domingo, 5 de setembro de 2010

DEIXADOS PARA TRÁS VIIB

— Olhe dentro dos meus olhos, filho. Assim está bem. Você confia em mim?
— Claro.
— Quando seu chefe chegar, vou dizer a vocês dois o que vocês viram e do que vão se lembrar.
— Como assim?
— Vou dizer o que vocês viram e do que vão se lembrar.
— Mas, senhor, eu me lembro do que...
— Você sabe que em breve vou ser o novo potentado, não?
— Foi o que eu imaginei, senhor.
— Imaginou?
— Acho que a maioria das pessoas está imaginando isso.
— Verdade? Nenhuma resposta.
— Verdade? — repetiu Leon. — Não se limite a balançar a cabeça afirmativamente. Diga.
A voz do homem soou falsa.
— Sim.
— Você sabe que meu novo título será Supremo Potentado e que eu também devo ser chamado de Excelência?
— Sim, Comandante.
— É melhor você começar a praticar desde já e me chamar pelo novo título.
— Sim, Excelência.
— E você já se deu conta de que serei digno de adoração e que essa adoração será obrigatória?
— Sim, Excelência.
— Quero que me chame de Potentado. Supremo Potentado.
— Sim, Supremo Potentado.
— Você gostaria de ajoelhar-se diante de mim? Silêncio. Em seguida, alguém bateu na porta, e Leon deu um suspiro profundo. A porta foi aberta.
— Com licença, Comandante, mas o Sr. Bakar está ocupado neste momento, cuidando de...
— Margaret! — disse Leon entre os dentes, com voz zangada. — Não me interrompa novamente!
— Eu... senhor, sinto muito...
— Não quero ouvir desculpas nem ouvir que meus subordinados têm coisas mais importantes para fazer! A única pessoa que tem autorização para passar por esta porta é o senhor Bakar, e, se você não quiser sofrer as conseqüências, Margaret, é melhor que ele esteja aqui dentro de um minuto e meio.
— Pois não, senhor. A porta. A cadeira.
— E então, filho, onde estávamos?
— Eu estava adorando o senhor, Supremo Potentado. Outra cadeira.
— Isso mesmo. Ajoelhe-se diante de mim e beije meu anel.
— Não estou vendo nenhum anel, senhor.
— Beije meu dedo onde em breve haverá um anel. Uma rápida batida na porta e ela foi aberta. A voz era de Bakar:
— Perdoe-me, Comandante, eu... o que está acontecendo aqui?
— Sente-se, diretor.
— O que ele está fazendo ajoelhado no chão?
— Ele ia me contar o que estava gravado no videodisco que você trouxe de Jerusalém.
— O senhor viu o videodisco, não, Supremo Comandante?
— Claro, mas parece que existe uma discrepância entre o que nós dois vimos e o que você parece ter visto.
— Como?
— Sim — disse Fortunato. — Retorne à sua cadeira e diga a seu chefe o que você viu.
— Ouvi o disparo e vi a cabeça do potentado sendo atingida.
— Já entendi — disse Bakar. — É uma brincadeira. O potentado foi morto com um tiro? Todos nós sabemos que não é verdade.
— É verdade — disse o operador de câmeras.
— Ah, sim, eu nasci ontem e fiquei cego hoje.
— Você ficou cego, Bakar? — perguntou Leon com voz macia.
— O quê?
— Debruce sobre esta mesa. Quero ver seus olhos.
— Meus olhos estão ótimos, Le... Comandante. Eu...
— Bakar, você está me ouvindo?
— Claro, mas...
— Está me ouvindo?
— Estou!
— Está me ouvindo? De verdade?
Silêncio.
— Você está prestando atenção em mim, Bakar?
— Sim, senhor.
— Bakar, você sabe que em breve serei o novo potentado, não?
David não suportava ouvir mais nada e desligou o computador. Levantou-se da cadeira, atordoado, enojado. Ele ligou para Annie e desculpou-se por despertá-la.
— O que houve, David? — ela perguntou.
— Eu preciso de você — ele respondeu. — Quero que se encontre comigo logo, antes que eu seja chamado para falar com Fortunato.
Rayford e Leah combinaram um encontro com Chloe em um salão de festas completamente destruído, que se transformara em um bar sujo e mal iluminado. Passando despercebidos pelos freqüentadores, eles sentaram-se em um canto escuro, encolhidos por causa do vento que entrava pelas enormes fendas na parede.
Rayford e Chloe abraçaram-se, e ele não quis perder muito tempo chamando a atenção da filha.
— Isto é mais perigoso que ficar na casa secreta — ele disse —, mesmo que Hattie conduza o pessoal da CG até lá. É provável que eles não encontrem o abrigo subterrâneo.
— Precisamos de um novo lugar para morar, papai — ela disse. — E já estou cansada de não fazer nada.
— Concordo, mas é melhor não cometermos loucuras.
O telefone de Leah tocou.
— Aqui fala... Gerri Seaver.
— Oh, sinto muito... eu... Clique.
— Oh, não! — disse Leah. — Era Ming. Tenho certeza.
— Aperte o botão de resposta — disse Rayford.
Quaisquer dúvidas que porventura houvesse quanto à condição física de Chaim foram eliminadas quando ele e Buck finalmente saíram do Hotel Visitantes da Noite. Chaim sabia exatamente para onde eles iam. Ele rasgou um pedaço de seu cobertor de tamanho suficiente para que o pano ficasse ajeitado debaixo do chapéu e caísse sobre os ombros e os dois lados do rosto. Sua camisa comum e calça rústica deixavam-no com a aparência de um operário israelense. Ele também havia substituído os chinelos por botas.
Buck tinha dificuldade de acompanhar os passos rápidos de Chaim. Embora fosse uns 30 centímetros mais baixo que Buck e 30 anos mais velho, Chaim conseguiu deixar o amigo exausto.
— Muito bem, nós vamos para a América, e daí? Vou ficar escondido num buraco com Tsion e você? Não vou nem precisar me matar. Vocês dois vão fazer isso por mim.
— Não há nada que eu possa dizer que você já não tenha ouvido — disse Buck, ofegante e aliviado porque seu comentário fez Chaim parar por alguns instantes.
— Esta é a coisa mais verdadeira que ouvi hoje.
— Nem tanto assim — disse Buck, demorando a recomeçar a caminhada quando Chaim já estava a um passo e meio à sua frente.
— O quê? — perguntou Chaim.
— A coisa mais verdadeira que você ouviu hoje é que está perdido!
Chaim parou novamente e virou-se para trás.
— Perdido?
— Sim!
Mesmo sob a iluminação fraca da devastada Cidade de Deus, Buck viu uma expressão de sofrimento no rosto do amigo.
— Você pensa que não sei que estou perdido? — disse Chaim, demonstrando incredulidade. — Se existe uma coisa que eu sei e de que tenho certeza é que estou perdido. Por que você acha que eu me sacrificaria para assassinar o maior inimigo que meu país já teve? Eu não esperava sobreviver! Estava pronto para partir! Por quê? Porque estou perdido! Minha vida não tem mais sentido! Nenhum sentido! Meu ato de despedida tinha a finalidade de trazer algum benefício a Israel. Agora que tudo está feito e que estou aqui, sim, eu me sinto perdido!
Buck temia que Chaim chamasse a atenção de alguém com suas lamúrias. Mas foi por causa delas que ele se aproximou do amigo querido com os braços estendidos e o apertou contra o peito.
— Você não precisa sentir-se perdido, Chaim. Não precisa. E o ancião soluçou nos braços de Buck.


ONZE

— Não desligue. É Leah. — Ela havia entrado no Land Rover para fazer a ligação.
— Parecia ser você — soou a voz que Leah sempre achou que não combinava com a delicada Ming Toy. — Mas que história é essa de Gerri sei lá o quê?
— Como fugitivos internacionais, precisamos mudar constantemente de identidade, Ming. E, se não fosse assim, que graça haveria?
— Não sei como você consegue manter o senso de humor. É uma situação muito perigosa, assustadora demais para mim.
— Você tem se saído muito bem, Ming.
— Liguei porque tenho uma pergunta. Williams é seu amigo?
— Buck, sim.
— Não, Buck não. Nome mais comprido.
— Cameron?
— Sim! Onde está a família dele?
— Em algum lugar do oeste. Por quê? Acho que só o pai e o irmão dele ainda estão vivos.
— Acho que não estão mais vivos. Falaram muito hoje no PRFB sobre o que aconteceu na casa do Dr. Rosenzweig e com seus empregados. Ninguém sabe onde ele está, mas ouvi dizer que todos morreram queimados.
— Verdade?
— Estão dizendo que vai acontecer a mesma coisa com a família de Cameron Williams se ele não se entregar.
— Os parentes de Williams não sabem onde ele está! — disse Leah. — E ele é muito esperto para dar esse tipo de informação.
— Leah, é possível que eles já estejam mortos. A coisa ia acontecer logo.
— Que coisa?
— Tortura. Amputação de braços e pernas. Ou contam ou morrem. Depois eles ateiam fogo para encobrir tudo.
— Não sei o que posso fazer.
— Peça a seu amigo que ligue para a família dele. Talvez ainda dê tempo.
— É o que vou fazer, Ming. Como você está? Pronta para nos visitar? Epa! Aguarde um momento. — Leah abaixou-se no banco enquanto dois policiais uniformizados das Forças Pacificadoras da CG passavam pelo carro. Eles pararam perto do Rover, conversando e fumando. — Ming — cochichou Leah —, você está me ouvindo?
— Muito mal. O que está havendo?
— Tenho companhia. Se eu não disser nada, você vai entender por quê.
— Se você precisar desligar...
— Prefiro continuar falando com você. Anote o número do celular de Rayford Steele, caso eu seja pega. Ele vai atender como Marvin Berry.
— Já anotei.
Leah sentiu o veículo balançar.
— Eles estão encostados no carro. Felizmente todos os vidros estão pintados, exceto o pára-brisa.
— Onde você está?
— Illinois.
— Dentro do carro, quero dizer.
— No chão do banco da frente. Eu gostaria de ser mais magra. A alavanca do câmbio está me machucando.
— Eles não estão vendo você?
— Acho que não. Estou ouvindo claramente o que eles dizem.
— O quê?
Leah não queria falar mais alto. Os policiais estavam contando histórias sobre festas em família. Ela teve vontade de dizer: "Ah, sim, e eu sou o coelhinho da Páscoa", mas permaneceu imóvel.
— Esta lata velha parece ter passado pela guerra — disse um deles.
— E passou, idiota. É velha demais. Deve ter passado pela guerra e pelo terremoto.
— É bem resistente.
— Não tanto quanto o Land Cruiser.
— Não? O fabricante não é o mesmo?
— Toyota.
— Sério?
— Muito caro.
— Mais que este?
— Bem mais.
— Você está brincando? Esta coisa vale uma boa grana. Acho que tem GPS [Global Positioning System ou rastreamento por satélite].
— Esta charanga? Não.
— Quer apostar?
— Quanto?
— Dez pratas.
— Eu topo.
— Oh, não — sussurrou Leah —, eles estão se dirigindo para a frente do carro.
— Quer que eu ligue para Rayford?
Mas Leah não respondeu. Ela escondeu o celular entre os bancos e fingiu que estava dormindo.
— Veja, isso aqui não é o GPS? Ei! Será que ela está bem?
— Quem? Oh, cara! A porta está destrancada. Pergunte a ela.
Uma batida no vidro.
— Ei, senhora!
Leah fez que não ouviu, mas se mexeu ligeiramente para que eles não pensassem que ela estava morta. Quando um deles abriu a porta do passageiro, ela sentou-se, tentando parecer sonolenta.
— Ei, qual é o problema? — ela perguntou. — Devo chamar um policial das Forças Pacificadoras?
— Nós pertencemos às Forças Pacificadoras, senhora.
— Existe alguma lei que proíba uma mulher de cochilar um pouco?
— Não, mas o que a senhora está fazendo no chão do carro? O banco traseiro está livre.
— Tentando me proteger do sol.
Ela sentou-se no banco, tentando desesperadamente lembrar-se de seu novo endereço e da cidade onde morava. Zeke Jr. a havia aconselhado a memorizar essas informações o mais rápido possível. Leah detestava ser tão inexperiente nesta parte do jogo.
— O veículo é seu?
— Tomei emprestado.
— De quem?
— De um cara chamado Russell.
— Russell é nome ou sobrenome? .
— Russell Staub.
— Ele está sabendo disso?
— Claro! O que vocês querem?
— Confira se é verdade — disse um deles ao companheiro, que imediatamente tirou um celular do bolso. — De onde ele é, senhora?
— Monte Prospect.
— E por que a senhora veio parar aqui? Leah encolheu os ombros.
— Queria encontrar alguns amigos.
— Quer dizer que vamos encontrar este Rover registrado no nome de Staub em Monte Prospect, certo?
Ela assentiu com a cabeça.
— Eu não examinei os documentos do carro, mas pertence a ele e é lá que ele mora.
— A senhora tem carteira de identidade, senhora?
— Tenho, por quê?
— Eu gostaria de vê-la.
— Primeiro, você queria saber se eu estava bem e agora me acusa de ter roubado um carro.
— Eu não acusei a senhora de nada, senhora. Está se sentindo culpada por alguma coisa?
— E por que deveria estar?
— Quero ver sua identidade.
Leah fingiu vasculhar a bolsa, mesmo depois de ter encontrado os novos documentos, para poder dar uma olhada nas informações.
— Seu endereço atual é este, Srta. ... Seaver?
— Se aí constar Park Ridge, é.
— A senhora está muito longe de casa.
— É porque existem poucas estradas agora.
— Isso é verdade.
— Staub, Monte Prospect — disse o outro policial. — Nenhum débito e nenhuma queixa.
Leah ergueu as sobrancelhas, com o pulso acelerado.
— Satisfeito?
Ele devolveu-lhe a carteira de identidade.
— Não fique rodando por aí sem ter nada para fazer, minha senhora. É melhor devolver o carro ao proprietário e ir para casa.
— Será que eu poderia tomar um drinque antes, caso meus amigos apareçam?
— Não se demore.
— Obrigada. — Ela abriu a porta do carro e avistou Rayford e Chloe saindo do bar, com ar de preocupação no rosto. — Oh, lá estão eles! Obrigada mais uma vez, policiais!
Annie correu até o escritório de David. Fingindo estar em uma reunião normal com uma subordinada, contou a ela rapidamente o que ouvira. Ela empalideceu.
— Parece ser a mesma coisa que Buck Williams presenciou com Carpathia na ONU.
— Como Fortunato pode fazer isso?
— Será que ele é o anticristo? — ela perguntou. David sacudiu a cabeça.
— Ainda acho que é Carpathia.
— Mas ele está morto, David. Morto de verdade. Quanto tempo ele ficou naquele saco dentro do caixote? Achei que ele fosse voltar a viver imediatamente.
— O Dr. Ben-Judá também pensava assim — ele disse. — E o que sabemos nós? Se tivéssemos conhecido a verdade antes, provavelmente teríamos explicação para tudo o que aconteceu e nem teríamos sido deixados para trás.
A secretária de David chamou-o pelo interfone.
— O Supremo Comandante quer vê-lo. Annie segurou as mãos de David com força.
— Senhor, ela murmurou, protege-o de todos os perigos.
— Amém — disse David.
Buck e Chaim estavam agachados, tremendo de frio, dentro de uma vala no extremo norte de uma estrada bloqueada e deserta. Apenas um pequeno trecho da pista continuava plano, e Buck começou a se perguntar se teria extensão suficiente para a aterrissagem do Super J. Talvez o jato pudesse pousar e decolar sem chamar a atenção, mas e se T tivesse de voar em círculos ou fazer mais uma tentativa?
E, pior ainda: a pista não tinha iluminação. T precisaria usar as luzes de pouso por um tempo mínimo e contar com Buck para orientá-lo por telefone. Isso significava que Buck teria de posicionar-se em uma das extremidades da pista improvisada. Ele optou pela da frente para que T passasse por cima de sua cabeça. Em seguida, ele daria meia-volta e tentaria orientá-lo para voar em linha reta até tocar o solo. O único perigo seria T aproximar-se voando muito baixo e muito rápido. Buck teria de saltar para longe da pista. Mesmo assim, essa idéia parecia ser mais fácil do que tentar forçar o jato a inclinar-se e voar na direção dele pelo outro lado.
— É muita complicação para alguém que não quer ir embora — disse Chaim.
— Mas eu quero ir embora, mesmo que você não queira. O celular de Buck tocou, e ele supôs que fosse T, embora ainda não tivesse ouvido o ronco dos motores do jato. Era Rayford.
— Temos um problema — disse Rayford, contando rapidamente a Buck sobre Hattie. — Não sei se o momento é propício para conversarmos.
— Não é — disse Buck. — Mas você não pode resumir o que houve?
— Não quero que você se arrisque, Buck. Ligue para nós quando estiver no ar ou na Grécia. E transmita nossas saudações aos irmãos de lá.
— Sim — disse Buck, surpreso diante do novo tom de voz de Rayford. Parecia que ele estava conversando com o sogro de antigamente.
— Chloe está lhe mandando um beijo e quer falar com você assim que for possível.
— Obrigado. Também mando outro para ela.
— Eu gosto muito de você, Buck.
— Obrigado, Ray. Eu também gosto muito de você.
David se deu conta de como estava aterrorizado ao cambalear no momento em que chegou ao 18° andar, onde ficava a sala de reuniões.
— Ele está lá? — perguntou David, tentando disfarçar a ansiedade.
— Não — respondeu Margaret, visivelmente perplexa. — Está reunido com os Srs. Hickman e Moon no escritório dele. Estão aguardando você.
Eu não vou ajoelhar, prometeu David a si mesmo. Não vou adorar esse homem nem beijar a mão dele. Senhor, protege-me.
Leon e os outros dois diretores estavam aglomerados diante de um aparelho de TV. O semblante de Leon demonstrava tristeza.
— Assim que Sua Excelência for sepultado — ele disse, com a voz embargada pela emoção —, o mundo inteiro vai poder chegar a uma conclusão. A prisão do assassino contribuirá para isso. Observe conosco, David. Diga-me se você está vendo o mesmo que nós.
David aproximou-se da TV, certo de que Fortunato podia ouvir as batidas de seu coração e ver o rubor em seu rosto. Ele quase tropeçou na cadeira e sentou-se de maneira desajeitada.
A tomada de cena vinda de cima, captada pelo videodisco, era muito clara. Ao ouvir o som do disparo à sua esquerda, Carpathia vira-se e corre na direção da cadeira de rodas no momento em que Chaim se encaminha na direção dele. Chaim agarra o suporte de metal acima de seu ombro esquerdo e retira dali um objeto parecido com uma espada de uns 60 centímetros. Quando Nicolae tomba em cima dele, Chaim floreia a arma diante de si, segurando-a com as duas mãos, e aponta-a para cima com o lado afiado na direção oposta ao potentado.
Chaim levanta os braços no momento em que o corpo de Carpathia cai sobre a lâmina, que penetra em sua nuca e atravessa o crânio saindo pelo topo da cabeça, como se fosse uma baioneta fatiando uma melancia. As mãos de Carpathia atingem o queixo dele, mas, mantendo os olhos fixos em Chaim, David observa que ele gira violentamente o cabo da arma na nuca de Nicolae. Ele solta a arma e Carpathia cai. Em seguida, manobra a cadeira de rodas para o lado esquerdo do palanque e fica de costas para o homem moribundo.
— E então? — perguntou Leon, olhando firme para David. — Existe alguma dúvida?
David demorou a responder, o que serviu para que os outros dois olhassem para ele.
— As câmeras não mentem — disse Leon. — Sabemos quem o matou, não?
Por mais que quisesse argumentar, dar outra interpretação a uma cena tão evidente, David poria sua posição em risco se desse uma resposta sem lógica. Ele assentiu com a cabeça.
— Claro que sabemos.
Leon aproximou-se dele, e David gelou. O supremo comandante segurou o rosto de David com suas mãos carnudas e olhou dentro dos olhos dele. David esforçou-se para não desviar o olhar, orando o tempo todo para que agisse corretamente e esperando que Annie também estivesse orando por ele. Assim como Nicolae, ali estava um homem com poderes sobrenaturais para controlar a mente dos incrédulos. Ele sentia as batidas dos pulsos de Leon em seus ouvidos e receava deixar transparecer o pânico que sentia.
— Diretor Hassid — disse Leon, com olhar penetrante. — Rayford Steele deu um tiro mortal em nosso mui amado potentado.
Rayford? Será que eles não tinham visto o mesmo vídeo? Se David respondesse rapidamente, Leon poderia ficar desconfiado.
— Não — disse David —, o disco mostrou claramente. O Dr. Ro...
— Um estadista leal e que foi vítima de derrame seria incapaz de cometer tal ato, você não acha?
— Mas...
Fortunato continuava a segurar o rosto de David, transpirando nas palmas das mãos.
— A única arma mortífera é o Sabre nas mãos de Rayford Steele, que terá de pagar por seu crime.
— Rayford Steele? — disse David, gaguejando como se fosse um colegial.
— O assassino.
— O assassino?
— Olhe novamente, David, e diga-me o que você vê. David estava aterrorizado. Não percebera ninguém trocar os discos, mas, agora, a imagem mostrava Rayford atirando em direção ao palanque. David achou que estava sendo mais fraco do que Buck foi três anos e meio antes. Será que Leon tinha o poder de fazê-lo enxergar uma coisa que não estava sendo mostrada? Ele fixou os olhos no aparelho de TV, sem piscar. O tempo parecia ter parado.
Alguém devia ter mudado o disco enquanto ele estava distraído nas mãos de Fortunato. Não havia nenhum truque, nenhum ilusionismo. Ao mesmo tempo em que a imagem mostrava o disparo, mostrava também Nicolae caindo no colo de Chaim.
— Passe em câmera lenta — disse David, tentando imitar o tom de voz imparcial dos outros. Ele acreditava que essa sua tentativa não estava dando certo, mas não tinha opção.
— Sim, Walter — disse Leon. — Mostre o disparo mortal novamente, em câmera lenta.
David lutou para controlar-se, determinado a observar com atenção a tribuna, a cortina, os reis. Assim que o clarão do disparo e a fumaça apareceram no cano do Sabre, a tribuna partiu-se ao meio, e as peças voaram na direção dos dez reis. A cortina enrolou-se e foi atirada a distância. Chaim surgiu detrás do potentado, que estava caído no chão, e manobrou a cadeira em direção ao centro do palanque. Não havia ângulo para ver o que ele havia feito.
Embora enojado, David teve de suportar mais uma vez as mãos de Fortunato segurando-lhe o rosto.
— E então? — perguntou Leon, olhando firme para ele. — Existe alguma dúvida?
Desta vez David não podia demorar a responder. Subitamente, ele sentiu o perfume forte da colônia usada por Leon. Por que não havia sentido antes?
— As câmeras não mentem — disse Leon. — Sabemos quem o matou, não?
David assentiu com a cabeça, forçando Leon a soltar um pouco os dedos.
— Claro que sabemos — ele conseguiu dizer. — Steele deve pagar.
— Detesto esta situação — disse Leah quando os três voltaram a entrar no bar. — É uma guerra de nervos. Não devíamos nos expor durante o dia. Alguma coisa tinha de dar errado.
— Você não devia ter ido até o carro — disse Chloe. Leah ergueu a cabeça e olhou firme para Chloe.
— Eu não devia ter ido até o carro? Não estamos aqui por minha causa, querida.
— Eu não pedi que você viesse — disse Chloe.
— Parem — disse Rayford. — Desse jeito não vamos resolver nada. Chloe, sinto muito, mas você cometeu uma enorme estupidez.
— Papai! Precisamos conhecer o novo lugar.
— E temos de examiná-lo, mas não podemos ficar expostos um segundo a mais que o necessário, a não ser à noite.
— Tudo bem! Desculpem-me. Leah estendeu-lhe a mão.
— Eu também preciso me desculpar — ela disse, mas Chloe retraiu a sua. — Vamos, não faça assim. Eu não deveria ter dito aquilo. Sinto muito. Temos de nos dar bem se quisermos trabalhar juntas.
— Precisamos sair daqui — disse Rayford. — Aqueles policiais acham que somos amigos e que nos reunimos aqui para beber alguma coisa. Não podemos aguardar até o anoitecer.
— É melhor seguirmos até as proximidades de Chicago — disse Chloe.
— Isso levantará mais suspeitas ainda — disse Rayford —, a não ser que a gente encontre um lugar para deixar os carros escondidos e andar a pé pela cidade.
— Onde será que os trilhos da ferrovia elevada terminam agora? — perguntou Chloe.
— Terminam em qualquer lugar — disse Leah. — Estão totalmente interrompidos, certo?
— Bem — disse Chloe —, os trilhos para quem vem do sul foram destruídos, mas estão em bom estado na cidade, só que foram interditados.
Rayford olhou para o teto.
— É melhor encontrarmos um lugar para esconder os carros, pegar caminhos alternativos e acompanhar os trilhos dentro da cidade.
Leah concordou.
— Boa idéia.
— Foi o que pensei — disse Chloe.
— Se você estiver no lugar em que estou pensando — disse T —, vai ser impossível.
— Você consegue ver a estrada? — perguntou Buck. — Por que não estou ouvindo o ronco dos motores?
— Talvez por causa do vento, mas logo você vai ouvir. Já estou voando mais baixo do que queria, mas espero estar enxergando a estrada errada.
— É a única alternativa nesta área — disse Buck. — Se você estiver vendo o local onde a estrada é mais larga, é sinal de que está perto de nós.
— Buck, você faz idéia do tempo que leva para um jato como este parar? Com uma aeronave menor, seria mais fácil.
— Existem outras opções?
— Ah, sim! Vou pousar no Aeroporto de Jerusalém, ou, melhor ainda, em Tel-Aviv e ficamos torcendo para tudo dar certo.
— Seria melhor que Chaim cometesse suicídio aqui do que corrermos esse risco, T. O pessoal da CG está atrás dele.
— Estou disposto a tentar, Buck, mas parece uma maneira meio estranha de me transformar em um mártir.
— Agora estou ouvindo o ronco dos motores.
— Ainda bem.
— Você está tão próximo que quase estou conseguindo ouvir sua voz! Pisque as luzes de pouso... Estou vendo você! Você está à minha direita!
— Estou tentando!
— Mais. Mais! Mais! Ali! Não, um pouco mais para a esquerda! Chega!
— Não estou enxergando nada!
— Acenda as luzes só quando for necessário. Isso também vai me ajudar.
— Não gosto de não estar vendo nada. — As luzes de pouso foram acesas e permaneceram acesas. — Agora não gosto do que estou vendo.
— Você está voando muito alto. Pensei que estivesse mais baixo.
— Eu estava voando mais baixo do que queria para me orientar por aquelas luzes de emergência lá embaixo, à esquerda. Espero que eles estejam atarefados demais para olhar para cima.
— Você continua voando alto.
— É verdade. Mas ainda não consigo avistar você.
— Se você permanecer aí em cima, estou seguro. Você vai dar outra volta?
— Negativo. Vou fazer mais uma tentativa e tem de dar certo.
— É melhor você começar a descer.
— Lá vou eu.
Buck pôs o telefone no chão e começou a acenar, embora soubesse que T não conseguiria vê-lo daquele ângulo. O jato desviou para a direita, e Buck tentou sinalizar para que T voltasse ao centro. Com as luzes acesas, T deveria estar enxergando.
Assim que o Super J passou zunindo por ele, Buck pegou seu telefone e gritou:
— Você está em linha reta?
— Estou tentando o mais que posso! Não vai dar certo! Alto demais! Rápido demais!
— Que tal abortar?
— Tarde demais!
Buck fechou os olhos enquanto o avião descia em velocidade. O escapamento quente passou voando acima dele. Mesmo tapando os ouvidos, ele sabia que não conseguiria abafar o som do impacto. Mas o que ele ouviu não foi barulho da queda do avião. Ele pensou ter ouvido o rangido dos pneus mais forte que o som dos motores, mas aquilo seria bom demais. Olhando através da poeira, ele viu o avião sacolejando um pouco à frente, com o escapamento em chamas, apontado em sua direção.
O impacto seguinte fez um ruído semelhante ao de um tiro. Uma fumaça branca subiu da parte inferior do avião, que começou a girar violentamente. Buck viu o escapamento em chamas, depois as luzes de pouso e outra vez o escapamento. De repente, as luzes se apagaram, mas as turbinas continuavam ligadas. O barulho foi enfraquecendo, e agora só se ouvia o zumbido dos motores, mas Buck não enxergava nada. O jato deveria estar de frente para ele. Não houve barulho de fuselagem sendo amassada, como ele temia caso T não tivesse conseguido parar.
Ele correu até o avião, surpreso ao ver Chaim a seu lado, acompanhando seus passos.
A noite na Nova Babilônia estava quente e seca. Fachos de luz partindo de mais de uma dezena de ângulos banhavam o pátio do palácio, deixando-o quase claro como o dia. Nenhuma iluminação poderia igualar-se à luz do Sol refletindo seus raios no céu límpido e sem nuvens, mas, enquanto não amanhecesse, todos podiam ver claramente tudo o que estava ali para ser visto.
David e Annie encontravam-se entre as centenas de funcionários que receberam permissão — ou, no caso deles, foram encarregados — de desfilar diante do esquife antes dos peregrinos vindos do mundo inteiro. O casal aguardou, em pé, na escada enquanto dez homens da guarda de honra — quatro de cada lado e um em cada extremidade — carregavam solenemente o esquife feito de Plexiglas [matéria plástica transparente empregada como vidro de segurança nas indústrias aeronáutica e automobilística], ao som de uma orquestra que tocava, ao vivo, uma música fúnebre. Por trás do bloqueio, a uns 200 metros de distância, partiram os primeiros lamentos. Os funcionários também começaram a chorar. A guarda de honra colocou cuidadosamente o esquife em cima do pedestal e o ajeitou na posição correta. Um técnico, carregando debaixo do braço um objeto parecido com um aspirador de pó portátil, ajoelhou-se embaixo do esquife e parafusou um manômetro no tampão de borracha instalado na parte dos pés. Ele verificou o relógio de leitura duas vezes. Em seguida, enganchou uma mangueira no tampão, girou um mostrador e ligou a máquina de sucção por dois segundos. Depois de verificar o manômetro, ele retirou tudo, deixando apenas o tampão, e afastou-se rapidamente dali.
Os quatro homens de cada lado do esquife deram um passo atrás enquanto os outros dois retiravam a mortalha. Annie teve um sobressalto. David estava atônito. Ele esperava que Carpathia estivesse com a aparência de uma pessoa viva. O trabalho da Dra. Eikenberry havia sido excelente, é claro, porque não havia nenhuma evidência de trauma. Contudo, mesmo trajando terno escuro, camisa branca e gravata listrada, Carpathia parecia um cadáver como qualquer outro que David havia visto.
O esquife tinha o formato de um caixão tradicional de madeira, com a parte da cabeceira mais larga para conter o torso robusto de Carpathia. A tampa tinha cerca de cinco centímetros de espessura e estava presa dos lados por enormes parafusos de aço inoxidável que atravessavam o plástico, sem permitir a entrada do ar, e rosqueados com arruelas na parte inferior.
A tampa estava a uns oito centímetros acima do rosto de Carpathia para que o povo que passasse pudesse curvar-se sobre as cordas de veludo e enxergá-lo de perto. Se, de fato, era Carpathia quem estava ali, ele ficaria mais próximo de seu povo na morte do que em vida.
David ouvira o relatório revisado da autópsia no qual foram omitidas todas as referências ao ferimento causado pela espada e acrescentadas informações sobre o trauma causado pela bala. No final do relatório, a Dra. Eikenberry narrou, detalhadamente, como havia prendido as pálpebras com adesivo e suturado os lábios com fio invisível.
David estava curioso e queria ver o trabalho dela de perto. Felizmente, a aglomeração na frente dele parou por mais de um minuto, e ele inclinou-se para a frente observando atentamente o cadáver, sabendo que essa atitude poderia ser confundida com profundo pesar. Ele teve dúvidas se era realmente o corpo de Carpathia que estava ali. O cadáver parecia rijo, frio, pálido. Seria uma estátua de cera? Será que a ressurreição teria ocorrido na geladeira do necrotério? O fechamento a vácuo do esquife feito de Plexiglas certamente não teria nenhuma utilidade.
As mãos de Carpathia é que tinham a melhor aparência. A esquerda estava sobre a direita, em cima da cintura, e as duas pareciam bem cuidadas e um pouco mais pálidas do que em vida. Ficavam a um ou dois centímetros da tampa transparente. David chegou quase a desejar que aquele homem fosse digno dessa exibição.
Surpreendeu-se quando viu vários homens à sua frente fazerem o sinal da cruz e curvar-se. Uma mulher quase perdeu o equilíbrio quando rompeu em choro. Se os funcionários estavam reagindo dessa maneira, David gostaria de saber como seria o comportamento do povo.
Havia três guardas armados postados de cada lado do esquife. Quando alguém tocava o vidro, o que estava mais próximo curvava-se e removia as impressões digitais que ficavam, polindo-o várias vezes.
Finalmente, a fila recomeçou a caminhada, e David tentou guiar Annie para que ela pudesse ver mais de perto. Annie retesou o corpo, e ele afastou-se um pouco dela enquanto os dois passavam pelo esquife. O homem que estava atrás de David caiu de joelhos no chão depois de ver o corpo e chorou, proferindo algumas palavras em um idioma desconhecido. David virou-se e viu que era Bakar.
Annie afastou-se do local, com ar de exaustão, e David dirigiu-se para um patamar mais alto que havia sido adaptado como pavimento superior de um dos postos médicos. Ele observou os bloqueios sendo retirados e a multidão caminhando lentamente em direção ao esquife.
A atenção de David foi desviada por alguém que passou correndo pela parte externa do pátio. A pessoa dirigia-se ao local da sala de provas, que já havia sido desmontada. Era uma mulher carregando uma caixa embrulhada. Ele desceu a escada e abriu caminho em meio à multidão para ir ao encontro dela.
Quando chegou, viu que a mulher era a Dra. Eikenberry e que ela já estava voltando. Guy segurava a tal caixa. Ele olhou para David e encolheu os ombros.
— Vamos terminar o trabalho até o amanhecer — ele disse. — Graças à sua ajuda.
David não queria fazer amizade com Guy, mas precisava saber o que havia na caixa.
— O que você está carregando aí dentro, ministro Blod?
— Ela me disse que é alguma coisa que o Supremo Comandante mandou colocar na estátua.
— Na estátua?
Guy assentiu com a cabeça.
— Isso significa que precisa ser colocado agora, porque, assim que soldarmos as partes, só poderão ser colocadas dentro dela coisas pequenas, que passem pelos buracos dos olhos, do nariz ou da boca. Eles são maiores do que o normal, porque a estátua tem quatro vezes o tamanho de um homem normal, mas mesmo assim...
— Posso ver? — perguntou David, estendendo a mão para pegar a caixa.
— Tudo bem — disse Guy. — Vai ser queimada mesmo.
— Queimada?
— Ou derretida. As pernas ocas vão se tornar uma fornalha eterna. Você não adorou a idéia?
— E por que não? — disse David, espiando por um furo no canto da caixa tentando descobrir o que havia dentro dela. Nas mãos de Guy estava a verdadeira arma do crime.



