublinhado. "O que habita no esconderijo do Altíssimo, e descansa à sombra do Onipotente, diz ao Senhor: Meu refúgio e meu baluarte, Deus meu em quem confio. Caiam mil ao teu lado, e dez mil à tua direita; tu não serás atingido. Nenhum mal te sucederá, praga nenhuma chegará à tua tenda. Porque aos seus anjos dará ordens a teu respeito, para que te guardem em todos os teus caminhos."
Quando Rayford levantou os olhos, Hattie já tinha desligado o telefone e olhava para ele com ar de expectativa. "Desculpe-me", ele disse, fechando a Bíblia.
"Está tudo bem", ela disse. "O secretário-geral já pode recebê-lo."
Diante da afirmativa do motorista de que chegariam ao aeroporto a tempo, Feinberg voltou ao assunto. "O templo e a cidade de Jerusalém foram destruídos pelo rei Nabucodonozor. Setenta anos depois, foi emitido um decreto para que a cidade fosse reconstruída e, em seguida, o templo. O novo templo, sob a direção de Zorobabel e Josué, o sumo sacerdote, era tão inferior ao templo de Salomão que alguns anciãos choraram quando viram seus alicerces.”
"Mesmo assim, o templo serviu ao povo de Israel até ser profanado por Antíoco Epífanes, um legislador greco-romano. Por volta do ano 40 a.C, Herodes, o Grande, derrubou peça por peça do templo e reconstruiu-o. O templo passou a ser conhecido como Templo de Herodes. E você sabe o que aconteceu depois."
"Sinto muito, não sei."
"Você escreve sobre religião e não sabe o que aconteceu com o Templo de Herodes?"
"Na verdade, nesta reportagem sou um reserva do articulista religioso."
"Um reserva?"
Buck sorriu. "O senhor é um jogador de raquetball — categoria 'menos A' — e não sabe o que é reserva?"
"Não é uma palavra usada em squash", disse o rabino. "E com exceção do futebol americano, não me interesso por outros esportes. Deixe-me contar-lhe o que aconteceu com o Templo de Herodes. Tito, um general romano, sitiou Jerusalém e, apesar de ter dado ordens para que o templo não fosse destruído, os judeus não confiaram nele. Resolveram queimar o templo para impedir que caísse nas mãos dos pagãos. Hoje o Monte do Templo, local do antigo templo judaico, está ocupado pelos maometanos e abriga a mesquita muçulmana chamada Cúpula do Rochedo."
Buck estava curioso. "Como os muçulmanos foram persuadidos a transferir a Cúpula do Rochedo de lugar?"
"É uma prova da grandeza de Carpathia", disse Feinberg. "Quem, a não ser o Messias, poderia pedir aos devotos muçulmanos que mudassem o santuário que, na religião deles, é o segundo em importância depois de Meca, o local de nascimento de Maomé? Mas veja, a Cúpula do Rochedo no Monte do Templo está construída bem em cima do Monte Moriá, onde acreditamos que Abraão tenha mostrado sua submissão a Deus, dispondo-se a sacrificar seu filho Isaque. Evidentemente não cremos que Maomé seja divino, portanto acreditamos que nosso local sagrado está sendo profanado, enquanto a mesquita muçulmana estiver ocupando o Monte do Templo."
"Então hoje é um grande dia para Israel."
"Um grande dia! Desde que nossa nação foi estabelecida, temos reunido milhões de pessoas do mundo inteiro para a reconstrução do templo. A obra já começou. Muitas paredes pré-fabricadas estão terminadas e, em breve, serão enviadas para o local. Quero viver para assistir à reconstrução do templo. Ele será mais espetacular do que o templo da época de Salomão!"
"Finalmente nos conhecemos", disse Nicolae Carpathia, levantando-se e caminhando ao redor da mesa para apertar a mão de Rayford Steele. "Obrigado, Srta. Durham. Vamos nos sentar aqui mesmo."
Hattie saiu e fechou a porta. Nicolae apontou para uma cadeira e sentou-se na outra, diante de Rayford. "E assim fechamos nosso pequeno círculo."
Rayford sentia-se estranhamente calmo. Tinha orado por isso e sua mente estava repleta das promessas dos Salmos. "Como assim, senhor?"
"Acho interessante notar como o mundo é pequeno. Talvez seja por isso que acredito tanto que em breve seremos uma verdadeira comunidade global. Você acredita que vim a conhecê-lo por intermédio de um botânico israelense chamado Chaim Rosenzweig?"
"Ouvi falar de seu nome, evidentemente, mas não o conheço pessoalmente."
"Claro que não. Mas você o conhecerá. Se não for hoje, enquanto estiver aqui, será no sábado, no vôo para Israel. Chaim me apresentou a um jovem jornalista que escreveu uma reportagem sobre ele. O jornalista conheceu sua comissária de bordo, a Srta. Durham, no avião que você pilotava e depois apresentou-a a mim. Agora ela é minha assistente e apresentou você a mim. Que mundo pequeno!"
Earl Halliday dissera a mesma coisa quando ouviu falar que Hattie Durham, uma ex-funcionária da Pan-Con, estava trabalhando para o homem que queria Rayford como piloto do Air Force One. Rayford não disse nada a Carpathia. Não acreditava que o encontro entre eles havia sido coincidência. O mundo não era tão pequeno assim. Talvez todos eles tinham sido encaminhados para o lugar onde Deus queria que estivessem, e por esse motivo Rayford estava ali naquele dia. Não era uma situação que ele tinha almejado ou procurado, mas estava disposto a ouvir.
"Então, você quer ser o piloto do Air Force One."
"Não, senhor, não era esse o meu desejo. Estou disposto a pilotá-lo até Jerusalém com sua delegação, a pedido da Casa Branca, e depois vou decidir se aceito ou não o convite para o cargo de piloto."
"Você não procurou ocupar essa posição?"
"Não, senhor."
"Mas está disposto."
"Vou fazer uma tentativa."
"Sr. Steele, vou fazer um prognóstico. Presumo que depois de ver o avião, experimentar sua tecnologia de última geração, jamais desejará pilotar outro mais simples."
"Acredito que sim." Mas não por esse motivo, pensou Rayford. Só se for da vontade de Deus.
"Quero também contar-lhe um pequeno segredo, algo que ainda não foi divulgado. A Srta. Durham assegurou-me que você é um homem confiável, um homem de palavra e que recentemente tornou-se um homem religioso."
Rayford assentiu, não desejando dialogar.
"Vou confiar que você guardará segredo até a notícia ser divulgada. O Air Force One está sendo emprestado à Organização das Nações Unidas pelo presidente dos Estados Unidos como um gesto de apoio ao nosso trabalho."
"Os noticiários já divulgaram isso, senhor."
"Claro, mas ainda não divulgaram que, depois, o avião será doado a nós, junto com a tripulação, para nosso uso exclusivo."
"Quanta amabilidade da parte do presidente Fitzhugh."
"Quanta amabilidade", repetiu Carpathia. "E quanta generosidade."
Rayford compreendeu por que as pessoas eram atraídas pelo charme de Carpathia, mas, sentado diante daquele homem e sabendo que ele estava mentindo, era fácil resistir.
"Para quando está marcado seu vôo de volta?" perguntou Carpathia.
"Deixei-o em aberto. Estou à sua disposição. No entanto, preciso estar em casa antes de partirmos no sábado."
"Gosto de seu estilo", disse Carpathia. "Você está à minha disposição. Isso é ótimo. Evidentemente você deve entender que, se aceitar este emprego — e sei que vai aceitá-lo — não deverá fazer dele uma plataforma para proselitismos."
"Não entendi."
"Estou dizendo que a Organização das Nações Unidas, que passará a ser conhecida como Comunidade Global, e eu em particular, somos contra o sectarismo."
"Sou um crente em Cristo", disse Rayford. "Freqüento igreja. Leio minha Bíblia. Digo às pessoas o que acredito."
"Mas não no trabalho."
"Se o senhor vier a ser meu superior e der essa ordem, serei obrigado a obedecer."
"Serei seu superior, darei essa ordem e você obedecerá", disse Carpathia. "Creio que estamos entendidos."
"Certamente."
"Gosto de você e acredito que podemos trabalhar juntos."
"Eu não conheço o senhor, mas acredito que posso trabalhar com qualquer pessoa." De onde partira essa frase? Rayford quase sorriu. Se ele podia trabalhar com o Anticristo, com quem mais não poderia?
Assim que o táxi encostou no meio-fio do Aeroporto Internacional Kennedy, o rabino Marc Feinberg disse: "Estou certo de que você não se importará de incluir esta corrida de táxi em sua conta, uma vez que me entrevistou."
"Certamente", disse Buck. "O Semanário Global tem a satisfação de proporcionar-lhe uma corrida de táxi até o aeroporto, desde que não seja necessário levá-lo de avião para Israel."
"Já que você mencionou isso...", disse o rabino com um piscar de olhos, porém não completou a frase. Limitou-se a fazer um aceno, pegou sua bagagem e entrou apressadamente no terminal.
"Só chamadas com cartão..."
"Eu sei, só chamadas com cartão de crédito." Buck ligou para Steve Plank na ONU. "Qual o motivo para você surripiar minha mala?"
"Eu só estava tentando fazer-lhe um favor, velho companheiro. Você está no Plaza? Levarei a mala para você."
"Estou no Plaza, mas vou até aí. Não era isso que você pretendia?"
"Que assim seja."
"Estarei aí em uma hora."
"Carpathia talvez não esteja aqui."
"Não vou até aí para ver Carpathia. Vou até aí para ver você."
Nicolae Carpathia apertou o botão do interfone. "Srta. Durham, já providenciou o carro para nos levar até o hangar?"
"Sim, senhor. Está na entrada dos fundos."
"Estamos prontos."
"Darei um toque quando o pessoal da segurança chegar."
"Obrigado." Nicolae virou-se para Rayford. "Quero que você veja o avião."
"Certamente", disse Rayford, embora preferisse voltar para casa. Por que cargas d'água havia dito que estava à disposição de Carpathia?
"Vamos voltar para o hotel, senhor?"
"Não", respondeu Buck. "Para o edifício da ONU, por favor. Eu gostaria de usar novamente seu telefone celular. Posso?"
Quando Hattie deu o toque, Carpathia levantou-se e sua porta foi aberta. Dois seguranças postaram-se ao lado de Nicolae e Rayford enquanto eles se dirigiam para os corredores até o elevador de serviço. Desceram até o subsolo e caminharam em direção ao estacionamento onde havia uma limusine aguardando. O motorista levantou-se rapidamente e abriu a porta para Carpathia. Rayford foi encaminhado para o outro lado do carro, onde a porta já estava aberta.
Rayford notou algo estranho. Carpathia não lhe oferecera nada para beber enquanto estiveram em seu escritório e agora insistia em mostrar-lhe tudo o que havia na limusine em matéria de bebidas, desde uísque e vinho até cerveja e refrigerantes. Rayford aceitou um refrigerante.
"Você não bebe?"
"Não bebo mais."
"Costumava beber?"
"Nunca fui um beberrão, mas abusava de vez em quando. Não bebi mais nada desde que perdi minha família."
"Lamento muito a perda de sua família."
"Obrigado, mas já superei essa fase. Sinto imensamente a falta deles..."
"Claro."
"Mas sinto-me em paz."
"Sua religião acredita que Jesus Cristo os levou para o céu, não é isso?"
"Isso mesmo."
"Não vou fingir que aceito essa crença, mas respeito em razão do conforto que ela lhe trouxe."
Rayford gostaria de argumentar, mas lembrou-se do conselho prudente de Bruce Barnes quanto ao fato de 'testemunhar' ao Anticristo.
"Também não sou um beberrão", disse Carpathia, tomando um gole de água mineral gasosa.
"Por que você não quis que eu levasse sua mala ao hotel?" perguntou Steve Plank. "Eu teria ido até lá."
"Necessito de um favor."
"Podemos fazer uma troca de favores, Buck. Diga sim à proposta de Carpathia e jamais precisará pedir favores nesta vida."
"Para lhe dizer a verdade, Steve, neste momento tenho tantas reportagens excelentes nas mãos que não há tempo sequer para pensar em mudar de emprego."
"Escreva-as para nós."
"De jeito nenhum. Mas ajude-me, se você puder. Quero encontrar-me com aqueles dois indivíduos que estão no Muro das Lamentações."
"Nicolae odeia aqueles dois. Acha que são malucos. E é evidente que são."
"Então ele não teria problemas em me ajudar a entrevistá-los."
"Vou ver o que posso fazer. Hoje ele está ocupado, falando com um candidato a piloto.”
"Não diga!"
Carpathia e Rayford desceram da limusine em um imenso hangar do aeroporto Kennedy. Carpathia disse ao motorista: "Diga a Frederick para preparar a apresentação de sempre."
Quando as portas do hangar se abriram, o avião foi magnificamente iluminado por holofotes. No lado diante de Rayford viam-se as palavras Air Force One e o brasão da presidência dos Estados Unidos. No entanto, quando se dirigiram para o outro lado, Rayford viu um grupo de homens em cima de um andaime, pintando o avião. O brasão e o nome tinham sido eliminados. Em seu lugar, havia o antigo logotipo da Organização das Nações Unidas mas com as palavras Comunidade Global pintadas por cima do nome atual. E no lugar do nome da aeronave os homens estavam terminando de pintar as palavras Global Community One (Comunidade Global Um).
"Quanto tempo vai demorar para vocês terminarem de pintar os dois lados?" perguntou Carpathia ao chefe da equipe.
"A tinta estará seca em ambos os lados por volta da meia-noite!" foi a resposta. "Levamos seis horas para pintar este lado. A pintura do outro lado será mais rápida. Estará em perfeitas condições para voar no sábado!"
Carpathia fez um sinal de positivo com o polegar e os funcionários do hangar aplaudiram. "Gostaríamos de subir a bordo", disse Carpathia em voz baixa. Em poucos minutos os homens instalaram um elevador improvisado para permitir que os dois entrassem pela porta traseira daquele avião cintilante.
Rayford já havia conhecido inúmeros aviões novos e geralmente ficava impressionado, mas nenhum era semelhante ao que ele via naquele momento.
Cada detalhe foi luxuosamente instalado e todos eram funcionais e maravilhosos. Na parte traseira havia banheiros completos com chuveiros. Depois via-se a área reservada à imprensa, com tamanho suficiente para instalar divisórias. Cada poltrona tinha um telefone, tomada para modem, videocassete e TV. O restaurante ficava na parte central, completamente abastecido e com espaço para os passageiros movimentarem-se e respirarem.
Perto da parte frontal estavam os aposentos presidenciais e a sala de reuniões. Um dos cômodos continha sofisticados equipamentos de segurança e vigilância, serviço de comunicação de alta tecnologia, permitindo que o avião se comunicasse com qualquer parte do mundo.
Logo atrás da cabina do piloto viam-se os aposentos da tripulação, incluindo um apartamento privativo para o piloto. "Talvez você não queira permanecer dentro do avião quando pousarmos em algum lugar durante alguns dias", disse Nicolae, "mas com certeza vai ser difícil encontrar acomodações semelhantes fora daqui."
Enquanto Buck se encontrava na sala de Steve, Hattie entrou para avisar que Nicolae saíra por alguns minutos. "Oh, Sr. Williams!" ela disse. "Não me canso de agradecer-lhe por ter-me apresentado ao Sr. Carpathia."
Buck não sabia o que falar. Não queria dizer que foi uma satisfação. Na verdade, sentia-se arrependido. Fez apenas um sinal afirmativo com a cabeça.
"Você sabe com quem ele está hoje?" ela perguntou.
Ele sabia, mas fingiu ignorar. "Com quem?"
Buck entendeu que deveria estar sempre alerta diante dela, de Steve e principalmente de Carpathia. Eles não poderiam saber de sua amizade com Rayford, e se tivesse condições de impedir que os três tomassem conhecimento de seu caso com Chloe, seria melhor ainda.
"Rayford Steele. Ele era o piloto do avião em que conheci você."
"Eu me lembro", disse Buck.
"Você sabia que ele está sendo avaliado para ser o piloto do Air Force One!"
"Seria uma honra para ele, não?"
"Ele merece. É o melhor piloto com quem já trabalhei."
Buck sentia-se embaraçado por falar sobre seu novo amigo e irmão em Cristo como se mal o conhecesse. "O que faz dele um bom piloto?" perguntou Buck.
"Decolagens e aterrissagens suaves. Ele se comunica muito com os passageiros. Trata a tripulação como colegas e não como escravos."
"Impressionante", disse Buck.
"Você gostaria de conhecer o avião?" perguntou Steve.
"Posso?"
"Ele está no hangar suplementar do aeroporto Kennedy."
"Acabei de vir de lá."
"Gostaria de voltar?"
Buck deu de ombros. "Já designaram outra pessoa para fazer a reportagem sobre o novo avião, sobre o piloto e outros assuntos relacionados, mas com certeza eu adoraria conhecer o avião."
"Você poderá voar nele até Israel." "Não, não posso", disse Buck. "Meu chefe foi muito claro quanto a esta questão."
Quando Rayford voltou para casa naquela noite, sabia que Chloe seria capaz de adivinhar que ele estava pensativo. "Bruce cancelou a reunião desta noite", ela disse.
"Ótimo. Estou exausto."
"Então fale-me sobre Carpathia."
Rayford tentou. O que havia para ser dito? O homem era amistoso, charmoso, sereno e, se não tivesse mentido, Rayford teria pensado que eles o haviam julgado mal. "Acho que não há mais dúvidas quanto à sua identidade, você concorda?" ele deduziu.
"Em minha mente, não", ela disse. "Mas ainda não o conheço pessoalmente."
"Sabendo quem você é, acho que ele não a enganaria nem por um segundo."
"Assim espero", ela disse. "Mas Buck admite que ele é um assombro."
"Você teve notícias de Buck?"
"Ele ficou de ligar hoje à meia-noite, horário de Nova York."
"Será que vou precisar ficar acordado para ter a certeza de que você não vai cair no sono?"
"É difícil. Ele ainda não sabe que comemos nossos doces na mesma hora. Eu não poderia deixar de contar-lhe isso por nada deste mundo."
QUATORZE
Buck Williams estava tirando proveito de todas as suas habilidades jornalísticas. No sábado, depois de tentar dormir um pouco no Hotel Rei Davi para recuperar o cansaço da viagem, deixou recados para Chaim Rosenzweig, Marc Feinberg e até mesmo para Peter Mathews. De acordo com Steve Plank, Nicolae Carpathia recusara o pedido de Buck para ajudá-lo a aproximar-se dos dois pregadores diante do Muro das Lamentações.
“Eu já contei a você, disse Steve. Ele acha que aqueles indivíduos são loucos e está desapontado por você pensar que merecem uma reportagem.”
“E ele não conhece ninguém que possa me ajudar a chegar lá?”
“É uma área restrita.”
“Exatamente o meu ponto forte. Será que finalmente descobrimos algo que Nicolae, o Grande, não pode fazer?”
Steve zangou-se. “Você sabe tanto quanto eu que Carpathia pode comprar o Muro das Lamentações – disse em tom irado. Mas você não chegará perto daquele lugar sem sua ajuda. Ele não quer você lá, Buck. Pelo menos uma vez na vida, procure entender e não se meta.”
“Ah! Até parece que sou assim.”
“Buck, deixe-me perguntar-lhe uma coisa. Se você afrontar Carpathia e depois recusar sua proposta ou deixá-lo tão irritado a ponto de ele desistir de contratá-lo, onde vai trabalhar?”
“Vou trabalhar.”
“Onde? Você não vê que ele exerce influência em qualquer lugar? O povo o adora! Fará qualquer coisa por ele. As pessoas saem de uma reunião com ele e passam a fazer coisas que jamais sonharam fazer.”
Não me diga! pensou Buck.
“Tenho muito trabalho a fazer — disse Buck. — De qualquer maneira, obrigado.”
“Neste momento você tem trabalho. Mas nada é permanente.”
Steve jamais proferira palavras tão verdadeiras, apesar de não saber.
A segunda batalha de Buck foi com Peter Mathews, que estava escondido em uma suíte de cobertura em um hotel cinco estrelas de Tel-Aviv. Apesar de ter recebido o recado de Buck, não dera a devida atenção. “Admiro você, Williams — ele disse — mas acho que já lhe passei as melhores informações que sei, tanto confidenciais como não-confidenciais. Não tenho nenhuma ligação com os indivíduos do Muro, mas vou-lhe dar uma opinião, se é isso que você quer.”
“Só quero encontrar alguém que tenha condições de me aproximar dos dois, a fim de que eu possa conversar com eles. Se quiserem me matar, me queimar ou ignorar minha presença, é prerrogativa deles.”
“Tenho permissão para aproximar-me do Muro das Lamentações por causa de minha posição, mas não estou interessado em ajudá-lo a chegar lá. Sinto muito. Acho que esses indivíduos são dois anciãos estudiosos do Torá, fingindo ser Moisés e Elias reencarnados. Seus trajes são horríveis e suas pregações, piores ainda. Não tenho idéia por que as pessoas morreram quando tentaram ofendê-los. Talvez esses dois bobocas tenham compatriotas escondidos no meio das massas que tiram da frente quem os ameaça. Agora preciso ir. Você estará presente por ocasião da assinatura do tratado na segunda-feira?”
“Estou aqui por esse motivo, senhor.”
“Então nos encontraremos lá. Faça um favor a si mesmo e não manche sua reputação escrevendo uma reportagem sobre esses dois. Se você quiser uma reportagem, acompanhe-me num passeio hoje à tarde, quando visitarei os possíveis locais para a instalação do Vaticano em Jerusalém.”
“Mas como o senhor explica o fato de não ter chovido em Jerusalém desde que esses dois começaram a pregar?’”
“Eu não dou a mínima atenção a isso. Talvez até as nuvens não queiram ouvir o que eles têm a dizer. De qualquer forma, é raro chover por aqui.”
Rayford conheceu a tripulação do Global Community One apenas poucas horas antes da decolagem. Nenhum dos tripulantes trabalhara na Pan-Continental. Durante uma rápida conversa preliminar com eles, Rayford enfatizara que a segurança era um requisito de suma importância. “É por isso que cada um de nós está aqui. Os procedimentos corretos e o protocolo vêm depois. Devemos fazer tudo de acordo com o regulamento e manter em dia nosso diário de bordo e a conferência de todos os itens da aeronave. Devemos estar vigilantes, com os pés no chão e servir a nossos patrões e passageiros. Embora tenhamos de dar tratamento diferenciado às autoridades e servi-las, devemos ter em mente que a segurança dessas pessoas é a nossa maior preocupação. A tripulação mais eficiente é a tripulação invisível. Os passageiros sentem conforto e segurança quando vêem uniformes e bom atendimento, mas não nos vêem individualmente.”
O primeiro co-piloto de Rayford era mais velho que ele e provavelmente gostaria de ocupar a posição de piloto. No entanto, era simpático e eficiente. O navegador era um jovem que Rayford não teria escolhido, mas que dava conta do recado. Os comissários de bordo tinham trabalhado junto no Air Force One e pareciam estar muito impressionados com a nova aeronave. Rayford não poderia culpá-los por isso. Tratava-se de uma maravilha da tecnologia, porém em breve eles já estariam acostumados e não mais haveria motivos para espanto.
Pilotar o 757 era, conforme Rayford comentara com o examinador em Dallas, a mesma coisa que sentar-se ao volante de um Jaguar. Contudo, a empolgação foi desaparecendo durante o vôo. Logo depois da decolagem, Rayford deixou a aeronave por conta do co-piloto e dirigiu-se a seus aposentos particulares. Esticou-se na cama e, de repente, se deu conta de sua solidão. Como Irene ficaria orgulhosa naquele momento, quando ele tinha alcançado a posição máxima na aviação mundial. Para ele, no entanto, isso significava muito pouco, apesar de sentir dentro de si que estava cumprindo a vontade de Deus. Por que motivo, ele não fazia idéia. Porém, no fundo Rayford tinha a certeza de que não mais voaria pela Pan-Con.
Telefonou a Chloe, acordando-a. “Sinto muito, Chio”, ele disse.
“Não se preocupe, papai. Como você está? Empolgado?”
“Ah, sim. Não posso negar isso.”
Eles já haviam conversado que as comunicações entre o ar e a terra provavelmente seriam vigiadas, portanto não deveria haver palavras depreciativas a respeito de Carpathia nem de qualquer outra pessoa ao redor dele. Também não mencionariam o nome de Buck.
“ Você conhece alguém daí?”
“Somente Hattie. Estou me sentindo muito só.”
“Eu também. Não conversei com ninguém mais. Devo receber um telefonema na segunda-feira de manhã, seu horário. Quando você chegará a Jerusalém?”
“Dentro de mais ou menos três horas pousaremos em Tel-Aviv e seremos transportados para Jerusalém em carros de luxo.”
“Você não vai pousar em Jerusalém?”
“Não. Um 757 não tem condições de pousar lá. Tel-Aviv fica apenas a cinqüenta e poucos quilômetros de Jerusalém.”
“Quando você vai voltar?”
“Estamos programados para sair de Telavive na terça-feira de manhã, mas agora estão dizendo que voaremos para Bagdá na segunda à tarde e sairemos de lá na terça de manhã. Isto aumenta o percurso total em seiscentas milhas aéreas, cerca de mais uma hora.”
“Por que Bagdá?”
“É o único aeroporto perto da Babilônia que comporta uma aeronave deste tamanho. Carpathia quer dar uma chegada até a Babilônia para contar seus planos ao povo de lá.”
“Você vai junto com ele?”
“Imagino que sim. Babilônia fica cerca de oitenta quilômetros ao sul de Bagdá, de ônibus. Se eu aceitar este emprego, imagino que vou conhecer uma grande parte do Oriente Médio nos próximos anos.”
“Eu já estou com saudade de você. Gostaria de estar aí.”
“Sei de quem você está com saudade, Chloe.”
“Minha saudade inclui você, papai.”
“Ah, dentro de um mês serei apenas um zero à esquerda para você. Então, vou poder ver de perto aonde você e esse tal de quem está com saudade vão chegar.”
“Bruce ligou. Ele recebeu um telefonema estranho de uma senhora chamada Amanda White, que diz ter conhecido a mamãe. Ela contou a Bruce que viu a mamãe apenas uma vez num dos grupos de estudos bíblicos da igreja e que não se lembra exatamente do nome dela. Ela só se lembra que o nome da mamãe soava como ferro e aço.”
“Hum — disse Rayford — Irene Steele. Nunca pensei nela dessa maneira. O que aquela senhora queria?”
“Ela contou que se tornou cristã em grande parte por lembrar-se do que a mamãe disse naquele estudo bíblico, e agora está procurando uma igreja. Ela queria saber se a Igreja Nova Esperança ainda estava de pé e funcionando.”
“Por onde ela tem andado?”
“Chorando a perda do marido e de duas filhas adultas. Ela os perdeu no Arrebatamento.”
“Se sua mãe foi tão importante em sua vida, como essa senhora não consegue lembrar-se do nome dela?”
“Sei lá — disse Chloe.”
Buck deu um cochilo de uma hora e meia antes de receber uma ligação de Chaim Rosenzweig, que acabara de chegar.
“Até eu vou precisar adaptar-me ao fuso horário, Cameron, disse Rosenzweig. — Já fiz tantas vezes esta viagem e, no entanto, ainda sinto os efeitos da mudança de horário. Há quanto tempo você está em nosso país?”
“Cheguei ontem de manhã. Preciso de sua ajuda. — Buck contou a Rosenzweig que gostaria de aproximar-se do Muro das Lamentações. — Já tentei — ele disse — mas devo ter ficado a quase cem metros de distância. Os dois homens estavam pregando, e a multidão era muito maior do que vi pela CNN.”
“Oh, a multidão é bem maior agora que estamos perto da assinatura do acordo. Em vista disso, talvez os dois intensifiquem suas atividades. Mais e mais pessoas estão chegando para ouvi-los, e aparentemente eles estão vendo judeus ortodoxos convertendo-se ao Cristianismo. Muito estranho. No caminho, Nicolae perguntou sobre os dois e os viu nos noticiários da TV. Ele ficou tão zangado como nunca vi.”
“O que ele disse?”
“Esse é o problema. Ele não disse nada. Seu rosto ficou vermelho e ele cerrou a mandíbula. Só o conheço um pouco, você sabe, mas sei quando ele está perturbado.”
“Chaim, preciso de sua ajuda.”
“Cameron, não sou ortodoxo. Não posso ir até o Muro, e mesmo que pudesse, provavelmente não me arriscaria. Também não o aconselho a ir. O fato mais importante aqui é a assinatura do acordo na segunda-feira de manhã. Nicolae, a delegação israelense e eu finalizamos os preparativos em Nova York na sexta-feira. Nicolae foi brilhante. Ele é magnífico, Cameron. Aguardo com ansiedade o dia em que nós dois estaremos trabalhando para ele.”
“Chaim, por favor. Sei que qualquer jornalista do mundo gostaria muito de ter uma entrevista exclusiva com os dois pregadores, mas sou o único que não vai desistir até conseguir ou morrer tentando.”
“Não faça isso.”
“Doutor, nunca lhe pedi nada a não ser um pouco de seu tempo, e o senhor sempre demonstrou generosidade.”
