domingo, 5 de setembro de 2010

DEIXADOS PARA TRÁS VIIIA

DEIXADOS PARA TRÁS VIII

O PERÍODO DA TRIBULAÇÃO COMPLETA 42 MESES; A GRANDE TRIBULAÇÃO CHEGA AO TERCEIRO DIA


Os Crentes

Rayford Steele - Idade: cerca de 45 anos; ex-capitão aviador do 747 das Linhas Aéreas Pan-Continental; perdeu esposa e filho no Arrebatamento; ex-piloto do potentado da Comunidade Global, Nicolae Carpathia; membro fundador do Comando Tribulação; tornou-se fugitivo internacional; suspeito do assassinato de Nicolae Carpathia; vive exilado na nova casa secreta no Edifício Strong, em Chicago.

Cameron ("Buck") Williams - Idade: pouco mais de 30 anos; ex-articulista sênior do Semanário Global; ex-editor do Semanário Comunidade Global, de propriedade de Carpathia; membro fundador do Comando Tribulação; editor da revista virtual A Verdade; fugitivo exilado no Edifício Strong, em Chicago.

Chloe Steele Williams - Idade: pouco mais de 20 anos; ex-aluna da Universidade Stanford; perdeu a mãe e o irmão no Arrebatamento; filha de Rayford; esposa de Buck; mãe de Kenny Bruce, um bebê de 14 meses; presidente da Cooperativa Internacional de Mercadorias, associação secreta composta de crentes; membro fundadora do Comando Tribulação; fugitiva exilada no Edifício Strong, em Chicago.

Tsion Ben-Judá - Idade: beirando os 50 anos; ex-estudioso das doutrinas dos rabinos e estadista israelense; revelou sua crença em Jesus como o Messias em um programa de TV levado ao ar internacionalmente, o que provocou o assassinato de sua esposa e de dois filhos adolescentes; fugiu para os Estados Unidos; professor e líder espiritual do Comando Tribulação; suas pregações diárias, via Internet, alcançam mais de um bilhão de pessoas; fugitivo exilado no Edifício Strong, em Chicago.

Dr. Chaim Rosenzweig - Idade: beirando os 70 anos; botânico e estadista israelense; descobridor da fórmula que fez florescer os desertos de Israel; recebeu o título de Homem do Ano pelo Semanário Global; assassino confesso de Carpathia; reside no Edifício Strong, em Chicago.
Mac McCullum - Idade: beirando os 60 anos; piloto de Carpathia; reside na Nova Babilônia, Estados Unidos Carpathianos.

David Hassid - Idade: cerca de 25 anos; diretor de primeiro escalão da CG; reside em Nova Babilônia.

Annie Christopher - Idade: pouco mais de 20 anos; cabo da Comunidade Global; chefe do setor de cargas do Fênix 216; namorada de David Hassid; está desaparecida; reside em Nova Babilônia.

Leah Rose - Idade: beirando os 40 anos; ex-enfermeira-chefe do Arthur Young Memorial Hospital de Palatine, Illinois; reside no Edifício Strong, em Chicago.

Sr. e Sra. Lukas ("Laslos") Miklos - Idade: cerca de 45 anos; magnatas do ramo de mineração de linhito; residem na Grécia, Estados Unidos Carpathianos.

Abdullah Smith - Idade: 30 e poucos anos; ex-piloto de aviões de caça jordanianos; co-piloto do Fênix 216; reside em Nova Babilônia.

Ming Toy - Idade: 22 anos; viúva; guarda do Presídio de Reabilitação Feminina da Bélgica (PRFB); designada para trabalhar no funeral de Carpathia em Nova Babilônia.

Chang Wong - Idade: 17 anos; irmão de Ming Toy; reside na China, Estados Unidos Asiáticos; encontra-se em Nova Babilônia para assistir ao funeral de Carpathia em companhia dos pais, os quais ignoram sua conversão.

O Que Afirma Ser Crente

Al B. (conhecido como "Albie") - Idade: beirando os 50 anos; nome oficial desconhecido; nascido em Al Basrah, no norte do Kuwait; ex-gerente da Torre da Pista de Pouso de Al Basrah; lida com o mercado negro internacional; contou a Buck Williams que se converteu do islamismo para o cristianismo por ter estudado os ensinamentos de Tsion Ben-Judá pela Internet; tem o selo dos crentes visível na testa; está colaborando com o Comando Tribulação no norte de Illinois, Estados Unidos Norte-americanos.

Os Inimigos

Nicolae Jetty Carpathia - Idade: 36 anos; ex-presidente da Romênia; ex-secretário-geral da Organização das Nações Unidas; auto designado potentado da Comunidade Global; assassinado em Jerusalém; ressuscitou no palácio da CG, em Nova Babilônia.

Leon Fortunato - Idade: pouco mais de 50 anos; braço direito de Carpathia; supremo comandante da CG; reside na Nova Babilônia.

A Indecisa

Hattie Durham - Idade: pouco mais de 30 anos; ex-comissária de bordo das Linhas Aéreas Pan-Continental; ex-assistente pessoal de Carpathia; foi vista pela última vez nos Estados Unidos Norte-americanos.








PRÓLOGO Extraído de O Possuído
O locutor disse:
- Senhoras e senhores da Comunidade Global, com a palavra o Supremo Potentado, Sua Excelência Nicolae Carpathia.
Nicolae aproximou-se da câmera, forçando o operador a reenquadrar a cena. Ele olhava diretamente para as lentes.
- Meus caros súditos - ele começou a dizer -, atravessamos juntos uma semana difícil, não? Fiquei profundamente comovido com os milhões de pessoas que fizeram um esforço tremendo para vir a Nova Babilônia a fim de assistir a uma cerimônia que, felizmente, não foi a de meu funeral. As demonstrações de emoção foram encorajadoras para mim. Conforme vocês sabem e eu já mencionei, há alguns grupos remanescentes de resistência à nossa luta pela paz e harmonia. Há também aqueles que adquiriram fama por terem proferido as mais terríveis ofensas, blasfêmias e falsos testemunhos contra mim, usando termos que ninguém gostaria de ser merecedor. Creio que todos vocês concordam que hoje provei quem sou. Vocês estão certos em fazer o que suas mentes e corações mandam. Continuem a me seguir. Vocês assistiram a tudo, e seus olhos não mentem. Também estou ansioso por acolher em nosso meio todos os ex-seguidores da seita radical que se convenceram de que não sou o inimigo. Ao contrário, posso ser o objeto de devoção da própria religião deles, e oro para que eles não se fechem a essa possibilidade. Antes de encerrar, desejo dizer algumas palavras diretamente a meus opositores. Eu sempre permiti a existência de opiniões divergentes, sem rancor ou amargura. Contudo, existem pessoas entre vocês que têm-me chamado publicamente de anticristo e se referido a este período da história como Tribulação. Tomem estas palavras como uma promessa pessoal: Se insistirem em continuar com seus ataques subversivos contra meu caráter e contra a harmonia mundial que me esforcei tanto para instituir, a palavra tribulação não servirá sequer para começar a descrever o que lhes está reservado. Se estes últimos três anos e meio foram considerados por vocês como tribulação, vão saber o que significa sofrimento de verdade quando chegar a Grande Tribulação.
UM

O relógio marcava meio-dia em Nova Babilônia, e David Hassid estava muito agitado. Perdera Annie de vista e não tinha notícia dela. Apesar disso, ele mal conseguia desgrudar os olhos dos gigantescos telões no pátio do palácio. A imagem do infatigável Nicolae Carpathia, que acabara de ressuscitar depois de ter ficado três dias morto, ocupava a tela inteira, vibrando de energia. David acreditava que, se estivesse perto daquele homem, seria eletrocutado por uma espécie de descarga elétrica demoníaca.
Sem conseguir tirar da mente o desaparecimento de sua amada, David foi arrastado pela multidão e passou pelos enormes monitores e guardas até chegar à beira do esquife, onde poucas horas antes jazia o corpo do rei do mundo.
Será que David veria alguma evidência de que o homem estava agora possuído pelo próprio Satanás? O corpo, o cabelo, o porte e a aparência eram os mesmos. Porém, um ligeiro ar de desassossego e precaução faiscava de seus olhos. Embora sorrindo e conversando mansamente, parecia que Nicolae mal podia conter o monstro que havia dentro dele. Fúria controlada, violência protelada, vingança em estado latente vibravam pelos músculos de seu pescoço e ombros. David tinha a impressão de que, de repente, o homem irromperia de seu terno e da própria pele, expondo-se ao mundo como a repulsiva serpente que ele era.
A atenção de David foi brevemente desviada para uma pessoa postada ao lado de Carpathia. Quando ele voltou a lançar um olhar fortuito àquele rosto que continuava belo, não estava preparado para ser encarado pelo inimigo de sua alma. Evidentemente, Nicolae o conhecia, mas o olhar dele, mesmo sem deixar transparecer que o reconhecera, não transmitia o ar de aprovação e de encorajamento que David costumava receber. Aquele olhar de simpatia que Nicolae costumava lançar-lhe sempre o enervou, mas agora ele preferia o anterior a este. Era um olhar penetrante, que parecia traspassar seu corpo a ponto de quase forçá-lo a dar um passo à frente e confessar a sua deslealdade e a de todos os companheiros do Comando Tribulação.
Apesar de saber que Satanás não era onisciente, David sentia dificuldade em aceitar que aqueles olhos não pertenciam a alguém que conhecia seus segredos. Ele queria fugir dali, mas não se atreveu. Ficou satisfeito quando Nicolae voltou a concentrar-se na tarefa do momento: ser o objeto da adoração do mundo.
David voltou apressado ao seu posto, mas alguém havia-se apropriado do carrinho de golfe utilizado para transportá-lo de um lado para o outro. Irritado, resolveu fazer valer sua autoridade. Pegou o telefone e, mesmo com dificuldade para articular as palavras, gritou para o supervisor dos serviços de transporte:
- Se eu não tiver um veículo aqui dentro de dois minutos, alguém vai ter o pescoço...
- Um carrinho elétrico, senhor? - perguntou o supervisor, com um sotaque acentuado, que David imaginou ser australiano.
- Claro!
- Há poucos aqui, diretor, mas...
- Eu sei, porque alguém passou a mão no meu!
- Eu ia dizer que ficaria satisfeito em emprestar-lhe o meu, dadas as circunstâncias.
- Circunstâncias?
- A ressurreição, é claro! Falando francamente, diretor Hassid, eu adoraria poder entrar na fila.
- Basta me trazer...
- O senhor acha que eu poderia? Mesmo estando uniformizado? Sei que eles afastaram os civis do pátio. O pessoal não gostou muito, mas como funcionário...
- Eu não sei! Preciso de um veículo! Já!
- O senhor me daria uma carona até o local onde ele está antes de ir ao lugar que deseja...
- Sim! Ande logo!
- O senhor está emocionado, diretor?
- O quê?
O homem falou pausadamente, complacente:
- So-bre-a-res-sur-rei-ção!
- Você está em seu veículo? - perguntou David, com voz firme.
- Sim, senhor.
- É com isso que eu estou emocionado.
O homem continuou a falar, mas David desligou o telefone e ligou para o supervisor da multidão.
- Estou procurando Annie Christopher - ele disse.
- Setor?
- Cinco-três.
- O setor 53 está vazio, diretor. Ela deve ter sido designada para outra função ou liberada.
- Se ela foi designada para outra função, você deve saber qual é, não?
- Estou verificando.
O supervisor dos serviços de transporte apareceu dirigindo o carrinho de golfe, com o rosto brilhando de felicidade. David entrou no carrinho com o fone ainda no ouvido.
- Vou ver deus - disse o homem.
- Ah, sim - disse David. - Aguarde um instante.
- O senhor pode acreditar? Ele tem de ser deus. Quem mais poderia ser? Vi com estes dois olhos... só que foi pela TV. Ressuscitou. Eu vi o homem morto, tenho certeza. Se eu conseguir vê-lo pessoalmente, não vou mais ter dúvidas, certo?
David assentiu com a cabeça, tampando o ouvido livre.
- Eu disse que não vou mais ter dúvidas, certo?
- Entendi! - gritou David. - Agora, aguarde um instante.
- Aonde estamos indo, chefe?
David esticou o pescoço para olhar para o homem, sem acreditar que ele continuava a tagarelar.
- Eu perguntei aonde estamos indo. O senhor vai me deixar lá ou eu vou levá-lo a algum lugar?
- Vou deixá-lo lá! Faça o que quiser!
- Perdão!
Não era assim que David costumava tratar as pessoas, até mesmo as ignorantes. Mas ele precisava saber se Annie havia sido designada para outra função e onde ela estava.
- Nada! - disse o supervisor da multidão pelo telefone.
- Quer dizer que ela foi liberada? - disse David, um pouco mais aliviado.
- Talvez. Não temos nenhum registro.
David até pensou em ligar para o posto de atendimento médico, mas logo repreendeu-se e achou que estava exagerando.
0 homem do serviço de transportes dirigia o carrinho com habilidade em meio à multidão, que começava a dispersar. Pelo menos a maioria. As pessoas pareciam assustadas. Algumas tinham uma expressão zangada. Haviam aguardado horas para ver o corpo e, agora que Carpathia ressuscitara, estavam sendo afugentadas dali sem vê-lo, tudo por causa do lugar em que se encontravam.
- Este é o lugar mais próximo que posso chegar com o carrinho - disse o homem, freando com tanta força que David quase perdeu o equilíbrio. - O senhor vai trazê-lo de volta para mim?
- Claro - disse David, tentando controlar-se para, ao menos, agradecer ao homem. Enquanto se sentava no banco do motorista, ele perguntou: - Você visitou a Austrália depois da reorganização dos países?
O homem franziu as sobrancelhas e apontou para David, como que lhe dando uma reprimenda:
- Um homem tão importante como o senhor devia ser capaz de saber diferenciar um australiano de um neozelandês.
- Eu me enganei - disse David. - Obrigado pela carona. Enquanto ele se afastava, o homem gritou:
- É claro que, agora, somos todos cidadãos orgulhosos dos Estados Unidos do Pacífico!
David tentou desviar os olhos do povo enlutado, agora transformado em povo feliz, que acenava para ele, não para pedir carona, mas em busca de informações. Às vezes, ele era obrigado a frear para não atropelar alguém que lhe fazia a mesma pergunta. Os sotaques eram variados, mas todos queriam saber a mesma coisa:
- Existe um jeito de podermos ver Sua Excelência?
- Não sei informar - dizia David. - Afastem-se, por favor. Estou em missão oficial.
- Não é justo! Esperamos a noite inteira e metade do dia debaixo do sol quente, e para quê?
Havia outros que dançavam nas ruas, compondo canções e cânticos em homenagem a Carpathia, seu novo deus. David olhou novamente para os gigantescos monitores onde Carpathia era mostrado brevemente cumprimentando os últimos milhares de pessoas que foram conduzidas até ele, com um rápido aperto de mão. À esquerda de David, os guardas lutavam para impedir que mais gente entrasse sorrateiramente no pátio.
- Ninguém mais pode entrar na fila! - eles gritavam o tempo todo.
Os telões mostravam os peregrinos desmaiando ao se aproximarem do esquife, sendo agora agraciados por Nicolae em toda a sua glória. Muitos curvavam-se, catatônicos, pelo simples fato de aproximar-se dele. Os guardas os levantavam e os forçavam a caminhar, mas, quando Sua Excelência dirigia mansamente a palavra a alguns deles e os tocava, muitos desfaleciam e caíam nos braços dos guardas.
Nicolae murmurava:
- Que bom ver você. Obrigado por ter vindo. Sinta-se abençoado. Ao mesmo tempo, David ouvia Leon dizer com voz mansa:
- Adore seu rei. Curve-se diante de Sua Majestade. Adore o Senhor Nicolae, o seu deus.
A nota dissonante vinha dos guardas encarregados de tirar dali aquela massa humana de pessoas trêmulas e de ampará-las quando desmaiavam de êxtase.
- Ridículo! - os guardas resmungavam uns aos outros, enquanto microfones transmitiam ao vivo a cacofonia de Fortunato, de Carpathia e dos queixosos a todos os alto-falantes do sistema de som. - Continuem caminhando! Vamos! Mais um desmaiado! Levante-se! Rápido!
Finalmente, David chegou ao setor 53, que estava, conforme lhe disseram, completamente vazio. Os portões para conter a multidão haviam tombado, e o gigantesco placar fora pisoteado. David parou e apoiou os braços no volante do carrinho. Ao afastar o quepe, sentiu o calor dos raios ultravioletas do sol. Suas mãos estavam encharcadas de suor, e ele sabia que pagaria caro por aquelas horas sob o sol. Mas não podia voltar para a sombra sem antes encontrar Annie.
Enquanto o povo passava ao redor do setor pelo qual Annie havia sido responsável, David olhou para o chão. O asfalto parecia derreter. Além das embalagens de sorvetes e doces e dos copos de água e refrigerantes atirados ao chão sob o calor escaldante, ele avistou alguma coisa parecida com resíduos de suprimentos médicos. Quando ele ameaçou descer para ver de perto, um casal de idosos entrou no carrinho e pediu carona até o aeroporto.
- Isso aqui não é um veículo para transportar pessoas -ele disse distraidamente, mas tomando o cuidado de retirar a chave antes de descer do carrinho.
- Que grosseria! - exclamou a mulher.
- Vamos - disse o homem.
David caminhou com passos firmes até o setor 53 e ajoelhou-se no chão. O calor minava-lhe as energias. Ele examinou as embalagens vazias de esparadrapos, gaze, pomada e até mesmo um tubo de oxigênio. Alguém havia sido socorrido ali. Não teria de ser Annie necessariamente. Poderia ter sido outra pessoa. Mesmo assim, ele precisava ter certeza. David voltou para o carrinho, que estava com todos os lugares tomados, com exceção do dele.
- Se os senhores não estiverem necessitando de atendimento médico - ele disse, discando um número de telefone -, subiram no carrinho errado.


Ao chegar ao nono andar do Edifício Strong, em Chicago, Rayford Steele achou o local tão confortável que conseguiu afastar da mente os maus pressentimentos em relação a Albie. A verdade sobre seu amigo do Oriente Médio, de tez morena e pequena estatura, seria posta à prova em breve. Albie havia sido incumbido de pilotar um caça a jato de Palwaukee a Kankakee, onde Rayford o pegaria mais tarde em um helicóptero da Comunidade Global.
Além de descobrir uma sala abarrotada de computadores de última geração - ainda dentro das embalagens originais -, Rayford encontrou um pequeno quarto contíguo a um enorme escritório especial para executivos. O local era decorado como um pequeno apartamento de um hotel luxuoso. Ele percorreu andar por andar e encontrou a mesma decoração em pelo menos quatro escritórios de cada pavimento.
- Temos muito mais requinte do que imaginávamos - ele disse aos exaustos componentes do Comando Tribulação. -Enquanto não pintarmos as janelas de preto, vamos ter de colocar algumas camas nos corredores perto dos elevadores para não serem vistas de fora.
- Pensei que ninguém se atrevesse a chegar perto daqui - disse Chloe, segurando Kenny, que dormia em seu colo, enquanto Buck cochilava com a cabeça apoiada no ombro dela.
- Nunca se sabe o que a imagem por satélite tem condição de mostrar - disse Rayford. - Podemos estar dormindo profundamente, enquanto o Serviço de Segurança e Inteligência da CG tira fotos de nós da estratosfera.
- Vou colocar estes dois na cama - ela disse - antes que eu desmaie de cansaço.
- Eu já trouxe minhas coisas para cá - disse Leah, levantando-se lentamente. - Onde estão essas camas e onde vamos colocá-las?
- Eu gostaria de poder ajudar - disse Chaim com os dentes cerrados por estar com a mandíbula amarrada.
Rayford o deteve com um gesto.
- O senhor está aqui conosco e vai me obedecer. Precisamos que o senhor e Buck estejam em perfeito estado de saúde.
- E eu preciso que vocês estejam alertas para estudar - disse Tsion. - Vocês me forçaram a passar por muitas provas. Agora vão fazer o curso de suas vidas.
Rayford, Chloe, Leah e Tsion passaram meia hora transportando camas pelo elevador e improvisando quartos em um corredor interno do 25° andar. Quando Rayford entrou cautelosamente no helicóptero equilibrado precariamente no patamar que agora servia como novo teto da torre, todos estavam dormindo, com exceção de Tsion. O rabino parecia sentir-se revigorado, e Rayford não conseguia entender o motivo.
Rayford deixou as luzes do painel do helicóptero ligadas e, é claro, as luzes externas desligadas. Depois de acionar os rotores, ele aguardou alguns instantes para decolar até que seus olhos se acostumassem à escuridão. De cada lado do helicóptero, havia um espaço livre de seis metros. Não havia nada mais perigoso - principalmente para um piloto especialista em aviões de grande porte - do que as correntes de ar dentro do helicóptero que funcionavam como uma imensa chaminé. Rayford já havia presenciado helicópteros despencarem no espaço depois de permanecerem pairando no ar por muito tempo no mesmo lugar. Mac McCullum tentara dar-lhe uma explicação baseada nas leis da física, mas Rayford não havia prestado atenção a ponto de assimilar os detalhes. Alguma coisa acontecia aos rotores, que sugavam o ar da parte inferior do helicóptero tirando-lhe a capacidade de flutuação. Quando o piloto percebia que estava despencando, já havia destruído o equipamento, e, quase sempre, todos a bordo morriam.
Rayford necessitava dormir tanto quanto seus companheiros, mas tinha de buscar Albie. A questão não era só essa, é claro. Ele poderia ter ligado para o amigo e dizer-lhe para ficar escondido até a noite seguinte. Mas Albie não conhecia o país e teria de encontrar um lugar para dormir ou registrar-se em um hotel sob nome falso. Agora que Carpathia havia ressuscitado e que a CG aumentara seu contingente de prontidão, por quanto tempo ele poderia se fazer passar por um funcionário daquela organização?
De qualquer forma, Rayford precisava saber se Albie estava "com ele ou contra ele", conforme seu pai costumava dizer. Rayford se emocionara ao ver o selo dos crentes na testa de Albie, porém grande parte do que aquele homem fizera nas horas que antecederam o nascer do sol chegaram a confundi-lo, deixando-o atônito. Um homem astuto e vivido como Albie, que tanto os ajudara pondo em risco a própria vida, seria o pior de todos os inimigos. Rayford preocupava-se, imaginando que poderia ter conduzido, inadvertidamente, o Comando Tribulação à toca do inimigo.
Rayford prendeu a respiração quando o helicóptero começou a roncar no pequeno espaço no topo da torre. Ele havia posicionado cuidadosamente a aeronave no meio do espaço livre, deixando apenas um canto para orientar-se no momento de levantar vôo. Se ele mantivesse as hélices eqüidistantes das paredes, permaneceria no centro até levantar vôo.
Como era desagradável a sensação de ser um homem vulnerável e tão em evidência! Ele imaginou que David Hassid poderia ter-se enganado confiando em informações antigas, sem se dar conta de que a CG sabia que Chicago era um lugar seguro por estar fora dos limites de radiação. O próprio Rayford ouvira Carpathia dizer que não havia usado radiação para destruir a cidade, pelo menos inicialmente. Talvez a CG tivesse incutido essa idéia na mente do povo só para atrair os rebeldes e conduzi-los a um único local a fim de que fossem facilmente exterminados.
Mesmo depois de levantar vôo da torre, Rayford não se atreveu a acender as luzes. Ele voaria baixo para não ser detectado pelo radar. Queria também ficar invisível ao sistema de vigilância que fotografava por satélite, mas o sensor de temperatura era tão requintado que até mesmo um helicóptero com as luzes apagadas apareceria na tela como um objeto de cor laranja.
Um arrepio percorreu-lhe a espinha, enquanto ele deixava sua imaginação divagar. Estaria sendo seguido por uma meia dúzia de helicópteros iguais ao seu? Talvez não os ouvisse nem os visse. Eles poderiam estar aguardando em algum lugar, até mesmo no solo. Como poderia saber?
Desde quando ele passara a visualizar mentalmente tantos problemas? Os perigos verdadeiros eram muitos, e ele não devia ficar conjeturando outros.
Rayford ajustou as luzes do painel na posição mais fraca e, em seguida, viu que estava se desviando da rota. O erro era fácil de ser reparado, mas ele receava confiar em seu cérebro, mesmo em uma aeronave pequena como aquela. Certa vez, Mac lhe dissera que pilotar um helicóptero em relação a um 747 era o mesmo que dirigir uma bicicleta em relação a um veículo esportivo. Com base naquela comparação, Rayford concluiu que seu esforço maior seria permanecer sentado do que manejar os instrumentos do painel. Mas ele jamais havia planejado fazer um vôo cego em um helicóptero sobre uma imensa metrópole deserta, na escuridão da madrugada. Ele precisava chegar a Kankakee, pegar Albie e voltar para a torre antes do alvorecer. Não havia um minuto sequer a perder. A última coisa que ele queria era ser visto sobrevoando uma área restrita em plena luz do dia. Ser detectado na calada da noite era uma coisa. Ele poderia arriscar-se, confiar em seus instintos. Mas, sob a luz do sol, ele não teria condições de esconder-se e morreria antes de conduzir alguém à nova casa secreta.


Em Nova Babilônia, os peregrinos frustrados haviam formado uma nova fila, composta de milhares de pessoas, do lado de fora do palácio da Comunidade Global. Os guardas da CG interromperam a fila, dizendo ao povo que o potentado ressurreto teria de sair do pátio quando terminasse de cumprimentar aqueles que, por um motivo ou outro, estavam no lugar certo no momento certo.
David desviou-se do caminho que dava acesso ao posto de atendimento médico e presenciou a reação da multidão. O povo não saía do lugar, não se dispersava. Os guardas, cujas mensagens por megafones eram negligenciadas, resolveram parar para ouvir as reclamações do povo. David, com olhar de perplexidade, estacionou atrás de um dos jipes. Um guarda, tão atordoado quanto ele, encolheu os ombros. O que tinha o megafone na mão disse:
- Façam como quiserem, mas vocês não vão conseguir nada.
- Temos uma idéia! - gritou um homem com sotaque hispânico.
- Estou ouvindo - disse o guarda. A multidão perto dele aquietou-se.
- Vamos adorar a estátua! - ele disse, ouvindo gritos de aprovação.
- O que ele disse? O que ele disse? - perguntavam as pessoas mais distantes.
- O supremo comandante Fortunato não disse que deveríamos adorar a estátua? - perguntou o homem.
- De onde você é, meu amigo? - inquiriu o guarda, com admiração na voz.
- Méjico! - gritou o homem em seu idioma nativo, sendo aplaudido por seus companheiros.
- Você tem o coração de um toureiro! - disse o guarda. -Vou ver se é possível.
A notícia espalhou-se, enquanto o guarda sentava-se para falar ao telefone. De repente, ele se levantou e fez um sinal de positivo com o polegar, dizendo:
- Vocês estão autorizados a adorar a imagem de Sua Excelência, o potentado ressurreto!
A multidão aplaudiu.
- Os líderes de vocês consideraram genial essa idéia!
A multidão começou a cantar, aproximando-se cada vez mais do pátio.
- Por favor, mantenham a ordem! - ordenou o guarda. -Vocês ainda vão ter de aguardar uma hora. Mas vão ter seu desejo atendido!
David sacudiu a cabeça enquanto fazia uma manobra de retorno e dirigiu-se ao pátio. O povo ao longo do caminho lhe perguntava:
- É verdade? Podemos pelo menos adorar a estátua? David não respondeu à maioria deles, mas, quando a multidão cercava seu carrinho, ele era forçado a frear para não atropelar alguém. Vez por outra, fazia um movimento afirmativo com a cabeça para delírio do povo. Todos corriam para a fila, que já se alongava por quase meio quilômetro. Será que aquele dia teria fim?

DOIS

Rayford repreendeu a si mesmo mentalmente. Havia calculado mal o tempo que gastaria para pegar Albie, decidir o que fazer com o caça a jato e o Gulfstream e retornar à nova casa secreta antes do alvorecer. Os primeiros raios de sol começavam a brilhar no horizonte. Rayford apalpou o bolso da calça à procura de seu telefone. Não o encontrou. Tateou a maleta de vôo, o paletó e o chão. Nada.
Seu primeiro impulso foi o de praguejar, mas depois de ter voltado à razão dias antes, reconheceu que precisava controlar-se mais. Aprendera um princípio com um velho amigo da faculdade que, na época, ele havia considerado muito esotérico e piegas. Seu amigo, um homem de visão, chamava o que fazia de "princípio da reação oposta". Em momentos como aquele que Rayford vivenciava naquele instante, o amigo forçava-se a agir de maneira diametralmente oposta ao que sentia. Se tivesse vontade de gritar, sussurrava. Se quisesse esmurrar alguém, dava um tapinha carinhoso no ombro da pessoa.
Rayford só voltara a lembrar-se daquele velho amigo e de suas idéias malucas no dia em que voara sozinho, com o coração carregado de emoções, do Oriente Médio para a Grécia e de lá para os Estados Unidos. E, agora, havia decidido pôr em prática aquela idéia. Queria amaldiçoar a si mesmo por sua negligência a ponto de ter perdido o telefone. Mas, em vez disso, ele vasculhava sua mente à procura de uma reação oposta. Uma das reações opostas a amaldiçoar seria abençoar, mas a quem ele abençoaria? A outra era orar. Senhor, ele começou a murmurar, mais uma vez necessito de ajuda. Estou furioso comigo mesmo e tenho poucas alternativas. Sinto-me exausto, mas preciso que me mostres o que devo fazer.
Quase que instantaneamente, Rayford lembrou-se de que Albie estava com seu telefone. Albie tinha um também, mas, na correria para pegar suas coisas, Rayford colocara seu telefone na mão do amigo. Em breve, ele teria de pedir a alguém que instalasse uma base de rádio na casa secreta com um canal sigiloso ligado ao helicóptero, de modo que eles pudessem comunicar-se diretamente. No momento, ele não podia contar aos membros do Comando Tribulação onde se encontrava e que só retornaria altas horas da noite daquele mesmo dia.
Rayford também não tinha condições de saber se Albie estava bem. Teria de pousar o helicóptero, fornecer seu nome falso à torre e esperar que Albie estivesse aguardando por ele.


David deixou recados no telefone de Annie e tentou todos os recursos de que dispunha para descobrir o paradeiro dela. O pessoal do posto de atendimento médico estava atarefado demais para procurar o nome dela nos computadores.
- Não haveria meios de cadastrá-la no sistema - alguém Informou a David -, mesmo se ela estivesse aqui.
- Vocês não registram o código de barra dos crachás de funcionários quando eles são internados?
- Ninguém está sendo internado, diretor. Todos passam por uma triagem. Os vivos recebem tratamento, e os mortos, atestado de óbito. O registro não está na lista de prioridades, mas temos idéia de fazer isso.
- Como posso saber se ela está aí?
- O senhor pode vir aqui para verificar, mas não interfira e não atrapalhe o andamento dos trabalhos.
- Onde está sendo feita a triagem?
- Siga pelo lado direito da tenda principal. Fica bem longe de lá. Tentamos colocar os feridos na sombra de três tendas, mas o espaço é pequeno. A todo o momento, temos de transferir alguém para colocar outro.
- A maioria sofreu insolação? - perguntou David.
- A maioria foi atingida por raio, diretor.


- Torre chamando helicóptero da CG! Está me ouvindo?
- Aqui é helicóptero da CG, Kankakee - disse Rayford, tentando esconder que estava aturdido. - Peço-lhe desculpas. Dei um cochilo.
- Não chegou a dormir, espero.
- Não, senhor.
- Apresente-se.
- Ah, sim... piloto civil sob as ordens do subcomandante Marcus Elbaz.
- Sr. Berry?
- Positivo.
- O subcomandante Elbaz pediu que tranqüilizássemos o senhor a respeito de seu telefone.
- Positivo!
- Autorizado a pousar ao sul, onde ele vai encontrar-se com o senhor no hangar 2. Estamos com falta de funcionários. O senhor deve cuidar da própria segurança e reabastecer o helicóptero.
Dez minutos depois, Rayford perguntou a Albie por quanto tempo ele conseguiria manter aquela farsa de oficial da CG.
- Enquanto seu companheiro Hassid estiver dando ordens no palácio. Ele é um jovem extraordinário, Rayford. Confesso que levei alguns sustos aqui. Eles foram durões, mesmo estando com falta de funcionários. Tive de enfrentar dois postos de controle.
Rayford semicerrou os olhos.
- Eles me autorizaram a chegar até aqui sem olhar muito para meu rosto, e eu nem sequer contatei a torre.
- Porque você está comigo e é um piloto civil.
- Você convenceu o pessoal, não?
- Completamente, graças a seu amigo. Além de me incluir nos registros da CG, fornecendo nome, patente e número de série, ele também me designou para trabalhar nesta parte dos Estados Unidos Norte-americanos. Estou aqui em missão oficial. Consegui ser melhor do que a maioria dos funcionários verdadeiros da CG.
- David é muito bom - disse Rayford.
- Ele é ótimo. Eu esbravejei, demonstrei impaciência e fingi que eles se meteriam em uma tremenda encrenca se demorassem muito tempo para me liberar. Mas eles não moveram uma palha sequer até que o segundo posto de controle digitou meu nome no computador e acessou o banco de dados de David. Um dia esse rapaz vai ter de me contar como consegue fazer isso. Ele incluiu todas as informações sobre mim, e, quando meus documentos bateram com o que apareceu na tela, fiquei por cima. Aí, eu comecei a gritar, ordenando que eles facilitassem sua chegada e que tínhamos assuntos urgentes para tratar.
Rayford contou a Albie que seria impossível voltar para a casa secreta antes do escurecer e que talvez tivesse de levá-lo de volta a Palwaukee para ele conduzir o Gutfstream a Kankakee.
- Você quer divertir-se um pouco? - perguntou Albie. -Gostaria de ver se a CG já pôs fogo na antiga casa secreta, e, se ainda não pôs, você gostaria de fazer esse servicinho para eles?
- Até que não é má idéia - disse Rayford. - Se eles já incendiaram a casa, tudo bem, mas, se começarem a vasculhar tudo à procura de provas, vou ficar preocupado com o que deixamos lá.
- Eles não têm funcionários para fazer isso - disse Albie, caminhando em direção ao helicóptero. - Está abastecido?
Rayford assentiu com a cabeça.
- O caça também está abastecido, pronto para decolar quando for necessário. - disse Albie.
Ele passou a sacola por cima do ombro, pegou o telefone que estava dentro e o entregou a Rayford.
- Há três ligações para mim - resmungou Rayford enquanto eles subiam no helicóptero. - Espero que tudo esteja bem em Chicago. Quando chegaram estas ligações?
- As três chegaram cerca de meia hora atrás, uma seguida da outra. Não apareceram os números de quem ligou, e eu achei que não devia atender.
Depois que eles ataram os cintos, Rayford disse:
- Acho melhor ligar para a casa secreta. Tsion atendeu com voz sonolenta.
- Sinto muito tê-lo acordado, doutor - disse Rayford.
- Oh, capitão Steele, não há problema. Eu cochilei sem perceber. Ouvi o telefone de Chloe tocar várias vezes, mas ela estava dormindo pesado. Ninguém despertou. Todos estão exaustos. Quando atendi, a pessoa já havia desligado. Em seguida, o telefone tocou novamente, e eu o levei para um lugar sossegado.
- Rayford, era a Srta. Durham!
- Você tem certeza?
- Tenho, e ela parecia desesperada. Implorei para que ela me contasse onde estava e disse-lhe que todos nós a amávamos muito e que estávamos orando por ela, mas a moça queria falar só com você. Disse que tentou ligar para o seu celular. Eu disse que tentaria falar com você. Tentei duas vezes, mas não consegui nada. De qualquer forma, você tem o número dela.
- Vou ligar para ela.
- Eu gostaria que você me mantivesse informado.
- Tsion, vá descansar um pouco. Você tem muito trabalho a fazer, encontrar um lugar para instalar seu computador, doutrinar Chaim...
- Oh, Rayford, estou tão empolgado com isso que mal posso me conter. E tenho muitas coisas a transmitir pelo computador a meu público. Mas você está certo, precisa ligar para a Srta. Durham. Se não houver nada muito importante, você nos conta quando voltar. Francamente, achei que você já deveria estar aqui.
- Eu calculei mal o tempo, Tsion. Não vou ter condições de voltar antes de o dia clarear. Mas agora estou com meu telefone.
- E você tem de encontrar-se com seu amigo do Oriente Médio.
- Já me encontrei com ele.
- Ele está bem, Rayford? Perdoe-me por perguntar, mas ele parecia preocupado.
- Está tudo bem aqui, doutor.
- Ele também se converteu, correto?
- Sim.
- E vai morar conosco?
- Provavelmente.
- Então, vou aguardar o momento de doutriná-lo também.