DOZE

Enquanto Rayford, Leah e Chloe saíam do bar, um dos policiais das Forças Pacificadoras da CG entrou.
— Você é Ken Ritz?
Rayford tentou manter a calma, notando que Leah retesou o corpo e Chloe lançou um olhar de surpresa ao policial. Rayford deu um leve cutucão em Chloe para que ela continuasse a caminhar e esperou que Leah fizesse o mesmo.
— Quem está querendo saber? — perguntou Rayford.
— Responda sim ou não, companheiro — disse o policial.
— Não — disse Rayford, passando por ele.
— Espere um pouco, "tio" — chamou o policial. Rayford gostou mais do companheiro. — Quero ver sua identidade.
— Eu já disse que não sou quem você está procurando. O policial interceptou a porta com o braço. Rayford mostrou seus documentos.
— Sr. Berry, o senhor conhece Ken Ritz?
— Não posso dizer que conheço.
— E suas amigas?
— É melhor perguntar a elas.
— Não dê uma de espertinho.
— Peço-lhe mil desculpas, mas como posso responder por elas se eu não conheço esse homem?
O policial o dispensou. Enquanto Rayford se afastava dali, ouviu o policial gritar dentro do bar:
— Ken Ritz está aqui? R-I-T-Z!
Leah e Chloe aguardavam perto do Rover enquanto o outro guarda estava com o pé apoiado no pára-choque do carro que pertencera a Ken Ritz. Ele falava ao telefone.
Rayford caminhou com ar despreocupado até o Rover e parou do lado do motorista. Os três entraram no carro. Enquanto se afastava do local, Rayford disse:
— Lá se vai o carro de Ritz.
— Graças a mim — disse Chloe. — Vamos, podem dizer que a culpa foi minha.
A coragem de Chaim havia esmorecido. Buck imaginou que o motivo devia ser o cansaço pela corrida, mas a verdade é que Chaim estava em pânico. Buck sentia-se estranhamente animado. Havia sido um pouco difícil salvar a vida de alguém que não se importava em ser salvo, mas pelo menos Chaim ainda possuía instinto de autopreservação. Já era um bom começo.
O Super J estacionou em ângulo perigoso e com um dos pneus furado. A porta foi aberta, e T inclinou o corpo para fora.
— O senhor deve ser o Dr. Rosenzweig — ele disse.
— Sim. Ei, oi, como vai? — disse Chaim com um aceno. — Você sabia que estávamos vindo e que um dos pneus está furado?
— Foi o que imaginei — disse T, estendendo a mão para cumprimentar Rosenzweig.
— Vamos deixar as apresentações de lado. A CG está atrás de nós — disse Chaim. — Precisamos sair daqui. Você já decolou alguma vez com apenas um pneu?
— Não temos condição de fugir de ninguém a pé. Vamos tentar.
Buck postou-se atrás de Chaim e tentou ajudá-lo a subir a escada. Ele não saía do lugar.
— Isso é uma loucura, Cameron! A pista é muito curta, mesmo se o avião estivesse em bom estado.
— Você está preparado para se entregar?
— Não!
— Bem, estamos de partida. Você vai conosco ou quer se arriscar?
Buck passou por ele para subir a escada, segurou a maçaneta e preparou-se para levantar a porta.
— Última chamada.
— Não há chance nenhuma nesse avião — choramingou Chaim. — Vamos todos morrer.
— Não, Chaim — disse Buck. — Nossa única chance é no ar. Você desistiu?
Chaim subiu a escada rapidamente. T conduziu o jato até o fim da pista, deu meia-volta e acelerou à toda. Buck e Chaim, com o corpo inclinado para a esquerda, ataram os cintos de segurança. Buck começou a orar.
— Loucura, loucura — Chaim resmungava. — Nenhuma chance. Nenhuma esperança.
Com os motores zumbindo, a aeronave equilibrou-se subitamente, apesar de estar parada. Buck não sabia como T estava conseguindo fazer aquilo, mas ele devia ter usado a propulsão e o freio para a aeronave ficar apoiada sobre o pneu em bom estado. Quando T soltou o freio e manipulou os controles, o Super J sacudiu violentamente ao rodar na pista.
A outra extremidade do asfalto estava retorcida e levantada de um dos lados formando uma barreira de cerca de 1,5 metro. Quando a aeronave enveredou para a barreira, Buck concluiu que T precisaria encontrar um meio-termo entre a velocidade e a pista para decolar. Buck não conseguia desgrudar os olhos da barreira. Chaim estava sentado com a cabeça entre as pernas, protegendo-a com as mãos.
— Oh, Deus, oh, Deus, oh, Deus — ele gemia. Buck teve a impressão de que a oração era sincera. Aparentemente, não havia condição de o Super J ganhar altura suficiente sem se chocar contra a barreira. T fazia tudo o que estava a seu alcance para manter a aeronave nivelada, mas as oscilações deviam estar prejudicando a velocidade. No último instante, T deixou de preocupar-se com o equilíbrio e envidou todos os esforços na arremetida. O jato subiu alguns metros, mas desceu em seguida. O pneu cantou no asfalto, e o jato subiu novamente.
Buck fez uma careta e segurou a respiração ao ver que eles iam de encontro à barreira. T devia ter ajustado um dos flaps para evitar uma colisão, porque a aeronave deu uma guinada para a direita. Buck ouviu quando a parte inferior do jato bateu com força na barreira. Agora eles estavam perdidos.
— Deus, perdoe-me! — gritou Chaim no momento em que o jato tombou para a esquerda, perdeu altura e quase colidiu enquanto T fazia de tudo para brecar. A cauda parecia estar se arrastando, e Buck não imaginava como o jato conseguia equilibrar-se no ar. Eles estavam indo de encontro a uma fileira de árvores, mas T sabia que a força de resistência o impediria de dar a guinada necessária. Ele manobrou a aeronave no ângulo mais raso possível para não colidir com as árvores e acelerou à toda. Aquela era a única chance de ganhar altitude e, se desse certo, o Super J voaria como um foguete no meio da noite rumo à Grécia. Os problemas de combustível e do pouso com um só pneu seriam preocupações para mais tarde.
Buck estava imóvel, com as mãos e os olhos fechados e uma expressão de terror no rosto, aguardando a colisão com as árvores e a queda. Assim que o Super J disparou em direção ao céu, o corpo de Buck grudou no encosto do banco e sua cabeça girava por causa da força da gravidade. Quando: conseguiu abrir os olhos, ele viu, de esguelha, que Chaim estava com o corpo curvado, choramingando em hebraico.
Buck desatou o cinto e caminhou com dificuldade até a cabina de comando em razão da força centrífuga.
— Você conseguiu, T! — ele gritou exultante.
— Perdi o que restou daquele pneu furado — disse T. — Acho que perdi também o conjunto inteiro da roda. Pensei que fôssemos despencar.
— Eu também. Foi uma decolagem e tanto.
— Tenho duas horas para decidir como aterrissar. Sei que é possível pousar com uma roda só, mas acho que vou preferir pousar de barriga.
— Este avião agüentaria?
— Não tanto quanto um de grande porte. Eu diria que temos 50% de chance de ser bem-sucedidos.
— Só isso?
T estendeu a mão para Buck.
— De um jeito ou de outro, vou me encontrar com você no céu.
— Não fale assim.
— É sério. Se eu não acreditasse nisso, teria me arriscado a enfrentar a CG.
Buck assustou-se ao ouvir a voz de Chaim e se deu conta de que o israelense estava em pé atrás dele.
— Você viu, Cameron? Eu tinha razão. Não devia ter vindo! Temos uma chance em duas de sobreviver, e vocês dois estão bem, sabem para onde estão indo...
— Eu não posso estar bem, Chaim — disse Buck. — Vou deixar esposa e filho.
— Vocês já entregaram os pontos? — perguntou T. — Eu disse que temos 50% de chance de pousar com sucesso. Mesmo que o jato se espatife no solo, não significa que vamos todos morrer.
— Obrigado por essas palavras de ânimo — disse Buck, voltando para o seu lugar.
— Ore por mim — disse T.
— Vou orar.
— Por mim também — disse Chaim.
Buck olhou firme para ele. O israelense não demonstrava estar brincando.
Depois que Chaim atou o cinto de segurança, Buck inclinou o corpo e deu-lhe um tapa de leve no joelho.
— Você não precisa ter medo de morrer. Eu também tenho medo da morte, de me machucar, de ser queimado, e certamente não quero deixar minha família, mas você está certo. T e eu sabemos para onde estamos indo.
O semblante de Chaim tinha uma aparência horrível, pior do que a que exibia na noite anterior. Buck não conseguia entender. Chaim agiu como um inconseqüente ao fugir da Festa de Gala. Em seguida, quis se matar quando tomou conhecimento da morte de Jacov e sua família e de Stefan. Agora, porém, ele tinha um ar circunspecto. Sinal de que era humano. Apesar de ter falado tanto em suicídio, ele estava com medo de morrer.
Buck sabia que precisava ser franco com Chaim, de uma maneira que nunca havia sido.
— Podemos ter um encontro com Deus esta noite, Chaim — ele começou a dizer, mas Rosenzweig fez uma careta acompanhada de um gesto de pouco caso.
— Não pense que não prestei atenção no que ouvi durante todos estes anos, Cameron. Não há nada mais que você possa me contar.
— E você continua a resistir?
— Eu não disse isso. Disse que não preciso que você me ensine nada.
Buck não podia acreditar. Da maneira como Chaim falou aquilo, parecia que Buck ia transmitir-lhe um ensinamento baseado na própria experiência.
— Mas eu tenho uma pergunta a lhe fazer, Cameron. Sei que você não se considera um especialista no assunto, como o Dr. Ben-Judá, porém como você acha que Deus se sente a respeito de motivos?
— Motivos?
Chaim demonstrou frustração, como se quisesse que Buck entendesse sem precisar de mais explicações. Ele desviou o olhar e, em seguida, fitou Buck.
— Eu sei que Deus existe — ele disse, como se estivesse confessando um crime. — Há muitas evidências para que esse fato seja negado. Não posso contestar as profecias, porque todas se cumpriram. As evidências de que Jesus é o Messias quase chegaram a convencer-me, e nunca fui um estudioso dessa matéria. Mas, se eu fosse fazer o que você e Tsion têm insistido comigo há tanto tempo, confesso que o faria pelo motivo errado.
Se não houvesse o risco de todos morrerem dentro de algumas horas, Buck gostaria que Tsion estivesse ali naquele momento. Queria perguntar a Chaim que motivo era aquele, mas percebeu que perderia a oportunidade se o interrompesse.
Chaim comprimiu os lábios e abaixou a cabeça. Quando voltou a olhar para Buck, estava prestes a chorar. Ele sacudiu a cabeça e olhou para um ponto distante.
— Eu preciso pensar um pouco mais, Cameron.
— Chaim, insisti com você antes por receio de que não houvesse mais tempo. Tenho certeza do que estou dizendo agora.
De repente, Chaim inclinou-se de lado e agarrou o cotovelo de Buck.
— Este é o problema! Estou morrendo de medo de morrer. Não quero morrer. Pensei que quisesse, pensei que fosse a única saída para um assassino, mesmo acreditando que devia ter matado aquele homem. Mas premeditei o crime durante meses. Planejei tudo, fabriquei uma arma e vi quando ela atravessou a cabeça dele. Não sinto piedade nem comiseração por Nicolae Carpathia. Passei a acreditar, como você, que ele era a encarnação do demônio.
Aquela afirmação não era correta, mas Buck refreou a língua. Embora os crentes estivessem convencidos de que Carpathia era o anticristo e merecia ser assassinado e permanecer morto, eles sabiam que ele só seria a encarnação de Satanás depois que ressuscitasse. Se ele merecia ou não voltar a viver, era isso que estava escrito nas profecias.
— É difícil para mim compreender que faço parte do plano de Deus desde o início. Se for verdade que Carpathia é o inimigo de Deus e que ele devia morrer por causa de um ferimento à espada na cabeça, eu me sinto igual a Judas.
Judas? Um judeu sem religião que conhece o Novo Testamento?
— Não fique tão surpreso, Cameron. Qualquer um entende o que Judas foi. Alguém tinha de trair Jesus, e Judas foi o escolhido. Alguém tinha de assassinar o anticristo, e, embora eu não possa dizer que fui o escolhido, assumi a responsabilidade de matá-lo. Mas digamos que este era o meu destino. Digamos que Deus queria que isso fosse feito, o que certamente não era legal. E veja o que esse ato me custou!
Custou minha liberdade! Custou minha paz de espírito, que, devo admitir, deixou de existir há muito tempo. Custou a vida de meus queridos amigos. Mas, diga-me uma coisa, Cameron, Deus pode me aceitar se meu motivo for egoísta?
Buck semicerrou os olhos e virou-se para a janela. As luzes fracas e esparsas de Israel sumiam rapidamente.
— De uma maneira ou de outra, todos nós nos tornamos religiosos por egoísmo, Chaim. E como poderia ser diferente? Queremos ser perdoados. Queremos ser aceitos, recebidos, incluídos. Queremos ir para o céu, e não para o inferno. Queremos ser capazes de enfrentar a morte sabendo o que virá a seguir. Eu fui egoísta. Não quis enfrentar o anticristo sem a proteção de Deus em minha vida.
— Mas, Cameron, eu simplesmente tenho medo de morrer! Sou um covarde. Pratiquei um ato audacioso, que, para muitas pessoas, demonstra coragem e até mesmo força de caráter. A princípio, fiquei orgulhoso. Agora sei, é claro, que Deus poderia ter usado qualquer um para fazer aquilo. Ele poderia ter providenciado alguma coisa para ser cravada na cabeça de Carpathia durante o terremoto. Poderia ter providenciado um rival político ou um maluco para perpetrar o crime. Talvez Ele tenha providenciado! Parte do trabalho foi por compulsão, principalmente o aperfeiçoamento da arma. Mas eu tinha meus motivos, Cameron. Eu odiava o homem. Odiava suas mentiras e suas falsas promessas para o meu país. Odiava o que ele fez com os judeus praticantes e seu novo templo, embora eu não me incluísse nesse grupo. Eu não tenho justificativa! Sou culpado. Sou um pecador. Estou perdido. Não quero morrer. Não quero ir para o inferno. Tenho medo que Ele me abandone, porque deixei passar tantas oportunidades, porque resisti durante muito tempo, porque sofri a maioria dos julgamentos e, mesmo assim, continuei indiferente e inflexível. Agora, se eu choramingar perante Deus como uma criança, será que Ele vai me ouvir ou vai me considerar um garotinho manhoso? Será que Ele sabe que, no fundo, sou simplesmente um homem que teve uma vida maravilhosa e desfrutou as dádivas de Deus, que só agora enxergo, ou seja, uma mente criativa, uma casa e uma família maravilhosas, amigos preciosos, e que se tornou um velho tolo e maluco? Cameron, estou sentado aqui sabendo que tudo o que você, Tsion e seus queridos amigos me disseram é verdade. Acredito que Deus me ama e cuida de mim, que Ele deseja me perdoar e aceitar, e, mesmo assim, minha consciência interfere. Buck estava orando como nunca havia orado.
— Chaim, se você disse a Deus o que acabou de me dizer, vai ser merecedor de sua misericórdia.
— Mas, Cameron, só estou fazendo isso porque estou com medo de morrer neste avião! Só por isso. Você compreende?
Buck assentiu com a cabeça. Ele compreendia, mas saberia responder à pergunta de Chaim? Pessoas de todas as eras tiveram todos os tipos de motivos para se converter e, certamente, o medo foi o mais comum. Ele ouvira Bruce Barnes dizer que, às vezes, as pessoas aceitam a Cristo como se estivessem fazendo um seguro contra incêndio, ou seja, para não ir para o inferno. Só mais tarde, elas se davam conta de todos os benefícios desse seguro.
— Você mesmo mencionou que eu não me considero um especialista no assunto — disse Buck —, mas também disse que sabe que você é um pecador. Esta é a verdadeira razão de necessitarmos de Jesus. Se você não fosse um pecador, seria perfeito e não necessitaria de perdão e de salvação.
— Mas eu sabia antes que era pecador e não me importei!
— Você não estava enfrentando a morte. Não estava se questionando se iria ou não para o inferno.
Rosenzweig esfregou as palmas das mãos.
— Fui tentado a fazer isso quando sofri o ataque dos gafanhotos. Eu sabia que se tratava de uma profecia bíblica, mas sabia também que, se me tornasse crente, não ficaria curado mais rápido. Você mesmo me disse isso. Naquela época, o alívio foi meu único motivo. Agora é o medo. O que preciso fazer, intelectualmente falando, é aguardar para ver se vou sobreviver ao pouso ou à queda ou sei lá o que for que vamos enfrentar. Se eu não estivesse diante da morte iminente, estaria muito desconfiado de minhas intenções.
— Em outras palavras — disse Buck —, "se Deus me tirar daqui, vou me converter".
Chaim balançou a cabeça negativamente.
— Sei que não devo barganhar com Deus. Ele não me deve nada. Ele não precisa fazer mais nada para me convencer. Eu só quero ser sincero. Se eu tivesse chegado à mesma conclusão em terra firme ou em um avião com dois pneus em bom estado, não estaria com tanta pressa como agora.
Buck levantou a cabeça.
— Amigo, você não é o tipo de pessoa que se apressa para tomar uma decisão. Minha pergunta é a seguinte: por que você sente que sua vida está mais ameaçada agora do que quando estava em terra firme ou do que quando aterrissarmos, desde que o pouso seja bem-sucedido? Chaim levantou o queixo e fechou os olhos.
— Não sei. A CG já anunciou a minha morte e agora está livre para me eliminar sem chamar a atenção de ninguém. Foi por isso que corri para entrar neste avião. Você sabe que tenho pavor de viver no exílio.
— Seja qual for seu motivo agora, ele vai continuar a ser o mesmo se sobrevivermos. Nada vai mudar.
— Talvez eu perca a pressa — disse Rosenzweig —, essa urgência toda.
— Mas você não sabe o que vai acontecer. Talvez eles tenham de jogar uma camada de espuma na pista, convocar veículos de emergência, essas coisas. Quando descermos do avião, você não vai poder esconder-se debaixo do cobertor ou dizer que está com doença contagiosa. Também não vai poder esconder-se no toalete até que a pista seja desobstruída. Vai ter de expor-se e ficar mais vulnerável do que nunca, quer o pouso seja bem-sucedido ou não. Chaim levantou a mão e fechou lentamente os olhos — Aguarde um minuto. Talvez eu tenha mais perguntas a fazer, mas preciso ficar em silêncio por alguns instantes. Essa era a última coisa que Buck queria fazer naquele momento, mas achou que não devia insistir demais com Chaim. Ele ajeitou-se na poltrona, surpreso diante da suavidade do vôo que talvez os levasse para a eternidade.
Kenny Bruce dormiu grande parte do tempo, como Tsion esperava. Ele gostava muito de Kenny e se divertira bastante com ele nos últimos 14 meses, apesar da vida confinada que levavam. Kenny era uma criança tranqüila para sua idade, e Tsion adorava instigá-lo e brincar com ele.
Às vezes, Kenny extrapolava um pouco, principalmente na opinião de um homem que não convivia com crianças havia quase 20 anos. Tsion também precisava dormir um pouco, apesar de não querer perder nenhum detalhe do que ia acontecer na Nova Babilônia.
— Mamãe? — perguntou Kenny pela décima vez, sem reclamar, apenas curioso. Era raro ela ausentar-se de casa.
— Foi passear — respondeu Tsion. — Vai chegar logo. Você quer nanar?
Kenny balançou a cabeça negativamente, mesmo depois de coçar os olhos e esforçar-se para mantê-los abertos. Ele bocejou e sentou-se no chão distraindo-se com um brinquedo, mas logo perdeu o interesse. Resolveu deitar-se de costas no chão, com a perna dobrada, joelhos erguidos. Fitando o teto, ele bocejou mais uma vez, virou-se de lado e adormeceu. Tsion levou-o até o cercado de madeira para que ele não fizesse nenhuma arte, caso despertasse antes dele. Dentro do cercado, havia muitas coisas para mantê-lo ocupado.
Tsion acomodou-se novamente no sofá diante da TV, com os pés para cima. O porão era frio, e ele se cobriu com um cobertor, tentando manter os olhos abertos enquanto as câmeras da CNN CG continuavam focalizando o esquife transparente e a fila interminável de pessoas vindas de todas as partes do mundo.
Sabendo que o jovem David Hassid, sua namorada Annie Christopher e talvez um grande número de crentes estavam lá, ele começou a lembrar-se de todos os que constavam de sua lista de oração. Quando fechou os olhos para orar por seus companheiros e sua congregação virtual (agora composta de mais de um bilhão de crentes), Tsion percebeu que sua cabeça começou a pender por causa do sono incontrolável.
Ele olhou para o relógio digital do DVD instalado em cima da TV. Programou o DVD para gravar, caso ele adormecesse e não despertasse a tempo de ver "o" evento. Quando voltou a sentar-se para orar, sabendo que não resistiria ao sono, o relógio marcava 12h57.
Tsion começou a orar por Chloe, Leah e Rayford, que estavam nos Estados Unidos. Em seguida, orou por T, o amigo de Rayford, que no momento estava desaparecido. Depois, orou por Cameron, sempre metido numa confusão em um lugar qualquer. Quando sua mente derivou para seu velho amigo e professor, o Dr. Rosenzweig, Tsion começou a sentir um zunido na cabeça, semelhante ao que sentira ao interceder por Rayford.
Seria fadiga? Alucinação? Tão perturbadora, tão real. Ele forçou-se a abrir os olhos. O relógio ainda marcava 12h57, e ele teve a sensação de estar flutuando. E, quando voltou a fechar os olhos, continuou a enxergar tão claro como o dia. O porão estreito e apertado era frio e tinha marcas de bolor. Os poucos móveis encontravam-se nos devidos lugares. Kenny dormia tranqüilo no cercado de madeira, enrolado no cobertor.
Agora, Tsion o via de cima, como se estivesse no teto, no meio do cômodo. Ele se viu cochilando no sofá. Já ouvira falar de experiências extracorpóreas, mas nunca havia tido essa sensação, nem mesmo em sonho. Mas não era um sonho, nem um devaneio. Seu corpo tinha uma leveza extraordinária, e ele movia-se no ar para cima e para baixo, imaginando se bateria a cabeça nas vigas de madeira no teto e se isso causaria algum ferimento em um homem que ele não sabia ao certo se estava flutuando, orando, sonhando ou tendo alucinações por ficar muitas horas sem dormir. Tsion não compreendia que tipo de homem ele era naquele momento. Apesar da incrível leveza de seu corpo, estava mais consciente do que nunca, com todos os sentidos aguçados. Conseguia ver e sentir tudo com perfeita clareza, desde a temperatura do ambiente até o vento que lhe arrepiava os pêlos do braço à medida que subia. Ouvia todos os ruídos da casa, desde a respiração de Kenny até o tranco do motor da geladeira quando passava por ela.
Sim, ele havia atravessado o teto e estava no pavimento superior da casa e, mesmo assim, podia ver Kenny e não se preocupava nem sentia culpa por deixá-lo sozinho, porque também se via deitado no sofá. Se Kenny precisasse de alguma coisa, ele poderia retornar tão rápido quanto saíra.
Acima do telhado da casa, o ar do outono era seco e frio, mas ele se sentia bem, mesmo estando em mangas de camisa. A sensação era de grande conforto, e ele estava consciente de tudo... percebia, via e ouvia o vento bater nas árvores desprovidas de folhas. Chegava a sentir o cheiro das folhas em processo de decomposição caídas das árvores. E não havia ninguém mais para queimá-las. Ninguém mais faria coisas que costumavam ser mundanas. A vida agora girava em torno de permanecer vivo, e não em torno de eventualidades. Tarefas que não consistissem em colocar alimento sobre a mesa ou em proporcionar abrigo tornaram-se supérfluas.
Por um instante, Tsion abriu instintivamente os braços para equilibrar-se e teve a sensação de que havia retornado ao porão e continuava dormindo. Mas a casa, a cidadezinha parcialmente destruída de Monte Prospect, os bairros da região noroeste, os pedaços de asfalto retorcido das antigas ruas e rodovias e a área inteira de Chicago pareciam peças de brinquedo abaixo dele.
Será que em breve ele sentiria frio, falta de oxigênio? Agora estava a uma distância enorme de casa, vendo um globo azul que o fazia recordar as lindas e impressionantes fotografias da Terra tiradas da Lua. A luz do dia transformou-se em noite, mas a Terra continuava iluminada. A sensação era de que ele estava em algum lugar no espaço, talvez na Lua. Será que estava na Lua? Ele olhou ao redor e viu apenas estrelas e galáxias. Mas a Terra continuava a seu alcance, porque tudo parecia movimentar-se rápido demais. De uma forma muito estranha, Tsion sentia que ele e Kenny estavam dormindo na casa secreta em Monte Prospect, apesar de não conseguir ver mais a cena.
Agora, ele era capaz de ver os planetas enquanto flutuava, flutuava, cada vez mais longe de tudo o que conhecia. A que velocidade ele se movia? Perguntas de natureza física pareciam triviais, irrelevantes. A pergunta primordial era onde ele se encontrava e para onde estava indo. Quanto tempo isso duraria?
De repente, outra sensação estranha e maravilhosa. Por um breve momento, Tsion imaginou que havia morrido. Estaria a caminho do céu? Ele nunca acreditou que o céu estivesse no mesmo plano físico do universo, que algum homem voando em um foguete pudesse chegar até lá, se dispusesse desse recurso. E, ao mesmo tempo, ele nunca se sentiu tão vivo. Não estava morto. Uma coisa era certa. Ele estava em algum lugar de sua mente.
Enquanto flutuava no espaço, ele começou a movimentar-se com uma velocidade espantosa. Atravessou o vastíssimo universo, com seus incontáveis sistemas solares e galáxias. O único som que ouvia era o de sua respiração e, para sua surpresa, ela era profunda e ritmada, como se... como se ele estivesse dormindo.
Mas como uma mente tão ínfima como a sua podia vislumbrar tal cena em sonho? De repente, como se alguém tivesse ligado um interruptor, as trevas transformaram-se na mais brilhante luz, obliterando a escuridão do espaço. As estrelas desapareceram por causa da luz do Sol, e tudo o que havia no caminho pelo qual Tsion passava ia sumindo. Ele pairava imóvel sem ouvir nenhum som, em completa leveza, com uma sensação de expectativa assolando seu corpo.
Aquela luz, como o brilho de magnésio em combustão, tão poderosa a ponto de eliminar qualquer sombra, veio de cima, por detrás dele. Apesar do espanto e da curiosidade, ele temeu virar-se para encará-la. Se fosse a glória Shekinah, será que ele morreria em sua presença? Se fosse a imagem de Deus, será que ele poderia vê-la e continuar vivo?
A luz parecia atraí-lo, forçá-lo a virar-se. E foi o que ele fez.







TREZE

Rayford dirigiu o carro até o local transitável mais próximo dos limites da cidade de Chicago, parando no anel viário reconstruído, que ostentava advertências sinistras, por toda a sua extensão, proibindo o tráfego além da linha norte. Ao ver que as viaturas da CG não prestavam atenção aos poucos carros que trafegavam pelo local, Rayford procurou um caminho que desse a impressão de levá-lo a uma área nas proximidades, mas que tivesse acesso à cidade, sem ser necessário rodar pela estrada.
Sacolejando por ruas empoeiradas e atravessando reservas florestais em plena luz do dia, ele imaginava estar chamando a atenção de alguém. Mas não encontrou nenhum rastro de pneus pela frente. Ele estacionou o Land Rover debaixo de uma antiga estação ferroviária elevada, agora totalmente destruída. Sentado no carro, na sombra, em companhia de Chloe e Leah, Rayford começou a sentir o mesmo cansaço que se apoderara dele antes de seu sono reparador na Grécia.
— A culpa foi minha — disse Chloe. — Fui impaciente, estúpida e egoísta. Não há jeito de entrarmos em Chicago antes de anoitecer. E a que distância estamos? A mais de 30 quilômetros do Edifício Strong? Vai levar horas para chegarmos lá. Leah mexeu-se no banco.
— Se você está querendo discutir com alguém, eu não sou essa pessoa. Não quero ser mesquinha, mas vamos ter de ficar sentados aqui até o anoitecer. Depois, vamos andar no mínimo cinco horas. E para quê? Para ver a nova casa secreta onde vamos morar?
Chloe balançou a cabeça, desanimada.
— Não vamos a lugar nenhum a pé — disse Rayford. — Conheço esta cidade como a palma de minha mão. Depois de escurecer, vamos até o edifício com os faróis apagados. A CG não retirou seus guardas daqui por brincadeira. Eles acreditam realmente que a área está contaminada. Se tivermos de acender os faróis de vez em quando para não cair em um buraco e formos vistos por algum helicóptero patrulhando a área, o pior que pode acontecer é sermos alertados para nos afastar do local. Eles não estão nos perseguindo.
— Você está enganado, papai — disse Chloe. — O pior que pode acontecer é eles nos obrigarem a sair do carro e você ser reconhecido.
— Antes de tudo, eles vão manter distância e verificar se temos alguma partícula de radiação.
— E como não vão encontrar nada, lá se vai nosso plano por água abaixo.
— Chega de pensamentos negativos — disse Rayford. — Vamos pensar positivamente. O pior de tudo é eu ter de dar a notícia a Buck sobre a família dele.
— Deixe isso por minha conta, papai.
— Você tem certeza?
— Absoluta. Quando Buck ligar, quero falar com ele. Porém, quando Buck ligou, ficou evidente que o momento não era propício para dar-lhe uma notícia como aquela. Rayford observou a emoção na voz de Chloe ao falar ao telefone.
— Obrigada, meu amor — ela disse. — Obrigada por nos contar o que aconteceu. Vamos orar. Eu amo você. Kenny também. Ligue para mim assim que puder. Prometa.
Chloe desligou e pôs Rayford e Leah a par do que Buck lhe contara.
— Então, é lá que T está — disse Rayford. — Buck teve uma ótima idéia. Precisamos orar por eles imediatamente.
— Principalmente por Chaim — disse Chloe. — Ele parece estar prestes a se converter.
— A aterrissagem sobre uma roda só é muito arriscada — disse Rayford —, porém pode ser feita com sucesso. Mas acho que é a primeira vez que T pilota um Super J.
— Em sua opinião, qual seria a porcentagem de sucesso? — indagou Leah, imediatamente arrependida de ter feito a pergunta, porque Chloe poderia perder o marido dentro dos próximos 20 minutos.
— Eu também quero saber — disse Chloe. — Falo sério, papai. Quais são as chances deles?
Rayford demorou um pouco para responder, mas viu que de nada adiantaria dar muitas esperanças a Chloe.
— Talvez uma em duas — ele disse.
Buck estava na cabina de comando com T quando Chaim o chamou. Ele caminhou até Chaim e ajoelhou-se ao lado da sua poltrona.
— Tenho mais uma pergunta — disse Rosenzweig. — Devo atrever-me a testar Deus?
— Como assim?
— Dizer a Ele que quero acreditar, oferecer a Ele o que resta de minha vida para ver se Ele me aceita, apesar de meu motivo egoísta.
— Eu não posso falar por Deus — disse Buck. — Mas entendo que, se formos sinceros, Ele cumprirá o que prometeu. Você já sabe que não se trata apenas de acreditar, porque agora você acredita. A Bíblia diz que até os demônios acreditam e tremem. Trata-se de uma decisão, de um compromisso, de um reconhecimento.
— Eu sei.
— Temos apenas 15 minutos, Chaim, que é mais ou menos o tempo de nos prepararmos para a aterrissagem e pedirmos ajuda à torre. Não demore.
— Você está vendo? — disse Chaim. — Isso só contribui para aumentar meu problema. Eu não vou ser uma pessoa melhor só porque meu tempo está se esgotando. Posso até ser pior.
— Deixe esta decisão a cargo de Deus — disse Buck. Chaim assentiu tristemente com a cabeça. Buck não queria estar na pele do amigo e, ao mesmo tempo, imaginava quanto tempo ainda teria de vida. Chloe e Kenny não lhe saíam da mente. Apesar de saber que os encontraria novamente dali a três anos e meio, esse pensamento não serviu para diminuir o desespero de não querer deixá-los. Ele voltou a sentar-se ao lado de T na cabina de comando.
— Entrei em contato com a torre de um aeroporto ao sul de Ptolemais chamado Kozani — disse T. — Eles concordaram que é melhor eu tentar pousar de barriga do que com uma roda só. Isso sem considerar o baque ou minha perícia como piloto. Vou aterrissar na velocidade mais lenta possível e esperar que tudo dê certo.
— O pouso vai ter mesmo de ser muito suave, não?
— Claro.
— Você vai fazer um sobrevôo para saber se eles têm condições de ver as rodas?
T apontou para o relógio de combustível, que marcava vazio.
— Positivo.
— Isso é uma boa notícia, você não acha?
— Como assim?
— Se espatifarmos, não vamos ser queimados.
— Se espatifarmos, Buck, você vai querer ser queimado. Vai querer evaporar-se.
A sensação de paz e bem-estar era tão grande que Tsion não queria que ela terminasse, fosse ou não um sonho. Ele tinha muito medo de virar-se e ficar de frente para a luz, mas ela o atraía.
Agora, não se movimentava como se estivesse na água ou no vácuo. Não precisava mover as pernas nem os braços. Tudo o que precisava fazer era virar-se, e foi o que ele fez. A princípio, Tsion imaginou estar olhando dentro de uma fenda sem fim, o único ponto escuro de uma parede branca de intenso brilho. Mas, à medida que ele se afastava daquela imagem tão real que parecia poder ser tocada, outros pontos escuros do relevo ficaram à mostra. Quando seus olhos se acostumaram à claridade, ele recuou a uma distância tão grande que conseguiu enxergar um rosto. Parecia estar dependurado entre o nariz e o queixo de uma espécie de imensa escultura do monte Rushmore celestial.
Porém, esse rosto não estava esculpido em pedra, nem era feito de carne e osso. Apesar de gigantesco, reluzente e forte, também era transparente, e Tsion foi tentado a atravessá-lo. Aquilo deveria ser assustador, mas não era, e Tsion queria vê-lo por inteiro. Se houvesse uma cabeça, haveria um corpo? Ele afastou-se mais ainda e viu o rosto, emoldurado por uma cabeleira semelhante à relva de uma campina, exibindo uma expressão bondosa, não exatamente suave e amorosa, mas confiante e firme.

N.T.: No monte Rushmore, localizado no Estado de Dakota do Sul, nos Estados Unidos, estão esculpidos em pedra o rosto dos presidentes George Washington, Thomas Jefferson, Theodore Roosevelt e Abraham Lincoln.