“Não sei o que posso fazer por você, Cameron. Eu mesmo o levaria até lá, se pudesse. Mas, de qualquer forma, você não vai conseguir.”
“Mas o senhor conhece alguém que tenha acesso.”
“Claro que conheço! Conheço muitos judeus ortodoxos, muitos rabinos, mas...”
“E quanto a Ben-Judá?”
“Ora, Cameron! Ele está muito atarefado. Sua apresentação ao vivo sobre o projeto de pesquisa irá ao ar na segunda-feira à tarde. Ele deve estar se preparando como um estudante antes das provas de fim de ano.”
“Talvez não, Chaim. Talvez ele já tenha feito tantas pesquisas que poderia falar sobre esta última durante uma hora, sem ter nenhuma anotação em mãos. Talvez ele já esteja pronto e aguardando algo com que se ocupar, a fim de não exagerar nos preparativos ou não ficar estressado enquanto aguarda o grande momento.”
Houve silêncio do outro lado da linha, e Buck orou para que Rosenzweig capitulasse.
“Não sei, Cameron. Eu não gostaria de ser incomodado numa ocasião tão próxima a um grande momento.”
“Você me faria apenas um favor, Chaim? Só peço que ligue para ele, deseje-lhe boa sorte e sinta como está sua programação neste fim de semana. Eu irei a qualquer lugar, a qualquer hora, se ele puder me fazer chegar perto do Muro.”
“Só se ele estiver à procura de uma diversão — disse Rosenzweig.. — Se eu perceber que ele está mergulhado em seu trabalho, não vou nem abordar o assunto.”
“Obrigado! O senhor me dará um retorno?”
“De uma forma ou outra. Cameron, por favor não fique muito esperançoso nem me culpe se ele não tiver tempo.”
“Eu jamais faria isso.”
“Eu sei. Percebo o quanto isso é importante para você.”
Buck estava desligado do mundo e não tinha idéia de quanto tempo o telefone estava tocando. Sentou-se na cama e viu o sol da tarde de domingo adquirir uma tonalidade alaranjada. Pela janela entrava uma réstia de luz, formando um belo desenho sobre a cama. Quando esticou o braço para atender o telefone, Buck viu sua imagem de relance no espelho. Suas faces estavam vermelhas e vincadas, o cabelo completamente despenteado. Sentia um gosto horrível na boca, e dormira sem trocar de roupa.
“Alô!”
“Aí ês Chamerown Weeleeums? — soou a voz grossa do outro lado da linha com sotaque hebraico.”
“Sim, senhor.”
“Aqui ês Dochtor Tsion Ben-Judah.”
Buck levantou-se imediatamente, como se estivesse diante de um mestre na sala de aula. — Sim, Dr. Ben-Judá. É um privilégio falar com o senhor!
“Obrigado, disse com dificuldade o Dr. Ben-Judá. — Estou ligando de perto de seu hotel.”
Buck esforçou-se para compreender. “Sim?”
“ Tenho um carro e um motorista.”
“Um carro e um motorista, entendi, sim, senhor.”
“Você está pronto para ir?”
“Ir?”
“Ao Muro.”
“Oh, sim, senhor... quero dizer, não, senhor. Vou precisar de dez minutos. O senhor pode aguardar dez minutos?”
“Eu devia ter telefonado antes. Nosso amigo disse que era um caso de certa urgência para você.”
Buck analisou rapidamente aquele estranho modo de falar.
“Um caso de urgência, sim! Só preciso de dez minutos! Obrigado, senhor!”
Buck tirou as roupas apressadamente e entrou debaixo do chuveiro. Não esperou a água esquentar. Ensaboou o enxaguou o corpo e, em seguida, barbeou-se o mais rápido que pôde.
Como não tinha tempo a perder procurando o adaptador elétrico para o secador de cabelos, pegou uma toalha e esfregou com tanta força seus cabelos compridos que pensou estar arrancando metade do couro cabeludo.
Passou um pente nos cabelos e escovou os dentes. Que roupa deveria usar para ir ao Muro das Lamentações? Ele sabia que não teria permissão para entrar, mas será que ofenderia seu anfitrião se não usasse paletó e gravata? Ele não tinha trazido terno. Não tinha planejado o que vestir mesmo por ocasião da assinatura do tratado na manhã seguinte.
Escolheu uma camisa comum de algodão grosso, calça jeans, botas de cano curto e jaqueta de couro. Jogou seu gravador e sua câmera dentro de uma pequena sacola de couro e desceu correndo três lances de escada. Quando atravessou rapidamente a porta de saída, parou. Não tinha idéia da fisionomia do rabino. Será que ele era parecido com Rosenzweig, com Feinberg ou com nenhum dos dois?
Não se parecia com nenhum dos dois. Tsion Ben-Judá, trajando terno preto e chapéu de feltro preto, desceu do banco de passageiros de um Mercedes branco e acenou timidamente. Buck correu em sua direção.
— Dr. Ben-Judá? — ele disse, apertando sua mão. O rabino era um homem de meia-idade, magro, de fisionomia jovem, forte e traços pronunciados, e com apenas alguns fios grisalhos em seu cabelo castanho escuro.
Em seu inglês com sotaque, o rabino disse: “Em seu dialeto, meu primeiro nome soa mais ou menos como a cidade, Zion [Sião]. Você pode me chamar assim.”
“Zion? O senhor tem certeza?”
“Certeza de meu nome?. O rabino sorriu. — Tenho certeza.”
“Não, quero dizer, o senhor tem certeza de que posso chamá-lo...”
“Sei o que o você quer dizer, Sr. Williams. Pode me chamar de Zion.”
Para Buck, Zion não soava muito diferente de Tsion no modo de falar do Dr. Ben-Judá. “Por favor, chame-me de Buck.”
“Buck? — O rabino segurou a porta aberta enquanto Buck entrava e sentava-se ao lado do motorista.”
“É um apelido.”
“Está certo, Buck. O motorista não entende nenhuma palavra de inglês.”
Buck virou-se e viu o motorista com a mão estendida. Apertou a mão dele e o homem disse algo totalmente indecifrável. Buck limitou-se a sorrir e movimentar a cabeça afirmativamente. O Dr. Ben-Judá dirigiu-se ao motorista em hebraico, e o carro começou a rodar.
“Agora, Buck – disse o rabino enquanto Buck virava-se no banco para ver o rosto dele — o Dr. Rosenzweig disse que você quer ter acesso ao Muro das Lamentações, o que é impossível, você deve compreender. Só posso levar você até perto das duas testemunhas para que possa chamar a atenção deles, se tiver coragem.”
“As duas testemunhas? O senhor chama os dois de testemunhas? É assim que meus amigos e eu...”
O Dr. Ben-Judá levantou as duas mãos e virou a cabeça, indicando que não responderia nem comentaria aquela pergunta. — A pergunta é: você tem coragem?
“Tenho.”
“E não vai me responsabilizar por qualquer coisa que possa acontecer a você?”
“Claro que não, mas eu também gostaria de entrevistar o senhor.”
O rabino levantou as mãos novamente. — Deixei claro à imprensa e ao Dr. Rosenzweig que não estou concedendo entrevistas.
“Só quero algumas informações pessoais. Não vou perguntar-lhe sobre a pesquisa, porque estou certo de que após ter resumido três anos de estudos em uma hora de apresentação, o senhor explicará todas as suas conclusões amanhã à tarde.”
“Exatamente. Quanto a informações pessoais, tenho quarenta e dois anos. Cresci em Haifa, filho de rabino ortodoxo. Tenho dois doutorados, um em história judaica e um em línguas antigas. Estudei e lecionei durante a vida inteira e me considero mais um erudito e historiador do que um educador, embora meus alunos sejam generosos quando me avaliam. Penso, oro e leio a maior parte do tempo em hebraico, e fico embaraçado por falar tão mal o inglês, principalmente num país igualitário como este. Conheço a gramática e a sintaxe inglesas melhor do que muitos ingleses e muitos americanos — você está fora disso, é claro — mas nunca tive tempo de praticar e muito menos de aperfeiçoar minha dicção. Sou casado há apenas seis anos e tenho dois filhos pequenos, um menino e uma menina. Há pouco mais de três anos, fui comissionado por um órgão estatal para conduzir um estudo completo das passagens messiânicas a fim de que os judeus reconheçam o Messias quando ele vier. Foi o trabalho mais gratificante da minha vida. No processo, incluí o grego e o aramaico na lista dos idiomas antigos que domino, que agora chegam a vinte e dois. Estou empolgado por ter completado o trabalho e ansioso para revelar minhas descobertas ao mundo, via TV. Não pretendo que o estudo vá competir com qualquer outro que inclua sexo, violência ou humor, mas espero que gere controvérsias.
“Não sei o que mais perguntar — admitiu Buck.”
“Então é melhor terminarmos a entrevista e passarmos para o assunto do momento.”
“Tenho curiosidade de saber por que o senhor está investindo seu tempo nisto.”
“O Dr. Rosenzweig é um mentor e um dos colegas que mais prezo. Um amigo dele é amigo meu.’”
“Obrigado.”
“Admiro o trabalho seu. Li os artigos que você escreveu sobre o Dr. Rosenzweig e muitos outros. Além disso, os homens do Muro também me intrigam. Talvez a minha versatilidade em línguas ajude a nos comunicar com eles. Até agora, só sei que eles se comunicam com as massas que se reúnem ao seu redor. Eles falam com as pessoas que os ameaçam, mas, por outro lado, não conheço ninguém que tenha conversado com eles.”
O Mercedes estacionou perto de alguns ônibus de turismo, e o motorista aguardou enquanto o Dr. Ben-Judá e Buck subiam numa escada para avistar o Muro das Lamentações, a Colina do Tempo e tudo o que havia entre um e outro. — Nunca vi uma multidão tão grande como esta — disse o rabino.
“Mas todos estão em silêncio — cochichou Buck.”
“Os dois pregadores não usam microfones — explicou o Dr. Ben-Judá. — As pessoas que fazem barulho se arriscam. Há tanta gente querendo ouvir o que os dois homens têm a dizer que sempre existe alguém para ameaçar os arruaceiros.”
“Os dois nunca fazem uma pausa para descansar?”
“Ah, sim, fazem. De vez em quando um deles caminha ao redor daquele pequeno edifício ali e deita-se no chão, perto da cerca. Geralmente os dois se revezam para descansar e falar. Os homens que há pouco tempo foram consumidos pelo fogo tentaram atacar os dois pelo lado de fora da cerca enquanto eles descansavam. É por isso que ninguém se aproxima dos dois quando eles estão ali.”
“Talvez esta seja a minha melhor oportunidade — disse Buck.”
“É o que estou pensando.”
“O senhor vai comigo?”
“Só se deixarmos claro aos dois que não queremos lhes fazer nenhum mal. Eles mataram pelo menos seis pessoas e ameaçaram muitas outras. Um amigo meu esteve presente no dia em que eles queimaram quatro agressores, e ele jura que o fogo saiu da boca dos dois.”
“O senhor acredita nisso?”
“Não tenho motivos para duvidar de meu amigo, apesar de estarmos bem distantes dos dois.”
“Será que existe um momento apropriado para nos aproximarmos deles, ou devemos sondar o ambiente?”
“Acho melhor nos misturarmos à multidão, antes de mais nada.”
Eles desceram a escada e caminharam em direção ao Muro. Buck estava impressionado com a demonstração de respeito da parte do povo. A uma distância de doze ou quinze metros dos pregadores havia rabinos ortodoxos, curvando-se, orando e introduzindo papéis contendo orações nas fendas das pedras do Muro. De vez em quando, um dos rabinos virava-se para as testemunhas e levantava o braço com a mão fechada, gritando palavras em hebraico. A multidão pedia que se calasse. Às vezes, um dos pregadores respondia diretamente.
Quando Buck e o Dr. Ben-Judá se aproximaram da multidão, um rabino que estava diante do Muro ajoelhou-se, olhou para o céu e proferiu, aos berros, uma oração de angústia.
“Silêncio! — gritou um dos pregadores, e o rabino caiu num choro convulsivo. O pregador virou-se para a multidão.”
“Ele implora ao Deus Todo-poderoso que nos destrua por estarmos blasfemando seu nome! Mas ele é igual aos fariseus de antigamente! Ele não reconhece aquele que foi Deus, que é Deus e que será Deus eternamente! Viemos para testemunhar a divindade de Jesus Cristo de Nazaré!”
Com isso, o rabino que chorava prostrou-se e escondeu o rosto, tremendo de humilhação diante das palavras cruéis que ouvira.
“Você gostaria que eu traduzisse? — cochichou o Dr. Ben-Judá a Buck.”
“Traduzir o quê? A oração do rabino?”
“E a resposta do pregador.”
“Entendi o que o pregador disse.”
O Dr. Ben-Judá parecia perplexo. — Se eu soubesse que você fala hebraico fluentemente, teria sido muito mais fácil eu me comunicar com você.
“Eu não sei falar hebraico. Não entendi a oração do rabino, mas o pregador falou à multidão em inglês.”
Ben-Judá balançou a cabeça. – Eu me enganei. Às vezes esqueço em que língua estou falando ou ouvindo. Mas veja! Agora! Ele está falando em hebraico novamente. Está dizendo...
“Perdão por interromper o senhor, mas ele está falando em inglês. Existe um sotaque hebraico, mas ele está dizendo:”
"E Ele tem o poder de impedir que você caia..."
“Você está entendendo?!”
“Claro.”
O rabino demonstrou estar confuso e cochichou a Buck em tom de voz sinistro. “Ele está falando em hebraico.”
Buck virou-se e fixou o olhar nos dois pregadores. Eles revezavam-se para falar, frase por frase. Buck entendia cada palavra em inglês. Ben-Judá tocou de leve no ombro de Buck, e ambos entraram no meio da multidão. — Inglês? — perguntou Ben-Judá a um homem de características hispânicas que estava de pé ao lado da mulher e dos filhos.
— Espanhol — respondeu o homem, como se estivesse se desculpando.
O Dr. Ben-Judá imediatamente passou a conversar com ele em espanhol. O homem assentia com a cabeça e respondia afirmativamente. O rabino agradeceu-lhe e continuou a caminhar. Encontrou um norueguês e conversou com ele na língua nativa daquele homem, e depois conversou com alguns asiáticos. Ele segurou firme no braço de Buck e afastou-o da multidão, aproximando-se dos pregadores. Pararam a cerca de dez metros dos dois homens, separados por uma grade de ferro.
“Estas pessoas estão ouvindo os pregadores, cada uma em sua própria língua! — disse Ben-Judá com a voz estremecida. — Com certeza isto procede de Deus!”
“O senhor tem certeza?”
“Absoluta. Eu ouço os dois falando em hebraico. Você ouve os dois falando em inglês. A família do México conhece apenas um pouco de inglês e nada de hebraico. O homem da Noruega conhece um pouco de alemão e de inglês, mas nada de hebraico. Ele ouve os dois falando em norueguês. Oh Deus, oh Deus — complementou o rabino, e Buck percebeu que seu tom era de reverência. Estava com medo de que Ben-Judá desfalecesse.”
Iuuuuh! Gritou um jovem de botas surradas, calça caqui e camiseta branca, abrindo caminho por entre a multidão. As pessoas deitaram-se imediatamente no chão quando viram sua arma automática. Ele usava uma corrente dourada e tinha barba e cabelos pretos desgrenhados. Seus olhos escuros estavam injetados e ele rodava uma espécie de pandeiro no ar, para abrir caminho até os pregadores.
O jovem gritava algumas palavras num dialeto oriental que Buck não conseguia entender. Porém, enquanto Buck estava deitado no chão olhando por baixo do braço, o rabino Ben-Judá cochichou: — Ele diz que está em missão de Alá.
Buck estendeu o braço para pegar sua sacola e ligou o gravador enquanto o jovem corria para a frente da multidão. As duas testemunhas pararam de pregar e permaneceram lado a lado, fitando o jovem armado, enquanto ele se aproximava, correndo a toda velocidade e disparando tiros. Os pregadores continuaram firmes como uma rocha, sem falar, sem se mover, com os braços cruzados sobre seus trajes longos e esfarrapados. Quando o jovem chegou a uma distância de um metro e meio dos dois, pareceu chocar-se contra uma parede invisível. Ele caiu e rolou, e sua arma voou para longe. Sua cabeça bateu no chão ele começou a gemer.
De repente, um dos pregadores gritou: — Você está proibido de aproximar-se dos servos do Deus Altíssimo! Estamos sob sua proteção até o momento devido e causamos desgraça a qualquer um que se aproxime sem a proteção do próprio Jeová. — Enquanto ele terminava de falar, o outro soprou uma coluna de fogo da boca que reduziu a cinzas as roupas do jovem, consumiu seu corpo e órgãos e, em segundos, deixou no chão um esqueleto carbonizado, de onde saía fumaça. A arma derreteu-se e fundiu-se com o cimento, e o ouro derretido da corrente do jovem penetrou na cavidade de seu peito.
Deitado de bruços e boquiaberto, Buck pôs a mão nas costas do rabino, que tremia incontrolavelmente. As famílias correram gritando em direção a seus carros e ônibus, enquanto os soldados israelenses se aproximavam lentamente do Muro, com as armas engatilhadas.
Um dos pregadores falou. — Ninguém deve nos temer, se vier aqui para ouvir nosso testemunho a respeito do Deus vivo! Muitos creram e ouviram o que dissemos. Somente aqueles que nos querem agredir morrerão! Não temais!
Buck acreditou nele. Não tinha certeza se o rabino também acreditou. Ambos levantaram-se e começaram a afastar-se, porém os olhos das testemunhas estavam fixos neles.
Os soldados israelenses gritavam da calçada da praça pública. — Os soldados dizem que devemos sair daqui lentamente — traduziu o Dr. Ben-Judá.
“Quero ficar. — disse Buck. — Quero conversar com esses dois.”
“Você não viu o que acabou de acontecer?”
“Claro, mas ouvi também que eles não fazem nenhum mal aos ouvintes sinceros.”
“Você é um ouvinte sincero ou é um jornalista à procura de um furo de reportagem?”
“Sou as duas coisas — admitiu Buck.”
“Deus o abençoe — disse o rabino, virando-se e falando em hebraico com as duas testemunhas enquanto os soldados gritavam para que ele, Buck e as outras pessoas se afastassem dali. Buck e Ben-Judá olharam para os dois, que agora permaneciam em silêncio.”
“Eu lhes disse que voltaremos para encontrá-los às dez horas desta noite atrás do edifício onde eles descansam de vez em quando. Você tem condições de vir comigo?”
“Não rejeitaria este convite por nada deste mundo — disse Buck.”
Depois de terminar um jantar tranqüilo com parte de sua nova tripulação, Rayford recebeu um recado urgente de Chloe. A ligação de retorno demorou alguns minutos para ser completada, e Rayford desejou que ela lhe tivesse dado alguma indicação do que havia acontecido. Chloe não tinha o hábito de dizer que alguma coisa era urgente, se realmente não fosse. Ela atendeu após o primeiro toque.
“Alô! — ela disse. — Buck? Papai?”
“Sim, o que houve?”
“Como está Buck?”
“Não sei. Ainda não o vi.”
“Você vai vê-lo?”
“Com certeza, isto é, suponho.”
“Você sabe em que hospital ele está?”
“O quê?”
“Você não viu?”
“Vi o quê?”
“Papai, a notícia foi divulgada aqui hoje de manhã. As duas testemunhas diante do Muro das Lamentações queimaram um indivíduo até morrer, e todos os que estavam perto caíram no chão. Um dos dois últimos que ficaram estendidos ali era Buck.”
“Você tem certeza?”
“Absoluta.”
“Você sabe com certeza se ele foi ferido?”
“Não! Só pensei. Ele estava deitado no chão ao lado de um homem de terno preto, cujo chapéu caiu-lhe da cabeça.”
“Onde ele está hospedado?”
“No Hotel Rei Davi. Deixei um recado para ele. Disseram que a chave estava na portaria, mas que ele saíra. O que isso significa?”
“Algumas pessoas costumam deixar a chave na portaria sempre que saem do hotel. Não há nada de especial nisso. Tenho certeza de que ele vai telefonar para você.”
“Existe algum jeito de você descobrir se ele foi ferido?”
“Vou tentar. Vamos fazer o seguinte: se souber de alguma coisa, telefono para você, quer a notícia seja boa ou má.”
Os joelhos de Buck tremiam como gelatina. — O senhor está bem, rabino?
“Estou bem — respondeu o Dr. Ben-Judá — mas ainda não me recuperei do susto.”
“Sei o que está sentindo.”
“Quero acreditar que aqueles homens são de Deus.”
“Eu acredito que são — disse Buck.”
“Você acredita? Você é um estudioso da Bíblia?”
“Passei a estudá-la recentemente.”
“Venha. Quero mostrar-lhe uma coisa.”
Quando eles retornaram ao carro, o motorista do rabino estava de pé com a porta de seu lado aberta e o rosto pálido. Tsion Ben-Judá conversou com ele em hebraico, tranqüilizando-o. O motorista olhou firme para o rabino e depois para Buck, o qual forçou um sorriso.
Buck entrou no carro e sentou-se ao lado do motorista. Ben-Judá orientou o motorista em voz baixa para que estacionasse o mais perto possível do Golden Gate (Portão de Ouro), a leste da Colina do Templo. Convidou Buck para caminharem juntos até o portão de modo que ele pudesse interpretar as palavras rabiscadas em hebraico. — Veja. Aqui diz o seguinte: "Venha, Messias". E aqui: "Liberte-nos". E ali: "Venha em triunfo". Meu povo tem almejado, orado, observado e aguardado a chegada do Messias há séculos. Porém, uma parte do Judaísmo, até mesmo na Terra Santa, tornou-se secular e menos orientado biblicamente falando. Minha pesquisa foi solicitada quase como um fato inevitável. As pessoas perderam a noção exata do que ou de quem estão procurando, e muitas desistiram. E para que você comprove a intensa animosidade entre os muçulmanos e os judeus, veja este cemitério que muçulmanos construíram junto desta cerca aqui, do lado de fora.
“Qual é o significado?”
“A tradição judaica diz que no final dos tempos, o Messias e Elias conduzirão os judeus ao templo em triunfo através do portão do lado leste. Mas Elias é um sacerdote e, se atravessar um cemitério, será maculado, portanto os muçulmanos construíram um aqui para tornar impossível a entrada triunfal.”
Buck pegou seu gravador e ia pedir ao rabino que repetisse aquele pequeno trecho da história, mas percebeu que ainda estava ligado. — Veja isto — disse Buck. — Gravei toda a investida daquele jovem.
Ele voltou a fita até o ponto em que ouviram o tiroteio e os gritos. Depois ouviram o som do jovem caindo e a arma sendo atirada para longe. Em sua mente, Buck reteve a imagem do fogo saindo da boca de um dos pregadores. Na fita, o som foi semelhante ao de uma forte rajada de vento. Mais gritos. Em seguida, os pregadores gritaram numa língua que Buck não conseguiu entender.
“É hebraico! — disse o rabino Ben-Judá. — Com certeza você ouviu as palavras em hebraico!”
“Eles falaram em hebraico — admitiu Buck — e o gravador captou as palavras em hebraico. Mas eu as ouvi em inglês e tenho absoluta certeza.”
“Você disse que ouviu os dois prometerem que não causariam mal àquele que estivesse ali para ouvir o testemunho deles.”
“Entendi palavra por palavra.”
O rabino fechou os olhos. — O momento em que isto aconteceu é muito importante para minha apresentação.
Buck caminhou ao lado dele de volta para o carro. — Preciso dizer-lhe uma coisa. Acredito que seu Messias já veio.
“Sei disso, meu jovem. Estarei interessado no que os pregadores vão dizer quando você lhes contar isso.”
Rayford conversou com Steve Plank para constatar se algum de seus funcionários tinha notícia de mais uma morte no Muro das Lamentações. Não falou especificamente de Buck, pois não queria que Plank soubesse da amizade entre ambos.
“Sabemos de tudo o que aconteceu — disse Plank zangado. — O secretário-geral acredita que aqueles dois devem ser presos e julgados por assassinato. Ele só não entende por que o exército israelense parece tão impotente.”
“Talvez eles tenham medo de ser queimados.”
“Que chance teriam os dois contra uma arma de precisão de alta potência? Alguém cerca o local, tira fora os inocentes e mata aqueles dois. Pode ser uma granada ou um míssil.”
“Essa é a idéia de Carpathia?”
“Ouvi de sua própria boca.”
“Palavras de um verdadeiro pacifista.”
QUINZE
Rayford viu o noticiário e estava certo de que Chloe tinha razão. Era Buck Williams o homem que naquele momento estava deitado no chão, aparentemente com o corpo completamente chamuscado, a uma distância de pouco menos de dez metros das testemunhas e bem próximo do atirador. Porém, a TV de Israel continuou a reproduzir as imagens e, após observar a cena por mais alguns instantes, Rayford conseguiu tirar os olhos da testemunha que soprava fogo e observar as margens da tela. Buck estava se levantando rapidamente e ajudando o homem de terno preto a levantar-se também. Nenhum dos dois parecia estar ferido. Rayford ligou para o Hotel Rei Davi. Como Buck ainda não havia retornado, Rayford foi de táxi até o hotel e sentou-se no saguão para aguardar sua chegada. Sabendo que não deveria ser visto na companhia de Buck, Rayford planejava esgueirar-se até uma cabina telefônica assim que o avistasse.
“Na longa história do Judaísmo — estava dizendo o rabino Ben-Judá — existem claras evidências da mão protetora de Deus. Mais durante os tempos bíblicos, é claro, porém a proteção de Israel contra todas as guerras modernas, mesmo lutando em condição de inferioridade, é outro exemplo. A destruição da Força Aérea Russa, deixando a Terra Santa incólume, com certeza foi um ato de Deus.”
Buck virou-se para trás no banco do carro. — Eu estava aqui quando isso aconteceu.
“Li sua reportagem — disse Ben-Judá. — Mas pelo mesmo motivo os judeus aprenderam a ser céticos em relação ao que aparenta ser uma intervenção divina em suas vidas. Os que conhecem as Escrituras sabem que, apesar de Moisés ter tido o poder de transformar uma vara em serpente, os mágicos do Faraó também fizeram o mesmo. Eles transformaram a água em sangue, imitando Moisés. Daniel não foi o único interpretador de sonhos na corte do rei. Estou lhe contando isto só para explicar por que esses dois pregadores estão sendo vistos com tantas suspeitas. Seus atos são poderosos e terríveis, mas sua mensagem é um anátema no modo de pensar dos judeus.”
“Mas eles estão falando sobre o Messias! — disse Buck.”
“E parecem ter o poder de sustentar suas afirmações — disse Ben-Judá. — Porém a idéia de Jesus ter sido o Messias judeu é arcaica, tem milhares de anos. O nome de Jesus é tão profano aos judeus como o racismo e os epítetos são para outras minorias.”
“Algumas pessoas converteram-se aqui — disse Buck. — Eu vi isso nos noticiários, gente curvando-se e ajoelhando-se diante da cerca, tornando-se seguidores de Cristo.”
“A duras penas — disse o rabino. — E eles são uma grande minoria. Por mais boa impressão que essas testemunhas de Cristo possam causar, você não verá um número significativo de judeus converter-se ao Cristianismo.”
“Esta é a segunda vez que o senhor chama os pregadores de testemunhas — disse Buck. — O senhor sabe que isso é o que a Bíblia...”
“ Sr. Williams — interrompeu o rabino Ben-Judá — não se engane ao pensar que sou apenas um estudioso do Torá. Você deve entender que meus estudos incluíram as obras sagradas de todas as principais religiões do mundo.”
“Então como o senhor o explica o Novo Testamento, uma vez que o conhece?”
“Em primeiro lugar, você talvez esteja exagerando ao dizer que eu "conheço" o Novo Testamento. Não posso afirmar que o conheço tanto quanto minha Bíblia. Só passei a aprofundar-me no estudo do Novo Testamento nos últimos três anos. Em segundo lugar, você está extrapolando a ética jornalística.”
“Não estou perguntando como jornalista! — disse Buck. — Estou perguntando como cristão!”
“Não confunda gentio com cristão — disse o rabino. — Muitas, muitas pessoas se consideram cristãs só porque não são judias.”
“Eu sei qual é a diferença — disse Buck. — De amigo para amigo, ou pelo menos de conhecido para conhecido, o senhor, com todo o seu estudo, deve ter chegado a algumas conclusões a respeito de Jesus como o Messias.”.
O rabino escolheu cuidadosamente as palavras. “Jovem, em três anos eu não divulguei a ninguém uma letra sequer dos resultados de minhas pesquisas. Mesmo aqueles que me encarregaram deste estudo e o patrocinaram não sabem a que conclusões eu cheguei. Respeito você. Admiro sua coragem. Vou levá-lo novamente até as duas testemunhas hoje à noite, conforme prometi. Porém, não vou revelar nada a você do que vou dizer na TV amanhã.”
“Entendo, disse Buck. — Haverá mais pessoas vendo do que o senhor imagina.”
“Talvez. E talvez eu estivesse usando de falsa modéstia quando disse que minha apresentação provavelmente não competiria com a programação normal. A CNN e o órgão estatal que me incumbiu do estudo têm cooperado em âmbito internacional para comunicar a transmissão do programa aos judeus de todos os continentes. Disseram-me que o índice de audiência em Israel será apenas uma fração dos telespectadores judeus do mundo inteiro.”