David ficou espantado ao chegar ao posto de atendimento médico. Visitara várias vezes as instalações internas, as quais, apesar de simples, eram bem organizadas. O local, que começara como um posto de primeiros socorros para atender uma dúzia de pessoas durante o velório de Carpathia, agora parecia um hospital móvel do exército.
Os demais pontos de atendimento de emergência estavam sendo desmontados. Os feridos eram levados para o centro de triagem no pátio ou para as instalações internas.
Filas e mais filas de macas improvisadas lotavam o pátio.
- Por que vocês não transportam estas pessoas para dentro? - perguntou David, ajeitando o colarinho de seu uniforme.
- Por que você não cuida de seu trabalho e deixa que nós cuidemos do nosso? - disse o médico, que atendia uma vítima de insolação.
- Eu não tive a intenção de criticar. Acontece que...
- Acontece que estamos todos aqui fora - disse o médico. -Pelo menos a maioria de nós. Grande parte dos pacientes está com sintomas de insolação e desidratação, e grande parte dos mortos foi atingida por raio.
- Estou procurando...
- Sinto muito, diretor, mas o senhor vai ter de procurar essa pessoa por conta própria. Não estamos preocupados com os nomes e as nacionalidades destas pessoas. Só estamos tentando mantê-las vivas. Cuidaremos da papelada mais tarde.
- Havia uma funcionária minha designada para...
- Sinto muito! Não pense que estou sendo negligente, mas não posso ajudá-lo! Entendeu?
- Ela sabia como evitar insolação e desidratação.
- Ótimo. Agora, até logo.
- Ela estava trabalhando no setor 53.
- Acho que o senhor não vai querer saber o que houve no setor 53 - disse o médico, voltando a cuidar de seu paciente.
- O que houve?
- Muitas vítimas de raio. Houve uma descarga elétrica muito grande lá.
- Para onde as vítimas foram transportadas?
O médico não queria mais conversar com David. Ele fez um gesto para um assistente.
- Conte a ele.
O jovem falou com sotaque francês.
- Para nenhum lugar especial. Algumas vieram para cá. Outras foram tratadas naquele setor. Outras, nas instalações internas.
David deu partida no carrinho de golfe, mas, em seguida, o abandonou e passou a pé pela fila de vítimas. Sua missão era impossível. Como ele poderia identificar alguém ali? Annie estava usando uniforme. Apesar de ter certeza de que a reconheceria, todos os pacientes estavam sob lençóis umedecidos para esfriar o corpo, só com os pés à mostra. Ele teria de olhar o rosto de cada um. E estaria interferindo no trabalho dos médicos.
Enquanto caminhava com passos apressados sob o intenso calor, David pegou uma garrafa d'água presa em seu cinto e constatou que ela estava vazia. Ele tinha a garganta seca e sabia que sua sede não agüentaria mais que alguns minutos. Desde quando não tomava um gole d'água? Desde quando não comia? Desde quando não dormia?
Os telões mostravam Viv Ivins, Leon Fortunato e Nicolae Carpathia cumprimentando os peregrinos, murmurando palavras carinhosas, abençoando-os, tocando-os. As ondas de Calor que subiam do asfalto fizeram o uniforme de David grudar em sua pele como se fosse um tecido encharcado. Ele parou e curvou-se para recuperar o fôlego, mas sua garganta parecia inchada, a boca incapaz de produzir saliva, e a traquéia apertada. Tontura. Annie. Sensação de desmaio. Calor. Annie. A cabeça girando. Sede. Mãos vermelhas.
David inclinou-se para a frente; seu quepe escorregou e caiu. Sua mente dizia para pegá-lo, mas as mãos pareciam grudadas nos joelhos. Não caia! Não caia! Mas ele não podia fazer nada. Seus braços não se moviam. Seu rosto seria o primeiro a bater no chão. Não, ele protegeria o queixo.
David caiu de cabeça no chão. O asfalto irregular arrancou-lhe um chumaço de cabelos. Ele fechou os olhos imaginando a dor que sentiria e enxergou listras brancas dançando à sua frente. Ainda com as mãos nos joelhos e as nádegas para cima, ele rolou lentamente de lado e caiu sobre o quadril. Ao abrir os olhos, viu sangue pingando de seu rosto e coagulando rapidamente até formar uma poça no asfalto quente. Ele tentou movimentar-se, falar. De repente, tudo escureceu à sua volta, e ele só conseguiu pensar que seria o próximo a entrar na longa fila das vítimas.


- Quer que eu assuma o comando enquanto você faz a ligação? - perguntou Albie.
- Acho que é melhor - disse Rayford.
Eles trocaram de lugar, e Rayford discou para o número de Hattie. Ela atendeu sussurrando, com voz rouca, assustada, logo após o primeiro toque.
- Rayford, onde você está?
- Não posso dizer Hattie. Fale comigo. Onde você está?
- Colorado.
- Seja mais específica.
- Pueblo, no extremo norte, acho.
- A CG encontrou você?
- Sim. E eles vão me mandar de volta para o Presídio da Bélgica.
Rayford permaneceu calado.
- Não me deixe pendurada na linha, Rayford. Já fomos longe demais.
- Hattie, não sei o que dizer.
- O quê?!
- O que você quer que eu faça?
- Venha me buscar! Não posso voltar para a Bélgica. Vou morrer lá.
- E o que você espera que eu faça?
- A coisa certa, Ray.
- Em outras palavras, arruinar minha vida e expor o Comando...
Clique.
Rayford não sabia dizer se ela desligou por ter-se sentido insultada ou porque ouvira alguém se aproximando. Ele contou a Albie o teor da conversa.
- O que você vai fazer, meu amigo?
Rayford encarou Albie sob a iluminação fraca do painel de instrumentos e sacudiu a cabeça.
- Essa mulher não pára de nos causar sofrimento. - Mas você se preocupa com ela. Já me contou.
- Contei?
- Timtim por tintim. Talvez tenha sido Mac.
- Mac não conhece Hattie.
- Mas conhece você, e vocês dois costumavam conversar, não?
Rayford assentiu com a cabeça.
- Sabemos que ela saiu do PRFB e achamos que...
- PRFB?
- Presídio de Reabilitação Feminina da Bélgica.
- Ah, agora me lembro.
- Nós sabíamos que eles esperavam que ela os levasse até nós durante a festa de gala em Jerusalém, mas...
- Com licença, Rayford, mas você quer que eu pegue a rota para sobrevoar a antiga casa secreta ou vamos direto a Palwaukee?
- Depende. Eu preciso decidir se vou ou não ao Colorado.
- A escolha é sua, mas, se me permite dizer, eu esperava que você fosse mais decidido. Eu estou representando o papel de uma autoridade, mas pareço ser mais líder que você. Sei que seu pessoal o admira e o respeita.
- Eles não deveriam. Eu...
- Você fez as pazes com eles, Rayford. Eles o perdoaram. Voltou a ser o líder deles. O que você vai fazer a respeito de Hattie Durham? Decida-se. Diga-me o que vai fazer, diga ao pessoal do Edifício Strong e vá em frente.
- Eu não sei, Albie.
- Você nunca vai saber. Analise as opções, pese os prós e os contras e tome uma decisão. A antiga casa secreta fica a dez minutos daqui. Comece com uma pequena decisão.
- Vamos até lá para dar uma olhada.
- Melhor para você, Rayford.
- Não queira bancar o chefe, Albie. Estamos dentro de um helicóptero da CG. Ninguém vai suspeitar de nós.
- Mas você tomou uma decisão. Agora pense alto a respeito de outra mais importante. Vamos ao Colorado?
- Conforme eu estava dizendo, em vez de levar a CG até nós, ela foi para lá. A família dela morreu, mas talvez ela tenha imaginado que reencontraria alguns amigos no Colorado. Quem sabe? Não sei dizer se ela confundiu o pessoal da CG por ter dado uma tacada de gênio ou por pura sorte, mas estou inclinado a acreditar na última hipótese.
- Quer dizer que ela pode estar levando vocês até eles e não o contrário.
Rayford virou-se para o outro lado e olhou pela janela, orando silenciosamente. Fazia poucos anos que sua paixão por Hattie Durham quase lhe custara o casamento. Ele assumiu toda a culpa, mas desde então ela só se meteu em confusões. Ele e os outros membros do Comando Tribulação demonstraram carinho por ela e a aconselharam, deram-lhe abrigo e insistiram para que aceitasse a Cristo. Mas ela não se deixou persuadir e tanto fez que quase comprometeu a segurança do Comando Tribulação. Pelo que ele sabia, a CG descobriu a casa secreta por causa de Hattie. O telefone de Rayford tocou.
- Hattie?
- Ouvi passos. Eles me colocaram em um quartinho dentro de um esconderijo que fica a uma hora de distância ao sul de Colorado Springs.
- Estou muito longe daí.
- Oh, obrigada, Rayford. Eu sabia que podia contar...
- Eu ainda não decidi o que vou fazer, Hattie.
- Claro que decidiu. Você não vai me deixar aqui para ser mandada de volta à prisão ou coisa pior. O que eu preciso fazer ? Prometer que vou me converter?
- Só se você estiver sendo sincera.
- Se você não vier me buscar, pode dar adeus a essa idéia.
Rayford desligou o telefone e suspirou fundo.
- Que idiota!
- Ela? - perguntou Albie. - Ou você por estar imaginando coisas?
- Ela! Está na cara que a CG quer atrair um de nós para lá. Assim que eles me pegarem, vão me obrigar a fornecer informações sobre o resto do Comando Tribulação. Quem eles realmente querem é Tsion. O resto de nós só serve para perturbá-los. Tsion é o inimigo.
- Quer dizer que você tem de escolher entre essa tal Srta. Durham e Tsion Ben-Judá? Quer meu voto?
- Não é assim tão fácil. Queremos que ela aceite a Cristo, Albie. É verdade. Todos nós queremos.
- E você acha que, se a abandonarem agora, ela nunca vai se converter?
- Foi o que ela disse.
- Talvez o que vou dizer pareça frio demais, e admito que sou novato nesse assunto, mas a escolha é dela, não? Você não pode tomar uma decisão por ela.
- Se eu for até lá, vai ser a coisa mais estúpida que já fiz. Eles a pegaram, prenderam, ameaçaram mandá-la de volta à prisão, mas deixaram que ela ficasse com um telefone na mão.
Albie esquadrinhou o horizonte.
- Então, a decisão é fácil.
- Eu gostaria que fosse.
- E é. Ou você decide que não vai ou analisa todas as possibilidades.
- Como assim?
- Há uma coisa de que você se esqueceu. Talvez duas.
- Diga.
- Incumba David de descobrir exatamente onde eles a prenderam e peça-lhe que envie uma ordem de um comandante qualquer para manter Hattie lá até aviso posterior. Aí, você liga para ela e diz que não vai até lá. Diga isso de maneira que ela ou quem estiver ouvindo acredite. De repente, você aparece e faz um ataque de surpresa, no momento em que tanto ela quanto a CG pensam que você a abandonou.
Rayford mordeu o lábio.
- Talvez fosse melhor você ser o líder do Comando Tribulação. Mas esse ataque de surpresa não significa que vou ter êxito. É bem provável que eles me matem ou me prendam.
- Existe uma segunda possibilidade.
- Continuo ouvindo.


- Senhor? Diretor? O senhor está bem?
- Ele está inconsciente.
- Os olhos dele estão abertos, doutor.
- Ele caiu de ponta-cabeça no chão, feiticeira.
- Eu já lhe pedi para não me chamar de...
- Desculpe-me. Não sei se você já cuidou de feridos na guerra, mas este aqui não conseguiu se segurar para não cair. Ele nem sequer poderia fechar os olhos, mesmo que quisesse.
- Ajude-me a colocá-lo na...
- Lá vem você de novo, meu bem. Não sou um serviçal.
- E lá vem você de novo, doutor! Podemos deixá-lo aqui sangrando até morrer ou posso fazê-lo lembrar que o número de pacientes é maior que o número de atendentes.
A língua de David estava inchada, e ele não podia articular as palavras. Ele só queria pedir água, mas sabia que sua cabeça também necessitava de cuidados.
- Borrifador! - gritou a enfermeira de pele morena, e alguém entregou-lhe um frasco. Ela borrifou água morna diretamente no rosto de David. Mas ele não conseguiu piscar. Comparada ao calor do asfalto, que ele calculou estar a quase 50° C, a água parecia gelada. Algumas gotas molharam-lhe a boca e ele ofegou, tentando sorvê-las.
O médico e a enfermeira o viraram cuidadosamente de costas. Em sua mente, ele continuava com os olhos semicerrados sob o sol escaldante, mesmo sabendo que eles estavam arregalados e ardendo. Ele queria pedir mais uma borrifada, mas sentia-se paralisado. A enfermeira colocou carinhosamente o quepe sobre seu rosto. Ele tentou não se mover para manter o quepe no lugar.
Se conseguisse falar, ele perguntaria por Annie, mas não linha condições. Ela devia estar em algum lugar à procura dele.
Quando David foi transportado para uma maca de lona, 0 quepe escorregou de seu rosto. Ele conseguiu piscar e, em breve, estava sob a sombra de uma tenda abarrotada de gente. Alguém o colocara no último fio de sombra que restava.
- Estado crítico? - perguntou alguém.
- Não - respondeu o médico. - Mas é melhor suturar logo a cabeça dele.
A primeira picada de injeção no couro cabeludo fez seu corpo inteiro sacudir e estremecer, mas ele ainda não conseguia gritar. Em questão de segundos, o topo da sua cabeça estava completamente anestesiado.
- Você pode fazer isso? - perguntou o médico.
- Não vai ficar igual a uma cirurgia plástica, vai?
- Passe o fio como se fosse amarrar uma bola de futebol. Tanto faz. Ele sempre vai poder usar um chapéu.
Na verdade, David não se importava com a aparência de sua cabeça, e isso foi bom, porque a enfermeira raspou rapidamente uma parte de cada lado do corte, borrifou mais água nele, e começou a tirar uma enorme agulha da embalagem.
- Es... tou... mal? - ele perguntou, com a língua enrolada.
- Você vai sobreviver - ela respondeu. - O ferimento foi superficial, embora tenha atingido o crânio. Foi arrancada uma boa parte de carne de cima do osso. Pelo menos uns 12 centímetros, na parte lateral da cabeça.
- Á...gua.
- Não entendi.
- Um... pouco.
Ela tirou rapidamente a tampa do borrifador, que ainda continha um pouco de água.
- Aqui está.
A maior parte escorreu pelo pescoço de David, mas serviu para soltar sua língua.
- Procurando cabo Christopher - ele disse.
- Não o conheço - ela disse. - Não se mexa.
- É ela. Annie Christopher.
- Diretor, tenho apenas cinco minutos para cuidar do senhor. Se o senhor tiver sorte, vou encontrar um soro intravenoso e reidratá-lo. Mas, enquanto eu estiver fazendo a sutura, o senhor não pode abrir a boca nem se mexer, senão vai ficar com uma aparência horrível.


-Você está vendo o mesmo que eu? - perguntou Albie, semicerrando os olhos. Rayford acompanhou o olhar dele e foi tomado pela emoção. Uma coluna negra de fumaça de vários metros subia em direção ao céu.
- É a sua casa? - ele perguntou. Albie assentiu com a cabeça. Só pode ser.
- Aproxime-se o mais que puder - disse Rayford. - Aquela casa foi o meu lar por um longo tempo.
- Está bem. Agora, você vai usar todas as possibilidades disponíveis? Ou será que perdi dinheiro com este uniforme e com todas estas credenciais?

TRÊS

Buck despertou ao meio-dia, horário de Chicago, sentindo-se com o dobro de sua idade. Como acontecia desde o dia do Arrebatamento, ele sabia exatamente onde estava. No passado, era comum acordar em uma cidade estranha e ter de lembrar-se de onde estava, quem era e o que fazia ali. Agora não. Mesmo exausto, ferido e quase sem condições de raciocinar, o instinto de preservação, mantinha bem ativa sua mente outrora tão desligada.
Havia dormido um sono profundo, mas, assim que abriu os olhos e olhou para o relógio, ele sabia onde estava. Tudo fazia sentido de uma forma absurda. Buck olhou para a parede perto do elevador de um arranha-céu bombardeado da cidade de Chicago, ouviu vozes abafadas vindas do outro lado do corredor e sentiu cheiro de café e de bebê. Kenny tinha um cheiro próprio - cheirinho de bebê misturado com talco -, do qual Buck se lembrava com saudades quando estava longe de casa.
Mas Kenny estava mesmo ali, e era mantido afastado das janelas dos corredores por onde penetravam os raios de sol do meio-dia. Buck deitou-se de costas e levantou um pouco o corpo apoiando-se nos cotovelos. Aparentemente, Kenny desistira de tentar pular a barreira improvisada que o protegia e contentou-se em brincar com o cordão solto de um de seus sapatos.
- Ei, Kenny Bruce - sussurrou Buck. - Venha aqui com o papai.
Kenny levantou a cabeça, apoiou-se nos pés e nas mãos para erguer o corpo e caminhou com passos vacilantes até a cama.
- Pa-pá - ele disse.
Buck estendeu as mãos para pegá-lo, e aquela criaturinha gorducha subiu em cima dele e deitou-se sobre seu corpo. Buck deixou a cabeça cair sobre o travesseiro e passou os braços ao redor de Kenny. O garoto raramente tinha paciência para ficar descansando nos braços do pai, mas agora parecia estar pronto para tirar um cochilo. Buck gostaria de ficar deitado ali para sempre, sentindo as batidas do pequenino coração do bebê em seu peito.
- Pa-pá tchau? - disse Kenny, e Buck não conseguiu conter as lágrimas.


Rayford havia tomado uma decisão, ou melhor, várias. Depois de ver a antiga casa secreta totalmente destruída pelo fogo, ele instruiu Albie a retornar para Kankakee, onde eles pegariam o caça da CG rumo ao Colorado.
- Agora estou gostando de ver, capitão - disse Albie.
- Gostando de ver o quê? - resmungou Rayford. - Acho que estou levando nós dois para a morte.
- Você está fazendo a coisa certa.
Sem conseguir falar com David em Nova Babilônia, Rayford deixou um recado pedindo que ele lhe telefonasse de volta e informou a localização exata de Hattie. Disse também que, caso sua missão fracassasse, David deveria informar ao pessoal da CG para manter Hattie lá até que alguém autorizado fosse buscá-la.
David tinha condições de burlar outros sistemas da CG e enviar essas ordens de forma que eles não pudessem saber de onde partiram. Ele era o único responsável pelos códigos de segurança que mantinham essas transmissões fora do alcance dos "inimigos da Comunidade Global". Portanto, ele podia usar os canais sem ser detectado. "Assim que você puder", Rayford gravou na secretária eletrônica particular de David, "ligue para Albie ou para mim confirmando que preparou o caminho para nós."
Dentro de pouco tempo, Rayford teria de transmitir sua fotografia a David, com sua nova aparência e nome, para que o jovem israelense pudesse "alistá-lo" também nas Forças Pacificadoras da Comunidade Global. Enquanto isso, ele e Albie pousariam na antiga Base Peterson da Força Aérea, pegariam um jipe que David reservaria para eles, seguiriam suas instruções para chegar ao tal esconderijo e libertariam a prisioneira.
Enquanto Albie retardava o pouso para deixar o tanque do caça quase vazio, Rayford cochilou mais de duas horas. Albie o despertou para dizer-lhe que David ainda não dera notícias.
- Isso não é bom sinal - disse Rayford, fazendo outra ligação para Nova Babilônia. Ninguém atendeu. - Você tem um computador, Albie?
- Tenho um subnotebook, que pode ser conectado a satélite.
- Programado para comunicar-se com David?
- Se você souber quais são as coordenadas, posso dar um jeito.
Rayford encontrou o computador na sacola de vôo de Albie.
- As baterias estão fracas - ele disse.
- Ligue o computador na tomada do avião - disse Albie. -Eu não costumo usar baterias de longa duração.
- Não desligue os motores depois que pousarmos - disse Rayford. - Isso aqui pode demorar um pouco.
Albie fez um movimento afirmativo com a cabeça e comunicou-se por rádio com o posto da CG.
- CG NB4047 chamando Torre Peterson.
- Você devia saber que o nosso nome mudou para Memorial a Carpathia - foi a resposta.
- O erro foi meu, torre - disse Albie. - É a primeira vez que venho para cá depois de muito tempo.
Albie piscou para Rayford, que tirou os olhos do computador. Albie nunca esteve nos Estados Unidos antes.
- Vamos ter de tirar o Memorial do nome, não é verdade, 4047?
- Como assim?
- Ele ressuscitou.
Albie olhou com ar maroto para Rayford.
- Ah, sim, fiquei sabendo. Que coisa boa, não?
- Você devia responder dizendo assim: "Ele ressuscitou verdadeiramente."
Rayford fez um gesto como se estivesse enfiando o dedo na garganta. Albie sacudiu a cabeça.
- Eu acredito nisso, torre - ele disse, olhando para Rayford.
- Viagem de negócios?
- Subcomandante em missão confidencial.
- Nome?
- Marcus Elbaz.
- Um momento.
- Estou com pouco combustível, torre.
- Estamos com pouco pessoal aqui, comandante Elbaz. Aguarde só um minuto.
- Vamos pousar de qualquer maneira - disse Albie a Rayford, que estava atarefado captando detalhes para conectar o computador a um satélite que o ligaria diretamente com o computador de David.
- Tudo bem, senhor - disse a torre. - Seu nome aparece no sistema.
- Positivo.
- Mas o senhor não foi autorizado a fazer esta rota. Esteve em Kankakee?
- Eu vim de lá.
- E tem negócios aqui?
- Repito, missão confidencial.
- Oh, sim, sinto muito. O senhor necessita de mais alguma coisa?
- Reabastecer e ter um veículo pronto para rodar.
- Conforme eu lhe disse, senhor, não temos esse tipo de serviço aqui. Podemos reabastecer sua aeronave sem problemas mediante código de autorização. O transporte por terra está escasso.
- Pensei que você poderia dar um jeito.
- Estamos com falta de pessoal e...
- Você já disse isso.
- ... e francamente, senhor, não há ninguém aqui com patente semelhante à sua.
- Espero, então, que alguém que esteja no comando obedeça minhas ordens e consiga um veículo.
Uma longa pausa.
- Vou... hã... passar suas ordens adiante, senhor.
- Obrigado.
- E o senhor está autorizado a pousar.


David despertou no hospital do palácio. Sua cabeça latejava tanto que ele mal conseguiu abrir os olhos. Em seu quarto havia dois outros pacientes dormindo. Alguém tirara-lhe as roupas e o vestira com uma camisola de tecido fino. Ele tinha uma agulha espetada na mão, ligada ao soro intravenoso. Com muito esforço, conseguiu pegar seu relógio que estava na mesinha ao lado da cama e segurou-o diante de si com os olhos turvos. Nove horas da noite! Não podia ser.
Ele tentou sentar-se e percebeu que havia bandagens ao redor de sua cabeça e das orelhas. Ouvia a própria pulsação e sentia dor a cada batida. Estava escuro lá fora, mas um aparelho de TV, sem som, mostrava imagens dos peregrinos que continuavam no pátio do palácio, ajoelhando-se, curvando-se, adorando, orando diante da gigantesca estátua de Nicolae.
Do outro lado do leito, havia um controle-remoto. David não queria despertar os outros pacientes, mas a legenda na tela estava em árabe. Depois de algumas tentativas, ele conseguiu mudá-la para o inglês e viu que se tratava de letras de canções, enquanto o povo passava lentamente diante da imagem. A câmera recuou para mostrar a imensa multidão, aparentemente tão grande quanto a do funeral. A fila fora do palácio tinha quase dois quilômetros.
David entrou em pânico. Fazia meses que ele não ficava tanto tempo afastado de seu telefone e de seu computador.
Ao esticar o pescoço à procura de um telefone, sentiu uma dor muito forte e foi forçado a deitar-se novamente. Ele puxou um cordão ligado ao posto de enfermagem, mas ninguém apareceu. O número de enfermeiros em relação ao de pacientes era ridiculamente inferior, mas, por certo, os funcionários do hospital sabiam que ele era um diretor. Isso deveria servir para alguma coisa.
A reidratação por meio do soro estava funcionando, e ele precisava urgentemente ir ao banheiro. Não havia nenhum "papagaio" por perto. Ele acionou os controles na lateral do leito até conseguir abaixar uma das grades. Fez uma careta ao virar as pernas de lado, dando uma pausa para acalmar a pulsação rápida e recuperar o fôlego.
Finalmente, conseguiu colocar as duas mãos na beira do leito e pisou no chão. O mármore estava frio demais para seus pés quentes, mas a sensação foi boa. Ele levantou-se com o corpo balançando um pouco por causa da tontura e esperou até equilibrar-se completamente. Assim que se sentiu em condições, deu um passo em direção ao banheiro, mas a agulha espetada em sua mão o fez lembrar que ele ainda estava ligado ao soro intravenoso. Ele recuou e sacudiu a haste de metal presa na parede e no leito, mas, quando tentou arrastá-la, ela ficou presa.
Um fio do monitor estava ligado à parede. Ele tentou puxá-lo, mas não conseguiu desligá-lo nem arrastar a haste de metal. David sabia que deveria haver um truque simples para fazer isso. Talvez estivesse parafusado ao contrário ou precisasse ser arrancado com força ou coisa parecida. Ele só sabia que precisava ir urgentemente ao banheiro. Sentindo uma dor lancinante, arrancou o esparadrapo, tirando junto alguns pêlos da mão. Em seguida, puxou a agulha de uma só vez. A ferroada fez encher seus olhos de lágrimas, e enquanto o soro pingava no chão, ele fez mais urna fraca tentativa para tampar o tubo condutor, amarrou-o e dirigiu-se ao banheiro.
Em questão de segundos, soou um alarme informando o posto de enfermagem que um soro intravenoso havia sido desligado. Depois de usar o banheiro, David abriu a porta do armário. Suas roupas estavam lá, mas o telefone não. Ele quase teve uma vertigem de dor e de medo. Seria o fim? Alguém teria dado retorno às ligações das pessoas do Comando Tribulação que tentaram falar com ele? Será que havia sido descoberto? Deveria encontrar Annie e sair dali? E se ela estivesse morta? Com certeza, ela preferiria vê-lo fugir a arriscar-se em vão para tentar localizá-la.
Não havia nenhuma possibilidade. Ele não partiria sem ela ou sem saber com certeza que estava morta.
- O que o senhor está fazendo fora da cama? - A voz não era de um enfermeiro, mas de uma enfermeira.
- Fui ao banheiro - ele disse.
- Volte para a cama - ela disse. - O que o senhor fez com o soro?
- Eu estou bem.
- Temos "papagaios" e...
- Eu já usei o banheiro. Só quero...
- Fale mais baixo! Todos deste andar conseguem ouvir o que o senhor está dizendo. Seus companheiros de quarto estão dormindo.
- Eu só preciso...
- Senhor, será que vou precisar chamar alguém aqui para amarrar sua boca? Fale baixo!
- Eu estou falando baixo! É que...
De repente, David percebeu que as bandagens sobre suas orelhas o forçavam a falar alto.
- Desculpe-me - ele disse. - Sou o diretor Hassid. Preciso encontrar ...
- Oh! O senhor é o diretor. Foi vítima do raio?
- Sim, fui atingido e bati o topo da cabeça no chão, mas estou aqui.
- O senhor não precisa...
- Desculpe-me. Eu só desmaiei por causa do calor. Estou bem.
- O senhor foi operado. Uma pequena cirurgia. Se o senhor é o diretor, acho que devo dizer a alguém que já voltou a si.
- Por quê?
E por que ela perguntara sobre o raio? Teria Annie sido uma vítima do raio e eles descobriram a ligação que havia entre os dois? Ele não queria perder a noção das coisas.
- Eu não sei, senhor. Só faço o que me mandam. Há seis enfermeiros e dois atendentes cuidando deste andar inteiro. Alguns andares estão com menos funcionários ainda...
- Eu preciso saber onde está meu telefone. Eu o carrego comigo, e não está em meu uniforme. Sei que você vai dizer que devo ficar longe de meu uniforme, mas...
- Ao contrário. O senhor foi lavado com uma esponja quando chegou aqui. Se o seu caso for ambulatorial, acho que pode vestir seu uniforme.
- Você acha?
Aquilo não podia ser verdade. Havia alguma coisa errada. David tinha certeza de que precisaria sair fugido dali, mas agora estava sendo dispensado.
- Vou falar com minha supervisora, mas o senhor pode começar a vestir-se. Pode fazer isso sozinho?
- Claro, mas...
- Então, comece a vestir-se. Eu voltarei logo. Ou ela.
David havia superestimado suas forças. Pegou suas roupas do armário e sentou-se em uma cadeira para vestir-se, mas sentiu falta de ar e tontura, Sua cabeça estava queimando como fogo e parecia que seu ferimento vertia água por cima das orelhas; porém, quando ele passou a mão pela bandagem, constatou que não havia nada. Ele não queria pensar no momento em que a bandagem fosse retirada.
Depois de vestir o uniforme, mas ainda sem meias e sem sapatos, David escancarou a porta para que a luz do corredor iluminasse o quarto. Olhou no espelho e estremeceu de susto. Por ter pele lisa e morena, cabelos e olhos pretos, ele costumava ser confundido com um adolescente, apesar dos seus vinte e poucos anos. De agora em diante, isso jamais aconteceria. Quando foi que ele envelheceu tanto?
Seu rosto estava magro, chupado e sem cor. Ele abaixou a cabeça e viu a bandagem úmida de sangue. A faixa cobria-lhe as orelhas e passava por baixo do queixo, fazendo-o lembrar de personagens de filmes antigos quando tinham dor de dente. A cabeça de David parecia ter inchado sob a faixa apertada. Quando colocou cuidadosamente o quepe na cabeça, ele constatou que o inchaço era real. Não era possível saber qual a espessura das bandagens, mas o quepe havia ficado pequeno demais. Suas tentativas de esconder os pontos para não chamar a atenção dos outros também não surtiram efeito. Talvez ele conseguisse encontrar um quepe maior - bem maior -, mas seria impossível esconder a faixa que passava por baixo de seu queixo.
A supervisora da equipe de enfermagem bateu delicadamente na porta e entrou enquanto David calçava as meias. Ela era loira, alta e magra, aparentando ter o dobro da idade dele. O esforço era muito grande, e ele teve de endireitar o corpo várias vezes e respirar fundo para aliviar um pouco a dor.
- Deixe-me ajudá-lo - disse a supervisora, com acentuado sotaque escandinavo.
Ela ajoelhou-se no chão, ajudou-o a calçar as meias e os sapatos, e os amarrou. David estava tão acabrunhado pela dor que quase chorou. Seria ela cristã? Ele sentiu vontade de perguntar. Uma pessoa com um espírito tão serviçal como o dela devia ser cristã ou estar prestes a converter-se.
- Senhora... - ele disse, tentando falar baixo.
A supervisora levantou a cabeça, e ele olhou para a testa dela na esperança de ver o selo dos crentes. Não viu nada.
- Obrigado.
- Não há de quê - ela disse rapidamente. - Estou feliz por ajudar e gostaria de poder fazer mais alguma coisa pelo senhor. Por mim, o senhor ficaria pelo menos mais dois dias conosco.
- Preciso ir embora logo. Eu...
- Oh, eu sei disso. Ninguém quer ficar aqui, e quem pode censurar, depois de toda aquela euforia da ressurreição? Mas o potentado convocou uma reunião de seus diretores e assessores diretos às 22 horas, em seu escritório. O senhor deve comparecer.
-Eu?
- O pessoal dele ficou sabendo que o senhor desmaiou por causa do calor, sofreu alguns ferimentos e foi operado. Fomos informados de que, se seu caso fosse ambulatorial, o senhor deveria comparecer.
- Entendo.
- Ainda bem que alguém entende. Na condição de paciente, o senhor não deveria ficar andando por aí tão cedo...
- Disseram-me que a cirurgia foi superficial, simples.
- Uma cirurgia simples em outro paciente seria considerada uma operação grave. 0 senhor sabe disso, tenho certeza. Sabe que a enfermeira fez o que pôde e, por mais eficiente que seja, ela foi pressionada pela correria...
- A senhora sabe quem é ela? Tenho certeza de que era estrangeira...
- Hannah Palemoon - disse a supervisora.
- Eu gostaria de saber se ela pegou meu telefone. Estava em meu...
- Duvido, diretor. O senhor vai encontrar sua carteira, chaves e identidade intactas. Sabemos muito bem que não devemos mexer nas coisas de alguém de seu nível.
- Eu agradeço, mas...
- Ninguém pegou seu telefone. Será que ele não caiu em algum lugar ou foi deixado em seu veículo?
David ergueu a cabeça. Talvez. Mas ele não estava falando ao telefone quando caiu e, pelo que se lembrava, o aparelho não saiu de seu bolso.
- Onde posso encontrar a enfermeira Pale...
- Eu já lhe disse, diretor. A enfermeira não pegou seu telefone, e eu não vou dizer onde ela se encontra. Nosso turno é de 24 horas de trabalho e 24 horas de folga. Ela está descansando. E, se for igual a mim, dorme durante as primeiras 12 horas de folga e tem esse direito.
David assentiu com a cabeça, porém mal podia esperar para ligar seu computador e verificar a lista dos funcionários.
- Senhora, estou preocupado com uma funcionária e preciso encontrá-la. O nome dela é Annie Christopher. É chefe do serviço de carga do Fênix, mas hoje foi designada para tomar conta do povo no setor 53.
- Houve problemas lá.
- Ouvi dizer. Por causa do raio?
- Exatamente. Vários mortos e feridos. Eu posso ver se ela consta de nosso sistema. O senhor pode verificar no necrotério. David estremeceu.
- Eu gostaria que a senhora verificasse seu sistema.
- Pois não, senhor. Depois disso, é melhor o senhor voltar para seus aposentos e descansar um pouco antes da reunião. O senhor sabe tão bem quanto eu que não tem condições de ficar sentado diante de uma mesa, por mais emocionante que seja encontrar-se com um homem que estava morto hoje de manhã e agora está vivo. Venha comigo.
Ela o conduziu ao posto de enfermagem e consultou o computador.
- Não há ninguém chamado Christopher - ela disse -, mas o nosso sistema está muito lento.
- Ela devia estar usando o crachá de funcionária - disse David.
- Talvez tenha sido roubado.
- Será que ela está no necrotério? - ele perguntou, tentando disfarçar a emoção.
- Veja o lado bom das coisas - disse a supervisora. - Talvez não tenha acontecido nada com ela.
Essa hipótese também não agradou a David. Por que não conseguiu falar com Annie, e por que ela não tentou ligar para ele? Talvez tivesse tentado. Ele precisava encontrar o telefone antes da reunião.


- Nada - disse Rayford. - Faz horas que David não liga o computador, e o telefone dele não responde. Agora, não consigo mais deixar recado. Parece que ele desligou o telefone.
- Estranho - disse Albie. - O pessoal de Pueblo não sabe que estamos indo para lá.
- Não vai adiantar nada se não soubermos onde fica o tal lugar.
- Vamos descobrir.
- Você é um sujeito determinado, Albie, mas...
- Eu adoro o impossível. Mas o chefe é você. Preciso de sua permissão.
- Qual é seu plano?
- Verificar se sua nova cara e nova identidade vão funcionar.
- Oh, não.
- Vamos, homem. Seja confiante.
- Qual é o plano, Albie?
- Lá embaixo, vou usar minha patente. Vou pôr a culpa na demora do computador por causa de toda aquela euforia em Nova Babilônia ou por incompetência de alguém. Quem pode contestar? Você está comigo. Se exigirem sua identidade, você mostra. De agora em diante, você não é mais civil. É um recruta, um estagiário.
- Tudo bem.
- Além de insistir para ter um carro, vou extrair deles o local do esconderijo.
- Quero ver para crer.
- Eu adoro fazer demonstrações. Rayford desligou o computador de Albie.
- Então, me conte.


Kenny Bruce tentava puxar Buck para perto da barreira, como se soubesse que seu pai poderia ajudá-lo a passar por cima dela. Mas Buck não conseguia sair da cama. Sentia-se como se tivesse sobrevivido a um acidente de avião. Sua espinha estava travada. Cada músculo, osso, junta e tendão doía. Ele sentou-se tentando reunir forças para levantar-se e ir ao encontro de Chloe e das outras pessoas.
Kenny, aparentemente conformado, subiu no colo do pai e segurou-lhe o rosto com as duas mãos. Olhou dentro dos Olhos de Buck e disse:
- Mamã?
- Vamos ver a mamãe daqui a pouco, querido - disse Buck. Kenny passou o dedo gorducho nas cicatrizes do rosto de Buck. - Estas marcas não incomodam você, não é mesmo, meu camarada?
- Pa-pá - ele disse. - Mamã.
Buck conseguiu levantar-se e carregou Kenny. O garoto passou as pernas e os braços ao redor do pai e encostou a cabeça em seu peito.
- Eu gostaria de levar você a todos os lugares aonde vou - disse Buck, mancando por causa da perna que não dobrava.
- Mamã, pa-pá.
- Estamos indo, meu camarada.
Buck preparou-se para ouvir as brincadeiras de sempre por ser a última pessoa a levantar-se, mas, quando se aproximou do pessoal, ninguém notou sua presença. Leah estava sentada de costas para a parede, vestida com um roupão e cochilando. Seus cabelos loiros tingidos, com raízes avermelhadas, estavam enrolados em uma toalha. Chaim olhava para a mesa diante dele, com a cabeça apoiada nas mãos. Em sua xícara de café, havia um canudinho. Tsion, em pé ao lado de uma janela, mas tomando cuidado para não ser visto do lado de fora, orava silenciosamente com a cabeça baixa.
Chloe andava de um lado para o outro, com o fone colado ao ouvido, chorando. Ela olhou para Buck dando a entender que o viu chegar. Quando Kenny tentou descer do colo do pai para correr até ela, Buck cochichou:
- Fique mais um pouco com o papai, está bem?
Chloe estava dizendo:
- Eu entendo, Zeke... Eu sei, querido, eu sei. Deus sabe... Tudo vai dar certo. Vamos buscar você, não se preocupe... Zeke, Deus sabe... Só depois que escurecer, mas tenha forças, ouviu?
Quando Chloe desligou, todos olharam para ela.
- O Zeke Grande foi preso - ela disse.
- O Zeke pai? - perguntou Tsion.
Zeke Jr. era muito maior que o pai, mas os dois eram conhecidos por Zeke Grande e Zeke Pequeno. Chloe assentiu com a cabeça.
- O pessoal da CG o prendeu esta manhã. Ele foi algemado e acusado de subversão.
- E não pegaram o Zeke Jr.? - perguntou Buck, colocando Kenny no chão?
- Zeke! - disse Kenny, rindo. Chloe deu de ombros.
- O esconderijo deles é bem mais protegido que o nosso, e acho que o Zeke Pequeno nunca sai de casa.
- Zeke! - repetiu Kenny.
- O Zeke Pequeno vem para cá? - perguntou Leah.
- Para onde mais ele iria? A CG está vigiando o local, inquirindo as pessoas que param lá para abastecer o carro.
- Como ele sabe?
- Ele tem um monitor improvisado para vigiar o pai. Foi por isso que ele ficou sabendo que o Zeke Grande foi preso. Ele sabe que seu pai não vai entregá-lo, mas sabe também que não pode mais ficar lá. Ele está empacotando suas coisas.
- É verdade - disse Buck. - Ele deve estar pegando todos os arquivos e aquela parafernália para falsificar documentos antes que a CG descubra tudo.
- Será bom que ele venha para cá - disse Tsion. - Ficará protegido e poderá ajudar muita gente. Cameron, como você está se sentindo?
- Aparentemente, melhor que Chaim. Chaim levantou a cabeça e tentou sorrir.
- Eu vou ficar bem - ele disse entre os dentes por estar com a mandíbula amarrada. - Não tenho tempo a perder. Estou ansioso para estudar e aprender.
Tsion afastou-se da janela.
- Arranjei um aluno que não pode falar. Você precisa ouvir e ler. Vai conhecer a fundo o nosso povo antes que imagina. O povo escolhido de Deus. Estou emocionado diante dessa perspectiva. Vou usar o mesmo material de minhas aulas pela Internet, nas quais exponho Carpathia como o anticristo.
- Você vai direto ao assunto, não é verdade? - disse Buck.
- Perfeitamente - disse o rabino. - O desafio está lançado, conforme vocês costumam dizer. Não há mais dúvidas sobre ele, nem deveria haver. Estou convencido de que Leon é seu falso profeta, e vou dizer isso também. Aqueles que têm ouvidos para ouvir não serão enganados. Não demorará muito para que a besta possuída por Satanás derrame toda a sua ira contra os judeus.
Chaim levantou a mão. Buck quase não conseguiu entender a pergunta feita com esforço, com voz abafada.
- E o que vamos fazer? - Chaim perguntou. - Não somos páreo para ele.
- Você verá, meu amigo - disse Tsion. - Vai aprender hoje a história dos judeus e seu futuro. Deus protegerá seu povo, agora e para sempre.
- Estou gostando de ser crente - Chaim conseguiu dizer,
- Buck - disse Chloe, aproximando-se dele e o abraçando, temos de planejar o resgate de Zeke.
- Só me faltava esta. Outra missão.
- Você dormiu, não?
- Como um anjinho.
- Não diga.
- Bem...
- Ou você ou eu, companheiro - disse Chloe. - Se você precisar de mais um dia para descan...
- Estou pronto - disse Buck.
- Eu posso ajudar - interpelou Leah. - Estou bem.
- Talvez vocês dois - disse Chloe. - Tenho de contar as novidades ao pessoal da cooperativa, incentivar todos a trabalharem juntos.
- Vamos precisar de um piloto - disse Buck. - Descer com um helicóptero da CG no meio dos guardas que estão vigiando o local e dar uma bronca neles por terem deixado um suspeito lá. Prendemos Zeke Jr. e o trazemos para cá. E então? O que vocês acham de meu plano?
- Não vamos ter nenhum helicóptero aqui esta noite, querido - disse Chloe. - Talvez só amanhã à noite, e não podemos arriscar fazendo Zeke aguardar tanto tempo.
- Onde está o helicóptero? E seu pai? E Albie?