Tsion não tinha dúvida nenhuma de que estava imaginando essa cena, mas ela era a experiência mais rica e mais real de sua vida. Ela queimava como fogo em seu coração, e ele acreditava que jamais a esqueceria nem teria outra experiência igual enquanto vivesse.
Sua voz quase não saía, mas conseguiu perguntar num sussurro:
— Tu és Jesus, o Cristo?
O som que se seguiu seria um estrondo, uma risada ou uma gargalhada de algum ser terreno?
— Não — ecoou a voz meiga que o cercou e que, por ter partido de uma boca imensa como aquela, poderia tê-lo atirado longe. — Não, filho da Terra, sou simplesmente um de seus príncipes.
Tsion recuou o quanto pôde para conseguir enxergar aquele lindo ser celestial.
— Gabriel? — ele murmurou.
— Gabriel e eu somos como irmãos, meu filho. Ele é o anunciador. Eu comando o exército celestial.
Imediatamente, Tsion compreendeu. A grande espada, longa como o Jordão, e a imensa couraça, do tamanho do Sinai.
— Tu és Miguel! O príncipe que defenderá meu povo, os escolhidos de Deus.
— Tu o disseste.
— Príncipe de Deus, eu morri?
— O teu tempo ainda não chegou.
— Posso perguntar mais?
— Pode, embora eu prefira um bom combate a uma conversa. Gabriel é o anunciador. Eu me dedico à batalha.
— Minha pergunta é egoísta. Vou viver até o dia do Glorioso Aparecimento?
— Aos homens está ordenado morrerem uma vez, e...
— Mas vou morrer antes do...
— A ti não é dado saber, criatura. Isso não tem relação nenhuma com tua obrigação de servir ao Deus Altíssimo.
Tsion queria curvar-se diante daquele ser e diante da verdade que ele proferiu. Ele não podia acreditar que tivesse interrompido Miguel, o arcanjo, um dos dois únicos anjos cujos nomes são mencionados na Bíblia.
— Por que estou aqui, se não morri?
— Ainda tens muito o que aprender, mestre.
— Aprenderei identificar o anticristo, o inimigo de Deus?
O rosto de Miguel pareceu endurecido, se isso é possível para um anjo. A simples menção do anticristo atiçou seu instinto guerreiro. Ele voltou a falar:
— O anticristo será revelado no tempo determinado.
— Mas o tempo determinado não é agora? — perguntou Tsion, sentindo-se como uma criança.
— Nós medimos o passado, o presente e o futuro com instrumentos diferentes do teu, filho da Terra. O tempo determinado é o tempo determinado, e, para os prudentes e vigilantes, a revelação será clara.
— Saberemos identificar com segurança a identidade do... do inimigo?
— Assim eu disse.
— Ensina-me tudo o que preciso aprender aqui, grande príncipe protetor dos filhos de Abraão, Isaque e Jacó.
— Permanece em silêncio — disse o anjo —, observa e dá ouvidos à verdade da guerra no céu. Desde o momento em que os justos, tanto os vivos como os mortos, foram arrebatados, o inimigo tem competido com os exércitos celestiais para ganhar as almas dos homens que restaram. O Maligno, a velha serpente, tem tido acesso ao trono do Altíssimo desde o início dos tempos até agora, o tempo determinado.
O que ele estava dizendo? Que Tsion estava ali para testemunhar o final do acesso de Satanás ao trono, onde, durante milênios, ele exercera seu poder para acusar os filhos de Deus? Tsion queria perguntar como Satanás conquistara tão grande privilégio, mas Miguel pôs o dedo indicador nos lábios e fez um gesto com a outra mão chamando-o para ver, adiante dele, a sala do trono. Tsion imediatamente prostrou-se no local que parecia ser o ponto culminante do prolongamento do universo. Ele viu apenas uma figura maior, mais brilhante e mais bela que o próprio Miguel.
Tsion cobriu os olhos.
— É o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo?
— Silêncio, filho da Terra. Não é nem o Filho nem o Pai, a quem só verás em teu tempo determinado. Diante de ti está o Anjo de luz, a linda estrela, o grande enganador, teu adversário, Lúcifer.
Tsion estremeceu sentindo repulsa, mas incapaz de desviar os olhos.
— Estamos no presente? — ele perguntou.
— Eternidade, passado e futuro são presente aqui — disse Miguel. — Ouve e aprende.
De repente, Tsion conseguiu ouvir o anjo lindo defendendo sua causa diante do trono, que se encontrava além do campo de visão de Tsion.
— Teus pretensos filhos estão sob teu domínio, legislador do céu — soou a voz persuasiva e meiga do eterno solicitador.
— Entrega-os a mim, que posso moldá-los para o bem deles.
Mesmo depois de terem sido chamados por ti, a natureza deles continua impregnada de desejos temporais. Permite-me cercar-me destes inimigos de tua causa, e eu formarei com eles um exército diferente de qualquer outro que já reuniste. Do trono veio uma voz com tanto poder e autoridade que o volume era irrelevante:
— Não toques em meus ungidos!
— Mas com eles subirei a um trono mais alto que o teu!
— Não!
— Eles são fracos e ineficientes para servir-te!
— Não!
— Posso salvar esses arruinados que não têm nenhuma esperança.
— Não receberás permissão.
— Eu te imploro, legislador do céu e da Terra.
— Não!
— Concede-me o que te peço ou eu...
— Não.
— Eu vou...
— Não.
— Vou destruí-los e derrotar-te! Ostentarei o nome acima de todos os outros nomes! Eu me sentarei acima dos céus, e não haverá nenhum deus semelhante a mim! Em mim não haverá mudanças, nem a mínima possibilidade de retorno.
Subitamente, Tsion viu à sua direita o brilho nos olhos de Miguel, o arcanjo, que falou com grande emoção:
— Deus, o Pai Todo-Poderoso — ele gritou, fazendo com que o demônio olhasse em sua direção com ar de revolta e, em seguida, raiva. — Eu te rogo que não permitas mais blasfêmias no reino celestial! Concede-me que eu destrua este ser e que o lance fora de tua presença!
Mas, aparentemente, Miguel não ouviu nem sentiu a permissão de Deus. Lúcifer olhou com ar de satisfação para Miguel, sorrindo de modo malicioso. Em seguida, ele virou-se de frente para o trono.
— Miguel, teu mestre não te atribuirá uma tarefa impossível! Ele sabe que estou certo a respeito dos filhos de Deus. Com o passar do tempo, Ele vai entregá-los a mim. És tolo, fraco e incapaz de enfrentar-me sozinho. Serás derrotado. Eu vencerei. Subirei...
Enquanto Tsion observava e ouvia atentamente, a voz de Lúcifer mudou, tornando-se aguda e chorosa. Sua figura também mudou. Ele começou a proferir insultos, súplicas, desafios e blasfêmias, e a voz vinda do trono continuava a negar seus pedidos. Seu majestoso manto reluzente perdeu o brilho. O rosto transformou-se em uma horrenda máscara coberta de escamas. As mãos e os pés desapareceram, e seus trajes caíram deixando à mostra uma serpente repugnante, que se contorcia e se enrolava. Os olhos sumiram debaixo de duas cristas profundas. O som da voz passou a ser um silvo e, em seguida, um rugido à medida que ele se transformava.
As mãos e os pés reapareceram, mas, agora, os dedos tinham o formato de grandes tentáculos. Apoiado nas mãos e nos pés como um quadrúpede, ele começou a soltar fogo pela boca, andando de um lado para o outro diante do trono com tanta raiva que Tsion ficou satisfeito por ter Miguel como escudo entre ele e aquele dragão.
Surgiram chifres na cabeça de Lúcifer e uma coroa sobre eles. De repente, aquele ser grotesco tornou-se incandescente. Tsion viu, horrorizado, quando a besta adquiriu mais seis cabeças com coroas, totalizando dez chifres. Andando de um lado para o outro e crescendo a cada passo que dava, a besta sacudiu o corpo com raiva e ameaçou o trono e os que sentavam nele.
A voz vinda do trono disse:
— Não.
Rugindo, provocando e sacudindo as cabeças, o dragão fez um gesto ameaçador como se quisesse avançar na direção do trono. Miguel interceptou-lhe o caminho, e a voz voltou a dizer:
— Não.
Miguel virou-se para Tsion.
— Olha! — ele disse, apontando para trás de Tsion.
Tsion virou-se e viu a figura de uma mulher com roupas tão reluzentes quanto o Sol. O brilho de Miguel quase o cegara, e Lúcifer provara ser mais brilhante ainda, mas a mulher... a mulher dava a impressão de estar vestida com o próprio Sol. Parecia estar em pé sobre a Lua, e em sua cabeça havia uma grinalda feita com 12 estrelas.
Mesmo assombrado, Tsion sentiu uma grande afinidade com a mulher. Queria perguntar a Miguel quem era ela. Maria? Israel? A Igreja? Mas ele não conseguia falar, não conseguia virar-se. Sabia que aquele dragão medonho de sete cabeças estava atrás dele, mas sentia-se protegido por ter Miguel como escudo.
A mulher estava grávida. Seu ventre enorme, coberto com as roupas reluzentes do Sol, fazia com que se contorcesse e gritasse como se estivesse em trabalho de parto. Ela fez uma expressão de dor, e seu corpo agitou-se em contrações. Enquanto ela segurava o ventre como se estivesse prestes a dar à luz, o dragão deu um salto diante do trono, afastando Miguel e Tsion do caminho, pronto para atacar a mulher.
Sua cauda enorme varreu a terça parte das estrelas do céu, e elas caíram vertiginosamente em direção à Terra. Agora, ele estava agachado diante da mulher prestes a dar à luz, com as sete bocas abertas e salivando, as línguas para fora, prontas para devorar o filho dela tão logo nascesse.
Ela deu à luz um menino que foi levado a Deus. O dragão observou irado enquanto a criança era transportada ao trono.
Quando ele virou-se para ver a mulher, ela havia fugido. Ele levantou-se para persegui-la, e Miguel, o arcanjo, disse:
— Olha.
Tsion virou e viu Miguel desembainhar, com suas poderosas mãos, uma espada de ouro e, com ela, formar um arco acima de sua cabeça. Imediatamente, o arcanjo foi rodeado por um exército celestial de anjos guerreiros, que se enfileiraram atrás dele, enquanto os anjos do dragão também se reuniam atrás de seu comandante.
Tsion tinha muitas perguntas a fazer, mas Miguel iniciara o ataque contra o dragão. Talvez Gabriel, o anunciador, estivesse por perto. Tsion abriu a boca para perguntar, mas, quando ele indagou quem era a mulher, suas palavras soaram vazias e ele sentiu-se enclausurado.
— Quem é a mulher? — ele disse, e suas palavras o despertaram assustado.
Ele sentou, deixando escorregar o cobertor. A TV continuava a exibir a fila que se movimentava lentamente diante do esquife, sob as luzes sinistras do pátio do palácio. Tsion levantou-se e deu uma olhada no cercado onde Kenny dormia, ainda na mesma posição. Ele voltou a sentar e olhou, perplexo, para o relógio do DVD, que marcava 12h59.
Um movimento na cabina de passageiros chamou a atenção de Buck. Na escuridão, ele viu Chaim desatar o cinto de segurança e ajoelhar-se desajeitadamente no corredor, com os cotovelos apoiados no braço da poltrona. Buck deu um leve cutucão em T e fez um sinal com a cabeça para que ele se virasse para trás. T olhou para Chaim e, em seguida, para Buck, o qual levantou os punhos e curvou a cabeça, virando de lado para poder ouvir discretamente o que se passava na cabina de passageiros. O homem de quem ele gostava tanto e que havia sido tão teimoso estava, agora, ajoelhado.
Oh, Deus, Chaim começou a dizer, antes, quando eu orava, nunca acreditei que estivesse conversando realmente contigo. Agora sei que estás aqui e que me queres, mas não sei o que dizer. Ele começou a chorar. Perdoa-me por ter me aproximado de ti só porque estou com medo de morrer. Só tu conheces a verdade sobre mim, se estou sendo sincero. Tu sabes melhor que eu. Sei que sou pecador e que necessito de teu perdão para todos os meus pecados, inclusive o de assassinato, embora a vítima tenha sido teu arquiinimigo. Obrigado por teres sido castigado por causa de meus pecados. Perdoa-me e recebe-me em teu reino. Quero entregar-me inteiramente a ti pelo resto de meus dias. Mostra-me o que devo fazer. Amém.
Buck olhou para o local em que Chaim continuava ajoelhado, cobrindo a cabeça com os braços.
— Cameron? — ele chamou, com voz abafada.
— Sim, Chaim.
— Eu orei, mas continuo morrendo de medo!
— Eu também!
— E eu também! — gritou T, da cabina de comando.
— Você fez um teste com Deus? — perguntou Buck.
— Fiz. Acho que só vou saber o que Ele decidiu quando espatifarmos no chão e eu acordar no céu ou no inferno.
— A Bíblia diz que podemos saber.
— Verdade?
— Ela diz que o próprio Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus. O que seu espírito diz?
— Meu espírito diz para pousarmos com cuidado.
Buck riu, apesar das circunstâncias.
— Chaim, existe um jeito de sabermos antecipadamente. Você quer saber? .
— De todo o meu coração.
— T, acenda as luzes lá do fundo.
David retornou ao posto de observação, olhando a fila passar diante do esquife. Faltavam mais ou menos duas horas para a meia-noite, e o ar estava fresco o suficiente para deixar a multidão tranqüila. No dia seguinte, a temperatura chegaria perto de 40 °C, e ele se preocupava com a saúde e o estado de espírito do povo. O funeral estava programado para iniciar às 12 horas, mas, na opinião de David, não haveria tempo suficiente para que toda aquela multidão passasse diante do esquife.
Do local onde se encontrava, ele podia ver os últimos retoques da enorme estátua preta e oca do falecido potentado, feita de ferro e bronze a partir de um molde tirado após sua morte. Guy parecia prestes a ter um colapso, supervisionando as últimas soldagens e o levantamento da peça por meio de um guindaste. Em seguida, Guy subiria em um andaime para fazer o polimento final, e depois ordenaria aos operários que conduzissem a estátua a um lugar perto do esquife, antes de amanhecer.
Fortunato e seus assistentes realizavam uma ronda no local. Leon tinha algumas folhas de papel na mão e fazia uma anotação atrás da outra. Acompanhado de seu grupo, ele foi ver de perto a construção da estátua. Guy interrompeu o trabalho para apontar os detalhes de sua obra-prima e aceitar os elogios do Supremo Comandante.
O idolatrado Fortunato dirigiu-se até o meio da longa fila, onde o povo aguardava havia horas. Alguns curvaram-se, ajoelharam-se e beijaram as mãos dele. Fortunato os ajudava a levantarem-se e apontava para o esquife. O povo assentia com a cabeça e gesticulava.
Depois disso, ele verificou as várias tendas e estandes, que só começariam a funcionar depois que o dia clareasse. Quando ele chegou ao estande abaixo do local em que David se encontrava, fez a pergunta que David mais temia.
— Alguém viu o diretor Hassid?
Os funcionários balançaram negativamente a cabeça, mas alguém da tenda disse:
— Ele está lá em cima, Comandante.
— Com quem?
— Sozinho, acho.
— Cavalheiros, por favor, aguardem um pouco.
Ele subiu a escada, e David sentiu a estrutura de madeira balançar. David agiu como se não tivesse ouvido nada.
— Diretor Hassid? — disse Fortunato. David virou-se.
— Pois não, Comandante.
— Você gostaria de reunir-se ao nosso pequeno grupo, David? Estamos cumprimentando o povo.
— Não, obrigado. Tive um longo dia. Estava prestes a me recolher. :
— Eu compreendo — disse Leon, tirando algumas folhas de papel do bolso. — Você teria tempo para me ajudar um pouco?
— Claro.
— Estou recebendo pressão de algumas pessoas de Roma para realizar um culto em memória do Sumo Pontífice. Você se lembra dele?
A pergunta de Leon era séria, como se David não se lembrasse do chefe da fé mundial que havia morrido naquela mesma semana.
— Claro — respondeu David.
— Ele parece ter desaparecido da memória da maioria das pessoas, e estou inclinado a não fazer nada.
— Não realizar o culto?
— Você concorda?
— Eu só fiz uma pergunta.
— Concordo com você que talvez seja melhor não realizarmos esse culto.
David não havia dito aquilo, é claro, mas não fazia sentido discutir naquele momento. Fortunato tinha o hábito de extrair idéias à força de todos a seu redor e depois dizia ter "concordado" com os conselhos recebidos.
— Eu gostaria que todos os assuntos de natureza espiritual fossem centralizados definitivamente na Nova Babilônia, e acredito que exista aqui um espaço melhor para a manifestação pessoal de fé do que aquela antiga mistura de crenças nos proporcionou.
— Todos parecem ter aceitado a idéia da unificação das religiões, Comandante.
— É verdade, mas com a evidência cada vez maior de que o potentado Carpathia merece ser canonizado, e com a possibilidade de que ele seja um ser divino, acredito que deva existir um lugar para adoração e orações por nosso extinto líder. O que você acha?
— Acho que sua idéia vai prevalecer.
— Obrigado por suas palavras. David, encontrei em você um colaborador eficiente e leal. Quero que saiba que você pode escolher a função que quiser em meu regime.
— Seu regime?
— Com certeza, você não está vendo ninguém na fila para ocupar o cargo de Supremo Potentado.
David teve vontade de dizer a ele quem o potentado seria em breve.
— Não, acho que não.
— Se você souber de alguma coisa, diga-me. Há gente minha observando atentamente os três reis dissidentes. Acho que Litwala tem um ar magro e faminto. Você sabe de onde vem essa expressão, Hassid?
— Shakespeare. Júlio César.
— Você lê muito. Que função poderia motivá-lo?
— Estou feliz com o que faço, senhor.
— Sério?
— Sim.
— Bem, o que você diria diante de um aumento de salário e uma mudança de título, como assistente do Supremo Potentado?
David sabia que, em breve, esse assunto seria posto em discussão.
— Eu não teria nenhuma objeção.
— Você não teria nenhuma objeção! — Fortunato riu. — Gostei! Veja esta lista de pessoas que desejam dizer algumas palavras amanhã no funeral. — Ele proferiu um palavrão. — Filhos egoístas do demônio.
Para reconhecê-los, é preciso ser um deles, pensou David.
— Você gostaria de dizer algumas palavras? .
— Não.
— Se quiser, posso encaixá-lo.
— Não, obrigado.
— Não haveria nenhum problema; você ganharia um pouco de notoriedade.
— Não.
— Está precisando descansar um pouco, é isso?
— Sim, senhor.
— E quando você volta aqui?
— Depois que o dia clarear, acho.
— Humm.
— Algum problema, senhor?
— Quero que alguém de nosso nível esteja presente quando a estátua for colocada no lugar.
— Guy é ministro.
— É verdade, mas, você sabe...
David não sabia, mas assentiu com a cabeça.
— Você poderia estar presente, David?
— O senhor é quem manda.
— É assim que se fala!
Quando Buck voltou à cabina de passageiros, Chaim levantou-se e o fitou com ar de exaustão, o rosto ainda molhado de lágrimas. Agora, Chaim estava em pé, de costas para o braço da poltrona no qual se debruçara, cuja altura chegava um pouco acima de seu joelho. Buck colocou as mãos nos ombros de Chaim. O israelense caiu de costas no assento, com os pés sobre os joelhos de Buck.
— Então, agora você viu? — perguntou Buck.
— Vi! — exclamou Chaim, levantando-se. — E você pode ver o meu?
Ele se posicionou debaixo de uma lâmpada e afastou da testa uma mecha de cabelos brancos.
— Claro que posso, Chaim. Durante todo esse tempo, você não acreditou em nós, não é verdade? Não acreditou que podíamos ver os selos uns dos outros.
— A bem da verdade, eu acreditei — disse Chaim. — Nenhum de vocês iria mentir para mim. Eu tinha muita inveja de vocês.
— Agora não tem mais.
— Deus conhecia o meu coração.
— Parece que sim.
— Isso já é um milagre.
— Preparem-se para a descida — gritou T.
— Apesar de tudo, continuo morrendo de medo — disse Chaim.
— Eu também estou morrendo de medo, amigo, mas estaria muito mais aterrorizado se não soubesse para onde vou.



QUATORZE

Leah sentia-se exausta e entediada, apesar de fascinada com a mudança que ocorrera em Rayford e com o relacionamento entre ele e a filha. Mesmo com as janelas abertas que permitiam a entrada de ar fresco, dentro do Land Rover estava abafado e opressivo.
Seu celular tocou. Ao ver que era Ming, ficou assustada mas, ao mesmo tempo, feliz por poder fazer alguma coisa diferente.
— Vou voltar a ver meus pais e meu irmão — disse Ming.
— Que ótimo! Como? Onde?
— No funeral.
— Você vai?
— Vou, e eles também. Liguei para eles e contei que fui encarregada de controlar a multidão. Eles insistiram em ir.
— Isso é muito bom, não?
— Leah, estou muito preocupada com meus pais. Eles não sabem que Chang e eu somos crentes. Eram grandes admiradores de Carpathia e estão muito tristes. Quero contar tudo a eles, tentar convencê-los, mas seria necessário um milagre.
— Os milagres sempre acontecem, Ming. Vamos orar com você nesse sentido.
— Você não conhece meu pai.
— Não, mas Deus é maior que tudo. Como você vai chegar a Nova Babilônia? Ouvi dizer que todos os vôos estão lotados.
— Por transporte militar. Não sei como minha família encontrou lugar no avião, mas deve ser porque meu pai tem muita influência entre o pessoal da CG. A empresa dele contribui com mais de 20% dos lucros para a Nova Babilônia. O pessoal de lá está esperando a chegada de mais um milhão de peregrinos amanhã. Até as prisioneiras daqui estão chorando a morte de Carpathia, Leah.
— Quando você chegar lá, procure David Hassid e Annie Christopher.
— Eles são crentes?
— Claro. Não se intimide. Finja discutir com eles. Eles vão notar o selo em sua testa e farão de tudo para proteger você. Apresente seu irmão a eles. Vou preveni-los de que seus pais não sabem de nada. Ei, você tem notícias de Hattie ou da família de Cameron Williams?
Uma pausa.
— Pode me contar, Ming.
— Bem, tenho boas e más notícias.
— Diga logo.
— A casa da família Williams foi incendiada e encontraram dois corpos, identificados como o pai e o irmão de Cameron.
— E o que mais?
— A notícia ainda não está confirmada, Leah, mas dizem que eles se converteram antes de morrer.
— Se isso for verdade, é bom que Buck fique sabendo.
— Vou ver se posso descobrir alguma coisa sem dar na vista, mas alguém disse que os assassinos tiveram de esperar para atear fogo na casa porque eles estavam reunidos em uma espécie de igreja.
— Isso significa que a CG sabe onde a igreja se reúne?
— É bem provável. Eles sabem muito mais do que a maioria dos crentes imagina.
— Precisamos avisar os crentes daquela igreja.
Buck ouviu T conversando pelo rádio com a torre de Kozani.
— Nível de combustível muito baixo. Posso fazer uma tentativa, mas prefiro dar uma única tacada.
— Aqui embaixo, Super Juliet, não temos espuma nem idéia alguma de como consegui-la rapidamente. É melhor você livrar-se do combustível restante antes da tacada final.
— Positivo.
— Você tem amigos importantes, Juliet.
— Repita, por favor.
— Há um novo equipamento chegando.
— Não estou entendendo, torre.
— Um homem chamado Albie. Você o conhece?
— Já ouvi falar dele. Amigo de um amigo.
— Foi o que ele disse. Ele está trazendo um avião para você, imaginando que o seu vai precisar de alguns reparos.
— Entendido. O que ele está trazendo?
— Não faço idéia.
— Como ele vai fazer para voltar?
— Acho que ele está pensando em consertar o seu e fazer uma troca.
— Espero que ele esteja trazendo alguma coisa boa.
— Ele espera que compense fazer a troca depois de você arranhar a nossa pista.
— Entendido. Buck olhou para T.
— Você acredita nisto? Rayford deve ter dado uma ajuda.
— Não imagino quando Albie vai chegar. Buck sacudiu a cabeça.
— Ele teve de fazer um vôo muito mais longo que o nosso, e sabe-se lá onde conseguiu o tal avião.
— Mal posso esperar para ver.
— Eu mal posso esperar para saber se vamos sobreviver.
— Eu acredito que sim — disse T. — Vamos dar uma olhada na situação, eliminar o combustível e fazer esta belezinha pousar lá, com toda a suavidade.
— Adorei a confiança em sua voz.
— Deve ser por causa de minha experiência como ator.
— Não diga.
— A verdade, Buck, é que preciso que vocês dois se sentem nas últimas poltronas, com os cintos atados. Vou gritar daqui a que altitude estamos. Quando eu gritar 50 pés, vocês deverão estar com os braços ao redor do corpo e a cabeça entre as pernas, mas é melhor ficarem nessa posição logo depois que eu gritar 100 pés. Entendido?
Buck assentiu com a cabeça.
— Estamos perto. Peça a Chaim que se prepare. Buck levantou-se e estava dirigindo-se à cabina de passageiros quando T disse:
— Oh, não!
— O que foi?
As luzes no interior do avião apagaram-se. As luzes de emergência, movidas por bateria, mal conseguiam iluminar o painel de controle.
— O que está havendo? — gritou Chaim. — Respondam.
— Digamos que não vamos ter de eliminar o combustível — explicou T. — Sentem-se nas últimas poltronas, apertem os cintos e só falem comigo depois que estivermos no solo.
— Eu estou pronto a ir para o céu! — disse Chaim. — Mas esta noite prefiro asfalto a ouro, se você não se importar.
— Fique de boca fechada, doutor — disse T. Ele chamou a torre, usando a energia da bateria. — Situação de emergência, torre de Kozani, aqui é o Super J. Estamos sem combustível, repito, sem combustível, e funcionando com bateria. Luzes de pouso prejudicadas.
— Entendido, Juliet — veio a resposta, enquanto Buck sentava-se na poltrona na mesma fila que Chaim, do outro lado do corredor. — Trem de pouso recolhido?
— Positivo — disse T. — Rodas levantadas. Aguarde.
— Repita. Você confirma que as rodas estão levantadas?
— Negativo.
— Por falta de energia elétrica ou por dedução?
— Não sei responder.
— Continue tentando enquanto se aproxima. Você está nos vendo?
— Positivo.
— Todas as luzes da pista acesas.
— Obrigado. Luzes de pouso acesas.
— Positivo. Repita o procedimento para levantar rodas.
— Entendido.
— Deu certo?
— Negativo.
— Vamos tentar enxergar quando você se aproximar. Isso vai afetar as manobras seguintes.
— Entendido. — Altitude?
— Mil pés e descendo... 900... 800...
— Descendo rápido demais, Juliet! Você precisa passar por cima da cerca ao sul.
— Positivo. Estou tentando. 700... 600... 500.
— Desça mais devagar, Juliet.
— Preocupado com navegabilidade.
— Entendido, mas cuidado com a cerca, antes de tudo.
— Entendido. 400... 300... 200...
Tsion levantou-se, esticou o corpo e foi espiar Kenny. Parecia que ele havia ficado horas fora dali, e estava tão exausto como no momento em que começara a cochilar. Embora estivesse determinado a não perder nenhum acontecimento na Nova Babilônia, ele sabia que precisava dormir. Voltou a sentar-se e acomodou-se no sofá, orando para que fosse novamente transportado para os portais do céu. Ele não sabia explicar o que lhe acontecera ou como avaliar aquilo tudo, mas havia sido um privilégio inigualável. Ainda tinha muitas perguntas em sua mente e, com certeza, outras viriam. Antes de dormir, sentiu novamente o desejo de orar por seus irmãos e irmãs que estavam na linha de frente.
Enquanto dirigia-se para seus aposentos, David ligou para Guy.
— Eu gostaria de ver a colocação da estátua, quando você estiver pronto.
— Agora?
— Eu disse quando você estiver pronto, dentro da programação normal.
— Você está pedindo permissão?
— Eu só disse que quero ver. Algum problema?
— Eu não preciso que ninguém segure a minha mão.
— Pode acreditar, Guy, eu não quero segurar a sua mão.
— O protocolo exige que você me chame pelo meu título.
— Sinto muito, Blod.
— Meu nome é Guy Blod, e não quero ser chamado pelo sobrenome!
— Ora, não entendo por quê.
— Meu título é Ministro!
— Sinto muito, Reverendo Ministro. Mas o seu e o meu supremo comandante quer que alguém da administração esteja presente quando você colocar o homem nu no lugar.
— Que coisa grosseira e deselegante!
— Foi o que pensei, mas fico surpreso ao ver que você concorda comigo.
— David!
— Ah, para você, ministro Blod, sou diretor Hassid. De qualquer forma, ele me escolheu, portanto não me deixe fora disso.
— David! Eu sou um ministro, por isso eu escolho o funcionário da administração. É melhor você ir dormir e só se levantar depois de ter aprendido a ser civilizado.
— Sinto muito, Ministrinho, mas recebi uma ordem direta. Se você quiser contestá-la, resolva esse assunto com ele.
— Espere até ele saber do que você chamou o potentado.
— Ora, se você for lhe contar, por favor deixe bem claro que eu me referi à estátua. E diga também que você admitiu que ela era... como foi mesmo?... uma coisa grosseira e deselegante.
— Esteja lá às cinco horas, Hássid, e não vamos esperar você chegar.
— Que ótimo. Eu detestaria perder essa oportunidade. Tenha um bom dia.
Buck sabia que devia colocar a cabeça entre as pernas, como Chaim fez, mas estava muito curioso. Ele inclinou o corpo para o corredor, de onde podia avistar a cabina de comando.
O avião estava embicado demais para baixo, e T tentava fazer uma última manobra para passar por cima da cerca. Logo depois, havia uns 100 metros de terreno gramado e, em seguida, a pista de pouso. Buck ficou assustado ao ver que a maioria das marcas de pneu na pista estavam a pelo menos uns 500 metros do início do asfalto. Ele achava que T não conseguiria fazer o Super J passar por cima da cerca nem pousar na grama, e muito menos na pista.
— Seu trem de pouso está abaixado, Juliet! Repito, abaixado! Roda da direita OK, a esquerda destruída! Levante e boa sorte!
— Nós não desejamos sorte! — gritou Buck. Agora, ele havia perdido a cerca de vista. — Deus, faça-se a tua vontade por intermédio de T!
— Entendido! — gritou T, puxando o manche com força. O avião deu um solavanco, passou por cima da cerca e arrastou a cauda sobre a grama.
O impacto fez Buck afundar-se tanto no assento que ele sentiu cada fibra de seu ser. Chaim soltara um grunhido medonho no momento do impacto, e parecia que seu rosto estava perto de seus sapatos. Buck gostaria de estar na mesma posição, porque ele sentiu um puxão em toda a espinha dorsal e imaginou que os dois ombros haviam-se deslocado. A sensação era a mesma nos pés, tornozelos e joelhos. O avião continuava embicado para cima enquanto a cauda rasgava o terreno gramado.
Aquilo significava que haveria outro impacto, mas Buck não podia imaginar que fosse sentido nas últimas poltronas do avião, pelo menos não igual ao primeiro.
O ângulo e a velocidade em que o avião se encontrava fizeram com que ele se dirigisse rumo à pista apoiado na cauda. Quando ela tocou o chão, o bico do avião abaixou e bateu com muita força, provocando faíscas. A fuselagem partiu-se ao meio, e as duas metades do avião se arrastaram separadas no asfalto, girando em direções opostas.
Buck enxergava céu, asfalto, luzes, hangares e faíscas, sentindo-se completamente zonzo até que a força da gravidade o fez perder a consciência.
Senhor, ele orou quando uma escuridão abençoada invadiu seu cérebro, eu posso sair dessa. Permite que eu fique um pouco mais aqui. Chloe, eu amo você. Kenny...
Apesar de exausto, David não conseguia dormir. Deitado em seu quarto, ele se perguntava por que sentia tanto prazer em perturbar Guy Blod. Não tirava da cabeça a história que ouvira sobre Rayford. Ele atormentou Bo, o amigo de Hattie Durham, até o ponto de o rapaz cometer suicídio. Guy Blod era um sujeito estranho, e David gostou de tê-lo vencido em termos de sagacidade e sarcasmo. Mas será que ele conseguiria exercer influência positiva sobre aquele homem? A conversão do Sanguinário parecia remota, mas quem teria adivinhado que o próprio David — um jovem técnico israelense, cético e agnóstico, que aprendeu a lutar pela vida em uma cidade grande — se converteria? Será que ele poderia converter Guy? Talvez o homem risse dele. Fosse como fosse, ele teria de fazer a coisa certa.
David digitou uma mensagem de amor para Annie, dizendo que, apesar de concordar que eles não deveriam pensar em filhos até o Glorioso Aparecimento, ainda queria casar-se com ela. A resposta dela determinaria como seria o relacionamento deles dali em diante.
Ele deu uma última olhada nos e-mails e imaginou onde estariam os membros do Comando Tribulação. Naquele momento, Buck e Chaim deviam estar na Grécia.
Como Chaim teria resolvido a questão de sua verdadeira identidade?
Depois de orar por Tsion, esperando que em breve ele voltasse a transmitir seus estudos e comentários diários pela Internet, David deitou-se na cama. Pediu perdão a Deus pela maneira como havia tratado Guy Blod e suplicou compaixão por aquele homem. Evidentemente, ainda não era o momento certo de declarar-se crente a um homem que pertencia à CG, mas David não queria fechar a porta para as oportunidades, uma vez que ele e Annie teriam de fugir dali.
Buck abriu os olhos e receou entrar em estado de choque. O ar da noite o atingiu como uma rajada de vento polar, embora ele soubesse que a temperatura não estava tão baixa assim. Sua respiração era imperceptível. Sentado na metade traseira, totalmente amassada, do Super J e olhando firme para a pista de pouso, que se estendia a cerca de pouco menos de um quilômetro adiante, ele sentia que precisava descer, falar com T, ter certeza de que o piloto estava bem. T salvara a vida deles. Que tarefa magistral, a de pilotar um avião naquele estado!
Chaim! Buck olhou para a esquerda e viu que seu amigo continuava na mesma posição, com o corpo curvado e a cabeça pressionada contra o espaldar da poltrona da frente. Será que ele havia quebrado o pescoço? Buck deveria mexer nele?
— Chaim! Chaim, você está bem?
Rosenzweig não se moveu. Buck tocou delicadamente as costas de Chaim e notou que sua mão tremia como a última folha de uma árvore no princípio do inverno. Ele tentou controlar-se, mas seu corpo inteiro tremia. Será que havia sofrido alguma fratura, perfuração ou lesão grave? Aparentemente não, mas sentiria dores durante dias. E ele não poderia permitir-se entrar em estado de choque.
Preocupado com Chaim, Buck desatou o cinto de segurança e tentou alcançar o pulso direito dele perto dos pés, pois Chaim havia agarrado os tornozelos com as duas mãos. Buck não conseguia soltá-las e forçou-o a abrir os dedos. A pulsação estava normal, batendo forte e rápida demais, um indício de perigo.
Ao ouvir som de passos e gritos, Buck avistou três funcionários da equipe de emergência querendo saber se havia sobreviventes.
— Eu preciso de um cobertor — ele disse. — Estou congelando. E ele precisa de alguém que entenda do assunto para tirá-lo daqui e verificar se houve lesão no pescoço.
— Sangue — disse um dos homens.
— Onde? — perguntou Buck.
— Nos sapatos do homem. Veja.
Gotas de sangue pingavam do rosto de Chaim, caindo nos sapatos.
— Senhor! — eles gritaram. — Senhor! — Em seguida, um deles dirigiu-se a Buck. — Como é o nome dele?
— Pode chamá-lo de doutor. Ele vai responder. Alguém atirou um cobertor para Buck, e ele viu outros funcionários correndo na pista em direção à outra metade do avião. Buck tentou ficar em pé. Seu corpo inteiro doía. A cabeça latejava. Ele estava zonzo. Depois de enrolar-se no cobertor, sentindo cada músculo e osso do corpo, ele saiu cambaleando do avião destroçado e pisou em terra firme. Ficou ali parado, acenando para que todos vissem que ele estava bem. Ele precisava encontrar T. Não havia nada que pudesse fazer por Chaim. Se o problema maior fosse apenas pulsação rápida e ferimentos no rosto, ele devia estar bem. Agora era tarde demais para dizer a Chaim que não revelasse quem era.
Buck começou a caminhar em direção à outra extremidade da pista, mas seus passos eram tão lentos e pesados que ele não sabia se conseguiria chegar lá. Ele sentia vontade de deitar-se no chão e quase chegou a fazer isso várias vezes. Apesar de saber que parecia um bêbado, esforçava-se para pôr um pé adiante do outro. Dois médicos da equipe de emergência foram ao seu encontro, um vindo da cabina de comando e o outro da cauda do avião. Quando os dois se aproximaram, Buck imaginou que seria carregado. Ele não tinha mais forças.
Porém, eles não lhe deram atenção e conversavam aos gritos por causa do barulho. O que veio de trás disse ao companheiro:
— O velhinho é parecido com o israelense que morreu queimado dentro de casa ontem à noite.
— Parecido até demais — disse Buck, vendo que nenhum dos dois podia ouvi-lo.
— Como está o piloto? — perguntou um dos médicos, mas Buck não ouviu a resposta.
— O que ele respondeu? — indagou Buck ao outro, que corria em direção à cabina de comando.
— Nada!
Buck não vira o homem sacudir a cabeça negativamente, mas talvez não tivesse observado com atenção. Finalmente, ele conseguiu chegar à metade da frente do avião. Ninguém estava cuidando de T. Aquilo poderia ser bom ou mau sinal. Alguém pediu um saco para carregar cadáveres.
Não podia ser verdade. Se ele e Chaim sobreviveram ao baque, T também deveria estar vivo. Estava em melhor forma que os passageiros. Um dos funcionários tentou impedir Buck de entrar no avião, mas ele apenas olhou para ele e lhe deu um empurrão de leve, pedindo passagem. O homem compreendeu que não haveria meios de dissuadi-lo.
— Por favor, não toque no corpo — disse o homem.
— Não é um corpo — balbuciou Buck. Com certeza, eles haviam feito um diagnóstico apressado. — É um amigo, nosso piloto.
Parte da cabina de comando estava caída sob uma enorme lâmpada da pista, que iluminava os destroços. Buck não viu sangue, nem ossos, nem braços ou pernas quebrados. Ele aproximou-se de T, por trás. T estava sentado com o corpo ereto, ainda com o cinto de segurança atado. Sua mão esquerda estava caída sobre o colo, e a direita, aberta, pendurada no espaço entre os bancos, a cabeça tombada para a frente, e o queixo encostado no peito.
— T — disse Buck, pousando a mão no ombro dele —, como você está, companheiro?
T estava quente. Ele era forte e musculoso. Buck colocou o dedo na artéria do pescoço do piloto. Nada. Deixando cair o cobertor dos ombros, ele afundou-se no outro banco e agarrou a mão sem vida de T.
— Oh, T — ele disse. — Oh, T.
A parte racional do cérebro de Buck dizia que ele ainda presenciaria outras cenas semelhantes. Mais amigos e companheiros crentes morreriam. Eles se reuniriam dentro de três anos e meio. Apesar de não conhecer T tanto quanto Rayford, o sofrimento era grande. Ali estava um homem tranqüilo, firme, que arriscara sua vida e sua liberdade mais de uma vez para acudir o Comando Tribulação. E agora ele havia feito o derradeiro sacrifício.
— Precisamos remover o corpo e a fuselagem, senhor. Sinto muito. Esta é uma pista ativa.
Buck levantou-se e curvou-se sobre T, abraçando a cabeça dele.
— Vou me encontrar com você na Porta Leste — ele sussurrou.
Buck arrastou seu cobertor para fora do avião, mas não conseguiu caminhar. Tentou sentar-se à beira da pista, mas perdeu o equilíbrio e rolou de costas no chão. Uma brisa forte gelou sua nuca, e ele não teve força suficiente para protestar quando sentiu alguém colocar a mão em seu bolso.
— Alguém está à sua espera aqui, Sr. Staub?
— Sim.
— Quem?
— Miklos.
— Lukas Miklos, o homem do linhito?
— Sim.
— Ele está no terminal. O senhor consegue chegar até lá?
— Não.
— Vou providenciar uma maca.
Buck viu quando o corpo de T foi colocado em um saco.
— Atenda o senhor idoso que está ali adiante — disse Buck, com dificuldade, apontando para o outro lado.
— Já cuidamos dele — disse alguém. — Sangramento pelo nariz e taquicardia, mas ele vai conseguir sair dessa.
E Buck desmaiou novamente.
O céu começou a escurecer em Chicago por volta das 19 horas, mas Rayford decidiu aguardar até as 20 horas para arriscar-se. Ele queria que o céu estivesse negro e que ninguém visse para onde iam. A cidade estava abandonada, condenada e isolada havia meses, e não seria surpresa saber que não restara sequer um bêbado perambulando por aquelas ruas. Havia corpos em decomposição estendidos por todos os lados, e não se sabia ao certo se por motivo de radiação ou não. Poderia ser um local seguro para se esconder, mas com certeza não era exatamente um lugar divertido para se viver.
Ele ligou o carro e saiu devagar de debaixo da plataforma da linha férrea com os faróis apagados, esperando encontrar o menor número possível de obstáculos. Provavelmente, não haveria um caminho direto até o centro comercial. Nada mais era como antes.
Entre o período dos bombardeios e o grande terremoto, houve algumas tentativas de reconstruir as rodovias com a finalidade de abrir atalhos, estradas de duas pistas para atravessar a cidade. Algumas não estavam terminadas, portanto o caminho mais direto para chegar a qualquer lugar seria passar por cima, por baixo e ao redor dos obstáculos — naturais e construídos por mãos humanas — dentro do melhor veículo com tração nas quatro rodas que se podia encontrar.
Rayford calculou que teria de dirigir mais uns 30 quilômetros, com os faróis apagados a maior parte do tempo, rodando a cerca de 15 quilômetros por hora.
— Espero que o local seja tudo o que David disse — comentou Rayford.
— Eu também — disse Chloe. — Só para me tranqüilizar. É claro que vi o local pela Internet. Se for metade do que parece, será o mais próximo de um lugar ideal que poderemos encontrar.
Leah estava dormindo.
David apareceu no local da construção da estátua alguns minutos após as cinco horas, de acordo com o fuso horário de Carpathia. Guy começou a fazer comentários sarcásticos, dizendo que agora eles poderiam terminar o trabalho. David levantou as mãos em sinal de rendição.
— Desculpe-me por ter atrasado o trabalho. Ministro Blod, podemos conversar?
Guy pareceu tão chocado por David tê-lo chamado pelo título diante de seus funcionários que parou de trabalhar e caminhou até onde ele estava. David estendeu a mão para cumprimentá-lo, e Guy, com ar desconfiado, apertou-a.
— Quero desculpar-me por ter sido grosseiro com o senhor. Espero que, daqui em diante, o senhor encontre em mim um colaborador e não um empecilho para o seu trabalho.
— O quê?
— Eu disse que quero me desculpar...
— Eu já ouvi, Hássid. Estou aguardando o final da piada.
— Eu só queria dizer isso, senhor.
— Estou esperando a frase de efeito! — disse Guy, com voz monótona.
— É só isso, senhor. Estou perdoado?
— Como assim?
— Eu disse que é só isso, senhor...
— Eu já ouvi. Estou tentando digerir suas palavras. O supremo comandante obrigou você a fazer isso, não? Bem, eu não delatei você. Vamos, quem mandou você pedir desculpas?
David adoraria responder "Deus".
— Ninguém me pediu nada, ministro Blod. Não há nenhum motivo por trás de minhas palavras. Eu só quero iniciar com o pé direito.
— Bem, então conte comigo, rapaz!
— Significa que estou desculpado?
— Significa o que você quiser, soldado!
— Obrigado. Não há sentido em paralisar o trabalho por mais tempo.
— Também acho. Deveríamos ter tudo pronto às cinco.



