domingo, 5 de setembro de 2010

DEIXADOS PARA TRÁS VIIIB

Depois de tomar essa decisão, Rayford entregou-se ao sono, planejando pedir a Zeke que providenciasse uma nova carteira de identidade para Buck naquela manhã. De seu posto em Nova Babilônia, David se encarregaria de facilitar o caminho para Albie e Buck.


David informou o chefe dos Serviços de Alimentação que o supremo comandante Hickman necessitava do maior porco vivo que existia. O animal deveria estar disponível para a visita de Carpathia a Israel. Em seguida, ele passou por seu escritório e ligou o computador para verificar se havia alguma novidade antes de seu encontro com Hannah. Havia um e-mail urgente de Ming Toy:
"Eu não sei mais a quem recorrer. Fiquei muito abalada com a notícia sobre a perda de uma pessoa tão querida para você e estou orando para que Deus lhe dê forças. Eu posso imaginar seu sofrimento. Diretor Hassid, você foi visto por alguém de minha família desde que parti daí? Até a última vez que conversei com eles, ninguém tinha notícias suas. Estou muito preocupada. Eles conseguiram acomodações de graça até Chang ser registrado como empregado da CG, e meu pai não cabe em si de tanta emoção. Minha mãe continua calada como sempre, mas Chang me disse que está desesperado. Ele não quer trabalhar para a CG de jeito nenhum, apesar da insistência de meu pai. Ter um filho trabalhando para Carpathia é a maior honra que meu pai imaginaria receber.
"Chang ouviu dizer que todos os empregados receberão a marca dentro de algumas semanas, mas corre um boato de que os empregados contratados durante esse período serão os primeiros da fila. Você sabe alguma coisa sobre isso? É verdade? Para essa gente, faz sentido. Por que eles haveriam de contratar alguém sem saber antes se a pessoa é leal? Assim, ela não vai perder tempo na fila para receber a marca.
"Meu pai insiste para que Chang entregue seus documentos ao Departamento de Pessoal imediatamente e está ansioso por ver o filho entre os primeiros da fila para receber a marca. E ele vai ficar mais feliz ainda se puder presenciar esse momento. Chang está pronto para contar a meu pai que é crente em Jesus e ser acusado de judaísta, mas ele tem medo de duas coisas. Primeira, que meu pai o denuncie. Segunda, que meu pai exija que ele conte a verdade sobre mim. Confie em mim, diretor Hassid; eu conheço meu pai. Ele venderia os dois filhos para provar sua lealdade a Carpathia e à CG.
"Estou pedindo insistentemente a meu irmão que não admita nada a meu pai, mas não sei por quanto tempo ele vai agüentar. A única coisa que pode impedir meu irmão de trabalhar lá é fugir ou contar a verdade a meu pai. Você tem meios de me ajudar? Sinto muito incomodá-lo durante essa fase terrível que você está atravessando.
"Tenha certeza de que estou orando por você. Acho que você já sabe, mas Leah me contou que seus companheiros na casa secreta estão orando por você diariamente.
"Apresento-lhe meus respeitos e admiração. Sua irmã em Cristo, Ming Toy."
David ligou para o Departamento de Pessoal.
- Vocês podem me fornecer os dados sobre um tal de Chang Wong?
- Sim, senhor. Excelente currículo. Indicado publicamente por Carpathia, pelo menos é o que a chefia diz. Muito inteligente. Ele vai trabalhar aqui assim que cuidarmos de toda a sua documentação. A única pergunta é onde. Acho que o senhor vai querer que ele trabalhe em seu departamento. Todos querem.
- Ainda não sei ao certo. É apenas uma suposição.
- O melhor lugar para ele seria em seu departamento. O senhor não vai querer abrir mão desse rapaz, vai?
- É cedo demais para dizer, mas eu não sigo a cabeça dos outros. Não é porque todos querem esse rapaz que vou ficar desesperado para aceitá-lo em meu departamento.
- Isso é verdade. Mas ele seria uma mão na roda.
- O que mais vocês sabem sobre ele?
- Nada. Ele devia ter aparecido aqui ontem. Está escrito aqui. Assim que ele apresentar os documentos e preencher o formulário de pedido de emprego, vamos fazer-lhe uma oferta.
- E se ele aceitar?
- Será admitido.
- Ele não concluiu o Segundo Grau.
- Temos professores particulares aqui, mas ele tem capacidade até para dar aulas no curso secundário.
- Quando ele vai começar?
- Daqui a alguns dias. Se houver alguma demora, será por causa do novo regulamento. Você está sabendo, não?
- Não.
- Deve estar entre seus e-mails.
David não queria demonstrar ansiedade.
- Vou procurar. Obrigado.
- Você quer o rapaz se nós o contratarmos?
David tinha de raciocinar rápido. Se ele o aceitasse em seu departamento e depois fugisse na companhia dos outros, o rapaz seria visto como inimigo do Estado. Porém, se a fuga parecesse um acidente, não haveria suspeitas sobre Chang ou sobre qualquer outra pessoa ligada a eles. Por outro lado, se a marca fosse um pré-requisito para a contratação, o assunto poderia ser discutido. O rapaz recusaria, o pai o obrigaria a aceitar, e fim da história. David não levantaria suspeitas por querer o rapaz como seu funcionário nem por passar tempo ao lado dele.
- Posso ter uma conversa preliminar com ele?
- Uma entrevista? Hum. Não faz parte do protocolo, mas não vejo mal nenhum.
- Onde ele está morando?
- Quatro-zero-cinco-quatro.
Pertinho de Hannah. Será que ela sabe?
- Obrigado.
David dirigiu-se apressado ao hospital. Hannah cumprimentou-o profissionalmente e fez as perguntas rotineiras sobre hemorragia, desconforto e dor. Em seguida, pediu que ele a acompanhasse até uma sala reservada para retirar os pontos.
- Você parece bem de saúde, mas um pouco perturbado - ela disse, aplicando uma solução anti-séptica em sua cabeça que ensopou a atadura.
- Não sei por que razão - ele resmungou.
- Sarcasmo? Lembre-se, estou do seu lado.
- Você sabia que os Wongs estão morando em seu andar?
- Quem são os Wongs?
David deu um tapa na testa.
- Não faça assim - ela disse. - O local está esterilizado. Feche os olhos. - David obedeceu, e ela aplicou novamente a solução anti-séptica. - E então, quem são os Wongs?
David contou-lhe a história da família Wong.
- O que você vai fazer? - ela perguntou.
- Instalar um "grampo" no quarto deles.
- Você pode fazer isso?
- Posso fazer qualquer coisa.
- Estou começando a achar que sim. Mas como?
- Eu vou lhe contar, mas aí...
- Ah, sim, eu sei, você teria de me matar. - Ela pareceu constrangida por ter dito essas palavras a alguém que acabara de perder a noiva. - Sinto muito - ela murmurou.
- A culpa foi minha. Fui eu que comecei.
Ela empurrou levemente a atadura, provocando lágrimas de dor nos olhos dele.
- Tenha um pouco de paciência - ela disse, despejando mais líquido.
- Essa solução não deveria facilitar a retirada da atadura?
- É o que dizemos a nós mesmas. Felizmente você caiu nas mãos de um ótimo cirurgião. Ah, sim, e também nas minhas mãos. Cortei uma boa quantidade de cabelo. Nesta parte há somente couro cabeludo, ferimento e pontos. Imagine se também houvesse cabelos.
- Nem quero pensar nisso.
- Pense em outra coisa. Vou tentar ser mais rápida.
- Você não pode arrancar de uma só vez?
- Não, por causa dos pontos. Há um jeito certo de retirá-los. Se eu puxar os pontos com a atadura, você vai subir até o teto de dor. Tente pensar em outra coisa.
- Por exemplo?
Ela parou e colocou as mãos na cintura, tomando cuidado para não tocar em nada com as mãos enluvadas.
- David, eu mal o conheço. Como posso saber em que você deve pensar?
Ele encolheu os ombros.
- Pense em sua liberdade - ela disse. - Pense em ir embora daqui para sempre.
- Você chama isso de liberdade? É uma outra forma de prisão.
- Tenho pensado muito nisso - ela disse. - Deve ser menos estressante, você não acha?
- Diferente, talvez. Ai!
- Desculpe-me. Seja forte. Fale mais.
- Bem, não vamos ter de nos preocupar se alguém estará nos vigiando ou ouvindo nossa conversa, ou se os e-mails e telefones sigilosos foram grampeados. Não vamos ter de nos preocupar em sermos descobertos e que nos obriguem a nos enforcarmos, nem de, antes de morrer, acabar pondo em risco a vida de outras pessoas.
- É nisso que estou pensando - ela disse.
- Mas nunca mais seremos livres. Seremos fugitivos.
- Então, você já desistiu de minha idéia.
- Não, por quê? Eu passei a missão para Mac e Abdullah.
- Se der certo, ninguém vai desconfiar de nós. Conseguimos novas carteiras de identidade, mudamos de cara e começamos tudo novamente.
- Mas sem a marca da lealdade.
Ela hesitou.
- Bem, sim, isso mesmo. Agüente firme. Vamos lá.
Ela segurou diante dos olhos dele a longa atadura presa na ponta de uma tesoura cirúrgica. Além da solução anti-séptica, ela continha sangue, resíduos do ferimento, dois grampos de metal e vários pontos.
- Vou lhe fazer uma pergunta - ele disse. - É meio fora de propósito.
- Você não deveria dizer posso lhe fazer uma pergunta?
- Ah, lá vem você com demonstrações de sua cultura e educação.
- Desculpe-me. É uma doença incurável.
- Acho que vamos precisar de um professor de gramática na casa secreta quando Tsion e Buck estiverem ausentes. Mas, voltando à minha pergunta, por que as enfermeiras querem que a gente veja a atadura? Estou falando dessa coisa feia.
- Feia? - Ela passou a imitar voz de criança. - O menininho não gosta de ver esta coisa feia?
- Os médicos e as enfermeiras sempre fazem o que você acabou de fazer. Não seria melhor retirar a atadura e atirá-la no lixo? Vocês acham que, se não mostrarem, a gente não vai pagar?
Ela encolheu os ombros.
- Vocês devem adorar essa coisa - ele disse. - É só o que eu posso pensar. A propósito, você nunca me disse nada sobre os grampos de metal.
- Você acabou de responder à sua pergunta.
- Não entendi.
- Eu lhe mostrei a atadura para que você soubesse o que vai acontecer em seguida. Os pontos são separados, só saem um por um. Não se trata de um daqueles casos em que eu corto ou desamarro os fios e você sente uma espécie de cócegas quando eles se soltam. Não vai doer, mas há vários pontos. E há dois grampos de metal que precisam ficar no lugar até que os pontos se soltem para que o ferimento não abra. Quando os pontos se soltarem, vou saber se a cicatriz pode suportar o grande cérebro que você tem. Depois, vou ter de enfiar um cortador de arame embaixo de cada um daqueles grampos de metal.
- Você está brincando.
- De jeito nenhum. Vou cortar o grampo...
- Que dor!
- Se você não se mexer, não vai doer.
- É você que não deve se mexer.
- Eu sou boa nisso. Prometo. Depois, vou segurar as extremidades de cada grampo e entortá-lo lentamente para fora.
- Vai doer.
Ela hesitou.
- Eu preciso que você diga "Não vai doer" e pronto.
- Tenho de admitir que você vai sentir uma dorzinha. Se os grampos penetraram fundo, a retirada vai ser mais difícil.
- A retirada vai ser mais difícil? Você deveria trabalhar na diretoria.
- O que eu deveria dizer? Um grampo grande e feio remove mais tecido do que um simples pontinho. Se uma parte do tecido ficar grudada no metal, você vai sentir quando ela for arrancada.
- Não gostei dessa última parte.
- Que choradeira! Não vai nem sangrar. E se eu achar que ainda é cedo para retirar os grampos e que isso vai causar algum trauma, deixo para mais tarde.
- Faça já o que tem de ser feito. Falo sério, Hannah. Quero me livrar disso agora.
- Você não quer voltar aqui para conversar comigo?
- Não é nada disso.
- Está bem - ela disse, sentindo-se ofendida. - Eu entendo. Não conheço nenhum outro crente por aqui, mas está tudo bem. Vou ficar sofrendo sozinha aqui.
- Vamos logo com isso.
- Só se você ficar de boca fechada. Pense em outra coisa.
- Você pode falar enquanto trabalha?
- Claro. Eu já lhe disse que sou boa nisso.
- Então, me conte sua história enquanto trabalha.
- Minha história vai demorar muito mais que a retirada de tudo isso aqui, David.
Então, faça o seu trabalho bem devagar.
- Agora, sim! Até que enfim você disse uma coisa boa.

TREZE

A história de Hannah Palemoon desviou a mente de David da tarefa que ela executava naquele momento. E ela trabalhou sem pressa, fazendo uma pausa entre a retirada de um ponto e outro. Mostrou-lhe o primeiro ponto retirado só para enervá-lo, mas parou ao ver o olhar severo de David.
Ela foi criada em uma reserva indígena Cherokee, um local que agora fazia parte dos Estados Unidos Norte-americanos.
- Você não imagina os enganos que foram cometidos a respeito dos índios norte-americanos - ela disse.
- Nunca estive nos Estados Unidos, mesmo quando eram conhecidos como Estados Unidos da América. Mas li a respeito. Vocês foram chamados de índios por causa de um erro de Colombo.
- Exatamente. Ele pensou que estivesse na Índia Ocidental e que nós devíamos ser índios. E o nome pegou. Agora é índio para cá, indígena para lá. Tribos indígenas. Caubóis e índios. Nação indígena. Reserva indígena. Problema Indígena. Índios norte-americanos. Gosto mais desse último. E quem nunca visitou uma reserva indígena achava que morávamos em ocas.
- Era o que eu pensava - disse David. - Vi fotografias.
- São fotografias tiradas de locais turísticos. Os turistas queriam conhecer a antiga cultura nativa dos Estados Unidos. E nós gostávamos de mostrar. Vestíamos roupas típicas, dançávamos, vendíamos coisas que eles gostam, feitas de pedras coloridas. Eles não queriam conhecer nossas casas verdadeiras.
- Que não eram ocas, acho.
- Eram iguais às casas de gente que vive na pobreza. Várias famílias morando juntas, casas minúsculas, trailers. E os turistas não estavam interessados em saber que meu pai era mecânico e que minha mãe trabalhava no escritório de uma empresa de encanamentos. Preferiam acreditar que éramos baderneiros, bêbados ou que trabalhávamos em cassinos.
- Seus pais não faziam isso, certo?
- Minha mãe gostava de apostar nessas máquinas caça-níqueis. Meu pai perdeu o salário inteiro em uma só noite jogando carteado.
- E você era veterinária.
- Assistente de veterinário, só isso. Meu tio, irmão de minha mãe, aprendeu a profissão sozinho. Lá, não era necessário ser licenciado ou ter diploma como em outros lugares, a não ser que aparecesse algum animal de fora para ser tratado, o que nunca acontecia. Ele também não fazia feitiçaria. Os turistas perguntavam se ele sabia dançar e cantar para ressuscitar animais de estimação. Meu tio gostava de ler, lia tudo o que encontrava sobre como tratar de animais, porque ele amava os bichos e havia muitos por lá.
- Você não quis ser veterinária?
- Não. Li todos os livros sobre Clara Barton e Florence Nightingale. Fui boa aluna, principalmente em ciências, e uma professora me incentivou a aproveitar as oportunidades que eram oferecidas aos nativos norte-americanos nas universidades do governo. Fui para o Arizona e lá fiquei. Enfrentei muitos problemas por não ter nascido naquele estado, mas eu queria distância da reserva.
- Por quê?
- Não era por vergonha ou coisa parecida. Eu achava que teria mais oportunidades fora de lá. E tive.
- Onde você ouviu falar de Deus?
- Em todos os lugares. Havia cristãos na reserva. Não freqüentávamos igreja, mas conhecíamos muita gente que freqüentava. Aquela professora costumava conversar comigo sobre Jesus. Eu não estava interessada. Ela usava muito a palavra "doutrinar", e aquilo parecia estranho demais para mim. Depois, ouvi falar de Jesus na universidade, em toda parte. A gente era doutrinada até na sala de aula.
- Você nunca ficou curiosa?
- Não a ponto de freqüentar as reuniões. Eu tinha medo de passar a fazer parte de alguma seita ou algo do gênero. A coisa mais importante que aquela gente dizia era que devíamos admitir que todos nós éramos pecadores e que ninguém podia fazer nada quanto a isso. Para dizer a verdade, naquela época eu não me sentia uma pecadora.
- Eles usaram o método errado com você.
- Não foi culpa deles. Eu era pecadora, claro. Só que não conseguia enxergar isso.
- E quando você conseguiu enxergar?
- Quando eu soube quem havia desaparecido, fiquei maluca. Conhecidos meus que freqüentavam igreja. Cristãos da universidade. Minha professora do Segundo Grau.
- Você deve ter suspeitado de alguma coisa.
- Suspeitado? Eu sabia. O povo estava dizendo que havia sido obra de Deus, e eu acreditei. E como o odiei por isso. Fiquei pensando na sinceridade e dedicação daquelas pessoas que se preocupavam tanto comigo a ponto de me dizer coisas que me faziam pensar que elas eram esquisitas demais. Eu não queria nada com um Deus que as levou embora e me deixou sozinha aqui. Eu queria um herói, alguém em quem acreditar, mas não Ele. Foi então que vi e ouvi as notícias sobre Carpathia. A Bíblia diz que muitos são os enganados, não é mesmo? Eu era a primeira da lista. Engoli tudo o que ele disse. Fiquei sabendo que ele precisava de pessoas da área médica e peguei o primeiro vôo para Nova York. Eu não sabia que ia morar neste lindo deserto abandonado por Deus, mas continuava leal a Carpathia.
- Comecei a desconfiar daquele homem quando percebi que ele agia como um político, tentando suavizar as coisas. Ele nunca demonstrou tristeza diante de todo aquele caos e da perda de tantas vidas humanas. Não concordei quando ele disse que Deus não poderia ser responsabilizado pelos desaparecimentos porque um Deus amoroso não teria feito aquilo. Eu acreditava que Deus tinha feito aquilo, o que provava que Ele não era tão amoroso assim.
Hannah terminou de retirar os pontos, livrou-se das luvas de borracha e as atirou no lixo, lavou e enxugou as mãos e calçou outro par de luvas. Em seguida, sentou-se em um banquinho perto de David.
- Ainda tenho de retirar os grampos de metal, mas vamos fazer uma pausa.
- Alguém a conduziu até Deus. Estou morrendo de curiosidade para saber se você conheceu outro crente aqui.
- Eu só fiquei sabendo que havia outro crente aqui quando vi o selo em sua testa, enquanto você estava desmaiado no chão. Esfreguei sua testa com força e quase pulei de alegria quando vi que o selo era verdadeiro. Eu não podia ver o meu e nunca tinha visto o de outra pessoa. Só sabia porque li a respeito.
- Onde?
- Você se lembra de quando nos disseram que era proibido visitar o site de Tsion Ben-Judá?
- Claro.
- Foi o que bastou. Eu entrei naquele site. Tudo era grego para mim. Só entendi depois que ele falou do terremoto. Primeiro, porque o terremoto aconteceu. Segundo, porque nossa reserva inteira foi engolida. Perdi minha família inteira. Mãe, pai, dois irmãos menores, parentes. Aposto que foi o único lugar do mundo sem sobreviventes. Nenhum.
- Não diga!
- Você pode imaginar como me senti. Sofrendo demais. Sozinha. Zangada. Espantada ao ver que aquele sujeito estranho da Internet sabia de tudo por antecipação.
- Não posso imaginar que você tenha se convencido somente com as palavras dele. Parece que você estava furiosa demais com Deus.
- De certa forma, sim. Mas comecei a entender as atitudes de Nicolae. Você estava aqui naquela época, certo? Deve ter ouvido os mexericos.
David assentiu com a cabeça.
- O povo disse que Nicolae fugiu em um helicóptero que pousou no teto do antigo escritório central. Até aí, tudo bem. Eu também teria feito o mesmo. Instinto de preservação da vida, essas coisas. Mas ele não socorreu ninguém. Não chamou equipes de resgate. Havia pessoas penduradas nas barras do helicóptero, gritando, implorando por socorro. Ele ordenou ao piloto que levantasse vôo. Talvez não desse tempo de salvar toda aquela gente, porque o prédio inteiro desmoronou. Mas ele devia ter tentado, você não acha? O verdadeiro líder não faz isso? E ele continuou a ser falso. A tristeza não parecia sincera. Comecei a trabalhar e esqueci meu idealismo, mas continuei a entrar no site de Ben-Judá. Milhões e milhões de pessoas fizeram o mesmo, e um grande número se converteu. Li a respeito do selo na testa dos crentes e fiquei com inveja. Eu ainda não tinha certeza de querer me converter, mas desejava fazer parte da família. Você sabe o que mais me atraiu em Tsion? Veja só, chamar assim um homem como ele. Mas é a minha maneira de ser. Ele é um dos seres humanos mais inteligentes que já apareceu na face da terra. Mas tem um jeito todo especial de se fazer entender até por pessoas simples como eu. Compreendi tudo o que ele estava dizendo. Ele escreve de modo claro e transparente. E perdeu a família inteira de maneira muito mais trágica do que eu. Ele era uma pessoa tão amorosa! Eu sentia isso, mesmo pelo computador. Orava pelas pessoas, parecia um médico cuidando da saúde espiritual delas.
- E foi isso que convenceu você?
- A bem da verdade, não. Eu acreditava que ele era sincero e que estava certo. Mas, de repente, comecei a pensar nele pelo lado científico. Resolvi assimilar aquelas coisas muito lentamente, sem pressa nenhuma, analisar tudo com muito cuidado. Aí, ele começou a falar das pragas, e elas vieram logo a seguir. O povo sofreu demais. Era tudo verdade. E ele soube por antecipação.
- Você se considerava uma pecadora?
Ela se levantou e pegou uma tesoura própria para cortar metais.
- Oh, não - disse David.
- Relaxe. Continue a ouvir a bela história.
Hannah apertou as extremidades do grampo com os dedos para poder introduzir uma das pontas da tesoura por baixo. Apertou as alças da tesoura com as duas mãos e cortou o grampo.
David deu um salto.
- Você continua vivo? - ela perguntou.
- Não senti nada. Foi só um susto.
- Vou continuar a contar a história de minha vida. - Ela cortou o outro grampo enquanto falava. - Tsion nos avisou, e você sabe disso. Com certeza, é um de seus leitores.
David assentiu com a cabeça. - Conversei com ele por telefone.
- Não acredito!
Ele movimentou a cabeça afirmativamente.
- Não se mexa com os grampos soltos na cabeça. E, se mentir para mim outra vez vou voltar a apertá-los.
- Não estou mentindo.
- Eu sei que não. É que fiquei com inveja de você.
- Você sabe que um dia vai conhecer Tsion pessoalmente.
- É melhor trazer uma vassoura e um balde. Sou tão pequenina perto dele que você pode passar o rodo em cima de mim e me jogar no ralo.
- Eu também sou.
- Mas você o conhece! São amigos.
- Só por telefone.
Ela começou a imitá-lo.
- Só por telefone. Blá, blá, blá. Nós costumamos conversar. Ele me liga de vez em quando e diz: "Como vai, Dave? Terminei mais uma mensagem."
David foi forçado a rir e se deu conta de que era a primeira vez desde...
- E isso aí - ela prosseguiu, puxando as extremidades de um dos grampos. - Viu? No tempo certo, usando a técnica certa. Ah, será que estou vendo o cérebro sair por este buraco? Não. Acho que não há nada lá dentro.
David sacudiu a cabeça.
- A história, Hannah.
- Ah, sim. Tsion disse que, se começássemos a ler a Bíblia, ela seria como um espelho para nós e que não gostaríamos de ver o que ele refletia. Você se lembra?
- Se eu me lembro?
O outro grampo saiu com a mesma facilidade. Hannah fez uma encenação para mostrá-lo a David, e ele encolheu os ombros.
- Eu não tinha Bíblia - ela disse -, e não é fácil encontrar uma por aqui. Mas Tsion também tinha um site onde a gente podia ler a Bíblia inteira no próprio idioma. Bem, não em Cherokee, claro. Estou lendo a Bíblia pela Internet durante a madrugada.
- E já conseguiu aprender bastante coisa?
- Não. Eu comecei da maneira errada. Não li o guia de Tsion para saber por onde começar e o que procurar. Comecei a ler a Bíblia a partir de Gênesis e adorei todas aquelas histórias, mas quando cheguei a Êxodo e depois a... como é mesmo o nome do livro seguinte?
- Levítico.
- Ah, sim. Fiquei pensando, cadê o espelho? Não gostava do que estava vendo, tudo bem, mas não havia espelho. Entrei no site dele onde a gente pode fazer perguntas. Só um milhão de pessoas por dia fazem isso. Eu não esperava uma resposta pessoal, é claro, e ele não respondeu. Devia estar falando ao telefone com seu amigo Dave. Mas alguém me deu as indicações. Comecei a ler João, depois Romanos e depois Mateus. Eu queria ler cada vez mais! O pecado que me atormentava da maneira como Tsion o descrevia era o orgulho. O meu deus era eu. Eu era a dona de meu destino.
Cheguei àquela parte conhecida como o Caminho de Romanos, que diz que nascemos em pecado, separados de Deus e que Ele nos dá a vida eterna... rapaz, eu não conseguia parar de ler. Fiquei acordada a noite inteira e trabalhei turno integral no dia seguinte, sem sentir sono. Eu queria contar a todo mundo, mas queria também continuar viva.
Hannah borrifou uma solução anti-séptica na cabeça de David e enxugou-a com uma toalha limpa.
- Vou cobrir o local com uma pomada escura, meu amigo, para que você não fique parecido com um gambá com uma listra lateral branca... Sua aparência vai continuar engraçada, mas não muito. E é melhor sairmos daqui antes que eles mandem uma equipe de busca atrás de nós.
- Só mais um instante.
- Para quê? - Ela estava umedecendo outra vez a cabeça dele.
- Eu só queria agradecer. Eu precisava ouvir o que você me contou. Histórias como a sua nunca envelhecem.
- Obrigada, David. Você imagina há quanto tempo eu queria contar essa história a alguém? Ah, mais uma coisa.
- Sim?
- Mande recomendações minhas a Tsion.