Rayford estava lendo o International Tribune quando Buck passou apressado por ele dirigindo-se à recepção, onde pegou a chave e um recado. Rayford provocou um ruído com as folhas do jornal e, quando Buck olhou em sua direção, fez um sinal que telefonaria para ele. Buck movimentou a cabeça afirmativamente e subiu a escada.
“É melhor você ligar para Chloe — disse Rayford quando ligou da cabina telefônica para Buck alguns minutos depois. — Você está bem?”
“Sim. Rayford, eu estava lá!”
“Eu vi você.”
“O rabino com quem eu estava é amigo de Rosenzweig. É o tal que falará na TV amanhã à tarde. Avise a quem você puder para que vejam o programa. Ele é uma pessoa muito interessante.”
“Vou avisar. Prometi a Chloe que um de nós ligaria para ela assim que eu tivesse alguma notícia.”
“Ela viu?”
“Sim, no noticiário da manhã.”
“Vou ligar para ela agora mesmo.”
Buck pediu à telefonista do hotel que fizesse a ligação e desligou, aguardando a chamada. Nesse ínterim, sentou-se na beira da cama com a cabeça baixa. Sentiu um arrepio ao pensar no que vira. Depois de ter visto a mesma coisa, ouvido a mesma coisa, como o rabino podia insinuar que os dois se faziam passar por mágicos ou videntes e que não eram homens de Deus? O telefone tocou. — Sim!
“Buck!”
“Sou eu, Chloe, e estou bem.”
“Oh, graças a Deus.”
“Obrigado!”
Chloe parecia emocionada. “Buck, aquelas testemunhas conhecem a diferença entre quem é crente e quem é inimigo, não é mesmo?”
“Espero que sim. Vou saber disso hoje à noite. O rabino vai me levar de novo até lá para eu vê-los.”
“Quem é o rabino?”
Buck contou-lhe a história do rabino.
“Você tem certeza que isso é prudente?”
“Chloe, é a chance de toda a minha vida! Ninguém conseguiu falar com eles particularmente.”
“Qual é a posição do rabino?”
“Ele é ortodoxo, mas conhece o Novo Testamento, pelo menos intelectualmente. Você e Bruce precisam ver o programa amanhã à tarde... bem, estamos seis horas na frente de vocês. Peça a todos na igreja que vejam. Seria interessante. Se você quiser ver a assinatura do pacto antes, vai precisar levantar bem cedo.”
“Buck, estou com saudade de você.”
“Eu também. Mais do que você pensa.”
Rayford retornou ao hotel em que estava hospedado e encontrou um envelope de Hattie Durham. Dentro havia o seguinte bilhete:
Capitão Steele, isto não é um trote. O secretário-geral está lhe enviando a passagem anexa para a solenidade de amanhã cedo e manifestando sua ótima impressão sobre o seu serviço no Global Community One. Como ele não sabe se terá condições de conversar pessoalmente com você até amanhã à tarde, a caminho de Bagdá, está desde já agradecendo o seu serviço. E eu também. Hattie D.
Rayford colocou a passagem junto com seu passaporte e jogou o bilhete no lixo.
Buck, sofrendo ainda as conseqüências do fuso horário e do trauma da manhã, tentou dormir algumas horas antes do jantar. Jantou sozinho uma comida leve. Enquanto isso, pensava consigo se haveria algum protocolo para encontrar-se com os homens de Deus. Seriam eles humanos? Seriam espíritos? Seriam, como Bruce acreditava, Elias e Moisés? Eles chamavam um ao outro de Eli e Moisés. Poderiam ter milhares de anos? Buck estava mais ansioso por conversar com eles do que esteve quando entrevistou um chefe de estado ou até mesmo Nicolae Carpathia.
Fazia muito frio à noite. Buck vestiu um paletó de lã esporte com forro grosso e bolsos grandes para não precisar carregar uma sacola. Pegou apenas uma caneta, um bloco e um gravador, e lembrou-se de falar com Jim Borland e outros funcionários do Semanário para saber se os fotógrafos estavam conseguindo tirar fotografias dos dois enquanto pregavam, mesmo que fosse a longa distância.
Às 9:45 Rayford sentou-se na cama. Cochilara diante da TV, com a roupa do corpo, mas algo lhe chamara a atenção. Ele ouvira a palavra Chicago, talvez Chicago Tribune, e isso o fez despertar. Começou a vestir o pijama enquanto ouvia. O jornalista estava resumindo uma reportagem importante diretamente dos Estados Unidos.
"O secretário-geral está fora do país este fim de semana e sem condições para comentar, mas os principais meios de comunicação do mundo inteiro estão confirmando esta notícia. A surpreendente legislação concede a uma autoridade não-eleita e a uma organização internacional sem fins lucrativos o domínio irrestrito de todas as formas de veiculação de notícias e abre as portas para a Organização das Nações Unidas, que em breve será conhecida como Comunidade Global, para que ela adquira e controle as comunicações via jornais, revistas, rádio, televisão, cabo e satélite. A única limitação será o valor do capital disponível à Comunidade Global, mas os seguintes meios de comunicação estão entre os mais visados pelo grupo da Comunidade Global encarregado dessa transação: New York Times, Long Island News Day, USA Today, Boston Globe, Baltimore Sun, Washington Post, Atlanta Journal and Constitution, Tampa Tribune, Orlando Sentinel, Houston..."
Sentado na beira da cama, Rayford parecia não acreditar no que ouvia. Nicolae Carpathia conseguira colocara-se em posição de controlar as notícias e, portanto, controlar as mentes da maioria das pessoas dentro de sua esfera de influência.
O jornalista continuava a ler a lista em tom monótono: Turner Network News, the Cable News Network, the Entertainment and Sports Network, the Columbia Broadcast System, the American Broadcasting Corporation, the Fox Television Network, the National Broadcasting Corporation, the Christian Broadcasting Network, The Family Radio Network, Trinity Broadcasting Network, Time-Warner, Disney, U.S. News and World Report, Global Weekly [Semanário Global], Newsweek, Readefs Digest e uma relação de outras cadeias de noticiários e publicações periódicas e grupos de revistas.
"Mais surpreendente ainda foram as primeiras reações dos atuais proprietários. Quase todos parecem saudar o novo capital e dizem que acata a palavra do líder da Comunidade Global, Nicolae Carpathia, quando ele pede que não haja interferências.
Rayford pensou em telefonar para Buck. Mas com certeza ele já devia saber da notícia antes de ser divulgada pela TV. Alguém do Semanário Global o teria informado ou, pelo menos, Buck teria ouvido a notícia de um das centenas de jornalistas que estavam presentes em Israel para a assinatura * do tratado. Mas talvez todos estivessem pensando o mesmo que ele. Rayford não queria que Buck fosse o último a saber.
Pegou o telefone e ligou, porém não houve resposta do quarto de Buck.
Uma pequena aglomeração movia-se lentamente na escuridão, a pouco menos de cinqüenta metros do Muro das Lamentações. O corpo do pretenso assassino tinha sido removido, e o comandante militar da região disse ao pessoal da imprensa que o jovem e seu grupo não foram capazes de agir "contra duas pessoas que não portavam armas, não tocaram em ninguém e tinham sido atacadas".
Aparentemente ninguém que ali estava parecia disposto a aproximar-se dos pregadores, embora ambos pudessem ser vistos de pé, sob uma iluminação fraca, perto de uma das extremidades do Muro. Eles não se aproximavam das pessoas nem falavam.
Assim que o motorista do rabino Tsion Ben-Judá entrou com o carro num estacionamento quase vazio, Buck foi tentado a perguntar se o rabino acreditava em oração. Sabia que o rabino diria que sim, mas gostaria de orar em voz alta pedindo a proteção de Cristo, e orar a Cristo era algo que ele não deveria pedir a um rabino. Resolveu orar silenciosamente.
Buck e Tsion desceram do carro e caminharam com passos lentos e com cuidado, bem distantes da aglomeração. O rabino caminhava com as mãos cruzadas diante de si. Ao perceber isso de relance, Buck olhou pela segunda vez para confirmar. Parecia um gesto piedoso inusitado e quase ostensivo... principalmente porque Ben-Judá demonstrara muita humildade para alguém que ocupava uma posição tão elevada no meio religioso.
“Estou caminhando na posição tradicional de respeito e conciliação — explicou o rabino. — Não quero erros nem mal-entendidos. Para nossa segurança, é importante que esses homens saibam que viemos até aqui com espírito de humildade e curiosidade. Devemos deixar claro que não vamos atacá-los.”
Buck fitou o rabino nos olhos. “A verdade é que estamos morrendo de medo e não queremos dar a eles nenhum motivo para que nos matem.”
Buck notou um leve sorriso nos lábios do rabino. “Você tem um jeito especial de falar uma verdade — disse Ben-Judá. — Estou orando para que nós dois voltemos sãos e salvos e que possamos contar aos outros a experiência que tivemos aqui.”
Eu também, pensou Buck, sem dizer nada.
Três soldados israelenses interceptaram o caminho de Buck e do rabino, e um deles falou asperamente em hebraico. Buck começou a procurar sua credencial de jornalista, mas percebeu que ela não teria nenhuma serventia ali. Tsion Ben-Judá deu um passo à frente e conversou também em hebraico, em tom de voz firme e baixo, com o líder dos três soldados. O soldado fez algumas perguntas, parecendo agora menos hostil e curioso. Finalmente, ele fez um sinal afirmativo com a cabeça, e os dois foram autorizados a passar.
Buck olhou de relance para trás. Os soldados permaneciam no mesmo lugar. — O que aconteceu? — ele perguntou.
“Eles disseram que apenas os ortodoxos têm permissão para passar de um determinado ponto. Assegurei-lhes que você estava comigo. Acho sempre divertido quando o exército secular tenta fazer cumprir as leis religiosas. Ele me advertiu sobre o que aconteceu antes, mas eu lhe disse que tínhamos um encontro marcado e que estávamos dispostos a assumir o risco.”
“E estamos? — perguntou Buck, sem pensar.”
O rabino deu de ombros. “ Talvez não. Mas, de qualquer forma, vamos até o fim, não é mesmo? Dissemos que iríamos, e nenhum de nós perderia esta oportunidade.”
Enquanto Buck e Ben-Judá prosseguiam, as duas testemunhas mantinham os olhos fixos neles, da extremidade do Muro onde estavam, a uma distância de cerca de quinze metros. “— Estamos caminhando em direção àquela cerca — disse Ben-Judá, apontando para o outro lado do pequeno edifício. — Se eles estiverem dispostos a falar conosco, virão até aqui e haverá uma cerca entre nós.”
“Depois do que aconteceu ao assassino hoje, a cerca não ajudaria muito.”
“Não estamos armados.”
“Como eles podem saber?”
“Eles não sabem.”
Quando Buck e Ben-Judá chegaram a menos de cinco metros da cerca, uma das testemunhas levantou a mão, e os dois pararam. — Vamos nos aproximar e nos apresentar — falou a testemunha, não em tom de voz alto como Buck já ouvira antes, mas audível. Os dois homens caminharam lentamente e ficaram atrás das barras de ferro. — Podeis me chamar de Eli — ele disse. — Este é Moisés.
“Em inglês? — sussurrou Buck.”
“Hebraico — respondeu Ben-Judá.”
“Silêncio! — disse Eli em voz baixa e rouca.”
Buck teve um sobressalto. Naquele mesmo dia um dos dois havia gritado pedindo silêncio ao rabino. Poucos minutos depois o jovem caíra morto e carbonizado.
Eli fez um gesto para que Buck e Tsion se aproximassem. Eles avançaram, ficando a menos de um metro da cerca. Buck surpreendeu-se com seus trajes esfarrapados. Um odor de cinzas, como se tivesse havido um incêndio recente, pairava sobre eles. Na penumbra, os braços compridos e fortes dos dois pareciam musculosos e de pele rija. Suas mãos eram grandes e ossudas, e ambos estavam descalços.
Eli disse: “ Não responderemos a nenhuma pergunta sobre nossa origem e identidade. Deus as revelará ao mundo no tempo devido.”
Tsion Ben-Judá fez um movimento afirmativo com a cabeça e curvou levemente o tronco para frente. Buck enfiou a mão no bolso e ligou o gravador. De repente, Moisés aproximou-se da cerca e pôs o rosto barbado entre as barras.
Fitou o rabino com os olhos semicerrados. O suor corria por seu rosto.
Ele falou mansamente com voz firme e lenta, mas Buck entendeu cada palavra. Queria perguntar a Tsion se ele ouvira Moisés falar em inglês ou em hebraico.
Moisés falou como se tivesse acabado de pensar em uma história muito interessante, mas suas palavras eram familiares a Buck.
“Há muitos anos, houve um homem fariseu chamado Nicodemos, uma autoridade entre o povo judeu. Assim como vós, esse homem foi falar com Jesus à noite.”
O rabino Ben-Judá sussurrou: “Eli e Moisés, sabemos que sois homens de Deus, porque ninguém é capaz de fazer os sinais que fazeis sem que Deus esteja com ele.”
Eli falou: “Em verdade te digo que, se uma pessoa não nascer de novo, não poderá ver o Reino de Deus... — Como um homem pode nascer, sendo velho? — perguntou o rabino Ben-Judá, e Buck percebeu que ele estava citando o Novo Testamento. — Pode, porventura, voltar ao ventre materno e nascer pela segunda vez?”
Moisés respondeu: “Em verdade te digo: Quem não nascer da água e do Espírito, não pode entrar no Reino de Deus. O que é nascido da carne, é carne; e o que é nascido do Espírito, é espírito. Não te admires de eu te dizer: Importa-vos nascer de novo.”
Eli falou novamente: “O vento sopra para onde quer, ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem, nem para onde vai; assim é todo o que é nascido do Espírito.”
Aproveitando a deixa, o rabino disse: “Como pode suceder isto?”
Moisés ergueu a cabeça. “Tu és mestre em Israel, e não compreendes estas coisas? Em verdade te digo que nós dizemos o que sabemos e testificamos o que temos visto, contudo não aceitais o nosso testemunho. Se tratando de coisas terrenas não me credes, como crereis, se vos falar das celestiais?”
Eli fez um movimento afirmativo com a cabeça. “Ninguém subiu ao céu, senão aquele que de lá desceu, a saber, o Filho do Homem que está no céu. E do modo por que Moisés levantou a serpente no deserto, assim importa que o Filho do Homem seja levantado, para que todo o que nele crê tenha a vida eterna.”
Buck estava empolgado. Sentiu como se tivesse voltado no tempo e fosse o espectador da mais famosa conversa noturna. Em nenhum momento ele se esqueceu de que seu acompanhante não era Nicodemos nem que os outros dois homens não eram Jesus. Buck conhecia a Bíblia e essa verdade há pouco tempo, mas sabia o que estava acontecendo quando Moisés concluiu: “ Porquanto Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para que julgasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele. Quem nele crê não é julgado; o que não crê já está julgado, porquanto não crê no nome do unigênito Filho de Deus.”
Repentinamente o rabino pareceu animar-se. Abriu os braços e levantou as mãos, afastando uma da outra. Como se estivesse assistindo a uma peça ou a um recital, ele provocou as testemunhas para mais uma resposta. “E o que é julgamento?”
Os dois responderam em uníssono. “Que a luz veio ao mundo.”
“E como os homens não a viram?”
“Os homens amaram mais as trevas do que a luz.”
“Por quê?”
“Porque as suas obras eram más.”
“Que Deus nos perdoe — disse o rabino.”
“Deus vos perdoa — disseram as duas testemunhas. — E aqui se encerra a nossa mensagem.”
“Não falareis mais conosco? — perguntou Ben-Judá.”
“Não — respondeu Eli, porém Buck não viu seus lábios se moverem. Pensou que tivesse se enganado, que talvez tivesse sido Moisés quem respondeu. Contudo, Eli prosseguiu, falando claramente, mas não em voz alta. — Moisés e eu não falaremos novamente até o alvorecer quando continuaremos a testificar a respeito da vinda do Senhor.”
“Mas eu ainda tenho muitas perguntas a fazer— disse Buck.”
“Nem mais uma pergunta — disseram em uníssono, sem que nenhum deles abrisse a boca. — Que a bênção de Deus, a paz de Jesus Cristo e a presença do Espírito Santo se derramem sobre vós. Amém.”
Quando os homens se afastaram, Buck sentiu os joelhos tremerem. Enquanto ele e o rabino permaneceram parados e olhando, Eli e Moisés simplesmente dirigiram-se para o edifício, sentaram-se e encostaram-se na parede. “Adeus e obrigado — disse Buck, sentindo-se um tolo.”
O rabino Ben-Judá entoou uma linda canção, uma espécie de bênção que Buck não compreendeu. Eli e Moisés pareciam estar orando ou dormindo sentados.
Buck estava sem fala. Acompanhou Ben-Judá, que se voltou e caminhou na direção de um obstáculo feito de correntes. Pulou o obstáculo começou a afastar-se do Monte da Colina, atravessando a estrada rumo a um pequeno bosque. Buck pensou que talvez o rabino quisesse ficar sozinho, mas Ben-Judá deu a entender que desejava sua companhia.
Quando chegaram à beira do bosque, o rabino passou a olhar fixamente para o céu. Cobriu o rosto com as mãos e chorou. Seu choro transformou-se em fortes soluços. Buck também estava emocionado e não conseguiu conter as lágrimas. Ambos haviam estado em solo sagrado, disso ele sabia. Ele só não sabia como o rabino interpretava tudo aquilo. Será que o rabino não entendera a mensagem da conversa entre Nicodemos e Jesus, quando a leu na Bíblia, e não entendera novamente ao ouvir sua reprodução?
Buck certamente entendera. O Comando Tribulação não acreditaria no privilégio que lhe fora concedido. Ele não o guardaria para si, não teria receio de divulgá-lo. Na verdade, desejava que todos pudessem ter estado ali junto com ele.
Como se estivesse sentindo que Buck desejava conversar, Ben-Judá o preveniu. “Não devemos aviltar a experiência reduzindo-a a simples palavras — ele disse. — Pelo menos até amanhã, meu amigo.”
O rabino virou-se e avistou seu carro e o motorista na beira da estrada. Caminhou até a porta da frente, do outro lado do motorista, e abriu-a para Buck. Buck entrou e murmurou um agradecimento. O rabino deu a volta pela frente do carro e cochichou com o motorista, que deu partida e acelerou, deixando Ben-Judá na beira da estrada.
“O que está acontecendo? — perguntou Buck, esticando o pescoço e vendo o homem de terno preto desaparecer na escuridão. — Ele vai saber voltar?”
O motorista não disse nada.
“Espero não ter ofendido o rabino.”
O motorista lançou um olhar de desculpa a Buck e deu de ombros. “Não entender inglês — ele disse, levando Buck de volta para o Hotel Rei Davi.”
O recepcionista do hotel entregou a Buck um recado de Rayford, porém como não estava marcado urgente, Buck resolveu deixar o telefonema para a manhã seguinte. Se desencontrasse de Rayford, procuraria por ele na solenidade da assinatura do tratado.
Buck apagou a luz do quarto e atravessou a porta de vidro que dava para um pequeno terraço no meio das árvores. Por entre dos galhos ele avistou a lua cheia no céu sem nuvens. O vento estava brando, mas a noite começava a esfriar. Ele levantou a gola do casaco e admirou a beleza da noite. Sentia-se o homem mais privilegiado do mundo. Além de sua charmosa vida profissional e de seu aprimorado talento, ele havia sido testemunha ocular de uma das obras mais extraordinárias de Deus na história do mundo.
Ele havia estado em Israel por ocasião do ataque russo menos de um ano e meio antes. Deus havia destruído a ameaça a seu povo escolhido. Buck estava em pleno vôo quando aconteceu o Arrebatamento, num avião pilotado por um homem que ele não conhecia. Foi atendido por uma comissária de bordo cujo futuro aparentemente passou a ser responsabilidade dele. E a filha do piloto? Buck acreditava que estava apaixonado por ela, se soubesse o que era amor.
Buck curvou os ombros, deixou as mangas do casaco cobrirem suas mãos e cruzou os braços. Fora poupado de uma explosão de carro em Londres, aceitara a Cristo no ápice do fim do mundo e fora protegido de forma sobrenatural ao testemunhar dois assassinatos cometidos pelo Anticristo. Naquele mesmo dia, ele assistira ao cumprimento das Escrituras quando um assassino foi atingido pelo fogo que saiu da boca de uma das testemunhas. E, logo depois, ouviu uma delas recitar as palavras de Jesus a Nicodemos! Buck sentia que devia humilhar-se, dizer a seu Criador e Salvador o quanto era indigno, o quanto estava agradecido. “Tudo o que posso fazer — ele sussurrou com voz rouca na noite fria — é entregar-me inteiramente a Ti pelo tempo que ainda me restar. Farei o que quiseres, irei aonde me mandares, obedecer-te-ei em tudo.”
Em seguida, tirou o gravador do bolso e rebobinou a fita. Ao reproduzir a conversa que teve com as testemunhas naquela noite, ele surpreendeu-se por não ouvir nenhuma
palavra em inglês. Não deveria ser surpresa, ele pensou. Fazia parte dos acontecimentos do dia. Buck ouviu pelo menos três idiomas. Identificou o hebraico, embora não o compreendesse. Identificou o grego, que também não compreendia. O outro idioma, que Buck estava certo de nunca ter ouvido antes, foi usado quando as testemunhas recitaram as palavras de Jesus. Tinha de ser aramaico.
No final da fita, Buck ouviu o Dr. Ben-Judá perguntar algo em hebraico, que ele se lembrava ter ouvido em inglês. "Não falareis mais conosco?" Porém, não ouviu nenhuma resposta.
Em seguida, ouviu sua própria voz: "Mas eu ainda tenho muitas perguntas a fazer." E depois, após uma pausa: "Adeus e obrigado." O que os homens falaram diretamente ao seu coração não havia sido gravado.
Com uma caneta, Buck quebrou pequenas lingüetas da fita. Ninguém mais poderia gravar por cima daquela fita de valor incalculável.
A única coisa que ele poderia fazer para tornar tudo mais perfeito seria compartilhar sua experiência com Chloe. Olhou para ao relógio. Passava da meia-noite em Israel, o que significava pouco mais de seis horas da tarde em Chicago. Porém, quando Buck ligou para Chloe, ele mal conseguiu falar. Contou chorando o que se passara naquela noite, e Chloe chorou com ele. “Buck — ela disse finalmente — desperdiçamos tantos anos de nossas vidas sem Cristo. Vou orar pelo rabino.”
Alguns minutos depois, Rayford foi despertado pela campainha do telefone. Estava certo de que era Buck e esperava que ele não tivesse ouvido de outra pessoa a notícia dos planos de Carpathia a respeito da imprensa.
“Papai, é Chloe. Acabei de conversar com Buck, mas não tive coragem de falar sobre o assunto de Carpathia a respeito da imprensa. Você ouviu?”
Rayford confirmou que tinha ouvido e perguntou se ela tinha certeza de que Buck não sabia de nada. Chloe relatou o que Buck lhe contara sobre sua experiência naquela noite. “Vou tentar localizá-lo de manhã — disse Rayford. — Se eu não falar com Buck logo cedo, com certeza ele vai ouvir a notícia da boca de alguém.”
“Ele estava muito emocionado, papai. A hora não é boa para lhe dar essa notícia. Não sei como ele reagirá. O que você acha que vai acontecer com ele?”
“Buck vai superar. Terá de engolir uma grande parte de seu orgulho, tendo de trabalhar para Carpathia aonde quer que ele vá. Mas vai dar tudo certo. Sei quem ele é. Vai encontrar um jeito de levar a verdade às massas, camuflando-a nas publicações de Carpathia ou trabalhando por baixo dos panos em publicações vendidas clandestinamente.”
“Parece que Carpathia vai controlar tudo.”
“Com certeza vai.”
Rayford ligou para Buck às seis e meia da manhã seguinte, mas ele já havia saído do hotel.
Fazia séculos que Buck não via Steve Plank tão aflito. “Este trabalho foi divertido e interessante até hoje — disse Steve enquanto um grupo hospedado no mesmo hotel começava a aglomerar-se para uma curta excursão até a Cidade Velha. — Carpathia arruma confusão e joga o problema pra cima de mim.”
“O que houve?”
“Ora, nada de especial. Tudo precisa ser perfeito, só isso.”
“E você ainda está tentando convencer-me a trabalhar para ele? De jeito nenhum.”
“Bem, de qualquer maneira esse assunto vai ser muito discutido nas próximas semanas, não vai?”
“Claro que vai. — Buck sorriu intimamente. Já decidira recusar a oferta do Tribune e continuar no Semanário Global.”
“Você vai conosco para Bagdá?”
“Estou tentando arrumar uma maneira de ir, mas não com vocês.”
“Buck, não vai haver muitas maneiras de chegar lá. Temos lugar e, para todos os efeitos, você trabalha para Carpathia. Vá conosco. Você vai adorar o que ele tem em mente para a Nova Babilônia e, se as notícias forem levadas a sério, a coisa já começou a acontecer.”
“Eu, trabalhar para Carpathia? Achei que o assunto estava encerrado.”
“É apenas uma questão de tempo, meu rapaz.”
“Você está sonhando — disse Buck, assustando-se com o olhar perplexo de Plank.”
Buck viu Jim Borland organizando suas anotações. “Oi, Jim — ele disse. — Já entrevistou Carpathia? — Borland mal levantou os olhos.”
“Sim — respondeu Borland. — Nada de tão especial. No momento ele só está preocupado com a transferência do local da assinatura.”
“Transferência?”
“Ele está com receio daqueles malucos diante do Muro das Lamentações. Os soldados têm condições de manter o local livre de turistas, mas os dois contarão com a presença da multidão que vai assistir à assinatura do tratado.”
“Uma grande multidão — disse Buck.”
“Não brinque. Não sei por que eles não mantêm aqueles dois esfarrapados longe daqui.”
“Você não sabe?”
“O quê? Buck, você acha que aqueles velhos bobocas vão soprar fogo no exército? Seja franco. Você acredita na história do fogo?”
“Eu vi o cara, Jimmy. Ele ficou torrado.”
“Aposto um milhão contra um que ele pôs fogo em si mesmo.”
“Não foi um ato de imolação, Jim. Ele caiu ao chão, e um daqueles dois o queimou completamente.”
“Com o fogo que saiu de sua boca.”
“Foi o que eu vi.”
“Ainda bem que você está fora da reportagem de capa, Buck. Você está perdendo a parada. E daí, você conseguiu uma entrevista exclusiva com os dois?”
“Não foi inteiramente exclusiva nem exatamente uma entrevista.”
“Em outras palavras, você só tentou, certo?”
“Não. Estive com eles ontem, tarde da noite. Não foi um diálogo, é tudo o que posso dizer.”
“Eu diria que você vai escrever uma ficção, você devia entrar para o ramo de novelas e seguir em frente. Você ainda vai trabalhar no ramo editorial com Carpathia, mas precisa ter um pouco mais de visão.”
“Não vou trabalhar para Carpathia — disse Buck.”
“Então vai ficar fora dos meios de comunicação.”
“Do que você está falando?”
Borland contou-lhe sobre o comunicado.
Buck empalideceu. — “O Semanário Global está incluído?”
“Incluído? Se você me perguntar, vou dizer que ele é um dos principais.”
Buck balançou a cabeça. Nesse caso, ele estaria escrevendo suas reportagens para Carpathia, no final das contas. “Não é de admirar que todos pareçam tão neuróticos. Então, se a assinatura do tratado não for perto do Muro, onde será?”
“No Knesset.”
“Dentro?”
“Acho que não.”
“A parte de fora é viável?”
“Não acho.”
“Ouça, Jim, você vai ver a apresentação do rabino Ben-Judá hoje à tarde?”
“Só se for no avião para Bagdá.”
“Você conseguiu lugar?”
“Vou no Global Community One.”
“Você se vendeu?”
“Ninguém pode se vender a seu próprio chefe, Buck.”
“Ele ainda não é seu chefe.”
“É só uma questão de tempo, companheiro.”
Chaim Rosenzweig caminhava apressadamente e parou de repente. “Cameron! — ele disse — Venha, venha! — Buck acompanhou aquele homem idoso e de ombros curvados até um canto. — Fique comigo, por favor! Nicolae está aborrecido esta manhã. Vamos transferir a assinatura para o Knesset, tudo está num rebuliço, ele quer que todo mundo vá até Babilônia e alguns estão resistindo. Para lhe dizer a verdade, acho que ele próprio mataria aqueles dois do Muro das Lamentações, se tivesse oportunidade. A manhã toda eles gritaram contra a injustiça da assinatura, dizendo que o tratado sinaliza uma aliança profana entre um povo que não aceitou o Messias da primeira vez e um líder que nega a existência de Deus. Mas, Cameron, Nicolae não é ateu. Pode ser um agnóstico... mas eu também sou!”
“O senhor deixou de ser agnóstico desde a invasão russa!”
“Bem, talvez não, mas aqueles dois falam palavras duras contra Nicolae.”
“Pensei que não fosse permitida a presença de ninguém na área em frente ao Muro esta manhã. O que estão dizendo sobre isso?”