QUINZE

Buck fez um esforço enorme para abrir os olhos. Ele nunca se sentira tão exausto.
Os primeiros raios de sol da madrugada atravessavam as persianas de uma pequena enfermaria, que ele não sabia ao certo onde se localizava. Seu sono havia sido interrompido pela oração, em voz baixa, de três homens sentados de mãos dadas. Buck reconheceu um deles. Era Lukas Miklos. O segundo era alto, de cabelos escuros, mais ou menos da idade de Buck. O terceiro era mais velho, mais baixo que o segundo e natural do Oriente Médio.
— Como você está se sentindo, meu amigo? — perguntou Lukas aproximando-se de Buck.
— Um pouco melhor, Laslos. Que bom ver você. Onde estamos, e como está Chaim?
Lukas aproximou-se um pouco mais e sussurrou:
— Chaim vai ficar bem, mas precisamos inventar um nome falso para ele. Seu nariz sofreu uma lesão grave. Ele não tem condições de falar, porque fraturou a mandíbula. Os médicos não estão desconfiados de nada, apenas curiosos.
Ele está sendo operado neste momento. Nosso falsificador de documentos conseguiu fazer o impossível...
— O nosso piloto se foi, certo? Então, não foi alucinação minha.
— Correto. Louvado seja Deus por ele ter-se convertido. Em seus documentos constava o nome de Tyrola Mark Delanty. Era um pseudônimo ou...
— Ele não precisava usar nome falso. Dirigia um pequeno aeroporto perto de nossa casa e conseguia não levantar qualquer suspeita.
Laslos assentiu com a cabeça.
— A CG não permite traslados de corpos de um país para outro. O pessoal de nossa igreja cuidará do enterro.
Buck mexeu os ombros e girou a cabeça, sentindo uma dor aguda no pescoço.
— O que o falsificador vai fazer com a fotografia de Chaim? Lukas olhou para trás, por cima do ombro.
— Veja o que forjamos para depois da cirurgia. — E mostrou a Buck uma carteira de identidade com a fotografia quase toda arranhada, na qual se via apenas um pouco de cabelos brancos na parte superior. — Não parece ter sido estragada no acidente? Tentamos convencer as autoridades a adiarem a cirurgia até que o inchaço reduzisse, mas eles também estão com poucos funcionários aqui. Enquanto isso, Chaim é Tobias Rogoff, um bibliotecário aposentado de Gaza, que viajava para os Estados Unidos em um vôo fretado, o mesmo em que você estava.
— Chaim já sabe disso?
— Nós lhe contamos há algumas horas. Nossa história é que a companhia de seguros contratou a Empresa Aérea Albie para garantir o término da viagem assim que vocês dois estiverem em condições.
— Eu já estou em condições — disse Buck, olhando para o homem do Oriente Médio por cima dos ombros de Laslos. — Você deve ser Albie.
— Sim, senhor — ele disse, com sotaque acentuado e curvando levemente o corpo. — Conheço seu sogro e seu amigo, o Sr. McCullum. E também Abdullah Smith.
— Eu sei. Não imaginava que você tivesse o selo na testa. Meu sogro está sabendo disso?
Albie sacudiu a cabeça dizendo que não.
— Faz pouco tempo. Foi nesta semana. Tentei falar com Rayford por telefone, mas não foi possível. Agora sei por quê.
— E como foi sua conversão?
— Não foi nada dramático. Sempre fui religioso, mas Rayford, Mac e Abdullah insistiam para que eu pelo menos levasse em consideração as mensagens do Dr. Ben-Judá. Foi o que fiz. Você sabe o que mais me tocou? A afirmação dele sobre a diferença entre religião e cristianismo.
— Eu conheço bem essa afirmação — disse Buck. — Você deve estar se referindo ao argumento usado por ele de que religião é a tentativa do homem para alcançar a Deus, ao passo que Jesus é a tentativa de Deus para alcançar o homem.
— Foi isso mesmo — disse Albie. — Passei dois dias vasculhando os arquivos do Dr. Ben-Judá na Internet, vi todas as explicações sobre as pragas e os julgamentos profetizados. Depois, estudei as profecias sobre a vinda de Cristo. Como alguém que saiba raciocinar pode ler aquilo e não...
— Com licença, Albie — disse Laslos —, precisamos ir. Posso dizer a você, Buck, que os olhos do Dr. Rosenzweig brilharam quando lhe falamos sobre a nova identidade. Não sabemos quanto tempo vai demorar até ele conseguir falar, mas podemos garantir que ele não vê a hora de se fazer passar por outra pessoa.
Buck escorregou até a beira da cama.
— Estamos perto do aeroporto?
Laslos balançou a cabeça negativamente.
— Estamos ao norte de Kozani. Albie levou o avião a Ptolemais. Quando você e... Tobias estiverem em condições de viajar, vão partir de lá. Assim que pudermos tirar vocês daqui, vamos levá-los para a mesma casa secreta onde escondemos Rayford.
— Ainda não fui apresentado a este cavalheiro — disse Buck, estendendo a mão para cumprimentar o homem alto e esbelto.
— Sinto muito — disse Laslos. — Este é o pastor Demeter.
— Sr. Williams — disse o pastor —, atendi seu celular alguns minutos atrás e conversei com sua esposa. Ela e seu sogro estão verificando a nova casa secreta. Ela ficou muito aliviada ao saber que o senhor e o Dr. Rosenzweig estão vivos. É claro que eles estão muito abalados com a morte do Sr. Delanty, principalmente Rayford. A Sra. Williams quer conversar com o senhor assim que for possível.
— Quero voltar logo para casa — disse Buck. — Albie, aposto que você não esperava ter de fazer um vôo tão longo, não é verdade?
— Eu não tenho nada que me prenda a Al Basrah, Sr. Williams. Vocês não vão precisar de outro avião e de outro piloto?
— Acho que o Comando Tribulação vai ter espaço para abrigar o melhor especialista em mercado negro do mundo.
Demetrius entregou o celular a Buck. Enquanto Buck discava, Laslos explicou que, aparentemente, até aquele momento eles não haviam levantado suspeitas da CG local.
— Eles acreditam que Demetrius trabalha para mim — disse Laslos —, e que você é um americano que veio para cá para aprender meu negócio.
Chloe não gostou do plano.
— Saia daí, Buck — ela disse. — Encontramos a casa secreta perfeita. Até mesmo o ranzinza do meu pai concordou. Chaim é esperto, mas não sabe lidar com essa história de clandestinidade. Vamos dar um jeito de trazer vocês dois para cá, sãos e salvos.
— Talvez você tenha razão, Chloe — ele disse. — Que horas são aí? Preciso ligar para meu pai.
Ela fez uma pausa.
— Buck, meu relógio marca mais de oito horas da noite e estamos adiantados em relação ao horário do oeste, e é por isso que eu queria falar com você.
Buck pressentiu alguma coisa na voz dela.
— Meu pai?
— Sim!
— E...
— Seu irmão também, Buck. Sinto muito.
— Como?
— CG.
— Estão atrás de nós?
— É o que imaginamos.
— Mas os dois não sabiam onde estamos morando! Foi por isso que nunca contei nada a eles!
— Eu sei, meu amor. Mas há também uma boa notícia. — Qual?
— Nossa fonte de informações contou que a primeira tentativa de extraírem informações deles teve de ser adiada. Eles estavam na igreja.
— Chloe, não me diga que...
— É verdade, Buck. Leah encontrou uma crente no Presídio de Bruxelas que tem acesso a esses esquemas. Ela diz que a informação veio de fonte confiável.
— Por que meu pai não me contou?
— Talvez o momento não fosse apropriado.
— Eu gostaria de ter certeza.
— Leah está tentando falar com alguém da igreja para que os crentes de lá fiquem sabendo o que aconteceu e tomem os devidos cuidados. Ela vai perguntar o que houve de verdade com seu pai e seu irmão.
Rayford precisou parar de dirigir quando recebeu a notícia da morte de T. Ele caminhou alguns quarteirões na escuridão e, quando Chloe perguntou se podia acompanhá-lo, ele agradeceu com o seguinte comentário:
— Necessito ficar a sós por alguns instantes, querida.
Como era de esperar, Chicago estava em total calamidade. Edifícios destruídos, corpos apodrecendo, veículos batidos ou queimados. Parecia o ambiente propício para Rayford passar alguns instantes sozinho.
O mais difícil de tudo durante esse período que eles atravessavam era lidar com o turbilhão de emoções. Rayford jamais se acostumaria ao choque de perder um ente querido e à necessidade de saber lidar com o sofrimento sem prejudicar o ritmo normal da vida.
Tempos atrás, a cada perda de um parente ou amigo, Rayford mentalizava uma lista das próximas vítimas. Mas desistiu de fazer isso. Ele gostaria de saber se o ser humano tem um limite, uma reserva finita de sofrimento que, com o passar do tempo, se esgota deixando-o sem lágrimas, sem arrependimento, sem melancolia.
Ele parou em um local que havia sido uma esquina e inclinou o corpo para a frente, com as mãos nos joelhos. Sua reserva de sofrimento continuava abastecida, e a dor pela perda do amigo transbordou.
Por mais difícil que fosse, Rayford precisava abreviar seu sofrimento causado pela perda de mais um amigo. Não lhe era permitido pensar muito no assunto, consolar uma viúva, dar a notícia a uma congregação. Não haveria velório, funeral, nem mesmo um culto em memória de T, em razão da rapidez dos acontecimentos. A igreja de T provavelmente realizaria um culto, mas Rayford não podia atrever-se a comparecer. Por certo haveria alguém vigiando, espreitando.
Poucos de seus companheiros do Comando Tribulação conheceram realmente T. Haveria poucas lembranças. Eles o veriam no céu. Qual seria o próximo sofrimento? Não era justo, não era normal. Como uma pessoa podia viver daquela maneira e manter a sanidade mental?
Rayford ficou agradecido por ter retornado àquilo que o Dr. Ben-Judá gostava de chamar "o primeiro amor de Cristo", a fase maravilhosa da vida em que o plano da salvação e a verdade da graça são fatos novos. Também ficou agradecido pelos conselhos de Demetrius Demeter, pelo repouso revigorante e pela nova decisão que havia tomado.
E agora essa notícia. Suas emoções continuavam a mil por hora. Aparentemente, ele havia tido momentos agradáveis nas últimas 24 horas. Agora era chegado o tempo do abatimento.
Como costumava fazer diante de situações como aquela, Rayford tentou relacionar as bênçãos recebidas pelas quais devia agradecer. Sem medo de errar, cada bênção de sua vida era acompanhada de um nome: Chloe, Kenny, Buck, Tsion, Leah, a nova amiga dela que ele ainda não conhecia, os dois Zekes, Chaim, David e Annie, Mac, Abdullah, Laslos e sua esposa, Demetrius, Albie. Rayford gostaria de saber por que Albie demonstrara tanta vontade de ajudar na Grécia e qual era o assunto que ele estava tão ansioso por lhe contar pessoalmente.
Rayford precisou controlar-se ao imaginar que sua lista poderia aumentar, mas as baixas continuariam. Ele já havia sofrido muitas perdas, inclusive de duas esposas. Não se deixaria vencer pela idéia de perder mais pessoas queridas.
Quando ele retornou ao Rover, Leah contou que conseguira falar com o líder da igreja que o pai e o irmão de Buck freqüentavam.
— Eu disse que gostaria muito que ele conversasse diretamente com Buck. Ele concordou, mas achei que eu não devia informar o número do telefone dele.
— Você foi prudente — disse Rayford. — O próprio Buck decidirá o que fazer. O telefone dele é Sigiloso, mas o do pastor pode estar grampeado pela CG. Tente falar com Buck e dê a ele o número do telefone do pastor. Deixe que ele faça o contato.
Alguns minutos depois, Rayford estacionou o carro perto do Edifício Strong e eles inspecionaram o local cuidadosamente. Era seguro. Os três sentaram-se na calçada, encostados no muro de tijolos, e Rayford tirou seu celular do bolso.
Havia algo estranho no alvorecer na Nova Babilônia que não agradava a David. Talvez o fato de ser muito mais vibrante em Israel. Ainda que os dois locais ficassem no deserto, o final da madrugada em Israel era sempre revigorante, deixando-o ansioso diante da promessa de um novo dia. O calor seco e abafado das manhãs na Nova Babilônia, mesmo que as alvoradas fossem deslumbrantes, deixava David sufocado.
Ele observava Guy Blod dando os retoques finais na enorme estátua de Nicolae Carpathia, mas isso pouco serviu para levantar seu ânimo. A uns 30 metros dali, centenas de milhares de peregrinos, procedentes de todas as partes do mundo, caminhavam lentamente em fila, aguardando horas para ficar alguns segundos diante do esquife. Era triste demais ver aquelas pessoas espiritualmente cegas, perdidas e mal orientadas demonstrando grande preocupação com o futuro em razão da perda de seu amado líder. Mas aqui, atrás das enormes cortinas, Guy e seus assistentes davam os últimos retoques, com entusiasmo, na estátua.
— Você quer ver de perto? — perguntou Guy a David, descendo em um andaime motorizado até o chão.
A bem da verdade, não, David quis dizer, mas que explicação daria para abrir mão de tal privilégio? Ele encolheu os ombros. Guy interpretou esse gesto como uma ,; afirmativa e passou a dar instruções.
— Há espaço apenas para uma pessoa no andaime, e —, você vai ter de manipular os comandos. Tome cuidado! Na primeira vez que tentei, quase destruí meu trabalho inteiro!
Guy mostrou os comandos a David, que consistiam basicamente de uma alavanca e um controle de velocidade. David foi tentado a apontar a engenhoca na direção da cabeça da estátua, acelerar e derrubá-la. Enquanto aprendia a manipular os comandos antes de subir, Guy lhe gritava uma série de advertências.
— Cuidado com a fumaça! O fogo está aceso abaixo dos joelhos, e o rosto tem apenas um exaustor.
— Por que você não deixou para acender o fogo depois de colocar a estátua no lugar?
— Não queremos chamar a atenção do povo. Esse tipo de arte é um dueto entre o escultor e o espectador. Meu objetivo é que as pessoas tenham a impressão de que a estátua está viva.
— Mesmo sendo de metal e com mais de sete metros de altura?
— Pode confiar em mim, isso funciona. O povo vai adorar. Mas a coisa perderia a graça se eles nos vissem pondo objetos dentro da estátua e ateando fogo.
— O que você usou como combustível? — perguntou David.
— Uma espécie de argila xistosa — respondeu Guy. — E aparas de papel bem fino.
— De onde veio isso?
— De todas as tribos e nações! — respondeu Guy, e seus funcionários riram. — Falando sério, temos um estoque ilimitado de livros sagrados de todas as partes do mundo, a última contribuição feita pelo falecido Sumo Pontífice. Ele despachou de Roma todos os textos sagrados que foram confiscados de várias religiões e seitas, ou doados por elas, quando a fé mundial foi estabelecida.
David sentiu-se enojado. Não queria ver a estátua de perto, mas sua situação era embaraçosa.
— Enquanto você sobe, observe o trabalho artesanal! — disse Guy.
O que haveria para ser visto ali, a não ser ferro preto polido?
— Você pode tocar na peça, mas tome cuidado! Ela tem um equilíbrio delicado!
Ao chegar a uma altura equivalente ao segundo andar de um prédio, David mal conseguia ouvir o que Guy dizia. Fumaça saía pelos olhos, narinas e boca da imagem quadruplicada de Carpathia. A visão era sinistra. Na posição em que David se encontrava, perto demais da estátua, os olhos e as feições de Carpathia tinham um aspecto visivelmente artificial, mas eram réplicas perfeitas.
David subiu até o ponto de enxergar o horizonte além da estátua, onde os raios avermelhados do sol nascente começavam a colorir o céu. De repente, ele estremeceu de susto e pedalou a engenhoca ao contrário, batendo o peito na barra de segurança. O andaime inteiro balançou, e David achou que ia despencar.
— Ei! — gritou um dos assistentes de Guy.
— O que houve? — gritou Guy. — Você está bem?
David fez um gesto para tranqüilizar o pessoal. Não queria admitir o que ouvira, aquilo que o fizera estremecer de susto. Ele firmou-se no lugar e prestou atenção. Um som baixo e rouco parecia vir da barriga da imagem. Apesar de abafado, era certamente o timbre de voz de Carpathia. O que significava aquilo? Como poderia ter sido produzido? Por um chip de computador? Por um CD? Uma fita magnética?
Ele sentiu a vibração novamente, ouviu um zumbido e endireitou a cabeça, aguçando os ouvidos para captar melhor o som.
— Derramarei o sangue dos santos e dos profetas — disse a voz.
David acionou o controle para descer, e o andaime parou a uns dois metros abaixo, voltando a balançar de um lado para o outro.
— Como você conseguiu fazer aquilo? — ele perguntou, olhando para baixo.
— Fazer o quê? . ;
— Instalar um gravador lá! Silêncio.
— E então, como você conseguiu? — insistiu David. — Onde está o hardware e o que aquela frase significa?
Guy continuava olhando para cima, sem dizer nada. — Guy!
— O quê?
— Você não ouviu? Preciso repetir tudo? — (
— O que eu poderia ter ouvido? Não ouvi nada, a não ser o que você disse, David. Do que você está falando?
David começou a descer lentamente.
— Esta coisa fala. Como você conseguiu isso? Instalou uma fita magnética? Um disco? Seja lá o que for, não vai ser destruído pela fumaça ou pelo calor?
Guy revirou os olhos e cochichou para não ser ouvido por seus assistentes:
— Você está falando sério?
— Você sabe muito bem que estou falando sério, Guy.
— Então, quer dizer que voltamos a nos chamar pelo primeiro nome?
— Será que não podemos abrir mão dessas formalidades, Ministro Diretor Potentado Blod? Essa coisa fala. Ouvi duas vezes e não estou maluco.
— Se você não está maluco, está enganado.
— Não me diga que não ouvi o que eu ouvi!
— Você deve estar ouvindo coisas, diretor Hassid. Não desgrudei os olhos dessa estátua desde que o molde me foi entregue. Não se trata de um enfeite para parques. Não quero saber de mexericos sobre figuras que se mexem. Está bem? Estamos entendidos? Posso pedir ao pessoal que comece a colocar meu garotão na posição certa?
David assentiu com a cabeça, desceu do andaime e afastou-se para permitir que uma empilhadeira monstruosa se posicionasse por trás da estátua. Seu telefone tocou. Assim que atendeu, ele ouviu um sinal indicando que havia outra chamada.
— Aqui é o diretor Hassid, aguarde um momento, por favor — ele disse, mas, enquanto tentava saber de quem partia a outra chamada, uma voz soou forte:
— Dav...!
Era Fortunato.
— Aqui é o diretor Hassid, aguarde um momento, por favor — ele disse, voltando a acionar o botão para falar com Fortunato.
— Desculpe-me, comandante. Estou observando o transporte da estátua e...
— Tudo vai dar certo, com ou sem sua presença, David. No futuro, espero não ter de ficar aguardando na linha.
David sabia que devia desculpar-se novamente para manter as aparências, mas não entendeu por que Fortunato insistira tanto na noite anterior para que ele estivesse presente ali antes das cinco horas. Agora o assunto parecia insignificante.
— Temos um problema — prosseguiu Fortunato. — Compareça à sala de reuniões no 18° andar o mais rápido possível.
— Devo levar alguma coisa? Posso saber do que se trata?
— Não. Quer dizer, sim. Trata-se do roteiro do capitão McCullum.
— Oh, ele...
— Avise-me quando chegar aqui, David. Rápido, por favor. David acionou o botão da outra chamada.
— Tão ocupado logo cedo, rapaz? — disse Rayford.
— Desculpe-me. O que houve?
David afastou-se enquanto falava, observando a estátua ser transportada para que a multidão pudesse vê-la. Os murmúrios aumentavam à medida que o povo se acotovelava, cutucando uns aos outros e apontando. A estátua estava inclinada e apoiada nos ganchos da empilhadeira. Só quando a posicionaram sob as luzes dos holofotes foi que o povo pôde vê-la por inteiro e au naturel, usando a expressão delicada de Guy.
Um sem-número de Ahs e Ohs ecoou no meio da multidão. Em seguida, o povo começou a aplaudir com entusiasmo.
— Que barulho é esse que estou ouvindo? — perguntou Rayford.
David contou-lhe resumidamente a história da estátua e complementou:
— Acho que eles demoraram tanto para ver o corpo que seriam capazes de adorar qualquer coisa que lhes mostrássemos.
Rayford pôs David a par dos últimos acontecimentos na Grécia.
— Sinto muito, capitão Steele. Só conversei com o Sr. Delanty algumas vezes por telefone, mas sei que vocês dois eram amigos.
— A situação está difícil demais, David. Eles não dão trégua. Às vezes, eu me sinto como se fosse uma ave de mau agouro. As pessoas que se aproximam de mim morrem logo.
David contou-lhe que estava a caminho de uma reunião misteriosa, e eles conversaram rapidamente sobre o que acontecera na Festa de Gala.
— Digam o que disserem, capitão, ficou evidente que o disparo foi acidental e que a bala não atingiu Carpathia.
— De qualquer forma, continuo sendo o bode expiatório, mas...
— Oh, capitão, aguarde um instante...
— Eu ouvi o povo gritar. O que aconteceu?
— A estátua quase tombou! Quando eles a colocaram no lugar, ela pendeu para a frente! O povo está fugindo dali. O condutor da empilhadeira levantou o guindaste para agarrar a estátua pelas costas para impedir que tombasse, mas ela pendeu para a frente outra vez! Não sei como ele conseguiu equilibrá-la. Agora eles estão tentando colocá-la na posição vertical. Que coisa horrível!
— David contou a Rayford sobre a fornalha embutida, mas não disse nada a respeito do que ouvira.
— Aquele movimento brusco deve ter atiçado o fogo, porque estou vendo a fumaça saindo — prosseguiu David. — Você sabia que eles estão queimando Bíblias e outros livros sagrados lá dentro?
— Não!
— Capitão, já estou dentro do prédio e ainda não perguntei o motivo de sua ligação.
— Estou na nova casa secreta, David.
— Verdade? E daí?
— Parece ser sensacional, mas temos um problema. O edifício deve ter travas automáticas em situações de emergência. Não podemos entrar. Você pode destravá-las daí?
David estava perto do elevador.
— Não posso continuar a conversa, capitão, mas acho que é possível. Vou tratar desse assunto assim que a reunião terminar. Só não faço idéia do tempo que vou permanecer lá.
Tsion recebeu uma ligação de Chloe, informando que eles chegariam muito tarde.
— Algum sinal da CG farejando por aí? — ela perguntou.
— Não — ele respondeu, sem contar que esteve a 150 milhões de quilômetros de Monte Prospect pelo menos durante dois minutos.
Chloe conversou rapidamente com Kenny, que afastava o telefone da boca querendo "ver a mamãe". Finalmente, ele disse:
— Amo você, tchau.
— Tsion — disse Chloe —, muito obrigada por tudo. Estou muito mais agradecida do que você pode imaginar.
— Kenny é uma criança dócil demais — ele disse. — E você sabe que eu o amo muito.
Ela instruiu Tsion sobre como alimentar Kenny e pediu que o colocasse na cama às nove da noite. Por mais que Tsion gostasse do menino, aquela era uma boa notícia. Geralmente, Kenny dormia a noite inteira.
David não teve tempo para preocupar-se com o motivo daquela reunião tão importante. Ele só esperava não ter de ficar a sós com Fortunato e foi o último a chegar. Havia ali uma dúzia de diretores mais o pessoal da TV, a maioria bocejando e esfregando os olhos.
— Vamos iniciar a reunião, pessoal — disse Fortunato. — Temos um problema grave. Ninguém quer ir embora da Nova Babilônia. Apesar do grande extermínio da população nos últimos três anos e meio, os hotéis estão lotados e o povo está permitindo que coloquem duas famílias em cada quarto. Outros estão dormindo nas ruas, debaixo de marquises. O aeroporto está apinhado de jatos de grande porte. Eles estão vindo para cá lotados e cancelaram a maioria dos vôos de volta por falta de passageiros. Vocês sabem o que está acontecendo, não?
— Eles não estão se contentando em apenas ver o corpo — disse uma mulher.
David a reconheceu. Era Hilda Schnell, chefe da rede CNN Comunidade Global.
— Foi bom você ter respondido à pergunta, Hilda — disse Leon. — Precisamos de sua ajuda.
— O que eu posso fazer? Também estou aqui por causa do funeral.
— Não estávamos preparados para uma multidão tão grande assim — disse Leon. — Vai chegar a ser o dobro da multidão que compareceu à Festa de Gala em Jerusalém.
— Eu não entendo como a CNN CG pode ajudar — disse Hilda. — Até mesmo na Festa de Gala fomos meros...
— Raciocine comigo — disse Leon. — Como você sabe, já retardamos o funeral para acomodar as multidões. Calculamos que um milhão de pessoas, ou mais, ainda aguardam para ver o corpo no momento em que estivermos prontos para a cerimônia. Há mais de três milhões de peregrinos aqui e outro milhão a caminho, e praticamente ninguém vai arredar pé. Vamos ter de reagrupar as pessoas. Onde estão aqueles telões que usamos em Jerusalém? Temos mais alguns?
Alguém da equipe do cerimonial disse que os telões estavam guardados na Nova Babilônia e que seriam suficientes para uma multidão maior que a de Jerusalém, desde que fossem complementados por monitores menores.
— Porém — ele prosseguiu —, isso vai exigir horas de trabalho e, é claro, uma esquematização do local em que serão instalados. No caminho para o pátio foram colocados cordões de isolamento, que não vão conseguir barrar uma multidão tão grande, principalmente se aqueles que já passaram pelo esquife permanecerem para assistir ao funeral. Não entendo por que esse povo continua na cidade se não havia planejado permanecer aqui.
— Este é exatamente o ponto que desejo atingir — disse Leon. — Já temos engenheiros trabalhando no novo esquema. E quero ser bem claro: há operários começando a reorganizar os cordões de isolamento, usando cadeiras, barricadas e coisas do gênero. Todo esse trabalho vai prosseguir sem interromper o andamento da fila. Se ela tiver de mudar de lugar, será necessário fazer isso com ordem, sem parar a caminhada do povo.
— Minha pergunta, Sra. Schnell — prosseguiu Fortunato —, é se seus equipamentos podem alimentar todos aqueles monitores. Algumas pessoas estarão a centenas de metros da tribuna.
— Não temos preocupações quanto a isso, comandante — disse a Sra. Schnell. — Nosso interesse é proporcionar a melhor cobertura do evento pela TV, tanto visual como por áudio, e deixar que os organizadores trabalhem como desejarem. Leon olhou para ela, com ar inexpressivo.
— O que estou sugerindo, minha senhora, é que vocês se preocupem. Temos cantores, dançarinos, oradores e tudo o mais para realizar uma cerimônia à altura daquele que estamos homenageando, seja qual for o número de pessoas presentes.
— Sim, senhor.
— O que quer dizer, minha senhora?
— Só quero que o senhor diga o que deseja de nós.
— Obrigado.
— Obrigada pelo privilégio. Agora Fortunato estava sorrindo.
— Já que os telões usados em Jerusalém estão aqui, diretor Hassid, não haverá necessidade de escalar um de seus pilotos para buscá-los. Eu gostaria muito de poder contar com todos os seus funcionários do hangar, do setor de cargas, inclusive os pilotos, para controlar a multidão. Viv Ivins coordenará os trabalhos, portanto informe a ela quantos estarão disponíveis e o nome de cada um.
— A cerimônia foi transferida para as 12 horas e o sepultamento para as 14 horas — prosseguiu Fortunato. — Os discursos de alguns dignitários serão abreviados, mas os horários estão confirmados e podem ser anunciados desde já. Sra. Schnell, entendo que este evento tem prioridade sobre todas as demais programações de modo que o mundo inteiro possa assisti-lo, inclusive aqueles que chegarão ao aeroporto tarde demais para vir até aqui, mas que poderão ver a cerimônia pela TV.
Ela assentiu com a cabeça.
David estava agitado por saber que Rayford, Chloe e Leah dependiam dele para entrar no Edifício Strong. Ele não tinha certeza se poderia destravar uma porta por meio de controle remoto, mas preferia estar estudando o assunto a ficar sentado assistindo a uma reunião sobre logística. Assim que Fortunato deixou os detalhes a cargo dos engenheiros, David saiu apressado da reunião.
A caminho de seu escritório, ele viu os operários trabalhando para transformar o imenso pátio em um local com condições de acomodar a multidão aguardada. De acordo com as notícias que ele viu de relance nos monitores enfileirados nos corredores do palácio, Leon estava certo. Pessoas de todas as nacionalidades e culturas eram entrevistadas no aeroporto e nas ruas. Quase todas manifestavam o desejo de assistir ao funeral, mesmo as que já haviam passado diante do esquife.
— Ele foi o homem mais importante que viveu na face da terra — disse um turco por meio de um intérprete. — O mundo jamais verá alguém semelhante a ele. Foi a pior tragédia que já enfrentamos, e só podemos esperar que seu sucessor possa levar adiante os ideais que ele implantou.
— O senhor acredita que existe alguma possibilidade de Nicolae Carpathia ser uma divindade? — perguntou o repórter.
— Existem todas as possibilidades! — respondeu o homem. — Creio que ele é o Messias que os judeus aguardaram durante séculos. E ele foi assassinado no país deles, conforme as profecias bíblicas.
David se acomodou diante do computador na privacidade de seu escritório, deixando ligada a TV que estava pendurada no teto em um dos cantos da sala. Após aquela entrevista, a CNN CG mostrou imagens ao vivo de Israel, onde milhares de pessoas ouviam pregadores entusiasmados, atendiam a seu convite para uma decisão por Cristo e ajoelhavam-se proclamando total submissão a Jesus, o Messias.
A correspondente em Jerusalém tinha a seu lado um especialista em religião, que tentava explicar os fatos.
— Houve um vazio gerado pelas mortes do chefe da
Fé Mundial Enigma Babilônia e do supremo potentado da Comunidade Global, a quem muitos consideravam uma figura mais religiosa que política, e agora o povo, sentindo-se espiritualmente faminto, tem pressa de preencher a lacuna. Ansiando por liderança e privados do homem que parecia ser a sua salvação, acharam por bem entrar nessa onda um tanto maluca de atribuir à histórica figura de Jesus Cristo as qualificações do Messias que Israel aguarda há tanto tempo.
— O fenômeno já existia no meio de alguns pequenos grupos conservadores das seitas fundamentalistas cristãs e foi incentivado, logo após os desaparecimentos, pelo Dr. Tsion Ben-Judá, um israelense estudioso da Bíblia. Ele foi encarregado pelo Estado de Israel de esclarecer os pré-requisitos do Messias para os judeus da atualidade. O Dr. Ben-Judá provocou um alvoroço, principalmente entre os judeus, quando, no final de uma transmissão de TV ao vivo, levada ao ar para o mundo inteiro, ele anunciou que Jesus, o Cristo, era a única pessoa na História que preenchia todas as profecias messiânicas e que os desaparecimentos eram a prova de que Ele havia voltado.
David ficou impressionado ao ver que o "especialista", embora visivelmente discordando do que estava acontecendo, tinha um bom conhecimento do assunto. Por ter aprendido os ensinamentos de Tsion, via Internet, David sabia que esse arroubo de evangelismo em Israel geraria o aparecimento de muitos outros falsos cristos e anticristos de categorias menores. O Dr. Ben-Judá citava com freqüência Mateus 24.21-24, insistindo para que seus seguidores — agora conhecidos como judaístas — ficassem atentos:
Porque nesse tempo haverá grande tubulação, como desde o princípio do mundo até agora não tem havido, nem haverá jamais.
Não tivessem aqueles dias sido abreviados, e ninguém seria salvo; mas por causa dos escolhidos tais dias serão abreviados.
Então, se alguém vos disser: Eis aqui o Cristo! ou: Ei-lo ali! não acrediteis; porque surgirão falsos cristos e falsos profetas operando grandes sinais e prodígios para enganar, se possível, os próprios eleitos.
Agora, David estava mergulhado no labirinto que era o interior do Edifício Strong. Enquanto vasculhava as inúmeras portas de segurança usando decodificadores que ele próprio criara, David falava ao telefone, prendendo-o com o rosto sobre o ombro.
— Capitão Steele — ele disse —, se eu conseguir o que quero, vou abrir uma das portas do estacionamento interno para vocês. Os portões continuam fechados, mas vocês podem contorná-los para chegar aos elevadores.
— Já estivemos perto de lá — disse Rayford. — Só precisamos que você abra as portas de vidro que dão acesso aos elevadores. Poderíamos quebrar o vidro, mas temos receio de acionar o alarme.
— Quem poderia ouvir o alarme?
— Ninguém, mas normalmente esses tipos de alarme são acoplados a toda sorte de aparelhos interligados, como acontece nos aeroportos. Quando alguém força a passagem por uma porta proibida, determinados sistemas são paralisados automaticamente.
— Acertou! — exclamou David.
— O quê?
— Você está dentro.
— Ainda nem chegamos àquele lado do edifício.
— Então, dirijam-se para lá — disse David. — Mal posso esperar para saber o que vocês descobriram. Preste atenção a esta boa notícia: os projetistas deste edifício fizeram duas coisas maravilhosas, como se soubessem que íamos precisar delas. Primeiro, a casa de força e a de telefonia, que tradicionalmente ficam no último andar, estão localizadas no primeiro, um acima do local por onde você vai entrar. Segundo, acho que descobri por que a estrutura abaixo do local atingido pelas bombas é tão firme. As plantas mostram aquilo que eles chamam de "compactação por efeito de camadas superpostas" a mais ou menos cada 15 andares. Acontece que existe exatamente uma compactação no andar inferior ao local atingido pelas bombas. Essa compactação serve de telhado para o edifício. Ainda não tenho certeza, mas talvez você possa pousar um helicóptero ali, se conseguir lidar com as complicações do desabamento de três paredes do andar superior.
— Helicóptero? — perguntou Rayford. — Se você ainda não entendeu, estamos na garagem.
— Eu posso ver vocês.
— Pode?
— Vocês estão vendo um monitor instalado no canto, à sua direita?
Os três acenaram positivamente para David, que quase fez o mesmo, esquecendo-se de que eles não podiam vê-lo.
— Eu estou vendo vocês — prosseguiu David. — A porta que está bem em frente a vocês deve ser destravada. E, sim, eu confirmo ter dito helicóptero.
— Onde vou conseguir um?
— Não sei — disse David. — Você conhece alguém que trabalhe no departamento de compras?
— Também vamos ter de começar a pensar em uma nova base aérea mais perto daqui. Mas desta vez vai ser diferente. Não temos mais amigos em Palwaukee.
— Que tal Kankakee?
— Talvez dê certo. O que você acha de convidarmos Albie para instalar lá uma pequena empresa de transportes, talvez a serviço de Laslos, que ainda goza da confiança da CG? Assim, vamos poder chegar e sair como quisermos, sem levantar suspeitas. E poderemos vir de helicóptero para cá quando for necessário.
— Gosto de sua maneira de pensar, capitão.
— E eu gosto das alternativas que você apresentou, David.
— Vou tentar acompanhar vocês daqui, andar por andar, por meio dos monitores — disse David. — Mas posso ser interrompido a qualquer momento. Você sabe onde estou.
Aparentemente, Leah e Chloe trabalhavam muito bem juntas. Embora pudesse ouvir apenas Rayford, David viu as duas mulheres verificando os ângulos de visão de diversas janelas.
— Leah quer falar com você, David. Aguarde um momento.
— Você está vendo as plantas do edifício? — perguntou Leah.
— Estou.
— Será que estou enxergando direito? Não podemos ser vistos da rua, pelo menos do lugar em que estamos agora?
— Não, não podem.
— E se acendermos as luzes?
— Eu não faria isso.
— Que tal pintarmos as janelas de preto usando tinta em spray?