- Eu não acredito - disse Buck.
- Pode acreditar! - disse Zeke. - Venha ver.
Buck acompanhou Zeke até o quarto do rapaz, virando-se com olhar de incredulidade para Rayford e Chloe. De fato, conforme Zeke dissera, penduradas no armário, lá estavam quatro fardas da CG amassadas e sujas de terra.
- Onde você conseguiu isso? - perguntou Buck.
- Depois do ataque dos cavaleiros - respondeu Zeke. - Você se lembra?
Buck assentiu com a cabeça.
- Havia gente morta da CG por toda parte. Meu pai me fez sair com ele no meio da noite para chegar antes do pessoal de resgate. Eu não queria arrancar roupas de gente morta, mas meu pai e eu achamos que eram um presente de Deus. Peguei as identidades deles, mas você não pode usar o mesmo nome que está escrito na farda.
- Não posso?
Zeke deu um suspiro.
- Aqueles caras sumiram. Se seus corpos sem roupa não foram identificados, eles devem estar na lista dos desaparecidos ou foragidos. Se você chegar lá usando o nome, a patente e o número de série de um deles, adivinhe quem vai ser acusado de assassinato ou de ter passado a mão na farda.
- Entendi.
- Entendeu mesmo?
- Então, o que você vai fazer? Colar um novo nome na farda? Fazer uma nova identidade?
- Mais ou menos. Vou misturar e combinar tudo. Veja se essa aqui serve para você. É a maior delas.
- Pelo visto, vai ficar curta.
- Mas veja os punhos da camisa, a calça e o paletó. Tem pano suficiente por dentro, porque eles não fazem fardas sob medida para todos.
- Você também faz serviço de alfaiate, Zeke?
- Não na frente dos outros, e não gosto de me gabar disso. Mas faço. Faço de tudo um pouco.
Buck experimentou a farda e constatou que as pernas da calça eram uns cinco centímetros mais curtas do que as suas e estava apertada na cintura. A camisa vestiu melhor, mas as mangas precisavam ser um pouco mais compridas. As do paletó também. O quepe era muito pequeno.
Buck sacudiu a cabeça quando Zeke começou a vasculhar suas coisas e encontrou uma caixa com artigos de costura. Ele teve de se conter para não cair na gargalhada ao ver o rapagão com meia dúzia de alfinetes na boca, ajoelhado para marcar a barra da calça.
- Você disse que ia misturar e combinar tudo?
- Isso mesmo - respondeu Zeke, ainda com os alfinetes na boca. - Sua carteira de identidade vai ser a de um civil morto. Você já fez uma cirurgia plástica no rosto. Foi sem querer, mas fez. Você vai tingir o cabelo de escuro, usar lentes de contato escuras e tirar uma fotografia para os novos documentos. Quer escolher quem vai ser? Você já viu meus arquivos antes. Escolheu um tal de Greg North. Pegue algumas fichas e escolha alguém de seu tamanho e mais ou menos parecido com você. Quanto menos eu tiver de mudar, melhor.
- Você vai me dar uma patente mais alta que a de Albie?
- Não posso - disse Zeke. - Você está vendo os ombros e a gola do paletó? Ele pertence a um soldado das Forças Pacificadoras. Se sua gola tivesse mais uma ou duas listras e fosse engomada em vez de ficar pendurada, você poderia ter a patente de comandante.
- E você não é um alfaiate tão bom assim.
- É um trabalho muito demorado. E eu ia cobrar o dobro de você.
Buck sorriu, mas Zeke caiu na gargalhada e disse:
- Você tentou pegar a carteira para ver se tinha tanto dinheiro para me pagar?
- Quase.
- Meu pai diz que sou meio doido. - O semblante de Zeke se entristeceu.
- Você ainda não sabe onde seu pai está? Zeke balançou a cabeça negativamente.
- Não gostei do que vi na TV. Disseram que vão começar a pôr aquela marca nos caras que estão atrás das grades. Os presos vão servir de teste.
- Seu pai não vai aceitar essa marca.
- Eu sei que não. De jeito nenhum. Nunca. Mas acho que não vou ver meu pai nunca mais.
- Não pense assim, Zeke. Sempre existe uma esperança.
- Quem sabe? Estou orando. Mas quando eles puserem os caras na fila da marca, aí não vai mais existir esperança. Foi uma decisão deles, certo?
- É o que eu entendo.
- Meu pai não vai querer saber disso. Ele já tem o selo na testa. Eu vi o dele, e ele viu o meu. É por isso que ele e eu sabemos. E ele não vai ficar pensando se pode ter o selo e a marca e continuar vivo. Meu pai nunca vai querer nada que diga que ele é do time de Carpathia. Ele vai dizer: "Não, de jeito nenhum", e vai ser morto ali mesmo. Não sei se eles vão matar os presos dentro das cadeias, se vão usar as guilhotinas ou dar um tiro neles. Eu sei como meu pai vai sair da cadeia. Dentro de um caixão.


No caminho de volta a seu escritório, David sentiu-se estranhamente animado e fortalecido. Ele adorava a personalidade e a forma de se expressar de Hannah. Ela seria uma boa amiga. Era mais velha que ele, mas não agia como tal. David gostaria de saber se havia um pouco de tranqüilidade em algum lugar.
Ele pôs sua mágica para funcionar no computador, entrando no dispositivo de escuta do quarto 4054. Assim que colocou os fones de ouvido, escutou uma discussão acalorada. No fundo, havia uma TV ligada, e ele ouviu um pedido insistente da Sra. Wong:
- Silêncio! TV! Silêncio! TV!
O marido gritou com ela em chinês. Apesar de saber que havia muitos dialetos chineses, David não conhecia nenhum. Logo ficou claro que o pai e o filho estavam discutindo e que a mãe queria ver TV. As únicas palavras que David conseguiu captar dos homens foram CG e Carpathia, que eles proferiam de vez em quando. O filho começou a chorar, e o pai o repreendeu severamente.
David gravou a conversa imaginando que talvez conseguisse fazer um download do programa ativador de voz que não apenas reconheceria o idioma e o dialeto, mas também o traduziria para o inglês ou hebraico, as duas línguas que ele conhecia.
De repente, ele ouviu o pai falando em tom muito agressivo, o filho implorando e - aparentemente -irrompendo em lágrimas. A mãe pediu silêncio outra vez, e o pai gritou com ela. David ouviu um som como se alguém estivesse pegando o telefone e discando um número. Finalmente, a fala era em inglês!
- Sr. Akbar, senhor falar chinês?... Paquistanês? Eu não. Inglês OK, OK?... Sim, aqui Wong! Pergunta para senhor. Novo funcionário recebe marca da lealdade primeiro, não?... OK! Quando?... Tanto tempo assim?... Talvez antes, OK! Sra. Wong e eu receber também? OK? Filho, Chang Wong, quer receber marca primeiro lugar.
O rapaz choramingou em chinês e, aparentemente, o Sr. Wong cobriu o fone antes de gritar com ele. Alguém saiu do quarto e bateu a porta. Para David, foi Chang.
- Sr. Akbar, senhor marca garoto, mãe, pai?... Não? Quem?... Moon? Walter Moon?... Não é ele?... Pessoal de Moon, OK! Filho primeiro! Foto! Tira foto de filho!... Quando?... Sim. Eu conversar com pessoal de Moon. Até logo.
David ouviu o Sr. Wong gritar alguma coisa, desta vez um pouco mais calmo. Chang resmungou algumas palavras de longe. O pai voltou a ficar zangado e deu a palavra final. Em seguida, cochichou alguma coisa para a esposa. Ela reagiu como se estivesse conformada.
David gostaria de saber se Chang contara ao pai por que não aceitava receber a marca ou se simplesmente havia-se recusado. Quando eles pararam de falar e só se ouvia o som da TV, David salvou o arquivo e o enviou a Ming Toy acompanhado deste pedido:
"Se a tarefa não for muito trabalhosa ou penosa demais, eu gostaria que você me esclarecesse o que foi dito aqui. Entendo que seu pai está pressionando Chang para ser contratado e ser um dos primeiros a receber a marca. Vou tentar outras fontes aqui dentro para saber quando eles vão começar a aplicar a marca, mas, se você puder me ajudar a entender isso aqui, eu lhe ficaria muito grato. Desculpe-me pela intromissão na conversa de sua família, mas tenho certeza de que você gostaria de impedir esse desastre."
David discou 4054. O Sr. Wong atendeu.
- Quero falar com Chang, por favor.
- Chang Wong?
- Sim, por favor.
- Falar com ele sobre emprego CG?
- Sim, senhor.
- É Sr. Moon?
- Não. David Hassid. Conheci o senhor na semana passada.
- Sim! Sr. Hassid! Chang trabalhar para o senhor?
- Ainda não sei. É por isso que gostaria de conversar com ele.
- Ele aqui. Pode conversar. Senhor trabalha com computador, não?
- Meu departamento tem muitos computadores.
- Ele melhor de todos. Ajuda senhor! Trabalha para senhor. Senhor conversa com ele. Momento... Chang!
O Sr. Wong começou a falar em chinês, e o rapaz respondeu de longe. Finalmente, atendeu o telefone.
- Alô - disse o rapaz, com voz tão triste como se tivesse perdido o melhor amigo.
- Chang, é David. Não diga nada, só ouça. Sua irmã me contou o que está acontecendo. Estou tentando ajudar você. Se você for entrevistado por um diretor, seu pai vai deixar de pegar no seu pé, certo?
- Sim.
- Isso vai nos dar um pouco mais de tempo. Você não vai ficar aflito, vai?
- Vou tentar não ficar.
- Não diga nada, mas vamos encontrar um meio de tirar você daqui.
- Antes da marca?
- Não diga essa palavra, Chang. Por enquanto, faça de conta que vai concordar. Entendeu?
- Sim, David.
- É melhor você me chamar de Sr. Hassid, está bem? Não podemos deixar ninguém perceber que somos amigos e também não queremos dar a entender que somos crentes, irmãos, certo?
- Certo, Sr. Hassid.
- É assim que se fala, Chang. Vamos fazer tudo direitinho. Ligue para minha assistente amanhã e peça para marcar uma entrevista comigo. Vou dizer a Tiffany para aguardar sua ligação, e você vai dizer a ela que eu lhe pedi para ligar. Tudo bem?
- Sim, senhor.
- Tudo vai dar certo, Chang.
- Espero que sim.
- Pode confiar era mim.
- Sim, Sr. Hassid.

QUATORZE

Rayford e seus companheiros foram convidados a ouvir Tsion contar a história do povo escolhido de Deus a seu ex-professor e mentor. Chaim, agora sem os fios que lhe prendiam a boca, exercitava a mandíbula e passava a mão no rosto, visivelmente aliviado. No entanto, não demonstrava nenhum entusiasmo. Por mais que Tsion tentasse, Chaim parecia atormentado pelas mesmas coisas que discutira com Rayford alguns dias antes.
- Vamos, Chaim, vamos! - disse Tsion. - Esse assunto é empolgante, dramático, milagroso. É a história mais bela que já foi contada! Sei onde fica o lugar que Deus escolheu para acolher seus filhos, mas não vou contar enquanto você não estiver preparado. Você precisa estar pronto, caso Deus o chame para ser um guerreiro do Senhor e lutar por meio de palavras e perspicácia. Seu conhecimento pode ajudá-lo a vencer essa guerra, mas sua força virá de Deus. Acredito que, se Deus confirmar em seu coração que você será seu vaso escolhido, Ele lhe concederá poderes sobrenaturais para lutar contra os milagres satânicos do anticristo. Você é capaz de antever como será a vitória, meu amigo? Como eu gostaria de ter sido o escolhido para ir!
- Eu também gostaria que o escolhido fosse você – disse Chaim.
- Não, não! Se você for o homem de Deus no tempo de Deus, jamais deverá querer livrar-se dessa missão sagrada e desse desafio! A história desse país encerra muitas discussões a respeito de um destino já definido. Bem, meu irmão, se é que existe um povo com destino predefinido, esse povo é o nosso! O seu e o meu! E agora incluímos nossos irmãos gentios que se uniram a nós porque aceitaram o Messias e sua obra de misericórdia, sacrifício e perdão na cruz. Jesus é o Messias! Jesus é o Cristo! Ele ressuscitou!
- Ele ressuscitou verdadeiramente - disse Chaim, sem a mesma empolgação de Tsion.
- Que desânimo! - disse Tsion, passando a imitar Chaim. - Ele... ressuscitou...verdadeiramente. Não é assim que se fala! Ele ressuscitou, verdadeiramente! Amém! Louvado seja o Senhor! Aleluia! Você tem condições de ir a Jerusalém, de ser um líder, um vencedor! Pode enfrentar as mentiras e as blasfêmias do inimigo do Senhor Altíssimo. Pode expor o anticristo ao mundo como o maligno possuído por Satanás e conclamar os crentes a repelirem a marca da besta! Oh, Chaim, Chaim! Você está aprendendo tantas coisas. Esse seu velho cérebro ainda é bom, ainda é ágil, ainda é receptivo. Você está compreendendo, eu sei que sim! E, se não estiver, quem irá? Você é o único qualificado. Por mais que eu tenha sonhado com essa oportunidade, não posso assumir essa missão. Como eu gostaria de estar lá pessoalmente para presenciar tudo! Se você for, vou querer saber de cada detalhe. Se as forças do mal investirem contra você e for subjugado pelo poder do inimigo, Deus proverá uma saída, um lugar de refúgio, e você, meu amigo, conduzirá o povo àquele lugar. E o Senhor Deus o protegerá, o conduzirá e suprirá todas as suas necessidades. Você já pensou, Chaim, que Deus prometeu que tudo será como nos tempos antigos? Pense nisso! Por mais que os filhos de Israel fossem fracos, infiéis, ignorantes, impacientes e com tendência à idolatria, o Deus do Universo nunca os desamparou.
Compreende o que isso significa? Você pode conduzir o seu povo, o povo de Deus, a um lugar onde será quase impossível entrar ou sair. Se você ficar lá até o Glorioso Aparecimento de Cristo, o que comerá? Que roupas usará? A Bíblia diz que Deus proverá, conforme fez nos tempos antigos! Ele enviará comida, uma comida deliciosa, nutritiva e farta! O maná do céu! E você sabe o que acontecerá com suas roupas?
- Não, Tsion - disse Chaim, com voz cansada e um leve tom de zombaria -, seja lá o que for, não deixe de me falar sobre minhas roupas.
- Não vou deixar de falar! E você ficará agradecido, para não dizer maravilhado. Se você ficar maravilhado, vai admitir?
-Vou.
- Prometa.
- Dou-lhe minha palavra, meu eufórico jovem amigo. Se eu ficar maravilhado, vou admitir.
- Suas roupas não ficarão gastas com o uso! - disse Tsion, fazendo um floreio com a mão.
- Não?
- Você está maravilhado?
- Mais ou menos. Quero ouvir mais coisas.
- Agora você quer ouvir?
- Eu sempre quero ouvir, Tsion. É que sou indigno. Estou morrendo de medo, sou desqualificado, despreparado e indigno.
- Se Deus o chamar, Chaim, você não será nada disso! Você será Moisés! O Senhor Deus de Abraão, Isaque e Jacó irá adiante de você, e a glória do Senhor será a sua retaguarda.
- Para que eu precisaria de retaguarda? Quem iria me perseguir?
- Não seria o exército de faraó, posso lhe assegurar. Mas, se fosse, Deus abriria um caminho para você fugir. O exército de Carpathia iria atrás de você. E, embora ele fale de paz e de desarmamento, quem tem acesso ao que sobrou das armas do mundo inteiro que foram entregues ao mentiroso provedor da paz? Mas, se você precisar que o Mar Vermelho seja dividido ao meio novamente, Deus fará isso! Para que estudamos tanto, meu aluno hebreu?
-Hum?
- Hum? Não diga hum para mim, Chaim! Diga ao rabino o que você aprendeu sobre as grandes histórias, os milagres da Torá.
- Que não eram apenas histórias, exemplos ou mitos para nos servir de incentivo.
- Excelente! E então? O que são? O que são, meu caro pupilo?
- A verdade.
- A verdade! Sim!
- As histórias aconteceram realmente.
- Sim, Chaim! Aconteceram porque Deus é poderoso. Ele disse que aconteceriam, e aconteceram. E se Ele disser que fará isso acontecer novamente?
- Ele fará.
- Ele fará! Oh, que privilégio, Chaim! Aprenda a lidar com seus temores. Aprenda a lidar com suas dúvidas. Entregue tudo a Deus. Apresente-se diante dele com toda a sua fraqueza, porque quando somos fracos é que somos fortes. Moisés era fraco. Moisés era um desconhecido. Moisés tinha dificuldade em se expressar! Chaim! Moisés, o herói da fé, tinha menos a oferecer que você!
- Ele não era um assassino.
- Era sim! Você se esqueceu! Ele não matou um homem? Pense, Chaim! Sua mente, sua consciência, seu coração lhe dizem que Deus não o perdoou. Sei que o sentimento de culpa é recente. Sei que ele é terrível. Mas no fundo você sabe que a misericórdia de Deus é maior que nosso pecado. E ela tem de ser! Caso contrário, nós viveríamos em vão! Existe alguma coisa difícil demais para Deus? Alguma coisa grande demais? Algum pecado grande demais para Ele perdoar? Seria uma blasfêmia afirmar isso. Chaim! Se você é um ser que cometeu um pecado grande demais para ser perdoado por Deus, então você está acima de Deus. É por isso que chafurdamos em nosso pecado e continuamos a ser orgulhosos. Quem nós pensamos que somos, os únicos a quem Deus não pode estender sua dádiva de amor? Ele o encontrou, Chaim! Ele o tirou da lama! Humilhe-se diante do Senhor, e Ele o exaltará!
- Voltando ao assunto das roupas - disse Chaim -, eu posso usá-las desde agora até Jesus voltar novamente sem que elas fiquem gastas?
Tsion recostou-se na cadeira e fez um gesto de desânimo.
- Chaim, se Ele pode salvar você e a mim, perdoar nossos pecados e nos livrar da morte espiritual, esse assunto das roupas é apenas um de seus milagres mais simples. Esqueça os botões, os remendos, a linha. Vá para lá com uma roupa de que você goste, porque estará usando a mesma quando tudo terminar.