“ A imprensa está lá com seus microfones de longo alcance, e aqueles homens têm bons pulmões! Nicolae conversou por telefone com a CNN a manhã toda, insistindo para que eles não dêem nenhuma cobertura aos dois, principalmente hoje. A CNN não aceitou, é claro. Mas ai quando ele passar a ser o proprietário da CNN, eles vão cumprir as ordens de Nicolae. Vai ser um alívio.
“Chaim! O senhor aceita esse tipo de liderança? Controle total da imprensa?”
“Estou cansado da maior parte da imprensa, Cameron. Você sabe que eu o tenho na mais alta estima. Você é um dos poucos em quem confio. O resto é tão preconceituoso, tão crítico, tão negativo. É nossa obrigação unir o mundo de uma vez por todas. Finalmente haverá uma organização noticiosa com credibilidade, dirigida pelo Estado, para dar um jeito em tudo.”
“Isto é assustador — disse Buck. Intimamente ele lamentava por seu amigo que teve uma visão tão ampla e agora estava disposto a submeter-se a um homem em quem ele não devia confiar.”
DEZESSEIS
O dia de Rayford — e o seu futuro, assim ele imaginava — estavam traçados. Ele compareceria à solenidade de gala, e depois voltaria de táxi para o Aeroporto Internacional Ben Gurion em Lod, localizado a quase quinze quilômetros a sudeste de Tel-Aviv. Na hora em que ele chegasse, a tripulação já teria deixado o 757 em ordem, e ele começaria a fazer a inspeção dos equipamentos de segurança antes da decolagem. No itinerário constava um vôo à tarde para Bagdá e, em seguida, outro sem escalas para Nova York. Um vôo em direção ao oeste naquela hora do dia era imprudente e contrariava os itinerários convencionais, mas nessa viagem, e talvez pelo resto da carreira de Rayford, Carpathia é quem dava as ordens.
Rayford passaria a noite em Nova York antes de voltar para casa e decidir se seria viável trabalhar naquele emprego morando em Chicago. Talvez ele e Chloe se mudassem para Nova York. O fato de trabalhar como piloto do Air Force One para o presidente não passava de uma artimanha. Na verdade, estaria prestando serviços a Nicolae Carpathia aonde quer que ele fosse e, por algum motivo, Rayford sentia-se compelido a sublimar seus sonhos, seus desejos, sua vontade e sua lógica. Deus lhe dera essa incumbência por algum motivo, e desde que não precisasse viver uma mentira, ele a aceitaria, pelo menos por ora.
Rayford aprendera com Bruce e com seus próprios estudos da profecia que chegaria o dia em que o Anticristo deixaria de ser um enganador. Ele mostraria suas garras e governaria o mundo com pulso de ferro. Esmagaria seus inimigos e mataria qualquer um que fosse infiel a seu regime. Com isso, todos os seguidores de Cristo correriam o risco de ser martirizados. Rayford previa o dia em que abandonaria o emprego de Carpathia e se tornaria um fugitivo, simplesmente para sobreviver e ajudar os outros crentes a fazerem o mesmo.
Buck viu um agente do Serviço Secreto norte-americano caminhando em sua direção. “Cameron Williams?”
“Quem é você?”
“Sou do Serviço Secreto, e você sabe disto. Posso ver seu documento de identidade, por favor?”
“Já fui inspecionado mais de cem vezes — disse Buck, pegando suas credenciais.”
“Eu sei. — O agente examinou o documento de identidade de Buck. — Fitz quer vê-lo, e eu preciso ter a certeza de estar levando o homem certo até ele.”
“O presidente quer ver-me?”
O agente fechou a carteira de documentos de Buck e devolveu-a, fazendo um movimento afirmativo com a cabeça. — Acompanhe-me.
Num pequeno escritório nos fundos do Edifício Knesset, mais de duas dezenas de profissionais da imprensa lutavam para conseguir posicionar-se perto da porta, aguardando para assediar o presidente Gerald Fitzhugh assim que ele saísse para a cerimônia. Dois outros agentes — com identificação na lapela, fones de ouvido e mãos cruzadas na frente do corpo — postavam-se guardando a porta de entrada do escritório.
— Quando ele vai sair? — perguntou alguém.
Os agentes não responderam. A imprensa não era problema deles, exceto manter o pessoal afastado quando necessário. Os agentes sabiam mais do que o secretário de imprensa quando o presidente se locomovia de um lugar para outro, mas isso certamente não era da conta de mais ninguém.
Buck aguardava com prazer o momento de ver o presidente outra vez. Vários anos haviam transcorrido desde que ele escrevera a reportagem sobre Fitzhugh como o "Fazedor de Notícia do Ano". Naquele ano, Fitz foi reeleito e também homenageado pela segunda vez pelo Semanário Global. Buck parecia ter caído nas graças do presidente, que era uma versão mais jovem de Lyndon Johnson. Fitzhugh tinha apenas cinqüenta e dois anos quando foi eleito pela primeira vez e agora estava chegando aos cinqüenta e nove. Ele era um homem robusto, de aparência jovem, exuberante e rude. Usava linguagem indecorosa liberalmente e, apesar de Buck nunca ter estado em sua presença quando Fitz estava zangado, suas explosões de raiva eram legendárias entre seus assessores.
O temperamento explosivo do presidente deixou de ser novidade para Buck naquela manhã de segunda-feira.
Enquanto o acompanhante de Buck o fazia passar por entre a multidão de jornalistas e fotógrafos diante da porta, os agentes reconheceram seu colega e afastaram-se para que Buck pudesse entrar. Os membros da associação de imprensa norte-americana protestaram diante do livre acesso de Buck.
“Como ele conseguiu.”
“Isso sempre acontece!”
“O que vale não é o que a gente sabe nem quanto a gente se mata de trabalhar! É quem a gente conhece!”
“O rico fica mais rico!”
Buck desejava que eles tivessem razão. Queria ter uma conversa exclusiva com o presidente, um furo de reportagem, mas estava completamente sem saber o que fazia ali.
O agente secreto acompanhante de Buck apresentou-o a um assessor presidencial, que o segurou firme pela manga e o arrastou até um canto da sala, onde o presidente estava sentado na beira de uma enorme cadeira. O paletó de seu terno estava aberto, a gravata afrouxada e ele conversava em voz baixa com dois conselheiros.
“Sr. Presidente, Cameron Williams, do Semanário Global — anunciou o assessor presidencial.”
“Peço a licença de vocês por alguns minutos — disse Fitzhugh. O assessor e os dois conselheiros começaram a dirigir-se para a porta. O presidente segurou um dos conselheiros pelo braço — Você não, Rob! Você trabalha para mim há tanto tempo e ainda não conseguiu entender? Preciso de você aqui. Quando peço licença por alguns minutos, não estou incluindo você.”
“Perdão, senhor.”
“ E pare de se desculpar.”
“Perdão.”
Assim que disse isso, Rob se deu conta de que não deveria ter pedido perdão por ter pedido perdão. “Perdão, bem, perdão. Está bem.”
Fitzhugh revirou os olhos. “Dá para alguém pegar uma cadeira para Williams? O jeito aqui é gritar. Temos só alguns minutos.”
“Onze — disse Rob em tom de desculpa.”
“Ótimo. Onze.”
Buck estendeu a mão. “Sr. Presidente — ele disse. Fitzhugh apertou a mão de Buck com força, sem fitá-lo nos olhos.”
“Sente-se aqui, Williams.”— Fitzhugh tinha o rosto vermelho, e o suor começava a brotar em sua testa. “Antes de tudo, esta conversa é totalmente confidencial, está certo?”
“Como o senhor quiser.”
“Não, não é como eu quiser! Já ouvi isso antes e me dei mal.”
“Não comigo, senhor.”
“Não, não com você, mas lembro que uma vez eu lhe contei algo e, em seguida, disse que era confidencial, e você me veio com uma conversa mole sobre quando o assunto é confidencial e quando não é, de acordo com a lei.”
“ Se bem me lembro, senhor, cortei algumas coisas.”
“Assim você disse.”
“Tecnicamente, não se pode dizer que um assunto é confidencial depois de revelado. Só antes de ser revelado.”
“Ah, sim, penso que já me disseram isso algumas vezes. Então, vamos deixar claro que tudo isto é confidencial desde o início, certo?”
“Certíssimo, senhor.”
“Williams, quero saber o que está acontecendo com Carpathia. Você tem passado algum tempo com ele. Já o entrevistou. Dizem que ele está tentando contratá-lo. Você conhece o homem?”
“Não muito bem, senhor.”
“Para dizer a verdade, estou ficando furioso com esse homem, mas ele é o sujeito mais popular do mundo depois de Jesus Cristo, portanto quem sou eu para reclamar?”
Buck ficou confuso com a verdade contida naquela frase.
“Pensei que o senhor fosse o maior defensor dele — os Estados Unidos mostrando o caminho para ele, essas coisas.”
“E sou! Quero dizer, era. Convidei-o para ir à Casa Branca! Ele falou na sessão conjunta. Aprecio suas idéias. Eu não era um pacifista até ouvi-lo falar sobre a paz, e pelo amor de Deus, acho que ele tem condições de conseguir. Mas as pesquisas dizem que ele ganharia de mim pelo dobro de votos se concorresse à presidência neste instante! Só que ele não quer. Ele quer que eu permaneça na presidência e seja seu subordinado!”
“Ele lhe disse isso?”
“Não seja ingênuo, Williams. Eu não o teria trazido até aqui se soubesse que você ia levar tudo ao pé da letra. Mas, veja, ele me enrolou com o caso do Air Force One, e agora você viu o que aconteceu? Ele pintou as palavras Global Community One por cima do nome da aeronave e vai emitir um pronunciamento hoje à tarde agradecendo aos cidadãos dos Estados Unidos o presente recebido. Pensei em chamá-lo de mentiroso frente a frente e tentar desfazer esse mal-entendido.
“Isso jamais daria certo, senhor — interveio o subserviente Rob. — Quero dizer, sei que o senhor não perguntou, mas o pronunciamento que será divulgado dá a entender que ele tentou recusar, o senhor insistiu e ele aceitou com relutância”.
O presidente virou-se para Buck. “Você entendeu, Williams? Vê o que ele faz? Agora estou me encrencando mais ainda ao contar esta história a você. Você já consta da folha de pagamento dele e vai lhe contar tudo, não é mesmo?”
Buck gostaria de dizer-lhe o que vira, o que realmente sabia sobre Carpathia, quem a Bíblia provava que ele era. “Não posso dizer que sou um admirador de Carpathia — disse Buck.”
“E você é um admirador de Fitzhugh? Não vou perguntar-lhe em quem você votou”
“Não me importo de dizer. A primeira vez em que o senhor se candidatou, votei em seu oponente. Na segunda vez, votei no senhor.”
“Conquistei sua simpatia?”
“Conquistou.”
“Então, qual é o seu problema com Carpathia? Ele é muito afável, muito persuasivo, inspira muita confiança. Acho que ele consegue enganar quase todo mundo na maior parte do tempo.”
“Acho que esse é um dos meus problemas — disse Buck. Não sei ao certo que estratagema ele está usando, mas parece que funciona. Ele consegue o que quer e quando quer, e aparenta ser um herói relutante.”
“É isso aí! — disse o presidente, batendo no joelho de Buck com tanta força que chegou a doer. — Esse também é o meu problema! — O presidente proferiu um palavrão. E, em seguida, mais um. Dali em diante, passou a incluir palavras obscenas em cada frase que proferia. Buck temia que o presidente pudesse sofrer um enfarte naquele momento.”
“Preciso pôr um fim nisto — vociferou o presidente. — Está me incomodando muito. Hoje ele vai aparecer como um santo, fazendo-me passar por um grande tolo. Os Estados Unidos sempre foram exemplo de liderança para o mundo, mas agora parecemos um de seus fantoches. Sou um indivíduo forte, um líder forte e decidido. E de uma hora para outra ele me faz parecer um simples bajulador seu. — O presidente respirou fundo. — Williams, você sabe a encrenca que arrumamos com o pessoal das forças armadas?”
“Posso imaginar.”
“Vou lhe contar. Fincaram o pé e não posso discutir com eles! Nosso serviço de informações está dizendo que eles já começaram a recolher e esconder os principais armamentos, porque são contra minha aprovação ao plano de destruir noventa por cento e entregar, nesta semana, os dez por cento restantes à ONU ou a essa tal de Comunidade Global. Eu gostaria de acreditar que os motivos de Carpathia são puros e que este é o último passo rumo à verdadeira paz, mas são as pequenas coisas que me fazem duvidar. Como o caso do avião. Adquirimos um novo avião e precisávamos de um novo piloto. Não me importo quem vai pilotá-lo, desde que seja qualificado. Temos uma lista de pilotos em quem confiamos, mas de repente há só um nome na lista que é aceito pelo Grande Potentado do Mundo, e esse piloto vai conseguir o posto. Agora eu não devia mais preocupar-me, porque cedi o avião e a tripulação a Carpathia! — O presidente proferiu mais um palavrão.”
“Bem, não sei o que dizer, mas é uma pena o senhor não dispor dos serviços do novo piloto. Eu o conheço e ele é o melhor.”
“Ótimo. Você não acha que eu gostaria de ter o melhor piloto de meu país? Claro! E eu não estava exagerando no título que dei a Carpathia. Existe uma resolução na ONU, perdão, Comunidade Global, que deve ser votada brevemente pelo Conselho de Segurança. Essa resolução concede um "título mais apropriado" para o secretário-geral, uma vez que ele em breve será o comandante-em-chefe das forças militares remanescentes do mundo e o chefe financeiro do banco global. O pior é que essa resolução partiu de nosso próprio embaixador, e eu não sabia de nada até o fato ser ventilado no comitê. O único recurso de que disponho é insistir para que o embaixador vote contra sua própria proposta, que a retire ou que abandone o cargo. Com que cara eu ficaria se despedisse um indivíduo só porque ele quer dar um título mais sugestivo ao chefe da Comunidade Global, que o mundo inteiro adora?”
O presidente não estava dando oportunidade a Buck de responder, o que não era nada mau, porque ele não sabia o que dizer.
Fitzhugh inclinou-se para frente e cochichou: “E essa história dos meios de comunicação! Concordamos com ele que nossas leis de conflito de interesse eram um pouco restritivas, bem como as de quase todos os países do mundo. Não queríamos impedir a ONU ou essa tal Comunidade Global de ter o direito de divulgar os fatos de maneira mais ampla quando estamos tão perto de alcançar a paz mundial. Fizemos uma pequena concessão a ele, e veja o que recebemos em troca. Ele adquiriu todos os jornais, revistas e redes de rádio e TV antes que tivéssemos tempo de mudar de idéia! Onde ele está conseguindo o dinheiro, Williams? Você sabe me dizer?”
Cameron teve uma crise de consciência. Havia dado a entender a Carpathia que não revelaria o caso da herança de Stonagal. Mas desde quando as promessas a um demônio deviam ser mantidas? Não seria o mesmo que mentir a um estranho quando ele pergunta onde estão seus entes queridos?
“Eu não posso dizer — disse Buck. Ele não sentia nenhuma lealdade a Carpathia, porém não podia correr o risco de Carpathia vir a saber que ele divulgara um segredo tão importante como esse. Buck teria de contar com sua própria habilidade — pelo menos enquanto pudesse.”
“Você sabe o que nosso serviço de informações está nos dizendo? — prosseguiu Fitzhugh. — Que o plano a ser posto em prática é fazer com que os dirigentes dos países representados pelos dez membros do Conselho de Segurança sejam subordinados a seus embaixadores. Com isso, haveria dez embaixadores, os reis do mundo, sob o domínio de Carpathia.”
Buck franziu a testa. “Em outras palavras, o senhor, o presidente do México e o primeiro-ministro do Canadá seriam subordinados ao embaixador da América do Norte na ONU?”
“Isso mesmo, Williams. Mas você precisa esquecer a Organização das Nações Unidas. Agora é Comunidade Global.”
“Eu me enganei.”
“Está certo, é um engano, mas não seu.”
“Senhor, existe alguma coisa que eu possa fazer para ajudar?”
O presidente Fitzhugh olhou para o teto e passou a mão pelo rosto suado. “Não sei. Eu só queria desabafar, acho, e pensei que talvez você pudesse dar-me alguns subsídios. Qualquer coisa que ajudasse a frear um pouco esse indivíduo. Deve haver uma fresta em algum lugar de sua armadura.”
“Eu gostaria de poder ajudar mais — disse Buck, dando-se conta de repente de que não estava dizendo a verdade. O que ele não daria para expor Nicolae Carpathia como um assassino mentiroso, o Anticristo hipnotizador! E apesar de Buck ser contra ele, nenhuma pessoa sem Cristo entenderia ou concordaria. Além disso, aparentemente a Bíblia não mencionava que os seguidores de Cristo seriam capazes de fazer alguma coisa a mais, a não ser opor-se a ele. A trajetória do Anticristo foi predita séculos antes, e o drama seria encenado até o fim.”
Nicolae Carpathia estava deglutindo o presidente dos Estados Unidos e quem atravessasse seu caminho. Alcançaria o poder derradeiro, e depois a verdadeira batalha começaria, a guerra entre o céu e o inferno. A derradeira guerra fria transformar-se-ia em batalha para a morte. Buck sentia-se confortado por saber que o fim estava previsto desde o início... mesmo que ele só tivesse tomado conhecimento poucas semanas antes.
O assessor que anunciara Buck ao presidente Fitzhugh interrompeu educadamente.
“Com licença, Sr. Presidente. O secretário-geral deseja conversar com o senhor cinco minutos antes do início da cerimônia.”
Fitzhugh proferiu outro palavrão. “Vamos parar por aqui, Williams. Foi bom desabafar-me com você e agradeço seu sigilo.”
“Certamente, senhor. Ah, seria muito melhor para todos nós se Carpathia não me visse aqui. Ele vai perguntar sobre o que conversamos.”
“Está bem. Ouça, Rob, vá até lá e diga ao pessoal de Carpathia que esta sala não é apropriada e que vou encontrar-me com ele em um minuto onde ele determinar. E peça a Pudge para vir aqui.”
Aparentemente Pudge era o apelido do primeiro agente que acompanhara Buck. O apelido Pudge [pessoa atarracada ou gorducha] não combinava com aquele jovem esguio. “Pudge, dê um jeito de Williams sair daqui sem que o pessoal de Carpathia o veja.”
O presidente apertou o laço da gravata e abotoou o paletó. Em seguida, foi levado a uma outra sala para a reunião com Carpathia. Buck foi protegido por Pudge, o agente do Serviço Secreto, até o ponto em que não haveria mais o risco de ser visto. Depois, caminhou até o local onde seria apresentado como parte da delegação norte-americana.
As credenciais de Rayford davam-lhe permissão para sentar-se quase de frente para autoridades norte-americanas. Ele era um dos únicos a saber que as testemunhas diante do Muro das Lamentações estavam certas — que essa era a comemoração de um pacto profano. Ele sabia, mas não podia fazer nada. Ninguém podia desviar o rumo da história.
Bruce Barnes lhe ensinara muito bem esta lição.
Rayford já estava começando a sentir a falta de Bruce. Passara a gostar das reuniões noturnas na igreja e das experiências que estava adquirindo. A intuição de Bruce estava certa. A Terra Santa era o lugar ideal para estar naquele momento. Se era esse o local de onde surgiriam os primeiros 144.000 judeus convertidos, Bruce gostaria de estar ali.
De acordo com o que Bruce ensinara diretamente da Bíblia a Rayford, Chloe e Buck, os convertidos viriam de todas as partes do globo terrestre, o que redundaria na mais incrível colheita de almas — talvez um bilhão. O número de 144.000 seria composto de judeus, 12.000 de cada uma das 12 tribos de Israel, procedentes de todas as partes do mundo, agregando novamente os judeus que se dispersaram ao longo da história. Imaginem só, pensava Rayford, os judeus evangelizando em sua própria terra e em seu próprio idioma, levando milhões de pessoas a Jesus, o Messias.
A despeito de todas as catástrofes e aborrecimentos que estavam por vir, haveria muitas vitórias pujantes, e Rayford as aguardava com ansiedade. Contudo, ele não se sentia nada satisfeito diante de uma provável dispersão do Comando Tribulação. Quem poderia saber para onde Buck iria, se fosse verdade que Carpathia adquirira todos os meios de comunicação? E se o relacionamento entre Buck e Chloe fosse adiante, eles provavelmente teriam de viver juntos em algum lugar bem distante.
Rayford virou-se na cadeira e examinou o grande número de pessoas presentes. Centenas de assentos já estavam tomados. A segurança era intensa e cerrada. Na hora marcada para o início da cerimônia, Rayford viu as luzes vermelhas das câmeras de TV acenderem-se. O som da música intensificou-se. Os jornalistas começaram a falar baixo, bem perto de seus microfones, e os convidados silenciaram-se. Empertigado em sua cadeira e com o quepe no colo, Rayford perguntou a si mesmo se Chloe o veria pela TV em sua casa em Chicago. Lá já passava da meia-noite e ela estaria mais ansiosa para ver Buck do que ver o pai. Buck poderia ser facilmente localizado. Estaria posicionado na plataforma bem atrás da cadeira de um dos signatários do pacto, o Dr. Chaim Rosenzweig.
Os dignitários—membros veteranos do Knesset, embaixadores do mundo inteiro, estadistas e ex-presidentes dos Estados Unidos, líderes israelenses foram anunciados sob aplausos moderados.
A seguir, foi a vez do segundo grupo, aqueles que ficariam de pé atrás das cadeiras. Buck foi apresentado como "Sr. Cameron 'Buck' Williams, ex-articulista sênior e atual articulista para assuntos do Oriente Médio do Semanário Global, dos Estados Unidos da América do Norte". Rayford sorriu quando Buck esboçou uma reação de indiferença. Evidentemente todos gostariam de saber quem ele era e por que era considerado um dignitário.
Os aplausos mais calorosos foram reservados para as cinco últimas personalidades: o rabino-chefe de Israel; o botânico israelense Chaim Rosenzweig, vencedor do Prêmio Nobel; o primeiro-ministro de Israel; o presidente dos Estados Unidos e o secretário-geral da Comunidade Global.
Quando Carpathia foi anunciado e entrou com seu característico ar de modesta confiança em si próprio, o público o aplaudiu de pé. Rayford levantou-se com relutância, pôs o quepe debaixo do braço e fingiu aplaudir, sem produzir nenhum som. Para ele, era difícil aparecer diante de tanta gente aplaudindo o inimigo de Cristo.
Chaim Rosenzweig virou-se e olhou para Buck, que lhe deu um sorriso. Buck gostaria de livrar seu amigo de meter-se naquela desgraça, mas o momento não era apropriado. Tudo o que ele podia fazer era deixar o amigo deleitar-se com o momento, porque dali em diante não haveria muitos momentos para deleites.
“Este é um grande dia, Cameron — cochichou Chaim, esticando o braço e segurando firme a mão de Buck com as suas. Deu um tapinha na mão de Buck como se ele fosse seu filho.”
Por um breve instante, Buck quase chegou a desejar que Deus não o pudesse ver. Os flashes das máquinas fotográficas espocavam de todos os lados, registrando para a posteridade os dignitários dando apoio a esse tratado histórico. Naquele ambiente, Buck era o único que conhecia a verdadeira identidade de Carpathia, que sabia que a assinatura do tratado daria o início oficial ao período da Tribulação.
De repente, Buck lembrou-se de que no bolso inferior de seu paletó havia um crachá do Semanário Global, cujo verso era revestido com velcro. No momento em que Buck o pegou para colocá-lo sobre o bolso superior do paletó, o velcro grudou na aba do bolso inferior. Quando Buck tentou puxar com força o crachá, o paletó enroscou-se no cinto. Assim que ele o soltou, a aba do bolso ficou presa em sua camisa. Quando finalmente ele conseguiu alisar o paletó e desgrudar o crachá com as duas mãos, já tinha sido fotografado mais de uma dezena de vezes, parecendo um contorcionista.
Depois que os aplausos cessaram e o público voltou a acomodar-se nas cadeiras, Carpathia levantou-se com o microfone na mão. “Este é um dia histórico — começou a dizer com um sorriso. — Apesar de todas as providências terem sido tomadas em tempo recorde, foi sem dúvida um esforço hercúleo conseguir reunir todos os recursos necessários para que tudo isto acontecesse. Hoje estamos homenageando várias pessoas. Em primeiro lugar, meu caro amigo e mentor, a quem considero um pai, o brilhante Dr. Chaim Rosenzweig, de Israel!”
O público reagiu com entusiasmo, e Chaim levantou-se com dificuldade, fazendo um pequeno aceno e sorrindo como um garoto. Buck gostaria de dar-lhe um tapinha no ombro, cumprimentá-lo por sua façanha, mas lamentava a sorte de seu amigo. Rosenzweig estava sendo manipulado. Ele era uma pequena parte de uma trama desonesta que transformaria o mundo num lugar inseguro para ele e seus entes queridos.
Carpathia exaltou as qualidades do rabino-chefe, do primeiro-ministro de Israel e, finalmente, do "Ilustríssimo Senhor Gerald Fitzhugh, presidente dos Estados Unidos da América do Norte, o melhor amigo de Israel até hoje".
Mais aplausos ensurdecedores. Fitzhugh levantou-se um pouco da cadeira em sinal de agradecimento. Quando as palmas começaram a cessar, Carpathia incentivou o público a aplaudir mais ainda. Colocou o microfone debaixo do braço e recuou para aplaudir o presidente com veemência.
Fitzhugh parecia embaraçado, quase aturdido. Olhou para Carpathia, sem saber o que fazer. Carpathia estampava um sorriso radiante, demonstrando emoção diante de seu amigo presidente. Encolheu os ombros e entregou o microfone a Fitzhugh. A princípio, o presidente não esboçou nenhuma reação, dando a entender que não pegaria o microfone. Finalmente, aceitou-o para delírio da platéia.
Buck estava atônito diante da habilidade de Carpathia para controlar aquele grande número de pessoas. Evidentemente tratava-se de uma atitude ensaiada. E o que faria Fitzhugh? A única reação apropriada seria agradecer os aplausos e distribuir elogios a seus bons amigos israelenses. Apesar de Fitzhugh estar começando a conscientizar-se do plano maligno de Nicolae Carpathia, tinha de reconhecer o importante papel daquele homem no processo de paz.
Fitzhugh levantou-se, arrastando a cadeira com grande ruído. Em seguida, empurrou-a desajeitadamente na direção de seu secretário de estado. O presidente teve de esperar que o público parasse de aplaudir, o que parecia não ter fim. Carpathia aproximou-se rapidamente de Fitzhugh e ergueu a mão do presidente, como fazem os árbitros com os vencedores de uma luta de boxe. Os aplausos por parte dos israelenses foram mais ensurdecedores ainda.
Finalmente, Carpathia afastou-se e deixou o presidente Fitzhugh sozinho no centro da plataforma, forçando-o a pronunciar algumas palavras. Assim que Fitzhugh começou a falar, Buck percebeu que Carpathia estava entrando em ação. Apesar de não esperar ser testemunha de um assassinato, como acontecera em Nova York, Buck convenceu-se imediatamente de que Carpathia tinha, de alguma forma, provocado uma situação sinistra. Ao dirigir-se àquela entusiasmada platéia, o presidente Fitzhugh não passava daquela pessoa frustrada com quem Buck se encontrara poucos minutos antes.
Enquanto o presidente falava, Buck começou a sentir um calor no pescoço e os joelhos bambos. Inclinou-se para frente e segurou firme o espaldar da cadeira de Rosenzweig, tentando em vão parar de tremer. Sentiu claramente a presença do demônio, e a náusea quase tomou conta dele.
— A última coisa que desejo fazer num momento como este — estava dizendo o presidente Fitzhugh — é apagar o brilho do acontecimento que estamos presenciando.
Contudo, com a permissão dos senhores e de nosso grande líder da Comunidade Global, nome este habilmente escolhido, eu gostaria de abordar rapidamente dois pontos importantes. Primeiro, é um privilégio ver o que Nicolae Carpathia realizou em apenas algumas semanas. Estou certo de que todos concordam comigo que, graças a ele, o mundo se tornou um lugar onde existe mais amor e paz.
Carpathia fez um gesto de pegar o microfone de volta, mas o presidente Fitzhugh ofereceu resistência. “Com licença, senhor, mas agora quem está com a palavra sou eu! — A platéia caiu na gargalhada. — Já disse antes e vou repetir, a idéia do secretário-geral para o desarmamento global foi uma tacada de gênio. Eu apoio essa idéia sem reservas e sinto-me orgulhoso por estar abrindo o caminho para a rápida destruição de 90 por cento de nosso armamento e doar os 10 por cento restantes à Comunidade Global, sob a direção do Sr. Carpathia.”
Buck sentiu uma leve tontura e esforçou-se para manter o equilíbrio.
“Como expressão tangível de meu apoio pessoal e de nosso país, também presenteamos a Comunidade Global com o recém-lançado Air Force One. Financiamos sua nova pintura e novo nome, e ele pode ser visto no Aeroporto Internacional Ben Gurion. Agora, entrego o microfone ao homem do destino, ao líder cujo atual título não faz justiça à extensão de sua influência, ao meu amigo pessoal e compatriota, Nicolae Carpathia!”