QUATRO

David correu até seu escritório e ligou para Annie. Ninguém atendeu. Em seguida, ligou para o setor de veículos motorizados. O homem que lhe trouxera o carrinho de golfe estava de folga, e o que atendeu o telefone disse:
- Não, senhor, não encontramos nenhum telefone. Não havia nada lá. Encontramos o carrinho vazio. Meu chefe ficou furioso e só se acalmou quando soube que o senhor foi levado para o posto de atendimento médico. O senhor está bem?
-Sim.
- Precisa do carrinho?
- Não.
- Há alguma coisa que eu possa fazer pa...
Mas David já havia desligado. Ele abriu seu computador e viu mensagens urgentes piscando e mostrando palavras e números em códigos usados por seus companheiros do Comando Tribulação. Ele teria de ligar para eles o mais rápido possível, mas por ora, antes daquela reunião diabólica, precisava recuperar seu telefone e descobrir o paradeiro de Annie.
O relógio de David marcava 21h35. Ele acessou o banco de dados da CG e clicou em Funcionários, Setor Médico, Enfermagem, Sexo Feminino, Letra P. Lá estava: "Palemoon, Hannah L., quarto e ramal 4223. Uma voz sonolenta atendeu após o quinto toque.
- Enfermeira Palemoon? - ele perguntou.
- Sim, quem é?
- Desculpe-me por ligar a esta hora e peço que me perdoe por acordá-la, mas...
- Hassid?
- Sim, desculpe-me, mas...
- Seu telefone está comigo.
- Oh, graças a De... Que bom! Ele está ligado?
- Não, eu o desliguei. Você vem buscá-lo ou posso voltar a dormir?
- Posso ir até aí? Se você não se importar, eu...
- Tenho uma coisa para lhe mostrar.
O que estaria acontecendo? Alguém lhe preparara uma armadilha? Por que ela concordou que ele fosse buscar o telefone? E por que o telefone ficou com ela? A título de precaução, ele acionou o computador para desligar o dispositivo de escuta, instalado do lado de fora do quarto dela, que poderia gravar a conversa entre eles.
Assim que desligou o programa, ele viu novamente o sinal de mensagens urgentes piscando na tela. Rayford e Albie deviam estar desesperados, tentando falar com ele. David não tinha tempo para dar retorno às ligações, mas e se eles tivessem notícias de Annie? Seria melhor dar uma espiada nas mensagens.
Os pedidos dos dois o deixaram atordoado. Não havia mais tempo de ajudar Rayford e Albie no Colorado, mas David começou a digitar rapidamente. Sua cabeça doía, o ferimento umedecia a bandagem, e seus olhos piscavam nervosamente. Ele digitou os números que invalidavam os códigos de segurança das Forças Pacificadoras. Sob o nome falso de um comandante de alto nível baseado em Nova Babilônia, David autorizou Marcus Elbaz a pousar no Campo de Aviação Memorial a Carpathia, em Colorado Springs. Também o autorizou a apropriar-se temporariamente de um veículo para capturar uma fugitiva do Presídio de Reabilitação Feminina da Bélgica, atualmente presa em um esconderijo no extremo norte de Pueblo. Depois de digitar mais alguns códigos, ele descobriu o local exato do esconderijo e o nome do subdiretor encarregado - Pinkerton Stephens. Felizmente, a patente de Stephens era inferior à do subcomandante Elbaz.
David decidiu que informaria posteriormente o nome, a patente e o número de série para Rayford usar, esperando que os dois já tivessem conseguido passar pela CG. Eram 21h50 - Hannah Palemoon estava aguardando, e ele não podia chegar atrasado à grande reunião. Se ele estivesse bem de saúde e em boa forma física, seria fácil correr até o quarto dela, pegar seu telefone e chegar ao escritório de Carpathia antes do início da reunião. Mas, ferido como estava, seria muito difícil.
Ele poderia ligar para Fortunato na última hora e explicar que chegaria alguns minutos atrasado por ter acabado de sair do hospital. Porém, não queria perder nada do que seria discutido naquela reunião. Assim que fechou a porta de seu quarto e começou a caminhar em direção ao elevador, ele cambaleou e precisou apoiar-se na parede. Respire fundo, ele disse a si mesmo. É preferível chegar atrasado a não chegar.


.
- Pegue o meu barbeador - disse Albie. - Não posso me apresentar com a barba por fazer.
- Faltam apenas alguns minutos para pousarmos - disse Rayford.
- Eu tenho um co-piloto, não tenho?
Rayford pegou o barbeador elétrico de Albie na sacola e assumiu o comando, enquanto Albie barbeava-se e ajeitava o nó da gravata. Quando o controle de terra confirmou o pouso, Albie respondeu. Em seguida, arrancou os fones de ouvido e colocou o quepe. No momento em que eles desembarcaram, Rayford surpreendeu-se mais uma vez com Albie. Aquele homem pequenino do Oriente Médio parecia mais alto, mais imponente.
- Vou mostrar-lhe onde fica o local de reabastecimento para que o senhor possa encher o tanque antes de decolar, comandante Elbaz.
- Você não pode fazer isso para mim enquanto tomo algumas providências?
- Lamento muito, senhor, estamos com falta de funcio...
- Eu sei. Vá em frente.
Rayford caminhava um passo atrás de Albie enquanto eles se dirigiam ao escritório. Ele esperava que David o alistasse nas Forças Pacificadoras da CG com uma patente mais alta. Como ele poderia supervisionar um homem com patente mais alta que a sua?
O funcionário da recepção cumprimentou-os e disse:
- Eu informei à chefia que seu nome não consta de nosso computador, portanto não temos veículo para fornecer-lhe. Porém, se o senhor me der o número do pedido para reabastecimento, posso liberar...
- Como assim? - disse Albie.
- O senhor vai ter de cuidar sozinho do reabastecimento, porque...
- Eu sei. Preciso de um veículo para uma missão importante, e tem de ser já. Ou você está achando que vou alugar um carro?
- Senhor, só estou informando o que a chefia me disse. Eu...
- Peça que ele venha aqui.
- Não é ele, senhor, é ela.
- Não me importa quem seja. Peça que ele, ou ela, venha aqui.
A chefe do campo de aviação apareceu antes que o funcionário a chamasse. Ela os cumprimentou, sem sorrir.
- Judy Hamilton a seu dispor, comandante.
- Nem tanto a meu dispor, é o que parece.
- Não há muita coisa que eu possa fazer, senhor, mas aceito sugestões.
- Você tem um veículo disponível?
- Nenhum, senhor.
- Preciso de um para usar por meio dia, com tanque cheio.
- Não há nenhum, senhor.
- Você tem um veículo seu?
- Eu, senhor?
Albie deu um longo suspiro.
- Você entende inglês, Hamilton? Estou perguntando se você tem um veículo seu.
- Não recebi nenhum veículo da CG, senhor.
- Não foi isso que eu perguntei. Como você vem trabalhar?
- De carro.
- Então você deve ter um.
- O carro é meu, senhor.
- Foi o que eu perguntei. Se você tem um veículo seu, Judy. Vou tomar seu veículo emprestado esta tarde, e a Comunidade Global lhe reembolsará as despesas. O reembolso que recebemos é de um Nick por quilômetro.
Ela ergueu as sobrancelhas.
- O manual diz que é metade disso, senhor.
- Eu sei - disse Albie. - Vou autorizar por causa de sua cooperação.
- Não vou ser repreendida por não ter entendido, senhor?
- Só por insubordinação, Hamilton, que é a palavra que uso para definir sarcasmo.
- Quer dizer que o senhor vai me pagar um Nick por quilômetro para usar meu carro?
- Você será reembolsada rapidamente.
- Não.
- Não?
- Não, o senhor não vai usar meu carro.
- Não entendi, Hamilton.
- Tenho uma reunião no Monumento daqui a duas horas, e a C-25 foi aberta só por uma semana. As outras pistas estão fechadas. Preciso partir já.
- E você acha que sua reunião é mais importante do que atender a um subcomandante?
- Desta vez sim, senhor, por causa de sua atitude.
- Você está se recusando a me emprestar seu carro?
- O senhor entendeu bem.
Albie olhou de esguelha para ela, com o rosto vermelho.
- Vou dar queixa de você, Hamilton. Você vai ser punida.
- Mas não esta tarde. O senhor também vai ser punido.
- Eu?
- Já faz tempo que o potentado ressuscitou e o senhor não cumprimentou meu funcionário nem a mim com a nova frase.
- Tenho andado muito atarefado e voando o tempo todo.
- O senhor não sabe que devemos cumprimentar as pessoas dizendo "Ele ressuscitou" e que a resposta deve ser "Ele ressuscitou verdadeiramente"?
- Claro, mas... minha senhora, eu também preciso saber qual é a localização exata do esconderijo no extremo norte de Pueblo onde...
- O senhor tem alguma ordem para me mostrar?
- Infelizmente não.
- Cabo, verifique o computador mais uma vez. Quero ver o que temos sobre o subcomandante Elbaz e se podemos incluir ameaça e grosseria em seu prontuário.
- Hamilton, eu...
Ela fez um gesto para que ele se calasse.
- Ei - disse o cabo -, isso não estava aqui antes. Veio direto do alto escalão de Nova Babilônia. Veja.
Hamilton olhou na tela e perdeu a cor. Rayford soltou a respiração. A mulher limpou a garganta e disse:
- Parece que está tudo em ordem, comandante. Eu... hã... gostaria de propor uma trégua.
- Diga.
- O senhor tem autorização para receber o veículo e vamos encontrar um. Se quiser usar meu carro, posso pegar o jipe.
- Você me emprestaria o seu carro?
- Além de emprestar-lhe meu carro, não vou relatar sua quebra de protocolo. Mas o senhor tem de me prometer que também não vai relatar minha insubordinação.



Buck e Chloe deixaram o bebê aos cuidados de Leah, enquanto Tsion e Chaim estudavam. O casal desceu à garagem da torre, onde Buck havia estacionado o Land Rover no meio de outros veículos.
- Devemos ser gratos por este lugar ter tantos carros elegantes - disse Chloe. - Veja só.
Buck sorriu ao ver a diferença entre os carros elegantes e o Rover sujo e amassado, apesar de ser relativamente novo. Ele deu um tapa na capota do carro, o que provocou um eco por todo o estacionamento.
- A velha Bessie está conosco há muito tempo, não? Chloe sacudiu a cabeça. "Bessie?", ela pensou. Vocês, homens, têm a mania de dar nomes de mulher a seus carros.
Buck encostou-se em um pilar, chamou Chloe para perto de si e a abraçou.
- Pense um pouco - ele disse. - É o melhor elogio que posso fazer a um carro ou a uma mulher.
- Continue. Você já vai receber o troco.
- Não, se você pensar um pouco.
Ela afastou-se dele e ergueu a cabeça, apontando para a têmpora.
- Hum, deixe-me ver se o velho Charley e eu podemos resolver esta parada. Dar um nome masculino a meu cérebro é o maior elogio que posso fazer a ele e aos homens.
- Vamos - disse Buck. - Pense no quanto este carro tem sido útil para nós. Ele nos ajudou a vencer o trânsito quando a guerra estourou. Manteve você viva quando saiu da pista e caiu em cima da árvore. Rodou comigo para dentro de uma cratera e saiu de lá, pulou e atravessou obstáculos.
- Você tem razão - ela disse. - Homem nenhum teria feito aquilo.
- Você e Charley descobriram isso sozinhos?
- Sim. E sabe o que mais? Acho que um carro da marca Hummer vai servir para nós desta vez.
- Temos um?
- Dois. Do outro lado, perto dos carros de luxo.
Chloe conduziu Buck até uma área mais escura do subsolo.
- Todos os espaços são numerados e coincidem com os números das chaves que se encontram no quadro da recepção. A maioria dos carros daqui está com o tanque quase cheio ou completamente cheio.
- O pessoal devia estar preparado.
- Parece que estavam ouvindo boatos de guerra. Buck deu um tapa de leve na cabeça de Chloe.
- Obrigado, Charley - disse Buck, examinando os carros, dezenas deles, a maioria novinhos em folha. Ele deu um assobio. - Quando Deus abençoa, Ele abençoa mesmo. -Chloe estava calada. - No que você está pensando?
Ela mordeu os lábios e colocou as mãos no bolso da jaqueta.
- Como seria bom se tivéssemos nos apaixonado em outra época da História!
Buck assentiu com a cabeça.
- Não teríamos nos convertido.
- Alguém nos teria convertido. Olhe para nós. Este é o maior divertimento que tenho depois de muito tempo. Parece que estamos em uma revendedora de carros escolhendo um modelo para nós. Temos um lindo bebê e uma babá de graça, e só precisamos decidir a cor e o modelo do carro que queremos.
Ela encostou-se em um Hummer branco, e Buck a acompanhou.
- Parecemos mais envelhecidos do que somos - ela disse, sacudindo a cabeça - feridos, marcados, assustados. Daqui a pouco tempo, passaremos nossos dias lutando para continuar vivos. Eu me preocupo com você o tempo todo. Está sendo difícil viver nestes últimos tempos, e eu não poderia viver sem você.
- Sim, você poderia.
- Mas não gostaria. E você, viveria sem mim? Talvez eu não devesse perguntar.
- Não há problema, Chloe, eu sei o que você quer dizer. Temos uma causa, uma missão a cumprir, e tudo parece transparente como cristal. Mas eu não gostaria de viver sem você. Eu viveria. Teria de viver. Para Kenny. Para Deus. Para o restante do Comando Tribulação. E, conforme Tsion diz, para o reino. Você foi a melhor coisa que já me aconteceu. Vamos cuidar um do outro, ajudar um ao outro a viver. Temos apenas três anos e meio pela frente, mas quero chegar até lá. Você não quer?
- Claro.
Ela virou-se e o abraçou com força por alguns instantes. E os dois trocaram um longo beijo.



Quando conseguiu chegar, com muito custo, ao quarto andar da torre onde moravam os funcionários, David notou que a porta do quarto 4223 estava entreaberta, deixando escapar um pouco de claridade para o corredor. Quando ele fez menção de bater na porta, uma mão morena saindo da manga de um roupão entregou-lhe o telefone.
- Obrigado, senhora - ele disse. - Estou com pressa.
- Senhora? - disse a enfermeira Palemoon. - Não sou tão mais velha que você, rapaz. Quantos anos você tem?
- Por quê?
Ela abriu a porta e encostou-se languidamente no batente.
Tinha os cabelos amarrados em forma de rabo-de-cavalo e os olhos sonolentos. David ficou surpreso ao ver como ela era baixinha.
- Ainda não cheguei aos 30 - ela disse -, por isso pare de me chamar de senhora, está bem?
- Está bem. Mas estou atrasado para uma reunião. Eu só queria agradecer-lhe e...
- Eu disse que queria mostrar-lhe uma coisa.
- É verdade. O que é? E por que você ficou com meu telefone?
- Tem a ver com o que eu queria lhe mostrar.
David não queria ser grosseiro, mas qual seria o jogo? Ela continuava parada, de braços cruzados, olhando para ele com as sobrancelhas erguidas.
- Está bem - ele disse. - O que é? Ela não se mexeu.
Oh, não, ele pensou. Ela não pode estar tentando insinuar-se para mim. Por favor!
David guardou o telefone no bolso e levantou as mãos em gesto de rendição.
- Oh! - ela disse. - Você está no escuro.
Claro que estou.
Ela endireitou o corpo e ligou o interruptor perto da porta, do lado de dentro do quarto. A pequena lâmpada iluminou os dois. Ela imitou o gesto dele. David prendeu a respiração.
Ela deve estar brincando!, ele pensou.
Havia o selo dos crentes na testa dela.
- Pode verificar - ela disse. - Não vou censurar você. Sei que o seu é verdadeiro. Eu o esfreguei com álcool.
David olhou para cima e para o corredor. Pediu licença a ela, lambeu o polegar e esfregou-o em sua testa. Depois de olhar para os lados, ele inclinou-se e a abraçou rapidamente.
- Irmã - ele murmurou. - Que bom ver você! Eu não sabia que tínhamos alguém dos nossos no setor médico.
- Acho que não há mais nenhum crente lá - ela disse. - Assim que vi o selo em sua testa e soube que você era diretor, pensei em seu telefone.
- Você foi brilhante - ele disse.
- Obrigada. Voltarei a entrar em contato com você.
- Obrigado, enfermeira Pa...
- Hannah - ela disse. - Por favor, David.
Enquanto se dirigia ao elevador, ele verificou seu telefone. Havia várias mensagens, nenhuma de Annie. Ele iria ao necrotério como última tentativa. Discou para o escritório do supremo comandante. Sandra, a assistente de Carpathia e Fortunato, atendeu:
- Que bom saber que você já está em pé - ela disse. - Eles estão à sua espera. Vou informar que você vai chegar dentro de alguns minutos.



Supondo que David houvesse incluído a autorização de Albie no sistema e informado a localização do esconderijo em Pueblo, Rayford correu até o caça para pegar o computador de Albie e levá-lo na viagem.
- Esta estrada era interestadual - disse Rayford, dirigindo a estranha minivan de Judy Hamilton pela C-25 em direção ao sul. - Logo tudo vai passar a chamar-se Santo Nick.
Albie estava acessando o banco de dados.
- Está aqui. As estradas interestaduais e as saídas continuam em reconstrução. Procure uma saída à esquerda para Pueblo. Vou ler o que temos aqui. Xi! Pinkerton Stephens. É o homem que vamos ver lá.
- Já ouviu falar dele? Albie sacudiu a cabeça.
- Faça esta pergunta amanhã.
Poucos minutos depois, eles passaram por um edifício pré-fabricado, bem afastado da estrada. Rayford disse:
- Eu só queria saber uma coisa. Por que você não pegou o jipe da CG para dar um ar de mais autenticidade?
- Surpresa. Você disse a Srta. Durham que não íamos até lá, sabendo que a CG estava ouvindo sua conversa. Eles não estão esperando a chegada de ninguém. Vão ficar curiosos quando aparecermos. Eu vou exibir minha farda com patente superior à deles. Não vão reconhecer o civil que está comigo. Vão ficar mais preocupados em nos impressionar do que em criar caso. E tem mais. Eu não gostaria de transportar aquela mulher dentro de um jipe aberto, e você?
Rayford sacudiu a cabeça.
- Você acha mesmo que vamos surpreender o pessoal de lá?
- Só por pouco tempo. O guarda do portão vai informar ao pessoal que chegou alguém do alto comando.
Rayford fez uma manobra de retorno e dirigiu-se para a entrada. O guarda do portão pediu-lhe que dissesse o motivo da visita.
- Sou apenas o motorista do subcomandante que está a meu lado.
O guarda abaixou-se para ver o rosto de Albie e fez continência.
- Com quem o senhor vai encontrar-se?
- Com Stephens. Deixe-me passar. Estou atrasado.
- Assine aqui, por favor.
Rayford assinou "Marvin Berry", e o guarda fez um gesto autorizando a passagem.
Quando eles entraram no escritório, a mulher sentada atrás de uma escrivaninha ouvia uma voz estranha pelo interfone, aguda e nasal. Rayford não sabia dizer se era de homem ou de mulher.
- Um subcomandante quer ver-me? - perguntou a voz.
- Sim, Sr. Stephens. Verifiquei o nome no banco de dados da CG e o único Marvin Berry registrado como nosso funcionário não faz parte das Forças Pacificadoras. Ele é um velho pescador no Canadá.
- Esta história não está cheirando bem - disse a voz.
É um homem, pensou Rayford, mas qual é o problema dele?
- Um momento, senhor - disse a mulher, levantando-se ao ver o subcomandante atrás de Rayford. - Seu nome é Berry?
- Berry é meu motorista - disse Albie, com voz alterada. - Procure Elbaz em seu computador. Ninguém de minha família sabe pescar.
- Mistério solucionado, Sr. Stephens - disse a mulher pelo interfone. - O guarda do portão pediu a assinatura do motorista.
- Incompetente! - esbravejou Stephens pelo interfone. -Mande-o entrar!
- O guarda?
- O subcomandante!
Ela apontou para a primeira porta à esquerda de um corredor, mas, quando Rayford fez menção de acompanhar Albie, ela disse:
- Só o subcomandante, por favor.
- Ele está comigo - disse Albie. - Eu resolvo este assunto com o chefe.
- Oh, eu não sei.
- Mas eu sei - disse Albie, parando diante da porta e batendo.
- Entre - soou a voz inexpressiva.
- Entrar? - repetiu Albie em um sussurro. - Ele vai ficar constrangido quando perceber que não abriu a porta para um superior.
Albie abriu a porta, entrou e parou repentinamente, fazendo com que Rayford colidisse com ele.
- Desculpe-me - disse Rayford.
Ele não conseguiu enxergar Stephens, mas ouviu o barulho de um motor elétrico.
- Perdoe-me a quebra de protocolo - soou a voz quando a cadeira de rodas de Stephens surgiu na frente deles.
Rayford foi tomado de surpresa. O homem tinha apenas uma perna; a outra fora amputada acima do joelho. A mão direita tinha pequenas protuberâncias em lugar dos dedos, e a esquerda, apesar de ter todos os dedos, havia sofrido graves ferimentos.
- Eu gostaria de me levantar, mas não posso.
- Entendo - disse Albie, apertando a mão direita do homem, com hesitação.
Rayford fez o mesmo, e ambos obedeceram ao gesto de Stephens e sentaram-se nas duas cadeiras que lotavam a pequena sala. E o rosto dele? O pescoço, as faces e as orelhas de Stephens eram avermelhados e cheio de cicatrizes. Ele usava um topete postiço. Com exceção dos lábios no meio de seu rosto, o restante - queixo, nariz, olhos e testa - parecia ser uma peça só, da cor de um aparelho de audição plástico.
- Eu não o conheço, Elbaz - disse Stephens, parecendo um homem sem língua nem nariz. - O seu rosto, Berry, me é familiar. Você é da CG?
- Não, senhor.
- Estou aqui a trabalho - disse Albie. - Não trago uma cópia impressa das ordens que recebi, mas...
- Desculpe-me, subcomandante, mas tenho uma aqui. O senhor aguardaria um minuto?
- Claro, mas...
- Só um minuto. Sei que o senhor é superior a mim, mas, se não estiver com muita pressa, tenha um pouco de paciência comigo. Sua história é verídica. Vou-lhe prestar toda e qualquer ajuda que o senhor necessitar. E quanto a você, Berry, já trabalhou na CG?
Rayford, desconcertado diante daquela voz e daquele homem desfigurado, hesitou.
- Não... hã... não, senhor. Nem nas Forças Pacificadoras.
- Então, trabalhou em outro setor.
- Eu não disse isso.
- Mas trabalhou. Você já teve alguma ligação com a CG, não? Seu rosto me é familiar. Ou eu o conheço ou já ouvi falar de você. Ou, então, aposto que conheço um amigo seu.
Albie olhou firme para Rayford, e Rayford parou de falar. Sem saber o motivo da pergunta, Rayford limitou-se a olhar para o homem, tentando lembrar-se de alguma coisa. Onde ele poderia ter encontrado esse tal de Pinkerton Stephens? Jamais esqueceria um rosto como aquele.
- Naquela época eu era um homem inteiro, Sr. Berry, se for este o seu verdadeiro nome.
Rayford sentia-se cada vez mais desconfortável. Será que conhecia aquele homem? Conseguiria sair dali? E Hattie? Albie tinha o corpo retesado e parecia mais desconfortável que ele.
Stephens levantou a cabeça, olhou mais uma vez demoradamente para Rayford e virou-se para Albie.
- Muito bem, subcomandante Elbaz. Qual o assunto que o trouxe até aqui?
- Fui incumbido de buscar uma pessoa presa aqui, senhor.
- Quem lhe disse que tenho alguém preso aqui?
- Meus superiores, senhor. Disseram que a pessoa não colaborou, que houve falha em um certo plano ou missão e que devemos levá-la de volta para o PRFB.
- PRFB? O que é isso?
- Você sabe o que é, Stephens, se for mesmo quem diz ser.
- Para o senhor é um absurdo que um homem pela metade ocupe uma função importante na CG, não é verdade? -perguntou Stephens.
- Eu não disse isso.
- Mas deu a entender, não?
- Não acho.
- O senhor já viu outro homem como eu ocupando uma posição igual a esta, subcomandante Elbaz?
- Não, não vi.
- Mas eu a ocupo, quer o senhor goste ou não. E vai ter de tratar do assunto comigo.
- Tudo bem. Depois que eu for embora, você vai ver que está tudo em ordem e...
- Por acaso eu disse que tinha uma pessoa presa aqui, subcomandante?
- Não, mas sei que você tem.
- O senhor sabe quem sou.
- Sei.
- O PRFB é um presídio feminino, senhor. O senhor acha que tenho uma mulher presa aqui?
Albie assentiu com a cabeça.
- Este lugar se parece com um centro de detenção?
- Os centros de detenção adquirem formas diferentes durante tempos diferentes.
- É verdade. Existe algum motivo para o senhor não ter-me cumprimentado com o novo protocolo?
- Tenho problemas em lembrar-me disso, Sr. Stephens.
- Sério? A propósito, o senhor sabe que tem uma mancha na testa?
Albie teve um sobressalto. Rayford sentiu um arrepio percorrer-lhe o corpo. Um funcionário das Forças Pacificadoras da CG teria condições de ver o selo na testa de Albie? As peças encaixavam-se no lugar tão depressa que Rayford mal conseguia acompanhar. Até que ponto a situação estaria comprometida? Albie sabia de tudo!
- Tenho? - disse Albie inocentemente, passando a palma da mão na testa.
- Ah, agora está melhor - disse Stephens.
Albie desceu a mão devagar até encostá-la na arma presa na cintura. Se ao menos Rayford tivesse uma.
- Cavalheiros - disse Stephens com a voz bem mais clara - se os senhores tiverem a bondade de acompanhar-me, poderemos retomar nossa conversa em outra sala. Desta vez começaremos com o protocolo correto, que tal?
Ele passou com a cadeira de rodas por Rayford e Albie, abriu a porta e passou por ela antes que fechasse. Albie a segurou, e Rayford o acompanhou pelo corredor. Albie desafivelou o coldre onde havia uma arma 9 mm. Rayford se perguntou se teria tempo de correr, passar pela porta da frente e chegar a van antes que Albie percebesse sua fuga. Ele hesitou, esperando que o barulho da cadeira de rodas abafasse o ruído de seus passos caso tomasse essa decisão.
Albie, porém, virou-se para trás e fez um gesto para que Rayford caminhasse adiante dele, atrás da cadeira de rodas que se movia rapidamente. Mesmo que conseguisse fugir, havia Hattie. Ele não tinha escolha, a não ser continuar ali e representar seu papel.

CINCO

Buck sentou-se dentro do Hummer branco, confirmou que o tanque estava cheio, verificou os pneus, descobriu onde estavam as chaves e ligou o motor.
- Que nome vamos dar a este carro? - perguntou Chloe.
- É um carro forte e robusto - respondeu Buck. - Tem o nome Chloe escrito em todos os lugares.
Faltavam muitas horas para escurecer, e eles entraram em contato com Zeke várias vezes para perguntar o que ele sabia a respeito do posicionamento dos guardas da CG. Ficaram sabendo que eles estavam procurando rebeldes que paravam para abastecer o carro no posto de gasolina de seu pai, sem sequer imaginar que Zeke Jr. estava lá. Mas como Buck poderia tirá-lo de lá sem ser visto?
Quando Buck e Chloe retornaram à nova casa secreta, Kenny estava dormindo e Leah lia um livro.
- Buck, Tsion pediu que você se reunisse com ele e Chaim - disse Leah. - E Chloe vai me pôr a par dos assuntos da cooperativa.
- Tenho de começar a me comunicar com todo o pessoal - disse Chloe, ligando o computador.
Leah puxou uma cadeira para perto dela, e Buck subiu ao andar de cima onde ficava o esconderijo de Tsion.
Que ótimo lugar ele conseguira para instalar-se! Em uma sala com tamanho suficiente apenas para comportar a mesa em formato de U, Tsion havia montado uma estação de trabalho semelhante a uma cabina de avião, tendo tudo o que necessitava ao alcance das mãos. Com o computador diante de si e suas anotações e a Bíblia apoiadas um pouco acima, ele estava pronto para transmitir suas mensagens. Buck surpreendeu-se ao ver a pequena quantidade de livros que Tsion trouxera, mas ele explicou que a maioria dos materiais de que necessitava estava gravada no possante disco rígido de seu computador.
Chaim, sentado em uma cadeira confortável, parecia muito bem acomodado. Seus ferimentos durante a queda do avião foram mais graves do que os de Buck, porém ele chorava de alegria quando Tsion começou a doutriná-lo.
- Grande parte do que vou lhe ensinar você já ouviu falar desde a juventude, Chaim - disse o rabino -, mas, agora que Deus abriu seus olhos e o fez compreender que Jesus é o Messias, você ficará admirado ao ver que tudo isso tem lógica e faz sentido.
Chaim balançou o corpo, chorando e assentindo com a cabeça.
- Eu entendo - ele disse repetidas vezes -, eu entendo. Buck, com os olhos arregalados, ouvia um resumo daquilo que aprendera durante os últimos três anos lendo as mensagens virtuais de Tsion. Às vezes, o rabino se emocionava, parava de falar e, depois, dizia, exultante:
- Chaim, você não sabe quanto oramos por você, infinitas vezes, para que Deus abrisse seus olhos. Você quer descansar um pouco, meu irmão?
Chaim balançou a cabeça negativamente, mas levantou a mão dando a entender que compreendia tudo apesar de estar com as mandíbulas amarradas.
- Deus está abrindo meus olhos para muita coisa - ele conseguiu dizer. -Cameron, aproxime-se de mim. Preciso perguntar-lhe uma coisa.
Com um olhar, Buck pediu a permissão de Tsion. Depois de receber autorização, ele puxou sua cadeira para perto de Chaim.
- Eu nunca entendi - disse Chaim - por que você não compareceu à primeira reunião de Nicolae e sua equipe de líderes na Organização das Nações Unidas. Você se lembra?
- Claro.
- Perdoe-me por cuspir em você, Cameron, mas estou com dificuldade para falar.
- Não se preocupe.
- Eu não consigo imaginar o motivo. Você desperdiçou o maior privilégio de sua vida, a oportunidade que nenhum jornalista que se preze poderia perder. Você foi convidado. Eu o convidei! Você disse que compareceria, mas não compareceu. Nova York inteira comentou sua ausência. Você foi rebaixado de cargo por causa disso. Por quê? Por que você não compareceu?
- Eu estava lá, Chaim.
- Ninguém viu você lá! Nicolae ficou decepcionado, com raiva. Todos perguntaram por você. Seu chefe, como era mesmo o nome dele?
- Steve Plank.
- O Sr. Plank também não entendeu! Hattie Durham estava lá! Foi você quem a apresentou a Carpathia, e não compareceu à reunião, conforme ela esperava.
- Eu estava lá, Chaim.
- Eu também estava lá, Cameron. E seu lugar na mesa estava vazio.
Buck queria dizer mais uma vez que esteve lá, mas, de repente, se deu conta do que estava acontecendo e por que Chaim resolvera levantar o assunto depois de tanto tempo.
- Agora seus olhos estão sendo abertos, não é verdade, Chaim?
O ancião pousou a mão trêmula no joelho de Buck.
- Eu não conseguia entender. Para mim, não fazia sentido. Jonathan Stonagal deixou Nicolae em situação constrangedora por ter perseguido você. Nicolae humilhou Stonagal diante de todos, induzindo-o a cometer suicídio, cujo tiro atingiu Joshua Todd-Cothran mortalmente.
Buck queria dizer que presenciara tudo e que não foi assim que aconteceu, mas resolveu aguardar.
- Nada daquilo fez sentido - choramingou Chaim. - Nada. Mas os olhos não mentem. Stonagal tomou a arma do segurança, deu um tiro em si mesmo e atingiu seu colega.
- Chaim - murmurou Buck -, os olhos não mentem. Mas o anticristo mente.
Rosenzweig começou a tremer de tal forma que seu corpo todo balançava. Ele apertou as mãos contra as faces para impedir que seus lábios tremessem.
- Por que você não compareceu, Cameron?
- Por que eu não haveria de comparecer, Chaim? O que teria me impedido?
- Não posso imaginar!
- Nem eu!
- Então, por quê? Por quê?
Buck não respondeu. Desistiu de tentar convencer o amigo.
- Fui incumbido de comparecer - ele disse. - Meu chefe esperava que eu fosse.
- Sim, sim!
- Eu era o jornalista principal de todas as reportagens de capa da revista de maior circulação da História. Aquele momento era o ápice de minha carreira. Por que eu haveria de atirá-lo pela janela?
Rosenzweig balançou a cabeça de um lado para o outro, com lágrimas nos olhos e mãos trêmulas.
- Você não faria isso.
- Claro que não. Quem faria?
- Talvez você já soubesse que Nicolae era o anticristo e não queria ser visto ao lado dele.
- Na época, eu já sabia ou imaginava que sabia. Não teria ido lá sem a proteção de Deus.
- E você não tinha essa proteção?
- Tinha.
- E por que não foi? Você teria sido o único presente à reunião que contaria com a proteção de Deus.
Buck limitou-se a fazer um sinal afirmativo com a cabeça. Os olhos de Chaim brilharam, como se ele estivesse pensando em uma coisa acontecendo a milhares de quilômetros de distância. Suas pupilas movimentavam-se rapidamente.
- Você esteve lá! - ele disse.
- Sim, estive.
- Você esteve lá, não é verdade, Cameron?
- Estive.
- E presenciou tudo!
- Tudo!
- Mas não viu o que os outros viram, inclusive eu.
- Vi o que realmente aconteceu. Vi a verdade.
Chaim tocava freneticamente as laterais de sua cabeça com as mãos e, apesar de estar com a mandíbula amarrada, ele descreveu o que vira naquela ocasião e o que via agora.
- Nicolae! Nicolae assassinou os dois homens! Obrigou Stonagal a ajoelhar-se diante dele, encostou a arma no ouvido do homem e matou os dois com um único tiro!
- Foi exatamente o que aconteceu.
- Mas Nicolae nos contou o que vimos, contou o que deveríamos lembrar, e nossa percepção tornou-se realidade!
Chaim virou-se de lado e ajoelhou-se, apoiando sua frágil cabeça nas mãos e os cotovelos no assento da cadeira.
- Ó Deus, ele orou, abre meus olhos. Ajuda-me sempre a enxergar a verdade, a tua verdade. Não permitas que eu seja conduzido por um louco, enganado por um mentiroso. Obrigado, Deus Jeová.
Em seguida, levantou-se lentamente, abraçou Buck e olhou para Tsion.
- Verdadeiramente Nicolae é o anticristo - disse Chaim. -É necessário que alguém o detenha. Quero fazer o que for possível.
Tsion sorriu pesarosamente.
- Você já tentou, lembra-se?
- Claro que me lembro, mas não pelos motivos que tenho hoje.
- Se você acha que conhece as profundezas da depravação daquele homem - disse Tsion -, espere para ver o que ele tem em mente para o povo escolhido de Deus.
Chaim sentou-se e esticou o braço para pegar um bloco de papel.
- Quero que você me fale sobre esta parte, Tsion. Por favor.
- No devido tempo, meu amigo. Você ainda tem de aprender mil coisas antes.