David lançou mão de todos os artifícios que conhecia para monitorar, de seu computador, o edifício inteiro da CG. Ele murmurou uma oração de agradecimento a Deus, suplicando forças para concentrar-se e trabalhar, mesmo em meio ao sofrimento que sentia. Mac e Abdullah chegariam a seu escritório dali a uma hora para finalizarem o plano de fuga que incluía David e Hannah. Os quatro tinham combinado prestar atenção para ver se havia outros crentes no palácio, cuja existência eles desconheciam. Talvez o brilhante jovem Chang Wong também fosse incluído na fuga. David só precisava saber como levá-lo sem levantar suspeitas.
Enquanto aguardava notícias de Ming Toy, David verificou os arquivos das reuniões que ele gravara, mas nunca teve tempo de ouvir. No arquivo intitulado Carpathia, havia uma reunião com Suhail Akbar, Walter Moon, Leon Fortunato e Jim Hickman no dia em que David conversou com Hickman. Ele sentiu um arrepio enquanto se preparava para ouvir a conversa, verificando antes se todos já haviam ido embora após o expediente. Seria fácil encerrar o programa e desligar o computador com um simples toque no teclado, mas ele não queria ser pego de surpresa.
Uma pergunta feita por Hannah alguns dias antes o atormentava. Ela havia perguntado:
- Como você sabe que não existe alguém aqui tão esperto quanto você, fazendo exatamente o mesmo que você?
- Como assim? - ele dissera.
- Monitorando você, quem sabe.
David não levou o assunto a sério. Ele desenvolvera programas à prova de hackers, dispositivos antivírus. Havia instalado microfones em toda parte e acreditava poder ouvir até mesmo palavras cochichadas. Seria impossível alguém ter feito o mesmo que ele, não? Certamente, os chefões não falariam com tanta liberdade se soubessem que David estava escutando suas conversas. E, se estivessem desconfiados dele, já o teriam despachado dali muito tempo antes.
David acreditava que os chips de segurança instalados em seus telefones e programas de e-mail eram impenetráveis e tentara explicar isso a Hannah.
- Eu não tenho nenhum indício, David. Talvez você seja o maior gênio de informática do mundo, mas não deveria ser bastante cuidadoso?
- Eu sou.
- É?
- Pode acreditar.
- Mas você já me falou de telefonemas e e-mails entre você e seus companheiros nos Estados Unidos.
- Não podem ser rastreados, nem invadidos por hackers.
- Mas você rastreia os dos outros. Invade os dos outros.
- Sou bom nisso.
- Você está vivendo no fio da navalha.
- Não há outra maneira de viver.
Hannah encolhera os ombros sem tocar mais no assunto. No entender de David, ela apenas levantara o assunto por estar preocupada e ser completamente leiga em informática. Mas ele gostaria que ela não tivesse plantado a semente da dúvida em sua mente. A cada mensagem, a cada transmissão, a cada telefonema, ele tinha a sensação de que alguém poderia estar bisbilhotando por cima de seus ombros. Pelo que sabia, não haveria essa possibilidade, mas quem pode lutar contra a intuição? David percorria continuamente seus programas à procura de intrusos. Até aquele momento, nada havia acontecido, mas Hannah o deixara assustado.
Mesmo que as suspeitas fossem infundadas, ele teria de estar mais atento ainda.
David iniciara a gravação da reunião de Carpathia antes de ir à sala de Hickman, portanto Carpathia devia estar a sós em seu escritório. Da última vez que o ouvira falando sozinho, Nicolae estava orando a Lúcifer. Agora ele era Lúcifer. Será que Satanás orava para si mesmo?
Não, mas ele falava sozinho. A princípio, David maravilhou-se com a fidelidade do som. Ele havia desenvolvido um sistema de intercomunicação baseado em seus comandos, tanto para transmitir como para receber. O sistema estava funcionando melhor do que o esperado. Ele ouvia quando Nicolae suspirava fundo, limpava a garganta e até mesmo falava em voz baixa.
Aquela era a parte mais estranha. Ali estava um homem que, aparentemente, não dormiu. Contudo, parecia transpirar energia, mesmo estando sozinho. David ouviu movimentos, som de passos, papéis sendo arrumados. No fundo, havia o som dos operários trabalhando do lado de fora do escritório de Carpathia.
- Hum - disse Carpathia mansamente, como se estivesse pensando. - Espelhos. Preciso de espelhos. - Ele deu uma risadinha. - Por que privar-me de ter a alegria de ver os outros se deleitarem com minha imagem? Eles precisam olhar para mim sempre que quiserem.
Carpathia apertou o botão do interfone, e Sandra, sua assistente, atendeu imediatamente.
- Pois não, Excelência.
- O chefe dos operários ainda está aí fora?
- Está, Excelência. O senhor gostaria de falar com ele?
- Não, só transmita um recado a ele. Ou melhor, venha até aqui.
- É uma honra - ela disse, como se essas palavras partissem do fundo de seu coração.
Sandra sempre pareceu tão fria e distante que David gostaria de saber como era o relacionamento dela com Carpathia. Ela tinha 20 anos a mais que seu chefe.
David ouviu o ranger de uma cadeira, como se Carpathia tivesse se sentado. Simultaneamente, após uma leve batida, a porta foi aberta e fechada.
- Sua Excelência - ela disse, seguindo-se o som de um farfalhar de roupas.
- Sandra - disse Carpathia -, você não precisa ajoelhar-se todas as vezes que...
- Perdoe-me, senhor - ela disse -, mas peço que não me prive desse privilégio.
- É claro que não, desde que você queira, mas...
- Sei que o senhor não exige isso, mas para mim é um privilégio adorá-lo.
Carpathia deu um suspiro sem denotar impaciência, assim pensou David.
- Que belo sentimento - ele disse, finalmente. - Sua devoção me deixa muito satisfeito.
- O que eu posso fazer pelo senhor? Conceda-me a honra de pedir-me qualquer coisa.
- Eu só queria ter alguns espelhos da altura de um homem em meu novo escritório. Deixarei a cargo do pessoal especializado a posição em que os espelhos vão ficar, mas creio que eles darão um toque especial a este lugar.
- Concordo plenamente com o senhor. Eu tremo de emoção só em pensar nas múltiplas imagens que o senhor vai ter aqui.
- Ah, eu lhe agradeço. Agora vá e passe o recado adiante.
- Imediatamente, senhor.
- Depois, pode tirar o dia de folga.
- Mas sua reunião...
- Eu receberei o pessoal. Não se preocupe.
- Como o senhor quiser, mas saiba que seria um imenso prazer...
- Eu sei.
A porta foi aberta e fechada e, pelo som, Carpathia levantou-se novamente. David o ouviu dizer:
- Eu também tremo de emoção só em pensar nas múltiplas imagens que vou ter aqui, sua meretriz velha e horrorosa. Mas você sabe como fazer um homem sentir-se adorado.
Agora, parecia que Nicolae estava arrumando a disposição das cadeiras.
- Akbar, Fortunato, Hickman, Moon. Não, Moon, Akbar, ah... devo deixar Fortunato ruminar sobre sua proximidade e acesso a mim, mantê-lo aguçado. Hickman precisa de auto-afirmação. Tudo bem. Ele voltou a falar no interfone.
- Sandra, você ainda está aí?
- Sim, senhor.
- Antes de sair, ligue para o Sr. McCullum, por favor. Quero falar com ele.
O sangue de David gelou nas veias. Em seguida, ele se repreendeu. Não se preocuparia por Nicolae falar com Mac. Se não confiasse em Mac, não poderia confiar em mais ninguém.
- Capitão McCullum - disse Carpathia alguns minutos depois. - Que bom falar com você. Você sabia que 10% de todos os armamentos bélicos foram cedidos à Comunidade Global nos tempos da antiga ONU, não?... O restante deveria ser destruído, e alegro-me por ter notícias de que grande parte foi realmente extinta. Se ainda houver munições, serão muito poucas e talvez estejam nas mãos de facções pequenas demais para representarem ameaça para nós. Minha pergunta é a seguinte: Você sabe onde estocamos os armamentos recebidos?... Não faz parte de suas responsabilidades?... Bem, sim, claro que eu sei, capitão! Minha pergunta é meramente especulativa. Você é ex-militar, é piloto, anda por aí. Eu queria saber se alguém lhe disse, inadvertidamente, onde estocamos nossas armas... Ótimo. Era só isso, capitão.
Por certo, Mac dissera a Nicolae que não tinha idéia de onde estavam as armas. E, pelo que David sabia, era verdade, Mas será que a notícia do transporte daquele armamento monstruoso não teria vazado? E o que Carpathia estaria planejando agora?
- Cavalheiros! - disse Carpathia alguns minutos depois, cumprimentando os quatro visitantes. - Entrem, por favor.
- Permita que eu seja o primeiro a ajoelhar-me diante do senhor - disse Leon - e beijar suas mãos.
- Obrigado, reverendo, mas você não é o primeiro.
- Nesta reunião, acho que sim - disse Fortunato, em tom de queixa.
- E ele não vai ser o último! - intrometeu-se Hickman. David ouviu o som do beijo estalado que ele deu na mão de Carpathia.
- Obrigado, supremo comandante. Obrigado. Chefe Akbar? Obrigado. Chefe Moon? Obrigado. Oh, reverendo, não, por favor. Eu gostaria que você se sentasse aqui.
- Aqui? - perguntou Leon, visivelmente surpreso.
- Algum problema?
- Eu me sento onde Sua Excelência desejar, claro. Posso até ficar em pé, se o senhor me pedir.
- Eu poderia ficar ajoelhado durante toda a reunião - disse Hickman.
- Sente-se aqui, meu amigo - disse Carpathia, gastando tempo e energia para colocar as pessoas onde ele queria.
- O senhor conseguiu dormir - perguntou Fortunato depois que todos se sentaram -descansar um pouco?
- Você está preocupado comigo, reverendo?
- Claro, Excelência.
- Dormir é para os mortais, meu amigo.
- O senhor está certo.
- Eu sou mortal, rapazes, isso é, cavalheiros - disse Hickman. - Dormi como uma pedra esta noite. Acho que estou fora de forma. Preciso dar um jeito nesta barriga.
Um silêncio constrangedor.
- Podemos começar? - perguntou Carpathia. Hickman resmungou uma desculpa, mas Nicolae já estava se dirigindo a Akbar, chefe do Serviço de Inteligência. - Suhail, acho que o local onde guardamos nossos armamentos permanece confidencial. Você concorda comigo?
- Concordo, senhor, mas confesso que isso me deixa confuso.
- Confuso é a palavra certa - disse Hickman. - Parece que temos centenas de tropas envolvidas nessa tarefa e... xi, que fora! Sinto muito. Vou aguardar minha vez de falar.
David imaginou o olhar que Carpathia lançou a Hickman. Ele devia saber muito bem que o homem não estava à altura da posição que ocupava. O fato de Carpathia forçar Hickman a dividir a mesma sala com Sandra e passar tarefas corriqueiras a alguém com um título tão pomposo provava que ele sabia exatamente o que estava fazendo.
- As Forças Pacificadoras estão preparadas para a ofensiva, chefe Moon?
- Sim, senhor. Prontas para atacar em todos os lugares. Podemos esmagar qualquer resistência.
- Reverendo você tem alguma notícia atualizada para me dar?
- Sobre a marca da lealdade, Jerusalém, religião?
- Jerusalém, claro - disse Carpathia, com sarcasmo. Leon estava visivelmente magoado.
- Jerusalém está no primeiro lugar da lista, Excelência. Programa preparado, legalistas prontos. A entrada será triunfal no sentido literal da palavra.
- Comandante Hickman - disse Carpathia de modo condescendente -, pode abaixar a mão. Aqui não há necessidade de pedir a palavra.
- Posso, então, interromper alguém que está falando?
- Não, não pode interromper. Vocês foram convidados a vir aqui porque necessito de informações atualizadas sobre suas áreas.
- Bem, estou pronto. Eu tenho aqui. Eu...
- Você será chamado quando eu precisar de esclarecimentos sobre sua área. Entendido?
- Sim, senhor. Sinto muito, senhor.
- Não é necessário desculpar-se.
- Sinto muito.
- Suhail ou Walter, que tipo de resistência podemos esperar em Jerusalém?
Houve uma pausa, durante a qual David imaginou que os dois estavam se entreolhando para um não interromper o outro.
- Vamos, vamos, cavalheiros - disse Carpathia. - Tenho um planeta inteiro para governar. - Ele deu uma risadinha como se estivesse brincando, mas David não achou graça nenhuma.
Akbar começou a falar de maneira lenta e articulada. David achou que, se estivesse em outro ambiente, Suhail seria um eficiente chefe do Serviço de Inteligência.
- Francamente, potentado, não acredito que os judaístas aparecerão por lá. Não estou menosprezando a eficiência do movimento deles. O número dessa gente continua grande, mas eles lutam por uma causa clandestina, ligados apenas por computadores. O senhor não vai ver uma concentração semelhante à que houve no Estádio Kolleck quando Tsion Be...
- Eu me lembro muito bem, Akbar. Diga-me uma coisa. Não é verdade que essa gente está querendo provocar um rebuliço em Jerusalém, porque muitos deles se convenceram, depois de terem presenciado uma ressurreição real, aquela que não exige uma fé cega?
Silêncio, a não ser pelo som de alguém limpando a garganta. David achou que era Suhail.
- Não?
- Para minha surpresa, não, senhor. A ressurreição certamente me convenceria de sua divindade, só que eu já havia me convencido.
- Eu também! - disse Hickman. - Desculpe-me.
- Claro - disse Fortunato -, eu tive uma experiência pessoal que comprovou isso. E agora... bem, não é a minha vez de falar, certo?
- A verdade, Excelência - prosseguiu Akbar cautelosamente -, é que nossa investigação constante no site dos judaístas revela que eles estão cada vez mais fortalecidos. Acreditam... hã... que sua ressurreição prova o oposto daquilo que é tão óbvio para as pessoas que sabem raciocinar.
David estremeceu ao ouvir um baque violento na mesa, uma cadeira sendo empurrada para trás e uma série de imprecações proferidas por Carpathia. O Nicolae de outrora sempre manteve a compostura.
- Perdoe-me, Santidade - disse Akbar. - O senhor deve compreender que estou simplesmente relatando o que meus melhores analistas...
- Sim, eu sei! - esbravejou Carpathia, socando a mesa. - Eu só não compreendo o que falta para provar a essa gente quem é digno de toda a devoção! - Ele praguejou e os outros pareciam sentir-se obrigados a concordar, por meio de resmungos altos, que os céticos não passavam de malucos. Tudo bem! - prosseguiu Carpathia. - Você está achando que eles vão nos atacar do conforto de seus esconderijos.
- Correto.
- Isso é lamentável. Eu tinha tanta esperança de rir na cara deles. Existe alguma confirmação de que eles estão protegendo Rosenzweig?
David prendeu a respiração durante mais uma pausa.
- Admito que fomos enganados - disse Walter Moon. - Recebemos algumas pistas de pessoas que pensaram ter visto Rosenzweig fugindo, pegando um táxi, esse tipo de coisas. Sabemos com certeza que aquele derrame foi uma farsa.
- Repita isso - disse Nicolae.
- Uma farsa perfeita! - intrometeu-se Hickman. - Perdão.
- Ele me enganou - complementou Nicolae. - Tenho de dar esse crédito a ele.
- Eu... hã... - prosseguiu Moon - não estou querendo saber mais que o senhor, mas...
- Prossiga, Walter.
- Bem, o senhor perdoou seu agressor talvez antes de saber quem ele era.
Carpathia deu uma gostosa gargalhada.
- Você pensa que eu não sei quem me matou? Eu levantei aquele braço flácido para pedir aplausos para ele. Segundos depois, fui atirado para longe pelo disparo de uma arma. Ele esmagou meus pés com as rodas daquela cadeira infernal, e a última coisa que sei foi que caí no colo de um maluco. Naquela hora, eu sabia o que estava acontecendo, apesar de não ter entendido por quê. Mas ele não era um velhinho frágil. Não havia nenhum braço flácido, nenhum idoso esquelético. Ele enfiou aquela espada em mim e remexeu-a dentro de meu crânio. O homem era rijo como pedra e forte.
- Acho que devíamos enviar um boletim ao mundo inteiro e usar todos os nossos recursos para trazer esse homem para cá - disse Hickman. - Vamos gravar a cara dele em videoteipe! Vamos mostrar essa cara ao mundo!
- No tempo oportuno - disse Carpathia, agora mais calmo. David imaginou que ele tivesse voltado a sentar-se. - Eu o perdoei, sabendo que um número incontável de cidadãos leais adorariam vingar-se em meu lugar, caso ele mostre a para algum dia. É desnecessário dizer que não praticaremos nenhum crime.
- É desnecessário dizer - repetiu Hickman como papagaio.
- E como vão as investigações a respeito do cúmplice?
- O maluco com a arma? - disse Moon. - Achamos que ele não é do Oriente Médio. Encontramos suas roupas e a arma. É do mesmo calibre que a bala. Nenhuma impressão digital. Nenhuma pista. O senhor está convencido de que eles trabalharam juntos?
Pelo tom de voz, Carpathia parecia perplexo.
- Convencido? Eu não sou especialista nesse assunto, mas os dois ataques foram uma grande coincidência, você não concorda?
- Eu concordo - disse Hickman. - Trabalhei naquele caso e...
- Prossiga - disse Nicolae.
- Acho que eles fizeram um acordo. Se um não atingisse o senhor, o outro atingiria. Para o cara da arma, pode ter sido um passatempo, mas ele teve sorte de não matar ninguém.
Akbar pigarreou.
- O senhor sabe que existe uma ligação entre Ben-Judá e Rosenzweig?
- Prossiga - disse Nicolae.
- Ben-Judá foi aluno de Rosenzweig.
- Não diga! Hum. Se encontrarmos Ben-Judá, encontraremos Rosenzweig.
- É o que estou achando - disse Hickman.
- Estou pronto para ouvir seu relatório, James.
- Eu? Meu relatório? Ah, sim, senhor. Hum, está tudo em ordem. Injetores, aparelhos de cortar cabeça, isto é, só um minuto. Viv, hã..., a Sra. Ivins me disse o nome correto. Está aqui, tenha um pouco de paciência. Instrumentos de imposição à lealdade. Eles estão vindo e indo, depende. Estão vindo para cá e indo para todos os outros lugares. Por enquanto, nem todos. Alguns estão sendo fabricados neste momento, mas estão dentro da programação. Descobri uma enfermeira aqui que tem experiência em injetar biochips em... em... cães, acho. Mas ela vai precisar de treinamento. E já tenho uma pista sobre o seu porco.
- Meu porco?
- Oh, não. Quero dizer, se o senhor não precisar de um porco, eles podem matar o animal e usá-lo aqui. Mas, se o senhor precisar de um porco, já fizemos o pedido para um bem grande.
- E para que eu precisaria de um porco, James?
- Não sei se ouvi falar... ou fiquei sabendo... que o senhor precisava de um porco. Mas, se precisar de verdade, é só me dizer. O senhor precisa de um? Para alguma coisa?
- Quem andou conversando com você, comandante?
- O quê?
- Você ouviu o que eu disse.
- Conversando comigo?
De repente, Carpathia começou a gritar novamente e a proferir palavrões.
- Sr. Hickman, tudo o que é dito nas reuniões deste meu escritório particular é sagrado. Você está entendendo?
- Sim, senhor. Eu nunca...
- Sagrado! A segurança da Comunidade Global depende da maneira como os assuntos confidenciais são tratados aqui. Você conhece o velho ditado "Bocas frouxas afundam navios"?
- Conheço. Sei o que o senhor quer dizer.
- Alguém lhe contou que houve uma reunião aqui sobre um porco.
- Bem, eu preferia não...
- Ah, você vai preferir, sim, Sr. Hickman! Violar a sagrada confiança do potentado da Comunidade Global é crime sujeito a pena de morte, não é mesmo, Sr. Moon?
- Sim, senhor, é.
- Portanto, James, a próxima palavra que você proferir vai ser o nome do culpado ou, então, você pagará o preço pela transgressão. Estou aguardando.
David ouviu Hickman choramingando.
- O nome, comandante. Se eu souber que ele é seu amigo ou se você não disser o nome dele, será um homem morto.
Hickman lutava para conter-se.
- Eu lhe dou dez segundos. Hickman suspirou fundo e tossiu.
- Agora são cinco.
- Ele é... ele é... um...
- Sr. Moon, você está preparado para levar o Sr. Hickman preso para ser exec...
- Ramon Santiago! - Hickman deixou escapar. - Mas eu lhe imploro, senhor, não...
- Sr. Moon.
- Por favor! Não!
David ouviu Moon falando ao celular.
- Aqui é Moon. Preste atenção, prenda Santiago... Certo, aquele das Forças Pacificadoras... imediatamente... sim. Até que eu chegue aí.
- Você permitiria que eu fizesse o serviço pessoalmente, Walter?
- Como o senhor desejar.
- Não! Por favor!
- James, quando eu anunciar amanhã que um subcomandante das Forças Pacificadoras foi condenado à morte, você vai compreender a gravidade das regras, não?
David ouviu um sim em meio aos soluços de Hickman. Aparentemente, isso não foi suficiente para Carpathia.
- Vai compreender ou não, supremo comandante?
-Sim.
- Foi o que pensei. E sim, eu preciso de um porco. Um animal grande, gordo, carnudo e com narinas enormes. Precisa receber uma alimentação exagerada para ficar pesado demais e não me atirar no chão, caso eu decida cavalgar nele pela Via Dolorosa na Cidade Santa. Conte-me, Hickman. Conte-me alguma coisa sobre meu porco.
- Eu ainda não vi o tal porco - disse Hickman, desoladamente -, mas...
- Você entendeu minha ordem.
- Sim. - A voz de Hickman era trêmula.
- Grande, gordo e feio?
- Sim.
- Eu não ouvi o que você disse, James. Malcheiroso? Você pode me arrumar um porco fedorento?
-Sim.
- Do jeito que eu quiser?
- Sim!
- Você está zangado comigo, meu servo leal?
- Mais ou menos.
- Obrigado por sua honestidade. Você entende que quero um animal tão grande para que eu possa enfiar minhas mãos em suas narinas?
David deu um salto ao ouvir uma batida na porta. Mac e Abdullah haviam chegado.

QUINZE

Buck sentiu o peso dos anos e estava constrangido quando desembarcou em Kozani, Grécia, com um cansaço exagerado por causa da viagem, o que não parecia ocorrer com Albie, um homem mais velho do que ele. E Albie, evidentemente, havia pilotado o avião o tempo todo.
- Tire proveito desse cansaço - disse Albie.
- Como assim?
- O cansaço deixa a pessoa mal-humorada.
- Eu estou tranqüilo.
- Então, não demonstre estar tranqüilo. Seja apenas educado. Nosso instinto natural, quando não dormimos bem, nos deixa impacientes, de pavio curto, irritados. Aja assim. O pessoal da CG é mandão, autoritário. Gosta de dar ordens.
- Já notei.
- Não faça perguntas, não peça desculpas. Você é um homem ocupado, tem uma missão a cumprir, coisas para fazer.
- Entendi.
- Entendeu mesmo?
- Acho que sim.
- Não senti firmeza.
- Tenho de ser firme com você também?
- Pelo menos treine comigo, Buck. Vocês, norte-americanos, não são de nada. Tive de dar uma dura em seu sogro para ele voltar a ser o líder que sempre foi. Você, um jornalista internacional, não sabe fingir para conseguir o que quer?
- Acho que sim.
- Então, mostre! Como conseguia aquelas grandes reportagens? Como conseguia entrevistar gente importante?
- Eu usava o poder da posição que ocupava.
- Exatamente.
- Mas eu trabalhava para o Semanário Global.
- Mais que isso. Você era Buck Williams, o Buck Williams do Semanário Global. Talvez o seu talento para escrever tenha feito de você o Buck Williams, mas, quando você era ele, tinha confiança em si mesmo, não é verdade?
- Acho.
- Acho - arremedou Albie. - Vamos, Buck! Levante a cabeça!
- Você quer que eu ande de cabeça empinada?
- Quero que você consiga um carro para nos levar ao centro de detenção onde o pastor Demeter, a Sra. Miklos e vários outros crentes da igreja deles estão presos.
- Não seria mais fácil você conseguir esse carro?
- Por quê?
- Você tem patente mais alta que a minha, mais alta que a de todos que encontrarmos por aí.
- Então, tire vantagem disso. Eu sou aquele que todos vêem, mas não se dirigem a mim. Eles só me fazem continência. Você vai falar com eles em meu nome. Está usando essa bela farda, feita sob medida no Chez Zeke.
- Vou tentar.
- Você está desanimado.
- Sou capaz de fazer o que você disse.
- Não estou sentindo confiança em sua voz.
- Apenas olhe o que vou fazer.
- É disso que estou com medo. Estou olhando para um sujeito com cara de quem vai ser descoberto. Prove-me que estou errado, Buck.
- Saia da minha frente, seu velho!
- É isso aí.
- Você vai pedir a eles que reabasteçam o avião enquanto estivermos em Ptolemaís?
- Não, Buck, é você que vai pedir.
- Vamos lá. Eu não entendo nada de aviões.
- Faça só isso. De agora em diante, sou um subcomandante zangado, cansado da viagem, mal-humorado e não quero falar com ninguém.
- Vai ser tudo por minha conta?
- Não me pergunte nada. Sou mudo.
- Você está falando sério?
Albie não respondeu. Com o olhar firme, as mandíbulas cerradas e carrancudo, ele caminhou ao lado de Buck até o terminal, que ficava a uns 40 quilômetros ao sul de Ptolemaís. Buck abordou o primeiro militar que viu.
- Fala inglês? - ele perguntou ao jovem.
- Claro. Por quê?
- Quero que você guarde aquela aeronave no hangar e a reabasteça enquanto meu comandante e eu vamos pegar a estrada para cumprir uma missão.
- Verdade? E quero que você lustre minhas botas enquanto eu durmo.
- Vou fingir que não ouvi, filho.
- Que bom. Eu também.
O rapaz começou a afastar-se, mas Buck o puxou pelo ombro.
- É uma ordem.
- Você acha que sei pilotar um avião? Eu trabalho em terra, meu chapa. Arrume outro lacaio para fazer esse serviço.
- Já lhe disse que é uma ordem. Encontre alguém que saiba pilotar um avião. Quero que tudo esteja pronto quando voltarmos ou você vai ter de arcar com as conseqüências.
- Você está brincando comigo!
Albie mantinha-se afastado da conversa. Para Buck, ele estava tentando conter-se para não dar uma gargalhada.
- Você entendeu, filho? - perguntou Buck.
- Estou fora dessa. Vou correr o risco. Você não sabe meu nome.
- Mas eu sei - disse Albie, virando-se e ficando de frente para o rapaz, que subitamente empalideceu. - E você vai cumprir a ordem ou terá de retornar para sua cidade em trajes civis.
- Sim, senhor - disse o rapaz, fazendo continência. -Imediatamente, senhor.
- Não me faça esperar, rapaz - disse Albie, assim que ele virou as costas.
Buck olhou para Albie.
- Pensei que você fosse mudo.
- Alguém tinha de tirar você dessa encrenca.
- Ele tem a mesma patente que eu!
- É por isso que você tem de falar em meu nome! Eu tenho a patente, e você precisa saber fazer uso dela. Tente outra vez.
- O que você vai querer agora?
- Eu já disse. Precisamos de um carro.
- Droga!
Buck entrou com passos firmes no terminal apinhado de funcionários da CG. Depois das restrições impostas às igrejas clandestinas, o local ficaria tumultuado por uns tempos.
- Dê-me seus documentos - disse Buck a Albie.
- Para quê?
- Faça o que estou mandando!
- Agora sim, gostei de ver!
Buck furou uma fila de funcionários das Forças Pacificadoras da CG.
- Ei! - gritou o primeiro da fila.
- Ei o quê? - disse Buck. - Por acaso você é oficial ou está escoltando um? Porque, se não for, é melhor conhecer qual é o seu lugar.
- Sim, senhor.
Buck olhou para Albie com uma das sobrancelhas erguidas e dirigiu-se ao funcionário sentado a uma mesa atrás de um vidro.
- Cabo Jack Jensen apresentando-se a serviço do subcomandante Marcus Elbaz, que veio dos Estados Unidos Norte-americanos em missão oficial. Precisamos de um veículo para ir a Ptolemaís.
- Ah, sim, você e mais outros mil estão precisando de um veículo - disse o funcionário, olhando indolentemente para as identidades dos dois. - Falando sério, antes de vocês há mais ou menos 200 na fila.
- Desculpe-me, senhor, mas acho que estamos no primeiro lugar da fila.
- Você disse que seu superior veio dos Estados Unidos? Ele tem cara de quem nasceu no Oriente Médio.
- Não sou eu quem dá as ordens, companheiro. E acho melhor não meter meu superior nessa conversa. Mas, pensando bem, até que seria engraçado. Diga ao meu superior que ele tem cara de quem nasceu no Oriente Médio e que você está duvidando de sua base de operações. Vamos! Diga!
O funcionário cerrou os lábios e devolveu as identidades por baixo do vidro.
- Pode ser um veículo comum?
- Qualquer um. Eu poderia pedir um carro especial, mas só queremos ir até lá e voltar. - Buck abaixou a voz. - Para lhe dizer a verdade, o Elbaz está tão irritado hoje que não merece um carro tão especial assim. Pode ser qualquer um.
O funcionário passou por baixo do vidro um molho de chaves presas a uma etiqueta de papelão.
- Mostre isso ao responsável pelos veículos. O posto dele fica atrás do portão de saída.
Enquanto eles caminhavam naquela direção, Albie começou a arremedar Buck.
- O Elbaz está tão irritado hoje que não merece um carro tão especial assim. Eu devia rebaixar você à função de escoteiro.
- Se você fizer isso, vai ter de retornar para sua cidade em trajes civis.


- Carpathia está tramando alguma coisa - disse Mac, sentando-se ao lado de Abdullah na sala de David.
- Vou ficar muito feliz quando der adeus a este lugar - disse Abdullah.
David remexeu-se na cadeira.
- Vamos conversar sobre isso.
- Você também não quer sair daqui? - perguntou Abdullah.
- Sinto muito, Smitty - disse David.
- Eu estava falando com Mac.
- Oh! Mil perdões.
- Veja só o jeito dele - disse Mac. - Já está de beiço caído.
- Eu não estou de beiço caído! Pare de me amolar!
Mac deu um tapinha no ombro de Abdullah. O jordaniano sorriu.
- Carpathia me ligou alguns minutos atrás - disse Mac a David - perguntando se eu sei onde as armas estão. Claro que não sei, mas bem que gostaria de saber. Vou dizer uma coisa a vocês, caras. O povo pode falar o que quiser sobre a reconstrução milagrosa que Carpathia fez no mundo inteiro. Mas nada, repito, nada, pode ser comparado ao que ele fez quando conseguiu que todos aqueles países destruíssem 90 % de seus armamentos e doassem a ele os 10 % restantes. Ele estocou esses 10% em algum lugar, e ninguém mais voltou a falar do assunto.
- Bocas frouxas afundam navios - repetiu David.
- Você acha que o povo sabe mas não abre a boca?
- Claro.
- Como ele consegue manter um segredo tão grande que envolve tanta gente?
- Acho que acabei de saber como - disse David, contando rapidamente a Mac e Abdullah a conversa que ouvira.
Abdullah sacudiu a cabeça.
- Nicolae Carpathia é um homem mau.
Mac olhou para Abdullah e, em seguida, para David.
- Você disse uma grande verdade, mas, vamos lá, Smitty. Você acabou de chegar a esta conclusão ou sempre soube e não quis nos contar?
- Você está fazendo gozação comigo - disse Abdullah. -Espere só até eu aprender a falar bem a sua língua.
- Você vai ser um perigo.
O celular de David tocou. Ele o abriu e fez um gesto pedindo licença.
- É Ming Toy.
- Você quer que a gente saia um pouco? - perguntou Mac.
David negou com a cabeça.
- A discussão é a mesma de sempre - ela disse. - Meu pai quer que Chang comece a trabalhar imediatamente para a CG e seja um dos primeiros a receber a marca. Chang jura que não vai aceitar a marca de jeito nenhum.
- Ele contou o motivo a seu pai?
- Não, e jamais vai poder contar a não ser que meu pai se converta. Continuo com fé e orando, mas, enquanto meu pai não se converter, Chang não pode contar nada a ele. Se isso acontecer, ele vai pôr todos nós em perigo.
- Sua mãe sabe?
- Não! Ela acabaria contando a ele. Vai ficar tão intimidada que não será capaz de agüentar a pressão dele. David, você tem de impedir que Chang trabalhe aí, principalmente se os novos funcionários forem os primeiros a receber a marca.
- Parece que os prisioneiros serão os primeiros, mas, sim, os novos funcionários virão logo a seguir. Talvez à medida que forem contratados. E, dentro de duas semanas, seremos nós.
- O que você vai fazer, David? Você e seus amigos?
- Estamos conversando sobre o assunto neste instante. Vamos ter de fugir ou morrer.
- Você pode levar Chang com você?
- Seqüestrar seu irmão?
Ming ficou alguns instantes em silêncio. Em seguida, disse:
- Você não entende, David? Quer deixar Chang receber a marca ou ser degolado só para você não correr o risco de seqüestrá-lo? Por favor. Seqüestre meu irmão! Ele não vai oferecer nenhuma resistência.
- Devo entrevistá-lo para um cargo amanhã.
- Então, encontre um meio de não aprovar Chang. Afirme que ele não tem capacidade para trabalhar aí. Ou diga a meu irmão para ir a seu encontro quando você fugir.
- A última opção é a mais provável. O que poderia desqualificá-lo para o cargo? Ele parece uma mina de ouro para qualquer departamento, principalmente o meu.
- Invente alguma coisa. Diga que ele tem Aids.
- E deixar que o próprio pai o mate?
- Que tal um defeito genético?
- Ele tem algum?
- Não! Mas preciso de sua ajuda.
- Não sou médico, Ming. Isso só serviria para retardar as coisas.
- É melhor que nada.
- Eles podem desconfiar de mim. Estamos querendo sair daqui sem levantar suspeitas de que somos subversivos.
- Grande idéia. Diga a eles que quer levar Chang com você para verificar as habilidades dele antes de contratá-lo. Depois, o que acontecer com você, vai acontecer com ele. Meu irmão vai ficar livre para poder ajudar você, seja lá onde for.
- Talvez.
- Tem de dar certo, David. Não há alternativa.
- E se eles não aceitarem meus argumentos? E se eles contratarem Chang, aplicarem a marca nele e só depois darem um cargo a ele?
- Você precisa tentar. Ele é muito inteligente, mas ainda é uma criança. Não sabe defender-se de meu pai.
- Vou fazer o melhor possível, Ming.
- Parece uma desculpa para um possível fracasso. Sinto muito, mas só posso prometer que vou fazer o melhor possível.
- David, ele é meu irmão! Sei que não é parente seu, mas você não pode arrumar algum pretexto? Se fosse Annie, você não daria um jeito? Não faria o impossível para salvá-la?
David não conseguiu falar mais.
- Oh, David! Perdoe-me! Eu não devia ter dito isso! Por favor! Fui cruel demais!
- Tudo bem, eu...
- David, ponha a culpa em meu medo e em minha situação.
- Já disse que está tudo bem, Mi...
- Por favor, diga que me perdoa. Eu não quis ser tão grosseira.
- Ming, acalme-se. Você tem razão. Eu compreendo. Você me deu algumas idéias. Conte comigo. Vou fazer o que tiver de ser feito para proteger Chang, está bem?
- David, você aceita meu pedido de desculpas?
- Claro.
- Obrigada. Vou orar por você. Eu amo você como uma irmã em Cristo.
Assim que David desligou, Mac disse:
- O que tanto a moça tinha para falar, homem? Por alguns instantes, achei que você se parecia mais comigo do que com um israelense.
David lhe contou tudo.
- Vou dizer-lhe uma coisa - disse Mac -, mesmo sem saber a opinião de Smitty. Se aquele rapaz for crente e tiver o selo na testa para provar, ele é dos nossos. O mesmo deve acontecer com qualquer outro crente que encontrarmos por aqui. Certo, Smitty?
- Acho que sim, se é que eu entendi o que estão dizendo. Todos os outros crentes daqui vão conosco.
- Claro.
- Certo?
- Foi o que eu disse.
- Mac, só uma pergunta. Que outra pessoa poderia falar por mim a não ser você?