DEZESSEIS

Às 22 horas de sábado em Illinois, Tsion havia conseguido duas façanhas muito complicadas: alimentar e trocar Kenny. Agora, o garoto dormia um sono profundo em seu berço no outro quarto. Tsion havia tirado o som da TV e limitava-se a olhar para o monitor de vez em quando, cansado de assistir àquela repetição interminável.
Quantas vezes ele vira a fotografia de Rayford e ouvira a grave conclusão a que chegara o Serviço de Inteligência e Segurança da Comunidade Global de que ele era o único assassino, o único atirador? Rayford também era constantemente chamado de judaísta. Pelo fato de conhecer o Comando Tribulação, Tsion sabia que, oficialmente, Rayford Steele deixara de existir. Ele não poderia jamais aparecer em público nem deixar qualquer pista referente a seu nome. Tsion orou para que Rayford fosse protegido durante o maior tempo possível.
Enquanto meditava sobre os textos e comentários bíblicos, Tsion tentava encontrar uma explicação para aquele sonho tão vivido. Ele suplicou a Deus que lhe concedesse outra oportunidade igual, porque desejava entender a experiência que tivera. As opiniões dos estudiosos divergiam quanto à mulher vestida como o Sol, aquela que usava uma coroa de estrelas e a Lua como pedestal.
Evidentemente, ela era simbólica, pois nenhuma mulher poderia ser tão grande assim nem daria à luz no espaço. Alguns acreditavam que ela representava o sexo feminino, conforme mencionado em Gênesis, quando Deus disse a Satanás que a mulher geraria um filho que lhe feriria a cabeça e que seria ferido por ele no calcanhar. Aquela era a profecia do nascimento de Cristo, e a mulher deveria ser Maria. Contudo, os detalhes apresentados acerca dessa mulher indicavam que ela poderia simbolizar Israel. Cristo nasceu em Israel, e Satanás continuava a perseguir e atormentar o povo escolhido de Deus até agora.
À medida que estudava os textos bíblicos a respeito de Lúcifer e sua expulsão do céu, Tsion convencia-se cada vez mais de que, quando viu o dragão arrastar a terça parte das estrelas do céu e elas caírem sobre a terra, ele foi testemunha da perpetuidade do passado. Geralmente, a Bíblia se referia a anjos como estrelas, tanto os virtuosos como os caídos, portanto ele acreditava que aquilo havia sido uma representação do momento em que Lúcifer foi expulso do céu pela primeira vez por causa do pecado do orgulho.
Porém, Tsion também sabia que Satanás havia recebido permissão para ter acesso ao trono de Deus até o ponto que marcava a metade do período da Tribulação — período este que Tsion acreditava estar vivendo naquele momento. Satanás era o acusador dos crentes, mas, quando ele perseguisse a mulher para devorar o filho dela, teria início uma grande batalha no céu e ele seria expulso para sempre.
Tsion não tinha certeza se havia adormecido novamente. Ele só sabia que a travessia do porão da casa secreta até o ar gelado da noite não lhe causou tanta estranheza como da vez anterior. Ele não estava preocupado com coisas temporais. Podia ver Kenny dormindo no berço e ele próprio cochilando no sofá, da mesma forma que podia ver os oceanos e os continentes do exuberante planeta azul. Que paz se vislumbrava dali de cima em comparação ao que de fato acontecia lá embaixo.
Quando ele chegou ao local designado, a mulher havia descido do pedestal. A vestimenta de Sol e a coroa de estrelas haviam sumido com ela. Contudo, o brilho intenso envolveu Tsion novamente, e ele estava ansioso por fazer perguntas antes que as imagens desaparecessem e ele acordasse. Apesar de saber que se tratava de um sonho, Tsion também sabia que ele vinha de Deus, da mesma forma que aconteceu com os profetas do passado.
Tsion virou-se para a luz, mais uma vez maravilhado diante do tamanho e da majestade do anjo.
— Miguel — ele começou a dizer —, aquela mulher é Maria ou...
— Miguel está empenhado na batalha, conforme verás em breve. Sou Gabriel, o anunciador.
— Oh! Perdoa-me, príncipe Gabriel. Podes dizer-me quem é a mulher? É Maria ou Israel?
— Sim e sim.
— Esta resposta não me ajudou conforme eu esperava.
— Quando meditares sobre ela, entenderás.
— E as doze estrelas na cabeça dela? Representam as tribos de Israel?
— Ou...? — instigou Gabriel.
— Ou os... os apóstolos?
— Sim e sim.
— Eu já sabia que essa seria a tua resposta. Então, essas coisas significam o que desejamos ou o que necessitamos que elas signifiquem?
— Não. Elas significam o que elas significam.
— Hã, hã.
— Filho da Terra, tu viste o que o menino recém-nascido tinha na mão?
— Sinto muito. Não vi.
— Um cetro de ferro com o qual ele governará as nações.
— Então, por certo Ele é Jesus...
— O Cristo, o Messias, o Filho do Deus vivo.
Tsion sentiu-se indigno até mesmo de ouvir a descrição. A sensação era a de que ele estava na presença de Deus.
— Príncipe Gabriel, para onde a mulher fugiu?
— Para o deserto, onde Deus lhe preparou um lugar. Ali, ela ficará protegida durante três anos e meio.
— Então, isso significa que Deus preparou um lugar no deserto para seu povo escolhido, onde eles também ficarão protegidos durante a Grande Tribulação?
— Tu o disseste.
— E o que aconteceu com o dragão?
— Ele está possuído de grande cólera.
— E Miguel? : Gabriel fez um gesto para um ponto atrás de Tsion.
— Olha.
Tsion virou-se e viu uma grande batalha sendo travada. Miguel e seus anjos empunhavam enormes espadas de dois gumes contra os dardos flamejantes do dragão e de seus anjos malignos. O exército do dragão avançava cada vez mais contra as forças poderosas de Miguel, mas não conseguiu prevalecer. Quando seus comandados recuaram atrás dele, o dragão correu em direção ao trono. A impressão foi a de que uma colossal porta invisível foi fechada violentamente diante do dragão. Ele caiu de costas e tentou avançar novamente para o local em que se postara diante do trono. Porém, do trono vinha uma voz insistente:
— Não. Aqui não há mais lugar para ti. Vai embora!
O dragão virou-se, quase consumido pela raiva. Debatendo suas sete cabeças e rangendo os dentes, ele reuniu sua tropa ao redor de si, e todos foram atirados à terra. Gabriel anunciou em grande voz:
— E foi expulso o grande dragão, a antiga serpente, que se chama diabo e Satanás, o sedutor de todo o mundo, sim, foi atirado para a terra e, com ele, os seus anjos. — E, em seguida, ele anunciou mais alto ainda, com grande alegria: — Agora veio a salvação, o poder, o reino do nosso Deus e a autoridade do seu Cristo, pois foi expulso o acusador de nossos irmãos, o mesmo que os acusa de dia e de noite, diante do nosso Deus. Eles, pois, o venceram por causa do sangue do Cordeiro e por causa da palavra do testemunho que deram, e, mesmo em face da morte, não amaram a própria vida. Por isso, festejai, ó céus, e vós os que neles habitais. Ai da terra e do mar, pois o diabo desceu até vós, cheio de grande cólera, sabendo que pouco tempo lhe resta.
— O que vai acontecer agora? — Tsion quis saber. Gabriel olhou para ele e cruzou os braços.
— O dragão perseguirá a mulher que deu à luz o menino, mas Deus a protegerá. Em sua ira, o dragão guerreará com o resto da descendência dela, aqueles que guardam os mandamentos de Deus e têm o testemunho de Jesus Cristo.
Agora, Miguel estava postado ao lado de Gabriel, com sua grande espada embainhada, seus guerreiros dispersos. Tsion não conseguia falar. Abriu a boca para proferir palavras de gratidão, mas estava mudo. E ele despertou. Ainda eram 22 horas.
Às nove horas, pelo fuso horário de Carpathia, a Nova
Babilônia era um mar de gente. Os oportunistas instalaram pontos de venda em todas as ruas que davam acesso ao pátio do palácio. Vendedores ambulantes de cadeiras, filtro solar, guarda-chuvas, garrafas d'água, alimentos e lembrancinhas assediavam os peregrinos. Alguns comerciantes eram expulsos pelas Forças Pacifícadoras da CG, mas voltavam a vender suas mercadorias um pouco mais adiante.
Ficou claro que a previsão de 40 °C seria superada antes do meio-dia. Foi instalado um toldo em cima do esquife para proteger do sol inclemente o corpo do potentado e os guardas. Quando uma pessoa da fila ou um funcionário do palácio desmaiava, alguém os transportava para as tendas médicas, onde eram hidratados, abanados e, às vezes, umedecidos com compressas de água fria.
David retornou a seu posto de observação localizado acima de uma das tendas médicas, que agora se encontrava a uns 200 metros do pátio para dar espaço à multidão. Barreiras, cordas e cercas improvisadas forçavam o povo a dar voltas e mais voltas a passos agonizantemente lentos até o esquife. Mágicos, malabaristas, palhaços, bailarinas de striptease e mascates tentavam distrair o povo. De vez em quando, irrompia uma briga, que era rapidamente contida pelas Forças Pacifícadoras.
Os operários continuavam a trabalhar rápido, finalizando a reconstrução das estradas que permitiriam o acesso de outras centenas de milhares de pessoas ao pátio. Os telões já estavam instalados e funcionando, da mesma forma que os incontáveis monitores em torno do palácio. Ao meio-dia, quando a cerimônia estivesse prestes a começar, a fila seria paralisada, e milhões de pessoas seriam afastadas da plataforma dos oradores, instalada ao lado do esquife, para uma distância de mais de um quilômetro.
Do local onde se encontrava, David ouvia as bandas, os corais e os dançarinos ensaiando seus números. Usando binóculos, ele avistou Annie dirigindo seu posto a uns 800 metros dali. O celular de David tocou. Era um guarda das Forças Pacificadoras do aeroporto.
— Diretor Hassid, há uma família aqui, procedente da China, que está à procura da filha, uma funcionária da CG chamada Ming Toy.
— Sim?
— Ela pediu aos pais que contatassem o senhor ou a chefe de cargas Christopher, caso não a encontrassem. Ela trabalha no Presídio de Reabilitação Feminina em Bruxelas.
— Eles sabem qual o lugar que ela deveria ficar aqui? Cada um recebeu um número.
O guarda cobriu o fone com a mão e fez a pergunta a eles.
— Não — ele voltou a dizer. — Eles acham que a filha estava tentando ser designada para trabalhar perto da Srta. Christopher.
— A Srta. Christopher está no Posto 53.
— Obrigado, senhor.
David continuou com os binóculos apontados para Annie e viu quando uma asiática trajando farda vermelha aproximou-se e ambas se abraçaram. Elas pareciam conversar animadamente, e Annie pegou o celular. O telefone de David voltou a tocar.
— Oi, benzinho — ele disse. — Os pais e o irmão de Ming estão vindo do aeroporto e vão procurar por ela em seu posto. Será que ela vai ser designada...
— David! — Annie sussurrou com força. — A CG norte-americana identificou o local da casa secreta!
— O quê?!
— Ming ouviu a conversa deles. Ela não pôde me avisar antes porque eles tomaram os celulares de todo o pessoal por questões de segurança. !
— Ligue para Tsion! Vou ligar para Steele.
Rayford acreditava que a nova casa secreta seria a maior dádiva concedida por Deus ao Comando Tribulação desde a chegada de Tsion Ben-Judá. Vários andares tinham ficado praticamente intactos, e todas as instalações funcionavam. Havia todos os tipos imagináveis de serviços e um número exagerado de banheiros para os novos ocupantes. Não era uma casa, é claro, portanto haveria necessidade de trazer camas ou fabricá-las. O local tinha espaço suficiente para acomodar centenas de pessoas, talvez mais. Rayford achava irracional imaginar que um grupo tão grande pudesse esconder-se ali sem ser detectado, mas ele sonhava em convidar todos os crentes desalojados que conhecia: a amiga de Leah de Bruxelas, o irmão dela, Albie, talvez futuramente o casal Miklos e todos os que trabalhavam no palácio da Nova Babilônia. Ainda era possível sonhar.
Rayford, Leah e Chloe estavam voltando para Monte Prospect. Logo após a meia-noite, horário da região central dos Estados Unidos, David ligou para dar a notícia.
— Annie está ligando para Tsion — disse David. — Ele vai ter de sair de lá.
— Há certas coisas que são necessárias — disse Rayford. — E Tsion não tem automóvel.
— Capitão, ele tem de sair de lá imediatamente.
— Vamos ter de buscá-lo, David. Você tem condições de nos dizer onde podemos dar de cara com a CG?
— No momento, não posso ajudá-lo. Vocês vão ter de correr alguns riscos.
— Vamos tentar falar com Tsion por telefone. Sabe-se lá onde a CG está ou quando pode aparecer. Nosso esconderijo é difícil de ser encontrado.
Tsion agradeceu a Annie e correu para desligar a energia elétrica, tentando respirar com calma. Tateou o caminho no escuro e encheu duas fronhas com gêneros de primeira necessidade. A TV ficaria para trás. Ele ajuntou os remédios essenciais, algumas obras de referência, todos os laptops, os pertences do bebê, um punhado de roupas e tudo o que foi possível guardar dentro das fronhas, deixando espaço suficiente para amarrar as bocas, e colocou-as ao pé da escada. Havia apenas uma maneira de sair do abrigo, ou seja, por onde ele entrara. Mesmo que cobrisse Kenny com um cobertor carregando-o com as duas fronhas até a garagem, ali seria o segundo lugar que a CG vasculharia.
Sua grande esperança era ouvir a CG chegar perto da escada, orar para que os guardas parassem ao sentir o mau cheiro por causa do alimento estragado no falso freezer, não vissem ninguém e fossem embora. Dessa maneira, ele estaria pronto para fugir assim que os outros chegassem.
Chloe ligou para Tsion à beira de um ataque histérico.
— Tsion, se a CG descobrir o porão, você vai me prometer que...
— Vou proteger o bebê com minha vida.
— Você tem de me prometer, Tsion, por favor! Debaixo de meu colchão há uma seringa com solução de cloreto de , potássio. O efeito é rápido, mas você vai ter de injetar a solução diretamente na nádega de Kenny. Não pode fazer isso por cima da fralda. Não vai dar certo. Você precisa ter a mão firme e segura.
— Chloe! Acalme-se! Não vou fazer nenhum mal a Kenny!
— Tsion — ela implorou, chorando —, por favor! Não deixe que eles peguem meu bebê!
— Não vou deixar. Mas não vou...
— Por favor!
— Não! Agora, preciso trabalhar! Tenho de observar e prestar atenção. Por enquanto, Kenny está dormindo. Deus está conosco.
— Tsion!
— Até logo, Chloe.
Tsion caminhou até a parte do porão onde as paredes eram mais finas e parou para ouvir se havia ronco de motores. Ou de passos. Portas. Janelas. Até agora, nada. Ele não queria cair em uma armadilha. Foi tentado a levar Kenny e as fronhas para a garagem e, em seguida, fugir dali, caso a CG arrombasse a casa. Era uma tolice, ele sabia. A pé, não chegaria a lugar algum. Seu sonho que durou mais que uma vida o colocara diante dos arcanjos de Deus. Mesmo assim, ali estava ele acovardado em um canto. Tsion calculou que Rayford deveria estar, na melhor das hipóteses, a uma hora de distância da casa secreta. E ainda que conseguisse chegar lá, se aparecesse quando a CG já estivesse por ali, teria de ir embora e desaparecer.
Tsion orou para que a CG demorasse um pouco mais, que viesse só no dia seguinte ou na semana seguinte.
Buck só se deu conta da extensão de seus ferimentos quando se sentou no jato apertado que faria o vôo para o outro lado do mundo. Ele se sentia 20 anos mais velho, estremecendo e, às vezes, gemendo quando se movimentava.
Duas horas depois de ter decolado dentro de um caça jordaniano reformado pilotado por Albie — um tipo de avião que Abdullah conhecia muito bem —, Buck recebeu a ligação de Leah sobre o pastor que queria conversar com ele. Buck autorizou-a a dar o número de seu celular ao pastor, mas pediu que ele fizesse a ligação de um telefone público. O resultado da conversa foi como um raio de sol iluminando um fim de semana angustiante.
— Seu irmão foi o primeiro — disse-lhe o pastor. — Enfrentou seu pai por ele teimar que era e sempre fora crente. Ele visitou sozinho a nossa igreja doméstica duas ou três vezes até que seu pai o acompanhou para não ter de ficar sozinho. Sr. Williams, levou um bocado de tempo para seu pai entender tudo.
— Imagino.
— Seu irmão também teve muito trabalho para convencê-lo. Ele parecia pronto, mas seu irmão sabia que não devia pressioná-lo. Um dos maiores obstáculos para seu pai foi ter de admitir que você estava certo e ele, errado.
Buck lutou para conter as lágrimas.
— Meu pai era assim mesmo. Mas por que...
— ... seu irmão não ligou para você? Por dois motivos. Primeiro, porque ele queria que seu pai lhe desse a notícia. Segundo, porque ele estava morrendo de medo de comprometer você. Ele conhecia muito bem a sua posição e o perigo que você corria, ou melhor, ainda corre.
— Só haveria problema se ele me ligasse de um telefone grampeado.
— Mas ele não sabia disso. Eu só quero que você saiba que seu pai e seu irmão se converteram de verdade, e tenho certeza de que eles estão com Deus neste momento. Eles sentiam muito orgulho de você. E pode dizer ao Dr. Ben-Judá que ele tem pelo menos uma igreja aqui que pode perder seu pastor, mas nunca vai fugir da luta. Nós gostamos muito dele.
Buck garantiu-lhe que contaria isso a Tsion. Faltava uma hora para chegar a Palwaukee quando Buck recebeu a ligação de Chloe a respeito da casa secreta.
Enquanto Chaim continuava deitado no banco traseiro, gemendo por causa de seus ferimentos, Albie parecia cada vez mais agitado à medida que ouvia o que estava acontecendo.
— Como a casa secreta foi descoberta? — Albie perguntou. — Foi a Srta. Durham que entregou vocês?
— Não sabemos, Albie. Mas o Dr. Ben-Judá e nosso bebê estão lá sem meio de transporte, e não temos idéia da distância que a CG se encontra, ou se Rayford vai conseguir chegar a tempo.
— Mas vocês têm uma nova casa secreta, um lugar para ir se precisarem sair de lá.
— É verdade.
— Pegue a sacola que está atrás de minha poltrona. Buck a pegou, calculando que talvez pesasse mais que Albie.
— O que você carrega aqui dentro? Albie estava inquieto.
— Pode abrir, por favor.
Por cima de tudo, havia roupas de baixo de Albie.
— Procure mais no fundo. Encontre uma pistola e um coldre.
Ao vasculhar a sacola, Buck encontrou uma roupa parecida com uma farda da CG.
— É o que eu estou pensando?
Albie assentiu com a cabeça, satisfeito.
— Veja o quepe. Verifique a patente. Buck deu um assobio.
— Subcomandante? Onde você conseguiu isso?
— Nada de perguntas, só respostas.
— Vamos, você já trabalhou para a CG?
— É melhor você não saber.
— Trabalhou?
— Não. Chega de perguntas.
— Só me diga onde você...
— Eu tenho minhas fontes. As fontes são a minha vida. Ligue para Rayford. Diga a ele para nos buscar em Palwaukee.
— Ele não deve chegar à casa secreta?
— Precisamos de um veículo. Precisamos dele tanto quanto Rayford.
— Por quê?
— Espere para ver. Onde posso vestir a farda em Palwaukee?
— Você vai...?
— Não faça perguntas. Só responda.
— Há um lugar — disse Buck. — Eu posso lhe mostrar.
— Algum lugar onde a gente possa deixar Tobias Rogoff?
— Eu não faria isso. Agora não conhecemos mais ninguém lá.
— Está bem. Procure meus documentos na sacola. Entre o fundo falso e o verdadeiro.
Buck encontrou a carteira de identidade de Albie, exatamente onde ele disse, dentro de uma carteira surrada de couro.
— Abra, por favor. Quantas pessoas vão estar no veículo? Seis?
Buck pensou um pouco e confirmou.
— E o Sr. Rogoff precisa de um banco inteiro só para ele.
— Talvez não.
— Espero que não. Temos gente demais. Encontre os documentos que correspondem à farda.
Buck procurou até encontrar os documentos que provavam a alta patente de Albie dentro das Forças Pacificadoras da CG. A fotografia do homem com olhar esperto era de Albie, mas com nome diferente.
— Marcus Elbaz? — perguntou Buck.
— Exijo que me chame de subcomandante Elbaz, cidadão — disse Albie com tanta convicção que, por um momento, Buck imaginou que o piloto estivesse aborrecido. Buck fez uma continência, e Albie respondeu com o mesmo gesto.
— Agora, ligue para Steele — disse Albie.
Rayford sentia-se angustiado pelo fato de Chloe estar tão determinada a matar Kenny para não deixá-lo cair nas mãos do inimigo. Mas, como pai, ele era capaz de entender os motivos da filha. O que mais o aterrorizava era que ela chegara ao ponto de deixar uma injeção preparada.
Rayford havia encontrado um caminho que levava a um pequeno trecho de uma estrada desobstruída, sem deixar evidente que saíra de uma área restrita. Agora, precisava encontrar atalhos e contornar escombros e crateras, tomando o máximo cuidado para não violar nenhuma lei de trânsito. Depois que se livrasse dos outros carros, ele compensaria o tempo perdido, acelerando à toda até chegar à casa secreta, mesmo com seus passageiros batendo a cabeça no teto do Land Rover por causa dos solavancos.
A ligação de Buck deixou-o perplexo, e Rayford pediu para falar com Albie.
— Qual é a sua, amigo? O que está aprontando?
— Você confia em mim, capitão Steele?
— Sempre confiei, mais de uma vez.
— Então, continue confiando. Você vai para Palwaukee e espera por nós. Esteja preparado para me levar à casa secreta o mais rápido que puder. No caminho, eu explico o que vamos fazer. Se tivermos sorte, vamos chegar antes da CG e tirar o rabino e o bebê de lá. Se dermos de cara com o inimigo, tudo vai depender de mim.
Tsion orava enquanto aguardava, mas Deus não havia acalmado seus temores. Ele havia passado por vários perigos naquele dia, mas aguardar a chegada do inimigo era o pior de todos. Andando na ponta dos pés, ele observava e ouvia com atenção. De repente, avistou a TV e curvou-se para ligá-la. Queria apenas ver o que se passava. Mas ela continuava apagada. Claro! Ele deu um tapa na testa. Havia desligado a energia elétrica.
David detestava esta situação mais que qualquer outra no seu trabalho às escondidas dentro do campo do inimigo: saber tudo o que estava acontecendo a meio mundo de distância e não poder fazer nada, a não ser advertir seu pessoal e abrir a porta do arranha-céu.
Não havia mais nada que ele, Annie ou Ming pudessem fazer dali da Nova Babilônia. Os atores estavam em seus lugares, e os perigos eram verdadeiros. Agora, era esperar para ver o final da história.
Os pais e o irmão de Ming ser reuniram com ela no Posto 53, e David ficou admirado com a formalidade deles. Ele viu, com a ajuda dos binóculos, Ming e Chang se abraçarem com entusiasmo e emoção. Ming beijou a mãe de leve no rosto e cumprimentou o pai com um aperto de mão. A conversa ficou animada e, em seguida, Annie ligou novamente para David.
— O Sr. Wong sente-se ofendido por você não estar aqui para recebê-lo.
— É que eu não posso fazer quase nada sobre...
— David, venha até aqui, por favor.