Nicolae fingiu aceitar o microfone com relutância e demonstrou embaraço pelo fato de receber tantas atenções. Parecia confuso, como se não soubesse o que fazer diante do recalcitrante presidente dos Estados Unidos que exagerara em suas palavras.
Quando finalmente os aplausos cessaram, Carpathia voltou a falar com seu tom de voz humilde. “Peço desculpas pelos rasgados elogios de meu amigo, que tem sido muito bondoso e generoso, e a quem a Comunidade Global deve imensos favores.”
Rayford mantinha os olhos fixos em Buck, que aparentemente não estava bem. Buck parecia prestes a perder os sentidos, e Rayford perguntou a si mesmo se seria o calor ou os repugnantes discursos de admiração mútua que estavam deixando Buck pálido e com o estômago embrulhado.
Os dignitários israelenses—com exceção de Rosenzweig, é claro—demonstravam um certo desconforto diante de toda aquela conversa sobre desarmamento e destruição de armas. Durante décadas seu país sempre fora muito bem defendido por um exército poderoso, e se não fosse o pacto com a Comunidade Global, o povo israelense não concordaria com o plano de desarmamento de Carpathia.
O restante da cerimônia tornou-se enfadonho após o assombroso—e, na opinião de Rayford, preocupante – o discurso do presidente. Fitzhugh parecia mais fascinado por Carpathia a cada vez que se encontravam. Porém, seu ponto de vista espelhava a opinião de quase toda a população mundial. No momento mais importante da história mundial, estava cada vez mais fácil acreditar que Nicolae Carpathia era uma dádiva de Deus, com exceção daqueles que estudavam as profecias bíblicas e conseguiam ler nas entre linhas.
Buck recuperou o controle enquanto os outros líderes faziam discursos inócuos e matraqueavam sobre a importância história do documento que estava prestes a ser assinado.
Surgiram várias canetas luxuosas de todos os lados, enquanto a máquinas fotográficas e as câmeras de TV, filme e vídeo focalizavam os signatários. As canetas eram passadas de mão em mão para as posudas autoridades que assinavam o tratado. Com apertos de mão, abraços e beijos no rosto, o tratado foi celebrado.
E os signatários do tratado — todos, exceto um — ignoravam suas conseqüências e não sabiam que fizeram parte de uma aliança profana.
O pacto acabara de ser celebrado. O povo escolhido de Deus, que planejava reconstruir o templo e restabelecer o sistema de sacrifícios até a volta de seu Messias, tinha assinado um acordo com o demônio.
Apenas dois homens na plataforma sabiam que esse pacto assinalava o início do final dos tempos. Um era diabolicamente confiante, o outro tremia só em pensar no que estava por acontecer.
Diante do famoso Muro, as duas testemunhas proferiam a verdade em tom de lamento. O som de seus gritos alcançava a Colina do Templo e mais além, enquanto elas proclamavam: — E assim começa a última terrível semana do Senhor!
A "semana" dos sete anos começara.
A Tribulação.
DEZESSETE
Rayford sentou-se numa cabina telefônica no interior do Aeroporto Ben Gurion. Tinha chegado muito cedo e teria de aguardar a delegação de Carpathia por mais de uma hora. Sua tripulação estava ocupada, cuidando do Global Community One, e ele dispunha de tempo para fazer uma ligação internacional e falar com Chloe.
“Eu vi você, papai! — ela disse, rindo. — O pessoal da TV tentou mostrar na tela o nome dos participantes à medida que eram focalizados. O seu nome apareceu quase correto. Escreveram Raymond Steel, sem a letra e no final, e que você era o piloto do Air Force One”.
Rayford sorriu, animado ao ouvir a voz da filha. “Quase. E a imprensa ainda não sabe por que ninguém confia nela.”
“Eles não sabiam o que fazer com Buck — disse Chloe. — Nos primeiros minutos em que ele foi focalizado, não apareceu nenhum nome na tela. Depois, alguém deve ter ouvido o nome dele no momento das apresentações, que apareceu como "Duke Wilson, ex-articulista, Newsweek”.
“Perfeito — disse Rayford.”
“Buck está muito entusiasmado com esse rabino que vai falar na CNN Internacional dentro de algumas horas. Você vai ter a oportunidade de assistir ao programa?”
“Vamos assistir no avião.”
“Numa distância tão grande e naquela altura?”
“Você precisa conhecer a tecnologia, Chio. A recepção será melhor do que se fosse via cabo, em casa. De qualquer forma, se não for melhor, vai ser igual.”
Buck sentia uma imensa tristeza. Chaim Rosenzweig o abraçara pelo menos três vezes após a cerimônia, dizendo exultante que aquele dia havia sido um dos mais felizes de sua vida. Insistiu para que Buck os acompanhasse no vôo até Bagdá. — De uma forma ou de outra você estará trabalhando para Nicolae dentro de um mês — disse Chaim. — Ninguém vai notar esse conflito de interesses.
— Eu vou, principalmente daqui a um mês, quando ele for proprietário da revista para a qual eu trabalho.
— Não seja negativo, especialmente hoje — disse Chaim. — Venha conosco. Aprecie o momento e encante-se com ele. Eu conheço os planos. A Nova Babilônia será magnífica.
Buck sentia vontade de chorar por seu amigo. Quando tudo isso se abateria sobre Chaim? Será que ele morreria antes de ter percebido que foi enganado e usado? Talvez esse fim fosse o melhor. Porém, Buck também temia pela alma de Chaim. — O senhor vai ver o Dr. Ben-Judá ao vivo pela TV hoje?
— Claro! Não poderia perder! Ele é meu amigo desde os tempos da Universidade Hebraica. Entendo que o programa poderá ser visto no avião para Bagdá. Outro motivo para você ir conosco.
Buck balançou a cabeça. — Vou ver daqui mesmo. Logo que seu amigo expuser o que descobriu, o senhor e eu poderemos conversar sobre as ramificações.
“Ah, não sou um homem religioso, Cameron. Você sabe disto. Provavelmente não me surpreenderei com o que Tsion disser hoje. Ele é um estudioso competente e um pesquisador meticuloso, realmente brilhante, e um orador talentoso. Às vezes, ele me faz lembrar Nicolae.”
Por favor, pensou Buck. Tudo menos isso! — O que o senhor acha que ele vai dizer? — perguntou.
“Assim como a maioria dos judeus ortodoxos, ele chegará à conclusão de que o Messias ainda vai chegar. Como você sabe, existem alguns poucos grupos marginalizados que acreditam que o Messias já veio, mas os tais que disseram ser o Messias não estão mais em Israel. Alguns já morreram. Alguns mudaram para outros países. Nenhum deles trouxe a justiça e a paz que o Torá prediz. Portanto, como todos nós, Tsion vai falar das profecias e incentivar-nos a continuar aguardando e observando. Será estimulante e animador, como acredito que tenha sido o ponto principal da pesquisa desde o início. Talvez ele fale sobre como apressar a chegada do Messias. Alguns grupos mudaram para as antigas habitações judaicas, acreditando que tinham o sagrado direito de proceder assim, e que isso seria importante para o cumprimento de algumas profecias, abrindo o caminho para a vinda do Messias. Outros ficaram tão aborrecidos com a profanação da Colina do Templo pelos muçulmanos que reabriram sinagogas nos arredores, o mais perto possível do local primitivo do templo.”
“O senhor deve saber que existem gentios que também acreditam que o Messias já veio — disse Buck, escolhendo as palavras com cuidado.”
Chaim estava olhando por cima do ombro de Buck para ter certeza de que não ficaria para trás quando os membros da delegação se dirigissem de volta para seus hotéis e depois para o aeroporto Ben Gurion rumo a Bagdá. “Sim, sim, eu sei, Cameron. Mas já estou quase acreditando que o Messias não é uma pessoa, e sim uma ideologia.”
Depois de dizer isso, ele começou a afastar-se, e Buck sentiu uma aflição dentro do peito. Segurou o amigo pelo braço. “— Doutor, o Messias é muito mais do que uma ideologia!”
Rosenzweig parou e olhou firme para o rosto de Buck. “Cameron, podemos discutir este assunto, mas se você quiser levar tudo ao pé da letra, deixe-me dizer-lhe uma coisa. Se o Messias for uma pessoa, se ele vier trazer a paz, a justiça e a esperança ao mundo, concordo com aqueles que acreditam que ele já está aqui.”
“O senhor acredita nisso?”
“Sim, você não?”
“O senhor acredita no Messias?”
“Eu disse se, Cameron. Um grande se.”
“Se o Messias é verdadeiro e se ele está para chegar, é isso? — perguntou Buck com insistência, enquanto seu amigo se afastava.”
“Você não entende, Cameron? Nicolae é o cumprimento da maior parte das profecias. Talvez de todas, mas não domino este assunto. Agora preciso ir. Vamos nos encontrar na Babilônia?”
“Não, eu já lhe disse...”
Rosenzweig parou e virou-se. “Pensei que você estivesse querendo encontrar seu próprio caminho a fim de não precisar aceitar favores em troca de uma entrevista.”
“É verdade, mas mudei de idéia. Não vou. Se eu resolver trabalhar para uma publicação de propriedade de Carpathia, imagino que em breve vou fazer uma viagem à Nova Babilônia.”
“E o que vai fazer agora? Voltar para os Estados Unidos? Vamos nos encontrar lá?”
“Não sei. Talvez.”
“Cameron! Dê-me um sorriso neste dia histórico!”
Buck não conseguiu sorrir. Caminhou de volta para o Hotel Rei Davi, onde o recepcionista perguntou se ele ainda queria saber informações sobre os vôos comerciais para Bagdá. – Não, obrigado. — ele disse.
“Está bem. Um recado para o senhor.”
O envelope continha o endereço do Dr. Tsion Ben-Judá. Buck caminhou apressadamente até seu quarto e abriu o envelope. O recado dizia o seguinte: "Peço desculpas por tê-lo deixado sozinho ontem à noite. Não estava em condições de conversar. Você me concederia a honra de almoçar comigo e acompanhar-me até o estúdio da CNN? Aguardo seu telefonema."
Buck olhou para o relógio. Com certeza já era tarde demais. Fez a ligação e foi informado pela governanta que o rabino havia saído vinte minutos antes. Buck bateu com força no guarda-roupa. Que privilégio ele perdera só por ter resolvido voltar a pé ao hotel em vez de pegar um táxi! Talvez ainda houvesse tempo de pegar um táxi até o estúdio e encontrar-se lá com Tsion após o almoço. Mas será que o rabino queria falar com ele antes de o programa ir ao ar? Seria isso?
Buck tirou o fone do gancho e o recepcionista atendeu. “Você pode conseguir-me um táxi, por favor?”
“Certamente, mas há uma ligação para o senhor. Posso transferir?”
“Sim, e não chame o táxi até eu voltar a falar com você.”
“Sim, senhor. Coloque o fone no gancho, por favor. Vou transferir a ligação.”
Era Tsion. “Dr. Ben-Judá! Que bom que o senhor ligou! Acabei de chegar!”
“Eu estive na cerimônia da assinatura, Buck — disse Tsion com seu forte sotaque hebraico — mas não quis ficar em evidência nem dar entrevistas.”
“O seu convite para o almoço ainda está de pé?”
“Está.’
“Quando e onde devo encontrá-lo?”
“Que tal agora, na frente de seu hotel?”
“Já estou indo.”
Obrigado, Senhor, agradeceu Buck enquanto descia correndo as escadas. Concede-me a oportunidade de dizer a esse homem que Tu és o Messias.
No carro, o rabino segurou firme a mão de Buck com as duas mãos e puxou-o para perto de si. “Buck, compartilhamos uma experiência incrível. Sinto que somos amigos. Mas agora estou nervoso por ter de revelar minhas descobertas ao mundo, e preciso conversar com você durante o almoço. Podemos?”
O rabino pediu a seu motorista que os levasse a um pequeno café numa região movimentada de Jerusalém. Tsion, carregando debaixo do braço um enorme fichário preto de três furos, falou baixo em hebraico com o garçom, que os levou até uma mesa perto de uma janela cheia de plantas. Quando o garçom trouxe os cardápios, Ben-Judá olhou para seu relógio, dispensou os cardápios e falou novamente em seu idioma nativo. Buck supôs que ele estivesse pedindo pratos para duas pessoas.
“Você ainda precisa do crachá para identificar-se como repórter da revista?”
Buck tirou rapidamente o crachá do bolso.
“Desta vez saiu muito mais fácil, não?”
Enquanto ambos caíam na gargalhada, o garçom trouxe um pão de fôrma quente não-fatiado, manteiga, um queijo redondo, molho parecido com maionese, uma tigela de maçãs verdes e pepinos frescos.
“Você permite? — disse Ben-Judá, apontando para o prato.”
“Por favor.”
O rabino cortou o pão em fatias bem grossas, lambuzou-as com manteiga e molho, adicionou fatias de pepino e queijo. Depois colocou fatias de maçã ao lado e empurrou o prato na direção de Buck.
Buck aguardou enquanto o rabino preparava seu próprio prato.
“Por favor, não espere por mim. Coma enquanto o pão ainda está quente.”
Buck curvou levemente a cabeça, orando pela alma de Tsion Ben-Judá. Ele ergueu os olhos e elogiou o prato escolhido.
“Você é um homem de oração — observou Tsion enquanto continuava a preparar seu prato.”
“Sou. — Buck continuou a orar silenciosamente, perguntando a si mesmo se aquele seria o momento ideal para uma palavra oportuna. Será que este homem poderia ser influenciado, faltando apenas uma hora para ele revelar o resultado de sua pesquisa ao mundo? Buck sentiu-se um tolo. O rabino estava sorrindo.”
“O que foi, Tsion?”
“Eu estava me lembrando do último americano com quem fiz uma refeição aqui. Ele estava fazendo uma excursão e pediram-me que eu lhe fizesse companhia. Ele era uma espécie de líder religioso, e aqui temos o costume de receber bem os turistas, você sabe. — Buck assentiu.”
“Cometi o erro de perguntar-lhe se gostaria de experimentar um de meus pratos favoritos, sanduíche de legumes com queijo. Não sei se ele não me entendeu bem por causa de meu sotaque ou se o prato não lhe agradava. Ele recusou educadamente e pediu uma comida mais familiar, pão sírio e camarão, se bem me lembro. Porém, pedi ao garçom, em meu idioma, que trouxesse uma porção extra do que eu estava comendo, só por uma questão de zelo, como costumo dizer. Não demorou muito, o homem empurrou seu prato e começou a experimentar a comida que eu havia pedido.”
Buck riu. “E agora o senhor simplesmente faz o pedido para os seus convidados.”
“Exatamente.”
Antes de começar a comer, o rabino também orou silenciosamente.
“Não tomei o café da manhã — disse Buck, levantando o pão, como se estivesse brindando.”
Tsion Ben-Judá deu um sorriso radiante. “ Perfeito! — ele disse. — Há um provérbio internacional que diz que a fome é o melhor tempero.
Buck concordou. Precisou tomar cuidado para não exagerar na comida, algo que raramente lhe acontecia. “Tsion — ele finalmente perguntou — você precisa de companhia antes de aparecer na TV ou existe um assunto específico que queira conversar?”
“Um assunto específico — disse o rabino, olhando para o relógio. — A propósito, meu cabelo está penteado?”
“ Sim. Provavelmente vão eliminar a marca do chapéu na hora da maquiagem.”
“ Maquiagem? Eu tinha me esquecido dessa parte. Foi por isso que me pediram para chegar bem antes da hora.”
Ben-Judá consultou seu relógio, empurrou o prato para o lado e colocou o fichário sobre a mesa. Ele continha uma pilha de cerca de dez centímetros de páginas manuscritas. “Tenho muito mais material em meu escritório — ele disse — mas aqui estão a essência, a conclusão e o resultado de meus três anos de exaustivo... e desgastante... trabalho com um grupo de jovens estudantes, cuja ajuda foi inestimável para mim.”
“O senhor não está imaginando ler isso em voz alta em uma hora, está?”
“Não, não! — disse Ben-Judá, rindo. — Isto é o que poderíamos chamar de recurso extra. Se eu me esquecer, terei material para recorrer. Em qualquer situação, há sempre alguma coisa a dizer. Talvez lhe interesse saber que decorei o que vou dizer na TV.”
“Durante uma hora?”
“Há três anos, isso poderia ter-me amedrontado. Agora sei que posso falar por muito mais tempo, sem precisar das anotações. Porém, devo ater-me ao meu plano de compensar o tempo. Se eu me desviar do assunto, nunca conseguirei terminar.”
“E mesmo assim o senhor carrega suas anotações.”
“Tenho confiança em mim, Buck, mas não sou nenhum tolo. Passei grande parte de minha vida falando em público, mas cerca da metade do tempo em hebraico. Em razão da audiência internacional, evidentemente a CNN prefere que eu fale em inglês. Isso torna as coisas um pouco mais difíceis para mim, e não quero me perder.”
“Tenho certeza de que o senhor se sairá bem.”
“Você acabou de justificar o objetivo desta conversa! — disse o rabino, sorridente. — O convite que lhe fiz para o almoço já rendeu frutos.”
“Então o senhor só estava precisando de uma pequena torcida.”
O rabino fez uma pausa, como se estivesse pensando no significado da palavra torcida. Apesar de ser um termo não muito conhecido fora dos Estados Unidos, Buck supôs que seria fácil entendê-lo. “Sim — disse Ben-Judá. — Torcida. E quero fazer-lhe uma pergunta. Se for muito pessoal, você não precisa responder.”
Buck abriu as mãos com as palmas para cima, indicando que não haveria problema.
“Ontem à noite você quis saber quais eram as minhas conclusões a respeito do Messias, e eu lhe pedi que aguardasse até o mundo inteiro tomar conhecimento. Agora, permita-me fazer a mesma pergunta a você.”
Louvado seja o Senhor, pensou Buck. “Quanto tempo ainda nos resta?”
“Cerca de vinte minutos. Se a resposta for muito longa, poderemos continuar a conversa no carro, a caminho do estúdio. Talvez até na sala de maquiagem.”
O rabino achou graça no que disse, mas Buck já estava formulando sua história. “O senhor já sabe que estive num kibutz quando os russos atacaram Israel.”
Ben-Judá assentiu. “Foi nesse dia que você deixou de ser agnóstico.”
“Correto. Bem, eu estava dentro de um avião, a caminho de Londres, no dia dos desaparecimentos.”
“Não diga!”
Buck prosseguiu contando a história de sua jornada espiritual. Só terminou quando o rabino saiu da sala de maquiagem e sentou-se nervosamente nos bastidores. “Falei muito? — perguntou Buck. — Entendo que seria exigir demais que o senhor prestasse atenção, ou fingisse prestar atenção, quando deveria estar concentrado em sua apresentação.”
“Não, Buck — disse o rabino, com a voz embargada pela emoção. — Eu costumo fazer isso à noite, enquanto descanso. Se eu tentasse forçar a concentração na última hora, poria tudo a perder.”
Só isso? Pensou Buck. Nenhuma resposta? Nenhum agradecimento? Nenhum adjetivo depreciativo?
Finalmente, após um longo silêncio, Tsion voltou a falar. “Buck, agradeço imensamente o que você me contou.”
Uma jovem com um estojo de pilhas preso à cintura, fones de ouvido e microfone, aproximou-se. “Dr. Ben-Judá — ela disse. — O estúdio já está preparado para a checagem de som. Estaremos no ar em noventa segundos.”
“Estou pronto. — Ben-Judá não saiu do lugar.”
A jovem hesitou, sem saber o que fazer, e saiu do recinto. Aparentemente não estava acostumada a esse tipo de atitude. Geralmente os convidados a acompanhavam nervosamente até o estúdio.
Tsion Ben-Judá levantou-se com o fichário debaixo do braço, abriu a porta e ficou segurando a maçaneta com a mão que estava livre. “Agora, Buck Williams, gostaria que você me fizesse um favor enquanto aguarda aqui.”
“Claro.”
“Sendo um homem de oração, você poderia orar para que Deus coloque as palavras em minha boca?”
Buck fez um gesto de incentivo com a mão fechada para seu novo amigo e balançou a cabeça afirmativamente.
“Quer assumir o comando? — perguntou Rayford a seu co-piloto. — Eu gostaria de assistir a esse programa especial da CNN.”
“Positivo. Você está falando da história do rabino?”
“Correto.”
O co-piloto balançou a cabeça negativamente. “Isso me faria pegar no sono.”
Rayford saiu da cabina de comando, mas ficou desapontado ao ver que o aparelho de TV da cabina principal não estava ligado. Dirigiu-se para a parte traseira do avião onde alguns dignitários e a imprensa estavam reunidos ao redor de outro aparelho de TV. Porém, antes de Rayford atravessar a sala de reuniões do secretário-geral, Carpathia notou sua presença. — Capitão Steele! Por favor! Fique conosco por alguns minutos!
“Obrigado, senhor, mas eu gostaria de ver o...
“O programa do Messias, sim, claro! Liguem a TV! Alguém ligou o aparelho e o sintonizou na CNN. — Vocês sabem — anunciou Carpathia em voz alta para que todos pudessem ouvir — que o nosso capitão acredita que Jesus foi o Messias?”
“Francamente — disse Chaim Rosenzweig — como um judeu não-religioso, penso que Nicolae está cumprindo muito mais as profecias do que Jesus.”
Rayford fez uma expressão de desagrado. Que blasfêmia! Ele sabia que Buck gostava de Rosenzweig e o admirava, mas que maneira de falar! “Sem querer ofendê-lo, senhor, duvido que os judeus, em sua maioria, acreditem num Messias... mesmo achando que ele ainda virá... nascido em outro lugar, fora da Terra Santa.”
“Ah, bem, vocês estão vendo? — disse Rosenzweig. — Não sou um estudioso do assunto. — No entanto, este homem — ele prosseguiu, apontando para a tela da TV no momento em que Tsion Ben-Judá estava sendo apresentado — é um erudito em assuntos religiosos. Após três anos de intensas pesquisas, ele deve ser capaz de descrever as qualificações do Messias.”
Aposto que sim, pensou Rayford, de pé num canto da sala e encostado na parede para não impedir a passagem de outras pessoas. Carpathia tirou o paletó, e uma comissária de bordo imediatamente o pendurou. Ele afrouxou o nó da gravata, enrolou as mangas da camisa e sentou-se diante da TV, segurando um copo de água mineral gasosa com uma rodela de limão. Evidentemente Carpathia estava considerando tudo isso uma boa diversão, pensou Rayford.
Um locutor em off deixou claro que "as idéias e os pontos de vista expressos nesta transmissão não refletem necessariamente as opiniões da CNN nem de suas retransmissoras afiliadas".
Rayford achou que o Dr. Ben-Judá era um excelente comunicador. Ele olhava diretamente para a câmera e, apesar de seu sotaque acentuado, falava de modo pausado e claro, o suficiente para ser facilmente compreendido. Acima de tudo, Rayford notou que ele era um homem entusiasmado e apaixonado pelo assunto ao qual se dedicava. Não era bem o que Rayford esperava. Ele tinha imaginado um rabino idoso com longa barba branca, debruçado sobre alguns manuscritos embolorados, analisando-os minuciosamente com uma lupa.
No entanto, após uma breve apresentação de si mesmo e do processo pelo qual ele e sua equipe fizeram a pesquisa, Ben-Judá começou sua explanação com uma promessa. “Cheguei à conclusão de que podemos conhecer, sem sombra de dúvida, a identidade de nosso Messias. Nossa Bíblia apresenta claras profecias, pré-requisitos e prognósticos que apenas uma pessoa da raça humana poderia cumprir. Acompanhem meu raciocínio e vejam se os senhores chegam à mesma conclusão que eu, e assim veremos se o Messias é um ser real, se ele já veio ou se ainda virá.”
O rabino Ben-Judá contou que ele e sua equipe passaram quase todo o primeiro ano da pesquisa confirmando a veracidade dos estudos do falecido Alfred Edersheim, um professor de línguas e conferencista de Grinfield sobre a Septuaginta [Versão bíblica dos Setenta sábios: tradução do Velho Testamento do hebraico para o grego]. Edersheim postulou que havia 456 passagens messiânicas nas Escrituras, amparadas por mais de 558 referências procedentes dos mais antigos escritos rabínicos.
“Bem — prosseguia o rabino — prometo não aborrecer os senhores com estatísticas, mas permitam-me dizer que muitas daquelas passagens proféticas são repetitivas e algumas, obscuras. No entanto, com base em nosso estudo meticuloso, acreditamos que haja pelo menos 109 profecias separadas e distintas, as quais o Messias deve cumprir. Para tanto, faz-se necessário que o Messias seja um homem fora do comum e leve uma vida inusitada, o que elimina todos os impostores. Não tenho tempo nesta hora de que disponho para explicar todas as 109 profecias, é claro, mas vou abordar algumas mais óbvias e específicas. Consultamos um matemático e lhe perguntamos qual seria a probabilidade de 20 das 109 profecias serem cumpridas por um único homem. A resposta foi a seguinte: uma em um quatrilhão e cento e vinte e cinco trilhões!
A seguir, o Dr. Ben-Judá forneceu o que Rayford considerou um exemplo brilhante de como identificar facilmente alguém por meio de apenas algumas características. — A despeito dos bilhões de pessoas que ainda povoam este planeta, os senhores podem enviar-me um cartão postal pelo correio, contendo apenas algumas indicações, e eu serei a única pessoa a recebê-lo. Se enviarem o cartão para Israel, os senhores estarão eliminando todos os outros países do mundo. Se o cartão indicar Jerusalém, as possibilidades serão mais restritas ainda. Os senhores estarão reduzindo as possibilidades a uma pequena fração se o cartão for enviado a uma determinada rua, a um determinado número, a um determinado apartamento. E, se o cartão contiver meu nome completo, serei distinguido no meio de bilhões de pessoas. Creio que as profecias a respeito do Messias fazem o mesmo. Elas eliminam, eliminam, eliminam até que uma única pessoa seja capaz de cumpri-las.
O Dr. Ben-Judá falava de maneira tão cativante que todos os passageiros do avião pararam de falar, de movimentar-se e até de mexer-se nas poltronas. Até Nicolae Carpathia, que bebericava sua água mineral fazendo o gelo tilintar no copo, quase não se mexia. Para Rayford, parecia que Carpathia estava constrangido diante da atenção que Ben-Judá conseguira atrair.
Tentando não incomodar ninguém, Rayford pediu licença e voltou rapidamente para a cabina de comando. Pousou a mão no ombro do co-piloto e curvou-se para falar com ele. O co-piloto retirou o fone do ouvido esquerdo.
“Quero que esta aeronave aterrisse cinco minutos após o horário marcado.”
“Programamos cerca de dois minutos, Capitão, e até agora estamos dentro dos limites.”
“Faça os ajustes necessários para que minhas ordens sejam cumpridas.”
“Positivo. — Em seguida, o co-piloto começou a falar pelo rádio. — Global Community One chamando torre de Bagdá.”
“Torre de Bagdá, prossiga, One.”
“Estamos reduzindo a velocidade em alguns nós e programando aterrissar cinco minutos após a hora marcada.”
“Positivo, Global. Algum problema?”
“ Negativo. Apenas fazendo uma experiência com a nova aeronave.”
O co-piloto olhou de relance para Rayford, querendo saber se estava tudo bem. Rayford fez um sinal de positivo com o polegar e voltou rapidamente para assistir ao programa na televisão.
Buck orava sem tirar os olhos da TV. Os funcionários estavam reunidos em volta dos monitores. Não havia a costumeira algazarra nos bastidores. Todos estavam com os olhos fixos na tela. Para acalmar o nervosismo, Buck pegou seu bloco e sua caneta e tentou tomar nota de tudo. Era quase impossível acompanhar o rabino, que discorria sobre as profecias, uma atrás da outra.
“O Messias não se restringe a apenas algumas características de identificação — dizia Ben-Judá. — Nós, os judeus, estamos aguardando por ele, orando por ele, ansiando por sua chegada há séculos e, mesmo assim, paramos de estudar as várias indicações legítimas contidas em nossas Escrituras. Ignoramos muitas delas e escolhemos outras, a ponto de estarmos agora à procura de um líder político que corrija os erros, traga justiça e prometa a paz.”
Chaim Rosenzweig aproximou-se de Carpathia, bateu de leve em suas costas e lançou um sorriso para os presentes. Ninguém lhe deu atenção, principalmente Carpathia.
“Alguns acreditam que o Messias restaurará as construções, deixando-as como eram nos gloriosos dias de Salomão — prosseguia o rabino Ben-Judá. — Outros acreditam que o Messias fará novas todas as coisas, anunciando um novo reino diferente de todos os que já vimos. Até mesmo as próprias profecias nos dizem o que o Messias fará. Vamos examinar algumas delas durante o tempo restante.”
Buck estava tendo um vislumbre do que aconteceria no futuro. Jesus era o Messias, o escolhido, o cumprimento da Palavra de Deus; se não fosse, ele não poderia suportar o que diziam as profecias. Se é que havia um único homem capaz de cumprir as profecias, tinha de ser Jesus. Aparentemente, o rabino ia usar o Novo Testamento para tentar convencer sua primeira e principal audiência, os judeus. Portanto, as profecias de centenas de anos antes do nascimento de Cristo teriam de ser suficientemente claras para atingir o alvo... se era esse o verdadeiro objetivo de Tsion.