Na estrada rumo ao norte, Buck usou um telefone seguro para falar com Lukas (Laslos) Miklos. O homem estava arrasado.
- Obrigado por ter vindo - ele disse -, mas não há nada que você possa fazer. Você não deve ter trazido armas.
- Não.
- Você não tem condições de enfrentar um número tão grande de inimigos e sair vivo daqui. Por que viajou até aqui? 0 que pode fazer?
- Eu queria tomar conhecimento das coisas, Laslos. Divulgá-las ao mundo por meio de A Verdade.
- Perdoe-me, irmão Williams. Eu adoro sua revista e a leio religiosamente, da mesma forma que leio as mensagens do Dr. Ben-Judá. Mas para que gastar tanto tempo, tanto dinheiro, correr tanto risco para vir até aqui? Só por causa da revista? Você sabia que as guilhotinas já chegaram?
- O quê?
- É verdade. Estou afirmando com segurança, porque foram nossos irmãos e irmãs que me contaram. A CG está transportando as guilhotinas pela cidade em caminhões abertos para que o povo possa ver as conseqüências de sua desobediência. Fazemos parte dos Estados Unidos Carpathianos, um nome que me faz cuspir todas as vezes que sou obrigado a usá-lo. Nicolae vai nos usar como exemplos. E você está aqui para escrever um artigo!
- Irmão Miklos, preste atenção. Você sabe que não há nada que a gente possa fazer. Se tentarmos libertar sua esposa, o pastor e nossos irmãos crentes, só vamos piorar as coisas. Mas achei que você gostaria de saber que estamos aqui para lhe contar, se conseguirmos entrar na prisão, em que condições e estado de espírito eles estão, se têm algum recado para vocês.
Silêncio. Buck ouviu Laslos chorando.
- Você está bem, meu amigo?
- Sim, irmão. Eu compreendo. Perdoe-me. Estou confuso. A televisão não pára de noticiar que as guilhotinas vão ser instaladas em primeiro lugar nas prisões e depois nos centros de aplicação da marca. Para nós, é apenas uma questão de dias. Para os prisioneiros, é uma questão de horas. Por favor, diga à minha esposa que eu a amo e que estou orando por ela, querendo vê-la novamente. E diga a ela que, se não nos encontrarmos novamente, nos veremos no céu. Diga... - e ele começou a chorar alto - que ela foi a melhor esposa do mundo, que eu a amo de todo o coração.
- Vou dizer, Laslos, e vou trazer os recados dela para você.
- Obrigado, meu irmão. Estou agradecido por você ter vindo.
- Você sabe para onde ela e os outros crentes foram levados?
- Tenho idéia, mas não podemos nos arriscar a chegar perto, porque eles vão nos pegar. Você sabe que nossa igreja é composta de um número muito grande de pequenos grupos, que agora não são tão pequenos assim. Quando invadiu o grupo principal, a CG levou minha esposa, o pastor D e cerca de 70 crentes, mas ainda faltam mais de 90 grupos para serem encontrados.
- O quê!
- Esta é a boa notícia. O pior é que, aparentemente, alguns crentes do grupo principal cederam às pressões. Posso dizer, sem hesitar, que minha esposa e meu pastor não cederam, mas alguém foi torturado, ameaçado ou convencido a delatar outros grupos. A CG invadiu outros locais, e agora os crentes não se atrevem mais a reunir-se. Foi por um milagre que eu não estava naquela reunião com minha esposa. Se ela se tornar mártir, eu gostaria de estar lá para morrermos juntos.


- Além de uma sugestão, David, temos uma pergunta, e o Smitty me ajudou muito - disse Mac. - Fazemos gozação com ele por causa da língua, mas a mente desse nosso amigo é perspicaz. Estou lhe fazendo um elogio, Abdullah.
- Ei, caubói do Texas, é claro que eu entendi!
- Acho que, se eu fico caçoando da Jordânia, você pode caçoar do Texas... Mas a pergunta é a seguinte: devemos fingir até o fim que não sabemos de nada, achando que você vai descobrir quando os empregados vão receber a marca? Ou vamos querer ganhar um pouco mais de tempo?
David pensou por alguns instantes.
- Não se trata de ganhar um pouco mais de tempo, Mac. Trata-se de uma intuição. Se aguardarmos até o último momento para simular nossa morte num acidente, poderemos levantar suspeitas.
- Foi o que eu disse! - exclamou Abdullah. - Não foi o que eu disse, Mac?
- Foi sim.
- Foi o que ele disse, David. Opinião interessante. Se resolvermos pôr nosso plano em prática antes da data programada, teremos muitas opções. As Forças Pacificadoras estão começando a despachar as primeiras cargas de... como chamam aquelas geringonças? Alguma coisa parecida com lealdade.
- Chame-as pelo nome verdadeiro - disse David.
- Está bem. Eles despacharam as guilhotinas para a Grécia ontem à noite.
- O embarque não partiu daqui - disse David. - Eu teria tomado conhecimento.
- Não, foram fabricados em Istambul e despachados de lá. Logo estarão chegando aqui e em outros lugares, e vamos ter muito serviço a fazer. Você deve escolher um lugar estratégico para acompanhar o embarque e encontrar um motivo para trazer Hannah e esse Chang sei-lá-o-quê para perto de nós. Eu vou requisitar um Quasi Two.
- Um Quasi Two? Como você vai justificar essa requisição? Não podemos levantar suspeitas. Podemos acomodar dois pilotos e três passageiros em um avião mais barato que 15 milhões de Nicks.
- É verdade, mas digamos que queremos levar uma carga enorme de guilhotinas e caixas de biochips e injetores.
- Estou ouvindo. Mas ainda vamos precisar de muito mais carga para justificar a requisição de um Quasi Two.
- Bem, digamos que a carga está em algum lugar que o próprio Santo Nick vai visitar.
- Conte a ele de quem foi essa idéia - disse Abdullah.
- Foi sua, seu bocudo.
- Bocudo?
- É brincadeira, Smitty. Relaxe e deixe seu camelo descansar...
David ergueu a cabeça de repente.
- Vocês estão pensando o que eu estou pensando que vocês estão pensando?
- Que jogo é esse? - perguntou Abdullah.
- Estamos - disse Mac. - Jerusalém.
David refletiu sobre as possibilidades.
- Vou espalhar a notícia de que queremos estar lá e de que vamos levar uma especialista em injetores e meu mais novo assistente em informática. Vamos levar a maior carga que pudermos em um avião tão grande quanto a cabeça do potentado. Vamos brincar com o ego dele.
- Você acha que Nicolae é um egocêntrico? - perguntou Mac como se estivesse mesmo falando sério.
David sorriu.
- Ele está brincando? - disse Abdullah. - Não há tecido suficiente na Jordânia para fazer um turbante para a cabeça de Nicolae.
Mac atirou a cabeça para trás e caiu na gargalhada. David continuava pensativo.
- O Quasi Two pode ser pilotado por controle remoto.
- Como qualquer outro avião moderno, e eu tenho muita experiência com todos eles.
- Vamos pousar em um lugar qualquer a caminho de lá, sem que ninguém nos veja. Quando estivermos em terra firme, você vai fazer aquele jato caríssimo voar, com toda aquela carga preciosa dentro, menos nós, e atirá-lo na água, ao lugar mais fundo que encontrarmos.
- E muita gente vai ver.
- Como assim?
- Precisamos que muita gente veja! Você pediu que bolássemos uma explicação lógica para o acidente. Desculpe-me pelas lembranças tristes, mas perdemos nossa chefe de cargas há pouco tempo. Ela proibiria uma carga tão pesada naquele avião. Mas, como sou veterano no assunto, vou dizer que não há problema nenhum. Vou pilotar pelo controle remoto e fazer as comunicações também por controle remoto. De repente, vou começar a gritar que o peso está exagerado, que a carga está rolando, difícil de controlar. Socorro! Mayday! Adeus, mundo cruel!
- Vocês são brilhantes.
- Obrigado.
- Nós dois - disse Abdullah. - Certo?
- Claro - disse David.
- Pensei em mais uma coisa - disse Abdullah. - Espere aí, Smitty - disse Mac. - É alguma novidade que eu não sei?
- Relaxe e descanse seu pônei. Você vai gostar. Você vai fazer essa exibição diante do povo, em Tel-Aviv. Carpathia vai estar por lá. Faça um show aéreo para ele e para a multidão. Jogue o avião no Mediterrâneo, em um lugar tão fundo para que saibam que morremos e que não compensa resgatar a fuselagem.
- E o que vamos fazer durante todo esse tempo? - Mac quis saber. - Vai ser muito difícil ficarmos escondidos de Carpathia e daquele povo todo em Tel-Aviv.
- Não vamos decolar de Tel-Aviv. Partimos daqui para não levantar suspeitas, só que eles não vão saber que descemos na Jordânia. Eu conheço aquele lugar. Podemos pousar onde ninguém vai ver. Mande o avião para Tel-Aviv, faça o show e provoque a queda.
- De que distância você acha que posso controlar aquele avião por controle remoto, Smitty?
- O controle remoto não vai servir para tudo. Faça a decolagem por controle remoto, mas deixe o roteiro de vôo, tudo, enfim, programado no computador.
Mac olhou para Abdullah e depois para David.
- Até que ele teve uma boa idéia.
- Sério? - disse David. - Você sabe programar o avião para essas coisas?
- Vai levar um pouco de tempo.
- Então, mãos à obra.
- Surpresa, surpresa! - disse Abdullah. - O jóquei de camelos teve uma boa idéia.
O celular de David tocou.
- O visor mostra que há uma ligação urgente de Hannah.
- Atenda - disse Mac.
- Ei, o que houve, Hannah? - disse David.
- Você tem certeza de que esta ligação é segura?
- Certeza absoluta. Você está bem?
- Estou em um depósito de materiais. Você sabia que Carpathia mandou executar um homem das Forças Pacificadoras hoje?
- Para dizer a verdade, sabia. Santiago?
- Obrigada por me contar só agora. Tive de ir pegar o corpo na cela do Serviço de Segurança.
- Não houve tempo de lhe contar, Hannah. Quem poderia saber que você seria encarregada dessa tarefa?
- Foi horrível. Lido com a morte o tempo todo, mas ele recebeu um tiro entre os olhos, à queima-roupa. E o pessoal da CG está fazendo questão de mostrar por que ele foi castigado. O homem foi executado pelo próprio Carpathia! Você sabe por quê? É claro que sabe. Você sabe de tudo.
- Ouvi dizer que ele falou demais.
- Essa explicação não me pareceu muito lógica, David, mas foi também o que eu ouvi dizer. Pelo que entendi, ele revelou a alguém uma coisa que Carpathia disse numa reunião particular.
- Sinto muito por você estar metida nessa história, Hannah.
- Tudo bem. Acho que sei quem deu com a língua nos dentes.
- Sabe?
- Você também sabe? - ela perguntou.
- Sei.
- David, como podemos viver no meio disso tudo?
- Não é nada fácil.
- E daí? Quem foi o dedo-duro?
- Você disse que sabia, Hannah.
- Se eu estiver certa, você vai confirmar?
- Claro.
- Hickman.
- Como você ficou sabendo?
- Estou certa, David?
- Está.
- Ele acabou de ser levado ao necrotério. Alguém encontrou o homem morto na sala, com um tiro na têmpora dado por ele mesmo.

DEZESSEIS

Buck e Albie juntaram-se várias vezes a uma caravana de veículos da CG e separavam-se dela sempre que necessário, enquanto seguiam para o que restara de Ptolemaís.
- Olhe bem para aquilo - disse Albie, apontando com o queixo para os caminhões abertos que transportavam as guilhotinas. - São medonhas, mas bem simples, não?
Buck balançou a cabeça de um lado para o outro.
- Isso é que me deixa espantado. Elas são montadas com muita facilidade. Máquinas simples, com peças básicas cortadas em série. Consistem de madeira, parafusos, lâmina, mola e corda. É por isso que foi fácil para a CG enviar as especificações a qualquer um que quisesse fabricá-las, desde desejasse trabalhar e tivesse os materiais. Agora estamos vendo fábricas enormes que voltaram a abrir para produzir essas máquinas, tendo de competir com artesãos de fundo de quintal.
- Tudo porque a CG diz que elas vão servir para... como é mesmo a palavra correta?
- Intimidação visual. Eles vão colocar uma máquina em cada centro de aplicação, e todos deverão entrar na fila.
Albie parou ao lado de uma policial das Forças Pacificadoras da CG que dirigia o trânsito e a chamou com um gesto.
- Estou trabalhando - ela disse com raiva, então reconheceu a farda e fez continência. - Às suas ordens, comandante.
- Fomos incumbidos de fazer uma visita ao principal centro de detenção, mas deixei a autorização em minha mala. Estamos perto de lá?
- Do centro principal, senhor?
- Acho que já disse isso.
- Bem, os centros ficam todos juntos a oeste daqui. Pegue a esquerda no próximo cruzamento e siga pela estrada de terra fazendo a curva até chegar à estrada reconstruída. O centro fica à sua esquerda, dentro da cidade. Não há como não ser visto. É enorme, cercado de arame farpado e cheio de policiais. Se o senhor quiser divertir-se um pouco, é melhor se apressar. Eles vão fazer algumas decapitações esta noite, se os rebeldes não recuarem de medo e mudarem de idéia.
- Verdade?
- Ouvi dizer que eles estão pondo essa gente na fila e fazendo um sorteio. Os que voltarem para a cela vivos vão receber uma nova tatuagem amanhã.


David estava exausto. O relógio marcava quase 23 horas, horário de Carpathia, quando ele saiu do escritório e dirigiu-se ao seu quarto. Ao ouvir passos firmes atrás de si, ele assustou-se e virou-se para trás. Era Viv Ivins, parecendo revigorada e com o mesmo entusiasmo que demonstrava todas as manhãs. Ela carregava uma pasta de couro e lançou um sorriso radiante para David.
- Boa-noite, diretor Hassid - ela disse assim que o alcançou.
- Boa-noite, senhora.
- Tempos maravilhosos estes, não?
David não sabia por quanto tempo conseguiria manter as aparências.
- Tempos interessantes - ele disse. Ela parou.
- Eu adoro quando tudo cai no lugar certo.
Para David, Viv escolheu mal as palavras, uma vez que era ela quem coordenava a produção e a distribuição das guilhotinas.
- As coisas estão indo de vento em popa - ele disse. Convenci a chefia a não exibir o instrumento de imposição à lealdade aqui no palácio.
- Verdade?
- Prejudicaria nossa imagem.
- Ele está sendo mostrado ao mundo inteiro.
- Até aí, tudo bem. Posso até entender. Na verdade, não tenho nenhuma restrição. Fora da capital e da sede existem certas pessoas que necessitam ver para crer. Só assim elas se lembrarão da seriedade dessa prova de lealdade. Quem não aceitar a marca é porque está patologicamente comprometido com alguma outra causa. Se a pessoa estiver só protelando sua decisão e enxergar a conseqüência de sua desobediência diante de si, vai se convencer imediatamente.
- Mas não aqui.
- Não haverá necessidade. Se a alguém da equipe não fosse leal ao potentado ressurreto, por que estaria trabalhando aqui? Quero mostrar ao mundo imagens de gente feliz, bem-disposta, satisfeita. Todos os cidadãos da Comunidade Global devem ver o brilho no rosto daqueles que são encarregados de administrar a nova ordem mundial. Aqui não há necessidade de forçar ninguém. Somos um exemplo para o mundo de gente dedicada e feliz, que vai sentir-se realizada por ter assumido a posição certa. Você entende?
- Claro. E quero dizer que gostei de sua idéia. Aqueles instrumentos horrorosos não devem prejudicar a linda paisagem daqui.
- Concordo plenamente. Começaremos a contratar novos funcionários amanhã, e eles estão muito entusiasmados por serem os primeiros a receber a marca do potentado. Todos estão optando por receber a imagem do potentado na testa. Eu vou preferir uma marca mais sutil, mas tenho de confessar uma coisa, Hassid. É divertido ver esses garotos de hoje com tanta ansiedade para serem diferentes dos demais. Você vai entrevistar um deles amanhã.
- Certo.
- O asiático prodígio.
- Ele mesmo.
- Que família! O pai está pedindo insistentemente que seu filho seja o primeiro a receber a marca. É tarde demais para isso, porque estamos começando com os prisioneiros políticos, mas ele pode ser o primeiro da fila entre os funcionários da CG.
David empalideceu e tentou disfarçar.
- Mas ele ainda não foi contratado.
- No entanto, já está aprovado, certo?
- Bem, preciso ter uma longa conversa com ele, saber se o rapaz tem condições de fazer o último ano do curso secundário aqui, uma vez que vai ficar longe de seus pais pela primeira vez, ver onde ele se encaixa melhor...
- Ele tem todas as probabilidades de ser contratado em algum lugar aqui. As chances de fracasso são mínimas. Podemos contratá-lo antes. Ele seria aprovado por antecipação para trabalhar em qualquer departamento. É como se fosse uma hipoteca pré-aprovada. Primeiro você o qualifica, depois faz uma oferta a ele dentro de seu orçamento.
- Eu não faria isso - disse David impensadamente.
- Por que não?
- Nem sempre tudo sai conforme gostaríamos. Vamos deixar que o processo caminhe naturalmente e fazer a coisa certa.
- Oh, Hassid, francamente. O que poderia dar errado?
David encolheu os ombros.
- Fiquei sabendo que o rapaz tem pavor de agulhas e não quer ser espetado de jeito nenhum.
- A ponto de abrir mão de uma oportunidade de ouro de trabalhar aqui? Ele vai ter de receber a marca nos Estados Unidos Asiáticos ou perderá mais que um emprego.
- Talvez até lá ele se acostume com a idéia.
- Ora, ora, diretor Hassid. Se ele é tão inteligente assim, é tempo de agir como adulto. Até entendo o medo do rapaz, mas a aplicação não dura mais que alguns segundos, e ele vai ver que fez um estardalhaço por nada.
- Bem, marquei com ele às nove horas. Podemos aguardar até lá, não? Eu não gostaria de entrevistá-lo logo após ele ter sofrido um trauma.
- Um trauma? Eu acabei de dizer...
- Mas ele vai continuar preocupado.
- De qualquer forma, acho que a aplicação da marca não vai começar antes das nove horas.
Já em seu quarto, alguns minutos depois, David usou seu subnotebook para verificar a agenda de sua secretária. Ela não o havia informado a respeito da hora da entrevista com Chang. Após uma rápida verificação na agenda dela, David entendeu o motivo. A entrevista foi confirmada depois que ele saiu do escritório e estava marcada para as 14 horas do dia seguinte. Ela o informaria amanhã.
David alterou o horário na agenda dela para as nove horas. Em seguida, entrou no computador do Departamento de Pessoal e fez o mesmo. Ligou para o número 4054 e deixou o seguinte recado no correio de voz: "Chang, a entrevista de amanhã foi antecipada para as nove horas. Por favor, não compareça ao Departamento de Pessoal antes da entrevista. Até amanhã."
Quando ele terminava de deixar o recado, seu telefone avisou que havia uma chamada à espera. Ele apertou o botão. Era Ming, com a voz assustada.
- Já começou aqui - ela disse. - E aí? Também já começou?
- Calma, Ming. Começou o quê?
- A aplicação da marca! O equipamento chegou ao presídio hoje cedo e está sendo usado esta noite.
- As prisioneiras estão recebendo o chip?
- Estão! Logo serão as funcionárias, e eu estou incluída. Preciso sair rápido daqui, mas antes quero confirmar uma coisa.
- Há crentes aí? Alguém se recusando a receber a marca?
- Ninguém. Elas estão se apresentando como se fossem leais escoteiras. Acho que esperam conseguir pontos por bom comportamento. A verdade é que vão continuar apodrecendo aqui, mas com a marca na cabeça ou na mão.
David contou a Ming sobre sua conversa com Viv e as providências que ele havia tomado.
- Oh, não, não - ela disse. - Às nove horas você deve fazei Chang desaparecer. Tire meu irmão daí.
- Ainda não estamos preparados para partir, Ming.
- O que você vai fazer?
- Vou ter de bolar alguma coisa, algum motivo para explicar que ele ainda não está pronto. Talvez eu diga que ele é imaturo, jovem demais para o serviço.
- Você é um diretor, David. Faça isso de maneira convincente. Precisa dar certo.
- Tenho a noite inteira para pensar no assunto.
- E eu tenho a noite inteira para orar.
- Vou fazer o que for possível, Ming. E quero fazer alguma coisa por você. Posso transferi-la para os EUNA.
- Pode?
- Claro. Posso fazer essa transferência pelo computador, e ninguém vai perguntar nada. Se eles souberem que foi aprovada por alguém de um nível mais alto, não vão questionar. Para onde você quer ir?
- Existem prisões em muitos lugares dos Estados Unidos Norte-americanos - ela disse. - Mas eu não vou trabalhar em nenhuma delas, certo?
- Certo. Arrumamos um lugar para você e a colocamos dentro de um avião, mas a perdemos de vista. Você foge, e nós não conseguimos encontrá-la. Daí em diante, fica por sua conta. Só precisa chegar à casa secreta em Chicago.
- Eles vão me aceitar?
- Ming! Leah já falou de você a todos de lá. Eles não vêem a hora de acolher você. Sabem que você e seu irmão vão ter de ir para lá. Podemos usar os dois. Para que lugar dos EUNA devo transferir você? Talvez para perto de Chicago, assim ficará mais fácil para chegar à casa secreta, mas não tão perto a ponto de levantar suspeitas.
- Eu não conheço os Estados Unidos - ela disse. - Há uma prisão enorme em Baltimore que está sempre precisando de funcionários.
- Fica muito longe de Chicago. Ei, espere um pouco! Você pode ir até a Grécia?
- Quando?
- O mais rápido possível, talvez esta noite.
- Vou deixar a seu critério. Dê um jeito para que minha transferência seja um assunto de máxima prioridade. Se você pedir que alguém da CG venha até aqui para me levar para a Grécia, eles vão ter de concordar. Mas, David, a Grécia está em polvorosa, apinhada de gente da CG aplicando a marca em presos políticos. Eu não quero trabalhar nem me esconder lá.
David lhe disse como chegar aos Estados Unidos, vindo da Grécia, sendo escoltada por dois homens da CG.
- Deus existe! - ela disse. - Onde posso encontrar esses homens?
- Vá ao aeroporto de Kozani. Eles a encontrarão.
- Você pode mandar Chang para lá também? Por favor, David, por favor! Tire meu irmão de perto de meus pais, arrume uma função para ele em qualquer lugar e peça que um de seus pilotos o leve para a Grécia. Poderemos ir para a casa secreta juntos.
- Ming, por favor. Precisamos agir com sensatez. Se eu der um golpe desses, seus pais vão perder Chang de vista e tudo recairá em cima de mim... e de você! Pense bem! Vocês dois são enviados a um lugar qualquer e desaparecem. Sei que você está desesperada e preocupada demais, mas deixe a logística por minha conta. A última coisa que quero é ver um holofote da CG focalizado em nós.
- Eu sei, David. Eu compreendo. Estou pensando com o coração.
- Não há nada de errado nisso - ele disse. - Só não podemos deixar de raciocinar para não piorar as coisas.


- Algum problema? - perguntou o chefe das Forças Pacificadoras da CG da Grécia a Buck ao ver que ele estava acompanhado de um subcomandante. - Fazemos tudo de acordo com o manual.
- Francamente, isso aqui está parecendo um manicômio - disse Buck, olhando para o conjunto de cinco edifícios que antes deviam ter sido ocupados por fábricas. As janelas tinham grades, e os prédios eram rodeados por uma cerca de fio cortante. Já era noite, e o local estava apinhado de guardas da CG enfileirados, consultando formulários impressos por computador, usando lanternas para tentar localizar os vários prisioneiros.
- Fazemos o possível com o material que temos em mãos para trabalhar - disse o chefe, olhando para Albie com nervosismo.
Buck continuou a falar.
- Quantos prisioneiros há neste centro de detenção?
- Cerca de 900.
- Há também uns 900 guardas da CG aqui fora.
- Nem tanto, senhor.
- O que todos eles estão fazendo? Foram incumbidos de quê?
- A maioria está dirigindo o centro de aplicação da marca no edifício do meio.
- O que há nos outros edifícios?
- Jovens de vinte e poucos anos no primeiro edifício, rapazes na ala oeste, moças na ala leste.
- Celas individuais?
- Poucas. Os prisioneiros ficam em áreas grandes e comuns, usadas para linha de produção.
- E nos outros edifícios?
- Mulheres no seguinte. Nenhum preso no do centro. Homens nos dois últimos.
- E quais são as acusações principais?
- Delitos graves, pequenos furtos, roubos.
- Crimes violentos?
O chefe movimentou a cabeça afirmativamente, olhando por cima dos ombros.
- Os assassinos, ladrões à mão armada ou coisa parecida ficam ali.
- E os prisioneiros políticos?
- A maioria fica no segundo edifício, mas os dissidentes religiosos, pelo menos os homens, também ficam ali -respondeu o chefe, voltando a apontar para o último edifício.
- Vocês colocam dissidentes misturados com criminosos violentos? - perguntou Buck, inclinando-se para a frente a fim de poder ler o nome do chefe no crachá.
- Isso não é assunto meu, senhor. Estou coordenando a aplicação da marca da lealdade. E preciso estar naquele edifício do centro em cinco minutos. Se o senhor quiser ajudar, tenho uma equipe de seis homens caminhando de um edifício a outro, a começar do lado oeste, fazendo a classificação preliminar.
- Como assim?
- Verificando se existe alguém recusando-se a receber a marca.
- E daí?
- Eles precisam nos avisar imediatamente. Não podemos perder tempo deixando que os presos entrem na fila para decidir se querem viver ou morrer.
- E se alguém da fila mudar de idéia?
- Decidir no último minuto que não quer receber a marca? Não acredito que alguém faça isso.
- E se fizer?
- Tomamos providências rápidas. Mas a maioria vai nos dizer antes para não emperrar a fila. Agora, cavalheiros, tenho ordens a cumprir. Os senhores vão ajudar na seleção ou não?
- Essa verificação vai ser feita simultaneamente em todos os edifícios? - perguntou Buck, pensando no pastor e na Sra. Miklos.
- Não. Estamos começando pelo edifício do lado oeste. Os prisioneiros serão escoltados ao edifício do centro para serem classificados e depois voltarão para a cela antes que cheguem os do próximo edifício. E assim por diante.
- Nós vamos ajudar - disse Buck.
O chefe gritou:
- Athenas! - Um guarda robusto e de meia-idade das Forças Pacificadoras apresentou-se. Três homens e duas mulheres fardados postaram-se atrás dele.
- Pronto, Alex?
- Pronto, senhor - disse Alex, com uma voz aguda que não combinava com seu porte físico.
- Leve Jensen e Elbaz com você.
- Tenho contingente suficiente, senhor.
O chefe abaixou a cabeça e olhou para Athenas.
- Eles vieram dos EUNA e, se você ainda não notou, A.A., o Sr. Elbaz é subcomandante.
- Notei sim, senhor. O Sr. Elbaz aceitaria ser o líder? Albie esticou o lábio inferior para a frente e sacudiu a cabeça.


Eram 14 horas em Chicago, e os membros do Comando Tribulação estavam aglomerados diante do aparelho de TV. O noticiário da CG local informava que as aplicações da marca haviam começado nas cadeias e centros de detenção.
Zeke, sentado em silêncio diante da TV, cobria a boca com as mãos. Rayford perguntou a ele se o disfarce que Chaim usaria em Jerusalém estava pronto. Sem desgrudar os olhos da tela, Zeke tirou as mãos da boca apenas para dizer:
- Só falta o manto. Vai ficar pronto esta noite.
Tsion concordara com a idéia engendrada por Zeke de mudar a aparência de Chaim, mas achou que ele também deveria usar sandálias e um manto marrom, de tecido grosso e com um capuz folgado caindo no rosto, para encobrir seus traços fisionômicos. O traje deveria cobri-lo da cabeça aos pés, sem que a barra arrastasse pelo chão, e seria preso ao redor da cintura por uma corda trançada. Todos concordaram que essa roupa daria um aspecto de humildade e discrição a Chaim, mas também de intimidação quando ele fosse visto pelo povo e tivesse de dizer alguma coisa.
Chaim foi assimilando aos poucos a idéia, desde que tivesse condições de agir sob o disfarce de seus trajes.
- Continuo achando que Tsion é quem deveria ir – ele insistia.
- Vou lhe prometer uma coisa, meu amigo - disse Tsion. - Se você permitir que Deus o use poderosamente para conduzir seu povo a um lugar seguro, prometo que irei até lá e dirigirei uma palavra pessoalmente a eles.
O âncora da TV informou que, apesar de a CG local não ter previsto a necessidade de usar os instrumentos de imposição à lealdade, um prisioneiro recusou-se a receber a marca e foi executado. "A execução ocorreu há menos de uma hora e meia na antiga Cadeia do Condado de DuPage. O dissidente, preso por tráfico de óleo combustível, foi identificado como Gustav Zuckermandel, 54 anos, ex-habitante de Des Plaines."
Zeke cobriu o rosto com as mãos e tombou o corpo de lado, onde permaneceu chorando em silêncio. Os membros do Comando Tribulação aproximaram-se dele, colocaram a mão em seu ombro e todos choraram. Tsion, Chaim, Rayford, Leah e Chloe rodearam Zeke, e Tsion orou.
"Nosso Pai, mais uma vez estamos enfrentando a perda dolorosa de uma pessoa muito querida. Derrama sobre o nosso jovem irmão tua esperança eterna e não nos deixe esquecer que um dia voltaremos a ver esse corajoso mártir."
Quando Tsion terminou a oração, Zeke enxugou o rosto com a manga da camisa e levantou-se desajeitadamente.
- Você está bem, filho? - perguntou Rayford.
- Eu preciso trabalhar - disse Zeke, desviando o olhar e correndo de volta para seu quarto.