A despeito da dor que sentia, David conseguiu descansar. Poderia ter ficado mais tempo na cama do hospital, mas dormira o sono dos justos, e sua mente - pelo menos -estava revigorada. Seus pensamentos confundiam-se, e ele não conseguia separar a apreensão que sentia a respeito de Annie dos cuidados que deveria tomar na reunião com Carpathia. Já havia estado muitas vezes na presença de forças malignas, mas nunca na do próprio Satanás. David murmurou uma oração em favor de Annie, agradeceu a ajuda da enfermeira Palemoon e as lições de Tsion quando lhe ensinou que Satanás - apesar de ser mais poderoso que qualquer ser humano - não tinha os mesmos poderes do Senhor Deus. "Ele não é onisciente", dissera Tsion. "Nem onipresente. Ele é velhaco, persuasivo, controlador, sedutor, possessivo e opressivo, porém Aquele que está dentro de você é muito maior que aquele que está no mundo."
- Eles estão aguardando sua chegada - disse Sandra. -Parece que o potentado ressurreto não quer que você perca nada do que vai ser discutido ali.
- Que bom.
- E, agora que você chegou, vou embora. E isso também é bom. Tive um longo dia.
- Nós dois tivemos.
- Você está bem? Ouvi dizer que sofreu uma queda.
- Estou melhor.
- Boa noite, diretor Hassid. E... ah, sim, eu já estava me esquecendo. Ele ressuscitou.
David olhou firme para a secretária e comparou a testa dela - sem nada visível - com a da bela irmã morena que acabara de conhecer.
- Ele ressuscitou verdadeiramente - retrucou David, sabendo exatamente o que queria dizer.
Ele bateu na porta, entrou e ficou surpreso ao ver que todos se levantaram no momento de sua chegada, inclusive Carpathia e Fortunato.
- Meu querido David - disse Carpathia -, que bom você ter-se recuperado a tempo de participar conosco desta reunião.
- Obrigado - disse David quando Jim Hickman, o diretor do Serviço de Inteligência, puxou uma cadeira para ele.
- Sim - disse Hickman. - É muito bom mesmo!
Ele sorriu e olhou para Carpathia, querendo confirmar se suas palavras haviam agradado ao chefe. O potentado mordeu os lábios e semicerrou os olhos, sem dar-lhe atenção. Para David, a atitude de Carpathia foi proposital. Hickman foi escolhido por Fortunato, e Carpathia não escondia sua opinião sobre o homem, considerando-o um bufão.
O grupo composto de 24 pessoas, mais Nicolae e Leon, estava reunido ao redor de uma enorme mesa de mogno no escritório de Carpathia. Era a primeira vez que David participava de uma reunião com tantas pessoas. Ele pressentiu algo terrível quando se sentou e viu uma Bíblia surrada em cima da mesa, na frente de Nicolae. Assim que David se sentou, todos fizeram o mesmo, com exceção de Carpathia. O homem parecia revigorado. Sua respiração era tão rápida que ele chegava a assobiar entre os dentes quando proferia as palavras. Parecia um jogador de futebol no vestiário preparando-se para o primeiro chute do jogo decisivo de um campeonato.
- Senhores e senhoras - ele começou a dizer -, acabei de nascer de novo!
Os presentes explodiram em gargalhada. Mesmo depois que todos se acalmaram, Nicolae continuou a rir e prosseguiu:
- Confiem no que estou dizendo, não há nada melhor que ressuscitar!
Todos assentiram com a cabeça e sorriram. David, sabendo que o Chefe da Segurança Walter Moon tinha os olhos fixos nele, fez o mesmo discretamente.
- Eu morri, pessoal, se é que alguém ainda duvida. - Todos negaram com um movimento de cabeça. - Sr. Fortunato, devemos publicar fotografias da autópsia, o relatório do legista e provas da ressurreição. Sempre haverá céticos, mas todos os que estiveram lá conhecem a verdade.
- Conhecemos - disseram vários.
David sentiu uma força maligna tão penetrante vinda de Carpathia que precisou retesar o corpo, receando desmaiar. De repente, Nicolae o encarou.
- Diretor Hassid, você esteve lá.
- Estive, senhor.
- Viu tudo?
- Perfeitamente, senhor.
- Então, você viu que ressuscitei.
- Jamais vou negar isso.
Carpathia deu uma risadinha amigável. Em seguida, caminhou até sua mesa e postou-se atrás de uma enorme poltrona estofada, de couro vermelho, passando a mão nela como se a estivesse acariciando.
- Parece que estou vendo tudo isso pela primeira vez - ele disse aos 24 pares de olhos que o fitavam com admiração. -Leon, o que existe acima de meu escritório?
- Nada, senhor. Estamos no 18° andar, o mais alto de todos.
- Não há nenhum depósito ou casa de força para os elevadores?
- Nada, senhor.
- Quero mais espaço, Leon. Você está anotando tudo?
- Sim, senhor.
- O que você já anotou?
- Fotografias da autópsia, relatório do legista, provas da ressurreição.
- Acrescente a ampliação de meu escritório. Quero que ele tenha o dobro de altura, com um teto transparente que me faça ser visto do céu.
- Providenciarei tudo, Excelência.
- Para quando? - perguntou Carpathia. - Quem poderia dar-me esta resposta?
Fortunato apontou para o diretor de construção, o qual levantou timidamente a mão.
- Muito bem - disse Nicolae dirigindo-se ao homem -, posso ter a certeza de que este assunto terá prioridade máxima?
- Pode apostar sua vida, senhor - disse o homem. Carpathia deu uma sonora gargalhada.
- Quero lhe dizer uma coisa, diretor. Sei que não vou poder usar este escritório por alguns dias por causa da sujeira provocada pela destruição do teto. Mas quero que esse trabalho seja feito o mais rápido possível, humanamente falando, e você sabe por quê?
- Acho que sim, senhor.
- Você sabe?
O homem assentiu com a cabeça.
- Essa foi boa! Vamos ouvir o que ele tem a dizer!
- Porque acredito que o senhor deixou de ser humano e pode fazer isso mais rápido que minha equipe, mesmo que eles trabalhem dia e noite.
- Somente Deus concede esse poder, diretor.
- Acredito que estou na presença dele, potentado. Nicolae sorriu.
- Eu também acredito. - Ele virou-se e fez um gesto a todos. - Enquanto fiquei morto por três dias, meu espírito estava tão forte e poderoso que eu sabia, eu sabia que meu tempo ia chegar. Quando a morte se mostrou vitoriosa sobre mim, eu desejei voltar a viver. Eu provoquei minha ressurreição. Eu me forcei a voltar a viver.
Um murmúrio percorreu a sala. Os homens e as mulheres presentes concordaram em voz alta e apertaram as mãos como se estivessem orando por ele ou adorando-o.
Nicolae pegou a Bíblia. Para David, parecia que ele a segurava com carinho.
- Você devem estar querendo saber o que isto está fazendo aqui - ele disse. Ele a abriu e colocou-a na mesa, com a lombada voltada para cima.
- Isto aqui é o falso livro daqueles que se opõem a mim. É o livro santo daqueles que não me aceitam e que não me aceitarão, apesar de tudo o que viram com os próprios olhos. - Ele deu um soco na Bíblia. - Isto aqui contém mentiras sobre o povo escolhido de Deus e a suprema mentira de que existe alguém acima de mim.
Todos os presentes, exceto um, murmuraram expressando desaprovação.
Carpathia dirigiu-se à ponta da mesa e cruzou os braços, afastando as pernas uma da outra.
- Usaremos o próprio esquema deles para fazê-los caírem de joelhos. Os judeus, que aguardam a chegada de seu adorado Messias na Terra Santa, decidiram destruir-me na cidade que eles tanto amam. Retornarei para lá em triunfo, e eles terão uma oportunidade de arrepender-se e ver a luz. E os judaístas, aqueles que acreditam que o Messias já veio e foi embora, que acreditam que Jesus é o seu Salvador, a quem eu nunca vi e acho que vocês também não, dizem que ele também tem raízes em Jerusalém. Se os judaístas quiserem ver o deus vivo e verdadeiro, que viajem para lá, porque é para lá que em breve eu irei. Se o templo sagrado for a residência do Deus altíssimo, então o deus mais alto de todos residirá lá, no alto do trono. Eles me verão na cidade em que me mataram, no alto e acima de todos.
Muitos diretores levantaram as mãos fechadas em sinal de vitória e de encorajamento.
- Agora, passemos a alguns planos. Não deixei dúvidas na mente de ninguém sobre quem sou e não sinto mais a necessidade de existir um intermediário entre mim e a minha equipe. Meu querido companheiro, o supremo comandante Leon Fortunato, tem-me assistido com eficiência desde o primeiro dia em que subi ao poder, e agora necessito dele para outra missão crucial, a qual ele já aceitou com entusiasmo. Aquela nobre tentativa que veio a fracassar será levada a efeito com sucesso e sairá vitoriosa. A Fé Mundial Enigma Babilônio fracassou porque, apesar de seu sublime objetivo de unificar as religiões do mundo, não adorava a nenhum deus a não ser a si mesma. Seu objetivo de unificação nunca foi alcançado. Seu deus era nebuloso e impessoal. Agora que Leon Fortunato passou a ser o Reverendíssimo Pai do Carpathianismo, os devotos do mundo finalmente terão um deus pessoal, cuja força, poder e glória foram demonstrados quando eu ressuscitei!
Muitos aplaudiram. Carpathia fez um gesto para que Leon se levantasse e falasse, enquanto ele próprio se afastava, continuando em pé.
- É com profunda humildade que aceito esta missão - disse Leon, caminhando em direção a Nicolae, ajoelhando-se e beijando as mãos do potentado. Em seguida, levantou-se e retornou à cabeceira da mesa. - Apesar de saber que Sua Excelência não necessita da ajuda de um simples mortal como eu, permitam-me esclarecer que o nome da nova religião foi idéia minha. Não foi nenhuma tacada de gênio. Que outro nome poderíamos dar a uma fé cujo objetivo de nossa adoração é Sua Excelência? A emoção extravasada pelos cidadãos naquele mesmo dia fez nascer a idéia de que deveríamos reproduzir a imagem de Sua Excelência, a grande estátua, e erigi-la em todas as cidades mais importantes do mundo. Os planos já foram enviados, solicitando que cada cidade construa a imagem. Elas terão um quarto do tamanho da imagem original, que, conforme os senhores sabem, é quatro vezes maior que o de um homem. Não é necessária a ajuda de um cientista para calcularmos que as réplicas terão o tamanho de um homem. Enquanto jazia morto, nosso mui querido potentado imbuiu-me de poderes para invocar fogo do céu a fim de matar aqueles que se opunham a ele. O potentado abençoou-me com o poder de fazer a estátua falar para que pudéssemos ouvir o que se passava no coração dele. Isso confirmou em mim o desejo de servi-lo como meu deus pelo resto de meus dias, e é o que farei enquanto Nicolae Carpathia conceder-me a graça de respirar.
- Obrigado, meu querido servo - disse Nicolae assim que Leon se sentou. - Agora, abençoados companheiros, tenho uma missão para cada um de vocês. Elas foram preparadas antes de minha morte e agora farão muito mais sentido. Uma de minhas mais antigas e queridas amigas, uma mulher mais próxima a mim que um parente, lhes fornecerá algumas explicações. Sra. Ivins, por favor, venha até aqui.
Viv Ivins, empertigada e elegante, com seus cabelos cinza-azulados presos no topo da cabeça, caminhou até a cabeceira da mesa e abraçou Nicolae. Enquanto ela distribuía pastas com o nome de cada diretor impresso na capa, Nicolae disse:
- A maioria de vocês sabe que a Sra. Ivins ajudou-me a ressuscitar. Durante muitos anos, acreditei que ela fosse minha tia. Éramos muito apegados um ao outro. Ela trabalhou em um projeto para ajudar-me a estabelecer certos controles, infelizmente necessários, em relação aos direitos e deveres dos cidadãos. A maioria das pessoas é leal a mim, sabemos disso. Muitas que não eram ou estavam indecisas vão passar para o nosso lado e, conforme vocês verão, por um bom motivo. Mas existem aquelas facções, principalmente as duas já mencionadas por mim, que não são leais. Talvez elas já tenham visto o erro que cometeram e decidam ser leais a mim daqui em diante. Se assim for, não terão nenhum problema com as proteções e garantias que entendo devam ser postas em prática. Estou pedindo àqueles que são leais à Comunidade Global, especificamente a mim e à fé unificada, que se disponham a ter uma marca de lealdade. Walter Moon levantou-se.
- Senhor, eu lhe imploro, permita-me ser o primeiro a ter essa marca.
- Não devemos atropelar as coisas, irmão - disse Nicolae. - Talvez você tenha seu desejo atendido. Apesar de estar emocionado com sua dedicação, como você sabe que não vou marcá-lo com ferro quente como fazemos com o gado?
Moon colocou as mãos abertas sobre a mesa, curvou a cabeça e disse:
- Tendo o senhor, o meu senhor, como testemunha, eu suportaria tudo e ostentaria a marca com um orgulho inigualável.
- Ora, ora - disse Nicolae -, se o sentimento de toda a população for igual ao do diretor Moon, não necessitaremos tomar medidas drásticas para seu cumprimento, não é verdade?
David folheou os papéis de sua pasta até bater os olhos em uma palavra assustadora.
- Guilhotinas? - ele disse em voz alta, sem ter tempo de refletir.
- Agora estamos atropelando as coisas - disse Nicolae. - E desnecessário informar que este seria o último recurso e oro para que jamais seja necessário.
- Eu ofereceria de bom grado a minha cabeça - disse Moon com entusiasmo exagerado -, se fosse tão tolo a ponto de negar meu senhor.
Nicolae virou-se para David.
- Você é o responsável pelas compras de artigos técnicos, correto?
David assentiu com a cabeça.
- Acho que não temos uma quantidade suficiente de equipamentos desse tipo para todos os relutantes. Devemos fazer uma estimativa e estar preparados. Conforme eu disse, meu maior sonho é que ninguém se recuse a ter a marca da lealdade. Sra. Ivins, por favor.
- Na primeira página do material que lhes foi entregue -ela começou a dizer, em tom de voz preciso e articulado, com um leve sotaque de seu dialeto romeno -, antes que os senhores cheguem à palavra guilhotinas...
Ela deu uma risadinha, mas David continuou sério.
- ...há uma lista das dez regiões mundiais e um número correspondente. Ele é o resultado de uma equação matemática que identifica aquelas regiões e suas relações com Sua Excelência, o Potentado. A marca da lealdade, que explicarei em detalhes, começará com esses números, identificando a região de cada cidadão. Os números subseqüentes, armazenados em um biochip introduzido sob a pele, servirão para identificar a pessoa até o ponto era que não haverá ninguém com numeração igual.
De repente, Leon levantou-se e começou a falar, como se estivesse em transe.
- Todo homem, mulher e criança, independentemente de posição social, receberá esta marca na mão direita ou na testa. Aqueles que se recusarem a receber a marca, assim que ela estiver disponível, não terão permissão para comprar ou vender, sendo liberados somente após terem concordado em recebê-la. Aqueles que se recusarem permanentemente serão condenados à morte, e qualquer cidadão portador da marca terá o direito e a responsabilidade de denunciá-los. A marca terá o nome de Sua Excelência ou o número determinado.
Após dizer isso, Leon sentou-se pesadamente na cadeira. Viv Ivins sorriu com benevolência e disse:
- Obrigada, Reverendo.
Todos riram, inclusive Leon.
David receava que as batidas fortes de seu coração e as mãos trêmulas o denunciassem. E se alguém tivesse a idéia brilhante de aplicar a marca, naquela mesma noite, em todos os participantes da reunião? Ele chegaria ao céu antes que Annie recebesse a notícia de sua morte.
- Baseamo-nos na tecnologia - prosseguiu Viv. - O biochip em miniatura com os números armazenados será introduzido sem nenhuma dor em questão de segundos, como se fosse uma vacina. Os cidadãos poderão escolher um dos locais para a aplicação. Ficará visível apenas uma cicatriz de pouco mais de um centímetro. À esquerda, em tinta preta impossível de ser removida, aparecerá o número que designará a região do indivíduo. Esse número pode ser incluído no chip, caso a pessoa prefira que apareça em sua pele uma das variações do nome do potentado.
- Variações? - perguntou alguém.
- Sim. Achamos que a maioria vai preferir os números ao lado da cicatriz. Mas há os que poderão optar pelas pequenas iniciais NJC do mesmo tamanho dos números. Poderá ser usada a versão Nicolae, que praticamente cobrirá o lado esquerdo da testa.
- Isso seria para os mais leais - disse Nicolae, com um sorriso malicioso. - Alguém como... digamos... o diretor Hickman, por exemplo.
Hickman corou e disse bem alto:
- Inclua-me nesta lista, Viv!
- A utilidade do chip embutido é dupla - ela prosseguiu.
- Primeiro, deixa evidente a lealdade ao potentado. Segundo, serve como forma de pagamento e recebimento para comprar e vender. Os scanners no nível dos olhos permitirão que compradores e vendedores sejam debitados ou creditados. Vários assobios de admiração ecoaram pelo ambiente. A cabeça de David latejava. Ele levantou a mão.
- Pois não, diretor Hassid - disse Viv.
- O que a senhora tem em mente em relação ao prazo para a aplicação dessa marca?
- Você acha que já tem cicatrizes suficientes na cabeça? -ela perguntou, sorrindo.
- Também aplicaram soro intravenoso em minha mão.
- Não há motivo para preocupações - ela disse. - Embora o potentado e o ex-supremo comandante achem que os funcionários devem servir de exemplo ao mundo, você terá 30 dias, a partir de amanhã, para cumprir a ordem.
- Eu vou receber a marca esta noite - disse alguém -, mesmo não sendo o Hickman!
Um mês, pensou David. Um mês para fugir da armadilha. O que seria dele, de Annie, de Mac e de Abdullah? E de Hannah Palemoon?
Viv disse ter certeza de que nos próximos dias todos os diretores cumpririam seu papel na questão das imagens de Carpathia e na aplicação da marca de lealdade. A seguir, ela complementou:
- Sua Excelência vai tecer um comentário final.
- Obrigado, Viv - disse Nicolae. - Quero lhes contar a história de uma família que conheci hoje, e vocês sabem que conheço milhares. Temos um belo núcleo de cidadãos leais! Esse núcleo é representado pela lealdade de uma família asiática chamada Wong.
David esforçou-se para manter a calma.
- A filha do casal trabalha conosco no Presídio de Reabilitação Feminina de Bruxelas. A família está bem de vida e é grande colaboradora da Comunidade Global. O pai sente muito orgulho de sua família e de seu registro de lealdade. Mas, quem mais me impressionou foi Chang, o filho de 17 anos. Ele é um jovem que, de acordo com o pai, me ama e ama tudo que se refere ao mundo de hoje. Deseja trabalhar aqui no palácio. Embora falte um ano para concluir o curso secundário, ele prefere trazer seus talentos para cá.
E que talentos! Vou providenciar para que ele complete os estudos aqui, porque esse jovem é um gênio! Ele é capaz de programar qualquer computador, analisar e consertar qualquer problema que exista no sistema operacional. Ele me mostrou documentos, certificados de conclusão de cursos e cartas de recomendação. Esse tipo de garoto é o nosso futuro, e o nosso futuro nunca foi tão promissor.
Aquele garoto, pensou David, preferiria morrer a receber a marca.

SEIS

Enquanto seguia a cadeira de rodas pelo corredor, mal conseguindo respirar, Rayford não parava de pensar nos erros que cometera. Se conseguisse sair livre daquela situação, seria o líder mais determinado que o Comando Tribulação podia imaginar.
Eles se dirigiram a uma sala menor que a anterior. Pinkerton Stephens abriu a porta e fez uma manobra com a cadeira, deixando espaço para Rayford e Albie entrarem. Ele apontou para Rayford uma cadeira cinza de aço perto da parede, de frente para uma mesa da mesma cor e do mesmo material. Albie sentou-se à esquerda de Rayford.
Stephens fechou e trancou a porta e resmungou alguma coisa sobre a sala ser segura e sem escuta clandestina. Em seguida, dirigiu-se para o outro lado da mesa, empurrando uma cadeira que estava no caminho. Depois de ajustar a cadeira de rodas no nível da mesa, ele inclinou-se para a frente, apoiou os cotovelos no tampo e cruzou as mãos sob o queixo.
Uma parte de Rayford relutava em olhar para o homem; a outra não conseguia desgrudar os olhos dele.
- Agora - Stephens começou a dizer lentamente -, subcomandante Elbaz, se este for o seu nome verdadeiro, pode afivelar o coldre de sua arma e ficar com as mãos longe dela. Fazemos parte do mesmo time, e você não precisa ter medo de mim. Quanto a você, Berry, apesar de estar sem farda e usando um nome falso, também não precisa ter medo de mim. Vocês vão ter a agradável surpresa de descobrir que nós três pertencemos ao mesmo time.
Rayford queria dizer "Duvido", mas receava não poder emitir nenhum som, mesmo que tentasse.
- Podemos começar tudo de novo, cavalheiros? - perguntou Stephens.
Se ao menos..., pensou Rayford.
- Elbaz, você é um oficial superior a mim, por isso tem a responsabilidade de iniciar esta reunião com o protocolo correto.
- Ele ressuscitou - disse Albie desgraçadamente na opinião de Rayford.
- Quem ressuscitou verdadeiramente? - disse Stephens. Rayford atribuiu a frase errada ao problema físico do homem, fosse ele qual fosse. Albie limitou-se a olhar para Stephens. Rayford notou que Albie tirara a mão da arma mas não havia afivelado o coldre. Rayford pensou em pegar a arma, matar os dois e fugir com Hattie.
- Comandante Elbaz, você tem uma missão a cumprir aqui. Vou lhe dar permissão depois de satisfazer minha curiosidade a respeito de vocês dois. Sei que é difícil alguém olhar para mim, que vocês estão imaginando o que aconteceu comigo. Por mais esforço que eu faça, é difícil entender o que eu digo. Vocês já viram alguém sem a maior parte do rosto?
Os dois sacudiram a cabeça. Stephens colocou o polegar inteiro sob o queixo e disse:
- Assim que eu retirar a prótese vou ter dificuldade para me expressar, por isso vou falar o mínimo possível.
Um puxão rápido!
Rayford estremeceu quando Stephens puxou com força a película de plástico que ficava debaixo do queixo.
Mais um puxão rápido! E outro!
À medida que ele continuava, ficou claro que a prótese era uma única peça que substituía a maior parte de seu queixo, nariz, cavidades oculares e testa. A prótese era presa por grampos de metal encaixados no que restara dos ossos da face. Stephens segurou-a no lugar com a mão sem dedos e disse:
- Preparem-se. Não vou deixar que vocês olhem por muito tempo.
Albie levantou a mão.
- Sr. Stephens, não é necessário. Temos uma missão a cumprir aqui, mas não vejo necessidade de...
Ele parou de falar quando Stephens puxou a peça inteira do rosto, deixando à mostra uma cavidade monstruosa. Apenas uma parte dos lábios deixava transparecer que havia um ser humano ali, e Rayford esforçou-se para não cobrir os olhos. O homem não tinha nariz, e as cavidades oculares estavam expostas. Rayford achou que ele conseguia enxergar pelo cérebro, através dos buracos na testa.
Rayford voltou a respirar naturalmente depois que Stephens recolocou a prótese.
- Perdoem-me, cavalheiros - disse Stephens -, mas, conforme eu imaginava, nenhum de vocês viu o que eu queria que vissem.
- O que foi que não vimos? - perguntou Albie, visivelmente abalado.
- Alguma coisa que explica o que vejo no rosto de vocês.
- Estou perdido - disse Rayford.
- Você não está perdido - disse Stephens, com um sorriso retorcido. - Já esteve perdido, mas agora foi encontrado. Vocês gostariam que eu retirasse novamente a prótese e...
- Não - disseram Rayford e Albie em uníssono. E Albie complementou: - Vá direto ao assunto.
Pinkerton cruzou as mãos sob o queixo, e seus olhos pareciam perfurar a mente de Albie.
- Como eu respondi quando você disse: "Ele ressuscitou"? Albie parecia ter readquirido a voz e o controle.
- Entendi você dizer: "Quem ressuscitou verdadeiramente?"
- Foi o que eu disse. E qual foi sua resposta? Albie remexeu-se no lugar e limpou a garganta.
- Creio que, de acordo com o protocolo, eu devo dizer "Ele ressuscitou", e você deve responder "Ele ressuscitou verdadeiramente".
- Tudo bem, mas você não respondeu à minha pergunta. Quem ressuscitou verdadeiramente?
Então, pensou Rayford, o negócio é comigo. Ele continuou em silêncio, sabendo que o momento da verdade havia chegado e aguardando para ver qual seria o resultado.
- Repita mais uma vez, comandante.
Albie respirou fundo e olhou para Rayford. A marca falsa em sua testa parecia verdadeira.
- Ele ressuscitou - resmungou Albie.
- Quem ressuscitou verdadeiramente? - disse Stephens, forçando outro sorriso nos lábios deformados.
- Oh, pelo amor de Deus! - disse Albie. - Estou cansado deste jogo.
- Cristo! - sussurrou Stephens, com euforia. - Vamos, irmãos! A resposta à pergunta é "Cristo!" Cristo ressuscitou verdadeiramente! Estou vendo o selo dos crentes na testa de vocês dois! Vocês não viram o meu por causa da deformidade de meu rosto. Olhem agora!
Desta vez ele puxou a prótese da parte superior do rosto. Rayford e Albie inclinaram-se para a frente, e lá, em meio aos ferimentos cauterizados, estava o selo, bem visível. Enquanto Stephens recolocava a prótese, Rayford virou-se e segurou a cabeça de Albie com as duas mãos. Em seguida, apoiou a parte de trás com a mão esquerda e esfregou a direita na testa de Albie.
- Satisfeito? - perguntou Albie, sorrindo.
Rayford tremia como geléia. Atirou o corpo para trás na cadeira, ofegante e incapaz de mexer um só dedo.
- Afinal, quem são vocês? - perguntou Stephens. Rayford inclinou-se para a frente.
- Eu sou...
- Oh, eu sei quem você é. Fiquei sabendo imediatamente, apesar de sua nova aparência. Mas quem é esse sujeito aí?
Albie apresentou-se.
Stephens inclinou-se para frente e sacudiu a cabeça. Em seguida, virou-se para Rayford.
- Deixei o Sr. Steele completamente atordoado, não?
- Atordoado é uma palavra branda - disse Rayford.
- Você e eu trabalhamos para Carpathia na mesma época, Rayford. Antes disso, seu genro trabalhou para mim.
- Você é Steve Plank?
- Em carne e osso, ou o que restou. Esmagado, retalhado, queimado e dado como morto pelo terremoto da ira do Cordeiro. Antes disso, fiquei amargurado durante semanas, lendo as matérias de Buck, pensando coisas a respeito de Carpathia. Decidi que, se Buck e os outros crentes estivessem certos a respeito de um terremoto global, eu devia estar convertido quando ocorresse o primeiro tremor de terra. Eu estava orando quando o edifício desabou. Rayford balançou a cabeça de um lado para o outro.
- Mas por que você voltou a trabalhar para a CG?
- A idéia ocorreu-me no hospital. Ninguém, inclusive eu, sabia quem eu era. Quando minha memória voltou, inventei um nome e uma história. Isso foi há 21 meses. Durante um ano de terapia e reabilitação, tive tempo para pensar onde eu queria ficar. Eu queria estraçalhar Carpathia.
- E por que não contou a ninguém? Todos pensaram que você estava morto.
- Os melhores segredos são guardados entre duas pessoas, desde que uma delas esteja morta. Um dos golpes mais sujos de Carpathia foi a maneira como ele tratou Hattie Durham. Eu ingressei nas Forças Pacificadoras e fiquei de olho nela até trazê-la para cá. Orei muito para que este dia chegasse. Vou seguir ordens, cumprir regras, fazer meu trabalho, e vocês vão resgatá-la.


David entrou em pânico. Depois de assistir à apresentação surrealista de Carpathia, Fortunato e Viv Ivins, ele estava na fila para sair dali com os outros. Mas Carpathia postou-se perto da porta, aceitando abraços, apertos de mão, beijos e mesuras dos diretores. O desavergonhado Hickman ajoelhou-se e passou os braços ao redor das pernas de Nicolae, chorando copiosamente. O potentado revirou os olhos e lançou um olhar aterrador a Fortunato.
Quando ficou em sexto lugar na fila, David orou desesperadamente. O que ele deveria fazer? Como ser humano, queria simular qualquer coisa para não ser descoberto e não prejudicar o restante do Comando Tribulação. Mas não podia, não queria, ajoelhar-se diante do anticristo. Seria impossível que uma quebra de protocolo passasse despercebida. Parecia que ele seria o único diretor que não diria tolices sobre o líder ressurreto.
Senhor Deus, ajuda-me! orou silenciosamente. Seria o fim? Deveria ele dizer o que pensava e esperar pelo melhor? Ou deveria apertar a mão de Carpathia e dizer algumas palavras neutras, tais como "Que bom ver o senhor bem depois de ter morrido" ou "Seja bem-vindo ao mundo dos vivos"?
A não ser pelo ar de reprovação diante da atitude de Hickman, Carpathia acolhia com gentileza e humildade as palavras doces de seu pessoal.
- Obrigado. Sou muito grato por seu companheirismo e apoio. Teremos ótimos dias pela frente. Sim. Sim.
Quando ficou em segundo lugar na fila, David sentiu náuseas. Literalmente. Seu couro cabeludo dolorido vibrava contra as bandagens a cada batida do coração. Ele tentou Orar, tentou entender qual era a vontade de Deus naquele momento. Mas, quando o diretor à sua frente afastou-se depois de abraçar longamente o potentado, David parou sem saber o que fazer.
Carpathia estendeu os braços e disse:
- David, meu querido David.
David não conseguia se mexer e percebeu que todos Olhavam para ele. Carpathia parecia atônito, tentando puxá-lo para perto de si. David disse:
- Poten... poten... Excelên...
A seguir, inclinou-se para a frente. A última coisa que ele viu antes de cair e bater com a cabeça no piso de mármore foi que vomitou em cima de Carpathia.


- Como vai, Zeke? - perguntou Buck por telefone, visualizando a figura do rapaz, que gostava de usar roupas pretas e folgadas, escondido no porão do posto de gasolina de seu pai na cidade destruída de Des Plaines.
- Estou bem - foi a resposta sussurrada. - Estou vendo TV para me distrair e tenho um bom estoque de comida aqui. Só que o lugar é muito escuro. E não há nada para ver na TV a não ser toda aquela baboseira sobre Carpathia.
- Você está de olho no pessoal da CG?
- Estou. Toda vez que ouço barulho de motor, corro até o monitor para ver o que está acontecendo. Alguns motoristas não são nossos clientes. Eles vêem a bomba e param. Aí, o carro da CG surge, vindo do outro lado da estrada, e pára na frente deles.
- Um jipe?
- Não, um carro pequeno de quatro portas, de cor escura.
- Ótimo.
- Ótimo por que, Sr. Williams?
- Porque eu vou chegar aí com um Hummer branco para pegar você, e ele vai passar por cima desse fusquinha.
- Não é um fusquinha, senhor. É...
- É apenas uma maneira de falar, Zeke.
- Saquei.
- Quer dizer que os carros que chegam aí não são cercados pela frente e por trás?
- Não, eles só têm um carro aqui. Eu fui espiar.
- Você foi espiar?
- Fui. Eu sei que não devia, mas estava cansado de ficar aqui. Subi a escada e consegui ver o outro lado da estrada. Você sabe que ela nunca foi consertada. Eles jogaram um pouco de asfalto há mais de um ano, e só. A estrada foi ficando toda esburacada, e agora só existem pedaços de asfalto. Não passam muitos carros por aqui.
- Você tem certeza de que a CG não sabe que você está aí?
- Tenho. Eles não sabem que existe um porão. Nem deveria existir. Foi cavado por meu pai e eu.
- Onde estão os entulhos?
- Lá nos fundos, do outro lado da porta da entrada de serviço.
- Hum, eu nunca notei nada. Qual é a distância entre a escada secreta e o porão?
- Uns três metros.
- Quer dizer que, se eu chegar pelos fundos do posto, vou ver uma porta bem no meio da parede, e você pode chegar até ela subindo a escada e caminhando uns três metros beirando o muro dos fundos.
- Isso mesmo.
- Se você perceber que estou chegando, pode sair escondido pelos fundos sem ser visto pelo pessoal da CG, é isso?
- Mas acho que eles vão ver você.
- É isso o que me preocupa. Não queremos que eles saibam que você estava escondido no porão. Você sai e se arrasta pelos fundos do posto. Vou levar um cobertor para esconder você.
- Estou levando muita coisa comigo.
- Não há problema. Se eles me virem e me pararem, vou dar um jeito de escapar, mas quero fazer o possível para que eles não saibam que cheguei.
O telefone deu um sinal avisando Buck que havia outra ligação. Era Rayford.
- Zeke, vou ligar para você depois. Pode ser a qualquer momento. Deixe tudo pronto. - Buck apertou o botão. - Aqui é Buck.
- Buck, você não imagina com quem eu acabei de orar.
- Hattie?
- Não, você nunca vai adivinhar.


David despertou no hospital do palácio durante a madrugada. Havia alguém acariciando-lhe a mão.
- Não fale - ela cochichou. Era a enfermeira Palemoon. -Você é uma celebridade.
-Eu?
- Silêncio. O palácio todo está comentando que você vomitou em Carpathia.
David estava novamente ligado ao soro intravenoso. Sentia-se melhor.
- Você trocou minhas roupas?
- Sim, agora descanse.
- Pensei que você estivesse de folga.
- Estava, mas me trouxeram até aqui porque fui eu quem suturou você. Nenhum médico gosta de sair da cama a estas horas.
- Hannah, eu preciso sair daqui.
- Não. Você devia ter ficado conosco mais alguns dias, e agora vai ter essa chance.
- Eu não posso, nem você. - Ele contou baixinho o que ouvira na reunião. - Temos de sair daqui antes de 30 dias ou estar preparados para arcar com as conseqüências.
- Eu estou preparada, David. Você não?
- Você sabe o que quero dizer. Preciso encontrar minha noiva e dois pilotos. Se você conhecer outros crentes...
- Noiva? Você está comprometido com alguém?
- Com Annie Christopher, a chefe do setor de cargas do Fênix.
- Eu não sei o que lhe dizer, David. Se ela estivesse aqui, já teria aparecido no sistema.
- Você poderia verificar mais uma vez? E veja se consegue trazer Mac McCullum e Abdullah Smith até aqui.


- Isso tudo é uma farsa, Albie - disse Plank. - Acha que posso relatar que um tal subcomandante Elbaz esteve aqui apresentando suas credenciais e que eu segui a lei à risca?
- Meu nome está tão evidente no banco de dados da CG que ninguém vai questionar - disse Albie. - Talvez estranhem o fato de não me conhecerem pessoalmente.
- Em breve - disse Rayford -, vou receber minhas credenciais e Albie vai se reportar a mim. Só não quero comprometer o rapaz que trabalha internamente, aquele que prepara tudo para nós.
- Como alguém vai saber que as instruções partiram dele ou do palácio? - perguntou Albie.
- Não sei. Talvez ele esteja impedido de nos ajudar, mas vamos ter de informá-lo sobre o que está acontecendo.
Plank conduziu-os pelo corredor, passou pela recepcionista e chegou ao local da cela.
- Ouvi um barulho ali atrás há alguns minutos - gritou a Sra. Garner de sua mesa.
- Briga?
- Uma pancada, só isso.
Plank bateu na porta da cela de Hattie, mas ninguém respondeu.
- Senhora - ele disse em voz alta -, o pessoal da CG está aqui para levá-la de volta ao PRFB. - Plank piscou para Rayford e Albie. - Posso entrar, senhora?
Plank pegou a chave-mestra, destrancou a porta e abriu-a alguns centímetros até encontrar resistência. Albie e Rayford deram um passo à frente para ajudar, mas Plank disse:
- Eu sei como lidar com isso.
Ele afastou a cadeira de rodas e, em seguida, arremessou-a contra a porta, mas havia uma cama atravessada para impedir a entrada de alguém.
- Oh, não! - ele disse.
Rayford passou na frente dele e atirou-se com o ombro contra a porta para forçar a entrada.
O cômodo estava escuro, mas quando ele bateu a mão no interruptor começaram a sair faíscas do teto, no lugar onde deveria haver uma luminária. A luz que vinha do corredor mostrava que a luminária estava no chão, amarrada à ponta de um lençol. A outra ponta estava presa ao redor do pescoço de Hattie, que se encontrava no chão, estrebuchando.
- Tentou pendurar-se na luminária - disse Plank.
Albie pulou por cima dele e ajoelhou-se perto de Hattie. Ele e Rayford demoraram um pouco para desamarrar o lençol. Rayford virou-a de costas, e ela tombou a cabeça como se estivesse morta. Quando seus olhos se acostumaram à escuridão, ele viu que os dela estavam abertos, com as pupilas dilatadas.
- Ela está se mexendo! - cochichou Albie, segurando-a pelo cinto e levantando-a um pouco do chão. Rayford tampou-lhe o nariz para que ela abrisse a boca e começou a fazer respiração boca a boca. O frágil corpo dela levantava e abaixava à medida que ele introduzia ar em seus pulmões. Albie pressionava-lhe o peito para que ela soltasse o ar.
- Feche a porta - disse Albie a Plank.
- Vocês não precisam de iluminação?
- Feche a porta! - cochichou Albie, desesperado. - Vamos salvar esta moça, mas ninguém pode saber de nada.
Plank manobrou a cadeira para afastar a cama do caminho e fechou a porta.
- Sinto o pulso dela - disse Albie. - Você está bem, Ray? Quer que eu tome o seu lugar?
Rayford sacudiu a cabeça e continuou com a respiração boca a boca até Hattie começar a tossir. Finalmente, ela começou a engolir golfadas de ar e soltá-las. Rayford sentou-se pesadamente no chão, com as costas apoiadas na parede. Hattie começou a chorar e a proferir palavrões.
- Não posso nem me matar - ela disse entre os dentes. - Por que não me deixaram morrer? Não posso voltar para aquela prisão.
Ela chorava copiosamente, rolando no chão.
- Ela não reconhece ninguém - disse Albie.
Hattie olhou de esguelha para cima. Rayford acendeu uma lâmpada pequena.
- Não, não sei quem são vocês - ela disse, olhando para Albie e depois para Rayford. - Eu conheço o comandante Pinkerton, mas quem são esses dois idiotas?
Albie apontou para Rayford.
- Ele salvou sua vida. Eu sou apenas o idiota amigo dele. Hattie sentou-se no meio da cela, com os joelhos erguidos e as mãos ao redor deles. Proferiu mais um palavrão.
- Você não vai voltar para o PRFB, Hattie - disse Rayford. Foi então que ela reconheceu a voz dele.
- O quê? - ela disse, com ar de espanto na voz.
- Sim, sou eu - disse Rayford. - Não há segredos nesta cela.
- Você veio? - ela perguntou, com voz esganiçada, arrastando-se até ele e tentando abraçá-lo.
Rayford amparou-a. Ela olhou para Plank.
- Mas...
- Estamos juntos nesta missão - disse Rayford.
- Eu quase me matei - disse Hattie.
- A bem da verdade - disse Albie -, você se matou.
- O quê?
- Você está morta.
- Do que você está falando?
- Você quer sair daqui? Quer ficar longe da CG? Vai ter de sair daqui morta.
- O que você está dizendo?
- Você chamou seu amigo para resgatá-la. Ele se recusou. Você ficou desesperada. Quando perdeu as esperanças e soube que ia voltar para o Presídio da Bélgica, você entrou em desespero, escreveu um bilhete e enforcou-se. Viemos buscá-la, mas foi tarde demais. O que poderíamos fazer? Relatar o suicídio e nos livrar do corpo.
- Eu escrevi um bilhete - ela disse. - Vejam!
Hattie apontou para um pedaço de papel que caíra da cama.
Rayford pegou-o e leu-o sob a lâmpada.
"Obrigada por não terem feito nada por mim, meus velhos AMIGOS!!!", ela havia escrito. "Jurei que não voltaria ao PRFB e não vou voltar. Vocês não têm condições de vencer essa gente."
- Assine o bilhete - disse Rayford.
Hattie massageou o pescoço e tentou limpar a garganta. Encontrou a caneta e assinou o bilhete.
- Por quanto tempo você consegue prender a respiração? - perguntou Albie.
- Não muito, a ponto de me matar.
- Vamos tirá-la daqui debaixo de um lençol. Você também vai ter de parecer morta quando a colocarmos no avião. Acha que vai conseguir?
- Vou fazer o que for necessário. - Ela olhou para Plank. -Você também está envolvido nessa história?
- Quanto menos você souber, melhor - ele disse, olhando para Albie e depois para Rayford.
- Por mim, ela nunca vai precisar saber.
Ambos concordaram com um movimento de cabeça. Plank lhes disse para deixarem o lençol como estava, com a luminária presa em uma das pontas.
- Usem o outro lençol da cama para cobri-la. Façam isso já.
Rayford arrancou o lençol da cama, e Hattie deitou-se em cima do colchão. Ele levantou o lençol acima dela e o deixou cair naturalmente. Plank abriu a porta.
- Sra. Garner! - ele gritou -, aconteceu uma tragédia!
- Oh, meu...
- Não, não se aproxime! Fique onde está. A prisioneira se enforcou, e a CG vai cuidar do corpo.
- Oh, comandante! Foi esse o barulho que ouvi?
- Talvez.
- Eu poderia ter feito alguma coisa? Deveria?
- A senhora não poderia ter feito nada. Vamos deixar que estes homens façam o trabalho. Traga-me a maca que está no depósito.
- Eu não vou precisar olhar, não é verdade, senhor?
- Eu vou cuidar disso. Vá buscar a maca. Mais tarde eu dito um relatório.
Apesar do rosto lívido e dos protestos da Sra. Garner, Rayford percebeu que ela acompanhou o "corpo" com os olhos até ser colocado na minivan. Ele se surpreendeu diante da habilidade de Hattie de parecer imóvel sob o lençol.
Plank concordou em ligar para o Campo de Aviação Memorial a Carpathia a fim de autorizar o subcomandante Elbaz e seu motorista a estacionarem o veículo de Judy Hamilton ao lado do caça a jato para colocarem um corpo que seria transportado no avião. Não, eles não necessitariam de ajuda e gostariam que o caso fosse tratado com a maior discrição possível.
Quando faltavam alguns quilômetros para chegar ao campo de aviação, Hattie voltou a cobrir-se com o lençol. Apesar dos olhares curiosos através dos vidros da minivan, Rayford e Albie a colocaram dentro do caça sem levantar suspeitas.