O Dr. Ben-Judá estava sentado na extremidade da mesa onde ele espalhara as centenas de páginas de sua pesquisa. A câmera focalizava, ora de longe, ora de perto, seus traços expressivos. — A primeira e genuína qualificação do Messias, aceita por nossos estudiosos desde o início, é que ele devia nascer da semente de uma mulher, e não da semente de um homem como todos os outros seres humanos. Sabemos agora que as mulheres não possuem "semente". O homem fornece a semente para fertilizar o óvulo da mulher. Portanto, trata-se de um nascimento sobrenatural, conforme predito em Isaías 7.14: "Portanto o Senhor mesmo vos dará um sinal: eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho e lhe chamará Emanuel." O nosso Messias deve nascer de uma mulher e não de um homem porque ele deve ser íntegro. Todos os outros seres humanos nascem da semente de seu pai, e a semente pecaminosa de Adão é passada a eles. Não acontece o mesmo com o Messias, nascido de uma virgem. O nosso Messias deve pertencer a uma linhagem extremamente rara. A mulher que o gerar deve pertencer a uma linhagem que inclua muitos pais de Israel. O próprio Deus eliminou bilhões de pessoas dessa linhagem seleta para que a identidade do Messias fosse inequívoca. Primeiro, Deus eliminou dois terços da população mundial quando escolheu Abraão, que era descendente de Sem, um dos três filhos de Noé. Dos dois filhos de Abraão, Deus escolheu apenas Isaque, eliminando metade da descendência de Abraão. Um dos dois filhos de Isaque, Jacó, recebeu a bênção mas passou-a a apenas um de seus doze filhos, Judá. Com isso, foram eliminados milhões de outros filhos em Israel. Anos depois, o profeta Isaías destacou o rei Davi como outro ascendente do Messias que havia de vir, predizendo que ele seria uma "raiz de Jessé". O pai de Davi, Jessé, era filho de Judá. O Messias, de acordo com o profeta Miquéias, deve nascer em Belém. – O rabino consultou suas anotações e leu: — "E tu, Belém Efrata, pequena demais para figurar como grupo de milhares de Judá, de ti me sairá o que há de reinar em Israel, e cujas origens são desde os tempos antigos, desde os dias da eternidade."
Chaim Rosenzweig, o único no avião que estava nervoso, movimentava-se sem parar. Rayford percebeu que aquele homem idoso estava sendo ridículo e esperava que ele não demonstrasse. Mas ele demonstrou. — Nicolae — disse Chaim — você nasceu em Belém e mudou-se para Cluj, não foi? Ha, ha!
Os outros pediram que ele se calasse, mas Carpathia endireitou-se na cadeira, como se acabasse de perceber algo. — Sei aonde esse homem vai chegar! — ele disse. — Vocês não estão entendendo? Está tão na cara como o nariz dele.
Eu entendo, pensou Rayford. Já devia estar evidente para outras pessoas, além de Carpathia.
“Ele vai dizer que o Messias é ele próprio! — gritou Carpathia.— Provavelmente nasceu em Belém, e sabe-se lá a que linhagem ele pertence. É raro uma pessoa aceitar ser filho ilegítimo, mas talvez sua história seja esta. Esse indivíduo pode dizer que sua mãe nunca esteve com um homem antes de ele nascer, e vejam só, os judeus têm um Messias!”
“Ora! — disse Rosenzweig. — Você está falando de um amigo meu a quem prezo muito. Ele nunca diria tal coisa.”
“Preste atenção e veja — disse Carpathia.”
Uma comissária de bordo curvou-se e sussurrou no ouvido de Carpathia. — Ligação para o senhor, Sr. Secretário-Geral.
“Quem é?”
“Uma funcionária chamando de Nova York.”
“Quem?”
“Sra. Durham.”
“Anote o recado.”
Carpathia virou-se para a tela da TV enquanto o rabino Ben-Judá prosseguia. — Quando criança, o Messias irá para o Egito, porque o profeta Oséias 11.1 diz que Deus o chamará do Egito. Isaías 9.1,2 menciona que o Messias evangelizará a maior parte do tempo na Galiléia. Uma das profecias de que nós, os judeus, não gostamos e tendemos a ignorar é que o Messias será rejeitado por seu próprio povo. Isaías profetizou que ele seria "desprezado e o mais rejeitado entre os homens; homem de dores e que sabe o que é padecer; e, como um de quem os homens escondem o rosto, era desprezado, e dele não fizemos caso" (Is 53.3).
O rabino olhou para seu relógio. “Meu tempo está se esgotando — ele disse — portanto, desejo abordar rapidamente mais algumas profecias e contar-lhes a que conclusão cheguei. Isaías e Malaquias predizem que o Messias será precedido de um mensageiro. O salmista disse que o Messias seria traído por um amigo. Zacarias disse que o Messias seria traído por trinta moedas de prata. E complementa dizendo que o povo verá aquele a quem eles perfuraram. O salmista profetizou que eles "estão me olhando e me encarando. Repartem entre si as minhas vestes e sobre a minha túnica lançam sortes" (Salmo 22.17,18). E posteriormente o salmista profetizou que "ele preserva todos os meus ossos; nem um deles será quebrado" (Salmo 34.20). Isaías diz que "designaram-lhe a sepultura com os perversos, mas com o rico esteve na sua morte, posto que nunca fez injustiça, nem dolo algum se achou em sua boca" (Is 53.9). Os Salmos dizem que ele ressuscitaria. Se eu tivesse mais tempo, poderia falar de outras dezenas de profecias das Escrituras hebraicas que indicam as qualificações do Messias. No final deste programa, deixarei um número de telefone para que os senhores possam solicitar o material impresso deste nosso estudo. Mediante este estudo os senhores ficarão plenamente convencidos de que apenas uma única pessoa poderia qualificar-se para ser o Ungido de Jeová. Permitam-me encerrar dizendo que estes três anos de pesquisas sobre os escritos sagrados de Moisés e dos profetas foram os mais gratificantes de minha vida. Recorri a livros históricos e outros escritos sagrados, inclusive o Novo Testamento dos gentios, vasculhando cada registro que pude encontrar para saber se alguém chegou a preencher todas os requisitos messiânicos. Será que houve alguém nascido de uma virgem em Belém, descendente do rei Davi e vindo da linhagem de Abraão, levado para o Egito, chamado de volta para evangelizar na Galiléia, precedido de um mensageiro, rejeitado pelo próprio povo de Deus, traído por trinta moedas de prata, perfurado sem que nenhum osso fosse quebrado, enterrado com o rico e ressuscitado? De acordo com Daniel, o maior de todos os profetas hebreus, decorreriam exatamente 483 anos entre o decreto para a reconstrução do muro e da cidade de Jerusalém em "tempos difíceis" antes que o Messias removesse os pecados do povo.
Ben-Judá olhava diretamente para a câmera. “Exatamente 483 anos após a reconstrução de Jerusalém e de seus muros, Jesus Cristo de Nazaré ofereceu-se para a nação de Israel. Para regozijo do povo, ele entrou na cidade montado num jumentinho, como o profeta Zacarias havia predito: "Alegra-te muito, ó filha de Sião; exulta, ó filha de Jerusalém: eis aí te vem o teu Rei, justo e salvador, humilde, montado em jumento, num jumentinho, cria de jumenta."
Buck levantou-se rapidamente do sofá nos bastidores e ficou de pé olhando para o monitor. Havia outras pessoas reunidas ali, mas ele não se conteve e gritou: “Sim! Prossiga, Tsion! Amém!” Buck ouviu os telefones tocando lá embaixo no saguão, antes mesmo que o rabino tivesse informado o número.
“Jesus Cristo é o Messias! — concluiu o rabino. — Não pode haver outra opção. Cheguei a esta conclusão mas tive receio de manifestar-me, e quase perdi a oportunidade. Jesus veio para arrebatar sua igreja, para levar seus escolhidos para o céu, conforme ele disse que faria. Eu não fui um dos escolhidos porque vacilei. Porém, desde então, eu o aceitei como meu Salvador. Ele vai voltar dentro de sete anos! Estejam preparados!”
Repentinamente o estúdio da TV começou a fervilhar. Rabinos ortodoxos telefonavam, israelenses irados esmurravam as portas e os técnicos do estúdio aguardavam um sinal para tirar o programa do ar.
“Este o número do telefone para os senhores obterem mais informações! — dizia o rabino. — Se eles não mostrarem o número na tela, vou repeti-lo para os senhores! — Enquanto o rabino repetia o número, os diretores gesticulavam para que os operadores de câmera interrompessem a transmissão. — Yeshua ben Yosef, Jesus filho de José, é Yeshua Hamashiac! — gritou o rabino rapidamente. – Jesus é o Messias! — E a imagem sumiu da tela.”
O rabino Ben-Judá pegou suas anotações e, assustado, procurou por Buck.
“Estou aqui, irmão! — disse Buck, entrando correndo no estúdio. — Onde está o carro?”
“Escondido lá nos fundos, e até agora meu motorista não sabe por quê!”
Os executivos irromperam no estúdio. “Espere! As pessoas precisam falar com o senhor!”
O rabino hesitou, olhando para Buck. “ E se estiverem querendo encontrar Cristo?”
“Poderão telefonar! — disse Buck. — Vou tirar o senhor daqui.”
Ambos atravessaram correndo a porta dos fundos e deram de encontro com o funcionário do estacionamento. Nenhum sinal do Mercedes. De repente, do outro lado da rua, o motorista pulou para fora do carro, acenando e gritando. Buck e Tsion correram em sua direção.
— O final foi decepcionante — concluiu Carpathia. — Eu preferia que o rabino tivesse dito que ele era o Messias. Não ouvi nenhuma novidade. Muita gente acredita nesse mito. Um importante rabino se converteu. Grande coisa!
Grande coisa, sim, pensou Rayford, caminhando em direção à cabina de comando para a aterrissagem.
Buck sentia-se pouco à vontade na pequena casa de Tsion Ben-Judá, cuja esposa o abraçou chorando e depois sentou-se em outra sala com as crianças, soluçando alto. “Eu apoio você, Tsion — ela gritou — mas nossa vida está arruinada!”
Tsion atendeu o telefone e fez um sinal a Buck para que ele pegasse a extensão no outro cômodo. A Sra. Ben-Judá tentava acalmar-se enquanto Buck ouvia a conversa.
“Sim, sou eu, o rabino Ben-Judá.”
“Aqui fala Eli. Conversei com você ontem à noite.”
“Claro! Como obteve meu número?”
“Liguei para aquele número que você mencionou no programa, e a aluna que atendeu informou o número de sua residência. Eu me identifiquei e consegui convencê-la.”
“Agradeço sua ligação.”
“Compartilho sua alegria, Tsion, meu irmão em Jesus Cristo. Muitas pessoas o aceitaram depois de ouvir nossa pregação aqui em Jerusalém. Organizamos uma reunião de novos crentes no Estádio Teddy Kollek. Você gostaria de comparecer e fazer uso da palavra?”
“Sinceramente, irmão Eli, temo por minha segurança e pela de minha família.”
“Não tenha medo. Moisés e eu deixaremos claro que qualquer pessoa que o ameace terá de haver-se conosco. Penso que não deixamos nenhuma dúvida quanto a isso.”
DEZOITO
Dezoito meses depois
Fazia muito frio em Chicago. Rayford Steele pegou seu casaco grosso de lã do guarda-roupa. Detestava ter de carregá-lo pelo aeroporto, mas precisava dele para ir de casa até o carro e do carro até o terminal. Fazia meses que ele não se olhava no espelho enquanto se vestia para trabalhar. Rayford costumava colocar na mala seu uniforme de capitão do Global Community One, com seus vistosos galões e botões dourados sobre o tecido azul-marinho. Na verdade, o uniforme seria elegante, ligeiramente formal e pomposo, se não fizesse Rayford lembrar-se de que estava trabalhando para o demônio.
O cansaço pelo fato de morar em Chicago e ter de iniciar o vôo em Nova York estampava-se no rosto de Rayford. — Estou preocupada com você, papai — dissera Chloe mais de uma vez. Ela chegara a oferecer-se para morar com o pai em Nova York, principalmente após Buck ter sido transferido para lá alguns meses antes. Rayford sabia que Chloe e Buck sentiam muita falta um do outro, mas tinha seus próprios motivos para prolongar ao máximo sua permanência em Chicago. Um dos motivos era Amanda White.
“Se Buck não se apressar, eu me casarei antes de você. Ele já pegou na sua mão?”
Chloe corou. “Por que você quer saber? Isso tudo é novidade para ele, papai. Ele nunca se apaixonou antes.”
“E você?”
“Eu achava que sim, até conhecer Buck. Temos conversado sobre o futuro e muitas outras coisas. Só que ele ainda não me pediu em casamento.”
Rayford colocou o quepe e ficou de pé diante do espelho, com o casaco jogado sobre o ombro. Fez uma careta, suspirou e balançou a cabeça. “Vamos fechar esta casa dentro de duas semanas a partir de amanhã – ele disse. — Daí, ou você vai comigo para a Nova Babilônia ou vai viver por conta própria. Buck bem que poderia facilitar nossa vida sendo um pouco mais decidido.”
“Não vou pressioná-lo, papai. O fato de estarmos vivendo longe um do outro tem sido um bom teste. E detesto a idéia de deixar Bruce sozinho na Igreja Nova Esperança.”
“Bruce não tem tido tempo de sentir-se sozinho. A igreja está cada vez mais repleta e o abrigo subterrâneo logo deixará de ser segredo. Vai precisar ser maior do que o templo.”
Bruce Barnes também estava viajando muito. Tinha organizado um programa de igrejas domésticas, pequenos grupos que se reuniam em todos os bairros e por todo o país, antes que tais reuniões fossem declaradas ilegais, o que não demoraria muito. Bruce viajara pelo mundo todo, multiplicando seu ministério de pequenos grupos. Começou em Israel e viu o trabalho das duas testemunhas e do rabino Tsion Ben-Judá expandir-se a ponto de lotar os maiores estádios do mundo.
Os 144.000 evangelistas judeus tinham representantes em todos os países, geralmente infiltrados em faculdades e universidades. Milhões e milhões haviam-se convertido, mas assim como a fé crescera, também crescera o índice de criminalidade e violência.
Já havia uma pressão dos dirigentes da Comunidade Global americana em Washington para transformar todas as igrejas em ramificações oficiais daquilo que agora se chamava Fé Mundial Enigma Babilônia. A religião mundial era dirigida pelo novo Papa Pedro, o antigo Peter Mathews, dos Estados Unidos, que introduziu um sistema que ele chamava de "uma nova era de tolerância e unidade" entre as principais religiões. Os maiores inimigos da Enigma Babilônia, que se apossara do Vaticano e de suas instalações, eram os milhões de pessoas que acreditavam que Jesus era o único caminho até Deus.
Dizer arbitrariamente, escreveu o Sumo Pontífice Pedro em uma declaração oficial da Enigma Babilônia, que a Bíblia judaica e protestante, que contém apenas o Velho e o Novo Testamentos, é a única regra de fé e prática, representa o ponto mais alto da intolerância e da desunião. Isso é um insulto a tudo o que temos realizado, e os seguidores dessa falsa doutrina são considerados hereges.
O Sumo Pontífice Pedro havia incluído na mesma categoria os judeus ortodoxos e os cristãos recém-convertidos. Ele enfrentou problemas tanto com o templo recém-construído e seu retorno ao sistema de sacrifícios quanto com os milhões e milhões de convertidos a Cristo. E ironicamente, o supremo pontífice precisou enfrentar oposições ao novo templo. Eli e Moisés, as testemunhas agora conhecidas mundialmente e que ninguém ousava contrariar, geralmente falavam contra o templo. Porém sua lógica era um anátema à Enigma Babilônia.
“Israel reconstruiu o templo para apressar a volta do Messias do povo judeu — diziam Eli e Moisés — sem dar-se conta de que o templo foi destruído pelo verdadeiro Messias, que já veio! Israel construiu o templo da rejeição! Não é de admirar que um número tão pequeno dos 144.000 evangelistas judeus procede de Israel! A grande maioria do povo de Israel é incrédula e sofrerá por causa disso!”
As testemunhas ficaram indignadas no dia em que o templo foi consagrado e apresentado ao mundo. Centenas de milhares de pessoas começaram a afluir para Jerusalém a fim de conhecer o templo; quase o mesmo número de pessoas iniciou peregrinações rumo à Nova Babilônia para conhecer a nova e exuberante sede da Comunidade Global que Nicolae Carpathia projetara.
Eli e Moisés provocaram indignação em muita gente, inclusive no visitante Carpathia, no dia da comemoração da reabertura do templo. Pela primeira vez eles não pregaram no Muro das Lamentações nem em um estádio gigantesco. Naquele dia eles aguardaram até que o templo estivesse repleto. Milhares de pessoas, que não conseguiram entrar, permaneceram de pé, lado a lado, na Colina do Templo. Moisés e Eli abriram o caminho à força para chegar ao Portão Dourado do templo, provocando temor na multidão. Foram ridicularizados, vaiados e achincalhados, mas ninguém se atreveu a aproximar-se deles, e muito menos tentar agredi-los.
Nicolae Carpathia esteve ao lado dos dignitários naquele dia. Ele insultou os intrusos, mas Eli e Moisés obrigaram-no a silenciar. Sem a ajuda de microfones, as duas testemunhas gritaram bem alto no pátio do templo para que todos pudessem ouvir: — Nicolae! Um dia, você mesmo vai corromper e profanar este templo!
— Que absurdo! — respondera Carpathia. — Será que não existe uma autoridade militar em Israel com poderes para fazer calar esses dois?
O primeiro-ministro israelense, que agora era subordinado ao embaixador dos Estados Unidos e da Ásia para a Comunidade Global, foi pego de surpresa diante de um microfone e de uma filmadora. – Fomos transformados em uma sociedade desarmada, graças ao senhor.
— Esses dois também estão desarmados! — vociferara Carpathia. — Reprima-os!
Porém, Eli e Moisés continuaram a gritar. — Deus não habita em templos construídos por mãos humanas! O corpo dos crentes é o templo do Espírito Santo!
Carpathia, que tinha visitado Israel apenas para dar apoio a seus amigos e homenageá-los pelo novo templo, perguntou à multidão: — Vocês querem ouvir-me ou ouvir esses dois?
A multidão respondeu aos gritos: — Queremos ouvir o senhor Potentado! O senhor!
“Não existe outro potentado, a não ser o próprio Deus!” exclamou Eli.
E Moisés complementou: “Seus sacrifícios de sangue se transformarão em água, e a água que vocês recolherem se transformarão em sangue.”
Buck havia estado lá naquele dia como editor do Semanário Comunidade Global, o novo nome do Semanário Global. Ele recusou o pedido de Carpathia para publicar um editorial sobre as duas testemunhas, às quais Nicolae dava o nome de intrusos, e convenceu o potentado da Comunidade Global que a imprensa toda daria cobertura aos fatos da atualidade. O sangue derramado de uma novilha sacrificada transformara-se em água. E a água recolhida em outra cerimônia transformara-se em sangue dentro do balde. Os israelenses culpavam as duas testemunhas de denegrirem sua comemoração.
Buck detestava o dinheiro que estava ganhando. Nem mesmo um salário tão alto como aquele teve o poder de facilitar sua vida. Ele tinha sido forçado a mudar novamente para Nova York. Muitos dos antigos funcionários do Semanário Global tinham sido demitidos, inclusive Stanton Bailey, Marge Potter e até Jim Borland. Steve Plank era agora o editor do Global Community East Coast Daily Times, um jornal formado da fusão do New York Times, Washington Post e Boston Globe. Apesar de Steve não admitir, Buck acreditava que o brilho do relacionamento entre Steve e o potentado já se havia apagado.
O único fator positivo na nova posição ocupada por Buck era que agora ele tinha condições de isolar-se da terrível onda de criminalidade que quebrara todos os recordes na América do Norte. Carpathia usara isso para desviar a atenção pública e influenciar o povo a aceitar a idéia de que o embaixador norte-americano para a Comunidade Global devia derrubar o atual presidente. Gerald Fitzhugh e seu vice-presidente ocupavam agora o antigo Edifício do Poder Executivo em Washington, incumbidos de fazer cumprir nos Estados Unidos o plano do potentado Carpathia para o desarmamento mundial.
O único ato de resistência da parte de Buck a Carpathia era não tomar conhecimento dos boatos sobre a trama de Fitzhugh com o exército de opor-se ao regime da Comunidade Global por meio da força. Buck era inteiramente a favor disso e havia estudado secretamente a possibilidade de criar um site anti-Comunidade Global na Internet. Ele levaria a idéia adiante tão logo encontrasse uma forma de criar o site sem que rastreassem seu apartamento de cobertura na Quinta Avenida.
Pelo menos Buck conseguira convencer o potentado Carpathia de que sua mudança para a Nova Babilônia seria um erro. Afinal de contas, Nova York ainda era a capital do mundo editorial. Ele já estava sofrendo porque o pai de Chloe havia sido forçado a mudar-se para a Nova Babilônia.
A nova cidade era suntuosa, mas o clima do Iraque era insuportável, a menos que quem morasse ali não saísse de casa durante as vinte e quatro horas do dia. A despeito da popularidade incomparável de Carpathia e de sua ênfase ao novo governo mundial e à nova religião mundial, o Oriente Médio ainda não se livrara de grande parte de sua antiga cultura, e uma mulher ocidental sentir-se-ia completamente deslocada naquela região do mundo.
Buck emocionara-se ao ver a afinidade que existia entre Rayford e Amanda. Isso havia eliminado a pressão sobre Buck e Chloe, sobre o futuro de ambos, que se preocupavam por ter de deixar Rayford sozinho, se resolvessem casar. Mas será que Rayford achava que uma mulher norte-americana poderia viver na Nova Babilônia? E por quanto tempo eles morariam lá antes que o potentado começasse a desferir seus ataques contra os cristãos? De acordo com Bruce Barnes, os dias de perseguição estavam próximos.
Buck sentia falta de Bruce, muito mais do que podia imaginar. Tentou vê-lo todas as vezes que esteve em Chicago para encontrar-se com Chloe. Todas as vezes que Bruce viajava a Nova York ou que ambos se encontravam por acaso em alguma cidade do exterior, Bruce arrumava tempo para uma sessão particular de estudos. Bruce estava rapidamente tornando-se um dos principais estudiosos das profecias entre os recém-convertidos. Ele dizia que o ano ou o ano e meio de paz estava prestes a terminar. Assim que os próximos três cavaleiros do Apocalipse aparecessem, os outros dezessete julgamentos aconteceriam em rápida sucessão, conduzindo ao glorioso aparecimento de Cristo sete anos após a assinatura do pacto entre Israel e o Anticristo.
Bruce tornara-se famoso, até mesmo popular. Porém, um grande número de crentes estava se cansando de suas advertências sinistras.
Rayford ia ausentar-se da cidade até a véspera do dia em que ele, Chloe e os compradores fechassem o negócio da venda da casa. Ele sorriu da idéia que os compradores tiveram de hipotecar a casa por trinta anos. Alguém sairia perdedor em tal transação.
Após a partida de Rayford, Chloe ficou encarregada de vender objetos supérfluos, armazenar os móveis e providenciar uma empresa de mudanças para levar seus pertences a um apartamento na mesma cidade e os pertences do pai ao Iraque.
Nos dois últimos meses, Amanda sempre levava Rayford de carro até o Aeroporto O'Hare para essas longas viagens, mas, por ter assumido um novo cargo recentemente, ela não podia mais fazer isso. Naquele dia, Chloe levaria Rayford até o novo escritório de Amanda, onde ela era a chefe de compras de uma loja de confecções. Depois que ambos se despedissem, Chloe levaria Rayford até o aeroporto e ficaria com o carro.
“Como vão as coisas entre vocês? — perguntou Chloe no carro.”
“Estamos perto.”
“Sei que vocês estão perto. Está na cara. Perto do quê? é a pergunta.”
“Perto — ele respondeu.”
No percurso até o aeroporto, os pensamentos de Rayford voltaram-se para Amanda. A princípio, nem ele nem Chloe sabiam como agir com ela. Amanda, uma mulher alta e bonita, dois anos mais velha que Rayford, usava cabelos com mechas mais claras e trajava-se impecavelmente. Uma semana após Rayford ter retornado de sua primeira viagem ao Oriente Médio como piloto do Global Community One, Bruce apresentou Amanda aos Steeles após um culto matinal de domingo. Rayford estava cansado e nada feliz com sua decisão de sair da Pan-Con por ter de trabalhar para Nicolae Carpathia, e não sentia nenhuma disposição de conversar.
A Sra. White, contudo, pareceu ser uma pessoa um pouco distraída na opinião de Rayford e Chloe. Para ela, eles não passavam de nomes relacionados a uma antiga conhecida, Irene Steele, que lhe causara uma indelével impressão. Naquele domingo, Amanda insistiu em levá-los para almoçar e fez questão de pagar a conta. Rayford não estava muito disposto para conversar, mas Amanda não fez caso disso. Tinha muita coisa para contar.
“Eu quis conhecer o senhor, capitão Steele, porque...”
“Rayford, por favor.”
“Bem, se capitão for muito formal, por enquanto vou chamá-lo de Sr. Steele. Rayford soa muito familiar para mim, embora Irene se referisse assim ao senhor. Ela era uma mulher encantadora, afável, dedicada e muito apaixonada pelo senhor. Foi ela a responsável por eu ter-me tornado cristã antes do Arrebatamento, e foi também por causa dela — e dos desaparecimentos, é claro — que aceitei a Cristo. Depois, esqueci completamente o nome dela, e não vi mais nenhuma das outras senhoras que freqüentavam o estudo bíblico. Isso me deu uma sensação de solidão. Sei que Bruce lhes contou que perdi minha família. A situação está sendo muito difícil para mim. Bruce tem sido uma dádiva de Deus em minha vida. Será que vocês aprenderam com ele tanto quanto eu? Claro que sim. Vocês têm estado com ele há algumas semanas.”
Finalmente Amanda passou a falar mais devagar e contou a história da perda de sua família. “-Durante toda a nossa vida freqüentamos uma igreja apática. Um dia, meu marido foi convidado para visitar a igreja de um amigo. Voltou para casa e insistiu que fôssemos conhecer pelo menos os cultos de domingo realizados naquela igreja. Não me importo de contar que senti um certo desconforto ali. Eles falavam o tempo todo a respeito da salvação. Bem, eu não dei importância ao assunto e fui a única de minha família que não foi salva. Para ser franca, para mim aquilo tudo parecia coisa de gente pobre. Eu não sabia que era tão orgulhosa. As pessoas que não conhecem a Deus nunca se dão conta disso, não é mesmo? Eu fingia gostar de freqüentar a igreja com minha família, mas não convencia ninguém. Eles continuaram a incentivar-me a participar do estudo bíblico feminino, e finalmente concordei. Eu tinha certeza de que ia encontrar um grupo de senhoras de meia-idade, mal vestidas, dizendo-se pecadoras que foram salvas mediante a graça.”
De uma ou outra maneira, Amanda White conseguiu terminar sua refeição enquanto falava. Mas, ao chegar a esta parte de sua história, seu rosto anuviou-se e ela pediu licença para ausentar-se por alguns minutos. Chloe revirou os olhos. “— Papai! De que planeta você acha que ela veio?”
Rayford deu uma risadinha. “— Quero muito ouvir as impressões dela sobre sua mãe — ele disse. — Ela parece estar "salva" agora, não é mesmo?”
“ Sim, mas ela não se parece em nada com gente pobre. Amanda retornou e desculpou-se, dizendo que "estava determinada a desabafar". Rayford deu um sorriso de incentivo para ela enquanto Chloe fazia caretas atrás de Amanda, tentando fazer graça para o pai.”
“— Não vou aborrecê-los mais com minha história — ela disse. — Sou uma executiva e não gosto de imiscuir-me na vida dos outros. Eu só queria passar alguns momentos com vocês para falar sobre o que a Sra. Steele representou em minha vida. Conversei apenas uma vez com ela, e muito rapidamente, após uma reunião. Fiquei satisfeita por ter tido a oportunidade de dizer-lhe a boa impressão que ela me causou. Se vocês estiverem interessados, poderei falar sobre isso. Porém, se já falei demais, é só vocês me dizerem, e eu os deixarei partir sabendo que a Sra. Steele foi uma mulher maravilhosa.”
Rayford chegou pensar em dizer que eles tinham tido uma semana exaustiva e precisavam voltar para casa, mas não quis ser grosseiro. Chloe também não concordaria com isso, portanto ele disse: “— Oh, sem dúvida gostaríamos muito de ouvir. — E complementou: — A verdade é que adoro falar sobre Irene.”
“Não sei como pude me esquecer do nome dela, porque ele me causou uma forte impressão. Ela tinha cerca de quarenta anos, certo?”
Rayford assentiu.
“— Bem, prosseguindo minha história, tirei uma manhã de folga e fui até a casa onde as senhoras da igreja estavam se reunindo naquela semana. Todas me pareceram normais e maravilhosas. Sua esposa atraiu minha atenção imediatamente. Ela era uma pessoa radiante. Sorria e conversava com todas as senhoras presentes. Cumprimentou-me e perguntou quem eu era. Durante o estudo bíblico, a oração e as discussões em grupo, ela me causou muito boa impressão. Que mais posso dizer?”