Buck sentia um gosto amargo na boca. Já havia estado em situação semelhante e vira perversidade e destruição suficientes, das quais jamais se esqueceria. Mas, em sua opinião, seria melhor se ele e Albie tivessem trazido armas automáticas poderosas para, ao menos, tentarem resgatar os crentes. No fundo, gostaria de disparar uma saraivada de balas naquele bando de guardas da CG. Como adoraria entrar à força nas celas, procurar pessoas com o selo de Cristo na testa e levá-las para um lugar seguro.
Mas não seria possível. A profecia cumpria-se mais uma vez diante de seus olhos, e ele não seria capaz de modificá-la. No edifício do lado oeste, a equipe de seleção, composta por oito pessoas, foi revistada na cerca oeste e na entrada principal.
Buck sentiu um odor fétido assim que foram autorizados a entrar no corredor central. Dentro de uma cela enorme, havia mais de cem jovens, do sexo masculino, alguns com olhar frio e destemido, outros petrificados. A cela era cercada por quatro ou cinco guardas armados de cada lado, fumando, lendo revistas com ar de tédio no rosto.
Os jovens pularam e bateram palmas quando o grupo entrou.
- Liberdade! - gritou um deles, enquanto os outros riam. -Eles vieram nos libertar!
Os companheiros de cela riam com ar de zombaria.
Athenas afastou-se um pouco do pessoal e levantou as duas mãos pedindo silêncio. Buck aproximou-se de um guarda, que deixou a revista cair e perfilou-se.
- Pois não, senhor! - disse o guarda.
- Que mau cheiro é esse, soldado?
- Vem das latas, senhor. Nos cantos, está vendo? Buck olhou para os quatro cantos da cela e avistou tambores de 200 litros. Ao lado de cada tambor, havia uma escadinha de madeira improvisada e eles eram cobertos por uma espécie de assento sanitário.
- Este edifício não possui banheiros? - perguntou Buck.
- Só para nós - respondeu o guarda. - Fica no fim daquele corredor.
Buck sacudiu a cabeça.
- Os presos não podem ser levados para lá de vez em quando?
- Não podemos correr o risco.
Alex Athenas havia conseguido, finalmente, atrair a atenção dos prisioneiros.
- Vocês são os primeiros a ter o privilégio de demonstrar lealdade e devoção à Sua Excelência, o potentado ressurreto da Comunidade Global, Nicolae Carpathia!
Para espanto de Buck, essas palavras foram seguidas de aplausos entusiasmados que duraram quase um minuto. Alguns jovens começaram a cantar em homenagem a Carpathia.
Athenas voltou a pedir silêncio.
- Dentro de alguns instantes, vocês serão conduzidos ao edifício central, onde vão dizer aos funcionários se desejam a marca da lealdade na testa ou na mão direita. O local escolhido será desinfetado com uma solução de álcool. Cada um de vocês vai entrar em um cubículo, sentar-se e receber o biochip por meio de uma injeção. Simultaneamente, vocês
serão tatuados com o prefixo 216, que os identificará como cidadãos dos Estados Unidos Carpathianos. A aplicação dura apenas alguns segundos. O desinfetante também contém um anestésico local para que ninguém sinta dor. Qualquer comportamento rebelde será tratado com justiça imediata. Para os analfabetos, significa que a pessoa morrerá antes de cair no chão.
Mais gritos e aplausos. Buck fixou o olhar em um jovem no meio dos prisioneiros, de cabelos pretos e ondulados. Ele era magro e pálido, e seus óculos mal encaixados no rosto pareciam estar sem uma das lentes. Aparentemente, o rapaz não tinha idade para fazer parte daquele grupo, mas o que chamou a atenção de Buck foi a sombra em sua testa. Seria uma mancha? Ou seria o selo de Deus?
- Com licença, oficial! - disse Buck passando por Athenas e esquadrinhando a cela. O vozerio parou, e os prisioneiros o fitaram. - Você aí! Sim, você! Dê um passo à frente!
O jovem abriu caminho por entre os presos e chegou à frente da cela, onde permaneceu trêmulo.
- Alguém abra esta porta! - gritou Buck.
Ninguém se moveu. Ele olhou para o guarda a quem havia se dirigido. O guarda olhou com nervosismo para Athenas.
- Os outros para trás! - disse Athenas, fazendo um movimento afirmativo com a cabeça para o guarda, que abriu a cela.
Buck entrou com passos firmes e agarrou o rapaz pela manga do suéter cinza e puído. Ele o arrastou para fora da cela, passou por Athenas e os outros guardas, gritando com o jovem o tempo todo.
- Você debochou das Forças Pacificadoras da Comunidade Global, rapaz? Agora vai aprender a respeitá-las.
- Não, senhor, por favor. Eu, eu...
- Cale a boca e continue andando!
Quando Buck passou com o rapaz pelos guardas da entrada, eles gritaram:
- Espere! O que é isso? Ele vai passar pela seleção!
- Depois! - disse Buck.
- Para onde estamos indo? - perguntou o rapaz, com sotaque grego.
- Para casa - cochichou Buck.
- Mas meus pais estão aqui.
- Como eles se chamam? - perguntou Buck, anotando os nomes. - Não posso garantir que eles vão sair. Mas você não vai morrer esta noite.
- Você é crente?
Buck assentiu com a cabeça e pediu silêncio.
Os dois passaram pelos guardas do portão externo, e Buck conduziu o jovem a um jipe da CG do outro lado da estrada. Ali não havia iluminação, e ninguém mais se deu ao trabalho de olhar para trás.
- Sente-se no banco da frente, do lado direito - disse Buck. - Há outros crentes na cela?
O rapaz sacudiu a cabeça.
- Não vi nenhum.
- Quero que você me dê o nome de um dos prisioneiros de sua cela, só um.
- De quem?
- De qualquer um. Só preciso de um nome.
- Ah, Paulo Ganter.
- Certo. Agora, preste atenção. Você vai ficar sentado aqui neste jipe até eu voltar. O que você não pode fazer, preste bem atenção, é ficar olhando para ver se há alguém vigiando. Porque, se você souber que há alguém vigiando, pode sentir-se tentado a correr e só parar quando chegar a um lugar seguro. E aí, quando eu voltar para cá mais tarde, vou ficar me perguntando o que aconteceu com meu prisioneiro. Entendeu?
- Acho que sim. Você não quer que eu faça isso?
- Claro que não. Eu não saberia o que fazer com um fugitivo. Você saberia?
O rapaz deu um sorriso amarelo.
- Sabe de uma coisa? - disse Buck. - Acho que ninguém está olhando para cá. - Sentindo-se como Anis, o misterioso guarda da fronteira que descobriu Tsion debaixo do banco do ônibus tempos atrás, Buck pôs uma das mãos no ombro e a outra em cima da cabeça do rapaz. - Que Deus o abençoe. Que o Senhor faça o seu rosto resplandecer sobre você e lhe dê a paz. Boa sorte, filho.
Buck retornou apressado ao portão. Quando olhou de relance para trás, o rapaz havia sumido.
Os guardas do portão permitiram que Buck entrasse novamente. Os guardas na entrada do edifício perguntaram:
- Quem era aquele sujeito?
- Paulo Ganter - disse Buck. - Custódia transferida para os Estados Unidos Norte-americanos. - Enquanto o pessoal verificava os impressos do computador, ele entrou correndo.
Alex Athenas estava terminando sua tarefa.
- Há alguém aqui que vai recusar-se a receber a marca da lealdade?
O grupo riu e fez um gesto de zombaria para ele.
- Ninguém? Ninguém mesmo?
Os prisioneiros entreolharam-se em silêncio. Buck aguardou para ver se havia outros crentes que assumiriam uma posição. Talvez o rapaz estivesse enganado.
- E se a gente disser que não quer? - perguntou um moço forte, com ar malicioso.
- Você sabe quais são as conseqüências - respondeu Alex.
O moço passou o dedo no pescoço no sentido horizontal. - É isso aí. Alguma pergunta?
- Não há nenhum rebelde aqui! - gritou alguém. - Somos todos cidadãos leais e honestos!
- É assim que se fala. Alguma pergunta?
- A gente pode escolher a imagem que quiser?
- Não. A situação de vocês não permite. Vocês só têm autorização para receber o chip comum e a tatuagem com o número.
Os prisioneiros resmungaram alto. Athenas fez um gesto pedindo que o grupo e os outros guardas armados se perfilassem.
- A aplicação será feita de forma ordeira - ele disse -, ou, então, vocês vão sofrer as conseqüências como se tivessem decidido recusar a marca.

DEZESSETE

Rayford dirigiu-se ao quarto de Zeke para ver como ele estava e o encontrou trabalhando ativamente no manto de Chaim.
- Tenho bastante material - disse Zeke. - Acho que vou fazer dois mantos para ele.
- Você ouviu o que Tsion disse a Chaim sobre as roupas não ficarem gastas?
Zeke assentiu com a cabeça.
- Mesmo assim, acho que ele vai precisar ter mais de um. E eu não ouvi Tsion dizer se as roupas ficam sujas.
Rayford encolheu os ombros.
- Eu admirava seu pai, Zeke. Você sabia?
Zeke limitou-se a fazer um movimento afirmativo com a cabeça, continuando a trabalhar.
- Ele foi corajoso até o fim - disse Rayford.
- Não foi surpresa para mim. Eu disse que ele ia fazer isso, não?
- Você sempre teve essa certeza. Peço a Deus que todos nós demonstremos a mesma coragem.
Zeke ergueu os olhos e sacudiu a cabeça, fitando um ponto distante.
- Meu pai foi pego no momento errado. Ele tinha condições de fazer muita coisa pelos crentes. Como eu vou fazer.
- Eu admiro você também, Zeke. Todos nós o admiramos. Mais uma vez, Zeke limitou-se a fazer um movimento afirmativo com a cabeça.
- Não deixe de chorar e lamentar a morte de seu pai. Não há nada de errado nisso.
- É difícil não chorar. Sinto muita saudade dele.
- Eu só quero dizer que você não precisa fingir para nós que é forte. Todos nós sofremos perdas terríveis. Embora o Senhor nos ajude a suportá-las, não gostamos de sofrer. A Bíblia não nos proíbe de chorar. Ela diz que não devemos chorar como fazem as pessoas que não têm esperança. Chore quanto quiser, Zeke, porque nós temos esperança. Sabemos que vamos ver nossos queridos novamente.
Zeke levantou-se de repente e estendeu a mão. Rayford a segurou.
- Acho que não devo tentar encontrar o corpo dele - disse
Zeke. Rayford sacudiu a cabeça.
- A primeira coisa que a CG vai querer saber é o seu grau de afinidade com ele. A segunda, você já sabe.
- Se eu quero receber a marca.
- Estamos desolados com a perda de seu pai, Zeke. Não sei o que faríamos se perdêssemos você também.
- Eu não quero pensar no que a CG vai fazer com a corpo dele. Estou tentando não pensar... você sabe... a cabeça dele sendo... você sabe...
- Eu sei. Seja lá o que for que eles fizerem com o corpo de seu pai, Deus vai saber. Seu pai está sob os cuidados de Deus. Sua alma está no céu, e seu corpo também estará lá um dia. Ele terá um corpo novo e aperfeiçoado. Se Deus pode ressuscitar um corpo cremado... você sabe o que significa cremado?
- Sei, queimado.
- Ele pode ressuscitar qualquer pessoa. Lembre-se, Ele nos criou do pó da terra.
- Obrigado, capitão Steele. Por maior que seja a minha tristeza, este foi o melhor lugar para eu ter recebido a notícia da morte de meu pai. Eu amo todos vocês.
- Nós também amamos você, Zeke.
Rayford saiu do quarto de Zeke e fechou a porta. Tsion estava perto do batente, encostado na parede e com os braços cruzados.
- Desculpe-me - disse o Dr. Ben-Judá. - Eu não tive a intenção de ouvir às escondidas. Não sabia que você estava aí. Você deve ter tido a mesma idéia que eu.
- Está tudo bem.
- Gostei de ouvir suas palavras, Rayford. Deus o reconduziu à liderança. Você acabou de fazer o que o Senhor desejava que fizesse, e se saiu muito bem.
- Obrigado, Tsion. Deus tem sido paciente comigo, muito mais do que mereço.
- Ele tem sido paciente com todos nós.
Os dois caminharam juntos em direção ao refeitório.
- Conversei com Chloe alguns minutos atrás - disse Tsion. - Espero não ter quebrado a hierarquia.
- Você pode quebrar a hierarquia à vontade, doutor. Sabe disso. Qual foi o assunto?
- Eu só queria saber como está indo a nova incumbência que você deu a ela. Tenho um interesse pessoal nisso, você sabe.
- Sobre o pedido de aeronaves e de pilotos? Claro que sei! Poupe as explicações. Como vão indo as coisas?
- Chloe estava feliz e ansiosa para me contar. Ela enviou um pedido aos corajosos membros da cooperativa para que cedessem aeronaves, carros, combustível e tempo para a causa do Messias em Jerusalém... e disse que era urgente. A resposta foi surpreendente. O clima de perigo deve estar unindo esses homens e mulheres. Chloe diz que eles estão dispostos a atirar as precauções pela janela e voar para qualquer lugar para manter a cooperativa funcionando.
Kenny Bruce apareceu de repente perseguido por Leah. Ele parecia seriamente envolvido naquele faz-de-conta de estar fugindo dela, apesar de adorar seus beijos e abraços.
- Vovô! - ele gritou, correndo em direção a Rayford, mas, ao ver Tsion, mudou o rumo e atirou-se nos braços do rabino. - Tio Zuca!
Leah riu e estendeu os braços para pegá-lo.
- Esse velhinho não vai salvar você! Kenny escondeu a cabeça no peito de Tsion.
- Velhinho? - disse Tsion. - Srta. Leah, você me ofendeu! Tsion levou Kenny de volta a Chloe, e Leah dirigiu-se a Rayford:
- Eu me sinto útil aqui ajudando Chloe, que é uma mulher incrível, diga-se de passagem. Aquela moça tem condições de dirigir uma empresa de grande porte. E eu adoro ajudar a cuidar desta criança maravilhosa.
-Mas...?
- Você sabe o que teremos de enfrentar. Rayford assentiu com a cabeça.
- Eu estou finalizando as atribuições de cada membro do grupo. Você vai ter de trabalhar fora daqui por uns tempos.
- Oh, obrigada, Ray. Só não quero parecer egoísta. Sei que Chloe está tão aflita quanto eu para respirar um pouco de ar puro.
- Ela tem responsabilidades aqui. Mais que você.
- Não parece justo para ela.
- Chloe leva seu trabalho a sério, e acho que já se conformou em ficar aqui.
- Não posso falar por ela - disse Leah -, mas eu me sentiria amarrada.
- Amarrada por ter de cuidar de um filho? Leah sorriu.
- Falei igual aos homens. Eu já estive na mesma situação que ela e posso garantir que, às vezes, necessitamos de uma pequena pausa. Se for longa, não vemos a hora de voltar. Mas isso não é da minha conta. Se você encontrar alguma atividade para ela fora daqui, mesmo que seja por pouco tempo, vou gostar muito de substituí-la.
- Você é capaz de fazer o que ela faz? Dirigir a cooperativa e cuidar do bebê?
- Claro. Só os homens daqui não são capazes de fazer as duas coisas. - Rayford olhou para ela com ar de quem não gostou do comentário. - É brincadeira, Ray. Mas diga-me uma coisa. Vou ter de ir a Israel?
- Você quer ir até lá?
- Na última vez, só consegui ir até a Bélgica. Todas as coisas boas acontecem em Jerusalém.
- As coisas perigosas.
- E daí?
Ele ergueu a cabeça.
- Ah, sim. Você gosta de viver perigosamente.
- Eu vivo para servir, Ray. Não estou me vangloriando disso. Meu trabalho é esse. Sempre foi, antes mesmo de minha conversão. Quero ser útil à causa. Ninguém desconfia de mim. Ninguém está tentando me caçar. Se eu usar aquele aparelho dental e Zeke der um jeito de mudar a cor de meus cabelos, vou passar despercebida.
- Mas você vai precisar de outras coisas para ficar parecida com uma mulher do Oriente Médio.
- Talvez esse tal David possa me incluir na CG. Arrume um motivo para eu ir para lá.
Rayford ergueu uma das sobrancelhas.
- Talvez. Nunca se sabe.


Buck e Albie acompanharam a equipe da seleção até a cela das adolescentes. Para Buck, era difícil acreditar que as condições delas fossem idênticas às dos rapazes. Havia apenas duas carcereiras. O restante era composto por homens. As moças não faziam tanto estardalhaço quanto os rapazes, mas pareciam estar ali pelo mesmo motivo que eles. Algumas eram grosseiras, outras tinham expressão de vítimas, mas todas estavam curiosas.
Buck esquadrinhou o grupo e cruzou com o olhar de uma moça alta e morena. Ele teve a certeza de que um viu o selo na testa do outro ao mesmo tempo. Os olhos da moça arregalaram-se, e ele fez um gesto sutil para que ela não o entregasse. Enquanto Alex Athenas fazia sua explanação, Buck aproximou-se disfarçadamente de Albie.
- Acho melhor eu não abusar da minha sorte - disse Buck. - Você acha que tem condições de tirar uma pessoa daqui?
- Talvez - disse Albie. - Você não está pensando em fazer isso em cada edifício, está?
- Detesto ficar de mãos atadas.
- Eu também, mas corremos o risco de ser mortos. E o que vamos fazer quando encontrarmos um grupo grande de crentes?
- Eu só posso cuidar de um por vez. Albie deu um suspiro.
- Onde ela está? - Buck apontou na direção da moça. -Olhe e aprenda como se faz, meu camarada.
Albie aproximou-se rápido da grade, gritando. Alex parou de falar, e todos ficaram olhando enquanto Albie andava de um lado para o outro diante da grade, com os olhos fixos em sua presa.
- Você aí! Você é dos Estados Unidos Norte-americanos? A moça gelou, olhando firme para Buck, que fez um leve movimento afirmativo com a cabeça, e depois para Albie.
- Não - ela respondeu, com voz esganiçada. - Eu...
- Não minta para mim, sua nojenta. Conheço você de algum lugar. - Albie estava tão irado que quase convenceu Buck. - Alex, mande alguém abrir esta cela. - Em seguida, virou-se para trás e apontou para a moça. - Vá para perto da porta! Já! Com as mãos atrás da cabeça!
Ela avançou tremendo, com as pernas rijas, e o portão foi destrancado. Albie agarrou-a e arrastou-a para fora.
- Algemas - ele pediu, e um guarda atirou-lhe um par. - As chaves também. - Depois eu devolvo tudo.
Ele encostou a moça na grade da cela e a algemou. Guardou a chave no bolso e a arrastou para fora.
- Bom divertimento - cochichou um dos guardas.
Albie virou-se para ele, segurou-o pelo paletó da farda e o atirou contra a parede.
- Repita o que você disse, soldado!
- Sinto muito, senhor. Foi uma grosseria de minha parte. Albie deu-lhe outro safanão e virou-se para a moça, tirando-a dali à força. Após alguns minutos, ele retornou e devolveu as algemas e as chaves.
Buck ficou chocado quando uma moça respondeu afirmativamente, com acentuado sotaque grego, à pergunta do oficial Athenas. As outras viraram-se para ver quem era, e Buck esticou o pescoço tentando enxergar o selo na testa dela.. Não havia selo algum.
- Você está se recusando a receber a marca da lealdade da Comunidade Global? - perguntou Alex.
- Eu preciso pensar no assunto - ela disse. - Parece uma mudança drástica demais para que eu aceite sem pensar.
- Você sabe quais são as conseqüências?
- Eu só gostaria de pensar um pouco mais.
- Está bem. Alguém mais? - Ninguém se apresentou. -Escute aqui, minha jovem. Como você é a única daqui que está em dúvida, em vez de ir direto para o instrumento de imposição à lealdade, vai poder pensar um pouco mais enquanto estiver na fila. Os rapazes já estão terminando de receber a marca. Dependendo do lugar que você ficar na fila, vai ter mais tempo ou menos tempo para pensar. Quando chegar o momento de ter de responder onde deseja receber a marca, essa vai ser sua última chance de recusar.
- E daí?
- Você será enviada para o instrumento de imposi...
- Você sabe o que é isso, garota? - gritou uma adolescente.
- Vou morrer!
- Na guilhotina! Vão cortar sua cabeça.
As garotas silenciaram, e Athenas olhou para a moça.
- Ainda quer pensar mais um pouco? - ele perguntou.
- O assunto é tão sério assim? Vocês vão cortar minha cabeça só porque quero pensar mais um pouco?
- Não é por isso, senhorita. Sua cabeça vai ser cortada só se você não aceitar a marca. Se decidir que quer, basta dizer em que local prefere.
- Então, eu não tenho escolha.
- Por onde você tem andado? - perguntou uma das garotas seguida em coro por suas companheiras.
- Claro que você tem escolha - disse Alex. - Creio que deixei bem claro. Aceitar a marca ou aceitar a alternativa.
- A marca ou a morte, é isso?
- Você ainda quer pensar?
Ela sacudiu a cabeça negativamente.
Uma das garotas disse:
- Você complicou a coisa mais do que precisava.
- Não sabia que não havia escolha.
Antes de seguirem para a cela das mulheres adultas, Buck e Albie acompanharam as jovens que se dirigiam em fila para o edifício central. As filas haviam-se transformado em exemplos de eficiência. Os prisioneiros e prisioneiras caminhavam com passos firmes, tendo decidido antecipadamente se a aplicação da marca seria na testa ou na mão. O desinfetante anestésico era aplicado rapidamente. Os injetores faziam um ruído semelhante ao de um grampeador elétrico. Embora algumas pessoas estremecessem de medo, ninguém parecia sentir dor.
Quase todos os adolescentes do sexo masculino receberam a marca na testa. Um dos últimos marcados, ao retornar para a fila, levantou os dois braços e gritou:
- Vida longa para Carpathia!
Essa saudação passou a ser usada com freqüência. As moças preferiram receber a marca na mão.
Buck permaneceu olhando em silêncio, desejando ter condições de fazer uma pregação. Os jovens haviam feito uma escolha, mas saberiam eles realmente o que estavam escolhendo? A escolha não era entre a lealdade e a morte; era entre o céu e o inferno, entre a vida eterna e a maldição eterna.
O coração de Buck bateu acelerado quando a fila das adolescentes chegou ao fim e elas foram conduzidas de volta à cela. Ele esperava ver a Sra. Miklos no edifício seguinte. Quantas amigas estariam com ela?
O local reservado às mulheres diferenciava dos demais por não ter cela. Os guardas, na maioria homens, aparentemente não esperavam ter problemas. As mulheres conversavam em voz baixa, sentadas, mas acompanharam com olhar curioso a equipe comandada por Athenas.
Buck contornou o grupo de mulheres à procura da esposa de Laslos. Após alguns instantes, ele avistou cerca de 20 mulheres ajoelhadas em um dos cantos, atrás das outras prisioneiras. No meio do grupo, estava a Sra. Miklos orando.
- Calem a boca e prestem atenção! - gritou um guarda, chamando a atenção das mulheres. - Este aqui é o oficial Athenas e ele vai dar alguns avisos e instruções.
Alex começou a falar, mas as mulheres que Buck imaginava serem as amigas crentes da Sra. Miklos continuaram a orar, sem dar atenção ao oficial. Algumas olhavam em direção ao céu, e Buck viu o selo na testa delas. Outras ergueram os olhos e viraram-se para Alex. Algumas delas não tinham o selo.
Buck concluiu que a esposa de Laslos devia estar tentando evangelizá-las.
Athenas demonstrou impaciência com as mulheres ajoelhadas no fundo.
- Senhoras, por favor! - ele disse, mas elas continuaram na mesma posição.
Athenas fez um sinal para uma das policiais. Ela entregou seu rifle e o revólver a uma companheira, pegou um cassetete e atravessou o grupo de prisioneiras, caminhando em direção às mulheres que estavam atrás. A policial, uma jovem de aspecto grosseiro, não se intimidou com os olhares ameaçadores das prisioneiras, sabendo que suas companheiras e companheiros lhe dariam cobertura.
- Conforme eu estava dizendo - prosseguiu Alex, tendo de parar novamente porque a atenção das detentas foi desviada para a policial.
- Senhoras! - o guarda voltou a gritar. - Olhem para frente e prestem muita atenção ao que o oficial Athenas vai falar.
A maioria obedeceu. Algumas levantaram-se do chão e afastaram-se do grupo. Outras continuaram ajoelhadas olhando para cima. Um grupo menor continuou de cabeça baixa e olhos fechados, movimentando os lábios em oração. A Sra. Miklos, ajoelhada de costas para a policial, orava silenciosamente, com as mãos cruzadas, cabeça baixa e olhos fechados.
A policial cutucou a Sra. Miklos com o cassetete, e ela quase perdeu o equilíbrio. Quando a Sra. Miklos virou-se, a policial curvou o corpo e gritou:
- Entendeu, senhora?
A Sra. Miklos sorriu timidamente e continuou a orar. A policial, visivelmente indignada, segurou o cassetete pelas pontas, aprumou-se e avançou em direção a ela.
Buck quase deu um grito, sendo contido por Albie que o agarrou com força enquanto o cassetete estalava violentamente na nuca da Sra. Miklos.
O sangue espirrou atingindo várias mulheres. A esposa de Laslos caiu de bruços no chão, contorcendo os braços e as pernas. Algumas prisioneiras gritaram. A maioria das que estavam ajoelhadas, mesmo as que possuíam o selo na testa, levantaram-se e correram em direção ao grupo principal. Uma mulher ajoelhou-se para cuidar da amiga ferida, mas a policial a atingiu com um golpe de cassetete logo abaixo do nariz.
Buck ouviu o estalo de dentes quebrados, e ela gritou quando caiu de costas e bateu a cabeça no chão, cobrindo o rosto com as mãos.
A policial abriu caminho entre as presas para retornar a seu lugar. Como que por um milagre, a Sra. Miklos começou a levantar-se lentamente do chão, apoiando-se nas mãos e nos joelhos. Retornou com toda dignidade à posição de joelhos, com as mãos cruzadas diante de si.
Ela deu as costas ao restante das prisioneiras, deixando à mostra uma ferida aberta, de onde saíam golfadas de sangue que empapava seus cabelos e o suéter. A maioria desviou o olhar, mas Buck continuou com os olhos fixos na parte branca do crânio dela, um pouco acima do ferimento. Fragmentos de ossos quebrados deviam ter penetrado em seu cérebro. Apesar disso, ela continuava ajoelhada, orando em silêncio.
A outra mulher conseguiu virar-se de bruços e começou a levantar-se lentamente, cuspindo cacos de dente. Com sangue esguichando pelo queixo, ela voltou a orar. Buck sentiu um arrepio na espinha, imaginando a dor lancinante.
A policial pegou suas armas, com ar de satisfação e divertimento. As presas comportavam-se como se estivessem aguardando a próxima vítima. Alex disse:
- Vamos ver quem tem coragem suficiente para entrar na fila do instrumento de imposição à lealdade.
Buck, com o pulso acelerado e a respiração ofegante, permaneceu imóvel, enquanto Alex fazia a pergunta crucial:
- Quantas vão recusar a marca da lealdade e optar pela outra coisa?
A Sra. Miklos levantou-se e o encarou. Seu rosto estava lívido, e as pálpebras tremiam. O peito arfava pelo simples esforço de respirar. A ferida aberta deixou uma poça de sangue atrás dela. Tremendo como se fosse uma vítima do mal de Parkinson em estágio avançado, ela levantou as duas mãos. Um leve sorriso de beatificação suavizava a expressão macabra de seu rosto.
- Você preferiu ser executada na guilhotina a receber a marca da lealdade - esclareceu Alex.
A mulher ao lado da esposa de Laslos, com o rosto inchado, o nariz vermelho e sem os dentes da arcada superior, levantou-se e ergueu as duas mãos, esboçando um sorriso cadavérico.
- Agora são duas?
Porém, havia mais. O restante das mulheres virou-se para ver quem se apresentaria. Do grupo das mulheres ajoelhadas, seis levantaram-se erguendo as mãos e sorrindo.
- Vocês querem morrer esta noite? - gritou Alex, como se esta fosse a coisa mais ridícula que ele já vira. - Estou contando oito. Vocês... agora são nove... dirijam-se para o lado direito... tudo bem, agora são dez... para serem conduzidas ao centro de processamento. Podem abaixar as mãos. Mais duas. Está bem, doze. Não precisam ficar com as mãos levantadas.
Duas mulheres da frente entreolharam-se e começaram a recuar. Assim que elas levantaram as mãos, Buck viu os selos aparecendo em suas testas.
- Muito bem - disse Alex. - As que vão receber a marca fiquem do lado esquerdo. As suicidas vão para a direita.
Enquanto ele dizia isso, mais três mulheres postaram-se atrás das duas que sangravam.
Buck lutava para conter as lágrimas. Se ele cedesse às emoções, poderia tornar-se mártir naquela mesma noite. No calor do momento, aquela possibilidade não lhe parecia tão má assim. Mas havia uma esposa, um filho e companheiros que dependiam dele. Buck permaneceu firme, piscando, ofegando, lutando para manter o controle. Aquelas mulheres eram heroínas da fé. Elas se juntariam aos lavados com sangue que transformaram seus corpos em sacrifícios vivos. Em breve seriam martirizadas e apareceriam sob o altar de Deus no céu, trajando as vestiduras da justiça, alvas como a neve. Buck sentia uma ponta de inveja delas.
Enquanto as mulheres eram conduzidas para fora, Alex gritou:
- Vocês ainda podem mudar de idéia! Caso se arrependeram dessa ridícula opção, saiam dessa fila e entrem na outra!
Mas, quando as corajosas mulheres passaram por Buck, ele viu o selo na testa de cada uma delas e sabia que não haveria arrependimento de nem uma sequer. Ele acertou o passo com a policial que conduzia as condenadas à fila da guilhotina. Esse comportamento não causou nenhuma admiração às outras prisioneiras, que continuaram na fila da lealdade, decidindo em que local do corpo receberiam a marca de Nicolae.
Quando a policial apressou o passo para falar com os dois homens que cuidavam da máquina mortífera, Buck aproximou-se da Sra. Miklos e fingiu que a estava interrogando.
- Laslos pediu que eu lhe dissesse que ele a ama de todo o coração e que a verá no céu.
A Sra. Miklos virou-se assustada para Buck. O sangue ainda escorria-lhe pelas costas. Ela olhou para a farda e, em seguida, para a testa de Buck. Depois, para o rosto dele.
- Eu conheço o senhor - ela disse.
Buck assentiu com a cabeça.
- Acho que o senhor não conhece a Sra. Demeter - ela disse.
Buck ficou perplexo. A esposa do pastor, que havia levado o golpe no rosto, cochichou por entre os dentes quebrados:
- Eu gostaria de apertar sua mão, mas, se isso acontecesse, o senhor teria de entrar em nossa fila.
A Sra. Miklos curvou o corpo e aproximou-se de Buck.
- Agradeça a Laslos por ter-me conduzido a Jesus. Eu estou vendo Jesus. Eu estou vendo. Estou vendo meu Salvador e mal posso esperar para estar com Ele!
Após ela ter dito essas palavras, seus joelhos dobraram-se e Buck a amparou. A policial retornou e agarrou-a.
- Não faça isso, dona! - ela disse.
- Você escolheu e vai ter de ficar em pé.
Buck conteve-se para não dar um soco no rosto da policial. Ela virou-se para ele e disse:
- O que vamos fazer com todos estes corpos? Não estávamos preparados para uma coisa dessas.
Buck dirigiu-se para os fundos, onde os guardas estavam enfileirados ao longo da parede. Era a primeira vez que eles presenciariam execuções como aquelas. Aparentemente, ninguém queria perder um só lance. Albie aproximou-se de Buck, visivelmente emocionado.
- Aquela senhora que está com a Sra. Miklos é a esposa do pastor D - disse Buck.
Albie sacudiu a cabeça.
- Elas são heroínas, Buck. Não sei se quero ver isso.
- Vamos sair daqui.
- Talvez a gente devesse ficar aqui com elas.
- Vamos começar as execuções - avisou Alex Athenas. -Se alguém quiser mudar de fila, ainda é tempo. Depois que as senhoras tiverem sido colocadas em posição no aparelho, não poderão mais mudar de idéia. Informem alguém antes ou sofrerão as conseqüências.
Buck ficou paralisado no lugar, enquanto a Sra. Miklos era conduzida àquela máquina medonha.
- Já foi testada? - gritou Athenas. - Não quero problemas de mau funcionamento.
- Positivo! - respondeu o ajudante, que se revezaria com o carrasco a cada execução.
- Prossiga!
Mesmo estando a uns dez metros do carrasco, Buck conseguiu ler os lábios dele.
- Última chance, minha senhora.
A esposa de Laslos ajoelhou-se, e o ajudante a posicionou na máquina.
- Vire a mulher para cá! - gritou alguém. - Queremos ver o que vai acontecer!
Albie virou-se para o homem.
- Cale a boca! Você não está aqui para se divertir!
O silêncio era mortal. Buck ouviu a voz delicada da Sra. Miklos:
- Meu Jesus, eu te amo, sei que tu és meu.
Um soluço subiu à garganta de Buck. Agindo com muita habilidade, o ajudante apertou o torniquete e levantou-se rapidamente, com as duas mãos erguidas, para indicar que ele estava fora do alcance da lâmina. Seu companheiro puxou a corda curta. A pesada lâmina despencou com toda a força. Buck passou apressado pelos guardas em busca do ar fresco da noite, enojado diante dos aplausos que se seguiram ao baque violento.
Buck ficou aliviado pelo vômito que saiu em golfadas por sua boca, permitindo que ele chorasse abertamente. Lágrimas corriam-lhe pelo rosto enquanto ele pensava nos operários que teriam de retirar as cabeças e os corpos para dar lugar à vítima seguinte.
Em pé na grama fria, sentindo uma convulsão atrás de outra no estômago, ele tentou em vão tapar os ouvidos para abafar os sons dos baques e aplausos que se seguiam. Albie aproximou-se e pousou a mão em suas costas. Sua voz estava embargada, quando ele afastou gentilmente as mãos de Buck do ouvido e disse:
- Quando eu chegar ao céu - ele murmurou -, essas duas mulheres são as primeiras pessoas que desejo ver, depois de Jesus.