DEZESSETE

— Eu confio em Albie — disse Rayford —, mas não estou gostando dessa história.
— O que você acha que ele está aprontando? — perguntou Chloe.
— Não sei. Ele é um sujeito muito esperto. O problema é que temos apenas um veículo.
— Obrigada por me lembrar — disse Chloe.
— Seria melhor se ele conseguisse outro carro em Palwaukee. Não gosto de deixar Tsion e Kenny nessa situação.
Leah, sentada no banco traseiro e com o cinto atado, apoiava as mãos no teto do carro para não bater a cabeça.
— Quanto tempo ainda falta, papai? — ela perguntou. E Chloe fez uma careta, mas Rayford disse:
— Pelo menos alguém aqui está conseguindo manter o bom humor.
— David — disse Buck ao telefone —, Albie quer falar com você. O que está acontecendo aí? Estou ouvindo o barulho da multidão.
— Digamos que estou abusando de meu cargo e me apropriei de um carrinho de golfe da administração. Estou indo resolver um problema de relações públicas. Pelo menos, posso ver Annie. Onde vocês estão?
— Não sei ao certo. Converse com o piloto.
Buck passou o telefone a Albie e ouviu a conversa enquanto olhava pela janela.
— David, meu amigo, que bom falar com você novamente. Vou gostar muito de trabalhar com você... Estamos a 45 minutos de Palwaukee. Se eu me apresentar como funcionário da CG, eles vão pedir o código de segurança?... Vão? Existe algum que eu possa usar? — Albie cobriu o fone com a mão. — Buck, anote para mim... Está bem, pode dizer... 0-9-2-3-4-9. Entendi... Quer dizer que qualquer coisa que comece com 0-9 pode ser usada no futuro e vai passar por você para receber autorização?... Ótimo... Helicóptero? Claro que sim! Você pode fazer isso?... CG? Perfeito!... Posso dizer à torre quando ele vai ser entregue?... OK! Sei que em breve vamos nos encontrar.
David surpreendeu-se ao ver a multidão heterogênea que lotava as ruas que davam acesso ao pátio. Pessoas de todas as raças e culturas caminhavam lentamente em direção ao palácio — jovens e velhos, ricos e pobres, usando roupas de todas as cores. Muitos tinham o semblante triste, como se realmente não soubessem o que fariam sem Nicolae J. Carpathia para liderá-los ao longo de uma época tão tumultuada.
David ligou para Mac.
— Onde você está, capitão?
— No setor 94. Muito divertido.
— As pessoas devem adorar seu uniforme.
— Ah, sim, elas querem saber se conheço pessoalmente o supremo comandante.
— E com certeza você diz a elas quanto se sente emocionado por conhecê-lo.
— O que você deseja, David?
— Preciso que você faça algumas ligações para mim. Telefone para a torre de Palwaukee e... você tem uma caneta para anotar?... mencione o código de segurança 0-9-2-3-4-9. Diga que um funcionário nosso precisa estacionar um caça egípcio no hangar de lá. Alguém vai buscar esse funcionário em um carro com dois passageiros e eles não podem perder tempo com autorizações e papelada. Cuidaremos de tudo daqui da Nova Babilônia. Em seguida, ligue para nossa base em Rantoul.
— Illinois?
— Correto. Diga a eles que necessitamos de um helicóptero em Brookfield, Wisconsin, mas tudo o que têm a fazer é levá-lo até Palwaukee. Depois, podem deixar por nossa conta. Diga o mesmo à torre de Palwaukee. Você pode fazer isso?
— Xi, não sei, David. Sou muito melhor na cabina de comando que no telefone. O que está balançando tanto aí?
— Depois eu lhe conto. Faça as ligações. Conversaremos mais tarde.
David chegou ao setor 53, onde Annie estava acalmando e controlando a movimentação do povo. Ela respondia a perguntas sobre os horários da cerimônia e do sepultamento e também dizia ao povo onde encontrar água, sombra, remédios e coisas do gênero. Em público, é claro, ela precisava ser formal com David.
— Seja bem-vindo, diretor Hassid. Eu gostaria que o senhor conhecesse nossos convidados especiais da China, o Sr. e a Sra. Wong, sua filha Ming Toy, que trabalha conosco na Bélgica, e o filho deles, Chang.
David cumprimentou a todos com um aperto de mão. O Sr. Wong estava visivelmente insatisfeito.
— Que língua você fala? — ele perguntou.
— Inglês — respondeu David. — E também hebraico.
— Nada bom — disse o Sr. Wong. — Nenhuma língua asiática?
— Não, sinto muito.
— Fala alemão? Eu falar alemão. Inglês muito pouco.
— Não falo nada de alemão. Sinto muito.
— Pode conversar comigo?
— Com muita honra, senhor.
— Perdoa meu mau inglês?
— Certamente. Talvez sua filha possa traduzir.
— Não! Você entende.
— Vou tentar.
— Eu estar ofendido. Você não encontrar comigo no aeroporto. Minha filha avisar você sobre chegada nossa.
— Fui avisado por terceiros, senhor, mas estava muito ocupado. Peço-lhe que me perdoe.
— VIP! Eu ser VIP por causa de negócios. Dar muito dinheiro para Comunidade Global. Ser grande patriota. Patriota Global.
— O senhor é muito conhecido aqui, e estimamos muito sua filha. Por favor, aceite minhas desculpas em nome de toda a diretoria da CG por nossa falha em não recebê-lo com toda a honra que o senhor merece.
— Filho meu vai trabalhar para você um dia. Muito novo ainda. Só tem 17.
David olhou de relance para Chang e viu o selo na testa dele.
— Aguardo ansiosamente, mais do que o senhor imagina — disse David —, ter seu filho como colega quando ele completar 18 anos, senhor.
— Família inteira minha muito triste por Nicolae. Grande homem. Grande homem.
— Vou transmitir seus pêsames ao supremo comandante.
— Eu conhecer supremo comandante!
— O senhor o conhece?
— Não! Quer conhecer!
— Sinto muito, mas recebemos instruções de não marcar nenhuma reunião pessoal para ele nesta semana. O senhor deve compreender. Os pedidos são muitos.
— Quer sentar em lugar especial! Você consegue lugar especial?
— Oh, não sei. É muito difí...
O Sr. Wong sacudiu a cabeça, e sua esposa segurou o braço dele para acalmá-lo.
— Ninguém no aeroporto — ele reclamou. — Não pode conhecer supremo comandante. Fim de fila. Você arruma lugar na frente?
— Vou ver o que posso fazer.
— Não! Você consegue lugar especial para funeral. Querer lugar no pátio.
— Vou ver o que posso fazer.
— Você vê já. Diz já. Leva nós já...
David deu um longo suspiro e pegou o telefone.
— Margaret, temos ainda algum lugar na ala VIP?... Eu sei... Eu sei... três.
— Não! Filha senta junto com nós. E você! Cinco.
— Cinco, Margaret... Eu sei. Estou no meio de uma situação embaraçosa. Fico lhe devendo essa... Dentro do pátio? Isso é bom demais, mas devo ficar na ala do setor administrativo e...
— Nós sentar com você! Você pode! Quatro mais você em lugar especial.
— Estou tendo problemas para acalmá-lo, Margaret... O problema não é seu, eu sei... Sim, é meu. O que você pode fazer para me ajudar?... Verdade? Que bom. Podemos matar dois pássaros, conforme dizem. Fico lhe devendo um favor... Eu sei. Obrigado, Margaret.
David virou-se para o grupo.
— Parece que o escultor compreendeu mal e reservou lugares para seus assistentes se sentarem ao lado dele no setor administrativo. O supremo comandante vai consertar essa situação.
— Eu não entender. Nós sentar lá?
— Sim. O escultor vai ser "homenageado" ao lado da estátua em companhia de seus assistentes.
— Nós sentar com você ou não?
— Sim, vocês sentam comigo.
— Ótimo! Filha também?
— Também.
— Ótimo. Amiga dela também? — ele insistiu, apontando para Annie.
— Ah, não. Bem que eu gostaria.
— Eu não posso, Sr. Wong — disse Annie. — Preciso ficar aqui durante a cerimônia.
— Está bem. Só nós, então.
Na madrugada de domingo, Rayford entrou a toda velocidade no Aeroporto de Palwaukee, levantando uma nuvem de poeira. O lugar estava deserto, com apenas uma luz acesa na torre. A única pista iluminada era a que servia de pouso para os jatos. Rayford encostou a cabeça no volante do carro.
— Continuo orando para que a gente esteja fazendo a coisa certa — ele disse. — Chegar tão perto da casa secreta e não saber como Tsion e Kenny estão...
Leah inclinou-se para a frente.
— Mesmo que a CG vasculhe o local e não descubra o abrigo subterrâneo, poderíamos entregar nosso pessoal caso aparecêssemos lá.
— Eu sei — ele disse — mas eu só...
— É isso mesmo! — disse Chloe. — Papai está certo. Precisamos nos arriscar para chegar à casa secreta e tirá-los de lá. Você sabe o que a CG está fazendo com os judaístas. Eles mataram todos da casa de Chaim e atearam fogo. Mataram o pai e o irmão de Buck e atearam fogo na casa deles. E se eles não encontrarem Tsion e Kenny mas incendiarem a casa por terem certeza de que morávamos lá? Tsion teria de sair correndo da casa em chamas.
— Chloe — disse Rayford —, acho que devemos seguir o esquema de Albie, seja lá qual for.
— Ele não conhece nossa situação.
— Buck já o colocou a par de tudo. E Albie está certo dizendo que não faz sentido um de nós ir até a casa secreta e deixar os outros aguardando uma carona aqui. Se ficar claro que a CG ainda não esteve lá, precisamos pegar tudo o que pudermos na casa e fugir. Seremos oito pessoas, incluindo o bebê, e não vamos ter espaço para acomodar nossas coisas.
— Tenho certeza de que Tsion vai pensar em pegar os computadores e gêneros de primeira necessidade.
Rayford assentiu com a cabeça.
— Acho melhor ligar para ele outra vez — disse Chloe. — Talvez ele não se lembre de pegar os notebooks com os dados da cooperativa.
— Você não tem essas informações em seu computador? — perguntou Leah.
Chloe lançou-lhe um olhar de censura.
— Eu sempre faço backups de meus arquivos.
— Em disquetes, certo?
Chloe suspirou fundo, sem responder. E ligou para Tsion.
David tentava acomodar a família Wong no carrinho de golfe, de dois bancos, indicando para Ming Toy o banco da frente, ao lado dele. O pai, a mãe e Chang se sentariam no banco traseiro. Porém, o Sr. Wong não saiu do lugar, resmungando alguma coisa sobre "lugar de honra". Ming resolveu sentar-se com a mãe e o irmão no banco traseiro. Depois de acomodar-se no banco da frente, com o corpo ereto e o peito estufado, o Sr. Wong olhou com ar de orgulho para David, que começou a manobrar o carrinho cuidadosamente para atravessar a multidão rumo ao pátio do palácio.
— Os dignitários só começarão a ocupar seus lugares após as 11h30 — disse David. — Primeiro, serão os dez potentados regionais e suas comitivas, depois o pessoal da administração e seus convidados.
— Eles deixam você sentar primeiro — disse o Sr. Wong, confiante. — E nós ir com você.
— Eles vão obedecer ao protocolo.
— Eu falar com supremo comandante Leon Fortunato. Ele deixa nós sentar primeiro.
— Neste momento, ele está cumprimentando os dignitários e organizando a procissão, Sr. Wong. Vamos ficar perto da área do palanque, e tenho certeza de que ele nos acomodará no momento apropriado.
— Quer sentar agora, ver tudo, pronto para programa. — O Sr. Wong virou-se para trás e pôs a mão no joelho do filho. — Isso espetacular, não? Você trabalhar aqui um dia, orgulhoso servir Comunidade Global. Honrar memória Carpathia.
Chang permaneceu em silêncio.
— Eu saber o que você quer, filho. Você não saber o que dizer. Precisa ser patriota como eu. Dever. Honra. Servir.
David encostou o carrinho perto de uma área isolada, onde alguns dignitários já estavam se enfileirando para dirigir-se ao setor VIP. Controlando a entrada, estava Ahmal, um funcionário de David.
— Deixe o carrinho por nossa conta — disse Ahmal. — O senhor e seus convidados podem aguardar debaixo do toldo na seção G.
— Obrigado, Ahmal.
— Você não apresenta! Você anfitrião grosseiro!
— Mil desculpas — disse David. Ele apresentou a família a Ahmal, destacando a colaboração do Sr. Wong à CG.
— É uma honra, senhor — disse Ahmal, erguendo uma das sobrancelhas e olhando para David.
— Nós sentar agora.
— Ainda não — disse Ahmal. — O senhor deve aguardar na fila da seção...
— Grande colaborador de Carpathia, Fortunato e CG não poder aguardar na fila. Ninguém sentado lá. Nós sentar lá agora.
— Oh, senhor, sinto muito. Haverá uma procissão. Muito bonita. Música. Vocês vão participar.
— Não! Quer sentar agora!
— Pai — disse Ming —, será melhor, mais bonito, se todos nós chegarmos juntos, ao mesmo tempo.
A Sra. Wong tentou segurar o braço do marido, mas ele a repeliu.
— Eu vai sentar! Você não querer, você ficar! Onde está lugar?
Ahmal olhou para David, que limitou-se a encolher os ombros.
— Sr. Ahmal verifica lugar! Onde eu sentar?
— Bem, a sua fileira é a D-3, senhor, mas ninguém...
— Eu sentar — ele disse, passando por Ahmal e tentando ver se alguém o impediria.
— Ele vai se complicar sozinho — disse David. — Deixe que ele faça o que quiser.
O Sr. Wong provocou um alvoroço na multidão quando subiu a escada que dava acesso ao anfiteatro e começou a procurar sua cadeira. Até mesmo as pessoas que estavam na plataforma tiveram a atenção voltada para aquele homem que queria sentar-se antes dos demais. Alguém aplaudiu, imaginando tratar-se de uma autoridade. Outros fizeram o mesmo. Em breve, todos tomaram conhecimento de que um asiático estava sentado no setor VIP, e as pessoas colocavam a mão aberta na testa para proteger os olhos, tentando ver se o reconheciam.
— Deve ser o potentado dos Estados Unidos Asiáticos — disse alguém perto de David.
O Sr. Wong agradeceu à multidão curvando levemente a cabeça.
— Ele velho bobo — disse a Sra. Wong, provocando risos no filho e na filha. — Nós aguardar aqui com Sr. diretor Hassid.
— Acho que vou ter de sair daqui por alguns momentos — explicou David. — Volto em seguida. Vocês vão ficar bem?
A Sra. Wong parecia perdida, mas Ming segurou-lhe a mão e fez um gesto de positivo para David.
David passou por trás do palanque para verificar o andamento dos aspectos técnicos. Tudo parecia em ordem, apesar da escassez de água. A temperatura já alcançava 42°C, com tendência a subir mais. O pessoal da CG usava panos úmidos sob os quepes. Cantores, dançarinos e instrumentistas colocavam-se em seus respectivos lugares. Monitores espalhados pelo local mantinham os técnicos de TV informados sobre o que se passava.
Depois de subir a escada dos fundos que dava acesso ao esquife, David passou por uma fila de guardas armados e parou atrás do toldo que protegia o esquife e os guardas do sol forte, agora a pino. Ao olhar para o pátio com os olhos semicerrados, percebeu ondas de calor emergindo do asfalto e a fila caminhando cada vez mais lenta. Muitas pessoas consultavam seus relógios, e David deduziu que elas estavam tentando conseguir lugares mais à frente para assistir à cerimônia.
Se não houvesse alguém que apressasse os peregrinos para passarem diante do esquife mais rapidamente, eles continuariam naquele ritmo lento, caminhando devagar e parando na esperança de ficar ali até o início das festividades, como se tudo fosse uma imensa brincadeira da dança das cadeiras.
David olhou para o esquife cercado por guardas armados e se perguntou como o vidro poderia agüentar aquele calor tão forte. O fechamento a vácuo parecia resistente e era verificado de hora em hora pelo técnico. Será que o calor derreteria o material, acumulando vapor dentro do esquife como se fosse uma panela de pressão? David tentou ver se a temperatura não estaria comprometendo a maquiagem, a cera ou a massa de calafetação que a Dra. Eikenberry usara. Como seria constrangedor se o corpo verdadeiro estivesse na geladeira do necrotério e o falso esquentando a ponto de derreter diante do mundo!
— Parem a fila, por favor! — soou uma voz pelo megafone um pouco abaixo e atrás, à direita de David.
Dois guardas correram naquela direção e pararam diante de um casal holandês que trajava roupas nativas apropriadas para a ocasião. Eles pareciam arrependidos por estar vestidos daquela maneira, tinham o rosto vermelho, transpiravam e ofegavam. Contudo, demonstraram satisfação quando foram conduzidos para os primeiros lugares da fila a uns 30 metros da escada. Enquanto o casal aguardava e a multidão que vinha atrás parou para entender o que se passava, algumas dezenas de peregrinos, na frente da fila, prosseguiram a caminhada.
Quando os últimos passaram diante do esquife e começaram a dirigir-se para a escada do outro lado, uma onda de silêncio tomou conta do local. Todos olharam para o pátio com ar de expectativa aguardando que eles desobstruíssem a área. Mas ninguém queria sair dali, e a programação só iniciaria depois que o local estivesse vazio.
Finalmente, desceram a escada e muitos se sentaram no chão. O asfalto estava tão quente que precisaram tirar algumas peças de roupa para sentar-se sobre elas.
Depois que todos se acomodaram, o silêncio de mais de quatro milhões de pessoas tornou-se sinistro. David desceu a escada atrás da plataforma e viu que o palanque estava lotado, todos em seus devidos lugares, desde Fortunato e seus ministros até os dez potentados regionais e suas comitivas. Atrás deles, as altas patentes da CG formaram uma fila em torno do pátio.
À esquerda de David, uma pessoa com uma prancheta na mão e fones de ouvido fez sinal para o maestro. Os 100 músicos da orquestra, composta de homens de fraque e mulheres com vestido longo preto, subiram a escada dos fundos e se dirigiram a uma plataforma à esquerda do palanque. Com o rosto suado e transpirando muito, eles se sentaram e posicionaram os instrumentos, aguardando o sinal do maestro.
— Senhoras e senhores — soou a voz vinda do gigantesco sistema de som ecoando por todo o pátio e ressoando a quase um quilômetro, acompanhada de tradução simultânea em três idiomas principais. — O supremo comandante da Comunidade Global, Leon Fortunato, e a administração do governo mundial gostariam de manifestar seus sinceros agradecimentos pela presença de todos para a cerimônia fúnebre em memória do ex-supremo potentado Nicolae J. Carpathia. Por favor, em homenagem à ocasião, tirem o chapéu durante a execução do hino "Salve, Carpathia, Amado, Divino e Forte" pela Orquestra Internacional da Comunidade Global.
Enquanto a orquestra tocava, o choro tomou conta da multidão, transformando-se em soluços convulsivos que ressoavam por todo o pátio. O grupo vocal da Comunidade Global apresentou-se cantando músicas em louvor a Carpathia. O número seguinte foi executado por um grupo de dançarinos, que parecia mover-se em câmera lenta e com extraordinário equilíbrio ao som da música e do choro da platéia. Enquanto eles executavam seu número, os convidados VIPs aplaudiam discretamente.
Finalmente, David dirigiu-se a seu lugar ao lado do Sr. Wong, que fitava reverentemente o palanque, com lágrimas escorrendo pelo rosto e as mãos cruzadas sobre o coração. , David protegeu os olhos com a mão e perguntou a si mesmo se estava preparado para ficar sentado sob aquele calor intenso durante duas horas. Seu lugar ficava à esquerda, com ampla visão para a tribuna e o esquife a uns três metros de distância.
Quando a música terminou, a orquestra, os cantores e os dançarinos saíram. Fortunato e os dez potentados, com rosto marcado pela tristeza, formaram uma fila atrás do esquife. Outro guarda armado juntou-se a seus companheiros perfilados perto do esquife. Dois postaram-se na frente e dois atrás.
Os telões e os monitores exibiam cenas da vida de Carpathia. A festa de seu quinto aniversário na Romênia, ele abraçando seus pais na formatura de segundo grau com uma espécie de troféu em cada mão, recebendo um prêmio na faculdade, ganhando a eleição na Romênia, assumindo a presidência daquele país, falando na ONU três anos e meio antes e, em seguida, ocupando várias posições importantes. A música que acompanhava as cenas era comovente e triunfal, e o povo começou a bater palmas com entusiasmo.
A multidão chegou ao delírio quando Nicolae apareceu anunciando o novo nome do governo mundial, cortando a fita de inauguração do exuberante palácio e saudando o povo na Festa de Gala uma semana antes em Jerusalém. Agora, os motores dos caças a jato zumbiam vindo do leste e sobrevoavam o evento, enquanto eram exibidas as cenas de Carpathia ridicularizando e desafiando as duas testemunhas diante do Muro das Lamentações. O povo gritou de alegria quando Carpathia atirou nos dois. Evidentemente, a exibição não mostrou a ressurreição deles, que foi acusada de fraude.
A multidão voltou a silenciar quando os caças a jato se distanciaram e começou a ser executada uma música melancólica. Os telões mostraram novamente Carpathia na Festa de Gala, começando com uma cena que apresentava grande parte da devastação a partir do terremoto. Depois de focalizar Nicolae, foi mostrada em câmera lenta a cena em que ele agradeceu à multidão, apresentou Chaim Rosenzweig e fez uma brincadeira com os potentados. Suspiros e gemidos acompanharam a exibição, também em câmera lenta, do momento em que ele se desviou de uma fumaça branca partindo da multidão, tombou sobre o Dr. Rosenzweig e caiu no chão, enquanto o povo fugia do local.
O filme mostrava Nicolae sendo transportado para um helicóptero ostentando o logotipo da CG. Naquele momento, uma montagem exagerada das cenas tomou conta dos telões, exibindo o helicóptero subindo ao lado do palanque, inclinando-se para a esquerda, passando por cima das luzes e quase desaparecendo na escuridão, dando a impressão de estar voando cada vez mais alto até ultrapassar as nuvens rumo à imensidão do espaço.
Subindo cada vez mais alto, para delírio da maior concentração humana da História, a imagem do helicóptero foi-se diluindo até sumir de vez. Agora, os telões exibiam apenas o espaço e uma grande imagem se formando. Os jatos retornaram, mas ninguém prestou atenção neles. O povo olhava atentamente para os telões nos quais se formava a imagem de um homem tão grande quanto os céus. Em pé no meio dos planetas, trajando um dramático terno preto, camisa branca e gravata de cores vivas, pés afastados um do outro, braços cruzados diante do peito, dentes reluzentes, olhos faiscantes e confiantes, lá estava Nicolae, olhando ternamente para seus seguidores.
A imagem do olhar benevolente de Carpathia foi congelada, e os gritos da multidão foram ensurdecedores. Todos se levantaram e aplaudiram calorosamente. David foi obrigado a ficar em pé para não levantar suspeitas. Com as mãos cruzadas diante do corpo, ele olhou de relance para Ming e Chang, cujos semblantes pareciam de pedra. Uma lágrima rolava pelo rosto de Chang. David se deu conta de que ninguém estava olhando para ninguém, tamanha era a devoção a Carpathia.
O simbolismo não podia ser deixado de lado. Ele havia sido assassinado. Estava morto. Mas Nicolae continuava vivo em todos os corações. Ele era divino e estava no céu cuidando de seu povo.
Quando, finalmente, a imagem desapareceu e a música cessou, Fortunato postou-se diante da tribuna, com o rosto marcado pela emoção. Quando Leon espalhou suas anotações diante de si, David observou que ele usava um reluzente terno escuro, camisa branca e gravata de cores vivas. A roupa não combinava com o pobre Leon, mas, aparentemente, ele tinha a pretensão de suceder Carpathia no trono do mundo, e fazia o possível para alcançar esse objetivo.
— Queria saber se foi Hattie quem nos delatou — disse Chloe quando o jato egípcio apareceu no céu.
— Não temos meios de saber — disse Rayford —, a não ser que ela nos conte. Não podemos entrar em contato com ela, você se lembra? Agora somos como uma pista de mão única.
Assim que o jato pousou na pista, a luz da torre foi apagada. Um homem gordo de meia-idade desceu a escada e apareceu na porta. Ali estava um sujeito que tinha um dever a cumprir, e era o que ele fazia naquele momento.
— Vocês estão aqui para pegar o pessoal da CG, certo? — ele gritou.
— Positivo — disse Rayford.
— Seu número é o que me deram? 0-9-2-3-4-9?
— Correto.
— Fiquem onde estão. O aeroporto está oficialmente fechado, e eu preciso direcionar o jato até o hangar e acomodar rapidamente as pessoas.
Ele correu até a ponta da pista e começou a fazer uma série de movimentos com sua prancheta para dirigir Albie até o hangar. Seria mais eficiente se ele usasse uma lanterna.
Aquilo divertiu Rayford. Ele sabia que Albie já havia estacionado aeronaves em hangares milhões de vezes mais que qualquer outro piloto. Rayford viu o jato mudar o curso e virar em direção ao homem da torre. Ele saiu correndo da pista, enquanto o jato passava zumbindo, e terminou seus sinais com um floreio, como se Albie tivesse seguido suas instruções.
Enquanto o homem corria na direção do hangar para verificar se tudo estava em ordem, Chloe desceu do carro e passou por ele. Rayford seguiu na mesma direção. Leah ficou aguardando no carro. Não foi difícil para Rayford passar adiante do homem, porque aparentemente ele não corria daquela maneira havia anos.
A porta do avião, agora estacionado ao lado do Gulfstream, foi aberta, e Albie desceu primeiro. Rayford não podia acreditar. Albie tinha um porte altivo, ar pomposo. Parecia até mais alto. Carregando uma enorme sacola de couro, ele apontou para o homem e perguntou:
— É você que toma conta daqui?
— Sim. Eu...
— Número 0-9-2-3-4-9, subcomandante Marcus Elbaz solicitando seus serviços conforme programado.
— Sim, senhor... capitão... subcomandante.
— Essas pessoas estão a meu serviço — disse Albie. — Deixe que elas ajudem meus passageiros. Reabasteça a aeronave, entendido?
— Oh, sim, entendido, senhor.
— Onde eu posso trocar de roupa?
Enquanto o homem apontava para um escritório escuro no final do hangar, Chloe foi ao encontro de Buck, que descia do avião.
— Cuidado, meu amor, cuidado — disse Buck quando ela passou os braços ao redor dele.
— Vamos, Buck — ela disse. — Precisamos buscar Kenny.
— Nomes falsos, não se esqueçam — ele cochichou. — Ajudem o Dr. Rogoff. Ele sofreu uma cirurgia.
Rayford subiu a bordo para ajudar Chaim, que sorria estupidamente para todos apontando para a testa.
— Bem-vindo à família, doutor — disse Rayford.
O sorriso de Chaim transformou-se em uma careta quando ele apoiou todo o peso do corpo nas pernas e teve de ser ajudado a descer do avião.
Rayford notou que todos estavam na beira da pista ao redor do homem da torre, mas a atenção do grupo foi desviada quando Albie apareceu trajando farda. Incrível.
— Tudo certo, senhor? — perguntou Albie ao homem.
— Tudo certo. Vou vigiar a porta. Não estamos esperando outros aviões esta noite. Vou ficar aqui embaixo e serei responsável pela segurança de sua aeronave.
— Das duas. O Gulfstream também é nosso.
— Oh, eu não sabia. Não há problema.
— Agradeço em nome da Comunidade Global. Agora precisamos ir.
Leah havia levado o Land Rover até o outro lado da pista e entrou no hangar. Ela continuava sentada ao volante quando Rayford chegou por trás e empurrou Chaim para dentro do carro, sendo ajudado por Albie. Chaim gemeu ao sentar-se, mas assim que foi apoiado dos dois lados, ele pendeu a cabeça para trás.
Chloe sentou-se ao lado de Leah na frente, tendo Buck à sua direita. Enquanto Leah dava marcha a ré para sair do hangar, Chloe pousou a mão no braço dela.
— Obrigada por ter trazido o carro. E me perdoe — disse Chloe.
— Está tudo bem, Chloe — disse Leah. — Só não me diga que extraiu a idéia do cloreto de potássio de um de meus livros.
— É verdade, mas agora estou feliz por saber que Tsion jamais faria isso a Kenny.
Leah seguiu e voltou pelo mesmo caminho e dirigiu-se para a saída do aeroporto. Rayford olhou para trás e viu o homem da torre vigiando a porta do hangar. Quando eles chegaram à estrada, as luzes da pista foram apagadas.
— Muito bem — disse Albie. — Antes de tudo, precisamos tirar algumas coisas da frente. Senhora motorista?
— Leah, senhor.
— Sim, a senhora pode acender a luz interna aqui atrás? Leah procurou o botão, mas foi Buck quem o encontrou.
Albie tirou o quepe e virou-se para Rayford.
— Temos pouco tempo para conversar. Olhe para mim, capitão. Rayford olhou e piscou. O selo na testa.
— Não diga nada. Temos muita coisa para fazer. Pode desligar a luz, senhora. Muito bem, próxima ordem do dia. Capitão Steele, você passa o comando a mim, apenas por esta noite?
— Você tem um plano?
— Claro.
— Diga.
— Quanto tempo levaremos até a casa secreta?
— Menos de meia hora.
— Ótimo. O plano é o seguinte.