SETE

Assim que escureceu, Buck tirou o Hummer da garagem no subsolo do Edifício Strong, com os faróis apagados. Ele passara a tarde improvisando uma conexão especial entre as luzes do freio e as das lanternas traseiras. Assim que saísse do perímetro urbano de Chicago, ele não queria correr o risco de ser parado por causa de mau funcionamento das lanternas traseiras, mas também não queria que as luzes do freio acendessem quando ele chegasse ao esconderijo de Zeke.
Zeke era um especialista em assuntos dessa natureza e orientou Buck por telefone. Seria ótimo ter Zeke morando na nova casa secreta para ajudá-los nesse tipo de detalhe. As luzes do breque estavam desligadas. Com os faróis acesos ou não, Buck teria de acionar manualmente a luz do freio todas as vezes que freasse. Havia um fino fio vermelho que saía de trás do carro, passava pelo banco traseiro e terminava ao lado do motorista. Ele só precisaria lembrar-se de usá-lo.
Ninguém sabia com que freqüência a CG investia tempo, equipamento e pessoal para sobrevoar a cidade que, de acordo com seus bancos de dados, havia sofrido um alto nível de radioatividade. Não fazia sentido alguém aproximar-se do local. Se os índices fossem verdadeiros, ninguém conseguiria viver ali por muito tempo. Somente David Hassid e o Comando Tribulação conheciam a realidade dos fatos.
Apesar de Rayford saber disso, seu plano era pousar e decolar o helicóptero na torre durante a noite. E Buck, ou qualquer pessoa que chegasse ou partisse de carro, deveria entrar e sair da garagem somente depois do anoitecer. Essa era uma boa estratégia, porque todas as luzes da cidade - exceto as do Edifício Strong - estavam desligadas. Se não houvesse luar, seria quase impossível enxergar alguma coisa naqueles escombros com quilômetros de extensão que um dia haviam sido as ruas da cidade de Chicago.
Buck saiu da garagem lentamente dirigindo o enorme Hummer, que rodava com facilidade sobre o terreno acidentado. Ele precisava acostumar-se com o carro, o maior que já havia dirigido. Era confortável, possante e - para satisfação de Buck - surpreendentemente silencioso. Buck imaginara que dirigir o Hummer seria o mesmo que dirigir um tanque de guerra.
Enquanto estivesse rodando pela cidade de Chicago, seria difícil acostumar-se com o carro. Só depois que entrasse na estrada é que Buck ganharia confiança. Lá, não haveria ninguém prestando atenção nele. Meia hora depois, ele chegou ao limite da cidade e pegou uma estrada deserta que dava acesso aos subúrbios. Acendeu os faróis e ligou, com a mão esquerda, o botão para acionar a luz do freio.
Perto de Park Ridge havia uma parte da estrada reconstruída com vários quilômetros de asfalto novo e algumas luzes sinalizadoras de trânsito. O restante da região norte de Illinois parecia ter regredido aos tempos das diligências. Em meio aos escombros, havia trilhas abertas pelos carros que ali passavam, e a chuva deixara alguns trechos praticamente intransitáveis.
Buck avistou duas viaturas da CC e poucos carros particulares rodando. Assim que se sentiu seguro, ele testou a potência do Hummer e praticou algumas manobras para a esquerda e para a direita em velocidades diferentes. Ele foi acentuando as manobras à medida que acelerava, mantendo o corpo firmemente preso pelo cinto de segurança. Nada alterava a estabilidade do Hummer. Buck encontrou uma área deserta onde ninguém poderia vê-lo e fez duas manobras rápidas em um terreno inclinado. O Hummer parecia querer mais. Seu porte robusto, seu peso e sua potência conferiam-lhe uma mobilidade inigualável. Buck sentia-se como se estivesse participando de um comercial de TV.
Em um trecho de terra, ele pisou fundo no acelerador. Quando chegou a quase 130 km/h, ele brecou com força e virou o volante. O sistema antitrava impediu que ele patinasse ou tombasse. Buck não via a hora de competir com o "carrinho" que a CG estava usando na área vigiada de Des Plaines.
Buck precisava acalmar-se. A idéia era pegar Zeke sem ser visto. Ele pararia no posto como se fosse um cliente comum e abalroaria o carro da CG caso eles se aproximassem para investigar. Mas os guardas, equipados com telefones, rádios e uma rede de comunicação, poderiam cercá-lo facilmente. Se Buck encontrasse uma forma de aproximar-se do posto pelos fundos, com os faróis apagados, talvez não fosse visto nem mesmo no momento de sair dali com Zeke.
Seu telefone tocou. Era Zeke.
- Você está perto? - perguntou o jovem.
- Mais ou menos. O que houve?
- Vamos ter de pôr fogo neste lugar.
- Por quê?
- Assim que eles acharem que já prenderam todos os rebeldes que usavam este posto aqui, vão pôr fogo em tudo, certo?
- Talvez - disse Buck. - E por que não deixar esta tarefa a cargo deles?
- Eles podem querer revistar antes.
- E o que vão encontrar?
- O porão, é claro. Não quero deixar nenhuma prova aqui que possa entregar meu pai.
- O que mais vão querer fazer com ele?
- Ele foi preso porque estava vendendo gasolina sem autorização da CG. Eles vão multar meu pai ou deixá-lo atrás das grades por um mês ou dois. Se descobrirem que a gente estava falsificando documentos aqui, ele vai passar a ser inimigo do Estado.
- Bem lembrado - disse Buck. Ele estava sempre se surpreendendo com a experiência de vida daquele rapaz aparentemente tão ingênuo. Quem poderia supor que um ex-drogado, com habilidade para fazer tatuagens, era o melhor falsificador de documentos no ramo?
- E tem mais, Williams. Também vendemos alguns petiscos aqui. Guloseimas, se esta for a palavra certa. Você sabe, porque já comprou essas coisas aqui. O meu plano é o seguinte. Instalo um marcador de tempo ligado a uma vela de ignição. Você sabe que não é a gasolina que queima.
- Como assim? - Buck sentia-se um completo idiota. Apesar de ter sido um jornalista que viajou o mundo inteiro, ali estava um rapaz praticamente analfabeto tentando dizer-lhe que o fogo na gasolina não é o que parece ser.
- É verdade. Não é a gasolina que queima. Quando eu trabalhava no posto ajudando meu pai, no tempo em que nosso negócio era legal, eu costumava atirar cigarros dentro de um balde de gasolina que ficava lá nos fundos.
- Não acredito.
- Eu juro.
- Cigarros acesos?
- Eu juro, é verdade. Era assim que a gente apagava os cigarros. Eles apagavam como se tivessem sido jogados dentro de um balde d'água.
- Não estou entendendo nada.
- A gente guardava gasolina lá para limpar as mãos. Sujeira de graxa. Além de encher os tanques e anotar os números dos cartões de crédito, às vezes a gente também precisava mexer nas rodas dos carros.
- Até agora, não entendi como você tinha coragem de atirar um cigarro aceso dentro de um balde de gasolina.
- Muitas pessoas não sabem disso ou não acreditam.
- Como vocês sabiam que aquilo não ia explodir?
- Se a gasolina tivesse sido colocada há pouco tempo no balde, a gente precisava esperar um pouco. Se tivesse um pouco de vapor acima dela, como acontecia logo depois que era despejada no balde ou no tanque de um carro, aí sim era perigoso chegar perto com qualquer tipo de chama.
- Mas assim que ela se assentava, os vapores desapareciam?
- Desapareciam, e a gente jogava os tocos de cigarro lá dentro.
- Então, o problema é com os vapores.
- Isso mesmo, os vapores é que queimam.
- Entendi. E aí? O que você tem em mente?
- Veja só, Williams, com um motor acontece a mesma coisa. O motor de um carro espirra jatos de gasolina nos cilindros e a vela de ignição solta faíscas, mas não queima a gasolina.
- Os jatos de gasolina emitem vapores, que, em essência, explodem no cilindro - disse Buck.
- Agora você entendeu.
- Ótimo. Já estou a caminho daí. Explique qual é a sua idéia.
- Eu arrastei duas caixas pesadas para perto de um monte de lixo nos fundos e peguei uma sacola grande de lona. Coloquei os meus arquivos, meus equipamentos, tudo lá dentro. Ainda sobrou espaço para um pouco de mantimento.
- Já temos mantimento suficiente, Zeke.
- A gente nunca consegue ter comida suficiente. Deixei tudo lá esperando sua chegada. Se eles não virem você chegando, eu corro, jogo tudo dentro do carro e entro em seguida.
- Parece um bom plano. E como você vai fazer para queimar tudo antes?
- Ah, é verdade. Tenho algumas peças de carro aqui. Eu corto uma parte de um cano que vai até o depósito da gasolina, que corre ao lado do muro que cavamos aqui fora, e engancho um injetor de combustível nele. Quando eu sair, ligo a torneira, a gasolina passa pelo injetor de combustível e começa a espirrar.
- Em pouco tempo, o porão vai ficar cheio de gasolina.
- De vapores.
- Correto. E aí você acende um fósforo, atira-o na escada e corre para o carro?
Zeke riu.
- Não ria alto - disse Buck.
- Eles não conseguem me ouvir. Mas não vai ser assim. Se eu atirar um fósforo aceso lá embaixo, a coisa vai explodir em mim e atingir todo o caminho até Chicago. Você nem ia precisar vir até aqui.
- Então, com o que você vai atear fogo?
- Eu ligo uma vela de ignição a um marcador de tempo. Preciso de mais ou menos cinco minutos para sair sem me arriscar muito. E, no momento certo, bum!
- Bum!
- É isso aí!
- Zeke, mesmo que eu concordasse, você não teria tempo de instalar tudo isso. Estou a menos de dez minutos daí.
- Achei que você ia concordar.
- E...?
- Está tudo pronto.
- Você está brincando.
- Não. Se você está a menos de dez minutos daqui, vou marcar 15 minutos. Quando eu sair, abro a torneira.
- Rapaz, você é esperto demais.
- Eu sei como fazer essas coisas.
- Claro que sabe, mas quero que me faça um favor.
- Diga.
- Marque cinco minutos, mas só ligue o marcador depois de abrir a torneira, quando você estiver saindo. Combinado?
- Combinado.
- Ah, mais uma coisa. Eu preciso estar aí antes de você abrir a tal torneira.
- Correto. Isso é muito importante.
- Se não, Zeke, bum.
- É isso aí.
- Ligo para você assim que chegar.


- O nome dela não consta de nosso sistema, David - disse a enfermeira Palemoon. Ele tentou sentar-se, mas ela o deteve.
- O que não significa que tenha acontecido o pior.
- Como você pode dizer isso? O sol está nascendo e até agora não recebi notícias dela. Ela teria me ligado se pudesse!
- David, você precisa acalmar-se. Neste quarto não há outras pessoas, mas não é seguro. Seus amigos estão a caminho, mas você não pode confiar em mais ninguém.
- Preste atenção, Hannah, você precisa me tirar daqui. Não posso ficar por mais alguns dias. Tenho muito o que fazer antes de ir embora de Nova Babilônia.
- Eu posso conseguir remédios, roupas e outras coisas, mas você está ferido.
- Não estou preocupado com isso. Você iria... - A voz dele ficou embargada. - Você iria...
- Você quer que eu vá até o necrotério? - Ela disse estas palavras com tanta compaixão que David quase ficou sufocado pelo sofrimento.
Ele assentiu com a cabeça.
- Volto logo. Se seus amigos chegarem nesse meio-tempo, diga a eles que existem ouvidos por toda parte.


Rayford, Albie e sua carga humana do Colorado pousaram em uma pequena pista perto de Bozeman, Montana. Eles não quiseram voltar para Kankakee sem dormir um pouco antes. Albie enganou e ameaçou o pequeno contingente da CG ao lado da pista. Eles aceitaram a história de que Albie estava transportando um criminoso e autorizaram os três a seguirem de jipe até a cidade.
Bozeman estava praticamente destruída, mas restara ali um hotel pequeno, onde eles alugaram dois quartos.
- Acho que não vamos ter de nos preocupar em manter você trancada - disse Rayford a Hattie.
- Comparada à PRFB - ela disse -, a nova casa secreta deve ser um céu.
- Você ficará lá dentro pelo resto da vida - ele disse. - Há mais pessoas lá, e você vai ser nosso principal alvo.
- Pelo menos uma vez na vida, eu vou ouvir os outros - ela disse.
- Não diga coisas que não vai fazer.
- Eu não vou mais dizer coisas que não vou fazer. Hattie tinha um milhão de perguntas acerca de Pinkerton Stephens, mas Rayford e Albie limitaram-se a dizer que "ele é um dos nossos". Depois, ela quis conhecer a história de Albie, e ele lhe contou que se converteu depois de uma vida inteira como muçulmano.
- Você sabe o que quero dizer quando menciono o nome de Tsion Ben-Judá? - ele perguntou.
- Se eu sei? Eu o conheço pessoalmente. Você está falando de um homem que ama quem não merece ser amado...
- Você está falando de si mesma, moça?
Ela deu um longo suspiro e assentiu com a cabeça.
- De quem mais eu poderia estar falando?
- Permita-me dizer-lhe uma coisa. Eu era uma pessoa que não merecia amor. Nunca fui bom marido nem bom pai. Agora toda a minha família está morta. Fui um criminoso,e a única pessoa que se interessou por mim me pagava muito bem para obter o que necessitava. Eram coisas ilegais. Comecei a justificar minha existência quando o mercado negro em que eu trabalhava foi usado para opor-se ao novo legislador maligno do mundo. Mas eu não o chamava de anticristo. Não conhecia essa palavra. Eu estava trabalhando nesse mesmo ramo quando o mundo ficou caótico. Meu deus era o dinheiro, e eu sabia como consegui-lo. Quando Mac e Rayford necessitaram de meus serviços - ele prosseguiu -, fiquei um pouco aliviado, porque eles pareciam ser boa gente. Eu não estava mais ajudando criminosos. Observei o comportamento deles, ouvi o que tinham a me dizer. Aos olhos da Comunidade Global, eles eram foragidos, mas para mim aquilo era um distintivo de honra. Quando todas as coisas que Mac e Rayford me contaram começaram a acontecer, eu não quis admitir a eles que estava intrigado. A palavra não era bem esta. Eu estava morrendo de medo. Se tudo aquilo fosse verdade, eu era um estranho no ninho. Não era crente. Comecei a ler as mensagens do Dr. Ben-Judá pela Internet sem o conhecimento de meus amigos. Eu continuava orgulhoso. O que mais me impressionou foi o Dr. Ben-Judá ter deixado tão claro que Deus amava os pecadores. E eu sabia que era um pecador. Não conseguia entender como alguém podia me amar. Fiz um download da Bíblia para meu computador e a comparava com os ensinamentos do Dr. Ben-Judá. Vi onde ele conseguia suas informações, mas como eram lindas as suas mensagens! Elas tinham de vir de Deus. O que eu estava aprendendo ia de encontro a todas as coisas que ouvi e que me ensinaram. Minha primeira oração foi tão infantil que nunca tive coragem de repeti-la na frente de outras pessoas. Eu disse a Deus que era um pecador e que queria acreditar que Ele me amava e que me perdoaria. Contei a Ele que a religião ocidental era tão estranha para mim que eu não sabia se conseguiria entendê-la um dia. Eu disse ao Senhor: "Se tu és mesmo um Deus vivo e verdadeiro, esclarece isso para mim." Eu pedi perdão pela vida que levei e disse que Ele era minha única esperança. Só isso. Não senti nada, talvez eu tenha me achado um pouco tolo. Mas naquela noite dormi como não dormia havia anos. Oh, não me interprete mal. Eu não tinha certeza de haver me aproximado de Deus. Não tinha certeza se Ele era mesmo quem o Dr. Ben-Judá e os outros diziam ser. Eu só sabia que havia feito tudo o que podia. Tinha sido honesto comigo mesmo e honesto com Ele. Se Ele fosse quem eu esperava, iria me ouvir. Era o máximo que eu poderia esperar. Albie endireitou o corpo e inspirou profundamente.
- Só isso? - perguntou Hattie. - Não houve mais nada? Ele sorriu.
- Achei que devia fazer uma pausa para ver se deixei você com sono depois de toda essa conversa.
- Vocês dois foram os únicos que ficaram acordados a noite toda. Conte-me o que aconteceu depois.
- Acordei na manhã seguinte com uma sensação de expectativa. Eu não sabia o que fazer. Antes mesmo de comer alguma coisa, senti uma fome e uma sede profunda pela Bíblia. Fome e sede. Não existem outras palavras para expressar o que eu sentia. Acreditava de todo o coração que ela era a Palavra de Deus, e eu precisava lê-la. Liguei o computador e li, li, li e li. A sensação foi indescritível. Eu compreendi tudo! Queria ler mais. Queria extrair mais coisas para mim. Só depois do meio-dia, quando eu comecei a sentir fraqueza, foi que me dei conta de que não havia comido nada até aquela hora. Agradeci a Deus infinitas vezes sua Palavra, sua verdade e suas respostas à minha oração. Agradeci porque Ele se revelou a mim. De vez em quando, eu parava de ler a Bíblia para ver se o Dr. Ben-Judá havia incluído alguma novidade. Comecei a seguir algumas orientações dele sobre alguns links e encontrei um site onde havia uma oração à qual ele dá o nome de oração do pecador.
Fiz aquela oração e vi que era parecida com uma que eu já havia feito. Eu era um crente, um filho de Deus que recebeu seu perdão, um pecador a quem Ele amava.
Hattie parecia incapaz de dizer alguma coisa, e Rayford já havia presenciado aquele tipo de comportamento. Muitas pessoas já haviam contado a ela como se converteram. Ela conhecia a verdade e o caminho a seguir, mas simplesmente não se decidia.
- Existe um motivo para que eu lhe conte a minha história - disse Albie. - E não é só porque eu quero convencer você. Nós, que passamos a conhecer a verdade, queremos que todo mundo também conheça. Mas fiquei intrigado com o que você disse a respeito de si mesma. Você disse que o Dr. Ben-Judá ama quem não merece ser amado. E ele ama mesmo. Essa é uma qualidade do cristão, uma característica de Jesus. Quando você disse que não merecia ser amada, eu me identifiquei com você. E tem mais, Srta. Durham. Vou usar uma frase do Dr. Ben-Judá. Ele costuma dizer que algumas verdades "comprovam a mentira" que existe em certas afirmações falsas. Você já ouviu falar disso e sabe o que significa? Ela assentiu com a cabeça.
- Isso se aplica a você, minha jovem. Eu acabei de conhecer você, e Deus me concedeu a graça de amá-la fraternalmente. Rayford, sua família e seus amigos falam sempre de você e do amor que lhe dedicam. Isso comprova a mentira que existe em sua afirmação de que não merece ser amada.
- Eles não deveriam me amar - ela disse em voz baixa.
- Claro que não deveriam. Você se conhece. Conhece seu egoísmo, seu pecado. Deus também não devia nos amar, mas Ele nos ama. E é por causa dele que amamos uns aos outros. Não existe explicação humana para isso.
Aflito, Rayford orava em silêncio por Hattie. Será que Deus incutira uma teimosia tão grande naquela moça por ela ter rejeitado a Cristo durante tanto tempo? Será que ela não conseguiria enxergar a verdade, mudar de opinião? E, se assim fosse, por que Deus permitia que Rayford e seus amigos se preocupassem tanto com ela?
De repente, ela se levantou, caminhou em direção a Rayford, curvou o corpo e beijou-lhe o topo da cabeça. Em seguida, fez o mesmo com Albie, segurando o rosto dele com as duas mãos.
- Não se preocupem comigo esta noite - ela disse. - Não vou fugir.
- Você não tem motivos para fugir - disse Albie. - Não está sob nossa custódia. Na verdade, está morta.
- De qualquer forma - disse Rayford levantando-se e esticando o corpo -, para onde você iria? Que lugar seria mais seguro do que aquele para onde estamos levando você?
- Obrigada por terem salvado minha vida - ela disse, dirigindo-se para seu quarto.
Assim que ela fechou a porta, Rayford disse:
- Eu só espero que tudo isso não tenha sido em vão. Eles a ouviram abrir e fechar a porta e, depois, caminhar dentro do quarto.
- Não foi em vão - disse Albie.
Rayford estava extremamente cansado, mas, quando começou a tirar a roupa para deitar-se, ele ouviu um som que se sobressaía ao barulho do chuveiro ligado por Albie. Parecia som de vozes no quarto ao lado. Ele encostou o ouvido na parede. Não eram vozes. Era som de choro, de soluços, de gemidos. Hattie devia estar abafando o pranto com o rosto enterrado no travesseiro ou cobertor.
Meia hora depois, deitado na cama em frente à de Albie e aguardando o sono chegar, Rayford ainda ouvia os lamentos de Hattie através da parede. Ele ouviu Albie virar e ajeitar o travesseiro e acomodar-se para dormir. - Senhor - murmurou Albie -, salva aquela moça.


Buck passou direto pelo pequeno posto de gasolina fingindo não ter notado a viatura da CG no meio de algumas árvores do outro lado da estrada. Nem chegou a reduzir a velocidade para não chamar a atenção. Pelo que ele percebera, havia dois guardas da CG dentro do carro. Ele ligou para Zeke.
- Alguma novidade?
- Nenhuma. Foi você que acabou de passar por aqui? Que lindeza de carro!
- Vou dar a volta e ver se posso entrar pelos fundos com os faróis apagados. Devo levar uns dez minutos. Assim que eu estiver na posição certa, ligo para você.
Buck continuou a rodar até não conseguir mais enxergar o posto de gasolina pelo espelho retrovisor, supondo que os guardas da CG também não conseguiriam mais enxergá-lo. Ele apagou os faróis e virou à direita, rodando devagar pelo terreno acidentado. O posto ainda estava a alguns quilômetros de distância, e Buck queria ter a certeza de que não encontraria nenhuma cerca ou buraco que pudesse prejudicar o Hummer.
Em um determinado ponto, enquanto se dirigia para os fundos do posto depois de ter virado mais duas vezes à direita, ele sentiu que um lado do carro afundou no chão e temeu que uma das rodas tivesse caído em alguma cratera. Quando a grade da frente bateu em uma coisa sólida, ele freou e acendeu os faróis por alguns instantes e desligou-os em seguida para que a CG não tivesse tempo de notar a presença de um carro ali. Buck percebeu que precisava dar marcha a ré e virar o volante para a esquerda, a fim de contornar um monte de um metro e meio de altura de entulho e de tábuas.
Ele queria acender novamente os faróis para ver se havia alguma coisa mais obstruindo o caminho até o posto, mas não se atreveu. Assim que teve uma noção do local, ele começou a rodar lentamente pelo terreno acidentado, balançando, sacolejando e - tomara! - sem levantar muita poeira. Era uma noite estrelada, e, se a CG notasse alguma poeira no ar, com certeza iria bisbilhotar o que estava acontecendo nos fundos do posto.
Buck ligou para Zeke.
- Estou ouvindo o barulho do carro - disse Zeke.
- Você está ouvindo? Daí de dentro? Isso não é bom.
- Foi o que pensei. Você está pronto para me pegar?
- Saia rápido. Você está carregando alguma coisa?
- Estou levando mais uma sacola. Achei que devia deixar o mínimo de coisas para trás.
- Bem pensado. Saia daí.
- Preciso abrir a torneira e ligar o marcador de tempo.
- Quanto tempo mais?
- Cinco minutos.
- Alguma coisa no monitor?
- Eles estão sentados dentro do carro.
- Ótimo. Prepare-se.
Buck sabia que poderia voltar por aquele mesmo caminho. Embora o terreno fosse muito acidentado, ele calculou que poderia rodar a uns 60 km/h. Para evitar que os guardas da CG ouvissem o barulho do Hummer, ele resolveu saltar do carro e colocar as coisas dentro para ganhar tempo.
A luz interna do carro não acendeu quando ele abriu a porta para sair. Ele não a fechou. Abriu a porta traseira do outro lado, rastejou e começou a pegar as coisas. A primeira caixa era muito pesada, e ele quase gemeu com o esforço para carregá-la. Em seguida, ouviu Zeke subindo a escada.
Buck colocou a caixa no banco traseiro do carro sentindo dores por todo o corpo em razão de seus recentes ferimentos. Quando deu a volta no carro para pegar a outra caixa, imaginando que Zeke poderia cuidar da sacola que carregava e da que estava no chão, ele quase trombou com o rapaz, assustando-o.
Zeke soltou um grito. Buck tentou silenciá-lo, mas Zeke atirou a sacola no chão e voltou correndo para seu esconderijo, batendo a porta com força. Buck ouviu os passos do rapaz descendo a escada. Agora eles estavam fazendo muito barulho.
Buck abriu a porta e o chamou desesperadamente, o mais baixo que podia.
- Zeke, sou eu! Vamos embora! Já!
- Oh, não! - gritou Zeke. - Pensei que fossem eles! O marcador de tempo está ligado, a gasolina está correndo. E eles estão chegando, Buck. Estou vendo pelo monitor!
Buck virou-se e abriu a porta traseira do carro. Pegou a sacola que estava ali e a outra que Zeke atirou no chão e as jogou no banco traseiro. Deixou a porta aberta, sentou-se ao volante e deu partida no Hummer. Zeke saiu do esconderijo e jogou-se no banco traseiro, derrubando uma das sacolas para fora do carro, pela porta que Buck deixou aberta.
Buck pisou fundo no acelerador, mas Zeke gritou:
- Não podemos deixar aquela sacola para trás! Ela está cheia de coisas importantes para nós!
A porta havia começado a fechar-se quando Buck acelerou, mas assim que ele pisou no freio, ela balançou e enroscou-se nas dobradiças.
- Pegue a sacola! - ele gritou.
Zeke deitou-se por cima do banco e esticou o corpo para pegar a sacola, arrastando consigo a outra sacola. A viatura da CG estava contornando o posto em frente a Buck.
- Acelere! Acelere! - berrou Zeke, forçando-se a sentar-se no banco traseiro com as duas sacolas pesadas enrascadas debaixo dos braços.
A porta continuava aberta, mas Buck tinha de sair rápido dali. Ele acelerou a toda e arremessou o carro de encontro à viatura da CG. Os guardas apontaram as armas e, aparentemente, estavam tentando alcançar as maçanetas para sair. Sabendo que não podia ficar sob a mira das balas, Buck mudou o câmbio para marcha a ré e acelerou. O carro possante escalou o monte de entulhos perto da porta do esconderijo de Zeke.
Buck parou no topo do monte, e o carro começou a balançar acima de seus perseguidores. Ele engatou a marcha e partiu. Quando os guardas da CG viram o carro começar a aproximar-se, eles abaixaram as armas e saíram do caminho. O Hummer caiu quase na vertical, chocando-se contra o capô da viatura e estourando dois dos pneus dianteiros. O motor da viatura começou a soltar água e fumaça, e Buck teve a certeza de que destruíra completamente o veículo da CG.
Sem olhar para os guardas, afastou-se uns dois metros, girou rapidamente o volante para a direita e desapareceu na escuridão da noite. Zeke conseguira fechar a porta de seu lado, mas nem ele nem Buck tiveram tempo de prender os cintos de segurança. Quando o Hummer disparou em alta velocidade, os dois foram atirados de um lado para o outro como se fossem duas bonecas de pano, batendo a cabeça no teto e os ombros nas portas. Buck freou de repente.
- O que houve? - perguntou Zeke.
- Vamos prender os cintos!
Feito isso, os dois voaram estrada afora. Pouco menos de cinco minutos depois, enquanto Buck procurava um caminho para levá-los de volta a Chicago, o céu atrás deles transformou-se em uma enorme bola de fogo alaranjada. Alguns segundo s depois, o estrondo fez o carro balançar. Buck, movido a adrenalina, percebeu que ambos estiveram muito próximos da morte.
Zeke, rindo como uma criança virava-se a todo o momento para ver o horizonte em chamas.
- Conseguimos fazer direitinho aquele trabalho! - ele disse em meio a uma gostosa gargalhada.

OITO

Acabrunhados, Mac e Abdullah conversavam em voz baixa no quarto do hospital onde David se encontrava.
- Trinta dias? - Mac repetiu várias vezes. - É difícil de acreditar.
- Não podemos mais ficar aqui - disse Abdullah - Sei que não deveria, mas acho que vou sentir falta deste lugar.
- Eu vou, com certeza - disse David, aguçando os ouvidos todas as vezes que ouvia passos no corredor. - Há muita coisa que podemos fazer daqui de dentro, coisas que não vamos ser capazes de fazer do lado de fora.
Mac deu um longo suspiro como se sentisse velho e cansado.
- David, pode parecer bajulação de minha parte, mas saiba que eu não bajularia você nem que você fosse o potentado. Nós dois sabemos que você é um tremendo especialista em tecnologia. Trate de sarar depressa e faça tudo o que puder para controlar esse lugar, mesmo estando em qualquer outra parte do mundo. Isso é possível?
- Teoricamente, sim - disse David. - Mas não vai ser fácil.
- Você conseguiu instalar "grampos" em cada canto deste lugar e esmiuçou tudo. Você não pode acessar, de longe, os computadores daqui da mesma forma que fez com os daquele edifício em Chicago, para onde todos nós vamos ter de ir um dia? David deu de ombros.
- E possível. Mas não tenho condições psicológicas de fazer isso sem ter Annie por perto. - David notou uma troca de olhares entre Mac e Abdullah. - O que é? Vocês sabem de alguma coisa e não querem me contar?
Mac sacudiu a cabeça.
- Estamos tão preocupados quanto você. Não dá para entender. Annie não deixaria você sem notícias de jeito nenhum. - Após uma pausa, os olhos dele brilharam.
- A não ser que ela tenha ficado trancada no depósito novamente.
Apesar de tudo, David conseguiu sorrir. Annie era uma das funcionárias mais disciplinadas, mais responsáveis que ele havia tido, mas às vezes tomava atitudes completamente diferentes de seu modo de ser.
A maneira como Hannah Palemoon bateu na porta entreaberta deu a entender a David que ela trazia más notícias. Um soluço subiu-lhe à garganta. Mac levantou-se e David fez um gesto para que ele não saísse do quarto.
- Entre - disse Mac.
David tentou não olhar para a pequena caixa de papelão nas mãos de Hannah e procurou, desesperadamente, ver se havia algum traço de otimismo no rosto dela. Hannah aproximou-se lentamente e colocou a caixa perto dos pés de David.
- Sinto muitíssimo - ela disse, e David sentiu uma completa desolação.
A dor e o cansaço desapareceram diante do sofrimento grande demais para suportar. Ele curvou o corpo e colocou as duas mãos fechadas sob o rosto. Virou para o outro lado e juntou os dois joelhos trazendo-os para perto do queixo.
- Foi o raio? - A pergunta quase não conseguiu passar por sua garganta apertada.
- Foi - sussurrou Hannah. - Não deve ter havido dor nem sofrimento.
Sou grato por isso, pensou David. Pelo menos, ela não sofreu.
- David - disse Mac com voz rouca -, o Smitty e eu vamos ficar lá fora.
- Eu gostaria que vocês não saíssem - David conseguiu dizer.
Ele ouviu os dois se sentarem novamente.
- Eu trouxe alguns objetos pessoais dela - disse Hannah. David tentou sentar-se na cama, mas voltou a sentir a maldita tontura. - Uma bolsa, um telefone, jóias e um par de sapatos.
Depois de algum esforço, David conseguiu sentar-se e colocou a caixa entre os joelhos. Seu olfato captou cheiro de coisa queimada. O telefone havia derretido. Um dos sapatos tinha furos no salto e na sola provocados pelo calor intenso.
- Eu preciso vê-la - ele disse.
- Eu não recomendaria - disse Hannah.
- Não vá, David - insistiu Mac.
- Eu preciso ir! Só assim vou ter certeza de que ela morreu. Aqui estão as coisas dela, mas você a viu, Hannah?
A enfermeira assentiu com a cabeça.
- Mas você não a conhecia. Chegou a vê-la antes? Ela balançou a cabeça negativamente.
- Que eu saiba, não. David, não sei como lhe dizer isso. Se a mulher que está no necrotério fosse minha melhor amiga, eu não a reconheceria.
Os soluços retornaram e David empurrou a caixa para os pés da cama, sacudindo a cabeça, com os dedos pressionados contra as têmporas doloridas e sensíveis.
- Vocês sabiam que ela foi o meu primeiro amor? - ele perguntou.
Ninguém respondeu.
- Namorei algumas garotas antes, mas... - ele colocou a mão nos lábios -... ela foi o amor da minha vida.
Mac levantou-se e pediu a Abdullah que fechasse a porta. Em seguida, ele puxou a cortina ao redor do leito para que os quatro ficassem próximos um do outro sob a fraca iluminação. Mac pôs a mão no ombro de David. Abdullah pousou a sua no joelho dele. Hannah tocou os pés dele sob o lençol.
Senhor Deus, disse Mac baixinho, faz tempo que deixamos de questionar por que as coisas acontecem. Sabemos que nos concedeste um tempo extra de vida e que pertencemos a ti. Não compreendemos o que aconteceu. Estamos tristes. É difícil aceitar. Somos agradecidos porque Annie não sofreu. Nesse ponto, a voz dele ficou embargada e difícil de ser entendida. Nós a invejamos porque ela está contigo, mas sentimos sua falta. Uma parte de David foi arrancada e jamais poderá ser reposta. Continuamos a confiar em ti, a acreditar em ti, e queremos servir-te pelo tempo que nos permitires. Suplicamos-te que permaneças ao lado de David neste momento e que abrandes o seu sofrimento para que ele possa levar adiante o teu trabalho.
Mac não conseguiu prosseguir. Abdullah complementou:
Oramos em nome de Jesus.
- Obrigado - disse David, virando-se para o outro lado novamente. - Por favor, fiquem mais um pouco.
Deitado ali, com os amigos em pé ao redor de seu leito e protegidos pela cortina, ele se deu conta de que não haveria um funeral formal para Annie. E se houvesse, por ela ser funcionária, ele teria de portar-se friamente como um chefe, 8 não chorando de tristeza como um namorado. Ele havia imaginado que, quando fosse forçado a fugir, não permitiria que seu afastamento a tornasse suspeita diante das pessoas com quem ela mantinha contato.
David ouviu a cortina sendo aberta. Hannah colocou a caixa sob a cabeceira da cama. Mac e Abdullah voltaram a sentar-se.
- Você precisa dormir - disse Hannah. - Quer que eu faça alguma coisa? Ele sacudiu a cabeça. Sinto muito, Hannah, mas tenho de ver Annie. Você me ajudaria a desligar o soro e a descer da cama?
Ela parecia prestes a recusar-se, mas ele viu um brilho nos Olhos de Hannah, como se uma idéia tivesse surgido em sua cabeça.
- Você tem certeza? - ela perguntou.
- Certeza absoluta.
- Não vai ser fácil.
- E ficar aqui é fácil?
Vou buscar uma cadeira de rodas e levar você com o soro ligado.