Muita coisa, pensou Rayford. Mas ele não queria fazer muitas perguntas àquela mulher. Qual seria o motivo de tão boa impressão? Ele gostou quando Chloe começou a falar.
“— Fico contente por ouvir isso, Sra. White, porque só passei a pensar nesses termos a respeito de minha mãe depois que saí de casa. Eu achava que ela era muito religiosa, muito austera, muito rigorosa. Só depois que nos distanciamos uma da outra é que me dei conta do quanto eu a amava. Ela se preocupava muito comigo.”
“— Bem — disse Amanda — a história dela me comoveu, porém o que mais me impressionou foi seu modo de ser, sua tranqüilidade. Não sei se vocês tinham conhecimento disto, mas ela nem sempre foi cristã. Sua história era igual à minha. Ela disse que sua família freqüentou a igreja durante anos, mas de maneira superficial. Quando ela encontrou a Igreja Nova Esperança, encontrou Cristo. Seu rosto tinha uma expressão de paz, bondade e serenidade como nunca vi em outra pessoa. Ela demonstrava confiança, porém era humilde. Era bem falante, sem ser agressiva ou presunçosa. Gostei dela imediatamente. Emocionou-se ao falar de sua família, e disse que o marido e a filha estavam em primeiro lugar em sua lista de orações. Ela amava muito vocês. Disse que seu maior medo era que vocês não fossem para o céu junto com ela e seu filho. Não me recordo de seu nome.”
“Rayford Júnior — disse Chloe. — Ela o chamava de Raymie.”
“-Após a reunião eu a procurei e lhe disse que minha família era o oposto. Todos eles estavam preocupados por irem para o céu sem mim. Ela me ensinou como aceitar a Cristo. Eu lhe disse que não estava preparada. Ela me advertiu para não adiar minha decisão e disse que oraria por mim. Naquela noite minha família desapareceu enquanto estávamos dormindo. Quase todas as pessoas de nossa nova igreja desapareceram, inclusive todas as senhoras do estudo bíblico. Finalmente localizei Bruce e perguntei se ele conhecia Irene Steele.”
Rayford e Chloe voltaram para casa um pouco envergonhados de si mesmos. “— Foi bom — disse Rayford. — Estou satisfeito por termos passado aqueles momentos juntos.”
“— Eu só não deveria ter agido de modo tão deselegante — disse Chloe. — Apesar de ter conversado muito pouco com a mamãe, aquela mulher parecia conhecê-la muito bem.”
Durante quase um ano após aquele dia, Rayford viu Amanda White apenas nos domingos e, de vez em quando, numa reunião no meio da semana, na qual havia a participação de várias pessoas, além das quatro que compunham o círculo fechado de estudos bíblicos. Ela era sempre cordial e meiga, porém o que mais impressionava Rayford era sua humildade. Orava incessantemente pelas pessoas e trabalhava na igreja o tempo todo. Estudava, aprendia e conversava a respeito de sua posição em relação a Deus.
Enquanto Rayford a observava à distância, ela passou a chamar cada vez mais sua atenção. Num domingo, ele disse a Chloe: “— Nunca retribuímos o convite de Amanda White para almoçar conosco.”
“ Você está querendo convidá-la para vir à nossa casa? — perguntou Chloe.
“Gostaria de convidá-la para sairmos juntos.”
“Como assim?”
“Você ouviu o que eu disse.”
“Papai! Você está falando em marcar um encontro?”
“Um encontro de dois casais. Com você e Buck. Chloe riu, e depois desculpou-se — Não há graça nenhuma. Apenas fiquei surpresa.”
“Não faça um cavalo de batalha por causa disso. Eu só gostaria de convidá-la.”
“ Não faça você um cavalo de batalha por causa disso.”
Buck não se surpreendeu quando Chloe lhe contou que seu pai queria marcar um encontro com Amanda White e eles dois. — Eu gostaria de saber quando ele teve essa idéia. — De marcar um encontro? — perguntou Chloe.
“ De marcar um encontro com Amanda White.”
“Você percebeu alguma coisa? Nunca me disse nada.”
“Eu não quis correr o risco de você plantar uma idéia na cabeça de seu pai, que não tivesse partido dele.”
“Isso raramente acontece.”
“De qualquer forma, acho que será bom para ambos — disse Buck. Ele precisa de uma companhia de sua idade e, se algo acontecer depois, melhor ainda.”
“Por quê?”
“Porque ele não vai querer ficar sozinho se decidirmos levar a sério o nosso relacionamento.”
“Parece que já decidimos — disse Chloe, segurando a mão de Buck.”
“Eu só não sei quando vai ser e em que lugar, depois de tudo o que está acontecendo.”
Buck esperava que Chloe lhe desse uma pista, que estava disposta a acompanhá-lo a qualquer lugar, que estava preparada para o casamento ou que precisava de um pouco mais de tempo. O tempo estava se esgotando para eles, mas mesmo assim Buck hesitou.
“Já estou preparada, aguardando por ele — disse Chloe a Rayford. — Mas não vou dizer nem uma palavra.”
“Por que não? — perguntou Rayford. — Os homens precisam que as mulheres dêem algum sinal.”
“Ele já recebeu todos os sinais possíveis.”
“Então você já pegou na mão dele?”
“Papai!”
“Aposto que já o beijou.”
“Sem comentários.”
“Para mim isso significa sim.”
“Conforme eu disse, ele já recebeu todos os sinais possíveis.’”
Na verdade, Buck jamais esqueceria a primeira vez que beijou Chloe. Aconteceu na noite em que ele viajou para Nova York de carro, cerca de um ano antes. Carpathia adquirira o Semanário e todos os demais meios de comunicação importantes, e Buck tinha um número cada vez mais reduzido de opções em sua carreira. Ele poderia tentar escrever clandestinamente via Internet, mas precisava ganhar dinheiro para sobreviver. E Bruce, que passava cada vez menos tempo na igreja em razão de seu trabalho de evangelização pelo mundo inteiro, havia incentivado Buck a permanecer no Semanário Global, mesmo depois que o nome foi mudado para Semanário Comunidade Global. — Eu gostaria que pudéssemos trocar a palavra Semanário por Combalido — disse Buck. — [Jogo de palavras — Weekly (Semanário) e Weakly (Combalido), n.t.].
Buck resignara-se a fazer o melhor que podia para o reino de Deus, da mesma forma que o pai de Chloe. Contudo, ele ainda escondia o fato de ser crente. Sua liberdade de ação e de expressar opiniões cairia por terra se a verdade fosse conhecida por Carpathia.
Naquela última noite em Chicago, Buck e Chloe estavam no apartamento dele empacotando seus objetos pessoais. O plano era partir de carro às nove horas daquela mesma noite e seguir direto para Nova York de uma só estirada. Enquanto trabalhavam, eles falaram do quanto detestavam viver afastados, da saudade que sentiam e combinaram com que freqüência telefonariam e enviariam e-mails um ao outro.
“Eu gostaria que você me acompanhasse — disse Buck num determinado momento.”
“Ah, sim, seria bom — ela disse.”
“Algum dia.”
“Algum dia quando?”
Buck não mordeu a isca. Carregou uma caixa até o carro e voltou, passando por Chloe enquanto ela fechava outra caixa com fita adesiva. Lágrimas corriam pelo rosto dela.
“O que foi? — ele perguntou, parando para limpar suas lágrimas com os dedos. — Não comece a me provocar.”
“Você nunca sentirá a minha falta como eu sinto a sua — ela disse, tentando continuar a trabalhar enquanto ele parecia estar indeciso, com a mão no rosto dela.”
“— Pare com isso — ele disse em voz baixa. — Olhe para mim.”
Chloe passou a fita na caixa, levantou-se e fitou-o. Ele abraçou-a e puxou-a para perto de si. Ela encostou a cabeça em seu peito, sem abraçá-lo. Eles já haviam se abraçado antes, caminhado de mãos dadas, e às vezes, de braço dado. Já haviam manifestado seus sentimentos um para o outro sem mencionar amor. E haviam concordado que não chorariam nem diriam palavras tristes no momento da partida.
“Vamos nos ver com freqüência — ele disse. — Você vai encontrar-se com seu pai quando ele estiver em Nova York. E eu terei motivos para vir aqui.”
“Que motivos? O escritório de Chicago está encerrando suas atividades.”
“ Este motivo — ele disse, abraçando-a com força. E ela começou a chorar.”
“Sinto muito — ela disse. — Vai ser muito difícil para mim.”
“Eu sei.”
“Não, não sabe, Buck. Você não pode dizer que gosta de mim tanto quanto eu gosto de você.”
Buck já planejara o primeiro beijo. Numa de suas despedidas à noite, ele simplesmente encostaria seus lábios nos dela, diria adeus e iria embora sem dizer mais nada. Ele não queria ver a reação dela ou beijá-la novamente em seguida. Teria de ser um gesto significativo e especial, porém rápido e simples, algo que eles pudessem consolidar posteriormente.
Porém agora Buck queria que ela soubesse o que ele sentia. Estava zangado consigo mesmo por ser um escritor tão talentoso e tão incompetente para dizer frente a frente o que ela significava para ele.
Buck afastou-se um pouco e segurou o rosto de Chloe. A princípio ela resistiu e tentou novamente esconder o rosto em seu peito, porém ele a forçou erguer a cabeça. — Nunca mais repita isso — ele disse. — Mas, Buck, é verdade.
Ele abaixou a cabeça até seus olhos ficarem bem perto dos dela. — Você me ouviu? Nunca mais repita isso. Não chegue a essa conclusão nem pense nisso. Não é possível que você goste mais de mim do que eu de você. Você é a minha vida. Eu a amo, Chloe. Você não sabe?
Ele percebeu que ela recuou um pouco ao ouvir sua primeira declaração de amor. As lágrimas que rolavam em seu rosto pingaram nas mãos dele, e ela começou a dizer: — Como eu poderia...? — Mas ele curvou-se e encostou os lábios nos dela, abafando suas palavras. Desta vez não foi um simples toque de lábios. Ela levantou os braços, passou-os por volta do pescoço dele e segurou-o firme enquanto se beijavam.
De repente, ela afastou-se um pouco e murmurou: — Será que você só disse isso porque está partindo e... — Mas ele a fez calar novamente com outro beijo.
Alguns momentos depois ele encostou a ponta de seu nariz na ponta do dela e disse:
“ Nunca mais duvide de meu amor por você. Prometa.”
“Mas, Buck...”
“Prometa.”
“ Prometo. E eu também o amo, Buck”
Rayford não sabia ao certo quando o respeito e a admiração que sentia por Amanda White transformara-se em amor. Gostava cada vez mais dela e adorava sua companhia. Sentiam-se tão descontraídos quando estavam juntos que tocavam um no outro enquanto conversavam, andavam de mãos dadas, abraçavam-se. Rayford constatou que a amizade estava se transformando em algo mais sério quando começou a achar falta de Amanda após ficar fora um único dia, e sentir vontade de telefonar-lhe sempre que se ausentava por mais tempo.
Na verdade, foi ela quem tomou a iniciativa de beijá-lo. Duas vezes após ele ter estado fora de Chicago durante vários dias, Amanda cumprimentou-o com um abraço e um beijo de leve no rosto. Ele gostou, mas ficou embaraçado. Na terceira vez que ele retornou de outra viagem semelhante, ela simplesmente o abraçou sem beijá-lo.
O momento que ele escolhera tinha sido perfeito. Rayford decidiu que se desta vez ela tentasse beijá-lo no rosto, ele a beijaria na boca. Ele havia trazido um presente para ela de Paris, um colar muito caro. Ao ver que ela não tentou beijá-lo, ele a abraçou longamente e disse: — Olhe para mim.
Rayford e Amanda sentaram-se lado a lado na sala de espera, enquanto os passageiros e a tripulação passavam por eles no corredor. Havia um incômodo braço de poltrona entre os dois. Ambos trajavam roupas grossas, ela com um casaco de peles e Rayford com o casaco de uniforme sobre o braço. Tirando um estojo de jóia de um pacote que estava dentro de sua maleta de viagem, ele disse: — Isto é para você.
Amanda, sabendo onde ele estivera, fez um estardalhaço quando viu o pacote, o nome da loja o estojo. Finalmente resolveu abri-lo e prendeu a respiração. Era um colar maravilhoso de ouro com brilhantes. — Rayford! — ela exclamou. — Não sei o que dizer.
“Não diga nada. — Ele a tomou nos braços e a beijou. O pacote que estava na mão dela quase foi esmagado.”
“Continuo sem saber o que dizer — ela prosseguiu, com um brilho nos olhos. Ele a beijou novamente.”
Agora, duas semanas antes de mudar-se para a Nova Babilônia, Rayford falou com Buck pelo telefone mais vezes do que Chloe. Enquanto ela estava esquentando o carro, ele esgueirou-se para dar o último telefonema.
“Está tudo certo? — ele perguntou a Buck.”
“Tudo. Estarei lá.”
“Ótimo.”
No carro, Rayford perguntou a Chloe: “Em que pé está o seu apartamento?”
“Prometeram que será liberado — ela disse — mas estou um pouco preocupada porque eles estão me enrolando com a papelada.
“Você vai ficar bem aqui, sabendo que estarei morando na Nova Babilônia e Buck em Nova York?”
“Não foi minha primeira opção, mas não estou interessada em morar perto de Carpathia, muito menos no Iraque.”
“Qual é a opinião de Buck?”
“Não consegui falar com ele por telefone hoje. Ele deve estar ocupado, trabalhando em outro lugar. Sei que ele quer encontrar-se com Fitzhugh em Washington o mais breve possível.”
“Ah, sim, talvez ele esteja lá.”
Chloe parou o carro na loja de roupas em Des Plaines, onde Amanda trabalhava, e aguardou enquanto Rayford entrou para despedir-se.
“Ele está aqui? — perguntou Rayford à secretária de Amanda.”
“Ele está, e ela também está — respondeu a secretária. — Ela está no escritório, e ele naquela sala ali. — A secretária apontou para uma pequena sala perto da de Amanda.
— Assim que eu entrar lá, você poderia fazer o favor de correr até o carro e dizer a minha filha que há uma ligação para ela?”
“ Claro.”
Rayford bateu na porta e entrou no escritório de Amanda.
“Não estou nem um pouco animada hoje, Ray — ela disse.”
“Tentei forçar um sorriso o dia todo, mas não consegui.”
“Talvez eu saiba como fazer você sorrir — ele disse, levantando-a da cadeira e beijando-a.”
“Você sabe que Buck está aqui? — ela perguntou.”
“Sei. Será uma bela surpresa para Chloe.”
“Você vai fazer-me uma surpresa como esta algum dia?”
“Talvez eu lhe faça uma surpresa neste momento — ele disse. — Você está gostando de seu trabalho?”
“Detesto-o. Eu o abandonaria imediatamente se o homem que eu amo me pedisse para acompanhá-lo.”
“Ele acabou de chegar — disse Rayford, retirando uma pequena caixa do bolso do paletó e encostando-a nas costas de Amanda.”
Ela levou um susto. “— O que é isto?”
“ O quê? Isto? Não sei. Por que você não me diz o que é?”
Buck ouviu a voz de Rayford e sabia que Chloe não demoraria a chegar. Apagou a luz e voltou a sentar-se na cadeira atrás da mesa. Dentro de alguns minutos ele ouviu a voz de Chloe. “ Aqui? — ela perguntou.”
“Sim, senhora — disse a secretária. — Linha um.”
A porta abriu-se lentamente, e Chloe acendeu a luz, dando um pulo ao deparar-se com Buck. Gritou e correu até ele. Assim que ele se levantou, ela atirou-se em seus braços e ele a abraçou, rodando-a no ar.
“ Silêncio! — ele disse. — Aqui é um estabelecimento comercial!”
“O papai sabia disto? Claro que sim! Ele tinha de saber.”
“Ele sabia — respondeu Buck. — Surpresa?”
“Claro! O que você está fazendo nesta cidade? Quanto tempo vai ficar? O que vamos fazer?”
“Vim só para vê-la. Parto hoje à noite para Washington. Vamos jantar depois de deixarmos seu pai no aeroporto.”
“Então você veio só para me ver.”
“Eu lhe disse há muito tempo para nunca duvidar de meu amor por você.”
“Eu sei.”
Ele virou-se, sentou-a na cadeira, ajoelhou-se diante dela e tirou uma caixa de alianças do bolso.
“Oh, Ray! — disse Amanda, olhando para a aliança em seu dedo. — Eu o amo. E adorarei ser sua durante os poucos anos que ainda nos restam.”
“Há uma outra coisa — ele disse.”
“O quê?”
“Buck e eu já conversamos. Neste momento ele está na sala ao lado, pedindo Chloe em casamento, e gostaríamos de saber se vocês duas aceitariam uma cerimônia dupla oficiada por Bruce.”
Rayford aguardou a reação de Amanda. Ela e Chloe eram amigas, mas não íntimas.
“Seria maravilhoso! Mas Chloe poderá não gostar, portanto é melhor deixar a critério dela para não haver ressentimentos. Se ela preferir uma cerimônia individual, tudo bem. Mas eu adorei a idéia. Quando?”
“Na véspera do dia em que fecharmos a casa. Você dá duas semanas de aviso prévio e “muda-se comigo para a Nova Babilônia.
“Rayford Steele! — ela disse. — Você demora um pouco para esquentar, mas ferve rapidamente. Vou escrever minha carta de demissão antes que seu avião levante vôo.
“Você entendeu por que a papelada do apartamento nunca ficou pronta? — perguntou Buck.”
Chloe assentiu.
“Porque o negócio não seria fechado. Se você me aceitar como marido, quero que se mude comigo para Nova York.”
“Rayford — disse Amanda. — Nunca pensei que seria feliz novamente. Mas sou.”
“Uma cerimônia dupla? — perguntou Chloe limpando as lágrimas. — Eu adoraria. Mas você acha que Amanda concordaria?”
DEZENOVE
Algo muito importante estava sendo tramado. Buck foi encontrar-se com o presidente norte-americano Gerald Fitzhugh em uma reunião secreta. O presidente transformara-se em uma figura trágica, reduzido a uma simples peça decorativa. Depois de ter sido útil a seu país por quase dois mandatos na presidência, agora estava relegado a uma suíte no Edifício do Poder Executivo e perdera a maior parte da pompa a que tinha direito como presidente. Seu Serviço Secreto atual consistia de três homens, financiados pela Comunidade Global, que se revezavam a cada vinte e quatro horas.
Buck encontrou-se com Fitzhugh logo após ter pedido Chloe em casamento, duas semanas antes da cerimônia. O presidente queixou-se de que seus guarda-costas estavam ali só para que Carpathia tomasse conhecimento de todos os seus movimentos. Porém, na mente de Fitzhugh, o fato mais desolador era o povo norte-americano ter aceitado o rebaixamento do presidente com tanta facilidade. Todos estavam fascinados por Carpathia e não davam importância a mais ninguém.
Fitzhugh levou Buck até uma sala onde seu Serviço Secreto não poderia ouvir a conversa. Fitzhugh contou a Buck que havia uma rebelião prestes a eclodir. Pelo menos dois outros chefes de estado acreditavam que chegara a hora de quebrar os grilhões que os prendiam à Comunidade Global. “-Estou arriscando minha vida ao contar isto a um empregado de Carpathia — disse Fitzhugh.”
“Ora, todos nós somos empregados de Carpathia — disse Buck.”
Fitzhugh confidenciou a Buck que o Egito, a Inglaterra e as forças militares patrióticas dos Estados Unidos estavam determinados a tomar uma atitude "antes que fosse tarde demais".
“O que isso significa? — perguntou Buck.”
“Significa logo — respondeu Fitzhugh. — Significa permanecer longe das principais cidades da costa leste.”
“Nova York? Washington? — perguntou Buck, e Fitzhugh assentiu.”
“Principalmente Washington.”
“Não vai ser fácil — disse Buck. — Minha noiva e eu vamos morar em Nova York depois que nos casarmos.”
“Não por muito tempo.”
“O senhor tem idéia de quando será?”
“Isso eu não posso contar. Digamos que eu devo estar de volta ao Salão Oval dentro de uns dois meses.”
Buck queria desesperadamente dizer que Fitzhugh estava sendo um joguete nas mãos de Carpathia. Tudo isso já estava escrito. A rebelião contra o Anticristo seria subjugada e daria início à Terceira Guerra Mundial, que acarretaria fome e pragas em todo o planeta e a exterminação de um quarto da população mundial.
A cerimônia dupla de casamento no escritório de Bruce, realizada duas semanas depois, foi a mais particular possível, contando com a presença de apenas cinco pessoas — os dois casais e o pastor. Bruce Barnes encerrou a cerimônia agradecendo a Deus todos os sorrisos, abraços, beijos e a oração.
Buck perguntou se podia conhecer o abrigo subterrâneo que Bruce construíra. — Ele estava começando a ser construído quando me mudei para Nova York — disse Buck.
— É o local mais secreto da igreja — disse Bruce enquanto eles passavam pela sala da caldeira e depois pela porta secreta.
“Você não quer que os membros da igreja façam uso dele? — perguntou Buck.”
“Você vai ver como ele é pequeno — disse Bruce. — Estou incentivando as famílias a construírem seus próprios abrigos subterrâneos. Seria o caos se todo o pessoal da igreja viesse para cá num momento de perigo.”
Buck surpreendeu-se com o tamanho reduzido do abrigo, mas aparentemente ele continha material de sobrevivência suficiente para algumas semanas. O Comando Tribulação não era composto de pessoas que permaneceriam escondidas por muito tempo.
Os cinco ajuntaram-se para comparar as programações e discutir quando seria o próximo encontro. Carpathia tinha engendrado um programa minucioso para as próximas seis semanas. Nesse programa, Rayford seria seu piloto numa viagem pelo mundo inteiro, terminando em Washington. Em seguida, Rayford teria alguns dias de folga antes de voltar para a Nova Babilônia. “— Nesse período, Amanda e eu poderemos sair de Washington e vir para cá — ele disse.”
Buck disse que ele e Chloe também voltariam para Chicago nessa mesma época. Bruce estaria de volta de uma viagem pela Austrália e Indonésia. Eles marcaram o encontro para as quatro horas da tarde, seis semanas depois. Teriam um estudo bíblico intensivo de duas horas no escritório de Bruce e depois sairiam para jantar em um restaurante qualquer.
Antes de partirem, fizeram um círculo de mãos dadas e oraram mais uma vez. — Pai — sussurrou Bruce — nós te agradecemos este breve momento de alegria quando o mundo está à beira de um desastre, e suplicamos tua bênção e proteção sobre todos nós até o momento de nos encontrarmos aqui novamente. Que os nossos corações estejam unidos como irmãos e irmãs em Cristo durante nossa separação.
Nicolae Carpathia pareceu emocionar-se ao saber do casamento de Rayford e insistiu em conhecer sua nova esposa. No momento da apresentação, Carpathia cumprimentou-a segurando as duas mãos dela, e conduziu o casal até seus magníficos escritórios, que ocupavam o último andar inteiro da sede da Comunidade Global na Nova Babilônia. A suíte também incluía salas de conferência, aposentos particulares e um elevador até o heliporto. Dali, um dos integrantes da tripulação de Rayford poderia transportar o potentado até a nova pista de pouso.
Rayford percebeu que o coração de Amanda batia na garganta. Ela falou pouco e deu um sorriso forçado. Seu encontro com o homem mais maligno da face da terra era uma experiência totalmente nova, embora ela tivesse dito a Rayford que conhecia alguns atacadistas de confecções que se enquadravam nessa categoria.
Após algumas brincadeiras bem-humoradas, Nicolae aprovou imediatamente o pedido de Rayford para que Amanda os acompanhasse na próxima viagem aos Estados Unidos para visitar a filha dele e seu novo genro. Rayford não disse quem era o seu genro nem mencionou que os recém-casados estavam morando em Nova York. Disse apenas que ele e Amanda visitariam o casal em Chicago, o que era verdade.
— Ficarei em Washington por quatro dias, no mínimo — disse Carpathia. — Aproveitem esse tempo da melhor maneira que puderem. E agora eu tenho uma novidade para você e sua esposa. — Carpathia retirou um pequenino controle remoto do bolso e apontou-o para o interfone sobre sua mesa, do outro lado da sala. — Querida, você poderia vir até aqui, por favor?
Querida? pensou Rayford. Já nem fingem mais. Hattie Durham bateu na porta e entrou. — Sim, meu bem? — ela disse. Rayford sentiu-se enojado.
Carpathia foi ao encontro de Hattie e abraçou-a delicadamente como se ela fosse uma boneca de porcelana. Hattie virou-se para Rayford. — muito feliz por você e Amélia — ela disse.
“— Amanda — corrigiu Rayford, observando o corpo de sua mulher enrijecer. Ele contara a Amanda tudo sobre Hattie Durham, e aparentemente as duas nunca seriam almas gêmeas.”
“— Também temos um comunicado a fazer — disse Carpathia. — Hattie vai demitir-se da Comunidade Global para aguardar a chegada de nosso bebê.”
Carpathia estava radiante, esperando uma reação de alegria por parte de Rayford e Amanda. Rayford fez o que pôde para não deixar transparecer sua repulsa. “— Um bebê? — ele disse-— Quando será o grande dia?”
“— Acabamos de saber da novidade — disse Nicolae, piscando para Rayford.”
“— Bem, é uma novidade importante — disse Rayford.”
“— Eu não sabia que vocês eram casados — disse Amanda docemente. Rayford esforçou-se para manter a compostura. Amanda sabia muito bem que eles não eram casados.”
“— Oh, em breve seremos — disse Hattie, radiante. — Ele ainda vai fazer de mim uma mulher honesta.”
Chloe ficou desolada quando leu o e-mail de seu pai sobre Hattie. “Buck, fracassamos com aquela mulher. Todos nós fracassamos com ela.”
“ E eu não sei? — disse Buck. — Eu a apresentei a ele.”
“Mas eu a conheço e sei que ela conhece a verdade. Eu estava junto quando papai contou sua história a você, e ela também estava ao redor daquela mesa. Ele tentou, mas precisamos fazer mais do que tentar. Precisamos conversar com ela de alguma maneira.”
“E deixá-la saber que sou crente, como seu pai? Para Nicolae, parece que o fato de seu piloto ser cristão não faz nenhuma diferença, mas você pode imaginar por quanto tempo eu ainda trabalharia como editor de sua revista se ele soubesse quem sou?”
“Num destes dias temos de falar com Hattie, mesmo que isso signifique uma viagem nossa a Nova Babilônia.”
“O que você pretende fazer, Chloe? Dizer-lhe que ela está carregando no ventre o filho do Anticristo e que deve abandoná-lo?”
“Talvez a solução seja essa.”
De pé atrás de Chloe e olhando por cima de seus ombros, Buck lia o que ela digitava em resposta ao e-mail de Rayford e Amanda. Os dois casais haviam combinado escrever as mensagens sem mencionar nomes. "Existe alguma possibilidade", escreveu Chloe, "de que ela o acompanhe em sua próxima viagem à capital?"
"Nenhuma", foi a resposta recebida no dia seguinte em razão da diferença de fuso horário. A Nova Babilônia estava sete horas na frente.
“ Algum dia, de uma forma ou outra — disse Chloe a Buck. — E antes do nascimento do bebê.”
Para Rayford, foi difícil entender a incrível mudança ocorrida na Nova Babilônia desde a primeira vez que a visitara logo após a assinatura do tratado em Israel. Atribuiu essa mudança a Carpathia e a sua montanha de dinheiro. Das ruínas, surgira uma magnífica cidade, a capital do mundo, que agora fervilhava em matéria de comércio, indústria e transporte. O centro da atividade mundial estava se mudando para o leste, e a terra natal de Rayford parecia destinada a tornar-se obsoleta.
Uma semana antes de Rayford e Amanda voarem para Washington junto com Nicolae e sua delegação, Rayford enviou um e-mail para Bruce na Igreja Nova Esperança, dando-lhe as boas-vindas por seu regresso e fazendo algumas perguntas.
“Há algumas coisas, ou melhor, muitas, que ainda me intrigam quanto ao futuro. Você poderia nos explicar o quinto e o sétimo?”
Rayford não mencionou a palavra selos para não ser detectada por algum intruso. Bruce entenderia o que ele queria dizer.
O segundo, o terceiro, o quarto e o sexto dispensam explicações, mas ainda tenho dúvidas quanto ao quinto e ao sétimo. Estamos com saudade de você. "A" está lhe mandando um abraço.
Buck e Chloe já estavam instalados na linda cobertura de Buck na Quinta Avenida, porém a alegria que um casal em lua-de-mel normalmente deveria sentir por estar morando em um lugar como aquele não existia para eles. Chloe continuava com suas pesquisas e estudos pela Internet, e ela e Buck mantinham contato diário com Bruce via e-mail. Bruce escreveu queixando-se de solidão e da falta que sentia cada vez mais de sua família, mas estava feliz por saber que seus quatro amigos haviam encontrado amor e companhia. Todos eles mencionaram que aguardavam ansiosamente o grande momento de estarem juntos novamente na próxima reunião.