DEZOITO

Chaim andava de um lado para o outro no Edifício Strong, decorando trechos e mais trechos. Rayford notou que ele costumava carregar uma Bíblia, mas, às vezes, levava um comentário ou anotações próprias.
Para Rayford, Chaim não demonstrava nenhuma eloqüência, impetuosidade ou confiança. Era como se ele estivesse tentando entender os assuntos básicos e ter uma idéia do que estava falando. Ele também parecia desolado, e Rayford gostaria de aconselhá-lo novamente sobre sua posição em relação a Deus, mas não se sentia qualificado para melhorar nem sequer o próprio ânimo. Aparentemente, Chaim não considerava Tsion como seu mentor pessoal, mas apenas como um mestre e motivador incansável.
Causava espanto a Rayford o fato de todos eles terem de enfrentar as mesmas dúvidas e temores que surgiram logo depois de se converterem. Eles foram deixados para trás e na ocasião, receavam ter-se aproximado de Deus como última tentativa para não ir para o inferno. Seria válido esse pensamento? A Bíblia dizia que eles eram novas criaturas, que as coisas antigas se passaram e que tudo se fez novo. Rayford teve dificuldade em aceitar que Deus agora o via, em essência, por intermédio de seu Filho sem pecados, Jesus Cristo.
Aquilo parecia quase impossível. Sim, ele era uma nova pessoa interiormente. Sabia que isso era verdade do ponto de vista espiritual. Mas continuava a lutar com seu antigo "eu". Embora a verdade de Deus sobre ele tivesse sido mais consistente do que suas emoções finitas, elas martelavam sua consciência todos os dias. Quem era ele para aconselhar Chaim Rozenzweig a ter fé e a confiar que Deus o conhecia e o compreendia melhor que ele próprio?
Mas se havia alguém que parecia mais saudável que nunca era Hattie. A ironia disso não passara despercebida a Rayford. Menos de 24 horas antes de converter-se, ela pensara em suicidar-se. Meses antes, quando algum membro do Comando Tribulação se dispunha a lhe falar sobre Deus, ela admitia que entendia e aceitava a verdade sobre a salvação por meio de Cristo. Mas simplesmente decidira rejeitar essa verdade, porque, apesar de Deus considerá-la merecedora da salvação, ela própria não se considerava. Na época, Hattie achava que Deus podia perdoar seus pecados sem restrições, mas que ela não era obrigada a aceitar esse perdão.
Porém, assim que ela recebeu a dádiva da salvação, sua teimosia sofreu um desgaste. Em certos aspectos, ela continuava a ser a mesma mulher de sempre, sem papas na língua, quase tão irritante quanto antes de converter-se. Mas, evidentemente, todos estavam felizes por ela ter passado a fazer parte do grupo.
Pela expressão no rosto de Chaim, Rayford poderia afirmar que ele se sentia confuso diante dela. Ele também era um crente novato e talvez se identificasse com ela. Contudo,
Chaim não demonstrava tanta animação quanto Hattie. Teria sido ele acometido de uma inveja saudável, que o deixava intrigado com a tagarelice dela? Será que ele se perguntava por que Deus não lhe concedera um sentimento de renúncia a todas as outras coisas depois de ter-se comprometido com a verdade?
Rayford não queria precipitar-se, não queria aceitar ao pé da letra os elogios de Tsion sobre seu retorno à liderança do grupo. Mas talvez um elemento surpresa, uma mudança de comportamento, pudesse surtir bons resultados. Será que ele deveria atrever-se a conspirar com Hattie para ver se ela seria capaz de tirar o Dr. Rosenzweig daquela apatia? Tsion se convencera de que Chaim era o homem escolhido por Deus, e Rayford aprendera a confiar na intuição do rabino. Mas Chaim teria de fazer um grande progresso em curto espaço de tempo se quisesse tornar-se o vaso escolhido que Tsion previra.
Hattie havia alimentado Kenny e estava trocando as roupas do bebê quando Rayford aproximou-se dela. Como Kenny era abençoado por ter tantos pais e mães! Os homens demonstravam grande afeição por ele. Até Zeke, embora um pouco desajeitado, era extremamente carinhoso e gentil com ele. As mulheres pareciam saber, por intuição, quando revezar-se para cuidar dele, mas a responsabilidade final recaía sobre Chloe.
- Você tem um minuto? - perguntou Rayford a Hattie, enquanto ela segurava o bebê com cheirinho de talco e roupas trocadas de encontro ao ombro.
- Se este rapazinho adormecer, vou ter todo o tempo do mundo, o que, de acordo com nosso rabino favorito, vai durar menos de três anos e meio.
Hattie não é tão engraçada quanto imagina, pensou Rayford, mas até que disse uma coisa sensata.
- Você me faria um favor? - perguntou Rayford.
- Claro.
- Não responda assim tão rápido, Hattie.
- Eu falei sério. Pode pedir qualquer coisa. Se for para o seu bem, vou fazer.
- Se você tiver êxito, vai ajudar a causa.
- Não precisa dizer mais nada. Eu topo.
- Tem a ver com Chaim.
- Ele não é demais?
- Ele é ótimo, Hattie. Mas precisa de uma coisa que Tsion e eu não podemos lhe dar.
- Rayford! Ele tem o dobro de minha idade!


Para não levantar suspeitas, Buck sugeriu que ele e Albie se dirigissem antes do grupo seguinte para o edifício a leste do centro de processamento, o local que abrigava os criminosos menos violentos, de acordo com o chefe encarregado da organização. Ele também havia dito que os religiosos dissidentes estavam misturados com os piores elementos no último edifício do lado leste. Os dois aproximaram-se dos guardas no Edifício 4.
- Chegou a nossa vez? - perguntou um dos guardas em um dialeto cantado, igual ao dos habitantes dos bairros pobres de Londres.
- Logo - disse Buck. - Os próximos são vocês.
- Ouvi uma gritaria. Alguém escolheu a guilhotina? Buck assentiu com a cabeça, mas deixou claro que não queria falar desse assunto.
- Mais de uma? - insistiu o guarda. Buck assentiu novamente.
- Não foi nada bonito.
- Verdade? Eu gostaria de estar lá. Nunca vi uma coisa destas. Você viu tudo?
- Já disse que não foi nada bonito. Como eu poderia saber se não tivesse assistido?
- Sinto muito! Só estou querendo saber. Quantas você viu?
- Só uma.
- Não havia mais de uma? E o senhor, comandante? Viu tudo?
- Pare com isso, cabo - vociferou Albie. - Várias mulheres preferiram morrer e foram mais corajosas do que muitos homens que já conheci.
- Até aí, tudo bem. Mas elas não eram leais ao potentado, eram?
- Elas não abriram mão de suas convicções - disse Albie.
- Convicções e sentenças, para mim, são a mesma coisa, companheiro.
- Você não faria o mesmo se tivesse uma convicção profunda?
- Eu tenho uma convicção profunda, cavalheiros. Só que estou do outro lado. Escolhi aquilo que faz sentido. O homem ressuscitou. Vou ficar do lado dele.
Os guardas armados conduziram as tristes sobreviventes de volta ao edifício das mulheres. A equipe de Athenas chegou ao edifício onde Buck e Albie estavam. Buck notou que o grupo dos prisioneiros conduzidos por Alex parecia tão subjugado quanto o das mulheres, mas os guardas pareciam revigorados.
- Vamos terminar logo com isso - disse Athenas, abrindo caminho.
Ali estavam criminosos de colarinho branco ou que cometeram pequenos delitos. Não havia gritos nem ameaças. Apenas um pouco de barulho. Eles ouviram com atenção, e ninguém optou pela guilhotina. Todos saíram silenciosamente em fila para o centro de processamento. Buck sentiu-se mal com o cheiro de sangue que tomava conta do centro. Alguém espalhou a notícia entre os homens de que várias mulheres foram decapitadas naquele local. Os funcionários encarregados de acionar a guilhotina estavam aliviados por terem um pouco de descanso.
Buck observava o processo, desesperado ao ver a quantidade de pessoas que selavam seus destinos por completa ignorância. Os funcionários já haviam adquirido prática e trabalhavam com rapidez. O processo consistia em entrar na fila, decidir, desinfetar o local, sentar-se, injetar o chip, voltar para a fila e sair. Ironicamente, a vida real e verdadeira florescia no momento da morte sangrenta. A marca, aparentemente inócua, que os homens recebiam e que, segundo eles, lhes dava garantia de vida era o selo de uma sentença de morte. Da morte, vida. Da vida, morte.
Buck estava ansioso por conhecer o pastor Demeter, de quem Rayford havia falado muito. Contudo, ele temia confrontar-se com os piores criminosos do Edifício 5, por saber que havia ali muitos crentes que optariam pela decisão certa, porém terrível.
Seu telefone vibrou. No visor, apareceu a seguinte mensagem: "Assunto de máxima prioridade. Encontrem-se em Kozani à 1 hora da madrugada com agente penitenciária da CG transferida do PRFB para EUNA. Urgente. Documentos dela especificam destino. Perto de 30 anos, cabelos escuros, Ming Toy. Tem o selo."
- Vamos ter companhia esta noite - disse Buck a Albie. - Será muito bom ter uma irmã a bordo que não me faça lembrar deste lugar todas as vezes que eu olhar para ela.
- Entendo - disse Albie. - Jamais imaginei que pudesse ver coisa semelhante em minha vida.


A tarde ia chegando ao fim na casa secreta, e todos estavam trabalhando ativamente, com exceção de Rayford. Zeke costurava. Tsion escrevia. Chloe trabalhava no computador. Leah tirava cópias. Chaim estudava. Kenny dormia.
Hattie piscou para Rayford e aproximou-se de Chaim.
O ancião, sentado no sofá, ergueu a cabeça, com ar intrigado ao vê-la.
Rayford parecia absorto na leitura de um livro.
- Posso interromper? - ela perguntou. - E estou avisando que não vou aceitar um não como resposta.
Hattie sentou-se no chão, aos pés de Chaim.
- Já que não tenho escolha, Srta. Durham, vou aproveitar esta pausa para distrair-me um pouco. Algum problema?
- O senhor é um crente recém-convertido como eu -ela disse -, mas notei que não costuma falar muito nesse assunto.
- Tenho uma missão a cumprir. Estou estudando muito. Você se lembra dos tempos de faculdade?
- Não terminei o curso. Eu queria conhecer o mundo. Mas, espere um pouco, o senhor não vai deixar que o estudo supere a emoção que está sentindo, vai? Se o senhor concentrar-se só nos estudos, não vai ter tempo de alegrar-se com sua conversão.
- Não associo a alegria com este estudo. Eu me converti, ou melhor, nós dois nos convertemos na pior época possível da história. Agora é tempo de pensarmos em sobreviver. A alegria virá depois. Se tivéssemos nos convertido antes do Arrebatamento, talvez eu tivesse motivos para ser mais alegre agora.
Ela fez ar de zangada.
- Eu não disse alegria no sentido de dar gargalhadas.
- Mas podemos sentir um pouco de alegria, não? Uma alegria interior, o senhor não acha?
Chaim balançou a cabeça concordando.
- Acho que sim.
- O senhor acha? Seus olhos e seu jeito me dizem que o senhor ainda não se convenceu plenamente.
- Ora, você está errada. Estou convencido. Eu creio. Tenho fé.
- Mas não demonstra nenhuma alegria.
- Eu já lhe falei o que penso sobre a alegria.
- Eu não sou capaz de discutir com um gênio como o senhor, mas não vou desistir. O senhor pode ser dez vezes mais culto do que eu, mas quero que entenda o que estou lhe dizendo.
- Vou tentar - ele disse. - Com o que você acha que devo concordar?
- Que temos motivos demais para ser agradecidos.
- Ah, eu concordo com isso.
- Mas não fica emocionado!
- De certa maneira, sim. Ou, melhor dizendo, à minha maneira.
Hattie curvou os ombros e suspirou.
- Cheguei ao meu limite. Não consigo convencer o senhor. Mas estou emocionada demais por saber que o senhor é meu irmão e entusiasmada demais com a missão que Deus lhe deu.
- Veja só, Srta. Durham, é aqui que diferimos ou divergimos. Entendo que Tsion tem razão, que estou em posição privilegiada nessa missão estratégica. Já me conformei com o fato de que isso é inevitável e de que devo ir até o fim. Mas não me sinto entusiasmado, ansioso, cheio de expectativas.
- Eu me sinto!
- Ouça o que tenho a dizer, Srta. Durham.
- Desculpe-me.
- Aceito essa missão com muita seriedade e sinceridade. Não quero ser um covarde nem mesmo relutante ou resistente. Trata-se de uma missão que devemos aceitar como uma espécie de honra ou conquista. Você me entende?
Ela assentiu com a cabeça.
- O senhor está certo. Tenho certeza de que se sente honrado. Mas não se sente agradecido por ter sido escolhido por Deus para essa tarefa?
- Oh, eu estou muito agradecido. Mas existem ocasiões em que me identifico com o Senhor Messias, quando Ele orou e pediu ao Pai que, se possível, o livrasse daquele cálice.
- Mas Ele complementou: "Que seja feita a tua vontade e não a minha."
- Ele fez isso - disse Chaim. - Ore por mim para que eu tenha a mesma submissão e força de vontade.
- Bem - ela disse, levantando-se -, eu só queria lhe dizer que Deus vai fazer grandes coisas por seu intermédio. Vou orar pelo senhor durante toda a sua jornada.
Chaim parecia impossibilitado de falar. Finalmente, com os olhos rasos d'água, ele conseguiu dizer com voz rouca:
- Muito obrigado, minha jovem irmã. Não tenho palavras para lhe agradecer.