Zeke estava vestido à sua moda característica quando Buck o apresentou ao pessoal do Comando Tribulação, inclusive Tsion, na nova casa secreta.
Quando o chefe voltar, vamos integrá-lo oficialmente ao Comando Tribulação - disse Buck. - Por enquanto, encontre um lugar para acomodar-se com um pouco de privacidade e pegue o que precisar. Sinta-se em casa, como se pertencesse à família.
- É isso mesmo - disse Tsion, abraçando o jovem musculoso.
Com suas botas pretas de motociclista de sola grossa e bico quadrado, jeans preto e camiseta sob um colete de couro preto, Zeke contrastava violentamente com o rabino em pé diante dele trajando malha de lã e calça de veludo.
- Seja bem-vindo e que Deus o abençoe.
Desajeitado e tímido, Zeke apertou a mão de todos e retribuiu levemente os abraços, sempre com os olhos fixos no chão, murmurando palavras de agradecimento. No entanto, pouco tempo depois ele começou a explorar o local. Desfez a mala, arrastou uma cama e arrumou suas coisas. Após uma hora, ele retornou ao ponto de encontro do pessoal perto dos elevadores.
- Este prédio fica na parte alta da cidade - ele disse.
- Literalmente - disse Leah, com ar de surpresa ao ver aquele rapaz que um dia mudara seu rosto e lhe dera uma nova identidade.
Zeke olhou para ela, e Buck teve a impressão de que ele não entendeu o que Leah quis dizer mas teve receio de admitir. Para disfarçar seu embaraço e mudar de assunto, Zeke vasculhou os bolsos da calça e do colete e pegou um maço de notas de 20 dólares, atirando-o com força em cima da mesa.
- Quero pagar minha estada aqui - ele disse. - Guardem isso em algum lugar.
- Seria melhor você aguardar até oficializarmos tudo - disse Buck. - Rayford vai chegar amanhã à noite e...
- Não precisa, está tudo certo. O dinheiro fica como um donativo, caso eu não seja aceito.
- Não acho que isso vai acontecer - disse Chloe, segurando Kenny Bruce em pé no colo, encostado em seu ombro, aguardando que ele arrotasse.
- Opa! - disse Zeke em voz baixa ao ver o bebê. Ele aproximou-se devagar e estendeu os braços para carregar Kenny. - Posso?
- Pode - disse Chloe. - Suas mãos estão limpas? Zeke parou e levantou as mãos na altura dos olhos.
- Elas precisam estar limpas por causa do trabalho que faço. Não posso sujar as carteiras de identidade. Elas parecem sujas porque eu também trabalho com motores, mas só estão manchadas.
Ele ajoelhou-se no chão diante de Chloe e colocou sua mão carnuda nas costas de Kenny. A mão aberta era quase da largura das costas do bebê. Zeke tocou de leve o cabelo macio do garoto.
- Sente-se e segure-o no colo - disse Chloe, enquanto os outros observavam.
Buck virou-se e viu Chaim com os olhos rasos d'água.
- Você também quer pegá-lo? - ele perguntou com ar de pilhéria.
- Faz muito tempo que não pego um bebê no colo - disse Chaim entre os dentes, esforçando-se para ser compreendido. - Seria um privilégio.
Enquanto passava pelos braços de todos, Kenny adormeceu. Tsion foi o último a segurá-lo e o entregou rapidamente a Chloe. Ele disse com voz embargada:
- Meus filhos eram adolescentes quando... quando... mas essas lembranças...


- Precisamos identificar um corpo - disse Hannah Palemoon à recepcionista, empurrando a cadeira de rodas de David para dentro do necrotério.
- Assine aqui - disse uma senhora mais velha, com ar de tédio.
- Não é preciso - disse Hannah. - O sistema está com problemas há vários dias. E não há ninguém para conferir.
A mulher fez uma careta.
- Menos trabalho para mim. Estou aqui provisoriamente.
O coração de David batia forte enquanto Hannah o empurrava passando por filas e filas de corpos até onde a vista podia alcançar - em macas, em geladeiras, cobertos com lençol da cabeça aos pés, um ao lado do outro no chão.
- Ela não está aqui, está? - perguntou David.
- Na sala ao lado, depois daquela parede.
Hannah conduziu David até os pés de uma cama onde havia um corpo coberto com lençol. Ele tinha a respiração trêmula. Hannah levantou a parte do lençol em cima de um dos pés e examinou a chapa de metal presa ao dedão para ter a certeza de que era o corpo certo.
- Você tem certeza de que quer ver? - ela perguntou. David assentiu com a cabeça, agora com um pouco de indecisão.
Ela mostrou-lhe a chapa de metal onde estava escrito o nome de Annie, sua função, número de série, data do nascimento e data do óbito. O pé estava inchado e sem cor, mas com certeza era o dela. David esticou os braços para segurá-lo com as duas mãos e ficou chocado ao senti-lo frio e enrijecido.
O pé, cujo sapato foi atingido pelo raio, era o outro. David começou a afastar o lençol, fingindo não ter ouvido Hannah pigarrear.
- David...
Ele estremeceu diante do que viu. O calcanhar estava aberto ao meio e o dedão, mutilado. Ele colocou o lençol no lugar, abaixou a cabeça e perguntou:
- Você tem certeza de que ela não sentiu nenhuma dor?
- Tenho.
- Fortunato recebeu poderes para invocar fogo do céu sobre aqueles que não adoraram a imagem.
- Eu sei.
- Eu poderia ter sido atingido.
- Eu também?
- Por que ela?
Hannah não respondeu. David tentou rodar sozinho a cadeira entre os leitos para chegar à outra extremidade do corpo. O tubo do soro enroscou-se em algum lugar.
- Deixe-me ajudá-lo - disse Hannah, continuando a empurrá-lo lentamente.
Quando David se aproximou do lençol, Hannah curvou-se sobre o ombro dele e colocou a mão em seu braço.
- Olhe apenas para o rosto dela. O crânio sofreu um trauma violento.
Ele hesitou.
- E tem mais, David. Ninguém fechou os olhos dela. Eu tentei, mas passou muito tempo e a rigidez cadavérica... bem, só um agente funerário tem condições de fazer isso.
Ele concordou, ofegante. Sua cabeça latejava. Quando conseguiu controlar a respiração, David levantou o lençol e o afastou até o pescoço dela, tomando cuidado para não olhar. Depois de mais um longo suspiro, seus olhos encontraram-se com os dela.
Por um instante, ele achou que não era Annie. Os olhos dela estavam fixos em um ponto a milhões de quilômetros de distância. O rosto inchado tinha uma tonalidade arroxeada. Queimaduras nas orelhas e no pescoço evidenciavam os lugares dos brincos e do colar.
David ficou olhando para ela por tanto tempo que Hannah resolveu dizer alguma coisa.
- Podemos ir?
Ele sacudiu a cabeça.
- Quero ficar em pé.
- Você não deve.
- Ajude-me.
Ela empurrou o suporte do soro para colocá-lo mais perto dele.
- Segure-se neste suporte. Se a sala começar a girar, sente-se novamente.
- Começar a girar?
Ela travou as rodas da cadeira e colocou a mão nas costas dele para ampará-lo. Ele apoiou a mão esquerda no braço da cadeira e deu impulso com a direita para levantar-se. Em pé e zonzo, tendo a mão de Hannah amparando-o pelas costas, David segurou o rosto de Annie com a mão livre. Apesar da rigidez do corpo, ele imaginou que ela poderia sentir seu toque carinhoso. Curvou-se sobre ela até encostar o rosto em um tufo de cabelo caído na testa. Atrás do tufo havia um orifício do tamanho de um dólar de prata, deixando o cérebro à mostra.
David sacudiu a cabeça e voltou a sentar-se. Ele não queria pensar no estrago que uma descarga elétrica provocada por um raio poderia ter feito nos órgãos vitais. Agora ele acreditava no que Hannah lhe dissera. Annie não teve tempo de ver o que a atingiu.
Hannah puxou a cadeira de David até os pés da cama. Ele segurou a cabeça com as duas mãos, incapaz de chorar. Ouviu Hannah arrumando o lençol e cobrindo Annie carinhosamente, como se ela estivesse viva.
Enquanto Hannah o conduzia para fora, ele murmurou algumas palavras de agradecimento.
- Eu gostaria de ter conhecido essa moça - disse Hannah.


Na noite anterior, Rayford havia posto Buck, Chloe e Tsion a par da situação. Quando o toque do telefone o despertou de madrugada em Montana, ele imaginou que fosse um deles. Ao estender a mão para pegar seu celular, ele percebeu que o toque era do telefone do quarto. Ele não havia fornecido o número para ninguém. Quem poderia estar ligando? A recepção do hotel? Alguém em seu encalço? Deveria identificar-se como Rayford Steele ou Marvin Berry? Nem uma coisa nem outra, ele decidiu.
- Alô!
- Ray - disse Hattie -, sou eu. Estou acordada, em pé e com fome. Quero ir embora daqui. E você?
Ele resmungou alguma coisa e olhou para a outra cama. Albie dormia profundamente.
- Você está muita tagarela para o meu gosto - ele disse. - Estou deitado, estou dormindo, estou sem fome e não faz sentido sairmos daqui tão cedo e chegarmos a Kankakee antes de escurecer. Também não podemos ir para a casa secreta durante o dia.
- Oh, Rayford! Vamos! Estou farta disto tudo. E estou morta, você se lembra? Preciso de uma nova identidade, mas faz tempo que não me sinto tão livre, graças a você. Que tal a gente comer alguma coisa?
- Não podemos aparecer em público.
- Você vai voltar a dormir de verdade?
- Voltar a dormir? Eu ainda não acordei.
- Estou falando sério.
- Não, acho que não. Alguém no quarto ao lado está fazendo muito barulho.
Ela bateu na parede.
- Vou continuar batendo até você me fazer companhia para a gente comer alguma coisa.
- Está bem, garota morta. Preciso de 20 minutos.
- Daqui a 15 minutos vou estar esperando por você na porta de seu quarto.
- Então vai ter de esperar mais cinco.
Rayford ficou satisfeito por Albie não ter despertado com o barulho do chuveiro ou enquanto ele trocava de roupa. Olhou pela janela e não viu nada, nem ninguém. Pelo olho mágico da porta, viu Hattie espreguiçando-se ao sol, logo depois da sombra provocada pela sacada do segundo andar. Ele espiou pela fresta da cortina. O local estava deserto.
Rayford saiu do quarto e Hattie quase colidiu com ele.
- Quero ver, quero ver! - ela disse, olhando firme para ele. - Eu estou vendo o seu! Isso significa que você pode ver o meu! Você está vendo?
Os olhos de Rayford ainda estavam ofuscados pela claridade do sol, mas assim que ela o arrastou até a sombra perto da porta, ele viu. Seus joelhos dobraram e ele quase caiu.
- Oh, Hattie! - ele disse, aproximando-se dela.
Hattie pulou em seus braços e o abraçou pelo pescoço com tanta força que ele precisou afastá-la para poder respirar.
- O meu é igual ao seu? - ela perguntou. Ele riu.
- Como eu posso saber? Não consigo ver o meu. Mas o seu é parecido com os das outras pessoas. Vale a pena acordar Albie.
- Ele está vestido?
- Claro. Por quê?
- Então vou mostrar no quarto.
Rayford abriu a porta e Hattie entrou apressada.
- Albie, acorde, seu dorminhoco! - ela disse. Ele não se mexeu.
Ela sentou-se na cama ao lado e o sacudiu. Ele resmungou alguma coisa.
- Vamos, Albie! O dia já nasceu!
- O quê? - ele disse, sentando-se na cama. - Alguma coisa errada?
- Nada mais vai dar errado! - ela disse, segurando o rosto dele com as duas mãos e aproximando-se de seus olhos turvos. - Só quero que você veja o selo em minha testa!

NOVE

Buck despertou ao alvorecer e fez a ronda para verificar se todos estavam bem. Sorriu ao ver o reduto de Zeke e ficou satisfeito por ser um quarto privativo. Zeke trabalhara até depois da meia-noite arrumando suas coisas e instalando seu computador e outros equipamentos. Ouviu Zeke roncando alto. Quando Buck espiou dentro do quarto, viu Zeke deitado no chão perto da cama. Cada louco com sua mania, ele pensou.
A porta do quarto de Leah estava fechada e trancada. Ela ficou acordada até tarde conversando por telefone com Ming Toy, que retornara ao trabalho no Presídio de Reabilitação Feminina da Bélgica, preocupada porque seus pais ficaram em Nova Babilônia aguardando seu irmão encontrar um cargo na CG.
Chloe trabalhou no computador depois de ter posto Kenny para dormir, coordenando a cooperativa internacional. Ela insistiu para que as dezenas de milhares de membros da cooperativa lessem a próxima carta de Tsion, na qual ele planejava discutir a importância de todos estarem preparados para o momento em que o edito de compra e venda começasse a vigorar. Na carta, ele também solicitaria a colaboração de pilotos e motoristas voluntários para levarem pequenos aviões e veículos a Israel para uma missão secreta.
Os outros dois membros do Comando Tribulação estavam acordados e trabalhando. Chaim, debruçado sobre uma pilha de livros, vários deles abertos, estudava a pedido de Tsion. Ele ergueu a cabeça e piscou os olhos quando Buck espiou pela fresta da porta. Buck parecia entender a fala de Chaim melhor que os outros.
- A Srta. Rose, a ruiva - disse Chaim.
- Leah.
- Sim. Ela é uma enfermeira experiente, você sabe. Buck assentiu com a cabeça.
- Ela me disse que pode retirar os fios de metal quando eu estiver pronto. Bem, estou mais que pronto. Um homem de minha idade não pode emagrecer tão rápido assim. E quero falar com clareza!
- E o resto, como está?
- Meu corpo, você quer dizer? Sou um velho. Sobrevivi a um acidente de avião. Não posso me queixar. Cameron, este prédio é uma dádiva de Deus! Que luxo! Se tivéssemos de viver no exílio, este seria o lugar ideal. E aquele material que o jovem Tsion me deu para ler, bem... eu o chamo de jovem porque ele foi meu aluno, você sabe. Há ocasiões, Cameron, em que a Bíblia me parece um espelho feio, sempre refletindo a imagem de minha alma pecaminosa. Mas aí eu me alegro diante da redenção, da minha redenção. A história de Deus, a história de seu povo, tudo isso adquire vida diante de meus olhos.
- Você se lembrou de comer alguma coisa?
- Eu não como. Eu só bebo líquido. Argh!! Obrigado por perguntar. Agora estou bebendo a verdade de Deus.
- Continue.
- Ah, sim, vou continuar! A propósito, Tsion estava à sua procura. Ele o encontrou?
- Não. Vou vê-lo agora.
Buck subiu ao andar de cima. Os dedos do Dr. Ben-Judá voavam sobre o teclado do computador. Buck não queria incomodá-lo, mas o rabino notou sua chegada. Sem erguer a cabeça e sem parar de digitar, ele disse:
- Cameron, é você? Há muita coisa por fazer. Acho que vou trabalhar o dia inteiro. Por mais sombrio que seja o futuro, minha alegria é completa. As profecias se cumprem a cada minuto. Você viu o que o engenhoso Zeke fez para mim? Que rapaz valioso!
Buck olhou mais uma vez para confirmar. O computador principal de Tsion tinha dois laptops conectados, um de cada lado.
- Não será mais necessário ficar entrando e saindo dos programas - disse Tsion. - As Bíblias estão em um computador, os comentários em outro. E estou escrevendo para meu povo no do meio!
- Feliz por voltar a escrever?
- Você nem imagina.
- Não quero interromper seu trabalho.
- Oh, não! Entre, Cameron. Eu preciso de você. - Tsion parou de digitar e acionou o comando Imprimir. Páginas começaram a empilhar-se na bandeja da impressora. Tsion girou a cadeira.
Sente-se, por favor! Você vai ser o meu primeiro leitor de hoje.
- É uma honra, mas...
- Antes de tudo, quero que me conte as novidades de nossos irmãos e irmãs que estão longe daqui.
- Eu sei muito pouco. Não tivemos notícias de David, a não ser por intermédio de Rayford, desde a ressurreição de Carpathia.
- E o que você ficou sabendo?
- Só sei que Ray e Albie tiveram dificuldade em localizá-lo. Eles precisavam da ajuda de David para um plano que elaboraram, tentando tirar Hattie das garras da CG. David deve ter recebido os recados deles na última hora, porque tudo funcionou e a missão foi cumprida.
Tsion assentiu com a cabeça e mordeu os lábios.
- Louvado seja o Senhor - ele disse em voz baixa. - Ela está vindo para cá?
- Esta noite. Estamos esperando a chegada de Ray, Albie e Hattie depois que escurecer.
- Vou orar pedindo proteção para eles. E devemos continuar a orar por ela, é claro. Deus me deu a pesada missão de cuidar daquela moça.
Buck sacudiu a cabeça.
- Eu também recebi essa missão, Tsion. Mas se ela for uma causa perdida...
- Causa perdida? Cameron, Cameron! Você e eu já fomos causas perdidas. Todos nós fomos. Chaim era o mais improvável de todos. Insistimos infinitas vezes com ele, mas quem teria acreditado que aquele homem se converteria? Eu não acreditava. Não desista da Srta. Durham.
- Eu não desisti.
- Para Deus, tudo é possível. Você já prestou atenção nesse jovem que você trouxe para cá ontem à noite?
- Zeke? Ah, sim.
- Com certeza, ele nunca freqüentou igreja. É muito simpático, esperto. Mas também é tímido, inculto, quase analfabeto. Mas que espírito meigo e gentil ele tem! Que coração de servo! E que cabeça! Ele levaria os próximos três anos e meio para ler um dos muitos livros que Chaim vai terminar amanhã, mas conhece assuntos técnicos que eu levaria a vida inteira para aprender.
Buck deu um tapa na perna e começou a levantar-se.
- Não quero mais tomar seu tempo.
- Oh, você não está tomando meu tempo! Eu é que não paro de falar. Se você não estiver muito ocupado, eu gostaria de contar com sua ajuda.
Buck voltou a sentar-se, e Tsion entregou-lhe um maço de páginas impressas.
- Ainda faltam muitas páginas - disse o rabino -, mas preciso da opinião de alguém. Não vou transmitir esta carta enquanto não tiver certeza de que tudo está certo.
- Você sempre faz tudo certo, Tsion, mas eu gostaria de dar uma olhada.
- Então comece! Vou tentar ser mais rápido que você. Se eu começar a falar novamente, tenha a bondade de me fazer calar.
Isso vai durar o dia inteiro, pensou Buck, ajeitando a pilha de papéis e acomodando-se na cadeira para ler. De vez em quando, Tsion imprimia mais páginas e Buck as tirava da bandeja da impressora para ler, ora sentado, ora em pé, ora andando de um lado para o outro. Durante o tempo todo, ele agradecia a Deus o talento de Tsion Ben-Judá e sua incrível inteligência.

Para: Os amados santos da tribulação espalhados pelos quatro cantos da Terra, que crêem no Deus Jeová verdadeiro e em Jesus Cristo, seu Filho imaculado, nosso Salvador e Senhor.
De: Seu servo, Tsion Ben-Judá, abençoado pelo Senhor com a responsabilidade e o indescritível privilégio de transmitir-lhes, sob a autoridade de seu Santo Espírito, os ensinamentos da Bíblia, a Palavra de Deus
Assunto: O Início da Grande Tribulação
Meus queridos irmãos e irmãs em Cristo,
Conforme acontece todas as vezes que me dirijo a vocês, sinto um misto de alegria e de tristeza. Meu espírito se regozija e se entristece ao mesmo tempo. Perdoem-me pela demora em comunicar-me com vocês, e agradeço a todos o interesse demonstrado quanto a meu bem-estar. Meus companheiros e eu estamos bem, em lugar seguro e louvando a Deus por esta nova base de operações. E desejo sempre me lembrar de ser agradecido a Deus pelo milagre da tecnologia, que me permite escrever a vocês, caros leitores do mundo inteiro.
Apesar de conhecer apenas alguns de vocês pessoalmente e de aguardar com ansiedade o dia em que todos nos reuniremos, seja no reino milenar, seja no céu, sinto dentro de mim que criamos um grande vínculo familiar a partir do momento em que passamos a compartilhar as riquezas infinitas da Bíblia por meio da moderna tecnologia. Obrigado por suas orações constantes para que eu permaneça fiel e confiante, a fim de cumprir a missão para a qual fui chamado e que tenha saúde para prosseguir pelo tempo de vida que o Pai me conceder.
Peço a todos vocês, que se dispuseram a traduzir estes textos para os idiomas que ainda não foram incluídos em programas especializados, que comecem a fazer seu trabalho imediatamente. Pelo fato de não ter podido escrever-lhes durante alguns dias, creio que esta carta será mais longa do que as que normalmente escrevo. Aos responsáveis pelas regiões onde existem poucos computadores ou onde a energia elétrica é escassa, havendo necessidade de cópias impressas desta carta, peço que se sintam à vontade para realizarem seu trabalho da maneira que lhes for mais conveniente. O importante é que todas as palavras sejam comunicadas exatamente como aparecem aqui.
Glória a Deus pelas notícias recebidas de que já ultrapassamos a marca de um bilhão de leitores. Sabemos que existem muitos outros irmãos e irmãs na fé que não têm acesso a computadores nem estudo para poder ler estas palavras. Embora o atual sistema mundial continue a negar esses números, acreditamos que são verdadeiros. Centenas de milhares de pessoas juntam-se a nós a cada dia, e oramos para que vocês tenham a oportunidade de acrescentar um número cada vez maior de membros à nossa família.
Temos realizado muitas coisas juntos. Digo isso sem orgulho pessoal, mas para a glória do Deus Altíssimo. Tenho-me empenhado em repartir fielmente com vocês a Palavra da Verdade, da qual Deus provou ser o autor infinitas vezes. Ao longo dos séculos, estudiosos têm-se embasbacado diante das misteriosas passagens proféticas da Bíblia, e confesso que já cheguei a ser um deles. A linguagem parecia obscura, a mensagem profunda e indefinida, os significados um tanto figurativos e simbólicos. Não obstante, quando comecei a fazer um estudo minucioso e incisivo dessas passagens, com a mente e o coração abertos, senti que Deus estava revelando alguma coisa a mim que desobstruiu meu intelecto.
Eu havia descoberto, do ponto de vista estritamente acadêmico, que quase 30% da Bíblia (Antigo e Novo Testamento juntos) consistiam de passagens proféticas. Eu não conseguia entender por que Deus teria incluído essas passagens se elas não podiam ser compreendidas por seus filhos.
Embora as profecias messiânicas fossem razoavelmente claras e tivessem me levado a acreditar que Jesus foi o único a cumpri-las, eu orava sinceramente para que Deus me revelasse o segredo para o restante das passagens proféticas. Ele me revelou da maneira mais simples possível. Deus me fez entender as palavras em sua forma literal, conforme eu fazia em relação a outros trechos da Bíblia, a menos que o contexto e a fraseologia em si indicassem o contrário.
Em outras palavras, eu sempre entendi o significado literal de passagens tais como: "Amai ao vosso próximo como a vós mesmos" ou "Fazei aos outros aquilo que quereis que os outros vos façam". Então, por que eu não poderia entender o significado literal de um versículo que dizia que João, o autor do livro de Apocalipse, viu um cavalo amarelo? Sim, eu entendi que o cavalo representava alguma coisa. E a Bíblia dizia que João o viu. Eu aceitei aquela afirmação literalmente, acompanhada de todas as outras afirmações proféticas (a não ser quando mencionavam expressões como "semelhante a", que deixavam claro o simbolismo ali existente).
Meus queridos amigos, as Sagradas Escrituras abriram-me os olhos de uma maneira que eu nunca imaginei ser possível. E foi por isso que fiquei sabendo que os Julgamentos Selados e os Julgamentos das Trombetas estavam se aproximando. Fui capaz de interpretar a forma que assumiriam e em que seqüência ocorreriam.
Foi por isso que fiquei sabendo que os Julgamentos das Taças ainda hão de vir, e que serão exponencialmente piores que todos os que já aconteceram. Foi por isso que fiquei sabendo que aquelas pragas e provações eram mais terríveis que os julgamentos sobre um mundo impiedoso e incrédulo. Foi por isso que fiquei sabendo que este período inteiro da história é, também, mais uma evidência de nosso longo sofrimento e da infinita bondade e misericórdia de Deus.
Para os crentes, digo que acabamos de virar uma página da História. Para os céticos - e sei que há muitas pessoas que lêem minhas mensagens de vez em quando só para nos chamar de fanáticos -, digo que ultrapassamos o ponto das boas maneiras. Até agora, apesar de ter falado de modo franco a respeito da Bíblia Sagrada, tenho sido moderado quando menciono os atuais governadores deste mundo.
Agora basta! Depois de presenciarmos que as profecias bíblicas estão se cumprindo, que o líder deste mundo tem pregado a paz, mas empunha uma espada, que ele morreu pela espada e ressuscitou conforme a Bíblia predisse, e que seu homem de confiança foi imbuído de poder maligno semelhante, não pode mais haver dúvidas:
Nicolae Carpathia, a quem o povo chama de Excelência e Supremo Potentado da Comunidade Global, é anticristão e é o próprio anticristo. A Bíblia diz que o anticristo ressurreto é literalmente possuído por Satanás. Leon Fortunato, que mandou erigir uma imagem do anticristo e agora obriga que todos a adorem ou arquem com as conseqüências de sua desobediência, é o falso profeta do anticristo. Conforme está escrito na Bíblia, ele tem poderes para fazer a imagem falar e invocar fogo do céu para destruir aqueles que se recusam a adorá-la.
O que virá a seguir? Reflitam sobre esta clara passagem profética registrada em Apocalipse 13.11-18: "Vi ainda outra besta emergir da terra; possuía dois chifres, parecendo cordeiro, mas falava como dragão. Exerce toda a autoridade da primeira besta na sua presença. Faz com que a terra e os seus habitantes adorem a primeira besta, cuja ferida mortal fora curada. Também opera grandes sinais, de maneira que até fogo do céu faz descer à terra, diante dos homens. Seduz os que habitam sobre a terra por causa dos sinais que lhe foi dado executar diante da besta, dizendo aos que habitam sobre a terra que façam uma imagem à besta, àquela que, ferida à espada, sobreviveu; e lhe foi dado comunicar fôlego à imagem da besta, para que, não só a imagem falasse, como ainda fizesse morrer quantos não adorassem a imagem da besta. A todos, os pequenos e os grandes, os ricos e os pobres, os livres e os escravos, faz que lhes seja dada certa marca sobre a mão direita, ou sobre a fronte, para que ninguém possa comprar ou vender, senão aquele que tem a marca, o nome da besta, ou o número do seu nome.
"Aqui está a sabedoria. Aquele que tem entendimento calcule o número da besta, pois é número de homem. Ora, esse número é seiscentos e sessenta e seis."
Não vai demorar muito tempo para que todos sejam obrigados a ajoelhar-se diante de Carpathia ou de sua imagem, portar seu nome ou número na testa ou na mão direita, ou enfrentar as conseqüências.
Que conseqüências? Aqueles que não portarem um sinal, ao qual a Bíblia dá o nome de marca da besta, não terão permissão para comprar ou vender legalmente. Se nos recusarmos publicamente a aceitar a marca da besta, seremos decapitados. Embora meu maior desejo na vida seja o de contemplar o Glorioso Aparecimento de meu Senhor e Salvador Jesus Cristo no final da Grande Tribulação (daqui a três anos e meio e mais alguns dias), que motivo maior poderia haver para alguém sacrificar a própria vida?
Muitos de nós, talvez milhões, teremos de submeter-se a isso. Apesar de nosso instinto natural de sobrevivência e da preocupação que temos de naquela hora nos faltar coragem, lealdade e fidelidade, desejo assegurar-lhes uma coisa. O Deus que os chama para o derradeiro sacrifício também lhes dará forças para suportá-lo. Ninguém poderá receber a marca da besta acidentalmente. Trata-se de uma decisão definitiva que condenará vocês à eternidade sem Deus.
Ao mesmo tempo em que muitos serão chamados para viver em segredo para colaborar com os irmãos e irmãs por meio de mercados particulares, alguns serão pegos, identificados e decapitados em público. Para esses, o único antídoto será rejeitar a Cristo e aceitar a marca da besta.
Se você já se converteu, não será capaz de dar as costas a Cristo, louvado seja Deus. Se ainda não se decidiu e não deseja seguir a multidão, o que você fará quando tiver de aceitar a marca ou perder a cabeça? Eu apelo para que você se converta hoje, aceite a Cristo para poder contar com a proteção que vem do alto.
Estamos entrando no período mais sangrento da história da humanidade. Aqueles que portarem a marca da besta sofrerão aflições vindas da mão de Deus. Aqueles que quando ele quebrar seu pacto com Israel e retirar sua garantia de proteger aquela nação.
Ele não demonstra nenhum favoritismo. Além de insultar os judeus, ele matará os crentes em Jesus.
Se isso não acontecer, podem me chamar de herege ou de louco e procurem outra fonte de esperança que não sejam as Sagradas Escrituras.
Obrigado por sua paciência e pelo abençoado privilégio de poder comunicar-me com vocês novamente. Quero deixar-lhes um raio de esperança. Minha próxima mensagem abrangerá a diferença entre o Livro da Vida e o Livro da Vida do Cordeiro e o que eles significam para você e para mim. Até lá, fiquem tranqüilos, porque, se você for crente e já colocou sua esperança e confiança na obra de Jesus Cristo para perdoar nossos pecados e nos dar a vida eterna, seu nome está registrado no Livro da Vida do Cordeiro.
E ele nunca poderá ser apagado.
Até nosso próximo encontro. Eu os abençôo em nome de Jesus. E que Ele os abençoe e os guarde e faça resplandecer o seu rosto sobre vocês e lhes dê a paz.

Quando terminou a leitura, com os olhos úmidos, Buck surpreendeu-se ao ver que Tsion havia saído sem que ele tivesse percebido. Embora a mensagem do rabino fosse longa, Buck tinha certeza de que, se os demais leitores estivessem tão sedentos de conhecer a verdade quanto ele, todos a sorveriam e entenderiam cada palavra.
E a diferença entre o Livro da Vida e o Livro da Vida do Cordeiro? Ele nunca ouvira tal coisa e aguardava ansiosamente pelo momento de aprender mais. Ele levantou-se e esticou o corpo, com as páginas ainda nas mãos.
Ao sair, ele viu um bilhete preso na porta. "Cameron, aceito sugestões. Se você achar que o texto está razoável, pode digitar a tecla Enter e enviar a mensagem pela Internet."
Aquela poderia parecer uma tarefa simples, corriqueira. Mas para Buck era uma honra monumental. Ele dirigiu-se apressado ao computador de Tsion, tocou de leve o mouse sem fio para desfazer o descanso de tela do monitor e, com grande orgulho, apertou a tecla para enviar as palavras de Tsion a seus leitores virtuais do mundo inteiro.


Rayford ofereceu-se para pilotar o caça no percurso de volta a Kankakee, a fim de que Albie pudesse descansar um pouco. A maior parte da tarefa de "voar e mentir", conforme eles diziam, ficara a cargo de Albie e havia sido muito cansativa. Ludibriar o inimigo era uma missão espinhosa e, enquanto David não conseguisse arrumar um título falso para Rayford, era Albie quem sempre ficava na corda bamba.
Rayford ficou satisfeito quando Albie concordou em passar-lhe o comando do caça, porque queria afastar-se um pouco de Hattie. Se ele estivesse livre para ouvi-la, ela continuaria contando sua história. Ele já ouvira uma grande parte, e agora preferia concentrar-se no vôo para não ter de ficar olhando para ela e acompanhar o ritmo de toda a sua vivacidade.
A emoção que Rayford sentia a respeito da conversão de Hattie era indescritível. Mal podia esperar para ver a reação do pessoal do Comando Tribulação naquela noite, quando tomasse conhecimento da novidade. Ele estava feliz em nome de todo o Comando Tribulação. Em diversas ocasiões, ele e seus companheiros haviam perdido as esperanças em relação a Hattie.
Albie era um crente recém-convertido e não tinha condições de aconselhá-la convenientemente, mas ela pedira reiteradas vezes que ele lhe contasse sobre a sede de ler a Bíblia que Deus parecia ter incutido no coração dele.
- Eu não sei se já me senti assim - ela disse -, mas estou curiosa demais. Vocês têm uma Bíblia para eu ler?
A Bíblia de Rayford continuava empacotada em algum lugar da casa secreta, e Albie dissera que não possuía nenhuma, mas, de repente, ele se lembrou.
- Tenho uma no disco rígido de meu computador!
- Que bom! - ela disse enquanto ele ligava o computador para encontrar a Bíblia, mas ela estava na língua materna de Albie. - O milagre agora vai ser você entender o que está escrito aí!
Albie tentou acessar o tradutor, mas não havia opção para seu idioma.
- Este é um assunto para tratarmos esta noite - ele disse.
- Entre muitos outros. Você sabe de uma coisa, Albie? Eu devo mil pedidos de desculpas àquele pessoal.
- Verdade?
- Ah, sim. Nem sei por onde começar. Se ao menos você soubesse.
- Houve um tempo - ele disse - em que fui muito curioso. O capitão Steele é testemunha de que os comerciantes de mercado negro desenvolvem certa patologia em relação a fofocas. Somos discretos e não falamos muito, mas, oh! como gostamos de ouvir. Mas saiba de uma coisa. Prefiro não ouvir as ofensas que você cometeu contra aqueles que tanto amam você.
- Eu também prefiro não falar sobre isso.
- Pode ter certeza de que seus novos irmãos e irmãs também não vão querer. Certa vez, um homem sábio me disse que os pedidos de desculpas devem ser específicos, mas, depois que me converti, não tenho certeza de concordar com ele. Se seus amigos souberem que você está profundamente arrependida e que seus pedidos de desculpas são sinceros, acho que eles a perdoarão.
- Mesmo sem ter de explicar que agora eu sei quanto ofendi aquela gente?
Albie ergueu a cabeça como se estivesse pensando na resposta.
- Sua reação não parece ser a de uma pessoa que nasceu de novo, conforme diz o Dr. Ben-Judá. Parece?
Ela sacudiu a cabeça.
É como se eu estivesse remexendo na ferida. O telefone de Rayford tocou. O código de área era de Colorado.
- Alô! - ele disse.
- Sr. Berry? - Era a voz inconfundível de Steve Plank.
- Sim.
- Você está mantendo meu nome em sigilo para a falecida?
- Com certeza, Sr. Stephens. Esta ligação não corre o risco de ser ouvida por alguém?
De jeito nenhum.
- Então tenho o prazer de lhe contar que ela ressuscitou, tanto do ponto de vista físico como espiritual.
Silêncio.
- Você entendeu o que eu disse, Pinkerton?
- Estou estarrecido. É uma novidade para mim. Você está falando sério?
- Positivo.
- Maravilha! Continue a manter meu nome em sigilo, mas diga a ela que lhe dou as boas-vindas à família.
- Vou dizer.
- Também tenho boas notícias para você. Relatei aos superiores o lamentável incidente na área de detenção. Eles disseram que eu devia me livrar do corpo e enviar a papelada. Perguntei como poderia fazer isso... isto é, me livrar do corpo... e eles responderam que não sabiam. Acho que existem muitos corpos para eles cuidarem em todos os cantos do mundo. Sorte nossa!
- Existe uma ironia em tudo isso, você sabia, Pink?
- Que ironia?
- A CG já simulou a morte dela um dia.
- Eu me lembro. Ela deve ser uma mulher de sete vidas.
- Pelo menos três. E agora ela tem tudo o que necessita.
- Amém. Mantenha contato.
Quando eles entraram no espaço aéreo de Kankakee, Albie ligou o rádio para conversar com a torre. Identificando-se como comandante Elbaz, ele pediu permissão para transferir um corpo para seu helicóptero a fim de dar-lhe um "destino apropriado".
- Não temos funcionários para ajudá-lo, comandante.
- Deixe estar. Não temos conhecimento da causa da morte ou se existe possibilidade de contágio.
- No avião, estão só o senhor, o Sr. Berry e o cadáver?
- Positivo. A papelada foi cuidada pelo setor internacional.
- Permissão concedida para pouso. Ah, mais uma coisa, comandante. Fui informado de que acabou de chegar uma encomenda de Nova Babilônia para o senhor.
- Uma encomenda?
- Na caixa está carimbado Confidencial e Ultra-Secreto. É bem pesada. Eu diria que tem perto de cem quilos.
- Ela pode ser colocada no helicóptero?
- Vamos ver o que podemos fazer. Se conseguirmos um operário e uma empilhadeira, pode ser que ele faça esse serviço para o senhor.
- Obrigado.
Meia hora depois, enquanto Albie e Rayford transportavam Hattie para o helicóptero sob um lençol, ela sussurrou: Há alguém por perto? Não, mas fique quieta - disse Rayford.
- Eu preciso de uma nova identidade. Faz tempo que estou pedindo.
- Fique quieta, se não eu jogo você no chão - disse Albie.
- Você não teria coragem.
Ele fingiu soltar um dos lados da maca, e ela gritou.
- Vocês dois estão querendo provocar nossa prisão - disse Rayford.
Assim que Hattie foi colocada no helicóptero, Rayford lhe disse para ficar imóvel enquanto estivessem em terra. Ele assumiu o comando porque conhecia a rota e porque Albie nunca havia feito um pouso no interior de um arranha-céu bombardeado.
Antes da decolagem, Albie virou-se para trás, por cima de Hattie, e começou a abrir os lacres da caixa até encontrar uma grande quantidade de latas de tinta preta em spray.
- O que você está fazendo? - perguntou Hattie.
- Abrindo a porta de emergência para que Rayford jogue você lá embaixo se não parar de falar.