DEZOITO

David estava perplexo diante da emoção sincera demonstrada por Leon, um homem comprovadamente hipócrita. Sem dúvida, Fortunato idolatrava Carpathia, e sua atitude naquele momento não era a de um típico bajulador. Evidentemente, ele pleiteava a posição de novo supremo potentado, mas ali estava um homem que sofria a perda de seu amigo, mentor e herói. Apesar de não ter o requinte, a ostentação e o carisma de seu antecessor, Leon sabia como explorar o momento.
— Sentem-se, por favor — ele disse, com a voz tão embargada pela emoção que milhares de pessoas cobriram involuntariamente a boca para conter o choro.
David, em seu uniforme encharcado de suor, levantou um dos pés para cruzar as pernas e sentiu o chão pegajoso. O calor havia derretido a sola de borracha de seus sapatos.
Fortunato exagerou nos gestos para recompor-se e ajeitou as anotações diante de si com as mãos carnudas.
— Nicolae Jetty Carpathia — ele disse quase em um sussurro —, desculpem-me. — Engolindo um soluço incontido, ele prosseguiu: — Tenham um pouco de paciência comigo. Eu vou conseguir. Nicolae Carpathia, filho único de pais também filhos únicos, nasceu há 36 anos em um pequeno hospital na cidade de Roman, na Romênia, localizada na encosta leste dos montes Cárpatos da Moldávia, a pouco mais de 200 quilômetros a nordeste de Bucareste. Fortunato fez outra pausa para limpar a garganta.
— Nicolae foi uma criança precoce e extremamente brilhante, demonstrando ávido interesse por esportes e conhecimentos acadêmicos, principalmente línguas, história e ciências. Antes de completar 12 anos, ele venceu sua primeira eleição como presidente dos Jovens Humanistas. No ensino médio, foi aluno brilhante e eloqüente ao proferir seus discursos, sendo orador dos formandos, repetindo esta honra na universidade. Empresário por excelência, começou a trabalhar no serviço público ainda jovem, tornando-se membro da Câmara dos Deputados da Romênia antes de < completar 25 anos. Sua devoção ao pacifismo trouxe-lhe críticas e elogios e passou a ser a característica marcante de sua vida profissional. Certa vez, o Sr. Carpathia me contou que o ponto culminante de sua carreira, depois de ter assumido o posto de presidente da Romênia por imposição de seu antecessor, foi o convite recebido para discursar na Organização das Nações Unidas cerca de três anos e meio atrás. Extremamente honrado, o jovem chefe de Estado fez uma magnífica apresentação, resumindo a história da ONU, falando nos idiomas de todos os seus representantes e proferindo seu discurso inteiramente de memória. Mal sabia ele que, pouco antes de seu comparecimento à Assembléia Geral, o mundo sofreria a maior calamidade de todos os tempos, a tragédia que todos chamamos até hoje de desaparecimentos. Fortunato fez uma nova pausa e continuou em seguida.
— Despojadas de seus filhos pequenos e bebês, bem como de numerosos amigos, parentes e vizinhos, as famílias do mundo inteiro sofreram a mesma dor. Na época, desconhecíamos a verdade que somente um homem como Nicolae Carpathia poderia esclarecer: o fenômeno que tinha suas raízes em nossa tecnologia bélica e que trouxe tanto sofrimento ao mundo poderia ter sido evitado. O terror que sentíamos quando o presidente romeno subiu à tribuna da Organização das Nações Unidas levou-nos a uma imobilidade total. Desesperados em relação ao futuro, arrependidos em relação ao passado, oramos à nossa maneira, suplicando a nossos deuses que alguém nos tomasse pela mão e nos guiasse ao longo das desgraças, que nós próprios produzimos, até alcançarmos as bênçãos da esperança. Como poderíamos prever que nossas preces seriam respondidas por aquele que provaria repetidas vezes ser uma criatura divina, trabalhando com humildade e altruísmo, dando o melhor de si até o ponto de morrer para nos mostrar o caminho da cura de nossas mazelas?
Sem conseguir conter-se, a multidão irrompeu em aplausos. Leon precisou levantar a mão várias vezes pedindo silêncio, mas não foi atendido. Os aplausos transformaram-se em gritos de entusiasmo. Pouco a pouco, as pessoas foram se levantando, e todos ficaram em pé batendo palmas e gritando em homenagem a seu líder assassinado.
David estava enojado.
— Eu gostaria que você me desse uma idéia da planta da casa — disse Albie —, onde fica, o que existe por perto, prédios vizinhos, estradas de acesso e saídas.
— Não sei se existe algo semelhante em seu país, Albie — disse Rayford. — Imagine um bairro, um grupo de casas com mais ou menos 30 anos que se transformou em um monte de entulho. As pistas das estradas racharam e ergueram-se do chão, portanto muitas casas e lojas das redondezas tiveram de ser demolidas após os resgates das vítimas. A área foi abandonada. Calculamos que não exista nenhuma pessoa viva dentro de um raio de cinco quilômetros da casa. Tomamos posse de uma casa geminada, cuja metade foi destruída. Ampliamos o porão para construir um abrigo secreto, que só passamos a usar agora. Cavamos um poço e improvisamos um sistema de aquecimento solar. Descobrimos vários caminhos de acesso e saída da casa para despistar algum curioso.
— O que mais existe na propriedade?
— A cerca de 50 passos da porta dos fundos, há uma garagem parecida com um estábulo, que antigamente servia às duas casas. É lá que escondemos nossos carros. A garagem está vazia, porque agora temos apenas um, este aqui.
— E como está a outra metade da casa? c
— Vazia.
— E as outras casas das redondezas?
— Transformaram-se em montes de entulho, que nunca foram retirados.
— O que protege vocês dos olhares dos curiosos?
— Ninguém passa por aquela área, a não ser por engano, mas a casa é cercada por grandes árvores e, antes delas, há muitos terrenos baldios.
— Quando vocês vêm do aeroporto, que direção tomam para chegar à casa?
— Usamos várias estradas para não chamar a atenção e viajamos quase sempre à noite, mas geralmente chegamos pelo sul.
— Leah — disse Albie —, quando você encontrar um lugar discreto, pare, por favor. — Leah saiu da estrada pavimentada e parou perto de uma valeta rasa entre duas fileiras de árvores. — Obrigado. Capitão Steele, se a CG quiser nos surpreender, que caminho você acha que eles fariam para se aproximar da casa?
Rayford pegou um pedaço de papel e desenhou uma vista aérea do local.
— Penso que eles viriam pelo meio das árvores do lado norte. Buck, o que você acha?
Buck estudou o desenho e mostrou-o a Chloe e a Leah. Todos concordaram com Rayford.
— Muito bem, Leah — disse Albie. — Chegue pelo sul, como de costume. Apague os faróis o mais longe possível da casa. Pare a uma distância de três décimos de milha, de preferência em um local onde a gente possa ver a casa secreta, mas ninguém nos veja de lá.
— Três décimos de milha? — estranhou Leah.
— Cerca de meio quilômetro — disse Chloe. — Nesse local, há uma pequena elevação, não é mesmo, papai? Ela não fica logo depois do ponto em que fazemos o contorno para seguir a Des Plaines?
— Fica. É fácil de reconhecer o local porque o restante da área é todo plano.
— Vamos rápido para lá — disse Albie. — Apague os faróis assim que achar conveniente.
Enquanto Fortunato dominava a multidão, ora provocando aplausos, ora provocando choro, David tirou discretamente o binóculo do bolso. Inclinando o corpo para a frente, com os cotovelos apoiados nos joelhos, focalizou a aglomeração de pessoas sentadas logo após o pátio. Ao descobrir a placa onde se lia "Setor 53", ele tentou localizar Annie. A princípio, ele não a viu, mas ficou surpreso ao avistar outra pessoa com o binóculo apontado em sua direção. Logo identificou que era Annie.
Eles se olharam através das lentes acenando discretamente um para o outro. David, ainda segurando o binóculo com uma das mãos, levantou dois dedos, depois três e, em seguida, quatro. Ela devolveu a mensagem em código, que representava o número de letras de cada palavra: Eu amo você.
— Antes de encerrar, tenho algumas observações a fazer — disse Leon, demonstrando cansaço. — Quero dar aos representantes de todas as regiões globais a oportunidade de se manifestarem antes da cerimônia de sepultamento no mausoléu do palácio. Solicitamos que sejam breves em razão da alta temperatura a que estamos expostos, mas desejo também que eles extravasem seus sentimentos. Em primeiro lugar, chamo o potentado dos Estados Unidos Russos, Dr. Viktor...
— Capitão Steele — disse Albie —, ligue para o Dr. Ben-Judá e diga-lhe quem sou para que possamos conversar sem que ele desconfie de mim. Tsion atendeu após o primeiro toque.
— Tsion, sou eu, Rayford. Estamos a uns 800 metros daí. Você está bem?
— Até agora, sim. Kenny está dormindo. Já peguei tudo o que podia e estou pronto para ir embora. Este lugar me dá claustrofobia. Quero sair daqui.
— Tsion, estou passando o telefone para meu caro amigo recém-convertido, Albie. Você já ouviu falar dele, não?
— Sim! Agora ele é um dos nossos?
— Graças a seus ensinamentos, mas este é um assunto para conversarmos depois. Ele está usando o nome de Marcus Elbaz e se fazendo passar por subcomandante das Forças Pacificadoras da Comunidade Global.
Tsion estava sentado no degrau da escada, em completa escuridão, com o fone no ouvido e as duas fronhas abarrotadas perto de seus pés. Tudo o que ele precisava fazer era agarrar as duas fronhas com uma das mãos e o bebê com a outra, subir a escada, atravessar o freezer e sair. Mas, por ora, ele não tinha carro nem fazia idéia se a CG estava de tocaia para agarrá-lo.
Ele tinha ouvido Rayford falar muito de um amigo que fazia trambiques no mercado negro, e agora mal podia acreditar que estava prestes a se encontrar com ele.
— Dr. Ben-Judá?
— Sim, sou eu. Albie?
— Quero ir direto ao assunto, mas antes preciso dizer que devo minha alma ao senhor.
— Obrigado. Parece que, em breve, vou dever minha vida a você.
— Esperamos que tudo dê certo. O senhor ouviu algum ruído indicando que a CG está aí por perto?
— Para lhe dizer a verdade, quase liguei para Rayford cerca de meia hora atrás. Acho que estou paranóico, mas ouvi som de veículos.
— Perto?
— Não muito, mas o som vinha do norte. O que mais me assustou foi que o ruído era intermitente.
— Não entendi.
— Anda, pára, anda. Não sei o que pode ser.
— Não é comum o senhor ouvir sons de carros ou caminhões?
— Não.
— E faz mais ou menos 30 minutos que o senhor não ouve nada?
— Mais ou menos.
— Tudo bem, preste atenção. O senhor é capaz de reconhecer o som do Land Rover? Quer dizer, o senhor saberia distinguir o som do Rover de um, digamos, jipe da CG?
— Acho que sim.
— O senhor ouviria com nitidez se ele partisse de um ponto entre a casa e a garagem?
— Com certeza.
— E o senhor é capaz de ouvir os sons da garagem? Portas abrindo e fechando?
— Sou, mas as daqui não são portas de garagem manipuladas por controle eletrônico. São manuais e abrem c como se fossem porteiras de fazenda.
— Muito bem. Obrigado. Se, dentro dos próximos 15 minutos, o senhor ouvir um som parecido com o do Land Rover, significa que somos nós. Se escutar qualquer outro ruído, ligue para nós imediatamente.
Cada potentado foi saudado com música de sua região e aplausos frenéticos de seu povo. Os habitantes de algumas regiões estavam aglomerados por setores; outros, espalhados no meio da multidão. A maioria dos oradores repetiu as palavras do potentado dos Estados Unidos Russos, que incluiu Carpathia não só entre os chefes de Estado e líderes militares mais importantes que o mundo já conheceu, mas também entre os líderes religiosos mais respeitados e até entre as divindades de várias religiões e seitas.
O líder asiático, o segundo potentado que assumiu a tribuna, disse:
— Sei que falo em nome de cada cidadão de minha vasta região quando digo que minha veneração por Sua Excelência, o supremo potentado, aumentou após sua morte. Eu adorava sua liderança, sua visão, sua política. E, neste momento, adoro o próprio homem. Que sua fama, honra e glória possam aumentar cada vez mais agora que ele voltou para o céu, de onde veio!
O potentado dos Estados Unidos Indianos disse com voz solene:
— Embora acreditemos que um homem bondoso retorne em um nível superior e que a uma estrela brilhante como Nicolae Carpathia seria concedida a função de um Brama, ele próprio nos ensinou, com sua visão brilhante a respeito de uma fé mundial, que até as doutrinas das religiões tradicionais deixaram de ser aceitas. Mesmo as que apregoam que após a morte não existe mais nada precisam admitir... e digo isso diretamente a Nicolae Carpathia... que ele viverá enquanto vivermos. Porque ele estará sempre vivo em nossos corações e em nossa memória.
Apesar da reação entusiástica da multidão, David ficou intrigado ao notar que Fortunato parecia sentir a necessidade de esclarecer, ou pelo menos modificar, o efeito daquele discurso. Antes de apresentar o potentado dos Estados Unidos Africanos, Enoch Litwala, Fortunato assumiu novamente a palavra.
— Obrigado por suas manifestações de sentimento, potentado Kononowa. Agradeço a referência feita à fé mundial, que reaparecerá aqui na Nova Babilônia como uma expressão ainda melhor de uma religião pura e unida. Há um fato curioso a respeito das duas seitas mais resistentes à idéia da fé unificada. Uma viu nosso grande líder tombar na terra natal de seus seguidores, e a outra foi responsável por seu assassinato. Não culpo os israelenses, porque eles são parte importante dos Estados Unidos Carpathianos. Eles não podem ser considerados culpados pelo clima engendrado pelos obstinados judeus ortodoxos, muitos dos quais resistiram até este dia a fazer parte da fé mundial. E há ainda os judaístas! Eles defendem as doutrinas exclusivistas e tacanhas de que existe um único caminho até Deus! Será que deveríamos estar surpresos por saber que o assassino de nosso amado potentado seja líder daquela seita?
Após aquelas palavras seguidas de aplausos, a grande estátua negra, à direita de Leon, começou a soltar uma fumaça densa, que subia em direção às nuvens. Aparentemente, Leon não se perturbou com aquilo e disse em tom de brincadeira:
— Até mesmo Nicolae, o Grande, concordou comigo. Agora, falando sério, antes de passar a palavra ao potentado africano, quero reiterar algumas coisas. Qualquer culto, seita, religião ou indivíduo que defenda a doutrina de que existe um único caminho até Deus, até o céu ou até à bem-aventurança após a vida representa um grande perigo à Comunidade Global. Conceitos dessa natureza suscitam divisões, ódio, fanatismo, superioridade e orgulho. Digo isso com a confiança daquele que se sentou na presença da grandeza todos os dias durante os últimos anos: existem muitos caminhos que nos garantem a eterna bem-aventurança, se é que alguma coisa pode ser eterna. E isso ninguém consegue encurralando-se ou encurralando seus companheiros em um canto, dizendo que existe apenas um caminho até Deus, mas sendo um ser humano bondoso e generoso e ajudando o próximo.
Nicolae Carpathia teria sido a última pessoa no mundo a defender uma religião de "mão única", e vejam como ele é reverenciado. Nicolae e sua memória serão adorados por nós enquanto vivermos. E esta adoração, meus amigos, fará com que ele e seus ideais permaneçam vivos.
David se perguntava por que a multidão não se sentia tão enojada quanto ele de ouvir palmas e gritos.
Enoch Litwala prejudicou o prosseguimento da cerimônia ao fazer um discurso breve, inadequado e morno. Ele só disse o seguinte:
— Como potentado dos grandes Estados Unidos Africanos, recai sobre mim a tarefa de manifestar os sentimentos de meu povo. Apresento nossas sinceras condolências ao líder da Comunidade Global e àqueles que amavam o falecido. Os Estados Unidos Africanos se opõem à violência e deploram o ato insensato de um indivíduo mal orientado que acredita ignorantemente em tudo o que lhe foi imposto, e de milhões de outras pessoas que se recusam a pensar por si mesmas.
Tendo dito isso, Litwala sentou-se, pegando até mesmo Leon desprevenido. Os dois discursos seguintes também foram mornos. Para David, ficou evidente quais eram os potentados leais e quais os desleais.
Albie inclinou-se para a frente e cochichou ao ouvido de Rayford:
— Venha comigo. Leah, preste atenção ao meu sinal. Se eu fizer um aceno, prossiga lentamente com os faróis apagados. Se eu ligar para você novamente, preste atenção nas instruções, esteja preparada para vir rápido ao nosso encontro, com os faróis acesos, mas cuidado para não passar por cima de mim e de Rayford.
— Eu vou com vocês — disse Chloe. — Nosso bebê está lá.
— Tudo bem — disse Albie, sem hesitação. — Em três, vai ser melhor.
Eles desceram do Rover e caminharam cuidadosamente em direção à casa secreta. Mesmo sob a iluminação fraca do local, Rayford percebeu no rosto de Chloe um olhar mais resoluto do que o de uma mãe querendo proteger o filho. Se eles tivessem de enfrentar o inimigo, ela queria participar da batalha.
Respirando o ar frio da noite, Rayford ouvia o som de seus passos sobre a vegetação rasteira e o de sua própria respiração. À medida que se aproximava da casa secreta, sentiu uma grande tristeza. Aquela casa havia-se transformado em seu quartel-general, seu lar, embora tivesse passado grande parte do tempo ausente. Ela abrigara sua família, seus amigos, seu mentor. E ele sabia que, se tivesse a oportunidade de entrar ali, aquela seria a última vez.
Depois que o último potentado discursou, a multidão começou a ficar inquieta. De todos os cantos do pátio viam-se pessoas levantando-se em grandes grupos, prontas para iniciar mais uma vez o desfile diante do esquife. Fortunato, porém, não havia encerrado sua fala.
— Peço a todos um pouco mais de paciência — ele disse —, porque tenho algumas observações muito importantes a fazer. Até o espectador mais distraído deve ter notado que esta cerimônia é mais que um funeral de um grande líder, pois o homem que aqui jaz transcende a existência humana. Sim, sim, podem aplaudir. Quem é capaz de questionar sentimentos dessa natureza? Tenho a satisfação de dizer que a imagem que os senhores vêem à minha esquerda, apesar de ser maior que a de um ser humano, é uma réplica exata de Nicolae Carpathia, digna da reverência e da adoração de todos. Se alguém tiver o desejo de curvar-se diante da imagem após reverenciá-la, sinta-se à vontade. Curve-se, ore, cante, gesticule, faça o que desejar para expressar o que se passa dentro de seu coração. E acredite. Acredite, minha gente, que Nicolae Carpathia está aqui presente em espírito e aceita seu louvor e adoração. A maioria dos senhores sabe que este homem, que em minha opinião é divino, teve o poder de ressuscitar-me. E agora, como novo líder dos senhores em razão da ausência daquele que todos gostaríamos que ainda estivesse aqui, vou usar de muita franqueza. Não sou diretor de TV, mas peço que o principal operador de câmera focalize meu rosto. As pessoas que estiverem perto de mim poderão olhar dentro de meus olhos. As demais poderão vê-los bem nos telões.
David sabia o que acontecia com as pessoas que fixassem o olhar nos olhos de Fortunato. David virou-se para a esquerda, passou o braço por trás do casal Wong, que parecia enlevado, tocou de leve no ombro de Chang e fez um movimento com a cabeça para Ming. Ao ver que os dois olhavam para ele, David fez um gesto negativo imperceptível. Ambos entenderam e desviaram o olhar de Fortunato.
— Hoje — prosseguiu Fortunato, com voz solene —, estou instituindo uma nova fé global, mais aperfeiçoada, que terá como objetivo adorar esta imagem, que representa o espírito de Nicolae Carpathia. Ouçam com atenção, minha gente. Instantes atrás, quando eu disse que os senhores podiam adorar esta imagem e o próprio Nicolae, se assim o desejassem, eu estava sendo meramente educado. Silêncio, por favor. Como cidadãos da Comunidade Global, os senhores têm responsabilidade, e essa responsabilidade exige subordinação àqueles que detêm a autoridade.
O silêncio era tão sepulcral que David duvidou que alguém se mexesse no lugar.
— Como novo governante dos senhores, é meu dever dizer-lhes que não existem opções quanto à adoração da imagem e do espírito de Nicolae Carpathia. Ele não é apenas parte de nossa nova religião. Ela gira em torno dele. Na verdade, ele foi e sempre será a nossa religião. Agora, antes que os senhores reverenciem a imagem e se curvem diante dela, quero gravar na mente de todos as conseqüências da desobediência a este edito.
De repente, uma voz semelhante ao ribombar de um trovão ecoou da própria estátua, que soltava grossas colunas de fumaça quase obscurecendo o Sol:
— Eu sou o senhor seu deus que se assenta acima dos céus!
O povo, inclusive Guy Blod e seus assistentes, gritaram e caíram de joelhos, olhando para a imagem. — Eu sou o deus acima de todos os outros deuses. Não há nenhum outro semelhante a mim. Adorem ou tomem cuidado!
Fortunato começou a dizer com voz suave e paternal:
— Não tenham medo. Levantem os olhos para os céus.
As densas nuvens negras dissiparam-se, e a imagem parecia estar serena.
— Nicolae Carpathia ama seus seguidores e deseja o melhor para eles. Pelo fato de ter sido encarregado de fazer cumprir a adoração ao deus dos senhores, também recebi poderes. Por favor, levantem-se.
A multidão levantou-se de uma só vez, com o semblante aterrorizado, olhos grudados em Leon ou em sua imagem nos telões. Gesticulando exageradamente, ele passou pelo esquife, pelos guardas e pelos dez potentados, três dos quais olhavam para a frente com ar inexpressivo.
— Digamos — prosseguiu Leon —, que existam pessoas aqui que decidiram, por um motivo ou outro, recusar-se a adorar Carpathia. Talvez tenham espírito independente. Talvez sejam judeus rebeldes. Talvez sejam judaístas secretos que continuam a acreditar que o tal "homem" é o único caminho até Deus. Sejam quais forem suas justificativas, eles certamente morrerão.
O povo teve um sobressalto e muitos respiravam com dificuldade.
— Não estranhem eu ter dito que alguns certamente morrerão. Se Carpathia não for deus e eu não for seu escolhido, ficará evidente que estou errado. Se Carpathia não for o único caminho e a única vida, o que estou dizendo não é a única verdade e ninguém terá nada a temer. Também é justo que eu apresente a prova de minha função para complementar aquilo que os senhores já viram e ouviram da própria imagem de Nicolae Carpathia. Eu invoco o poder do deus altíssimo para provar que ele governa do céu, queimando até a morte, com seu fogo puro e destruidor, aqueles que se opuserem a mim, aqueles que negarem sua divindade, aqueles que se rebelarem e conspirarem para usurpar meu lugar como seu porta-voz! Fortunato fez uma pausa dramática. E prosseguiu:
— Imploro para que ele faça isso enquanto eu digo estas palavras!
Leon virou-se e encarou os dez potentados. Em seguida, apontou para os três que se opunham a ele. Enormes feixes de fogo irromperam do céu sem nuvens e incineraram os três no lugar em que estavam sentados. Os outros sete saltaram de suas cadeiras para fugir do calor e das chamas. Até os guardas recuaram.
A multidão gritava e gemia, mas ninguém fazia um movimento sequer. Ninguém correu. Todos pareciam paralisados de medo. E o fogo que consumiu os três até transformá-los em pequenos montes de cinza sumiu tão rápido quanto chegou. Fortunato voltou a falar:
— Fiéis patriotas da Comunidade Global pertencentes às três regiões governadas por estes homens mentirosos, tenham ânimo. Seus substitutos já foram escolhidos em reuniões que tive com o espírito de Nicolae Carpathia. A Comunidade Global prevalecerá. Alcançaremos nosso objetivo de uma sociedade utópica, que viverá em harmonia, amor e tolerância... tolerância para todos, menos para aqueles que se recusarem a adorar a imagem do homem que reverenciamos e glorificamos hoje!
Ficou claro que Fortunato esperava aplausos, mas o povo estava tão perplexo, tão aterrorizado que se limitou a olhar para ele.
— Podem manifestar-se — disse Leon com um sorriso. Ninguém se mexeu no lugar. Ele semicerrou os olhos.
— Podem manifestar sua concordância. — Seguiram-se algumas palmas. — Não temam o senhor seu deus.
Os aplausos começaram a aumentar.
— O que os senhores acabaram de testemunhar não lhes causará nenhum mal se amarem Nicolae com o amor que os trouxe até aqui para homenagear sua memória. Agora, antes do sepultamento, uma vez que todos já tiveram oportunidade de prestar suas últimas homenagens, convido-os a se aproximar e a adorar seu deus. Aproximem-se e adorem! Adorem o seu deus, o seu rei que está morto mas vive!
Rayford obedeceu ao sinal de Albie e rumou para a esquerda. Chloe foi para a direita. Os três, distantes cerca de 30 passos um do outro, dirigiram-se para a casa secreta, localizada a 200 metros de distância, tentando ver se havia sinais da CG. Teriam eles estado ali? Continuariam à espreita? Por onde teriam chegado?
De repente, Albie atirou-se no chão e gesticulou para que Rayford e Chloe fizessem o mesmo. Ele havia recebido uma ligação e gesticulou novamente para que os dois se aproximassem.
— Tsion voltou a ouvir o som de um motor de carro — Albie cochichou. — Vem do norte, só que desta vez é constante, como se houvesse um veículo avançando. Vamos chegar a pé à casa secreta antes deles. Estejam preparados para fugir. Caso a gente encontre a CG, fiquem um passo ou dois atrás de mim.
Enquanto falava, ele discou para Leah.
— Leah? Aguarde um minuto e meio. Em seguida, venha rápido com os faróis acesos. Só tome cuidado para não nos atropelar. Quando pararmos, você pára o mais perto que puder da garagem. Fique dentro do carro com os faróis acesos e não se preocupe se avistar jipes da CG chegando pelo outro lado.
Albie desligou o celular, tirou a arma do coldre, levantou-se rapidamente e disse:
— Vamos.
Tropeçando em meio à escuridão, Rayford se perguntava quantos minutos de vida ainda teria. Chloe parecia não ter problemas em acompanhar os passos de Albie. Rayford havia notado uma estranha diferença em Albie. Ele sempre foi atirado, mas será que havia alguma coisa a mais naquele homem além de sua conversão?
Rayford não entendia por que estava duvidando do selo na testa de Albie. Será que poderia ter certeza do que viu sob a luz fraca no interior do Rover, tendo entre ele e Albie um senhor idoso ferido?








DEZENOVE

O Sr. Wong ajoelhou-se ao lado de David, chorando e lamentando em sua língua nativa. A esposa dele continuou sentada, balançando o corpo para a frente e para trás, punhos cerrados, olhos fechados, aparentemente mais perplexa que convencida.
Ming e Chang, também sentados, cobriram os olhos com as mãos. Qualquer um pensaria que eles estavam orando ao novo deus do mundo, mas David sabia que isso não era verdade.
David observou uma cena muito estranha. Quando Fortunato se afastou da tribuna indo juntar-se aos sete potentados remanescentes, eles pareciam alheios aos montes de cinzas. Solenemente apertaram a mão do novo líder, como que parabenizando-o por seu discurso e exibição de poder.
O chefe da segurança instruiu seu pessoal a retirar o bloqueio colocado na frente da fila indiana. O casal holandês que trajava roupas típicas de seu país recusou-se a caminhar em direção ao esquife, mas os que estavam atrás começaram a empurrar os dois, insistindo para que prosseguissem. Eles sorriram embaraçados, um aguardando que o outro desse o primeiro passo. Finalmente, prosseguiram de braços dados, com passos miúdos, parecendo querer ver o corpo de Carpathia, mas com medo da gigantesca estátua que falava e soltava fumaça e também impressionados com as cinzas dos três corpos carbonizados logo atrás do esquife.
Fortunato e os sete potentados continuavam sentados na primeira fila, um pouco atrás do esquife, para facilitar o vaivém dos guardas e evitar que os peregrinos deixassem de se aproximar para cumprimentá-los ou de falar com eles. David notou que, de repente, Leon pareceu entender por que o povo estava temeroso de aproximar-se. Ele virou-se para um lado e depois para o outro e pediu aos potentados que deixassem o local por um momento.
Em seguida, afastou-se e, com um gesto floreado, limpou as cinzas das três cadeiras com suas mãos grandes. A fila parou, e todos o fitaram com olhos arregalados. Parecendo satisfeito, Leon virou-se de frente para o esquife e acenou para que os sete potentados voltassem a seus lugares. Enquanto eles se acomodavam, Leon bateu e esfregou uma mão na outra, deixando cair no chão os resíduos de cinza. Ele e os potentados deram uma risadinha.
Os faróis de três veículos brilharam no horizonte, talvez a menos de um quilômetro da casa secreta. Rayford sempre temeu esse momento, o dia em que eles cairiam nas mãos da CG. Ele imaginava que, quando isso acontecesse, estaria ausente, dormindo ou distraído. Porém, por mais estranho que pudesse parecer, ele estava ali para presenciar a cena.
Albie e Chloe, que caminhavam com passos rápidos, começaram a correr. Rayford tentava acompanhá-los mas sentia-se desajeitado e fora de forma.
— Aproxime-se mais de mim, capitão Steele — gritou Albie, dando a mesma instrução a Chloe.
Rayford alcançou Chloe, e agora ambos corriam lado a lado a uma distância de pouco mais de um metro de Albie. Atrás deles vinha o Land Rover sacolejando sobre o terreno acidentado e projetando sombras tenebrosas na casa secreta.
Rayford teve a impressão de que os três veículos que vinham do lado oposto haviam-se separado e reduzido a velocidade. Ele, Albie e Chloe pararam entre a velha garagem e a casa. Leah brecou o Land Rover à direita de Chloe.
— Esperem — disse Albie em voz baixa. — Não se mexam.
— Estamos expostos demais, Albie — disse Rayford.
— Subcomandante Elbaz, Sr. Berry — corrigiu Albie. — Você passou ou não passou o comando para mim?
— Temporariamente — retrucou Rayford, arrependido.
Se Albie fosse realmente um companheiro de fé, aceitaria isso como uma brincadeira. Se Rayford tivesse caído em uma armadilha e sacrificado o Comando Tribulação por uma falha de julgamento, ele estava dizendo que voltaria a assumir a liderança, mesmo que fosse necessário lutar.
Os veículos pareciam um pouco mais afastados uns dos outros agora. O que estava à esquerda de Rayford moveu-se em direção a eles e parou a uns 70 metros de distância. O do meio avançou um pouco mais, por volta de 50 metros. E o veículo da direita fez o mesmo que o da esquerda.
— Esperem — Albie voltou a dizer. — Não se mexam.
— Somos alvo deles — disse Rayford.
— Não se mexam.
— Não estou gostando nada disso — disse Chloe.
— Confiem em mim.
Rayford prendeu a respiração. Eu gostaria de poder confiar. Senhor, mostra-me se agi acertadamente.
Quando ouviu alguém saltar do veículo do meio, produzindo ruídos fortes ao mover algum equipamento barulhento, Rayford levou um susto e começou a andar em direção à casa. Embora continuasse a enxergar os faróis dos três veículos, avistou atrás da casa a silhueta de um soldado correndo na direção deles.
— Espere.
— Estou esperando, Alb... subcomandante, mas há um homem armado do outro lado da casa. E se ele atear fogo na casa? E se os outros forem atrás dele? Eles podem nos ver perfeitamente, mas estão protegidos pelas árvores e pela casa.
— Silêncio, Sr. Berry — disse Albie. — Somos três contra 12. Rayford teve um mau presságio. Como Albie sabia disso?
— E se nenhum de vocês estiver armado — complementou Albie —, somos um contra 12.
— Isso significa que vamos nos render? — perguntou Chloe. — Prefiro morrer antes.
— E vai morrer se não me deixar cuidar disso.
Rayford havia passado da suspeita ao medo e agora estava apavorado. Ele caíra em uma grande armadilha. O próprio Albie não o havia aconselhado, certa vez, a jamais confiar em ninguém? Eles poderiam estar mortos ou presos dentro de meia hora.
— Atenção, líder de esquadrão da Comunidade Global! — gritou Albie, com uma voz forte, clara e firme que Rayford nunca ouvira antes. — Apresente-se e identifique-se! Sou o subcomandante Marcus Elbaz, da Comunidade Global. Isso é uma ordem!
David calculou que a temperatura já havia ultrapassado os 43°C. Ele não se lembrava de ter ficado exposto ao sol do meio-dia na Nova Babilônia sob uma temperatura tão alta em outra ocasião. Tirou o quepe e enxugou o suor da testa com a luva. Estava transpirando demais. Não havia vento, apenas um sol inclemente castigando quatro milhões de pessoas, e o odor forte da fumaça que saía da estátua imponente.
Naquele momento, ela começou a balançar como que sacudida por um terremoto. Todos os olhares se voltaram para ela, aterrorizados, e a notícia de que algo estranho acontecia se espalhou depressa. Durante um minuto, que mais pareceu uma eternidade, a estátua de Carpathia vibrou sem parar. Em seguida, balançou e começou a soltar rolos de fumaça outra vez.
Instantes depois, a estátua ficou incandescente, e nuvens de fumaça escureceram o céu. A temperatura caiu de repente. A luz do dia transformou-se em lusco-fusco tão rápido que todos esconderam o rosto.
A estátua bradou:
— Não temam, nem fujam! Quem fugir certamente morrerá! A escuridão caiu sobre eles, mas, quando David observou furtivamente o horizonte, percebeu que o céu continuava claro. Havia apenas uma circunferência negra acima de suas cabeças, da qual partiam raios que atingiam a terra. Segundos depois, o ribombar dos trovões sacudiu toda a área.
— Não fujam! — bradou novamente a imagem. — Se vocês me desafiarem, correrão perigo!
Leon, em pé e com os braços cruzados, fitava a estátua. Os sete potentados caíram no chão, com os olhos arregalados. Os guardas armados ajoelharam-se.
As pessoas que estavam mais distantes viraram-se e correram, mas foram atingidas pelos raios, enquanto o restante do povo olhava horrorizado.
— Como ousam desafiar-me? — vociferou a estátua. — Silêncio! Permaneçam imóveis! Não temam! Não fujam! E contemplem!
O povo estava paralisado, com os olhos fixos na estátua. A fumaça parou de subir, porém o céu continuou escuro. Ela se foi transformando em nuvens negras até adquirir tons de vermelho vivo e roxo.
David, firme em sua fé e acreditando saber o que estava acontecendo, começou a tiritar de frio.
— Não olhem para mim — disse a estátua, deixando de soltar fumaça pelo rosto. À medida que ela foi esfriando, sua cor passou do alaranjado para o negro. Não se movimentava mais. — Olhem para o senhor seu deus.
David teve a impressão de que a estátua havia encolhido, mas ela simplesmente voltara a ficar imóvel, silenciosa e fria. O povo começou a levantar-se lentamente, com os olhos fixos no esquife de vidro, onde o corpo de Carpathia continuava na mesma posição. Agora, havia milhões de pessoas em pé sob o frio que se abatera repentinamente sobre a região deserta. O céu continuava negro como piche, e nuvens ameaçadoras se formavam. O povo, de braços cruzados por causa do frio, ajuntou-se mais, olhando firme para o corpo sem vida de Carpathia.
— Tenho 11 soldados das Forças Pacificadoras com armas apontadas para o senhor! — veio a resposta de um ponto afastado da casa secreta. — Preciso ver sua identificação!
— Muito bem! — gritou Albie. — Mas esteja preparado para mostrar a sua, porque sou seu superior!
— Sugiro que nos encontremos do lado da casa com as armas nos coldres!
— Combinado! — disse Albie, fazendo uma demonstração ao colocar a arma no coldre preso a seu cinto.
— E quanto a seus comandados?
— Na mesma situação que os seus — disse Albie. — Com as armas apontadas para vocês.
O líder de esquadrão apareceu atrás da casa com a arma no coldre, braços afastados do corpo, mãos vazias. Albie deu alguns passos firmes na direção dele.
— Conduta excelente — disse Albie. — Estou estendendo a mão para pegar seu documento.
— Eu também.
O líder de esquadrão pegou uma lanterna presa em seu cinto e ambos examinaram os documentos.
— Lamento muito pela confusão, subcomandante — disse o jovem. — Eu o conheço?
— Deveria, Datillo. Talvez eu tenha sido seu professor. Onde você fez treinamento?
— Em Baltimore, na Área de Treinamento em Liderança de Esquadrão, conhecida como BASALT.
— Eu apenas fiz algumas palestras lá, como convidado. Minha base era em Chesapeake.
— Pois não, senhor. ...... :
— Líder de esquadrão Datillo, posso saber o que você está fazendo aqui?
Datillo tirou alguns papéis do bolso.
— Fomos informados de que esta é a sede da facção judaísta, talvez a casa secreta central. Recebemos ordens para cercá-la, prender seus ocupantes, extrair informações sobre o paradeiro e a identidade de todos e destruir o local.
— Atear fogo?
— Positivo, senhor.
Albie aproximou-se do jovem líder.
— Datillo, de onde partiram essas ordens?
— Suponho que da Nova Babilônia, senhor.
— Você supõe. Verificou antes com o diretor regional?
— Não, senhor. Eu...
— Datillo, você sabe que horas são?
— Como assim, senhor?
— Nós dois falamos inglês, não Datillo? Não é a minha língua nativa, mas é a sua. Meu sotaque é muito acentuado para você, filho?
— Não, senhor.
— Você sabe que horas são?
— Mais de quatro horas, senhor. Solicito permissão para consultar meu relógio.
— Permissão concedida.
— São 4h30, senhor.
— São 4h30, Datillo. Isso não significa alguma coisa para você?
— Não entendi, senhor?
— Preste atenção, líder de esquadrão. Embora você não mereça, vou lhe dizer isso longe de seus subordinados para que eles não ouçam. Estou resistindo à tentação de informar ao Sr. Crawford, o Diretor Regional do Meio-Oeste dos Estados Unidos Norte-americanos, que você não confirmou as ordens com ele antes de partir. Estou pensando em afastá-lo temporariamente do cargo por causa de sua incrível falta de conhecimento dos fusos horários entre os Estados Unidos Norte-americanos e os Estados Unidos Carpathianos. Vou perguntar novamente. Líder de esquadrão Datillo, o que significa 4h30?
— Desculpe-me, subcomandante, e peço sua compreensão para que eu não fique em posição embaraçosa perante meus subordinados. Mas, senhor, não estou entendendo esse assunto de fuso horário.
— Sinceramente — disse Albie —, eu não sei o que eles ensinam a vocês ou o que vocês fazem durante os treinamentos básicos. Você assistiu ou não a uma de minhas palestras na BASALT?
— Honestamente, eu não me lembro, senhor.
— Então não assistiu, porque não teria esquecido. E saberia que horas são na Nova Babilônia quando aqui são 4h30.
— Bem, se o senhor está querendo dizer que eu deveria conhecer a diferença de fuso horário, afirmo que sim, conheço.
— Você conhece.
— Sim, senhor.
— Prossiga.
— Nesta época do ano, a diferença é de nove horas.
— Muito bem, Datillo. Que horas são agora na Nova Babilônia?
— Hum... deixe-me ver. Eles estão adiantados em relação a nós, portanto, ah... lá são 13h30.
— Será que eu vou ter de ensinar estas coisas a você, filho?
— Sinto muito, senhor. Receio que sim.
— Que dia é hoje, líder de esquadrão?
— Sábado, senhor.
— Errado. Tente novamente. Já passa da meia-noite.
— Ah, sim, já é madrugada do domingo.
— E na Nova Babilônia?
— Tarde do domingo.
— Tarde do domingo na Nova Babilônia, Datillo. Sua ficha ainda não caiu? t
Datillo curvou os ombros.
— Hora do funeral, não é mesmo, senhor?
— Tlim, tlim! A ficha do Datillo caiu! Você está ciente da suspensão das atividades relativas a combates em qualquer lugar do mundo durante o funeral, não?
— Sim, senhor.
— Sabe que todas as ordens da CG exigem JMP?
— Justificativa para Manutenção da Paz, sim, senhor.
— E em qual JMP estão baseadas estas ordens?
— Hum... que nenhuma notícia seja mais importante que o funeral. ;
— Isso mesmo. Agora, Datillo, posso dizer que você é um jovem responsável. Você e seu pessoal vão evacuar esta área. Podem retornar às 10 horas e atear fogo na casa, se eu a deixar em pé. Meu pessoal e eu estamos fazendo a ronda aqui muito antes de vocês. Já prendemos os ocupantes e evacuamos o local. Tenho uma equipe aqui para vasculhar a casa à procura de provas, e devemos terminar quando o dia amanhecer. Só voltem aqui depois das 10 horas. Se, antes disso, vocês virem fumaça no horizonte, não há necessidade de voltar. Fui claro?
— Sim. O senhor vai precisar da ajuda de meus homens?
— Quero apenas que obedeçam às minhas ordens e retirem-se. Vou fazer um trato com você, filho. Se não contar a seus superiores os erros graves que cometeu esta manhã, eu também não contarei.
— Estou muito agradecido, senhor.
— Eu sei que sim. Agora, retirem-se.
Datillo bateu continência e correu de volta ao jipe do meio. Fez uma manobra para retornar, sendo seguido pelos outros dois jipes. E eles desapareceram na escuridão.
O céu estava tão negro que as luzes do pátio do palácio acenderam-se automaticamente. Os holofotes da TV focalizavam o caixão, e David tinha certeza de que os olhos do mundo inteiro, menos os dele, estavam voltados para aquele esquife. Ele vasculhou com os binóculos o setor 53 à procura de Annie, orando para que ela tivesse permanecido firme. Não conseguiu encontrá-la.
David virou-se para trás. A estátua emitia ondas de calor no ar relativamente gelado. Os potentados estavam paralisados. Até Fortunato havia empalidecido e continuava imóvel, com o olhar fixo no caixão. O círculo de luz ao redor do horizonte formava uma figura parecida com a cabeça de um homem calvo, emoldurada apenas por alguns fios de cabelo acima das orelhas e da nuca. Nuvens negras como ébano e de outras tonalidades escuras produzidas pela fumaça que saía da estátua pairavam sinistramente sobre a imensa multidão. O povo continuava imóvel, inerte. Luzes fortes e brilhantes banhavam a plataforma.
Os olhos de David foram atraídos para o corpo no esquife. O que seria aquilo? Um movimento quase imperceptível? Ou teria sido apenas imaginação? Certa vez, em um funeral, ele teve a impressão de ver o peito do morto arfar. Mas, até aquele momento, o corpo de Carpathia não demonstrara nenhum sinal de vida.
O dedo indicador da mão esquerda de Carpathia levantou por um instante e voltou à posição normal. Algumas pessoas suspiraram, mas David imaginou que quase ninguém havia notado aquilo. Em seguida, o dedo levantou de novo e voltou à posição normal duas vezes. Depois, levantou mais ou menos um centímetro, como se estivesse apontando para algum lugar.
Um dos potentados viu e estremeceu. Ao tentar dar um passo para trás, tropeçou em uma cadeira. Enquanto procurava equilibrar-se, um raio caiu a cerca de três metros dele e o atirou para o mesmo lugar de antes. Ele levantou do chão tremendo e limpou a roupa, olhando novamente para Carpathia, com relutância.
Agora, o dedo indicador fez um movimento brusco, e todos os potentados enrijeceram o corpo. Os guardas ficaram em posição de defesa, como se estivessem preparados para atirar no cadáver. As mãos de Carpathia se descruzaram e penderam ao lado do corpo. As pessoas que estavam perto começaram a chorar, com o rosto desfigurado de terror. Pareciam querer fugir, mas não conseguiam se mexer.
Os que estavam na frente de David recuaram, tomando o cuidado de deixar alguém entre eles e o esquife. Os que se encontravam na primeira fileira tentaram dar um passo para trás, sem sucesso.
Agora, o tronco de Carpathia estava levantando e abaixando de verdade. Muitas pessoas caíram de joelhos, cobrindo os olhos, chorando alto.
Os olhos de Nicolae abriram-se. Assustado, David desviou o olhar e viu Leon e os potentados tremendo.
Os lábios do morto entreabriram-se, e Nicolae levantou a cabeça até encostá-la na tampa do esquife de vidro. Todos os que estavam até a distância de 100 metros do caixão, inclusive Fortunato, caíram ao chão cobrindo o rosto com as mãos, mas David notou que a maioria espiava por entre os dedos.
Como que se espreguiçando, Nicolae inclinou a cabeça para trás, fez uma careta e levantou os joelhos até tocarem na tampa do esquife. Esticou a perna esquerda, forçando com o calcanhar a enorme vedação de borracha, empurrando-a até soltá-la com um forte ruído. O fecho que a prendia voou longe e bateu no quepe de um dos guardas prostrado no chão. Ele derrubou a arma e esfregou a cabeça. O fecho, disparado como um projétil, ricocheteou e rolou no chão, indo parar debaixo de uma cadeira.
Assim que entrou ar no esquife, Carpathia levantou lentamente as mãos, com as palmas para cima, encostando-as na tampa. Gemidos, suspiros e gritos ecoavam no meio da multidão. Agora, todos estavam caídos no chão, olhando para os telões ou tentando enxergar a plataforma.
Carpathia voltou a erguer os joelhos, arrebentando os imensos parafusos de aço inoxidável. Em seguida, empurrou a tampa com força até quebrar o encaixe da parte superior. A tampa, que pesava mais de 35 quilos, voou para longe, levando junto os parafusos, e chocou-se contra a tribuna, derrubando-a e arrastando junto o microfone.
Carpathia deu um impulso com o corpo e ficou em pé na parte mais estreita do esquife, virando-se com ar triunfante para a multidão. David notou que a maquiagem, os materiais de calafetação, os grampos e os pontos cirúrgicos permaneceram dentro do caixão.
De pé em meio ao mortal silêncio da multidão, Nicolae aparentava ter acabado de sair de seus aposentos, onde um criado o ajudara a vestir uma roupa nova. Trajando um terno impecável, gravata, sapatos reluzentes com os cordões corretamente amarrados e meias esticadas lá estava ele, um homem de ombros largos, rosto lavado e barbeado, cabelos penteados e semblante corado. Fortunato e os sete potentados continuavam ajoelhados, com as mãos no rosto, soluçando alto.
Nicolae levantou as mãos na altura dos ombros e disse com voz forte para que todos pudessem ouvir sem a ajuda de microfone:
— Paz. Acalmem-se.
Após essas palavras, as nuvens subiram e dissiparam-se. O sol reapareceu com todo o seu brilho e calor. O povo semicerrou os olhos para protegê-los da claridade.
— Paz seja com todos vocês — ele disse. — Eu lhes dou a minha paz. Por favor, levantem-se. — Ele fez uma pausa até que todos se levantassem. O povo tinha os olhos cravados nele e o corpo rígido de medo. — Não fiquem com o coração perturbado. Creiam em mim.
O murmúrio recomeçou. David viu o povo maravilhado. Nicolae não estava usando microfone nem levantava a voz. Mesmo assim, podia ser ouvido por todos.
Carpathia parecia ler o que se passava na mente do povo.
— Vocês estão maravilhados porque falo diretamente a seus corações, sem a ajuda de microfone. Vocês assistiram à minha ressurreição. Quem tem poder sobre a morte, a não ser o deus altíssimo? Quem controla a Terra e o céu a não ser deus?
Com as mãos ainda erguidas, ele disse meigamente:
— Vocês continuam a tremer? Ainda estão aterrorizados? Não tenham medo, porque eu lhes trago novas de grande alegria. Sou eu que amo vocês e que estou aqui hoje. Fui ferido até a morte, mas estou vivo... para vocês. Para vocês!
— Não tenham medo de mim — ele prosseguiu —, porque vocês são meus amigos. Só os inimigos devem temer. Por que vocês estão temerosos, ó povo de pequena fé? Venham a mim e encontrarão descanso para suas almas.
David quase chegou a desmaiar de tanto nojo. Ele não suportava ouvir as palavras de Jesus sendo proferidas por aquele demônio, pelo qual Carpathia, conforme os ensinamentos do Dr. Ben-Judá, agora estava possuído, tornando-se a encarnação de Satanás.
— Aquele que não é por mim, é contra mim — dizia Carpathia. — Quem proferir qualquer palavra contra mim, não será perdoado. Mas quanto a vocês, os fiéis, tenham ânimo. Sou eu. Não tenham medo.
David voltou a procurar Annie, sabendo que ninguém ao redor prestava atenção nele. Como gostaria de vê-la, de saber que ela estava bem, de dizer que ela não estava sozinha e que havia outros crentes ali.
— Eu quero saudá-los — disse Carpathia. — Venham até mim, toquem-me, conversem comigo, adorem-me. Toda autoridade me foi dada no céu e na terra. Eu estarei com vocês sempre, até o fim.
A fila que havia ficado paralisada continuava imóvel. Carpathia virou-se para Fortunato e fez um movimento afirmativo com a cabeça, gesticulando em direção aos guardas.
— Peçam que meu povo se aproxime de mim — disse Carpathia.
Os guardas levantaram-se lentamente e começaram a instigar o povo a continuar a caminhada.
— À medida que vocês se aproximam, vou falar a respeito de meus inimigos...
Enquanto os veículos se aproximavam da casa secreta, vindos de direções opostas, Tsion orava. É o fim, Senhor? Eu anseio encontrar-me contigo. Mas, se não for este o tempo determinado para entregarmos nossas vidas a ti — a minha e a de meus amados irmãos e irmãs —, dá-nos força e sabedoria.
Os veículos pararam, e Tsion ouviu gritos. Ele caminhou até o canto do porão, de onde podia ouvir melhor. Um comandante da CG do Oriente Médio gritava ordens a um comandante de esquadrão. Tsion tentava controlar a respiração para não perder nenhuma palavra. Seria Albie, aquele com quem acabara de falar, fingindo pertencer à CG? Ou ele fazia parte da CG? Albie havia sido tão convincente, tão seguro de si. Como um homem podia ter tanto conhecimento dos sistemas e procedimentos da CG sem ser de lá? Talvez ele tivesse pertencido às Forças Pacificadoras e depois abandonado o cargo. Tsion não podia fazer nada, apenas aguardar.
Fosse quem fosse, Albie conseguira afastar da casa secreta o comandante do esquadrão e seus homens, e Tsion sabia que seus amigos viriam em seu socorro. O que deveria fazer em primeiro lugar? Ele ligou a energia elétrica e, em seguida, a TV. Seu celular tocou.
— Dr. Ben-Judá — disse Albie —, o senhor está bem?
— Estou bem e assistindo ao funeral pela TV. Venha até aqui para ver.
— O senhor não quer abrir a porta para nós entrarmos?
— Pode arrombá-la! Não quero perder isso, e não vamos mais morar aqui, não é verdade?
Albie riu e chutou a porta dos fundos. Som de passos. A porta do freezer foi aberta, a prateleira empurrada de lado. Passos na escada. Albie entrou, seguido por Chloe, que correu para tirar Kenny do berço, cobrindo-o de beijos. Em seguida, apareceu Rayford, que abraçou Tsion com o semblante apreensivo.
— Os outros estão chegando — disse Rayford.
— Sim, sim, e louvado seja Deus — disse Tsion. — Vejam isso. Um grande tumulto tomou conta do pátio do palácio, e estou convencido de que a hora está próxima.
Buck desceu a escada mancando e foi ao encontro de Chloe e Kenny. Leah apareceu a seguir, amparando Chaim. Apesar de estar com ataduras, mudo e frágil, ele forçou um sorriso quando viu Tsion, e os dois compatriotas se abraçaram.
— Louvo a Deus por você, meu irmão — disse Tsion. — Sente-se e assista comigo.
— Precisamos sair daqui antes do amanhecer, minha gente — disse Albie. — Acho que nosso amigo só voltará depois das dez, mas é melhor não abusarmos.
— Vamos ter mesmo de incendiar esta casa assim que pegarmos nossas coisas? — perguntou Rayford.
Tsion pediu silêncio, mas os dois não lhe deram atenção. Ele aumentou o som da TV.
— Parece muito arriscado — disse Buck, saindo do quarto com Chloe e Kenny — sair daqui com a CG rondando a área.
— Creio que a possessão está prestes a ocorrer — avisou Tsion.
— Grave em vídeo, Tsion! — disse Rayford. — Temos de trabalhar rápido.
— Acho que o estratagema de Albie deu certo — disse Tsion. — Pelo menos é o que eu espero.
Rayford aproximou-se dele.
— Doutor, estou de volta e continuo no comando. Preciso fazer valer minha autoridade, apesar de respeitá-lo muito. Grave isso e vamos pegar nossas coisas.
Tsion viu tanta firmeza e preocupação no semblante de Rayford que imediatamente colocou um vídeo de gravação.
— Chaim — disse Tsion —, você não está em condições de nos ajudar. Controle isso para mim até o momento de partirmos. — Ele subiu a escada correndo.
— Peguem só o que conseguirem carregar no colo — avisou Rayford. — Se pusermos alguma coisa no bagageiro, vamos atrair muita atenção.
Tsion corria de um lado para o outro, preocupado com Rayford. Era natural que todos estivessem aliviados mas continuavam apreensivos, porque ainda não haviam saído da casa secreta. Rayford estava agitado por algum motivo. Depois de dar uma última olhada em seu quarto para ver se havia pegado os artigos indispensáveis, Tsion viu Rayford empurrar Albie para dentro do quarto vazio de Buck e Chloe.
— Todos vocês sabem que sou um potentado generoso — disse Carpathia enquanto o povo começava novamente a formar uma fila para passar por ele. Dessa vez, teriam a extraordinária experiência de falar com um homem que esteve morto por quase três dias e ainda não havia se afastado do próprio caixão.
— Ironicamente — ele prosseguiu —, a pessoa ou pessoas responsáveis por minha morte talvez não sejam acusadas de assassinato. Porém, a tentativa de assassinar uma autoridade do governo continua a ser crime, é claro. O criminoso ou criminosos sabem disso, mas eu perdôo tudo e todos. Nenhuma ação oficial será levada a efeito pelo governo da Comunidade Global. Não sei quais serão as atitudes que os cidadãos vão tomar para assegurar que atos desse tipo jamais voltem a acontecer, mas eu não interferirei. Contudo, deixando de lado o assunto dos pretensos assassinos, existem oponentes à Comunidade Global sob minha liderança. Preste atenção, meu povo: eu não necessito de oposição nem a tolerarei. Vocês não precisam temer por terem vindo aqui comemorar minha vida na ocasião de minha morte nem por estarem aqui para adorar-me como seu líder divino. Mas aqueles que acreditam ser possível rebelar-se contra minha autoridade devem acautelar-se. Em breve, instituirei um programa de confirmação de lealdade que provará de uma vez por todas quem está conosco e quem está contra nós. Ai dos arrogantes e rebeldes. Eles não encontrarão lugar para esconder-se. Agora, meus súditos leais, aproximem-se e adorem.