Enquanto entrava no último edifício, Buck notou que Alex estava a seu lado examinando suas anotações.
- Que trabalho horrível! - disse Buck. Alex resmungou.
- Pior do que imaginei. Quem teria adivinhado que aquelas mulheres seriam tão decididas? Agora estamos indo encontrar os maridos delas. Vamos ver quem é mais corajoso.
- Custa-me acreditar que puseram religiosos dissidentes misturados com criminosos violentos.
- Eu não tenho nada a ver com isso. Tenho um trabalho a cumprir aqui.
- Eu não gostaria de fazer o seu trabalho.
- Eu não pedi.
- Você não acha estranha essa mistura?
Alex parou, enquanto os outros guardas passavam, e olhou firme para Buck, deixando-o em situação desconfortável.
- Vou fazer-lhe uma pergunta, Jensen. Você já conversou com Nicolae Carpathia?
O sangue de Buck gelou nas veias. Qual o motivo da pergunta?
- Já faz muito tempo - disse Buck.
- Eu já conversei com ele. E ele considera os dissidentes tão perigosos quanto os criminosos. Bem, ambos são criminosos.
- Os assassinos e os homens de fé?
- Gente que professa a fé errada, a fé divisória, a fé intolerante.
Buck aproximou-se do oficial.
- Alex, preste atenção no que está fazendo. Você acabou de enviar mais de uma dúzia de mulheres para a morte porque elas não comungam da fé de Carpathia. E você chama essas mulheres de intolerantes?
Alex voltou a olhar firme para Buck.
- Eu poderia entregar você. Estou começando a duvidar de sua lealdade.
- Talvez eu também esteja duvidando. O que aconteceu com a liberdade?
- Ainda temos liberdade, Jack - resmungou Alex. - Essa gente pode decidir sozinha se quer viver ou morrer.
Buck entrou com ele no edifício. Aquele era, sem dúvida, o lugar com maior número de presos. Homens de todas as idades andavam de um lado para o outro, conversando. Buck notou pelo menos duas dúzias de homens com o selo de Deus na testa. Todos pareciam ansiosos por falar de Deus aos outros. Curiosamente, os outros estavam prestando atenção. Buck cruzou o olhar com o de Albie.
- Você viu aqueles homens? - ele perguntou baixinho. Albie assentiu com a cabeça, tristemente. Era maravilhoso ver tantos crentes, mas isso significava que haveria mais carnificina pela frente. Buck não sabia como identificar o pastor Demeter sem mencionar seu nome. Ele perguntou a um guarda:
- Quem é o líder dos dissidentes?
- Dos judaístas gregos? Buck encolheu os ombros.
- É assim que eles são chamados aqui?
O guarda apontou com a cabeça para um homem alto, de cabelos pretos, cercado por uma dúzia ou mais de presos. Ele estava falando de maneira rápida e sincera, gesticulando muito. Rayford dissera que o homem tinha o dom de evangelizar e ele devia estar praticando esse dom desesperadamente agora. Buck aproximou-se até conseguir ouvir o que ele dizia.
- "Mas Deus prova o seu próprio amor para conosco, pelo fato de ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda pecadores." Cristo morreu por vocês e por mim, cavalheiros. Estou suplicando que vocês não aceitem essa marca. Aceitem a Cristo, recebam perdão por seus pecados, permaneçam ao lado do Deus do universo.
- Isso vai custar nossa vida - disse um deles.
- É o preço que você tem de pagar por sua vida, meu amigo. Você acha que eu não sei quanto é difícil? Pergunte a si mesmo: Desejo estar com Deus no céu hoje mesmo ou empenhar minha lealdade a Satanás e nunca mais poder mudar de idéia? Esta noite você será morto, mas estará na presença de Deus. Ou você quer viver mais alguns anos e passar a eternidade no inferno? A escolha é sua.
- Eu quero estar com Deus - disse um homem.
- Você sabe quais são as conseqüências?
- Sei.
- Ore comigo. Eles se ajoelharam.
- Em pé, todos! - gritou Alex.
Deus, sei que sou um pecador, disse o Pastor D, e o homem repetiu cada palavra.
- Eu disse em pé!
Perdoa os meus pecados, entra em minha vida e salva-me.
- Não me façam mandar um guarda até aí para quebrar a cabeça de vocês!
Obrigado por enviares teu Filho para morrer na cruz por mim.
- Muito bem! Guarda, vá até lá!
Eu aceito a dádiva da salvação e te recebo neste instante.
- Não digam que não avisei!
Buck notou que os outros homens também estavam repetindo a oração em pé, com os olhos abertos, de frente para Alex.
Amém.
Assim que o guarda se aproximou do pastor D, ele se levantou e ergueu o outro homem.
- Vocês dois! Parem e prestem atenção! Enquanto o guarda se afastava, Buck ouviu o homem murmurar:
- Ore mais uma vez.
O pastor D começou a orar novamente, em voz baixa, parecendo prestar atenção no que Alex dizia. De repente, outros homens começaram a orar e pedir aos companheiros que fizessem o mesmo. O burburinho chegava até os guardas, mas nenhum deles conseguia identificar de quem partia.
- Eu preciso saber se alguém aqui vai recusar a marca da lealdade para acertarmos as filas!
- Eu quero ficar na outra fila! - gritou o pastor D.
- Você se recusa a receber a marca?
- Sim, senhor!
- Sabe quais são as conseqüências?
- Sei. Eu rejeito a autoridade do governador deste mundo e desejo...
- Não me interessa ouvir sua filosofia. Comece a formar a fila à minha direita enquanto...
- Eu desejo dedicar minha lealdade ao Deus vivo e verdadeiro e a seu Filho, Jesus Cristo!
- Eu disse para você ficar quieto!
- Ele é o único que oferece o dom gratuito da salvação a todo aquele que crê!
- Façam aquele homem calar a boca!
- O que você vai fazer? Matar-me duas vezes? Oh, eu posso morrer duas vezes por meu Deus!
- Alguém mais?
- Eu!
- Eu também!
- Eu!
- Eu também!
Um após outro, os homens começaram a gritar os motivos de sua decisão, optando por morrer.
- Eu me converti esta noite, aqui mesmo! Convertam-se, homens! É verdade! Deus ama a todos vocês!
- Silêncio!
- Fui preso porque estava adorando a Deus com meus irmãos crentes! Deus nunca nos deixará nem nos abandonará!
- Guardas!
Os guardas entraram na cela, atirando os homens ao chão, golpeando suas cabeças e rostos.
- Não resistam! - gritou o pastor D. - Logo estaremos livres deste sofrimento! Que os homens que nos espancam possam ouvir o que estamos dizendo antes que seja tarde demais!
Ele foi golpeado na cabeça com um cassetete e tombou ao chão. Buck viu um criminoso que não tinha o selo na testa agarrar o guarda pela nuca e atirá-lo no chão. Outros prisioneiros foram jogados em cima dele, formando uma pilha de homens.
- Não resistam, irmãos! - gritou um dos crentes. - Falem a verdade!
Os presos não-crentes começaram a revoltar-se.
- Eu vou receber a marca de Carpathia! - gritou um deles. - Mas parem de bater nesses homens! Sou um covarde, eles são corajosos! Não sei se concordo com eles, mas eles são mais corajosos que qualquer um de nós!
Um guarda avançou sobre ele e agarrou-o pelos braços dando-lhe uma gravata. Ele gritou até seu pescoço estalar e caiu morto no chão.
Alex, que permanecia fora da cela tomando conta das armas de seus homens, pegou uma delas e atirou para o ar silenciando a gritaria.
- Vou autorizar meu pessoal a atirar para matar! - ele disse. - Os que aceitam a marca da lealdade à Comunidade Global e ao potentado ressurreto devem ficar à minha esquerda. Os que não aceitam devem ir para a direita...
- Há um único Deus e um único Mediador entre Deus e os homens, o Senhor Jesus Cristo!
- Façam aquele homem calar a boca!
Os crentes ajudaram o pastor D a levantar-se, mas ele não conseguia ficar em pé sozinho. Eles o carregaram até o início da fila, à direita de Alex. Algumas dezenas de homens postaram-se atrás dele. De repente, começaram a cantar: "O que pode lavar meus pecados? Somente o sangue de Jesus! O que pode me purificar? Somente o sangue de Jesus!"
- Tirem esses homens daqui! Mandem que eles calem a boca! Eles devem ir para a fila da guilhotina! Rápido! Rápido!
"Ó que precioso sangue, que me torna alvo como a neve! Outra fonte não conheço! Somente o sangue de Jesus!"
Quando a fila passou por Buck, ele segurou o pastor D pela camisa e o empurrou, fingindo forçá-lo a caminhar. Em seguida, cochichou ao ouvido do pastor:
- Jesus ressuscitou!
Demetrius Demeter, o grande evangelizador, revirou os olhos e continuou a caminhar cambaleando. Com voz enrolada, ele murmurou:
- Cristo ressuscitou verdadeiramente.
Buck viu o grupo caminhar com passos vacilantes, todos com o selo de Deus na testa, rumo à câmara da morte, cantando hinos e sendo espancados. Ele não os acompanhou, porque não teria condições de presenciar a morte daqueles santos, alguns recém-convertidos. Com os olhos lacrimejantes, ele avistou Albie e fez um gesto para que ele o acompanhasse. Ambos caminharam rapidamente até o jipe, mas não conseguiram deixar de ouvir o primeiro baque e os aplausos que partiam da multidão sedenta de sangue.
Buck deu partida no jipe e acelerou para abafar os sons dos gritos agudos na escuridão da noite. Calados, ele e Albie rodaram cerca de 40 quilômetros em direção ao sul, rumo ao aeroporto de Kozani. Buck freou o jipe perto do portão. Ele e Albie desceram rapidamente e passaram pelos mecânicos.
- A chave está no avião? - perguntou alguém. Buck assentiu com a cabeça, sem forças para falar. Enquanto ambos caminhavam com passos firmes em direção à pista e ao hangar onde o jato reabastecido os aguardava, Buck avistou uma pequenina moça asiática sentada em um banco sob um poste de luz, tendo ao lado uma mala enorme e uma bagagem de mão. A lâmpada que iluminava seu uniforme vermelho de agente penitenciária da CG conferia-lhe um ar angelical.
Ao avistá-los, ela se levantou, tirando os documentos do bolso. Sua presença ali era um raio de esperança, uma ligação com a vida, com a segurança, um copo de água fresca em um deserto de desespero.
- Você deve ser Ming Toy - disse Buck bruscamente, mal acreditando que ainda tinha forças para falar.
- Sou. Sr. Williams?
Buck assentiu com a cabeça.
- Sr. Albie?
- Por favor, somos Jensen e Elbaz enquanto não subirmos a bordo - disse Albie.
Buck notou que Albie estava tão atormentado quanto ele.
- Deixe-me ver seus documentos - disse Buck, pegando a mala de Ming Toy. Albie carregou a bagagem de mão.
- Por favor, eu posso carregar alguma coisa, cavalheiros. Vocês não fazem idéia do quanto estou feliz.
- Enquanto não subirmos naquele avião, Srta. Toy - disse Albie - estamos apenas cumprindo ordens e transportando uma funcionária de um lugar para outro.
- Entendo.
- Assim que estivermos a bordo, vamos poder conversar à vontade.
Buck colocou a mala atrás do banco traseiro e ajudou-a a subir, apontando para uma poltrona. Assim que ela atou o cinto de segurança, Albie sentou-se no banco do piloto. Buck sentou-se no banco ao lado, sem atar o cinto, virou-se de lado e pegou uma prancheta.
Em seguida, ele olhou para a moça atrás de si.
- Srta. Toy - ele disse, sentindo um nó na garganta. - Temos de fazer uma verificação preliminar e obter autorização para decolar.
Ela olhou-o de esguelha, da mesma maneira que costumava fazer com as prisioneiras do PRFB. A moça devia estar se perguntando o que havia de errado com aquele homem.
- Assim que levantarmos vôo - prosseguiu Buck, com a respiração entrecortada -, vamos lhe contar por que sua presença aqui representa um milagre para nós e por que precisávamos tanto de você neste avião. - Ele respirou fundo e continuou. - E vamos lhe contar uma história na qual você não vai acreditar.

DEZENOVE

David despertou várias vezes durante a noite, olhando sempre para o relógio. Finalmente, às 6 horas, ele pulou da cama, correu oito quilômetros com um pouco de dificuldade, alimentou-se, tomou uma ducha e vestiu-se. Às 7h30 já estava em seu escritório.
- Você mudou o horário da entrevista? - perguntou sua assistente.
- Ah, sim, peço-lhe desculpas, Tiff. Algum problema?
- Não, só curiosidade.
David ligou para o ramal 4054 a fim de saber se Chang ainda estava lá e se compareceria à entrevista marcada para as 9 horas. Assim que ele se identificou, a Sra. Wong disse:
- Senhor Wong não estar aqui. Ele ligar para senhor depois.
- Chang está aí?
- Não. Chang com pai.
- A senhora sabe onde eles estão?
- Com o Sr. Moon.
- Eles estão com o Sr. Moon?
- Ele ligar para senhor depois.
- Sra. Wong, seu marido e seu filho estão com o Sr. Moon agora?
- Não entender. O senhor ligar para Sr. Moon.
David ligou para o escritório de Moon e informaram-lhe que ele estava no Departamento de Pessoal. Ele ligou para o DP e informaram-lhe que os executivos estavam em reunião.
- Você sabe me dizer se eles já começaram a aplicar a marca nos funcionários recém-admitidos?
- Parece que ainda não, mas vai ser hoje. É sobre isso que eles estão discutindo na reunião.
- Você sabe me dizer se um de meus candidatos está aí? O nome dele é Chang Wong.
- Acho que o vi acompanhado do pai hoje de manhã. Eles estavam com o Sr. Moon.
- Onde eles estão agora?
- Não tenho idéia. Você quer o número do ramal deles? Estão hospedados aqui...
- Não, obrigado. Eu quero falar com Moon.
- Eu já lhe disse. Ele está em reunião com os executivos do DP
- Meu assunto é urgente.
- Não posso fazer nada.
- Minha senhora, sou um diretor. Por favor, interrompa a reunião e diga ao Sr. Moon que preciso falar com ele imediatamente.
- Não.
-Não?
- Já tive problemas por fazer esse tipo de coisa antes. Se o assunto é tão importante assim, acho melhor o senhor mesmo interromper a reunião.
David desligou o telefone com força e correu até o DP. A sala de reuniões estava vazia. A recepcionista levantou a mão para detê-lo enquanto falava ao telefone.
- Interrompa a conversa só por um minuto - disse David. - É muito importante.
- Um momento, por favor.
- Obrígado! Eu...
- Eu não interrompi minha ligação para ajudar você. Eu interrompi para pedir que você aguarde a sua vez.
- Mas eu...
Ela levantou a mão novamente e voltou a falar ao telefone. Quando estava terminando, outro telefone tocou, e ela atendeu. David debruçou-se sobre a mesa e apertou o botão de desligar.
- Diretor Hassid! Vou dar parte de você!
- É melhor mesmo você dar um jeito de me mandarem embora antes que eu despeça você - ele disse. - Onde é a tal reunião?
- Não sei.
- Não é aqui; onde é?
- Fora daqui, claro.
- Onde?
- Sinceramente, não sei, mas tenho um palpite de que é no porão do Edifício D.
- Fica a uns 400 metros daqui! Por que você não me contou antes que a reunião era lá? Por que não me contou quando sugeriu que eu interrompesse a reunião?
- Eu não sabia que o senhor ia fazer isso.
O telefone tocou novamente.
- Não atenda.
- Faz parte do meu trabalho.
- Se você atender, vai perder o emprego. Por que a reunião está sendo realizada no Edifício D?
- Eu não sei. Eu disse que era só um palpite.
- Por que lá?
- Porque é lá que estão instalando o centro de aplicação da marca da lealdade - ela disse atendendo o telefone.
David bateu na mesa, com as duas mãos abertas, fazendo a recepcionista pular de susto e desculpar-se com a pessoa do outro lado da linha. Enquanto ele se dirigia à porta, ela o chamou com voz melosa.
- Oh, diretor Hassid! Acho melhor o senhor atender esta ligação. É sua assistente.
Ele voltou apressado, e ela o olhou com ar de zombaria.
- Imagine só se eu vou deixar o senhor usar meu telefone -ela disse, apontando para um aparelho na sala de espera.
- Aqui é David.
- Acabei de receber uma ligação de Walter Moon.
- Onde ele está?
- Sinto muito, não sei. Ele não disse, e eu não perguntei. Quer que eu descubra?
- O que ele queria?
- Ele disse que vai levar pessoalmente seu candidato para a entrevista das 9 horas. Disse que ele e o pai do candidato estavam muito felizes com seu interesse. Você conhece essas coisas.
- O que o rapaz estava fazendo com Moon?
- Não tenho idéia, mas posso tentar descobrir.
- Encontre Moon e me ligue de volta no meu celular.
David caminhou apressado até o Edifício D. O porão estava cercado por cordões de isolamento. Ele precisou lançar mão de todos os artifícios para passar pela segurança. Finalmente, quando conseguiu olhar pela fresta da porta dupla que dava acesso a uma enorme sala de reuniões, viu pela primeira vez as instalações para aplicar a marca da lealdade. Barricadas haviam sido montadas para afunilar a multidão até os locais de seleção e, depois, aos cubículos onde os últimos lotes de injetores estavam sendo ligados e testados.
- Para que serve tudo isto? - David perguntou a uma mulher que colocava as cadeiras no lugar.
- Ora, vamos, você deve saber.
- Mas por que um lugar tão grande assim? Pensei que eles iam começar a aplicar a marca só nos novos funcionários.
Ela encolheu os ombros.
- Depois seremos nós. Tudo precisa estar no lugar e testado, não? Eu mal posso esperar. Sempre sonhei com isso.
- Você viu o Sr. Moon esta manhã?
- Ele estava aqui até alguns minutos atrás.
- Acompanhado de alguém?
- Não sei quem eram. Havia alguns do Departamento de Pessoal.
- Mais alguém?
- Eu não prestei atenção.
- Sabe onde ele está agora?
- Não, mas acho que o senhor já ouviu os boatos.
- Que boatos? Ela sorriu.
- Os diretores nunca sabem dos boatos, não é mesmo?
- É verdade.
- Acho que vocês provocam boatos ou pelo menos as reuniões de diretoria fazem isso.
- Com certeza. Qual é a novidade?
- Moon está cotado para ser o Supremo Comandante.
- Não diga!
- Eu gosto dele. Acho que tem condições.
O celular de David vibrou, e ele pediu licença à mulher.
- O pessoal de Moon me contou que ele está com Carpathia - disse Tiffany.
- Sozinho?
- Sinto muito, David. Eu não perguntei. Posso descobrir tudo o que você quiser, mas antes preciso saber o que estou procurando.
- A falha foi minha. Eles perguntaram se Walter vai levar Chang para a entrevista das 9 horas?
- Ah, sim! Pelo menos consegui lhe dar uma resposta! Sim.
- Você tem certeza?
- Tenho.
- Chang está com ele e Carpathia agora?
- Sinto muito. Não tenho idéia.
- Estou indo para aí.
Enquanto caminhava, David pegou seu celular e ligou novamente para o apartamento de Chang. Dessa vez, o Sr. Wong atendeu. Um pouco mais animado, David perguntou por Chang.
- No momento, ele não poder atender. Ele encontrar o senhor às 9, certo?
- Certo. Ele está bem?
- Muito bem! Muito feliz! Sr. Moon buscar nós para ver senhor.
- O senhor também vem?
- Posso?
David suspirou.
- Por que não?
- Não?
- Claro que pode.
De volta a seu escritório, faltando 15 minutos para a entrevista, David resolveu bisbilhotar o que se passava no escritório de Carpathia. A primeira coisa que ele ouviu foi a voz de Nicolae.
- Hickman era um bufão! Estou bem melhor sem ele. Não sei onde Leon estava com a cabeça.
- Provavelmente Leon imaginava que ia substituir o senhor e que poderia manipular Jim com facilidade. Carpathia riu.
- Você sabe julgar bem as pessoas, Walter. Sobraram você e Suhail. Ele tem um bom currículo, mas ainda é muito inexperiente na atual função.
- O senhor confia em um paquistanês? Eu não entendo essa gente.
- Em quem podemos confiar nestes dias, Walter? Agora, preste atenção. Não sei se você gosta de pompas e circunstâncias, mas não quero fazer um grande alarde disso. Você terá um belo escritório sem precisar dividi-lo com ninguém. Eu quero anunciar sua promoção sem muita cerimônia.
- Perfeito - disse Walter. - Eu não quero que o senhor perca tempo comigo.
David achou que Walter não parecia sincero e que se sentia desapontado. No entanto, ele estava certo em agradar ao ego de Carpathia. De qualquer forma, ninguém iria roubar-lhe a posição.
- Walter - disse Carpathia -, como estão indo os MMCG?
Moon demonstrou surpresa.
- Senhor, os Monitores de Moral da CG estão trabalhando firme há muito tempo. Eu recebo informações deles todos os dias e sei que Suhail confia em seus relatórios sigilosos.
Ficou claro que Carpathia estava impaciente.
- Walter, com certeza você entendeu meu recado recente quando falei de mobilizarmos um grande contingente de todas as tribos e nações que...
- Claro, potentado. Estou trabalhando com o chefe Akbar para...
- Não acredito! Você se esqueceu! Walter, estou determinado a cercar-me de pessoas que me entendam intuitivamente!
- Sinto muito, Excelência. Eu...
- Apesar de todos os defeitos e idiossincrasias de Leon, ele é um homem que me entende, que prevê minhas necessidades, desejos e estratégias. Você sabe...
- Esse é o tipo de subordinado que eu gostaria de...
- Não me interrompa, por favor!
- Peço-lhe desculpas.
- Você sabe onde Leon está agora?
- Ouvi dizer que ele voou para os Estados Unidos Euro...
- Ele está no Vaticano, Walter! Convocou os dez potentados regionais e pediu a cada um que levasse seu líder espiritual mais confiável e leal para se reunirem com ele no antigo grande bastião do cristianismo.
- Eu não enten...
- Claro que não! Pense, homem! Neste exato momento, o Reverendo Fortunato deve estar ajoelhado na Capela Sistina, com os subpotentados e os líderes espirituais de cada região, que representarão o Carpathianismo ao redor do mundo, impondo as mãos sobre a cabeça deles e encarregando-os da grande missão que terão pela frente.
- Eu gostaria de estar lá, Excelência.
- Você é meu chefe de segurança e não sabia disso! Vou promovê-lo a Supremo Comandante, mas você precisa entrar no esquema!
- Farei o melhor que puder.
- Leon me ligou de madrugada e contou-me, com grande alegria, que ordenou a destruição de todas as relíquias do Vaticano, todos os ícones, todas as peças de arte que digam respeito a esse Deus da Bíblia. Alguns potentados e até mesmo alguns carpathianistas sugeriram que esses supostos tesouros de valor incalculável fossem transferidos para cá e guardados no palácio para preservar seu valor e ficar para a História. História! Nunca tive tanto orgulho de Leon. Antes da volta dele, não restará no Vaticano nenhum vestígio de tributos a qualquer deus a não ser àquele que meu povo pode ver, tocar e ouvir.
- Amém, Sua Santidade. O senhor ressuscitou verdadeiramente.
- Claro, e o mundo inteiro viu! E, quando falei alguns dias atrás de um exército de homens implacáveis, eu queria que você entendesse que eu estava me referindo à elite de minhas tropas mais leais, os MMCG. Eles já estão armados. Quero que recebam todo o apoio! Quero que estejam totalmente equipados! Quero que você os abasteça com nossas munições para que a presença deles seja notada. Eles devem ser respeitados e reverenciados a ponto de causar medo nas pessoas.
- O senhor quer impor medo aos cidadãos?
- Walter! Nenhum homem que me ama e me adora precisa ter medo de mim. Você sabe disso.
- Eu sei, senhor.
- Se houver algum homem, mulher, jovem ou criança com motivos para se sentirem culpados quando confrontados por um membro dos Monitores de Moral da Comunidade Global, aí sim, quero ver essa pessoa tremer de medo!
- Eu entendo, Excelência.
- Entende mesmo, Walter? Eu preciso ter certeza.
- Entendo perfeitamente, senhor.
- Como chefe da segurança, você tem a liberdade de substituir quem quiser. Só quero que saiba que estou transferindo a você a responsabilidade de levar adiante esse meu desejo.
- De fortalecer os músculos dos MMCG.
- Esse é o eufemismo do século.
- Existe verba para isso?
- Walter, você se reporta diretamente a mim. Eu controlo o mundo no âmbito político, militar, espiritual e econômico. Tenho recursos infinitos. Não poupe nenhum centavo para tornar os MMCG a força mais poderosa que o mundo já viu.
- Sim, senhor!
- Divirta-se com esse trabalho! Extraia dele o melhor que puder! Mas não perca tempo! Quero um contingente de pelo menos cem mil homens equipados em Israel quando eu chegar lá em triunfo.
- Senhor, temos poucos dias pela frente.
- Temos pessoal?
- Temos.
- Temos armamentos?
- Temos. O senhor está abrindo mão da idéia anterior de não exibir sua força militar em forma de tanques, caças a jato, bombardeiros e coisas do gênero?
- Você está começando a entender, Walter. Quero esmagar qualquer resistência em Israel antes mesmo que ela se levante. De quem eu poderia esperar oposição?
- Dos judaístas e...
- Você já me disse que eles não devem aparecer por lá. O quartel-general deles fica escondido nas sombras da Internet. De quem eu poderia esperar oposição em carne e osso dentro de, digamos, Jerusalém? Você conhece meus planos.
- Não totalmente, senhor.
- Mas sabe quem se sentirá insultado.
- Os ortodoxos, senhor. Os judeus religiosos e consagrados.
David ouviu o som do ranger de cadeiras, e ficou claro que Carpathia e Moon haviam-se levantado.
- Vou fazer-lhe uma pergunta, Walter. Que perigo podem representar para mim aqueles homens esquisitos, com suas barbas, cabelos trançados e barretes, quando eles virem cem mil homens armados até os dentes, que estarão lá para me proteger e a todos os que me adoram?
- Nenhum, Excelência.
- Nenhum mesmo, Walter. Tenha um bom dia.
David calculou que Walter ainda tinha tempo para chegar à entrevista. O objetivo de David era ludibriar Walter, bajular o Sr. Wong e conseguir livrar-se deles para planejar com Chang a melhor maneira de saírem dali com os outros crentes. Ainda com os fones no ouvido, ele se preparava para desligar o computador quando ouviu Carpathia cantarolando como se estivesse escrevendo uma canção, tentando compor versos, melhorando a rima, começando de novo. David ouviu completamente pasmo.
Depois de aperfeiçoar a canção em forma de melodia militar, Carpathia cantou suavemente:
Salve Carpathia, nosso rei ressurreto e senhor;
Salve Carpathia, dono do mundo e nosso governador.
Todos nós o adoraremos eternamente;
Ele é o nosso Nicolae, nosso amado dirigente.
Salve Carpathia, nosso rei ressurreto e senhor.


Faltavam alguns minutos para a meia-noite em Chicago.
Apenas Rayford e Tsion estavam acordados. Todos aguardavam ansiosamente o retorno de Buck e Albie e da nova integrante do grupo, Ming Toy. Chloe e Leah pediram que fossem acordadas assim que o helicóptero chegasse.
Tsion havia trabalhado o dia inteiro em uma nova mensagem.
- Estou pronto para transmiti-la - ele disse a Rayford -, mas gostaria que você a lesse antes. É um estudo interessante, mas de difícil compreensão para os recém-convertidos. Temos centenas de milhares de novos crentes unindo-se a nós a cada dia, porém tenho também de pensar em mudar a alimentação dos mais antigos, passando do leite para comida sólida, como fazemos com os bebês. Talvez chegue o dia em que alguém como Chaim possa encarregar-se de doutrinar os iniciantes.
Rayford pegou uma cópia impressa das mãos de Tsion, sentindo-se privilegiado por ser um dos primeiros a ler uma mensagem da qual bilhões de pessoas se beneficiariam.

Meus caros irmãos em Cristo:
Ao ler suas cartas enviadas à central de mensagens, notei que existem algumas dúvidas sobre determinadas passagens e doutrinas. Hoje abordarei uma delas. Sinto-me grandemente estimulado ao saber que vocês estão curiosos, lendo, estudando e demonstrando claramente que desejam aprender e crescer como crentes no Messias. Se vocês já depositaram sua confiança em Cristo para serem salvos pela graça mediante a fé, podem considerar-se verdadeiros santos da tribulação.
Apesar de nos regozijarmos nesta nova posição que ocupamos perante Deus - passando das coisas velhas para as novas, da morte para a vida, da escuridão para a luz -, sem dúvida temos consciência da realidade de que estamos vivendo uma prorrogação de tempo aqui na terra. E essa realidade está sendo sentida mais do que nunca.
Entendo que um de seus objetivos mais sublimes é sobreviver até o dia do Glorioso Aparecimento. Eu também tenho esse objetivo, mas quero lembrá-los de que ele não deve ser o mais importante de todos. O apóstolo Paulo disse: "Para mim o viver é Cristo, e o morrer é lucro." Embora possa ser emocionante demais ver o Senhor Jesus Cristo retornar em triunfo à terra e estabelecer o seu reino de mil anos, creio que, se eu for chamado aos céus antes, será muito bom assistir de lá ao retorno de Cristo.
Meus amados, nossa prioridade máxima agora é não nos opormos às maldades do anticristo, embora eu me esforce para isso diariamente. Quero envergonhá-lo, insultá-lo, enfurecê-lo, frustrá-lo e atrapalhar seus planos de todas as maneiras possíveis. Seu objetivo principal é dominar, ser adorado e causar a morte e destruição das pessoas que venham a tornar-se santos da tribulação.
Portanto, por mais digno e nobre que seja o objetivo de lutarmos contra o maligno, creio que podemos trabalhar com mais eficiência se concentrarmos nossos esforços nos indecisos, para que eles se convertam. Sabendo que cada dia pode ser o último - podemos ser descobertos e levados a um centro de aplicação da marca, onde teremos de tomar a decisão de morrer por amor a Cristo -, devemos nos empenhar nessa tarefa com urgência.
Muitos que me escrevem estão temerosos e confessam que não sabem se terão coragem ou firmeza para optar pela morte quando estiverem diante da guilhotina. Como companheiro de vocês nesta jornada de fé, quero que saibam que também sinto o mesmo. Sou fraco na carne. Quero viver. Tenho medo da morte, de morrer. O simples pensamento de ter minha cabeça separada do corpo causa-me um arrepio como causa a qualquer pessoa. Em meus mais terríveis pesadelos, eu me vejo em pé diante dos carrascos da CG como um homem fraco e trêmulo implorando por viver. Eu me vejo partindo o coração de Deus ao negar o meu Senhor. Oh, que cena terrível!
Em meus pensamentos mais odiosos, eu falho na hora do teste e aceito a marca da lealdade que, conforme todos nós sabemos, é a marca amaldiçoada da besta, tudo porque tenho grande apreço por minha vida.
Vocês também sentem esse medo hoje, meus amigos? Vocês se sentem bem por estarem escondidos e com possibilidades de sobreviver? Mas sentem um mau pressentimento a respeito do dia em que serão forçados a declarar publicamente sua fé ou negar seu Salvador?
Posso dizer a vocês que é difícil entender essas coisas, até para mim que fui chamado para ser seu pastor e lhes expor a Palavra de Deus. A Bíblia nos diz que o selo de Deus ou a marca da lealdade do anticristo são escolhas definitivas. Em outras palavras, aquele que se decidiu por Cristo e tem o selo de Deus na testa não pode mudar de idéia!
Isso me faz entender que, quando tivermos de enfrentar o teste derradeiro, Deus subjugará nossa mente humana egoísta e maligna e nos concederá a graça e a coragem para tomarmos a decisão certa. Minha interpretação a respeito disso é que seremos incapazes de negar a Jesus, incapazes de escolher a marca que salvará nossa vida apenas temporariamente.
Esse entendimento não é uma bênção? Humanamente falando, para mim a escolha seria tão difícil quanto atravessar o Pacífico a nado. Tenho ouvido histórias de crentes do passado que foram colocados na mira de uma arma para negar sua fé, mas eles permaneceram firmes e morreram por ela. Nunca imaginei ser tão forte assim.
Entre minha última mensagem e esta, ouvi falar da história de uma pessoa que foi uma das primeiras a enfrentar esse teste. Não temos o relato de testemunhas oculares; ninguém nos contou como se desenrolou a cena. Sabemos apenas que, dentre todas as pessoas levadas a um determinado centro de aplicação da marca (e eu me reservo o direito de não dizer qual é), só um homem recusou-se a recebê-la. Ele preferiu morrer a negar a Cristo.
Meu coração sofre pelos familiares daquele homem. Que cena terrível para recordar depois de ver um parente morrer daquela maneira! Mas como é emocionante saber que Deus foi fiel! Ele estava lá naquela hora de angústia. E esse amado irmão é um dos mártires que se encontram sob o altar de Deus, trajando vestiduras brancas como a neve. Enquanto o anticristo e o falso profeta espalham suas mensagens de mentira, ódio e falsas doutrinas ao redor do mundo, forçando milhões de pessoas a adorarem Satanás depois de ameaçarem decapitar as que se recusarem, seria aconselhável memorizarmos um versículo do livro de Apocalipse. No capítulo 20, versículo 4, João escreve esta parte da revelação que Deus lhe deu:
"Vi ainda as almas dos decapitados por causa do testemunho de Jesus, bem como por causa da palavra de Deus, tantos quantos não adoraram a besta, nem tampouco a sua imagem, e não receberam a marca na fronte e na mão; e viveram e reinaram com Cristo durante mil anos."
Seus queridos chamados para um fim ignóbil e sangrento, conforme o mundo diz, retornarão com Cristo em seu Glorioso Aparecimento! Eles viverão e reinarão com Cristo durante mil anos! Glória seja dada ao Deus Pai e a seu Filho, Jesus Cristo!
E quanto a você e a mim, meu amigo? Estaremos entre eles? Oh, que privilégio!
Em Apocalipse 14.12-13 está escrito: "Aqui está a perseverança dos santos, os que guardam os mandamentos de Deus e a fé em Jesus. Então ouvi uma voz do céu, dizendo: Escreve: Bem-aventurados os mortos que desde agora morrem no Senhor. Sim, diz o Espírito, para que descansem das suas fadigas, pois as suas obras os acompanham."
E o que será daqueles que desfrutam por uns tempos o favor do governador deste mundo? O que será daqueles que escapam da guilhotina e parecem prosperar? Assim como a Bíblia exalta aqueles que são lavados no sangue do Cordeiro, vejam que terrível destino têm os que optam pelo outro caminho. Em Apocalipse 14.9-11, João cita um anjo "dizendo, em grande voz: Se alguém adora a besta e a sua imagem, e recebe a sua marca na fronte, ou sobre a mão, também esse beberá do vinho da cólera de Deus, preparado, sem mistura, do cálice da sua ira, e será atormentado com fogo e enxofre, diante dos santos anjos e na presença do Cordeiro. A fumaça do seu tormento sobe pelos séculos dos séculos, e não têm descanso algum, nem de dia nem de noite, os adoradores da besta e da sua imagem, e quem quer que receba a marca do seu nome."
Vocês não precisam ser estudiosos da Bíblia para compreender isso.
Agora, amados irmãos e irmãs, vou esclarecer algumas passagens que provocaram perguntas de muitos de vocês. No Salmo 69.28, o salmista faz a seguinte súplica ao Senhor a respeito de seus inimigos: "Sejam riscados do livro dos vivos, e não tenham registro com os justos."
Êxodo 32.33 diz: "Então disse o Senhor a Moisés: Riscarei do meu livro todo aquele que pecar contra mim."
Essas referências fizeram com que algumas pessoas temessem perder a salvação. Mas minha argumentação é a de que o livro ali referido é o livro do Deus Pai, no qual estão escritos os nomes de cada pessoa criada por Ele.
O Novo Testamento menciona o Livro da Vida do Cordeiro. Sabemos que o Cordeiro é Jesus, porque Ele foi assim chamado por João Batista, que disse: "Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo!" (João 1.29).
Jesus Cristo veio ao mundo para salvar os pecadores, portanto o Livro da Vida do Cordeiro é aquele que registra os nomes dos que receberam a dádiva da vida eterna. A diferença mais importante entre esses dois livros é que a pessoa pode ter seu nome riscado do Livro da Vida. Mas em Apocalipse 3.5 Jesus promete: "O vencedor será assim vestido de vestiduras brancas, e de modo nenhum apagarei o seu nome do livro da vida; pelo contrário, confessarei o seu nome diante de meu Pai e diante dos seus anjos."
Os vencedores a que Ele se refere são aqueles vestidos com as vestiduras brancas do próprio Cristo, garantindo que seus nomes não serão apagados do Livro da Vida do Cordeiro.
Para mim, o Livro da Vida é uma mostra da misericórdia de Deus. Entendo que, antecipando a nossa salvação, Ele escreve o nome de cada pessoa naquele livro. Se alguém morre sem aceitar a Cristo como seu Salvador, seu nome é apagado, porque ele não está mais entre os viventes. Mas aqueles que aceitaram a Cristo têm seus nomes escritos no Livro da Vida do Cordeiro. Quando eles morrem fisicamente, permanecem vivos espiritualmente e jamais são riscados.