Um dia inteiro havia passado em Nova Babilônia, e David sentia-se bem o suficiente para deixar o hospital. Hannah apareceu para trocar-lhe as roupas.
- Como estamos indo? - ela perguntou, perscrutando seus olhos.
- As enfermeiras sempre falam no plural, não é mesmo?
- Fomos treinadas para isso.
- Fisicamente, eu me sinto 100% melhor.
- Você ainda precisa de alguns cuidados.
- Tenho um trabalho profissional a fazer, Hannah.
- Você tem uma tonelada de trabalho a fazer. Vá com calma.
- Não sinto vontade alguma de fazer nada.
- Faça por Annie.
- Touché.
Depois de trocar a atadura, ela colocou as mãos carinhosamente nas orelhas dele.
- Eu não queria ser grosseira, David. Falo sério. Sei que seu coração está partido, mas, se esperar até o sofrimento desaparecer antes de fazer o que precisa, já estará na hora de fugir daqui.
Ele concordou movendo a cabeça com ar desolado.
- Você vai ficar bem, David - ela disse. - Pode parecer uma frase banal, mas, agora que conheço você um pouco, tenho certeza de que tudo vai dar certo.
Ele não tinha tanta certeza assim, mas ela estava tentando ajudar.
- Estive pensando - ela complementou.
- Que bom saber que alguém ainda tem a capacidade de pensar.
- Eu queria ser enfermeira quando assessorava um veterinário nos tempos do colégio.
Ele ergueu as sobrancelhas.
- Isso é uma brincadeira que você costuma fazer com seus pacientes?
- Não é brincadeira. O veterinário costumava injetar biochips em animais de estimação para que eles pudessem ser encontrados e identificados.
- Verdade?
- Não é isso o que a CG vai fazer com todo mundo? Ele assentiu com a cabeça.
- Passei a ser uma especialista nisso.
- Acho que tomei remédios demais, Hannah. Explique-se melhor.
- Eles não vão precisar treinar pessoal para fazer esse trabalho e mandar especialistas a todos os cantos para supervisionar o serviço?
David encolheu os ombros.
- Acho que sim. E daí? Parece ser um trabalho especializado. Você quer uma carta de recomendação?
Ela suspirou fundo.
- Se você não estivesse machucado, eu lhe daria umas palmadas. Acredite em mim. Você acha que eu quero ensinar a essa gente como aplicar a marca da besta? Ou observar alguém aplicá-la? Estou procurando um meio de sairmos daqui sem que ninguém perceba por que partimos. Você quer fazer parte da lista dos dez mais procurados por Carpathia?
- Não.
- Então, procure Viv Ivins e ofereça os serviços de seus pilotos e de uma enfermeira que tem um pouco de conhecimento sobre o assunto. Dê um jeito para que a gente se envolva nessa história. Você é o criativo aqui. Eu só estou lendo algumas idéias malucas.
- Não, continue. Sinto muito. Quero ouvir o que você tem a dizer.
- Você coloca todos nós no mesmo avião, talvez um bem grande, porque quanto maior for a mentira, mais o povo vai acreditar. Derrube esse avião em algum lugar, quem sabe no meio de um oceano, onde eles teriam tantos problemas para nos resgatar que seria mais fácil confirmar que todos nós morremos. A gente se une com seus amigos sem precisar ficar vigiando a CG o tempo todo.
- Gostei.
- Você não está falando isso só da boca para fora?
- Não. É uma tacada de gênio.
- Foi só uma idéia.
- Uma grande idéia. Vou passá-la a Mac e Abdullah. Eles são especialistas em encontrar falhas nos esquemas e...
- Eu já conversei com eles. Os dois também gostaram.
- Sobrou alguma coisa para mim, ou você resolveu fazer o meu serviço além de cuidar dos doentes do palácio?
Ela mordeu o lábio.
- Eu só estava tentando ajudar.
- E ajudou.
- Nós dois sabemos que eu não posso fazer o seu serviço. Ninguém pode. Foi o que eu quis dizer quando achei que você deveria transformar sua dor em produtividade e fazer isso por Annie. É a única maneira de vencer o sofrimento. Mac diz que, para o Comando Tribulação, você é o mais importante depois do Dr. Ben-Judá.
- Ora, pare com isso.
- David! Pense um pouco em tudo o que você fez até agora. Não vai ser preciso muita coisa depois que todos nós sairmos daqui, se você encontrar um meio de manter tudo funcionando de um lugar qualquer.


Quando o telefone de Buck tocou, ele achou que devia ser Rayford dizendo que ele, Albie e Hattie estavam chegando. Mas era Mac McCullum.
- Ei, Mac! - ele disse, levantando a mão para pedir silêncio. Buck teve de sentar-se quando ouviu a notícia. - Oh, não. Não. Que coisa horrível... Oh!... Como ele está?... Diga a ele que estamos com ele para o que precisar, está bem? - O rosto de Buck contorceu-se e não conseguiu controlar as lágrimas. - Obrigado por nos avisar, Mac.
Chloe correu até ele.
- O que foi Buck? O que aconteceu?

DEZ

Com licença, Rayford - disse Hattie, pousando a mão em seu ombro, enquanto ele pilotava o helicóptero em direção ao Edifício Strong, sobrevoando a cidade de Chicago. Albie estava cochilando.
Rayford afastou um dos fones de ouvido, e ela colocou as mãos sobre o encosto da poltrona dele.
- Estou preocupada. Não sei como serei recebida lá.
- Você está brincando? Acho que três, no mínimo, vão ficar felizes demais.
- Agi de modo horrível com eles.
- Isso faz parte do passado.
- Mas eu preciso me desculpar. Em primeiro lugar, com você. Nem sei por onde começar. Inventar aquela história sobre Amanda! Fazer você pensar mal dela.
- Você já admitiu isso, Hattie.
- Não me lembro de ter pedido desculpas a você. Parece uma insignificância diante do que fiz.
- Não posso negar que foi muito duro para mim - ele disse. - Mas vamos deixar essa história para trás.
- Você é capaz de fazer isso?
- Os outros também.
- Chloe perdeu a paciência comigo.
- Comigo também, Hattie. E eu mereci.
- Ela o perdoou?
- Claro. O amor perdoa tudo.
Hattie ficou em silêncio, mas Rayford continuava a sentir a pressão das mãos dela no encosto de sua poltrona.
- O amor perdoa tudo - ela repetiu, como se estivesse refletindo sobre a frase.
- Está na Bíblia. Primeira Carta aos Coríntios, capítulo 13.
- Eu não sabia - ela disse. - Mas espero aprender rápido.
- Quer mais um? Estou falando de memória, mas há um versículo no Novo Testamento... mais de um, acho... que cita as palavras de Jesus. Diz basicamente que, se perdoarmos os outros, Deus nos perdoará, mas, se não perdoarmos os outros, Deus também não nos perdoará. Hattie riu.
- Isso nos deixa em um beco sem saída, não é mesmo? Parece que não temos escolha.
- É verdade.
- Você acha que eu deveria encontrar esse versículo e decorá-lo para repetir quando chegar lá? Acha que devo dizer que eles devem me perdoar? Que isso é bom para eles?
Rayford virou-se para trás e olhou para ela, erguendo uma das sobrancelhas.
- Estou brincando - ela disse. - Mas... você acha que todos eles conhecem esse versículo?
- Pode apostar que Tsion conhece. Provavelmente em uma dúzia de idiomas.
Ela calou-se por alguns instantes. Rayford apontou para o Edifício Strong ao longe e deu uma leve batida no joelho de Albie.
- Acorde para ver isso, amigo.
- Estou nervosa - disse Hattie. - Eu estava preparada, mas agora não sei.
- Dê um crédito a eles - disse Rayford. - Você não vai se arrepender.
Ele apertou um botão de seu celular para chamar Buck e o entregou a Hattie.
- Diga a Buck que o próximo ruído que ele ouvir será o de nossa chegada.


Buck contou a Chloe a notícia sobre Annie e, em seguida, reuniu o grupo para relatar o fato. Nenhum deles conheceu Annie, mas Tsion, Buck, Chloe e Leah haviam conversado tantas vezes com David que pareciam conhecer pessoalmente aquela moça. Chaim e Zeke também foram chamados para participar. Todos oraram por David, Mac e Abdullah. Zeke perguntou se eles poderiam incluir seu pai na oração.
- Não sei para onde ele foi levado, mas eu conheço bem meu pai. Ele não vai colaborar com aquela gente.
- David disse que os prisioneiros vão ser os primeiros a receber a marca - disse Buck.
- Meu pai vai preferir morrer.
- Talvez esse seja o preço.
- Aposto dez contra um que ele vai levar pelo menos dois com ele - disse Zeke.
O telefone de Buck tocou, e ele sentiu-se grato por Chloe atendê-lo.
- Hattie? - ela disse. - Onde vocês estão?... Perto como? Então, até daqui a pouco... Sim, soubemos que papai e Albie conheceram um... um amigo que trabalha lá dentro. Você deveria ser agradecida pelo tempo e esforço que... bem, não sei se você sabe quanto isso foi arriscado. Meu pai e Albie investiram tempo e dinheiro para voar até lá... Não sei se você fez alguma coisa para merecer tudo isso... Não estou sendo mesquinha... ora, pare de choramingar, Hattie. Pelo que sabemos, a antiga casa secreta se transformou em cinzas porque... Sim, vamos conversar sobre esse assunto quando você chegar... Claro que ainda me importo com você, mas não vamos ser tão bonzinhos quanto meu pai. A situação aqui é delicada, e temos mais gente do que antes. Mesmo em um lugar tão grande como este, a convivência não é fácil, principalmente com pessoas que costumam pôr os seus interesses na frente dos... Está bem. Estamos aguardando a chegada de vocês.


Hattie fechou o telefone com força e o colocou na mão de Rayford.
- Pelo jeito, você não falou com Buck - ele disse.
- Ela me odeia! - disse Hattie. - Não foi uma boa idéia eu ter vindo. Vocês deviam ter-me deixado lá. Eu deveria ter voltado para o PRFB e correr o risco. Não ia viver muito, mas pelo menos iria para o céu.
- Nós também deveríamos ter deixado você se matar? E aí, onde você estaria agora?
- Chloe deu a entender que não vai me perdoar. Ah, ela não tem culpa. Eu mereço.
Rayford notou que Hattie voltara a acomodar-se na poltrona, resmungando alguma coisa.
- Eu não ouço o que você está falando - ele disse, manobrando o helicóptero em direção ao edifício.
- Ela disse como eu deveria me sentir se estivesse do outro lado da história.


Hannah Palemoon fez um novo curativo em David, colocando um esparadrapo na parte raspada de sua cabeça para não grudar nos cabelos. O esparadrapo segurava os pontos no lugar facilitando a cicatrização, sem necessidade de camadas de gaze cobrindo-lhe as orelhas e ataduras passando por baixo do queixo. Ele se sentia quase normal, com exceção da dor - agora mais branda - e da coceira que teria de suportar. A única coisa que ele podia fazer para aliviá-la era passar os dedos ao redor da atadura, mas com muito cuidado, porque os pontos só poderiam ser retirados dali a dois dias.
O quepe encaixou-se normalmente na cabeça. Ele se dirigiu a seu apartamento para trocar de uniforme e olhou-se no espelho. Sua tez morena e jovem e seus traços israelenses combinavam com o elegante uniforme de diretor da CG. Mas, enquanto analisava sua figura no espelho, David se perguntou se algum nazista dos livros de história que ele lera teria odiado o emblema da suástica costurado na farda tanto quanto ele odiava o emblema da Comunidade Global. Como ele adoraria poder abandonar tudo aquilo. E não demoraria muito.
Ao segurar a maçaneta interna da porta, ele parou. Embora se sentisse melhor, ainda havia o cansaço de seu organismo em convalescença. Ele gostaria de esticar-se na cama e de ficar imóvel por umas 12 horas, curtindo a dor e o vazio que sentia. A insistência de Hannah em dizer que Annie não sofrera nem por um segundo dava-lhe um pouco de conforto. Mas por que aquela descarga elétrica que destruiu o sistema nervoso dela e todos os seus órgãos vitais não conseguia acabar também com a saudade dentro dele, uma saudade que, de agora em diante, não teria fim? Nenhum raio, por mais intenso que fosse, poderia extinguir um amor tão puro.
Ele curvou a cabeça e orou suplicando força. Se ele tivesse, digamos, dois meses para continuar ali, poderia dar-se ao luxo de ficar um ou dois dias afastado até que o sofrimento abrandasse. Mas o tempo que ele tinha pela frente não seria suficiente para tudo o que precisava ser feito. Por Annie, ele pensou enquanto se dirigia a seu escritório. E ele não poderia esquecer-se de que cada minuto era importante.
O fato de ter transferido as lembranças de Annie a uma parte sagrada e protegida de sua mente não surtiu efeito quando ele encontrou Viv Ivins no corredor, perto da porta de seu escritório.
- Quero falar com você - ela disse, com voz delicada e sotaque romeno. - Na minha sala ou na sua?
David ficou satisfeito por ela não ter usado o cumprimento obrigatório "Ele ressuscitou". David, Mac, Abdullah e Hannah haviam decidido responder com "Ele ressuscitou verdadeiramente", sabendo, no íntimo, que se referiam a Cristo. Talvez Vivian evitasse a formalidade porque, tecnicamente, ela não fazia parte da hierarquia. Ela não usava uniforme, embora sempre aparecesse em público trajando roupas de cores neutras: azul-claro, azul-escuro, preto, grafite e cinza. Seus sapatos eram discretos, e os cabelos cinza-azulados ficavam presos no alto da cabeça em um coque.
David estranhou o fato de poder optar por sua sala para reunir-se com ela. Mesmo que ela não tivesse um cargo oficial, todos sabiam de sua afinidade com o chefão, sendo tratada como uma espécie de filha, ou como tia dele. Diziam que não havia laços de sangue entre eles, mas Carpathia deixara claro que a considerava sua parente. Ela havia sido amiga íntima da família e ajudara os falecidos pais do potentado a criarem seu único filho.
Viv Ivins não manifestava abertamente sua autoridade. Era uma condição implícita conhecida por todos. Ela conseguia tudo o que desejava. Sua palavra tinha o mesmo valor que a de Carpathia, portanto ela não precisava reivindicar esse direito. Todos a aceitavam sem questionar.
- Por favor - disse David -, entre.
Ele sentiu-se satisfeito por ter alguém da chefia tão próximo a Carpathia sentado em sua sala, a menos de seis metros do computador usado para destruir as conquistas do potentado.
A assistente de David cumprimentou-o com ar preocupado. David limitou-se a dizer:
- Bom-dia.
- Você está bem? - ela perguntou, sem desgrudar os olhos dele.
- Um pouco melhor, Tiffany, obrigado.
Ao notar a presença da visitante, ela hesitou.
- Sra. Ivins?
Viv fez um movimento afirmativo com a cabeça. David segurou a porta aberta para ela entrar e fechou-a em seguida. Viv continuou em pé aguardando que ele puxasse uma cadeira para ela. David pensou em dizer: "Você não tem mão para puxar uma cadeira?" Mas ela permaneceu impassível, como se estivesse aguardando um gesto de cavalheirismo da parte dele.
- Ouvi dizer que você já está melhor - ela disse, sentando-se, abrindo uma pasta no colo e pegando um lápis preso na orelha -, portanto vamos ao trabalho. Imagino que você já superou aquele infeliz incidente com Sua Excelência.
- A senhora está se referindo ao fato de eu ter vomitado em cima do líder do mundo? - ele disse, provocando um sorriso amarelo no rosto dela. - Estou tentando não pensar mais no assunto, mas, como as notícias voam, acredito que todos os funcionários do palácio tenham tomado conhecimento daquele incidente.
- A diretoria toda entendeu - ela disse.
Ele gostaria de perguntar se eles entenderam que vomitar em cima do chefão havia sido a resposta a uma oração desesperada de não ser obrigado a fingir uma adoração a ele.
Viv fez uma pequena marca ao lado do primeiro item de sua lista. David
perguntava-se o que ela deveria ter anotado como primeiro ponto a ser discutido. Regurgitação?
- Passemos ao próximo assunto - ela disse. - Seu novo superior imediato será James Hickman.
- Meu setor ficará subordinado ao Serviço de Inteligência?
- Não. Jim foi promovido a Supremo Comandante, posição ocupada anteriormente pelo Reverendo Fortunato.
Para David, a palavra Inteligência incluída no antigo cargo de Hickman era semelhante ao Reverendo do novo título de Fortunato.
- Tenho certeza de que essa idéia partiu de Leon... ou melhor, do comandante Fortunato, e não do potentado.
David notou um leve ar de sorriso no rosto de Viv, mas ela não mordeu a isca.
- Quer dizer que Jim passará a ocupar o antigo escritório de Leon? - ele perguntou.
- Não atropele as coisas, Hassid. Peço que você use os títulos corretos ou pelo menos a palavra Senhor ao referir-se às pessoas de nível hierárquico superior. Você deve referir-se ao Sr. Hickman como Supremo Comandante e ao Sr. Fortunato como Reverendo ou Reverendíssimo.
Posso escolher? pensou David. Ele preferia vomitar em Leon a chamá-lo de Reverendíssimo ou coisa parecida. Foi necessário morder a língua para não perguntar a Viv, isto é, à Sra. Ivins, se a bajulação de Hickman havia sido responsável por sua promoção. Ou talvez aquela encenação tivesse sido uma manifestação de agradecimento por uma promoção já efetuada.
- E minha resposta é não - prosseguiu Viv. - O novo Supremo Comandante não passará a ocupar o antigo escritório do Reverendo Fortunato. O Sr. Hickman trabalhará na mesma sala que a assistente de Sua Excelência.
- Sério? - perguntou David. - A sala de Sandra vai ficar um pouco apertada.
- Como devo dizer? Embora o Sr. Hickman tenha o mesmo título anterior do Sr. Fortunato, sua função será menos importante.
- Como assim? Viv parecia frustrada, como se não estivesse acostumada a dar explicações adicionais.
- Hassid, deve ter ficado óbvio para todos que um líder, cuja divindade foi publicamente manifestada, não necessitaria de uma assistência do mesmo nível que teve no passado. O Sr. Fortunato foi, em essência, o braço direito de Sua Excelência. A função do Sr. Hickman será a de uma espécie de intermediador.
Como se fosse um sargento do exército ou arauto da cidade? pensou David.
- E, é claro, você já conhece as novas responsabilidades do Reverendo Fortunato.
Mais do que você pensa. Mas Falso Profeta não é um título apropriado para constar de um cartão de visitas.
- Por favor, repita-as para mim.
- Ele será o chefe espiritual da Comunidade Global, dirigindo as homenagens ao objeto de nossa adoração.
David assentiu com a cabeça. Tentando eliminar qualquer expressão que o denunciasse, ele disse:
- E o que vai ser do antigo escritório de Leon, desculpe-me, do Reverendo Fortunato?
- Ele vai fazer parte dos novos escritórios do potentado.
- Oh! Eu sabia que ele queria expandi-lo na vertical. Ele também vai expandi-lo na horizontal?
- Ah, sim, vai ser imenso. Até agora, uma das vantagens da ressurreição é que ele não vai mais ter necessidade de dormir. Acordado 24 horas por dia, ele vai precisar de muito espaço para trabalhar.
- É verdade. Essa é boa. Satanás não precisa descansar.
- O novo escritório do potentado vai ser espetacular, diretor Hassid. Abrangerá o antigo escritório dele e do Sr. Fortunato, a sala de reuniões e, acima das paredes de três metros, haverá janelas de dez metros e teto transparente.
- Impressionante!
- Tenho certeza de que você terá audiências com ele, embora seus contatos diretos daqui em diante passem a ser com o novo Supremo Comandante.
- Se eu fosse o potentado, haveria de querer um escritório bem grande para manter uma boa distância entre mim e ele.
- Não entendi.
- Estou falando daquele incidente desagradável.
- Ah, sim. Foi engraçado.
Mas ela não demonstrou achar graça.
- O Sr. Hickman vai ter um local para reunir-se com seus subordinados - perguntou David - ou vamos precisar falar baixo para não perturbar a assistente do potentado?
- Vocês dois poderão dar um jeito nisso. Por exemplo, fazer as reuniões aqui. Oh, não. Eu me esqueci da hora. Tenho outros compromissos a cumprir. Perdoe-me a pressa, mas ainda tenho outros assuntos que desejo discutir rapidamente com você.
Não, seu tempo acabou. Dê o fora daqui.
- Claro, Sra. Ivins. Eu compreendo.
- Durante sua internação, tivemos de tratar de vários assuntos importantes e urgentes. Precisamos emitir pedidos para diversas compras técnicas que envolvem embarque e manufatura internacionais.
David teve de controlar-se para não fazer uma careta. Ele sabia exatamente do que ela estava falando, e esperava poder retardar esses pedidos para frustrar os esforços do potentado.
- Compras técnicas? - ele disse.
- Injetores de biochips. E, é claro, os instrumentos de imposição à lealdade.
Instrumentos de imposição à lealdade!? Por que não dizer instrumentos que separam o crânio do tronco?
- Guilhotinas, é isso?
Suas palavras fizeram-na estremecer.
- Por favor, diretor. Essa palavra faz lembrar coisas do século XVIII, e você deve entender por que queremos evitar qualquer expressão que denote violência, decapitação ou coisa parecida.
Coisa parecida?
- Com todo o respeito que lhe devo, a senhora não acha que o povo vai entender qual será a finalidade das guilhotinas, ou melhor, dos instrumentos de imposição à lealdade? Para que mais serviriam? Para cortar repolhos ao meio?
- Não vejo graça nenhuma no que você acaba de dizer.
- Eu também não, mas uma lâmina é uma lâmina. O povo vai ver uma enorme lâmina de metal, com a parte inferior oblíqua e afiada, à espera de ser acionada de cima de uma trave que, na parte inferior, tem o formato de meia-lua e um balde embaixo. Acho que todo mundo vai adivinhar para que serve.
A Sra. Ivins remexeu-se na cadeira, fez outra marca em sua lista e disse:
- Eu não usaria uma linguagem tão grosseira, mas acho que... ou melhor, tenho certeza de que não haverá necessidade de utilizarmos esses instrumentos.
- A senhora acha mesmo?
- Não tenho dúvidas. Eles servirão simplesmente como símbolo tangível da seriedade com que o assunto deve ser tratado.
- Em outras palavras, ou manifestamos lealdade ou temos a cabeça cortada.
- Não haverá necessidade de dizer isso.
- Eu também acho.
- Mas, Sr. Hassid, eu aposto que apenas os casos mais renitentes, que serão tão poucos e espaçados a ponto de merecerem ser noticiados, resultarão em completa efetivação da obrigatoriedade.
Eu detestaria ver incompleta a efetivação da obrigatoriedade.
- A senhora acha que toda a oposição foi erradicada?
- Claro - ela disse. - Depois de presenciar a ressurreição de um homem que ficou morto por três dias, quem, em sã consciência, ainda duvidaria de que ele é Deus?


Rayford não teve a recepção esperada, e Chloe correu a seu encontro para explicar. Ele assustou-se com a notícia da morte de Annie. Os três recém-chegados ficaram tão estarrecidos quanto o restante do grupo. A maioria evitou olhar para Hattie.
- Vocês têm notícias de David? - perguntou Rayford. - Ele está bem?
- Foi Mac quem ligou - disse Buck. - O pior é que David desmaiou de exaustão ou pelo calor, não sabemos ao certo, e demorou um bocado para começar a procurar Annie.
Rayford sacudiu a cabeça. Ele sabia que esse era o preço que eles teriam de pagar, mas o sofrimento não lhes dava trégua.
- Acho que nem todos se conhecem aqui - ele disse, fazendo rapidamente as apresentações.
- Com licença - disse Zeke -, eu poderia fazer uma pergunta boba?
- Pergunte o que quiser - disse Rayford.
- Não quero ofender a senhora - ele disse a Hattie -, mas eu não esperava ver o selo em sua testa.
Tsion levantou-se, com os lábios trêmulos, e aproximou-se dela.
- É verdade, minha cara? - ele perguntou, colocando as mãos nos ombros dela. - Deixe-me olhar para você.
Hattie assentiu com a cabeça e olhou para Buck e Chloe, que arregalaram os olhos de susto. Tsion abraçou-a, chorando.
- Louvado seja Deus, louvado seja Deus! Senhor, tu levaste uma e nos trouxeste outra. - Ele abriu os olhos. - Conte-nos tudo. Quando foi? Como foi? O que aconteceu?
- Faz menos de 24 horas - ela disse. - Foi uma sucessão de fatos. Pensei em todos vocês se preocupando comigo, me amando, insistindo, orando por mim. E, se vocês ainda não ouviram a história de Albie, é melhor fazerem isso logo.
Ela inclinou-se para Tsion e cochichou alguma coisa em leu ouvido.
- Claro - ele disse. - Chaim, Zeke, Albie e Leah, vamos deixar nossa nova irmã passar alguns momentos a sós com a família Steele, está bem? Teremos muito tempo pela frente para conhecê-la melhor.
Os outros levantaram-se e acompanharam Tsion, parecendo ter compreendido. Apenas Zeke tinha um ar desconcertado.
Depois que todos saíram, Hattie levantou-se, enquanto Rayford, Buck e Chloe se sentavam.
- Estou muito feliz por você - disse Chloe -, e falo sério, apesar de parecer um pouco aturdida. Eu gostaria que você tivesse me contado pelo telefone. Assim, eu não teria sido tão grosseira com você.
- Não se preocupe, Chloe, eu mereci. E não culpo ninguém por estar chocado. Eu também estou chocada comigo mesma. Mas tenho muita coisa a explicar. Explicar não é a palavra certa, porque não há como explicar depravação. Mas eu preciso me desculpar. Fui tão mesquinha com você, com todos vocês, em várias ocasiões. Não sei se vão me perdoar.
- Hattie - disse Chloe -, está tudo bem. Você não precisa...
- Preciso, sim. E tem mais, Chloe. Há uma coisa que você me disse tempos atrás que nunca esqueci. Não consegui tirar isso da cabeça, apesar de ter tentado várias vezes. Foi quando visitei vocês na casa de Loretta e acusei todos de quererem mudar minha opinião a respeito de um aborto. E fiz outra acusação. Eu disse que vocês só seriam capazes de me amar se eu concordasse com tudo o que vocês queriam. Lembra-se?
Chloe assentiu com a cabeça. Hattie prosseguiu.
- Apesar de ser bem mais jovem do que eu, você disse que queria me amar da maneira que Deus me amava, e que isso não dependia de eu concordar ou não. Não dependia do que eu havia feito ou decidido. Você disse que me amava, porque era assim que Deus nos ama, mesmo quando estamos mergulhados no pecado.
- Não me lembro de ter sido tão explícita - disse Chloe, com os olhos marejando lágrimas.
- Você tinha razão - disse Hattie. - Deus me amou mesmo quando eu estava no fundo do poço. E pensar que quase me matei antes que Ele me alcançasse.
- Eles não conhecem essa parte da história - disse Rayford. Hattie contou-lhes tudo, desde o dia em que a CG a prendeu no Colorado até aquele momento.
- Eu estava muito preocupada, pensando que vocês nunca me perdoariam - ela concluiu.
Chloe levantou-se e a abraçou. Buck fez o mesmo e disse:
- Você nunca me perdoou por uma coisa que eu fiz, uma coisa pior do que tudo o que você fez, Hattie.
- O que foi?
- Eu a apresentei a Nicolae Carpathia. Ela assentiu, sorrindo por entre lágrimas.
- Foi uma coisa horrível, mas como você podia saber? No início, ele enganou quase tudo mundo. Eu gostaria de nunca ler olhado para ele, mas tinha de ser assim. Tudo favoreceu para que este dia chegasse.


David estava agitado. Queria que Viv Ivins saísse logo dali para ele começar a trabalhar naquilo que lhe interessava. Ela não parava de falar de Fortunato.
- Ele vai ocupar o antigo escritório de Peter Mathews, mas nada será como antes. A Fé Mundial Enigma Babilônio deixou de existir, porque não existe mais nenhum enigma.
- Agora sabemos a quem devemos adorar, não é mesmo, Hassid?
- Claro que sim.
- Ah - ela disse -, só mais uma coisa. Você sabe que perdeu uma funcionária? - Viv Ivins virou uma página de suas anotações e leu: - Solteira, branca, sexo feminino, 22 anos, quase 23, Angel Rich Christopher. Aparentemente, Rich é nome de família.
David prendeu a respiração e assentiu com a cabeça.
- Vítima de raio - complementou Viv. - Uma entre várias.
- Fiquei sabendo.
- Eu só queria dizer que, se você estiver planejando uma espécie de culto em memória dela, recomendo que não leve a idéia adiante.
- Como assim?
- Perdemos um número muito grande de funcionários e não será prático prestar homenagem a todos eles.
David sentiu-se ofendido, principalmente por Annie.
- Eu... hã... participei de outras cerimônias. Foram curtas, mas apropriadas.
- Bem, esta não seria apropriada. Entendido?
- Não.
- Não?
- Sinto muito, mas não entendi. Por que não seria apropriado homenagear uma colega de trabalho que...
- Se você pensasse um pouco, entenderia.
- Vá direto ao assunto, por favor.
- Bem, Hassid, a Srta. Christopher foi atingida pelo raio quando o Reverendo Fortunato estava invocando fogo do céu sobre aqueles que se recusavam a reconhecer Sua Excelência, o Potentado, como o Deus vivo e verdadeiro.
- A senhora está dizendo que ela morreu por ser subversiva? Que Fortunato a matou?
- Deus a matou, diretor. Não sei se subversiva é a palavra correta. Ficou claro a todos os presentes, e sei que você também estava lá, que só os céticos foram castigados naquele dia.
David mordeu os lábios e coçou a cabeça.
- Se não prestarmos homenagem a todos os funcionários que não reconheceram Nicolae Carpathia como uma divindade, vou compreender e aceitar.
- Foi o que pensei. - Ela levantou-se e aguardou que David lhe abrisse a porta. - Tenha um bom dia, diretor. Se você precisar de mim, estarei às ordens.
- Só mais uma coisa.
- Diga.
- É a respeito dos injetores de biochip que a senhora mencionou. Eles são semelhantes aos usados em animais domésticos?
- Creio que sim, com algumas modificações.
- Uma das enfermeiras que me atendeu disse que foi assistente de um veterinário. Acho que ela tem experiência com esse tipo de tecnologia e pode ser útil para nós.
- Boa idéia. Dê-me o nome dela. Vou verificar.
- Eu me esqueci - ele disse. - Mas vai ser fácil descobrir. Eu ligo para a senhora.
Assim que Viv partiu, David ligou para Hannah.
- Vou dar o seu nome a Viv Ivins. Ela vai ligar para você.
- Tudo bem.
David contou-lhe sobre a proibição de seu departamento prestar homenagem a Annie, mesmo que fosse um minuto de silêncio.
- Foi melhor assim - ela disse. - David, se a homenagem deixasse transparecer que ela foi leal a Carpathia, você teria de se haver com ela no céu um dia.

ONZE

Durante os vários dias que se seguiram na casa secreta, Rayford limitou-se a observar o comportamento do grupo e a fazer anotações. Tsion e Chaim passavam a maior parte do tempo estudando. Leah parecia entediada ajudando Chloe na cooperativa internacional. Tentou aproximar-se de Hattie, mas a moça estava enervando a todos da casa. Todos, menos Zeke. Ele se mantinha isolado e não se deixava influenciar por idiossincrasias pessoais.
Rayford pediu a Tsion que dirigisse um rápido estudo bíblico diário ao grupo, e eles oravam juntos. Todos aguardavam com ansiedade o momento de ler a mensagem cibernética diária de Tsion. Eles se revezavam para pintar os vidros internos das janelas de todos os andares que estavam usando para que ficassem invisíveis do lado de fora, mesmo com as luzes acesas.
Uma semana depois de ter levado Hattie para a casa secreta, Rayford convocou uma reunião para integrar oficialmente Chaim, Zeke, Albie e Hattie ao Comando Tribulação.
Todos acompanhavam atentamente pela Internet e pela TV à procura de informações sobre quando e como a marca da lealdade seria aplicada. Buck retornou com todo o vigor ao seu trabalho na revista virtual A Verdade. Seus contatos internacionais e sua habilidade em escrever reportagens que tinham um cunho de autenticidade sem expor os crentes tornaram seu site bastante popular, sendo superado apenas pelo de Tsion. Por meio dos contatos de Chloe na cooperativa, Buck recrutou gráficas clandestinas do mundo inteiro, cujos proprietários arriscavam a vida para publicar A Verdade e as mensagens de Tsion àqueles que não tinham acesso a computadores.
Hattie, que a princípio comportou-se de maneira hesitante, passou a demonstrar a mesma euforia e vibração daquela manhã em Bozeman. Rayford gostava dessa animação e, aparentemente, Tsion também. Os olhos dos outros demonstravam frieza todas as vezes que ela vibrava com uma novidade. O Comando Tribulação tinha bastante espaço e privacidade, mas, mesmo dentro de um imenso arranha-céu, ocorria a síndrome da clausura.
A falta de ar fresco tornou-se um problema. O sistema de ventilação do edifício funcionava a contento, mas a brisa suave vinda de fora, que entrava ocasionalmente por uma janela aberta, não era suficiente para aplacar a ansiedade que todos tinham de sair e de ver a luz do sol. Rayford lhes disse que seria muito arriscado. Até mesmo Kenny Bruce era levado para fora só depois do anoitecer.
Os companheiros de Rayford começaram a ir falar com ele em particular. Embora tomando cuidado para não haver mexericos entre eles, todos apresentavam pedidos similares. Todos queriam missões fora da casa secreta. Desejavam agir sem ter de ficar aguardando os ataques de Nicolae e da CG.
Todos, menos Zeke. Ele parecia contente com sua função. Fez um inventário de todas as ferramentas e materiais necessários para instalar uma base de operações para falsificar documentos de identidade da maneira mais eficiente possível.
- Eu não sou um sujeito que gosta de ler livros - ele disse a Rayford -, mas sei o que vai acontecer.
- Sabe?
- O Dr. Ben-Judá está treinando esse tal Chaim não-sei-o-quê para voltar a Israel. Isso quer dizer que preciso arrumar uma nova identidade para ele, e não vai ser apenas no papel. Ele vai ter de mudar de cara, porque é conhecido no mundo inteiro.
Rayford limitou-se a assentir com a cabeça.
- A gente não pode mudar a altura e o peso de um homem - prosseguiu Zeke -, e não sou cirurgião plástico. Mas existem coisas que eu posso fazer. Ele vai ter de cortar aquele cabelo parecido com o de Einstein e fazer a barba. Vou raspar todo o cabelo dele e tingir suas sobrancelhas de cor escura. Depois, ele vai deixar crescer uma barbicha ou talvez costeletas e bigode, tudo tingido de cor escura. Ele vai parecer mais moço e moderninho, mas completamente diferente do que era. Os óculos vão desaparecer ou, então, vou ter de mudá-los. Posso arrumar lentes de contato coloridas. Se ele não precisar de receita, tenho muitas para ele escolher.
- Hã, hã - disse Rayford. - Zeke, por que você acha que ele vai voltar para Israel?
- Ah, ele não vai? Então, eu me enganei. Só estava pensando...
- Não estou dizendo que você se enganou. Eu só queria saber por que pensou isso.
- Não sei. Alguém vai ter de ir, e vocês não vão querer correr o risco de mandar o Dr. Ben-Judá.
- Alguém vai ter de ir a Israel? Por quê?
Zeke franziu as sobrancelhas.
- Não sei. Se eu estiver errado, pode falar, porque quase sempre estou, mas meu pai diz que tenho intuição. Tento entender as mensagens de Zion, mas eu já disse que não sou bom de leitura. Acho que nunca li um livro inteiro, a não ser alguns manuais de instrução, e isso já faz uns seis anos. Mas, para um cara inteligente, Zion escreve de um jeito fácil de entender. Estou dizendo que o inteligente é ele, não eu. Quase todos os caras inteligentes acham que estão explicando alguma coisa, mas só eles entendem. Você sabe o que estou dizendo?
- Claro.
- Pelo que entendi, depois de ler as últimas mensagens de Zion, Carpathia está tramando alguma coisa. E essa coisa tem a ver com Jerusalém. Fiquei sabendo que a Bíblia diz que o anticristo vai puxar o tapete dos judeus. Ele também vai profanar o templo, lá dentro, e quebrar a promessa que fez.
- Acho que você entendeu bem, Zeke. E como Chaim entra nessa história?
- Zion diz que Deus está preparando um lugar seguro para os judeus se esconderem, mas eles precisam de um líder. Zion pode fazer isso pela Internet, mas eles vão precisar de alguém lá, alguém que eles possam ver. E esse alguém tem de ser judeu. Também tem de ser crente. Tem de ser bastante popular ou, pelo menos, ser capaz de fazer o povo segui-lo. E tem mais. Precisa ter muito conhecimento. A única pessoa que logo vai conhecer mais coisas que Zion é Chaim. Zion não pode ir para lá de jeito nenhum.
- A missão também é bastante arriscada para Chaim, não, Zeke?
- Não sei quem é o pior na cabeça de Carpathia, se o cara que está espalhando para o mundo inteiro que ele é o próprio Demônio ou se o cara que espetou uma espada no cérebro dele. A verdade é que nós, os crentes, vamos poder viver sem Chaim, se for preciso. Mas, sem Zion, vai ser muito difícil.
Zeke ficou constrangido por ter dito isso. Rayford levantou-se e começou a andar de um lado para o outro.
- Zeke, seu pai está certo quanto à sua intuição. Você acertou direitinho.
- Então, vou ter de despachar Chaim para lá com o nome de... como é mesmo o novo nome dele?
- Tobias Rogoff.
- Certo. Vai ser este nome mesmo?
- Correto.
- Você não acha que ele vai ser reconhecido por muitas pessoas por causa de sua voz e de sua aparência? As pessoas também costumam observar as mãos. Vou ter de dar um jeito nisso.
- Você tem razão. Há muita gente que o conhece. E, se David estiver certo quando diz que existe um videoteipe mostrando o momento em que ele assassinou Carpathia, acho que a CG deve estar exibindo essa imagem ao mundo inteiro. Mas Carpathia em pessoa afirmou que já perdoou seu agressor.
- Só que Carpathia também disse que não pode controlar a reação do povo, por isso acho que Chaim vai viver na corda bamba, não é mesmo?
- Se ele conseguir abrigo no meio dos judeus, vai ter uma proteção sobrenatural.
- Isso vai ser muito legal.
- Você disse que não é cirurgião plástico. Existem outras maneiras de mudar a aparência de uma pessoa?
Zeke assentiu com a cabeça.
- Existe um aparelho para pôr na boca.
- Para mudar a arcada dentária.
- Certo. Eu usei um em Leah e tenho muitos outros. Posso mudar a aparência dos dentes e do queixo de uma pessoa.
- E se essa pessoa estiver com a mandíbula amarrada?
- Melhor ainda. Leah vai tirar aqueles fios. Acho que posso fazer Chaim ficar parecido com outra pessoa. Ele vai ter de usar roupa diferente, talvez andar de maneira diferente. Basta colocar alguma coisa dentro dos sapatos. Estou às ordens quando ele quiser.