VINTE

Rayford empurrou Albie pelo braço para dentro do quarto de Buck e Chloe. Ao fechar a porta, avistou Chaim caminhando com dificuldade em direção a Tsion, gesticulando, grunhindo por entre as ataduras e os fios que prendiam seu queixo, tentando forçar Tsion a acompanhá-lo. O celular de Rayford tocou.
— Aguarde um instante — ele disse a Albie. Em seguida, atendeu a ligação. — Aqui é Steele.
— Rayford, é Hattie! — A voz dela beirava o histerismo.
— Onde você está?
— Quanto menos você souber, melhor. Tire seu pessoal da casa secreta.
— Por quê?
— Eles estão atrás de vocês. Não me pergunte como eu sei. E Carpathia ressuscitou. Você viu?
— Não.
— É tudo verdade, não, Rayford?
— Claro que é, e você sabia tanto quanto nós. Não entendo por que resistiu tanto.
— Eu não estava resistindo. Achava que as coisas não seriam exatamente da maneira como o Dr. Ben-Judá dizia.
— O que você vai fazer agora, Hattie? Você sabe o que sentimos em relação ao que aconteceu e em relação a você.
— No momento, não vou fazer nada, Rayford. Eu só queria avisar vocês.
— Obrigado, mas agora sou eu quem está avisando você. Não espere muito tempo para decidir-se.
— Preciso desligar, Rayford.
— O Dr. Rosenzweig já se decidiu.
— Eu disse que preciso... o quê? Ele se decidiu? Disseram que estava morto. Ele está aí? Posso falar com ele?
— Ele vai ligar para você assim que puder.
— Não quero que meu telefone toque na hora errada.
— Então, ligue para nós amanhã, Hattie, entendeu? Estamos orando para que você faça a coisa certa.
David não sabia onde Viv Ivins se sentara. Sem dúvida, devia ser no setor VIP, mas ele só notou sua presença quando ela apareceu ao lado de Carpathia. Fortunato estava à direita dela, portanto, quando o povo passava por eles, cumprimentava primeiro Leon, depois Viv e, por último, Carpathia. Parecia que aquele esquema havia sido montado para tranqüilizar a multidão. Ninguém precisava ter medo de um homem morto que queria tocar o povo e ser tocado por ele.
Leon conduzia gentilmente as pessoas até Viv, que dizia algumas palavras de conforto e pedia que não se demorassem nos cumprimentos a Carpathia. Ele fitava cada um, parecendo murmurar palavras ternas, e segurava-lhes a mão. Ninguém tinha a permissão de alongar-se nos cumprimentos, e todos aparentavam emoção após ter passado por ele. Muitos desmaiavam. David fez um cálculo rápido. Se Nicolae desse, digamos, cinco ou seis segundos de atenção a cada um dos três milhões da fila, o último a cumprimentá-lo demoraria mais de 200 dias para chegar até ele. Com certeza, muita gente desistiria depois de aguardar algumas horas.
— Esta conversa não pode esperar, capitão Steele? — perguntou Albie. Rayford bloqueou-lhe o caminho.
— Por que, Albie?
— Você não quer ver o que está sendo noticiado na TV?
— Vou ver o replay.
— Então, você também quer ver.
— Claro — disse Rayford. — Mas estou começando a me perguntar se nós dois queremos ver pelo mesmo motivo.
— O que você está dizendo?
— Qual é o seu nome verdadeiro?
— Você sabe, Rayford.
— Posso verificar o selo em sua testa? Albie semicerrou os olhos.
— Em minha cultura, isso é um tremendo insulto. Principalmente depois de tudo o que passamos juntos.
— Sua cultura nunca teve esse selo. Onde está o insulto?
— Em alguém não confiar em nós.
— Você mesmo me disse para não confiar em ninguém.
— Trata-se de um princípio, meu amigo. Você acha que eu ia fingir e mentir sobre uma coisa tão verdadeira para você?
— Não sei.
— Então, é melhor verificar meu selo. Você já me insultou demais.
— Aceite isso como um elogio, Albie. Se você estiver sendo sincero, foi convincente demais como comandante da CG a ponto de me fazer duvidar.
— Eu tinha de ser.
— E foi. Como você sabia que éramos três contra 12?
— Eu sou estudioso. Faz parte de meu serviço. Como você acha que sobrevivi no mercado negro? Sou cuidadoso. Não costumo vestir uma farda e fingir uma identidade sem antes conhecer tudo, tintim por tintim.
— Como você sabia que os três jipes transportavam quatro soldados das Forças Pacificadoras?
— Faz parte do esquema da CG. Os patrulheiros noturnos são chamados esquadrões e têm um líder, três veículos e onze subordinados. Durante o dia, eles trabalham em duplas.
— Entendo. E quanto à BASALT?
— Nunca ouvi falar. Foi bom ele ter explicado o que significa.
— E quanto ao palestrante convidado? c
— Inventei.
— E Chesapeake?
— Foi pura imaginação. Li alguma coisa que a CG tinha um local de treinamento lá. Fiquei satisfeito por ser tão convincente, Rayford, porque nossas vidas dependiam dessas coisas. Foi o que eu fiz.
— E o tal Diretor Regional do Meio-Oeste? Como era mesmo o nome dele?
— Diretor Crawford.
— De onde você o conhece?
— De uma lista de nomes que achei conveniente familiarizar-me com ela.
— Você chegou a conhecê-lo?
— Como eu poderia?
— Você ainda é um inimigo secreto de Carpathia?
— Em breve vou deixar de ser secreto, assim espero. Não " gosto de representar o tempo todo. Satisfeito?
— Como você sabia da suspensão das atividades relativas a combates durante o funeral, a tal de JMP?
— Li em algum lugar.
— Você leu.
— Você devia me conhecer melhor.
— Acho que preciso conhecê-lo ainda mais. Albie estava furioso.
— Vou parar de fingir que não fiquei profundamente ofendido — ele disse, arrancando o quepe e atirando-o ao chão.
De repente, Rayford se deu conta de que só restavam os dois no cômodo principal da casa. Não se ouviam passos no pavimento superior. Todos deviam estar aglomerados diante da TV, no abrigo subterrâneo.
Albie sacou a arma, e Rayford afastou-se bruscamente, batendo a cabeça na porta do quarto. Albie virou o cano da arma para si e entregou-a a Rayford.
— Pegue — ele disse. — Atire em mim se achar que sou mentiroso.
Rayford hesitou.
— Vamos, pegue!
— Eu não vou atirar em você, Albie.
— Mesmo que eu seja um impostor? Mesmo que eu tenha enganado você, mentido para você? Comprometido você? Mesmo que eu faça parte da CG? Vou lhe dizer uma coisa, capitão Steele. Se fosse verdade o que você pensa de mim e se eu fosse você, atiraria sem nenhum remorso. —. Ele voltou a oferecer-lhe a arma. — De uma coisa eu sei. Se eu pertencesse à CG, atiraria em você aqui mesmo. E mataria seus companheiros, um a um, enquanto eles estivessem fugindo do abrigo subterrâneo. Depois, cercaria o local e deixaria que o líder de esquadrão Datillo incinerasse todas as provas. E então, capitão Steele? Esta é uma oferta por tempo limitado. Não seria melhor você verificar meu selo antes de saber se assinou o atestado de óbito de todos os seus amigos? Ou você vai arriscar a vida deles e parar de me insultar?
Ao ver que Rayford hesitava em pegar a arma, Albie atirou-a na cama. Rayford gostaria de pegá-la, mas não tinha certeza de ser mais rápido que Albie, caso fosse necessário. Albie deu um passo à frente, fazendo Rayford recuar, mas ele simplesmente encostou a testa no rosto de Rayford.
— Pode pôr a mão, esfregar, lavar, passar gasolina em cima. Faça o que quiser para se convencer. Eu já sei quem sou. Se sou um impostor, atire em mim. Se sou autêntico, entendo que estou lhe devolvendo o comando. De uma forma ou outra, você já me ofendeu demais.
— Eu não tinha a intenção de ofender você, Albie. Mas devo...
— Vá em frente. Já que você é o líder, assuma o comando! c
David esquadrinhava os grupos de pessoas da multidão reunidos em locais mais distantes, no meio dos quais guardas ziguezagueavam em carrinhos avisando a todos, por meio de megafones, que a CG lamentava informar que "apenas quem estiver dentro do pátio poderá cumprimentar Sua Excelência pessoalmente. Agradecemos a compreensão de todos. Os que desejarem, poderão permanecer para ouvir as observações finais dentro de uma hora ou pouco mais".
Depois de procurar Annie por toda parte e não encontrá-la, David disse à família Wong que precisava ir embora.
O Sr. Wong, com o rosto marcado por lágrimas e exaustão, disse:
— Não! Você levar nós até a fila.
— Sinto muito — disse David. — A fila já foi desfeita.
— Mas nós estar no pátio! Lugar VIP! Você dar um jeito.
— Não — disse David, inclinando-se na direção dele. — O senhor é o convidado VIP. O senhor deve dar um jeito.
Enquanto o homem esbravejava, David tocou o ombro da Sra. Wong e abraçou Ming e Chang, cochichando ao ouvido deles:
— Jesus já ressuscitou. Ambos responderam baixinho:
— Ele já ressuscitou realmente.
— Perdoe-me, Albie — disse Rayford. — Não se sinta ofendido.
— Você já me ofendeu, meu amigo. Agora, deve estar com a consciência tranqüila.
— Estou tentando tranqüilizar a sua consciência, Albie.
— Isso vai necessitar de muitos pedidos de desculpas, e acho que você não tem o tempo, a energia nem, digamos, o discernimento necessário. Agora, verifique o selo em minha testa e vamos dar o fora daqui.
Rayford estendeu a mão para tocar a testa de Albie, que pareceu enrijecer o corpo. Uma batida forte na porta fez os dois pularem de susto. Tsion pôs a cabeça na fresta da porta.
— Desculpem-me interrompê-los, cavalheiros, mas Carpathia ressuscitou. Venham comigo para ver!
Rayford pegou a arma.
— Pode ficar com ela — disse Albie, enquanto eles se dirigiam para a escada do porão.
— Mas isso deixaria você mais ofendido ainda.
— Eu já lhe disse, não posso ficar mais ofendido do que estou.
Rayford passou a arma desajeitadamente para Albie. Albie balançou a cabeça, agarrou a arma e colocou-a no coldre. Enquanto afivelava o coldre, ele disse:
— A única coisa mais ofensiva do que um velho amigo desconfiar da gente é o seu estilo tolo de liderança. Rayford, você e seus comandados estão entrando na fase mais perigosa de suas vidas. Não ponha tudo a perder por causa de indecisão e julgamento precipitado.
Buck segurava no colo o bebê adormecido, enquanto Chloe terminava de pegar seus pertences. Ele ouviu Rayford e Albie descendo a escada e se perguntou por que os dois estavam de mãos vazias depois de tanto tempo no andar superior. Talvez já tivessem levado tudo para o carro.
— Você viu isso, pai? — perguntou Buck, olhando para a tela da TV onde a CNN CG reprisava reiteradas vezes os momentos mais dramáticos ocorridos na Nova Babilônia.
— É melhor você não me chamar assim na frente dos membros do Comando Tribulação — sussurrou Rayford, desviando o olhar para a TV.
Buck levantou a cabeça.
— Como você desejar, capitão Steele.
Ele foi mancando até o local onde Chloe ajuntara os artigos essenciais, entregou o bebê a ela, pegou uma trouxa e saiu lentamente da casa em direção ao Land Rover. O ar frio da madrugada revigorou-lhe o ânimo, e ele prestou atenção para ver se ouvia algum ruído estranho. Depois da história bizarra engendrada por Albie, ele não queria ouvir de jeito nenhum aqueles jipes da CG retornando. E se o líder de esquadrão fosse mais corajoso do que Albie imaginava e se arriscasse a levar uma reprimenda só para conferir se a história era verdadeira? Por certo, ele voltaria com uma tropa mais reforçada e poderia prender ou matar todo o pessoal do Comando Tribulação e destruir a casa.
Buck estava preocupado com seus ferimentos. Sentia dor nas duas pernas, o que poderia significar algo mais grave do que simples lesão nos tecidos. Talvez tivesse alguns ossos quebrados. Ele estava certo de ter fraturado uma ou duas costelas e imaginava que o mesmo deveria ter acontecido com Chaim. Os dois haviam sofrido um trauma violento no corpo, embora tivessem batido primeiro a cabeça na queda do avião.
Ao se afastar do carro, Buck olhou de relance no espelho retrovisor quebrado do Rover. Teria apenas 33 anos? Sentia-se pior do que aquilo que aparentava; seu semblante era o de um homem de 50 anos. Um ferimento na testa que ele não havia percebido no hospital formara uma crosta grande e feia, sensível ao toque dos dedos. Devia ter sido provocado pelo primeiro impacto, quando bateu a cabeça com força no encosto da poltrona da frente. Os cortes profundos sofridos ao cair no meio dos arbustos no Aeroporto de Jerusalém, o que parecia ter acontecido séculos atrás, haviam fechado, mas as cicatrizes com manchas vermelhas continuavam visíveis em seu queixo, nas bochechas e na testa.
Pior ainda, seus olhos demonstravam extremo cansaço, uma fadiga que combinava com a ânsia de sobreviver, com o amor e a preocupação que sentia por sua esposa e filho, e com a terrível exaustão de viver como fugitivo, tendo de aprender a lidar com as perdas de entes queridos. Respirou fundo, o que lhe provocou uma dor aguda nas costelas. Não fazia idéia de onde estaria na noite seguinte, mas sabia que ia dormir bastante.
Buck achava que deveria retornar à casa para ajudar seus companheiros, mas, na condição em que se encontrava, seria melhor nem tentar. O pessoal começou a sair arrastando trouxas pesadas, com exceção de Tsion, que carregava sobre os ombros apenas duas fronhas abarrotadas, amarradas uma na outra, para poder amparar Chaim.
Albie, o último a sair, estava falando ao telefone. Rayford tentava acomodar o pessoal dentro do carro. Depois de ajeitar Chloe, Kenny, Leah, Tsion e Chaim no banco traseiro, ele teve dificuldade para fechar as portas. Buck se sentaria na frente, perto da janela, Albie no meio e Rayford ao volante. Antes de entrarem no carro, Rayford e Albie pararam entre a garagem e a casa. Albie continuava a falar ao telefone. Rayford fez um sinal para que Buck se aproximasse.
— O helicóptero está em Palwaukee — relatou Albie. — E os pilotos que levaram o helicóptero para Palwaukee estão retornando para Rantoul em outro avião. Aceita um conselho, capitão?
— Diga.
— Acho que devemos seguir direto até a pista e colocar no helicóptero os feridos e a maior parte da bagagem possível. Você pilota o helicóptero até a nova casa secreta, e passa a direção do carro para outra pessoa.
— E você?
— Seria melhor eu levar o caça para Kankakee. Você pode me pegar lá mais tarde com o helicóptero, e eu levo o Gulfstream para Kankakee.
— Como vamos fazer para atear fogo na casa? — perguntou Rayford.
— Você tem algum combustível?
— Querosene e gasolina na garagem. E algumas tochas.
— É o suficiente. Você deixou alguma coisa dentro da casa que possa incriminá-lo?
— Que eu me lembre, não. E você, Buck? : ; Buck balançou a cabeça negativamente.
— Por mim, é melhor botar fogo para valer na casa.
— Eu também acho — disse Rayford. — Perguntei por perguntar. Não vamos deixar prova nenhuma lá dentro.
Albie consultou o relógio.
— Acho que estamos abusando da sorte. Vamos deixar que a CG perca tempo vasculhando tudo e, depois, ponha fogo na casa. Precisamos sair daqui o mais rápido possível.
— Você é quem sabe — disse Rayford. — Quer dar alguma opinião, Buck?
— Concordo com tudo o que você fizer, pa... ou melhor, capitão.
Em Palwaukee, Albie continuou a encenação e informou ao funcionário da torre que o transporte do helicóptero e o combustível para o caça e o Gulfstream deveriam ser lançados sob o mesmo número de ordem da CG. O homem grandalhão, de cabelos oleosos e semblante cansado por falta de dormir, parecia tão emocionado quanto da primeira vez por ter a oportunidade de servir à CG, principalmente ao subcomandante.
— O senhor viu a notícia? — ele perguntou a Albie. — A notícia maravilhosa?
— Sim — respondeu Albie. — Obrigado por sua gentileza. Agora, precisamos partir.
— Foi um prazer, subcomandante! Foi mesmo um prazer! Se o senhor precisar de mais alguma coisa, por favor...
Buck foi o último a afastar-se dali e fez um movimento afirmativo com a cabeça para o homem. Albie correu em direção ao jato reabastecido, e Rayford, em direção ao helicóptero.
David procurou Annie por toda parte sem sucesso. Não conseguiu falar com ela por telefone e não estava disposto a gritar seu nome no meio da multidão. Decidiu voltar ao escritório, onde ligou a TV para assistir aos comentários finais de Carpathia e sentou-se diante do computador para certificar-se de que a nova casa secreta era acessível.
Ele ligou para Rayford, que o inteirou a respeito dos últimos acontecimentos.
— Você acha que eu posso confiar em Albie, David?
— Albie? Ele foi descoberto por você, não? Ultimamente temos tido um relacionamento profissional mais próximo. Acho que ele é o melhor. Você e Mac sempre disseram isso. De qualquer forma, agora ele é um dos nossos, certo?
— Certo.
— Se você tem dúvidas, verifique o selo na testa dele.
— Aparentemente, isso é considerado um insulto para um homem do Oriente Médio.
— Ei, capitão! Você está falando com um deles.
— Você se sentiria insultado se alguém verificasse seu selo?
— Bem, acho que, se você fizesse isso depois de me conhecer há tanto tempo, eu imaginaria que nunca confiou em mim.
— Se eu não puder confiar em você, David, em quem mais eu poderia confiar?
— Digo o mesmo em relação a Albie, mas é você quem tem de decidir. Parece que ele já sabe muito a nosso respeito.
— Eu decidi assumir o risco.
— Para mim, é o suficiente. Avise-me quando você chegar ao Edifício Strong. Vai tentar pousar o helicóptero dentro da torre?
— Com esta carga toda, vai ser impossível. Vou manter o helicóptero o mais escondido possível, para ele não ser visto de cima.
— Sua maior preocupação deverá ser com as fotografias tiradas de satélites, porque não há nenhuma aeronave voando tão baixo assim. Se você conseguir descarregar tudo e achar que pode guardar o helicóptero dentro da torre antes do amanhecer, faça isso.
— Positivo.
— Estou destravando todas as portas do edifício para vocês. Entrem, acomodem-se, fiquem quietos e procurem não ser vistos por ninguém.
— Vamos precisar de tinta preta em spray.
— Eu posso conseguir. Para onde devo mandá-la?
— Kankakee, acho.
— Você é quem manda. Como está Tsion?
— Os feridos são Chaim e Buck.
— Mas eles vão ficar bem, certo?
— Parece que sim.
— Tsion é o único que me preocupa. Precisamos dele na Internet, fazendo o que ele mais sabe fazer.
Rayford calculou que estava na metade do caminho até a nova casa secreta.
— É verdade, David. Só espero poder me comunicar com você da nova casa secreta da mesma forma que eu fazia na outra.
— Vai dar tudo certo. Quando chegar o dia em que Mac, Smitty, Annie e eu tivermos de sair daqui, vamos instalar o maior centro de comunicações que alguém pode imaginar. Ei, você pegou seu laptop, não?
— Ele estava em Monte Prospect. Vou voltar a trabalhar com ele em Chicago.
— Ótimo, porque enviei a você uma lista que encontrei, preparada por uma mulher chamada Viv Ivins, a mais antiga confidente de Carpathia. A lista mostra os dez reinos com os novos nomes, e cada um deles recebeu um número. Deve haver algum significado neles, mas não consegui decifrá-los até agora.
— Você ainda não tentou colocar esses números em um de seus mirabolantes programas de computador?
— Assim que eu puder, mas não estou preocupado com detalhes. Só quero saber o que significam e se isso vai trazer alguma vantagem para nós.
— Vamos dar uma examinada. Por ora, vai ser bom demais voltarmos a ficar juntos, todos em um só lugar, sabendo o que se passa com cada um, acolher novos moradores e restabelecer a ordem.
— Eu vou saber quando você entrar lá. Minhas câmeras estão ligadas.
Enquanto o computador trabalhava, David queria concentrar-se na busca de Annie. Havia milhares de motivos que dificultavam localizá-la, mas David descartou todos eles. Levantou-se e esticou o corpo, notando que a cena exibida pela TV havia mudado. A emissora deixara de mostrar Leon, Viv e Nick recebendo os cumprimentos do povo e agora focalizava apenas Nicolae.
Ele olhava diretamente para a câmera. Apesar de tudo, David entendia por que o homem era tão cativante. Além do elegante porte europeu, ele demonstrava carinho e compaixão. David sabia que Nicolae era traiçoeiro, mas não deixava transparecer sua falsidade.
O locutor disse:
— Senhoras e senhores da Comunidade Global, com a palavra o Supremo Potentado, Sua Excelência Nicolae Carpathia.
Nicolae aproximou-se da câmera, forçando o operador a reenquadrar a cena. Ele olhava diretamente para as lentes.
— Meus caros súditos — ele começou a dizer —, atravessamos juntos uma semana difícil, não? Fiquei profundamente comovido com os milhões de pessoas que fizeram um esforço tremendo para vir a Nova Babilônia a fim de assistir a uma cerimônia que, felizmente, não foi a de meu funeral. As demonstrações de emoção foram encorajadoras para mim. Conforme vocês sabem e eu já mencionei, há alguns grupos remanescentes de resistência à nossa luta pela paz e harmonia. Há também aqueles que adquiriram fama por terem proferido as mais terríveis ofensas, blasfêmias e falsos testemunhos contra mim, usando termos de que ninguém gostaria de ser merecedor. Creio que todos vocês concordam que hoje provei quem sou. Vocês estão certos em fazer o que suas mentes e corações mandam. Continuem a me seguir. Vocês assistiram a tudo, e seus olhos não mentem. Também estou ansioso por acolher em nosso meio todos os ex-seguidores da seita radical que se convenceram de que não sou o inimigo. Ao contrário, posso ser o objeto de devoção da própria religião deles, e oro para que eles não se fechem a essa possibilidade. Antes de encerrar, desejo dizer algumas palavras diretamente a meus opositores. Eu sempre permiti a existência de opiniões divergentes, sem rancor ou amargura. Contudo, existem pessoas entre vocês que têm-me chamado publicamente de anticristo e se referido a este período da história como Tribulação. Tomem estas palavras como uma promessa pessoal: Se insistirem em continuar com seus ataques subversivos contra meu caráter e contra a harmonia mundial que me esforcei tanto para instituir, a palavra tribulação não servirá sequer para começar a descrever o que lhes está reservado. Se estes últimos três anos e meio foram considerados por vocês como tribulação, vão saber o que significa sofrimento de verdade quando chegar a Grande Tribulação. .



EPÍLOGO

"Ai [dos habitantes] da terra e do mar, pois o diabo desceu até vós, cheio de grande cólera, sabendo que pouco tempo lhe resta." Apocalipse 12.12







SOBRE OS AUTORES

Jerry B. Jenkins (www.jerryjenkins.com) é o autor da série Deixados para Trás e de mais de 100 livros, quatro dos quais figuraram na lista de mais vendidos do New York Times. Foi vice-presidente da divisão editorial do Instituto Bíblico Moody de Chicago e trabalhou muitos anos como editor da Moody Magazine, com a qual colabora até hoje.
Escreveu artigos para várias publicações, tais como Reader’s Digest, Parade, revistas de bordo e numerosos periódicos cristãos. Seus livros abrangem quatro gêneros literários: biografias, obras sobre casamento e família, ficção para crianças e ficção para adultos.
Dentre outras, Jenkins colaborou nas biografias de Hank Aaron, Bill Gaither, Luis Palau, Walter Payton, Orei Hershiser, Nolan Ryan, Brett Butler e Billy Graham.
Sete de seus romances apocalípticos — Deixados para Trás, Comando Tribulação, Nicolae, A Colheita, Apoliom, Assassinos e O Possuído — constaram da lista dos mais vendidos da Associação Cristã de Livreiros e do semanário religioso Publishers Weekly. Deixados para Trás foi indicado para receber o prêmio de Romance do Ano, pela Associação das Editoras Cristãs Evangélicas, em 1997, 1998, 1999 e 2000. O Possuído foi o número um na lista dos mais vendidos do New York Times durante quatro semanas consecutivas.
Como autor e conferencista de assuntos relacionados ao casamento e à família, Jenkins tem participado com freqüência do programa de rádio do Dr. James Dobson, Focus on the Family (A Família em Foco).
Jerry também é o autor das tiras cômicas Gil Thorp, distribuídas aos jornais dos Estados Unidos por Tribune Media Services.
Ele mora com sua esposa, Dianna, no Colorado.
Convites para conferências podem ser feitos pela Internet no seguinte endereço: speaking@jerryjenkins.com.

O Dr. Tim LaHaye (www.timlahaye.com), que idealizou o projeto de romancear o Arrebatamento e a Tribulação, é autor famoso, ministro do Evangelho, conselheiro, comentarista de televisão e palestrante de temas sobre vida familiar e profecias bíblicas. É fundador e presidente do Family Life Seminars (Seminários sobre a Vida Familiar) e também fundador do The PreTrib Research Center (Centro de Pesquisas do Período Pré-Tribulação). Atualmente, o Dr. LaHaye faz palestras sobre profecias bíblicas nos Estados Unidos e no Canadá, onde seus sete livros sobre profecias fazem muito sucesso.
O Dr. LaHaye é formado pela Universidade Bob Jones, com mestrado e doutorado em ministério pelo Western Conservative Theological Seminary (Seminário Teológico Conservador do Oeste). Durante 25 anos, foi pastor de uma das mais prósperas igrejas dos Estados Unidos, em San Diego, a qual se expandiu para outras três localidades. Nesse período, fundou duas escolas cristãs de ensino médio reconhecidas pelo governo, um sistema de escolas cristãs composto de dez estabelecimentos e a Christian Heritage College (Faculdade Herança Cristã).
O Dr. LaHaye escreveu mais de 40 livros, com mais de 30 milhões de exemplares impressos em 33 idiomas, abordando uma ampla variedade de assuntos, tais como vida familiar, estados de humor e profecias bíblicas. Estas obras de ficção, escritas em parceria com Jerry Jenkins — Deixados para Trás, Comando Tribulação, Nicolae, A Colheita, Apoliom, Assassinos e O Possuído —, alcançaram o primeiro lugar na lista dos livros cristãos mais vendidos. Outras obras escritas por ele: Temperamento Controlado pelo Espírito; Como Ser Feliz Mesmo Sendo Casado; Revelation, Illustrated and Made Plain (O Apocalipse Ilustrado e Simplificado); Como Estudar Sozinho as Profecias Bíblicas; Um Homem Chamado Jesus e Estamos Vivendo os Últimos Dias? — publicados pela Editora United Press —, No Fear of the Storm: Why Christians Will Escape Ail the Tribulation (Sem Medo da Tempestade: Por Que os Cristãos Escaparão do Período da Tribulação); e Deixados para Trás — Série Teen.
O Dr. LaHaye é pai de quatro filhos e tem nove netos. Gosta muito de esquiar na neve e na água, de motociclismo, de golfe, de férias com a família e de caminhadas.

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