Buck estava orando e pedindo a orientação de Deus para saber se devia contar a Chloe o alerta que ouvira do presidente Fitzhugh sobre Nova York e Washington. Fitzhugh estava bem assessorado e recebia informações de fontes fidedignas, mas Buck não podia passar a vida inteira fugindo do perigo. A vida era arriscada naqueles dias, e a guerra e a destruição poderiam irromper em qualquer lugar. Seu trabalho o havia levado a visitar os locais mais perigosos e arriscados do mundo. Ele não queria pôr a vida de sua esposa em jogo por negligência ou tolice, mas todos os membros do Comando Tribulação conheciam os riscos que corriam.
Rayford sentiu-se agradecido por Chloe ter passado a conhecer melhor Amanda por e-mail. Quando Rayford e Amanda começaram a sair juntos, ele havia monopolizado a maior parte do tempo dela e, embora as duas demonstrassem gostar uma da outra, não tinham outros vínculos, exceto o fato de serem crentes. Agora, com a comunicação diária, Amanda estava ampliando seus conhecimentos sobre a Bíblia com a ajuda de Chloe, que lhe repassava tudo o que estava estudando.
Por intermédio de Bruce e Chloe, Rayford encontrou as respostas que queria sobre o quinto e o sétimo selos. Não eram notícias agradáveis, mas ele não esperava nada diferente. O quinto selo referia-se ao martírio que os santos da Tribulação sofreriam. Dentro de um pacote seguro, remetido pelo correio, Bruce enviou a Chloe — que o repassou a Rayford — seu estudo criterioso e explicações do trecho extraído do Apocalipse que se referia ao quinto selo.
João vê debaixo do altar as almas daqueles que tinham sido mortos por causa da Palavra de Deus e por causa do testemunho que sustentavam. Eles perguntam a Deus até quando demoraria seu julgamento e sua vingança pela morte deles. O Senhor lhes dá uma vestidura branca e diz que antes disso alguns de seus servos e irmãos também serão martirizados. Portanto, o quinto Selo do Julgamento custa a vida do povo que se converteu após o Arrebatamento. Isso pode incluir qualquer um de nós ou todos nós. Digo perante Deus que eu consideraria um privilégio dar minha vida por meu Deus e Salvador.
A explicação de Bruce sobre o sétimo selo deixou claro que ele ainda era um mistério, mesmo para ele.
O sétimo selo é tão terrível que, quando for revelado no céu, haverá silêncio por meia hora. Parece ser uma continuação do sexto selo, o maior terremoto da história, e tem a finalidade de iniciar os sete Julgamentos das Trombetas, que evidentemente tornam-se cada vez piores do que os Julgamentos dos Selos.
Amanda tentou resumir as explicações para Rayford: "Vamos enfrentar uma guerra mundial, fome, pragas, morte, o martírio dos santos, um terremoto e, depois, um silêncio no céu, preparando o mundo para os próximos sete julgamentos."
Rayford balançou a cabeça e olhou para baixo. — Bruce vem nos alertando sobre isso o tempo todo. Há momentos em que penso que estou preparado para qualquer coisa, mas há outros em que desejo que o fim chegue logo.
“Este é o preço que devemos pagar — ela disse — por não termos levado em consideração as advertências quando ainda era tempo. Você e eu fomos alertados pela mesma mulher.”
Rayford assentiu.
“Olhe aqui — disse Amanda. — A última linha da mensagem de Bruce diz o seguinte: "Consultem seu e-mail na segunda-feira à meia-noite. Para que vocês não fiquem tão deprimidos como eu, estou enviando um versículo para confortar seus corações.”
Bruce enviara o versículo de modo que os dois casais pudessem lê-lo antes de viajarem para Chicago a fim de encontrar-se com ele. O versículo era o seguinte: "Aquele que habita no esconderijo do Altíssimo, descansará à sombra do Onipotente."
Rayford remexeu-se na poltrona do piloto, ansioso para conversar com Amanda e saber como ela estava se sentindo no cansativo vôo sem escalas da Nova Babilônia até o Aeroporto Internacional Dulles. Durante a viagem, ela estava passando a maior parte do tempo nos aposentos particulares de Rayford, localizados atrás da cabina, porém havia conversado bastante com o resto da delegação para não parecer rude. Rayford sabia que aquelas conversas não tinham nenhum conteúdo.
Alguém já havia feito perguntas a Amanda sobre o negócio de importação/exportação que ela estava iniciando, mas de repente o clima que reinava dentro do Global Community One pareceu mudar. Num dos poucos intervalos para descanso que Rayford tinha passado ao lado de Amanda, ela disse: “— Alguma coisa está acontecendo. Alguém está passando informações a Carpathia pelo computador. Ele as analisa, franze a testa e convoca reuniões acaloradas.”
“ Hum! — disse Rayford. — Pode ser alguma coisa ou pode não ser nada.”
Amanda deu um sorriso desconfiado. “ Não duvide de minha intuição.”
“ Já sei disso.”
Buck e Chloe chegaram a Chicago na noite anterior ao dia do encontro programado pelos membros do Comando Tribulação. Hospedaram-se no Drake Hotel e telefonaram para a Igreja Nova Esperança. Deixaram um recado para Bruce, dizendo que haviam chegado e que se encontrariam com ele às quatro horas da tarde do dia seguinte. Por intermédio dos e-mails enviados por Bruce, Buck e Chloe sabiam que ele regressara de sua viagem à Austrália e Indonésia, mas dali em diante não haviam recebido nenhuma outra notícia.
Buck e Chloe também haviam enviado um e-mail para Bruce contando que Rayford e Amanda almoçariam no Drake Hotel no dia seguinte, e à tarde os quatro viajariam juntos para Monte Prospect. Ficaríamos muito contentes se você pudesse almoçar conosco no Cape Cod Room, escrevera Buck.
Cerca de duas horas depois, enquanto eles ainda aguardavam resposta por e-mail ou por telefone, Chloe disse: “O que você está achando disto?”
“Acho que ele vai fazer uma surpresa e almoçar conosco amanhã.”
“Espero que você esteja certo.”
“Você pode ter certeza.”
“Então não será uma surpresa, não é mesmo?”
O telefone tocou. — Acabou a surpresa — disse Buck. Deve ser ele. Mas não era.
Rayford havia acendido o luminoso com os dizeres Apertem os cintos. Faltavam cinco minutos para a aeronave pousar em Dulles, quando ele recebeu uma mensagem através dos fones de ouvido de um dos engenheiros de comunicação de Carpathia. — O potentado quer conversar com você.
— Agora? Já estamos chegando.
— Vou perguntar a ele — Alguns segundos depois, o engenheiro voltou a falar. — A conversa vai ser na cabina, só com você, depois que os motores forem desligados.
— Há uma lista de equipamentos que devo verificar após o vôo junto com o co-piloto e o navegador.
— Aguarde um momento! — disse o engenheiro, demonstrando irritação na voz. Em seguida, voltou a falar: — Depois de desligar os motores, dispense os dois e faça as verificações após a reunião com o potentado.
— De acordo — murmurou Rayford.
— Se você reconhecer minha voz e quiser conversar comigo, ligue para este telefone público e faça a chamada também de um telefone público.
— Entendido — disse Buck, desligando o telefone e virando-se para Chloe. — Preciso sair por alguns minutos.
— Por quê? Quem era?
— Gerald Fitzhugh.
— Obrigado, cavalheiros, e perdoem minha intromissão — disse Carpathia enquanto passava pelo co-piloto e o navegador, entrando na cabina. Rayford sabia que os dois estavam tão aborrecidos quanto ele pela quebra dos procedimentos após o vôo, mas era Carpathia quem mandava. Ele era o chefe.
Carpathia acomodou-se na poltrona do co-piloto. Rayford imaginou que além de todos outros dons de Carpathia, provavelmente ele também saberia pilotar um avião a jato numa tarde.
— Capitão, achei necessário levar um assunto confidencial ao seu conhecimento. Nosso serviço secreto descobriu uma conspiração e estamos sendo forçados a divulgar um falso itinerário para mim nos Estados Unidos. — Rayford assentiu e Carpathia continuou. — Suspeitamos de um envolvimento por parte do exército e até mesmo de um conluio entre as facções norte-americanas descontentes e pelo menos dois outros países. Para maior segurança, estamos confundindo nossas comunicações via rádio e transmitindo notícias conflitantes à imprensa sobre meu itinerário.
— Isso me parece um plano — disse Rayford.
— A maioria das pessoas pensa que estarei em Washington por no mínimo quatro dias, mas agora estamos comunicando que nos próximos três dias também estarei em Chicago, Nova York, Boston e talvez até em Los Angeles.
— Quer dizer que minhas curtas férias irão por água abaixo? — perguntou Rayford.
— Ao contrário. Mas vou precisar de você a qualquer momento.
— Vou mantê-lo informado sobre os locais onde poderei ser encontrado.
— Eu gostaria que você conduzisse o avião até Chicago e conseguisse um piloto em quem confia para conduzi-lo a Nova York no mesmo dia.
— Conheço a pessoa certa — disse Rayford.
— Vou chegar a Nova York de um jeito ou de outro, e poderemos sair do país de lá. Estamos apenas tentando confundir os conspiradores.
— Ei — disse Buck quando o presidente Fitzhugh atendeu após o primeiro toque. — Sou eu.
— Estou contente por você não estar em casa — disse Fitzhugh.
— O senhor pode dizer-me alguma coisa mais?
— Só posso dizer que é bom você não estar em casa.
— Entendido. Quando posso voltar para casa?
— Isso pode ser problemático, mas você saberá antes de voltar para lá. Há quanto tempo você está longe de casa?
— Quatro dias.
— Perfeito. Clique.
— Alô! Sra. Halliday?
— Sim. Quem é...?
— É Rayford Steele ligando para Earl, mas por favor não lhe diga que sou eu. Tenho uma surpresa para ele.
Na manhã seguinte Buck recebeu uma ligação de uma das senhoras que trabalhavam no escritório da Igreja Nova Esperança. — Estamos um pouco preocupadas com o pastor Barnes — ela disse.
— Senhora?
— Ele queria fazer uma surpresa. Ia até lá para almoçar com vocês.
— Era o que estávamos pensando.
— Mas ele pegou uma espécie de virose na Indonésia e tivemos de levá-lo para o pronto-socorro. Ele não queria que contássemos a ninguém, porque tinha certeza de que era uma coisa simples e que ainda daria tempo de almoçar com vocês. Mas ele entrou em coma.
— Em coma!?
— Como eu disse, estamos um pouco preocupadas com ele.
— Assim que os Steeles chegarem, vamos vê-lo. Onde ele está?
— No Hospital da Comunidade Noroeste em Arlington Heights.
— Descobriremos onde fica — disse Buck.
Rayford e Amanda encontraram-se com Earl Halliday em O'Hare às dez horas daquela manhã. — Nunca me esquecerei disto, Ray — disse Earl. — Quero dizer, não estarei transportando o potentado nem o presidente, mas posso fingir que estou transportando um dos dois.
— Eles estão aguardando por você em Kennedy — disse Rayford. — Vou telefonar-lhe mais tarde para saber se você gostou de pilotar a aeronave.
Rayford alugou um carro e Amanda respondeu a uma mensagem de Chloe. — Temos de buscá-los e ir direto para Arlington Heights.
— Por quê? O que houve?
Quando Rayford e Amanda chegaram, Buck e Chloe estavam aguardando na calçada em frente ao Drake. Depois de se abraçarem rapidamente, entraram no carro. — O Hospital da Comunidade Noroeste fica no centro da cidade, correto, Chio? — perguntou Rayford.
— Correto. Vamos rápido.
Apesar de sua preocupação com Bruce, Rayford sentiu um certo conforto. Voltara a ter uma família de quatro pessoas, mesmo com uma nova esposa e um novo genro. Eles conversaram sobre a situação de Bruce e contaram as novidades. Apesar de saberem que atravessavam um tempo de grande perigo, resolveram simplesmente apreciar o momento de estarem juntos novamente.
Sentado no banco traseiro perto de Chloe, Buck limitava-se a ouvir a conversa. Como era bom estar ao lado de pessoas com quem ele tinha afinidades, pessoas que se amavam, preocupavam-se e respeitavam-se mutuamente. Ele não queria sequer pensar em sua família de mente bitolada. Algum dia, talvez, ele convenceria seus familiares de que eles não eram os cristãos que pensavam ser. Se fossem, não teriam sido deixados para trás, como ele.
Chloe encostou-se em Buck e segurou a mão dele. Buck estava agradecido por ela ser tão despreocupada, tão sincera em sua devoção a ele. Chloe era a maior dádiva que Deus podia ter-lhe concedido depois de ser salvo.
— O que aconteceu? — ele ouviu Rayford dizer. — Tudo estava indo tão bem.
Rayford começou a procurar uma saída para a estrada de Arlington Heights a noroeste de Tollway. Chloe lhe dissera que o Hospital da Comunidade Noroeste ficava perto dali. Mas agora a polícia municipal e estadual e um grupo de pacificadores da Comunidade Global estavam dirigindo o trânsito caótico e bloqueando as saídas da estrada. Os carros não andavam.
Depois de alguns minutos, eles conseguiram avançar um pouco. Rayford abriu o vidro e perguntou a um policial o que estava acontecendo.
— Por onde você tem andado, camarada? Não pare, siga em frente.
— O que ele estava dizendo? — perguntou Amanda, ligando o rádio. — Quais são as emissoras que dão notícias, Chloe?
Chloe afastou-se de Buck e inclinou-se para frente. — Ligue na AM e tente 1, 2 e 3 — ela disse. — Uma dessas deve ser a WGN ou a MAQ.
Eles pararam novamente. Desta vez havia um pacificador da Comunidade Global bem perto da janela de Buck. Buck abaixou o vidro e exibiu sua credencial do Semanário Comunidade Global. — Que confusão é esta?
— A milícia apossou-se de uma antiga base Nike para armazenar armas contrabandeadas. Depois do ataque em Washington, nosso pessoal expulsou a milícia de lá.
— Ataque em Washington? — disse Rayford, esticando o pescoço para falar com um policial. — Washington, D.C.?
— Não pare, siga em frente — disse o policial. — Se você precisar voltar por esta pista saia na Rota 53 e tente as rodovias marginais, mas não queira chegar perto daquela velha base Nike.
Rayford continuou a dirigir o carro. No caminho, ele e Buck fizeram perguntas a cada policial enquanto Amanda procurava sintonizar uma emissora local. Todas as que ela encontrava levavam ao ar o som do Sistema Transmissor de Emergência. — Ligue no rastreador sintonizador automático — sugeriu Chloe. Finalmente o rádio sintonizou uma emissora da EBS, e Amanda travou o botão.
Um correspondente de rádio da CNN/Rede Comunidade Global estava transmitindo ao vivo dos arredores de Washington, D.C. "O destino do potentado da Comunidade Global, Nicolae Carpathia, permanece desconhecido até esta hora, enquanto Washington encontra-se em ruínas — ele disse. "O ataque em massa partiu da milícia da costa leste, com a ajuda da União das Nações Britânicas e do antigo estado soberano do Egito, agora parte do Estado Democrático do Oriente Médio. O potentado Carpathia chegou aqui ontem à noite e deveria ter permanecido na suíte presidencial do Capital Noir, porém há testemunhas dizendo que aquele luxuoso hotel desabou nesta manhã. As forças pacificadoras da Comunidade Global imediatamente revidaram, destruindo um antigo centro Nike na região suburbana de Chicago. Notícias vindas de lá dão conta de que há milhares de mortos e feridos civis na periferia, e que um gigantesco congestionamento de trânsito está dificultando a chegada do socorro."
— Oh, bendito Deus! — orou Amanda.
"Outros ataques de que temos conhecimento neste momento", prosseguia o repórter, "incluem uma incursão das forças de infantaria egípcias em direção ao Iraque com a finalidade evidente de sitiar a Nova Babilônia. Esse plano foi rapidamente debelado pelas forças aéreas da Comunidade Global, que agora estão avançando sobre a Inglaterra. Isso talvez seja uma retaliação contra a Inglaterra por ela estar tomando parte na ação da milícia norte-americana contra Washington. Por favor, continuem conosco. Ah, aguardem... o potentado Carpathia está salvo! Ele vai falar à nação por intermédio do rádio. Ficaremos à espera aqui e transmitiremos seu pronunciamento assim que recebermos o sinal."
— Precisamos chegar até Bruce — disse Chloe, enquanto Rayford avançava lentamente. — Todos estão pegando a 53 norte, papai. É melhor irmos para o sul e fazer o retorno.
"Dentro de alguns momentos o potentado Carpathia estará falando à nação", disse o repórter. "Aparentemente a Rede Comunidade Global está tomando providências para que sua transmissão não possa ser rastreada. Enquanto isso, ouçam esta notícia de Chicago sobre o ataque à antiga base Nike: Parece ter sido uma retaliação. O serviço secreto da Comunidade Global descobriu hoje um golpe para destruir o avião do potentado Carpathia, que poderia ou não estar viajando nele quando partiu para O'Hare Internacional esta manhã. O avião está no ar, com destino ignorado, embora as forças da Comunidade Global estejam reunidas em Nova York."
Amanda segurou com força o braço de Rayford. — Poderíamos ter morrido!
Quando Rayford falou, Buck pensou que ele ia sucumbir. — Só espero não ter conseguido realizar o sonho de Earl enviando-o para a morte — ele disse.
— Você quer que eu dirija o carro? — perguntou Buck.
— Não, estou bem.
O locutor prosseguia: "Estamos à espera de um pronunciamento mentiroso, perdão, um pronunciamento ao vivo [Os autores jogam com as palavras lie (mentira) e live (ao vivo), n.t.] do potentado da Comunidade Global, Nicolae Carpathia..."
— Pela primeira vez ele falou uma coisa certa — disse Chloe.
"...Enquanto aguardamos, ouçam esta notícia procedente de Chicago. Os porta-vozes das forças pacificadoras da Comunidade Global dizem que a destruição da antiga base Nike foi levada a efeito sem o uso de armas nucleares. Apesar de lamentarem o grande número de mortes de civis na periferia, eles emitiram o seguinte pronunciamento: 'As morte devem ser creditadas ao movimento de resistência da milícia. Forças militares subversivas são ilegais, e a insensatez de armazenar armas numa área civil explodiu literalmente na cara deles.' Não há, repetimos, não há perigo de precipitação radioativa na região de Chicago, mas as forças pacificadoras não estão permitindo o tráfego de automóveis perto da área destruída. Por favor, ouçam agora o pronunciamento ao vivo do potentado Nicolae Carpathia."
Finalmente Rayford conseguiu encontrar uma saída em direção ao sul na Rota 53. Fez um retorno passando por uma área restrita apenas a veículos autorizados e seguiu para o norte rumo a Rolling Meadows.
"Leais cidadãos da Comunidade Global", soou a voz de Carpathia, "dirijo-me a vocês neste dia com o coração quebrantado, sem ao menos poder dizer-lhes de onde estou falando. Temos trabalhado há mais de um ano para congregar esta Comunidade Global sob a bandeira da paz e da harmonia. Hoje, lamentavelmente, soubemos outra vez que ainda existem pessoas entre nós que desejam a nossa desunião. Não é segredo que sou, tenho sido e sempre serei um pacifista. Não acredito em guerra. Não acredito em armamentos. Não acredito em derramamento de sangue. Por outro lado, sinto-me responsável por você, meu irmão ou minha irmã desta aldeia global. As forças pacificadoras da Comunidade Global já subjugaram a resistência. Lamento muito a morte de civis inocentes, mas prometo solenemente que todos os inimigos da paz terão julgamento imediato. A bela capital dos Estados Unidos da América do Norte foi devastada e vocês ouvirão mais notícias de destruição e morte. Nosso objetivo continua sendo a paz e a reconstrução. Estarei de volta aos escritórios da Nova Babilônia no devido tempo e me comunicarei com vocês com freqüência. Acima de tudo, não tenham medo. Confiem que nenhuma ameaça à tranqüilidade mundial será tolerada. Nenhum inimigo da paz sobreviverá."
Enquanto Rayford procurava um caminho que o levasse próximo ao Hospital da Comunidade Noroeste, o correspondente da CNN/Rede Comunidade Global voltou a falar. "Uma notícia de última hora: As forças militares da Comunidade Anti-Global ameaçaram dar início a uma guerra nuclear sobre Nova York, principalmente sobre o Aeroporto Internacional Kennedy. Os civis estão fugindo daquela área e causando um dos piores congestionamentos de tráfego e de pedestres da história de Nova York. As forças pacificadoras dizem que têm condições e tecnologia para interceptar mísseis, mas estão preocupadas com os danos que serão causados às áreas mais afastadas. E agora uma notícia de Londres: Uma bomba de cem megatons destruiu o aeroporto de Heathrow, e a precipitação radioativa ameaça a população que vive a um raio de alguns quilômetros de distância. Aparentemente a bomba foi atirada pelas forças pacificadoras após a descoberta de um contrabando de bombardeiros egípcios e ingleses que estavam agrupados numa pista aérea militar perto de Heathrow. As notícias dão conta de que os navios de guerra, que foram abatidos pelo ar, estavam equipados com armamentos nucleares e a caminho de Bagdá e da Nova Babilônia.
— É o fim do mundo — murmurou Chloe. — Que Deus nos ajude.
— Talvez fosse melhor tentarmos chegar à Igreja Nova Esperança — sugeriu Amanda.
— Não antes de sabermos como Bruce está — disse Rayford. Ele perguntou aos assustados transeuntes se seria possível chegar a pé ao Hospital da Comunidade Noroeste.
— É possível — disse uma mulher. — Ele fica logo depois daquele campo, naquela elevação. Mas não sei se vocês vão conseguir chegar perto do que restou dele.
— O hospital foi atingido?
— Se foi atingido? Senhor, ele fica perto da estrada e do outro lado da rua da antiga base Nike. Quase todos acham que ele foi atingido em primeiro lugar.
— Eu vou até lá — disse Rayford.
— Eu também — disse Buck.
— Todos nós vamos — insistiu Chloe, mas Rayford levantou a mão.
— Todos nós, não. Vai ser difícil demais para um de nós passar pela segurança. Buck ou eu poderemos passar com mais facilidade por termos credenciais da Comunidade Global. Penso que um de nós dois deve ir, e o outro ficará aqui com vocês duas. Temos de estar com alguém que nos livre das formalidades, se for necessário.
— Eu quero ir — disse Buck — mas você é quem dá as ordens.
— Fique aqui e posicione o carro de modo que possamos sair facilmente e ir para Monte Prospect. Se eu não voltar dentro de meia hora, arrisque-se e vá atrás de mim.
— Papai, se Bruce estiver melhor, tente trazê-lo para cá.
— Não se preocupe, Chloe — disse Rayford. — Cuidarei disso.
Assim que viu Rayford atravessar com dificuldade o capim enlameado e sumir de vista, Buck arrependeu-se de não ter ido. Ele sempre fora uma pessoa de ação e, ao ver os cidadãos traumatizados caminhando a esmo e lamentando a perda de entes queridos, ele mal conseguia ficar parado no lugar.
O coração de Rayford angustiou-se quando ele chegou à elevação e viu o hospital. Parte da estrutura mais alta ainda estava intacta, mas muito danificada. Veículos de emergência cercavam o local, e o pessoal do socorro trajando uniformes brancos corria de um lado para o outro. A polícia colocara uma longa faixa de bloqueio de trânsito ao redor do terreno do hospital. Assim que Rayford levantou a faixa para passar por baixo, um guarda de segurança, com uma arma na mão, correu em sua direção.
— Alto lá! — ele gritou. — Esta é uma área restrita!
— Tenho autorização para passar! — gritou Rayford, exibindo sua carteira com a credencial.
— Fique onde está! — gritou o segurança. Ao chegar perto de Rayford, ele pegou a carteira e analisou a credencial, comparando a foto com o rosto de Rayford. — Puxa! Autorização nível 2-A. Você trabalha diretamente para Carpathia?
Rayford assentiu.
— Qual é a sua função?
— Confidencial.
— Ele está aqui?
— Não, e se ele estivesse eu não lhe diria.
— Todos vocês são amáveis — disse o guarda. Rayford caminhou em direção ao que havia sido a frente do hospital. Quase todos ignoraram sua presença porque as pessoas estavam muito atarefadas, sem tempo de prestar atenção em quem tinha ou não tinha autorização para estar ali. Os corpos eram colocados um ao lado do outro e
cobertos. — Há sobreviventes? — perguntou Rayford a um atendente do pronto socorro.
— Até agora, só três — respondeu o homem. — Todas mulheres. Duas enfermeiras e uma médica. Elas haviam saído para fumar.
— Há alguém lá dentro?
— Ouvimos vozes — respondeu o homem. — Mas ainda não conseguimos resgatar ninguém.
Murmurando uma oração, Rayford dobrou sua carteira de modo que a credencial ficasse do lado de fora e colocou-a no bolso da camisa. Caminhou até o necrotério improvisado ao ar livre onde vários atendentes do pronto-socorro andavam por entre os corpos, levantando os lençóis e fazendo anotações na tentativa de identificar pacientes e funcionários por meio dos braceletes de identificação.
“ Ajude ou saia do caminho — disse asperamente uma mulher corpulenta ao passar esbarrando em Rayford.”
“Estou à procura de Bruce Barnes — disse Rayford. A mulher, com um crachá onde se lia Patrícia Devlin parou, olhou-o de esguelha, levantou a cabeça e consultou uma prancha com várias folhas contendo uma lista de nomes. Folheou as três primeiras e balançou a cabeça. — Funcionário ou paciente? — ela perguntou.”
“Paciente. Foi trazido para o pronto socorro. A última notícia foi que ele estava em coma.”
“Deve ter ido para a UTI — ela disse. — Dê uma olhada ali. — Patrícia apontou para seis corpos mais adiante. — Espere um momento — ela complementou, virando mais uma folha.”
“Barnes, UTI. Sim, era lá que ele estava. Há mais pacientes lá dentro, mas a UTI quase desapareceu.”
“ Então quer dizer que ele tanto pode estar aqui como lá dentro?”
“Se ele estiver aqui, meu caro, está morto. Se estiver lá dentro, nunca será encontrado.”
“Há chances de haver algum sobrevivente na UTI?”
“Até agora nenhum. Parente seu?”
“Mais que um irmão.”
“O senhor quer que eu verifique?”
O rosto de Rayford contorceu-se, e ele mal conseguiu falar.
“Ficaria muito agradecido.”
Patrícia Devlin, uma mulher bastante ágil para seu tamanho, movimentava-se com rapidez. Seus sapatos grossos de sola branca estavam enlameados. Ela ajoelhou-se ao lado de cada corpo para verificar, enquanto Rayford permanecia a cerca de três metros de distância, com a mão cobrindo a boca e um soluço brotando na garganta.
A Srta. Devlin aproximou-se do quarto corpo. Quando começou a levantar o lençol, hesitou e verificou o nome escrito no bracelete. Olhou para Rayford, e ele entendeu. As lágrimas começaram a rolar por seu rosto. Ela levantou-se e aproximou-se dele. — Seu amigo está apresentável — disse.
“Eu não me atreveria a mostrar-lhe alguns destes corpos, mas o senhor pode ver seu amigo.”
Rayford esforçou-se para dar alguns passos. A mulher abaixou-se e afastou lentamente o lençol, mostrando Bruce, de olhos abertos, sem vida e parados. Rayford tentou manter a calma, sentindo um aperto no peito. Estendeu a mão para fechar os olhos de Bruce, mas a enfermeira o impediu. — Não posso permitir que o senhor faça isto. — Estendendo a mão com luva, ela disse: — Deixe que eu faça.
— Você poderia verificar a pulsação? — perguntou Rayford.
— Oh, senhor — ela disse, com voz comovida — eles só trazem aqui para fora os que estão mortos.
— Por favor — murmurou Rayford, agora em prantos. — Faça isso por mim.
Enquanto Rayford permanecia de pé e com as mãos no rosto, no burburinho do início de tarde daquela região suburbana de Chicago, uma mulher que ele nunca vira antes nem veria novamente colocou o polegar e o indicador sob a mandíbula de seu pastor.
Sem olhar para Rayford, ela tirou a mão, cobriu novamente a cabeça de Bruce Barnes com o lençol e voltou ao seu trabalho. Rayford abaixou-se e ajoelhou-se no chão enlameado. O som das sirenes ecoavam ao longe, luzes de emergência piscavam à volta dele e sua família o aguardava a menos de um quilômetro de distância. Agora só haviam sobrado ele o os outros três. Não havia mais o mestre. Não havia mais o mentor. Só eles quatro.
Enquanto se levantava e descia penosamente a elevação para dar a terrível notícia, Rayford ouviu o Sistema Transmissor de Emergência ligado a todo volume em todos os carros pelos quais passava. Washington fora arrasada. Heathrow não mais existia. Houve mortes no deserto egípcio e nos céus de Londres. Nova York estava em estado de alerta.
Buck estava quase pronto para ir atrás de Rayford quando avistou um vulto alto no horizonte. Reconheceu-o por seu modo de andar e pelos ombros caídos.
— Oh, não — ele murmurou, e Chloe e Amanda começaram a chorar. Os três correram ao encontro de Rayford e voltaram com ele até o carro.
O Cavalo Vermelho do Apocalipse estava entrando em ação.
Nenhum comentário:
Postar um comentário