David superava seu sofrimento trabalhando sem parar até ficar tão exausto a ponto de dormir de cansaço. Ele incumbiu Mac e Abdullah de planejarem um acidente para fazê-los desaparecer, de acordo com a idéia de Hannah. Nesse ínterim, ele instalou por todo o palácio números de acesso que lhe permitiriam, com alguns toques corretos no teclado do computador, entrar no sistema e acompanhar o que se passava lá dentro, pelo menos enquanto o atual sistema estivesse em uso.
Ouvir as conversas de Nicolae, Leon e Hickman passou a ser um hábito para David, e ele também gostava de ouvir o que o chefe de segurança Walter Moon tinha a dizer. Embora fosse bastante improvável que Moon se convertesse, quem poderia ter certeza? Se isso acontecesse, teria de ser antes da aplicação da marca nos funcionários, porque, conforme Tsion ensinou, a Bíblia dizia claramente que se tratava de uma decisão definitiva. Mas, pelo que David conseguiu deduzir, Moon queixava-se abertamente a seu assistente e a seus subordinados mais fiéis por não ter sido ele o escolhido para ocupar a função de Supremo Comandante. Ele passava a maior parte do tempo jurando - ironicamente "sobre uma pilha de Bíblias" - que não teria aceitado o cargo se lhe tivesse sido oferecido. Mas a verdade era tão visível que seus confidentes sentiam-se na liberdade de dizer-lhe:
- Claro que você teria aceitado, se alguém lhe oferecesse.
David sonhava com a possibilidade de ter Moon como aliado, uma espécie de galo de briga dentro do palácio com potencial para ser subversivo.
O novo diretor do serviço de inteligência, substituto de Jim Hickman, era um paquistanês chamado Suhail Akbar, leal em tudo a Carpathia. Ele era o tipo de pessoa que trabalhava nos bastidores, lento para manifestar uma opinião, mas com um Currículo de fazer inveja a seu ex-superior, em se tratando de experiência e treinamento. David temia que a inteligência daquele homem viesse a lhe causar problemas. Inteligente não era um adjetivo adequado para Hickman.
Certa tarde, depois de um dia cansativo de trabalho infiltrando-se nos computadores do palácio, David enviou o seguinte e-mail a Mac: "É difícil demais a gente não ter meios de questionar nossa lealdade à CG e a Carpathia. De vez em quando, eu desafio os chefões para que eles não desconfiem de mim, porque acredito que eles suspeitam daqueles que demonstram uma lealdade cega. Quero que eles II perguntem: 'Porque o Hassid nos desafia e, ao mesmo tempo, é tão eficiente a ponto de tentar fazer deste lugar o melhor do mundo? '
"Mac, precisamos levar adiante nossos planos, inventar um problema que explique nossa morte e que custe à CG um bom dinheiro em equipamentos. Eu não me importaria de ver o avião afundar com uma carga valiosa de injetores de biochips e até mesmo de instrumentos de imposição à lealdade. Será que as guilhotinas aparecem em destaque nos catálogos de instrumentos para cortar cabeças? Desculpe-me a brincadeira; não é assunto para piadas. Queira Deus que Ele glorifique os corpos de todos os santos, até mesmo daqueles que foram mutilados, cremados ou mortos por raio. "Sem querer ofender sua inteligência, devo alertá-lo sobre a idéia de destruir o Fênix 216. Eu adoraria azucrinar Carpathia fazendo com que ele perdesse seu precioso meio de transporte, mas investimos muito naquele sistema de escuta clandestina, e agora posso ter acesso a ele mesmo estando fora do avião. Enquanto Deus permitir que a gente ouça a conversa entre eles, não vejo outro meio de escuta mais perfeito. Desenvolvi um programa capaz de localizar a posição da aeronave via satélite. É sempre muito divertido quando Carpathia imagina estar em um ambiente totalmente seguro e fica descontraído. É comum a gente ver Carpathia fazendo pose e falando com arrogância diante de seu pessoal, porém vale a pena ouvir suas gargalhadas quando ele admite a seus asseclas mais confiáveis tudo o que costuma negar na frente dos outros.
"E, por falar nisso, ele marcou uma reunião com Hickman, Moon, Akbar e Fortunato, e estou planejando gravar tudo. Se você acha que as discussões entre ele e Fortunato são engraçadas, espere para ouvir o que vou gravar e enviar para você. Não se esqueça do código de segurança para receber todas essas informações privilegiadas. Se alguém, inclusive você, tentar acessar esses arquivos usando o código errado, saiba que instalei um vírus tão terrível que pode ser chamado de monstro. Essa criatura não lê os programas e ataca o disco rígido. "Só acredito que existe um vírus tão destruidor assim porque fui eu que o desenvolvi. Esse vírus intercepta os impulsos que estão sendo transmitidos de ponto a ponto no processador, conduz os impulsos à fonte de força, seja ela elétrica ou movida por bateria, e transfere a corrente para a placa-mãe. Se houvesse um componente inflamável ali, eu poderia fazer o computador explodir na cara do hacker. Mas como tudo o que existe lá dentro é feito de plástico e metal, o pior que pode acontecer é o material esquentar, soltar fumaça e derreter. Depois disso, o computador ficará inutilizado.
"Vou deixar as outras novidades para mais tarde, meu amigo. Aguardo informações concretas de você e Abdullah dentro de 48 horas. Nesse meio-tempo, peço que vocês entrem em contato com Hannah. Vai ser menos arriscado do que eu tentar falar com ela. Ninguém vai desconfiar de vocês. Animem aquela moça e digam a ela que sairemos daqui a tempo. Ainda teremos anos produtivos pela frente para nos dedicarmos à causa do reino."
Rayford tomou conhecimento das novidades assim que David se recuperou dos ferimentos e ficou preocupado com a exigüidade de tempo para preparar tudo de que precisavam. Ficou pensando qual seria a melhor maneira de destinar funções para cada integrante do Comando, e a perspectiva da inclusão de quatro membros vindos do palácio tinha seus prós e contras. Se todos fossem para Chicago, ele incluiria em sua base de operações dois pilotos, uma enfermeira e um dos maiores gênios do mundo em informática. Havia espaço suficiente, mas Rayford tinha dúvidas a respeito de se a melhor solução seria ter o grupo inteiro morando no mesmo lugar.
Pelo bem-estar psicológico de todos e das duas missões que eles tinham pela frente - dificultar os planos de Carpathia e ganhar o maior número de almas possível para o reino – faria mais sentido espalhar o talento do grupo ao redor do mundo. Hattie e Leah estavam inquietas e ansiosas por ter alguma missão para fazer fora dali. Chloe conformou-se em ficar em casa, por causa de Kenny e do trabalho na cooperativa, mas Buck precisava saber o que se passava no mundo para tornar sua revista virtual mais eficiente.
Rayford e Albie necessitavam de todos os pilotos que conseguissem reunir, mas não havia aeronaves suficientes. Se Rayford e o esperto Zeke estivessem certos a respeito do que Tsion queria fazer, milhares de pilotos e aeronaves teriam de ser recrutados do mundo inteiro para transportar os crentes judeus para um lugar seguro. Pilotos veteranos como Mac e Abdullah poderiam ajudar nessa tarefa.
A certa altura, no meio da noite, Rayford deu-se conta de que precisava agir rapidamente, apesar de ter mais de duas semanas para pensar e planejar a melhor maneira de fazer uso do contingente que viria de Nova Babilônia. Tempo era um elemento precioso que parecia nunca ser suficiente, mas justamente naquele momento uma nova emergência provocaria grande tumulto.
O telefone de Rayford tocou, mas não havia ninguém na linha. Ele olhou no visor e viu a seguinte mensagem de Lukas (Laslos) Miklos: "Fomos descobertos. Pastor e minha esposa presos, entre outros. Orem, por favor. Ajudem-nos, por favor."
A igreja clandestina de Ptolemaïs era a maior da Grécia e, provavelmente, a maior dos Estados Unidos Carpathianos. Até agora, a presença da CG local não havia apresentado nenhum problema. Rayford sabia, por experiência própria, que os crentes da Grécia eram muito cuidadosos, mas, ao mesmo tempo, receavam que os serviços de Segurança e Inteligência da CG não continuariam a ignorá-los por muito tempo. Na opinião dos crentes da Grécia, o afrouxamento da perseguição contra eles tinha um motivo. O líder local da CG imaginava que Carpathia gostaria que a região homenageada com seu nome tivesse a divulgação do menor índice possível de rebeldes entre as dez supercomunidades globais.
As estratégias de relações públicas exibidas por Carpathia antes de seu assassinato haviam mudado. Depois de sua ressurreição, a ênfase passou a recair sobre a obrigatoriedade do cumprimento das leis. Para Rayford, o novo Carpathia preferiria erradicar a oposição dentro da região que levava o seu nome a fingir que ela não existia. Rayford pediria a David que verificasse a situação para saber se seria conveniente enviar alguém do Comando Tribulação para lá.
Pelo que Rayford sabia, a Sra. Miklos era uma mulher pacífica e profundamente consagrada. Mas Laslos lhe dissera que ela também era determinada, obstinada e corajosa. Não recuava quando alguma autoridade a confrontava a respeito da prática de sua fé. Rayford imaginou a CG invadindo o local do culto e a Sra. Miklos resistindo e até mesmo provocando um rebuliço para impedir que seu pastor, Demetrius Demeter, fosse levado para a prisão.
Porém, Rayford não permitiu que sua imaginação divagasse. Descobriria o que pudesse por intermédio de David e talvez viajasse para a Grécia com Albie. Ou, então, com Buck. Ele não queria deixar o Comando Tribulação sem nenhum piloto.


David estava programando seu computador para ouvir a conversa na reunião de Carpathia com Hickman e outros quando recebeu uma ligação de Rayford comunicando o ataque da CG à igreja clandestina da Grécia.
- Vou-lhe informar o que conseguir descobrir - ele disse a Rayford.
David ligou para Walter Moon, mas, antes que o homem atendesse, recebeu uma mensagem pelo pager pedindo que ligasse para o escritório de Hickman.
Escritório de Hickman? ele pensou. Hickman dividia uma sala com a assistente de Carpathia. E Hickman não teria uma reunião com Carpathia logo a seguir? David desligou e discou o número de Hickman. Sandra, a assistente, atendeu.
- Aqui é Hassid - ele disse. - Vocês me enviaram uma mensagem pelo pager?
- Sim. O Supremo Comandante gostaria que o senhor se reunisse com ele na sala de conferências, no 18° andar.
Ao chegar lá, David deparou-se com uma enorme confusão. Apesar de ser final de expediente e de Sandra estar se preparando para ir embora, o local encontrava-se apinhado de operários trabalhando. Havia furadeiras, serras, martelos, andaimes, escadas e outros tipos de materiais espalhados por toda parte.
- Você não vai ser transferida para outro local enquanto eles estiverem trabalhando? - perguntou David.
- Parece que não - disse Sandra saindo.
Hickman abriu a porta de uma sala de reuniões, não muito grande para seu cargo, e fez um gesto para que David entrasse.
- Entre logo para que eu possa fechar a porta, Hassid. Há muita poeira aí fora.
O novo Supremo Comandante, uma versão ocidental de Fortunato e com menos classe ainda, estendeu sua mão gorducha e sacudiu a de David com entusiasmo.
- E aí, como vai? Ah, sim, ele ressuscitou.
- Sim - disse David. Ao perceber o olhar de Hickman, ele complementou: - Verdadeiramente.
Hickman parecia nervoso e apressado. David achou que poderia extrair alguma informação daquele homem fazendo-se de bobo.
- E então? O expediente já está terminando, não? Como está sendo dividir espaço com...
- Deixe isso para lá - disse Hickman, sentando-se. Sua enorme barriga projetou-se por ele ter desabotoado o paletó do uniforme. - Tenho uma reunião a seguir com os chefões e não quero chegar lá despreparado.
Eu sabia, pensou David.
- Em que posso ajudá-lo?
- Quero saber se tudo está atualizado, arrumado, nos trilhos, em dia.
David sacudiu a cabeça, atônito.
- Acho que sim. Do que estamos falando?
Hickman pegou um bloco surrado e virou algumas páginas.
- Guilhotinas, seringas?
- O senhor está falando dos instrumentos de imposição à lealdade e dos injetores de biochips?
- Ah, sim, obrigado! - disse Hickman, fazendo alguns rabiscos. - Eu sabia que Viv tinha dado um nome especial para essas coisas. Sabe, Hassid? Eu era policial. Estou muito honrado com tudo isso e preciso provar à Sua Majestade... ahn... Sua Excelência, que sou capaz de fazer tudo o que ele me pediu. Quero mostrar que estou à altura do cargo que me deram.
- O senhor acha que está?
- Acho que minha lealdade e devoção ao potentado vão suprir a falta de experiência que tenho neste cargo. E então? Em que pé estamos sobre aquelas coisas? O que posso dizer a ele?
- Que está tudo encaminhado.
- Ótimo. Posso contar com você?
- Claro que sim, Ji..., isto é, supremo comandante.
- Ah, pode me chamar de comandante quando não houver ninguém por perto. Nas outras ocasiões, você deve ser formal, claro.
- Claro.
- A propósito, você também cuida da compra de animais?
- O senhor quer dizer carnes de animais para alimento? Não, isso é com o Setor de Alimentação.
- Estou falando de animais vivos. Não preciso de alimento. Preciso de um animal vivo.
- Não faz parte de minha área. Eu cuido da compra de veículos, aviões, computadores, equipamentos de comunicação.
- Quem vai me ajudar a encontrar um porco?
- Um porco, senhor?
- Grande e vivo, Hassid.
- Não faço idéia.
Hickman o encarou, aparentemente sem aceitar a explicação.
- Posso procurar - disse David. - Mas...
- Eu sabia que podia contar com você, David. Você é um bom rapaz. Quero que me dê uma notícia amanhã bem cedo, porque fiquei sabendo que o chefão vai me fazer esse pedido hoje.
- Oh, o senhor já conversou com ele?
- Não. Um colega, que gosta muito de mim, me deu a dica.
- Verdade?
- Ah, sim. Um sujeito como eu precisa ter amigos em todos os níveis da hierarquia. O cara me contou hoje que esteve em uma reunião com Fortunato e Carp... oh, desculpe-me! Sei que não devo falar assim, principalmente na frente de um subordinado. Como seu superior, Hassid, vou pedir que você se esqueça do que acabou de ouvir.
- Está esquecido, senhor.
- Ótimo. Pois bem, aquele cara da reunião com Sua Excelência e o Reverendíssimo disse que eles estavam agitados... você sabe o que isso quer dizer? Acho que a palavra certa é preocupados.
- Entendi, comandante.
- Eles estão aborrecidos, nervosos, sei lá o quê, com os judaístas.
- Já ouvi falar deles, senhor.
- Eu sei que sim. O chefe deles, aquele que as Forças Pacificadoras pensaram que tinham tirado da frente e mandado para longe, apareceu em outro lugar... não sabemos onde, o que não deixou Carpath... o potentado... nem um pouco feliz, se é que você entende o que estou dizendo. Este tal de Judá está falando cada vez mais de anti-Carpath... bem, acho que é essa a palavra certa.
O sujeito está espalhando essa idéia anti-Carpathia por toda parte. Ele diz que a Bíblia Sagrada profetiza que o anticristo... é assim que ele chama Sua Excelência, imagine só... ...vai profanar o templo e sacrificar um porco no altar.
- Não diga!
- Digo sim. Eu não estava lá, mas meu colega contou que o potentado está espumando de raiva. Eu diria que ele está pipocando de raiva.
- Posso imaginar.
- Eu também. Ele disse ao Reverendo uma coisa mais ou menos assim: "Ah, sim, bem, acho que vou mostrar a eles." Você sabe que ele pronuncia bem as palavras, não fala como eu.
- Eu sei.
- Esse Nicolae Carpathia é um gênio. Perdoe-me por chamar Sua Excelência pelo nome. Ele vai... como posso dizer?... cumprir a profecia... aquela da Bíblia, aquela desse tal bem-judaísta...
- Tsion Ben-Judá.
- Certo! Ele vai sacrificar, de propósito, um porco no altar do templo de Jerusalém, sabendo o que o cara e a Bíblia estão dizendo. Vai ser um tapa na cara daquele homem, você não acha?
- Claro. Um tapa na cara de Deus, é isso.
- Mas, para todos os efeitos, eu não sei de nada disso, você entendeu?
- Entendi. Foi seu colega que ouviu e lhe contou.
- Correto. Mas quando ele... você sabe quem... me perguntar se posso conseguir um porco, quero dizer que não há problema. Posso dizer isso a ele? Você vai verificar com... ah... com seu pessoal, sei lá... e eu vou conseguir um porco para ele, certo?
- Vou fazer o que for possível, senhor.
- Eu sabia. Seu porqueira! Você é bom mesmo.
- O senhor disse isso de propósito, não disse, senhor?
- Como assim?
- Disse porqueira por causa do porco.
Hickman caiu na gargalhada e fingiu ter usado a palavra de propósito. Depois de readquirir o controle, ele disse:
- Você sabe o que eu quero, Hassid?
- Diga.
- Quero um porco, você está preparado para...?
- Estou preparado.
- Quero um porco bem grande para que Sua Excelência possa montar nele.
- O quê!?
- Você ouviu. Quero o maior porco que você já viu na vida. Do tamanho de um pônei. Tão grande que a gente possa colocar uma sela... você sabe o que quero dizer.
- Acho que não, comandante.
- Estou tentando ganhar alguns pontos, você entende, diretor? Você não precisa ganhar pontos, porque é bom no que faz. Mas eu quero sugerir à Sua Excelência que, se ele for desafiar seus maiores inimigos e competir com as mesmas armas deles, vai ter de provar que é o melhor.
Desafiar e competir com as mesmas armas? Annie adoraria ouvir isso.
- O melhor?
- Ele vai ter de montar naquele porco dentro do templo!
- Oh, não.
David não podia imaginar Carpathia rebaixar-se tanto a ponto de submeter-se a um espetáculo daquele.
- Eu tenho razão, Hassid. Você lê a Bíblia?
- O senhor quer saber se eu leio a Bíblia sempre?
- Quero.
- De vez em quando.
- Não existe uma história dizendo que Jesus entrou em Jerusalém montado num burrico e que o povo cantava e sacudia folhas de árvore?
- Eu sou judeu.
- Então, você não lê o Novo Testamento. Bem, existe essa história, tenho certeza. Imagine Sua Excelência se divertindo com aquilo tudo. Montado num porco com pessoas em volta, pagas para cantar e sacudir folhas de árvores.
Senhor Deus, por favor!
- Não posso imaginar.
- Eu posso dar essa idéia, não posso, Hassid?
- Pode, senhor.
- Ei, está na hora da reunião. Consiga o porco para mim, está bem? Vou dizer a ele que foi o melhor que encontramos.
- Aguarde notícias minhas.
Quando David estava saindo da sala, Hickman o chamou.
- Eu me esqueci de uma coisa - ele disse virando mais algumas páginas do bloco. - É sobre uma moça dos Serviços Médicos, uma enfermeira. Aqui está. Ela foi veterinária ou coisa parecida e já injetou biochips em cães e gatos.
- Não diga.
- É melhor você ver se podemos aproveitar os conhecimentos dela. Essa moça pode ensinar os outros a fazer isso.
- Vou verificar. Como é o nome dela?
- Não tenho anotado aqui, Hassid. É um nome meio engraçado. Você vai encontrar a tal moça.
- Vou perguntar por uma enfermeira que tem um nome engraçado, senhor.

DOZE

Rayford não conseguia dormir. Depois de percorrer vários andares do imenso e sombrio Edifício Strong, ele passou pelo quarto de Chaim. A porta estava escancarada, e, apesar da escuridão, Rayford notou o vulto do ancião. Chaim estava sentado, imóvel, na cama. Ele devia ter ouvido e visto Rayford no corredor. Rayford espiou dentro do quarto.
- Tudo bem, Dr. Rosenzweig?
Um suspiro forte passou por entre os dentes amarrados.
- Eu não sei, meu amigo.
- Quer conversar?
Uma risadinha.
- Você conhece minha cultura. Nós gostamos de conversar. Se tiver tempo, entre. Seja bem-vindo.
Rayford puxou uma cadeira e sentou-se, no escuro, de frente para Chaim. O botânico parecia não ter pressa nenhuma. Finalmente, ele disse:
- A moça vai tirar o fio de arame amanhã. O nome dela é Leah. Não venha me dizer que está preocupado com isso.
- Não vejo a hora de livrar-me desse fio.
- Mas você está pensando em outra coisa.
Chaim voltou a mergulhar em silêncio. Em seguida, sua respiração tornou-se ofegante, e ele encostou a cabeça no travesseiro, soluçando alto. Rayford puxou a cadeira para perto da cama e colocou a mão no ombro de Chaim.
- Vamos conversar.
- Eu sofri muitas perdas! - choramingou Chaim. Rayford tinha dificuldade para entender o que ele dizia. - Minha família! Meus empregados! Tudo por minha culpa!
- A culpa não é mais sua. Agora é Carpathia quem domina tudo.
- Eu era tão orgulhoso! Tão cético! Tsion, Cameron, Chloe, você e as outras pessoas que gostam de mim me alertaram, tentaram persuadir-me. Mas de que adiantou? Eu era um intelectual. Sabia mais que os outros!
- Você aceitou ao Senhor, Chaim. Não devemos viver do passado. Todas as coisas se tornaram novas.
- Mas veja onde eu estava algum tempo atrás! Tsion está feliz apesar de tudo, tão feliz por mim, sempre me incentivando. Eu não tenho coragem de dizer a ele o que estou pensando.
- E o que é?
- Sou culpado, capitão Steele! Eu poderia seguir seus conselhos, deixar o passado para trás, se tivesse de lidar apenas com meu orgulho e ignorância. Mas isso me fez passar por um sofrimento que nunca imaginei. Meus amigos mais queridos e mais leais estão mortos por minha causa. Trucidados em minha casa!
Rayford tentou não dizer frases feitas.
- Todos nós perdemos muita coisa - ele murmurou. - Eu perdi duas esposas e um filho, muitos amigos... tantos, que se pensar nisso vou enlouquecer.
Chaim voltou a sentar-se e enxugou o rosto com as duas mãos.
- Este é o meu problema, Rayford. Quase enlouqueci de sofrimento, mas a maior parte foi por remorso. Eu matei um homem! Sei que ele é o anticristo e que estava destinado a morrer e a ressuscitar, mas eu não sabia disso quando cometi o crime. Assassinei um homem que traiu meu país e a mim. Sou um assassino! Pense nisso! Eu era um respeitado estadista e, mesmo assim, desci até o ponto de assassinar alguém.
- Sua raiva é compreensível, Chaim. Eu queria matar Carpathia e sabia exatamente quem ele era e que não ficaria morto por muito tempo.
- Mas eu premeditei tudo, capitão, planejei com meses de antecedência. Inventei e fabriquei a arma, simulei um derrame só para aproximar-me dele sem levantar suspeitas e realizei o trabalho exatamente como havia imaginado. Sou um criminoso.
Rayford inclinou-se para a frente e apoiou os cotovelos nos Joelhos, segurando a cabeça com as duas mãos.
- Você sabe que quase fiz o trabalho em seu lugar?
- Não estou entendendo.
- Você ouviu um disparo antes de atacar Carpathia.
- Sim.
- Partiu da minha arma.
- Não acredito.
Rayford contou a história da raiva que sentia, da mudança em sua personalidade, do esquema montado, da compra da arma, de sua determinação de realizar a tarefa. Chaim sacudia a cabeça sem parar. Não posso acreditar que duas pessoas que se atreveram a atacar Nicolae se encontram agora no mesmo cômodo. Mas você não matou ninguém. Eu matei com gosto e, até o momento de perceber que necessitava de Deus, me sentia feliz por isso. Agora sofro de remorso e vergonha, e o sofrimento é tanto que mal posso respirar.
- Você não encontra consolo em saber que este era o seu destino e que você não pode ser culpado de assassinar um homem que está vivo?
- Consolo? Eu daria tudo o que possuo em troca de um momento de paz. O problema não é quem eu matei, Rayford. É que eu matei. Eu desconhecia a profundeza de minha maldade.
- E, apesar de tudo, Deus o salvou.
- Diga-me uma coisa. É possível a um ser humano sentir-se perdoado?
- Boa pergunta. Eu enfrento o mesmo dilema. Tenho plena confiança no poder de Deus para perdoar e esquecer, de nos separar de nossos pecados assim como o Oriente dista do Ocidente. Mas também sou humano. Eu não esqueço e, por conseguinte, não me beneficio do perdão que Deus estende a nós. O fato de nos sentirmos culpados não significa que Deus não tenha o poder de nos absolver.
- Mas Tsion me disse que tenho uma grande missão pela frente, que posso ser um daqueles que serão usados para conduzir meus compatriotas crentes a lugar seguro, longe do anticristo. Como ele pode dizer essas coisas e como posso fazer isso, se me sinto tão desolado?
Rayford levantou-se.
- Talvez a falácia esteja em pensar que você é quem vai conduzir o seu povo.
- Eu gostaria muito de tirar esse peso das minhas costas, mas, conforme Tsion diz, que outra pessoa seria? Ele próprio não pode arriscar-se.
- Estou dizendo que se trata de algo que Deus vai fazer por seu intermédio.
- Mas quem sou eu? Um cientista. Não sou eloqüente. Não conheço a Palavra de Deus. Mal conheço a Deus. Até alguns dias atrás eu não era sequer um judeu praticante.
- Mas quando criança você deve ter lido a Torá.
- Claro.
- Se Tsion tiver razão, porque nem mesmo ele tem certeza, essa poderá ser a sua experiência da sarça ardente.
- Eu não sou Moisés.
- Você está disposto a permitir que Deus o use? Se Tsion estiver certo e você fizer o que ele acha, você vai ser o Moisés da atualidade.
-Ora!
- Você poderia ser usado por Deus para fugir do governante maligno e levar seu povo a um lugar seguro.
Chaim gemeu e deitou-se novamente.
- Moisés defendeu a mesma causa que você está defendendo - disse Rayford. - A pergunta é se você está disposto.
- Eu sei.
- Você tem razão. Foi corrompido. Todos nós fomos até que Cristo nos salvou. Deus pode fazer de sua vida um milagre.
Chaim resmungou alguma coisa.
- Como? - perguntou Rayford.
- Eu disse que quero estar disposto. Estou disposto a estar disposto.
- Já é um bom começo.
- Mas Deus vai ter de me modificar.
- Ele já o modificou.
- Ele precisa modificar mais. Aceitar essa missão é o mesmo que concordar em sair voando por aí. A pessoa que aceitar essa missão deve ter consciência limpa, confiança que só pode vir de Deus, e facilidade de comunicação muito maior do que a minha. Eu era capaz de fazer um belo discurso na sala de aula, mas falar a milhares de pessoas como Tsion tem feito, opor-se publicamente ao anticristo, reunir o povo para fazer o que é certo? Eu não sei. Não tenho esse dom.
- Mas você está disposto a confiar que Deus vai fazer a parte dele?
- Ele é a minha única esperança. Estou no limite de minhas forças.


Ao meio-dia em ponto em Nova Babilônia, horário de Carpathia, David saiu do palácio pela primeira vez depois de dias. Os pontos de sua cabeça seriam retirados às 14 horas, e ele aguardava com ansiedade o momento de voltar a ver Hannah Palemoon, mesmo que fosse em uma sala esterilizada onde eles não poderiam conversar à vontade.
O calor fez David lembrar-se do dia da ressurreição de Nicolae. Para ele, era penoso demais caminhar por aquele palácio suntuoso sem Annie. Seu sofrimento era recente demais, e sua dor tão profunda que o ferimento na cabeça passou para o segundo plano. Hannah lhe dissera que a retirada das ataduras seria mais dolorida que a retirada dos pontos. O quepe protegia o ferimento do sol, mas o corpo de David começou a transpirar dentro do uniforme, e as lembranças do trauma afloraram-lhe à mente.
A morte de grande parte da população mundial teve reflexos na força de trabalho da sede da CG. O local, que antes se assemelhava a uma agitada metrópole, agora não passava de uma estrutura vazia. O grande número de funcionários entusiasmados, correndo apressados de um lado para o outro, reduziu-se a alguns turistas e peregrinos, que esticavam o pescoço na tentativa de ver alguma pessoa famosa.
David avistou, ao longe, um grupo de visitantes aglomerados ao redor de um dos monitores externos de TV que transmitiam notícias da CG 24 horas por dia. Ele caminhou lentamente até lá e postou-se atrás do grupo, sem ser notado. O Reverendíssimo do Carpathianismo, Leon Fortunato, falava ao povo diretamente de seu novo escritório.
David sacudiu a cabeça. Leon estava em pé diante de uma tribuna, semelhante a um púlpito, e sua altura parecia ter mudado. Leon, um homem de porte robusto, tez morena, medindo cerca de 1,80 m de altura, usava um manto longo vermelho-escuro e azul, que lhe dava uma aparência pomposa. Quando o falecido Peter Mathews postara-se diante da mesma tribuna, trajando um manto espalhafatoso e impróprio para a ocasião, a impressão foi de que ele era mais baixo que Leon, apesar de ter bem mais de 1,80 m. Leon devia estar em cima de alguma caixa ou plataforma!
Ele lia um relatório sobre a competição mundial entre as legiões para construir as réplicas da estátua de Carpathia. Evidentemente, os Estados Unidos Carpathianos venceram com muitos pontos de vantagem, mas o restante das regiões competiam pelo segundo lugar.
O relatório continha informações do mundo inteiro, mostrando quantas comunidades haviam tentado produzir uma versão inédita da estátua. Os regulamentos estipulavam que as réplicas precisavam ter, no mínimo, a altura de um homem e ser monocromáticas. Nenhuma poderia ser do tamanho da original. Com exceção desses requisitos, os comitês locais teriam liberdade para pôr em prática sua criatividade. A maioria das estátuas era negra, porém havia muitas douradas, algumas de cristal ou de fibra de vidro, uma verde, uma de cor alaranjada, e várias com o dobro da altura de um homem (ou metade da altura da estátua original). Fortunato demonstrou estar satisfeito com estas últimas e anunciou planos para visitar os locais.
"No interesse de prestarmos amplas informações sobre os fatos, recaiu sobre mim a tarefa de informar que Israel possui várias réplicas da estátua em cidades tão improváveis como Haifa e Tel-Aviv, ao passo que Jerusalém ainda não construiu a sua." Leon abaixou o tom da voz e passou a ser mais solene. "Falando sob a autoridade do potentado ressurreto, digo que malditos são os inimigos do senhor deste mundo que ousam enfrentar o altíssimo! Tomem cuidado com eles!"
Nesse ponto, Leon tornou-se paternal, como se fosse um parente querido lendo uma história para uma criança dormir. "Embora eu tenha recebido poderes do alto para realizar todos os milagres que nosso mui amado líder realiza, embora eu tenha comprovado esse poder quando invoquei fogo do céu para destruir os desleais, afirmo que o senhor de todos vocês, Sua Excelência, é a personificação do amor, do perdão e da longanimidade. O Supremo Potentado pediu-me que anunciasse que ele tem seguidores devotos na capital da Terra Santa. Mesmo tendo opinião contrária à dele, submeto-me à sua divina sabedoria. O líder espiritual deles não esquecerá aqueles leais peregrinos, que sofrem sob a insanidade e subversão justamente das pessoas incumbidas de cuidarem da saúde espiritual de suas almas.
"Daqui a uma semana, o objeto de nossa adoração visitará seus filhos em Jerusalém. Ele estará lá não apenas para enfrentar seus opositores, mas também para abençoar e aceitar a adoração e o louvor dos cidadãos que não têm a quem clamar, porque, além de ser um deus amoroso, ele é um deus justo.
"Como pastor de todos vocês, exorto ao número incontável de carpathianistas oprimidos de Jerusalém, vivendo sob o domínio de rebeldes insensatos, que demonstrem corajosamente seu apoio ao único digno de toda a honra e glória quando ele chegar a essa cidade. Que sua entrada seja triunfal, que ele seja recebido com uma honra sem precedentes. Desejo, em nome dele, garantir-lhes proteção e segurança contra qualquer forma de retaliação que vocês possam sofrer por terem agido corretamente ao enfrentar essa poderosa oposição.
"Sabemos que existe uma liderança naquela cidade composta de um pequeno número de judaístas e judeus ortodoxos, que se expõem à vingança de nosso deus por persistirem nessa insanidade suicida. Se eles não enxergarem o erro que estão cometendo e não se ajoelharem diante de seu senhor para suplicar perdão, uma nova liderança será instalada naquela importante cidade antes da partida de Sua Excelência.
"E para aqueles que afirmaram que o potentado não tem permissão para entrar no templo, eu digo que não se atrevam a enfrentar os guerreiros do senhor dos exércitos. Ele é um deus de paz e reconciliação, mas vocês não podem ter outros deuses diante dele. Não será permitida a construção ou funcionamento de casas de adoração em nenhum lugar deste planeta, a não ser que reconheçam Sua Excelência como único objeto de devoção. Nicolae Carpathia, o potentado, ressuscitou!"
O povo diante do monitor de TV gritou a costumeira resposta. David disse silenciosamente:
- Jesus Cristo ressuscitou verdadeiramente.
Fortunato lembrou ao mundo que, dentro de dois dias, todas as estátuas deveriam estar terminadas e prontas para ser adoradas.
"E, conforme vocês já sabem, as cem primeiras cidades que tiverem suas estátuas aprovadas serão as primeiras a ter o privilégio de receber os centros de aplicação da marca da lealdade."
Leon pediu a seus assessores que trouxessem um quadro em branco para poder escrever e ilustrar seu discurso. David notou que, diante de seus assessores, ele parecia ter mais de dois metros de altura. Fortunato usou uma varinha para mostrar o desenho de um centro-padrão de aplicação da marca.
O centro continha um local espaçoso, onde milhares de pessoas por vez seriam reunidas e separadas por cordões de isolamento. Ali elas assistiriam aos discursos de Carpathia e Fortunato gravados em videoteipe.
Enquanto Fortunato falava, a cada quatro minutos era exibido um replay mostrando o momento em que ele invocou fogo do céu sobre os dissidentes e o momento da ressurreição de Carpathia. Fortunato fez uma pausa para deixar a fita rodar, e David desviou o olhar. Os turistas aplaudiam.
Fortunato voltou a concentrar-se no seu esquema. Os cidadãos seriam conduzidos a uma ou duas dúzias de cabinas ao ar livre - o número dependeria do tamanho da cidade -, onde teriam de escolher o desenho e o tamanho da marca e se ela seria aplicada na testa ou no dorso da mão direita.
"Um lembrete amigo", disse Fortunato com um sorriso irônico. "Se vocês retardarem a decisão ou se esquecerem por causa da euforia do momento, será aplicado em sua mão direita o prefixo que identifica sua região, perto da pequena cicatriz provocada pela injeção do biochip.
"Temos sido constantemente interpelados sobre a possibilidade de falsificação da marca. Apesar de ser impossível distinguir a marca falsa da verdadeira, a não ser por pessoas altamente treinadas, os scanners dos biochips não poderão ser enganados. Temos tanta confiança de que essa tecnologia é 100% segura que qualquer pessoa que for barrada pelo scanner será executada, sem direito a apelação. Para comprar e vender, todos precisarão ter, obrigatoriamente, um biochip implantado sob a pele para ser lido pelo scanner.
"E, sim, teremos instrumentos de imposição à lealdade em todos os centros de aplicação da marca."
Para espanto de David, essa afirmação foi ilustrada com uma enorme e reluzente guilhotina.
Fortunato deu uma gostosa gargalhada e disse: "Acho que nenhum cidadão da Comunidade Global vai ter medo desse instrumento, a menos que ele continue envolvido no culto dos judaístas ou dos judeus ortodoxos. Francamente, somente os cegos ou aqueles que não tiveram acesso à TV foram impedidos de presenciar a ressurreição de nosso deus e governante, portanto creio que não mais existem céticos fora dos limites da cidade de Jerusalém. Bem, conforme vocês podem ver", e ele riu novamente, "eles não vão durar muito tempo."
Em seguida, Fortunato pegou uma pilha enorme de cartas. "Aqui estão, meus amigos, os pedidos daqueles que desejam ser os primeiros a mostrar lealdade à Sua Excelência. Eles sentiriam orgulho de ter sua marca aplicada aqui em Nova Babilônia. Cidadãos de qualquer lugar do mundo poderão receber a marca aqui, mas o código numérico coincidirá com o de sua região. Esse privilégio será concedido a um número limitado de pessoas, portanto apresentem-se rapidamente ou terão de receber a marca nos centros de suas respectivas cidades.
"A aplicação é dolorida? Não. Em razão da tecnologia avançada e da eficiência da anestesia local, vocês só sentirão a pressão do injetor do biochip. O efeito da anestesia durará até que todo o desconforto tenha passado.
"Eu os abençôo, meus amigos, em nome de nosso senhor e mestre ressurreto, Sua Excelência, o Potentado, Nicolae Carpathia."


Rayford estava sonolento quando retornou a seu quarto, mas não conseguia dormir. Passou uma hora ruminando tarefas para o Comando Tribulação. Finalmente, concluiu que Albie e Buck deveriam viajar para a Grécia. Ele precisaria ficar para manter o ânimo do grupo, e Buck precisaria conhecer de perto o regime de Carpathia.

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