Rayford teve de admitir a si mesmo que também estava preocupado com sua reação, caso tivesse de enfrentar a guilhotina. Desejava ser verdadeiro e fiel àquele que morreu por ele e desejava ver sua família novamente. Mas, se fracassasse e provasse ser um covarde, ele gostaria de saber se perderia sua posição perante Deus.
- Tsion - ele disse -, eu não mudaria uma palavra sequer. Essa mensagem animará e confortará milhões de pessoas. Com certeza, ela me ajudou muito.

VINTE

David não conseguia ficar parado. Como ele faria para ter sucesso nessa empreitada? Talvez devesse demonstrar desinteresse por Chang como funcionário. Será que alguém acreditaria nisso? Ele começou a andar de um lado para o outro, arrumando o nó da gravata e abotoando o paletó do uniforme.
Quando Moon, o Sr. Wong e Chang finalmente chegaram, David ficou desconcertado com a aparência de Chang. Aquele rapaz de 17 anos, pele lisa, usava calça cáqui, uma jaqueta fechada com zíper até o pescoço e um boné vermelho de beisebol enterrado na cabeça, quase cobrindo os olhos. Ele estava visivelmente zangado, e seus olhos moviam-se com rapidez de um lado para o outro, sem encarar David.
Moon e o Sr. Wong pareciam despreocupados, rindo e conversando em voz alta.
- Senhor já ver rapaz tão medroso? - perguntou o Sr. Wong.
- Acho que sim!
Tiffany os conduziu para dentro da sala, e David apertou as mãos de Walter e depois do Sr. Wong, que disse:
- Tira boné para entrevista, Chang.
Pela primeira vez desde o funeral de Carpathia, David viu Chang não dar atenção ao pai. Vermelho de raiva, o Sr. Wong ficou sério. Em seguida, esboçou um sorriso, apertando e sacudindo a mão de David.
- Ele tirar boné para fotografia!
Moon riu, parecendo lembrar-se de algum evento engraçado.
David estendeu a mão para Chang, mas o rapaz continuou imóvel olhando para baixo. O pai gritou com ele:
- Aperta mão de chefe, Chang!
O rapaz estendeu a mão com má vontade, segurando frouxamente a de David. Foi um cumprimento frio. David imaginou ter visto uma lágrima correr perto da boca de Chang. Talvez esse tipo de comportamento fosse bom. Já que David estava tentando tirá-lo dali dentro de alguns dias, seria melhor que eles não agissem civilizadamente um com o outro.
Walter Moon disse:
- Ele ressuscitou.
O Sr. Wong e David responderam:
- Ele ressuscitou verdadeiramente.
David assustou-se ao ouvir Chang murmurar:
- Cristo ressuscitou verdadeiramente.
Para Chang, aquela devia ser uma atitude de coragem piedosa, mas David a considerou um ato temerário de um adolescente. Aparentemente, os outros dois não ouviram.
- Sentem-se, por favor, cavalheiros - disse David. - Eu gostaria de conversar a sós com o candidato, mas acho que foi bom os senhores estarem aqui, chefe Moon e Sr. Wong. Li o manual sobre contratação de funcionários e há um problema com referência à questão de idade.
- Questão de idade? - disse o Sr. Wong, parecendo chocado. - O que é isso?
- Que bom - disse Chang, levantando-se para sair.
- Fica sentado! Lembra boas maneiras! Você convidado aqui para entrevista!
Chang voltou a sentar-se de maneira relaxada, com os pés cruzados.
Moon fez um gesto para pôr um fim na preocupação de David.
- Sua Excelência já abriu mão disso e...
- A política não permite nenhuma exceção - pressionou David.
- David - disse Walter lentamente, fazendo-o lembrar-se da maneira como Carpathia conversara com Moon minutos antes -, o potentado é a política. Se ele determinar que este jovem com uma inteligência fora de série e gênio em informática é útil para a Comunidade Global, não há o que discutir.
David respirou fundo, decidido a partir para a ofensiva. Moon, porém, não havia terminado.
- Você sabe que o potentado Carpathia já autorizou Chang a completar o último ano do Segundo Grau aqui e, depois, a faculdade.
- Eu sempre achei que o colégio daqui fosse para beneficiar apenas os filhos dos funcionários - disse David.
- Os professores não têm interesse em saber quem são os pais de seus alunos. Diga ao Sr. Wong que planos você tem para Chang, David.
O Sr. Wong sorriu e inclinou-se para a frente, ávido por ouvir o que David tinha a dizer.
Isto aqui não vai dar em nada, pensou David.
- Meus planos são que ele termine o Segundo Grau na China e inicie sua carreira em qualquer lugar, menos aqui. O sorriso do Sr. Wong desapareceu.
- O quê? - ele disse, virando-se para Moon.
- David! - exclamou Walter. - O que...
- Olhem para ele - disse David.
Os dois homens viraram-se para Chang, que olhava para o chão, com as mãos nos bolsos.
- Levanta, garoto. Você não ser assim. Eu estar envergonhado.
Chang mexeu-se no lugar com indiferença e levantou um pouco o queixo, mantendo uma postura insolente. Seu pai cutucou-lhe no ombro, e Chang o repeliu. O Sr. Wong lançou um olhar furioso ao filho.
- Ele não quer trabalhar aqui - disse David. - É jovem demais, imaturo, despreparado para a função. Não duvido de sua eficiência ou potencial, mas é melhor que ele cure suas esquisitices com o dinheiro de outra pessoa.
- Não vamos nos precipitar, David - disse Moon. - O rapaz acabou de sofrer um trauma. Estava morrendo de medo, mas foi até o fim e continua um pouco abalado.
David empinou a cabeça como se estivesse disposto a pensar na desculpa.
- Verdade?
- Sim - disse o Sr. Wong. - Ele estar aborrecido. Ficar com medo da agulha, da injeção. Gritar. Chorar. Quase fugir, mas nós segurar ele. Ele me agradecer um dia. Talvez amanhã.
- E por que ele precisou tomar injeção?
- Biochip ! - exclamou o Sr. Wong com orgulho. - Um dos primeiros! Você vê?
Ele tentou tirar o boné do rapaz, mas Chang levantou-se novamente e deu as costas para o pai. David esforçou-se para manter a compostura. E agora? Como aquilo pôde acontecer?
- Quando? - ele perguntou, sem pensar. - Como?
- Hoje de manhã - disse Walter. - Eu esperava que eles já estivessem prontos. Levei câmara fotográfica e filme. Mas eles não estavam. Resolvemos esperar mais um pouco, mas eles viram que eu já tinha tido problemas demais. Assim que a primeira máquina foi ligada e pronta para funcionar, eles a testaram, e o rapaz aqui foi o primeiro a usá-la. Não tenho certeza se a foto ficou boa. O rapaz estava com a mesma cara amarrada que está agora.
- Bem - disse David -, é que... ah... é que...
- Foi muito importante - disse Walter. - Acho que o rapaz está satisfeito e, se for honesto, vai admitir que não doeu nada.
- Eu estar orgulhoso! Filho também vai ficar. Mas ele estar pronto para trabalhar. Sem problema de idade. Sem problema de escola. Lugar dele ser aqui.
- Na Comunidade Global, talvez - disse David, sem expressão na voz. Como ele explicaria isso a Ming? - Mas não em meu departamento.
- Não seja ridículo, David. Acabamos de explicar o comportamento do rapaz. Nós dois sabemos que não existe lugar melhor para ele.
- Então, fique com ele. Eu não quero esse rapaz. Não tenho interesse em tentar conquistar a simpatia dele e treiná-lo ao mesmo tempo.
- Eu tenho intenção de ficar com ele, David. Ele vai fazer seu chefe parecer um gênio. E talvez esse gênio seja eu.
David levantou-se e esticou os braços, com as palmas das mãos para cima.
- Foi muito bom ver vocês novamente.
Chang fez menção de levantar-se, mas seu pai o deteve com a mão e olhou para Walter.
- Sente-se, David - disse Moon. - Vamos deixar você alguns minutos a sós com Chang para que ele conquiste sua simpatia.
- Não há flores ou caixas de bombons no mundo que consigam isso!
- Descubra o que está atormentando o rapaz. Se for apenas o trauma da injeção, ele merece uma nova chance. O que você acha?
- Acho que, se eu não concordar, você vai contar correndo ao potentado.
Moon levantou-se e pediu, com um gesto, que David fizesse o mesmo. Debruçando-se sobre a mesa, ele disse ao ouvido de David:
- Não devemos nos comportar assim diante de estranhos, principalmente de um defensor da CG como o Sr. Wong. Você estava absolutamente certo quando disse que eu ia contar à chefia. Agora você sabe que Carp... Sua Excelência quer esse garoto no quadro de funcionários, portanto vá em frente.
- Ele afastou-se de David e virou-se para o Sr. Wong. -Vamos deixá-los a sós por alguns minutos para que eles se entendam.
Enquanto saía, o Sr. Wong disse ao filho:
- Eu estar orgulhoso de você, de verdade. Mas Chang desviou o olhar.
Assim que a porta foi fechada, Chang levantou-se e dirigiu-se à cadeira do centro, de frente para David, reassumindo sua postura insolente. David sentou-se e pousou o cotovelo na mesa, com a mão no queixo, olhando para Chang, que não conseguia encará-lo.
- As persianas atrás de mim estão abertas? - murmurou o rapaz, ainda sem olhar para David.
- Estão.
- Feche-as.
- Isso seria uma atitude errada, Chang. Se eles estiverem olhando para cá, quero que vejam que não estou gostando de você, o que neste momento é uma verdade.
- Eles ainda estão lá fora?
- Estão.
- Feche as persianas ou me avise quando eles forem embora.
- Eles estão indo embora.
- Está bem. Espere até que eles desapareçam de vista e feche as persianas sem demonstrar uma atitude errada, mas eu não quero me preocupar se outra pessoa vier espiar aqui dentro, como sua secretária.
- Assistente.
- Sei lá. Tiffany, certo?
- Você é um bom observador.
- Eu não perco nada. Sei até que ela não é crente.
- Estou tentando encontrar um jeito de convertê-la. Chang continuava sentado, com os ombros caídos, olhando para baixo.
- Se ela souber alguma coisa sobre você, vai contar aos chefes.
- Claro.
- Você poderia fechar as persianas, por favor?
- Só depois que você me disser o que pretende fazer.
- Então, vou ficar aqui esperando - disse Chang.
David levantou-se e fechou as persianas.
- O que eu poderia fazer, filho? Eu não sabia... Assim que David voltou a sentar-se, Chang endireitou o corpo.
- Não me chame de filho. Detesto isso. - Ele tirou o boné. - Olhe para mim! Veja o que fizeram comigo!
David debruçou-se na mesa para enxergar melhor a marca da lealdade em Chang. Era a primeira vez que ele via essa marca sem ser no desenho.
- Estou vendo uma coisa estranha - ele disse.
- Isso não é novidade para mim.
- Estou dizendo que ela parece diferente para mim e vai parecer diferente para nossos companheiros crentes. Posso ver as duas coisas. O selo de Deus ainda está aí, Chang.
- David não conseguia desgrudar os olhos da pequena tatuagem preta onde se lia o número 30, seguido de uma cicatriz rosada de pouco mais de dois centímetros que se transformaria em uma linha mais escura dentro de alguns dias. - Eu ainda não entendi o significado dos prefixos.
- Você está falando sério?
- Claro.
- Não me diga que você não sabe por que Carpathia tem tanta obsessão pelo número 216.
- Claro que sei - disse David. - Isso já ficou bastante claro. Fácil de entender.
- A lógica é a mesma. Dez diferentes regiões ou subpotentadorias, conforme Carpathia costuma dizer. Nós as chamamos de reinos. Dez diferentes prefixos, todos relacionados a Carpathia. O fato de um deles ser 216 deveria ter sido a primeira pista para você.
- Não me diga, Chang. Vou pensar nisso.
- Já devia ter pensado.
- Você pode me esclarecer. Não sei como eu poderia ter evitado essa marca em sua testa. Sua charada não ajudou em nada. Sua irmã vai ficar furiosa comigo. E, supondo que você esteja tão ansioso para dar o fora daqui quanto os outros quatro crentes e Ming, de que adiantaria eu decifrar a charada?
- Você acredita que meu pai e Moon acharam que fiz uma cena porque estava com medo das agulhas?
- Gostei de saber que você não gritou com toda a força que era crente.
- Bem, o que eu sou agora, Hassid?
- Você não gosta de ser chamado de filho. Não me chame de Hassid.
- Desculpe-me. Como você quer ser chamado?
- Sr. Hassid ou diretor Hassid enquanto estivermos aqui. Depois que partirmos, pode me chamar de Sr. ou Irmão.
- Você fala como se fosse um velho.
- É porque você é muito jovem. E agora, com o selo e a marca, você passou para uma categoria especial.
- Pelas mensagens do Dr. Ben-Judá, temos de escolher entre o selo de Deus e a marca da besta. Eu escolhi e fiquei com os dois. E agora?
David balançou a cabeça de um lado para o outro. Chang ergueu a cabeça e mordeu os lábios.
- Eu sei a resposta, Sr. Hassid. Estou testando você. Será que você não é tão inteligente quanto eles pensam ou tem dormido pouco? Você não sabe o que significam os prefixos, não sabe...
- Eu não sou tão inteligente quanto eles pensam, mas posso surpreender você.
- Não quero desrespeitar você. Não quero mesmo. Mas você já me surpreendeu por demorar tanto tempo para compreender as coisas.
- Venho sofrendo pressões há meses, e a situação piorou nas últimas duas semanas.
- Eu sei. Sinto muito sobre sua... Ela era sua noiva?
- Secretamente. Obrigado.
- Uma coisa dessas deixa qualquer pessoa desarvorada. Eu posso compreender.
- Quer dizer que você ficou furioso com a marca, mas já encontrou uma explicação?
Chang endireitou o corpo e cruzou as pernas.
- Você conhece o Dr. Ben-Judá pessoalmente?
- Pessoalmente não, mas trabalhamos juntos.
- Tem o número do telefone dele?
- Claro.
- Você poderia ligar para ele para confirmar ou me dar o número para eu conversar com ele...
- É melhor não.
- Tudo bem. Então, ligue para ele e veja se estou certo. Sou um crente. Nada mudou. A Bíblia diz que nada pode nos separar do amor de Cristo, e isso deve incluir a nossa própria pessoa. E Deus diz que estamos protegidos na palma da mão dele e que ninguém pode nos tirar dali. Eu não escolhi a marca. Eles me forçaram. Só estou enxergando vantagens.
- Então, qual o motivo de toda aquela encenação?
- Eu não entendi tudo imediatamente. É claro que não queria a marca. Estava tentando encontrar um jeito de fugir de lá quando eles me pegaram à força. Eu não gostei, mas o que está feito está feito, e um cara esperto como você deve ser capaz de enxergar o outro lado disso.
- Conte-me qual é, ó grande intelecto.
- Você está zombando de mim. Esqueça. Eu não ia lhe contar mesmo.
David levantou-se, caminhou até a frente da mesa e sentou-se nela, com os joelhos bem perto dos de Chang.
- Muito bem, preste atenção - ele disse. - É claro que você é um garoto prodígio, tem uma cabeça acima da média, essas coisas. Ouvi dizer que você decorou a Bíblia para não arriscar-se a ser pego com uma. Conseguiu tudo isso lendo a Bíblia pela Internet?
Chang assentiu com a cabeça.
David prosseguiu.
- Não estou preocupado em ser mais esperto do que você. Bem, isso acontece agora, porque eu também era como você quando tinha sua idade. Gostava de humilhar as pessoas mais velhas por ter um cérebro privilegiado, mas tanto eu como elas sabíamos quem era o crânio. Você quer que eu me ajoelhe e beije seus pés? Ótimo. Você é o melhor. É mais esperto do que eu. Comparado a você, sou um simples funcionário assalariado, um trabalhador braçal. Era isso o que você queria ouvir? Não me importo se você estiver alguns passos na minha frente, não me importo mesmo. O que me aborrece é você achar que está me aborrecendo, porque você ficaria aborrecido se estivesse em meu lugar. Aí, eu fico na defensiva, tentando provar que não estou aborrecido, mas o efeito é contrário. Você está entendendo?
Chang sorriu.
- Sim, estou.
- Então, me explique e pare de tentar piorar a situação. O que você vai fazer com essa tal "vantagem", conforme você disse? Ser bileall Não encontrei uma palavra melhor. E por que você acha que ficando zangado comigo vai melhorar as coisas?
- Boa pergunta. Posso explicar desde o começo?
David assentiu com a cabeça.
- Antes de tudo, gostei da palavra. Bileal. É assim que a coisa parece ser. A minha testa vai chamar a atenção de nossos irmãos crentes. Eles vão imaginar que o selo é falso, porque ninguém é capaz de falsificar a marca da besta. Eles vão ficar um pouco confusos. Se eu estivesse no lugar deles, não confiaria em mim.
- Mas as pessoas leais a Carpathia - prosseguiu Chang -, não podem ver o selo de Deus e vão acreditar em mim. Estou livre para viver no meio delas... comprar e vender, ir e vir, e até trabalhar aqui sem levantar suspeitas e sem nenhum risco, se eu for cuidadoso.
- Você é esperto, Chang. Mas a última coisa que você disse é uma tolice de adolescente.
Chang refletiu por alguns instantes e concordou com um movimento de cabeça.
- Talvez. Ainda bem que tenho um sujeito mais velho perto de mim para impedir que eu seja impetuoso ou impulsivo demais.
- Estou começando a me sentir um ancião.
- Você é, diretor. Pense que vai ter apenas mais alguns anos para viver aqui na terra.
- É uma coisa curiosa.
- A pergunta é a seguinte: como você e seus três amigos vão fazer para sair daqui e como vou conseguir ficar com o seu lugar?
- Você não vai ficar com o meu lugar.
- Eu poderia.
- Talvez, mas Carpathia não é tão tolo a ponto de correr esse risco. Você precisa abrir caminho por conta própria, e eu tenho uma idéia de quem vai ficar em meu lugar. Um dia, você vai trabalhar para ele.
- Isso não vai ser nada bom, se você estiver certo.
- Eu estou certo. Você é muito inteligente, tem um pouco de bom senso. Eles não vão pôr um adolescente sentado na cadeira de um diretor. Não vão mesmo. Pense nisso. Sou o diretor mais jovem daqui. O seguinte a mim em idade é oito anos mais velho do que eu.
- Parabéns.
- Não se trata disso. Se você trabalhar aqui e for um espião melhor do que eu, porque a marca vai-lhe dar uma credibilidade inquestionável, terá de ser estratégico. Aproveite suas chances. Faça o que puder.
- Fazer o que, em sua opinião?
- Eu posso lhe ensinar tudo antes de partir.
Um sorriso brotou nos lábios de Chang.
- O que é? - disse David. - Sei que você está morrendo de vontade de dizer alguma coisa.
- Só ia dizer que não vai levar muito tempo para você me ensinar tudo o que sabe. É brincadeira. Continue.
- Você é um verdadeiro comediante. Bem, por mais limitado que eu seja, você vai ficar surpreso quando souber tudo o que fiz e instalei aqui. Minha maior preocupação é que meu acesso por controle remoto só vai funcionar enquanto eles não mudarem o sistema atual.
- Você não precisa mais se preocupar com isso - disse Chang.
- Por quê?
- Eu estarei aqui.
- Mas você não vai ser diretor. Eles não vão lhe contar se o sistema vai continuar o mesmo ou mudar.
- Eu posso adaptar ao novo sistema o que você já instalou no antigo e vice-versa.
- Talvez você possa.
- Eu sei que posso.
David pôs a mão na boca e pensou. Por que ele próprio não enxergou essas possibilidades?
- Parte de sua confiança é interessante. A outra é intrigante.
- A maior parte é encenação.
- Sério?
- Claro. Tudo o que fiz aqui não passou de uma encenação. Irritar você até que foi divertido. Só estou mostrando como devo fazer para me adaptar aqui. Ser um pouco sarcástico, um pouco amigável. Provocar as pessoas. Você acha que alguém vai desconfiar de que sou judaísta?
- Eu gostaria de saber o que se passa dentro de você, Chang.
- Como assim?
- Espiritualmente. Sua irmã é uma agente penitenciária muito rigorosa.
- Ela é capaz de me dar uns tapas no traseiro.
- Mas ela tem um brilho de espiritualidade, de humildade. Tem as qualidades de uma cristã.
- Não com as prisioneiras.
- Acho que não. E quanto a você, Chang? Você sabe quem é e quem não é? Entende a profundidade de suas más ações e entende que Deus o salvou quando você estava morto por causa do pecado?
Chang assentiu com a cabeça, sem tirar os olhos de David.
- Eu poderia fazer uma análise mais profunda a meu respeito, mas minha resposta é sim. E agradeço por você ter-me lembrado.
- Tudo bem. Eu tenho um plano, Chang.
- Isso é muito bom. Eu também tenho. Mas tive mais tempo para pensar no meu, por isso diga antes qual é o seu.
- Vou dizer antes porque sou mais velho, ocupo o cargo de diretor e estou entrevistando você. E você ainda não foi contratado.
- Vou contar o meu depois. Ele é bem melhor, mas vá em frente... É brincadeira!
- Acho que você deve manter uma postura firme diante das pessoas daqui e de seu pai, mas seja mais flexível com seu pai enquanto ele estiver aqui. Ele precisa acreditar que você está querendo ficar. Finja que não gosta de mim.
- Isso não vai ser difícil.
- Tudo bem!
- Estou ouvindo.
- Eu sei que está. Chegue à conclusão, com relutância, de que quer trabalhar aqui e de que este é o departamento mais lógico para você trabalhar, embora não goste muito. Não demonstre muita ansiedade. Todos estão entusiasmados com você, por isso deixe que eles continuem assim. Dificulte um pouco as coisas. Quanto a mim, vou manter a mesma postura que tive diante de Moon e vou indicar você para o sujeito que vai me substituir. Depois do expediente, você e eu vamos conversar, por telefone ou e-mail, e eu vou lhe contar em que pé as coisas estão. Durante o dia, você trabalha para ele. Não faça cara feia, senão ele vai passar você para trás. Você também vai ter de se controlar para não virar uma estrela de primeira grandeza. Embora ele confie em você, não precisa ficar sempre se lembrando de você. Dessa maneira, você vai ser muito mais útil à nossa causa. Faz sentido o que eu disse?
- Você pensou nisso tudo agora?
- Não comece.
- Estou falando sério. Meus planos eram exatamente esses. E tudo o que desejo é usar todos os dons que Deus me deu, conforme você disse, em favor da causa. Posso ser membro do Comando Tribulação? Ou preciso morar na casa secreta para isso?
- Eles me consideram membro. Claro, este lugar é o centro nervoso, e eles dependem do que fazemos aqui para abrir caminho para que seu pessoal possa ir de um lado para o outro e infiltrar-se nos meandros da CG.
- Acho que logo eles vão me adotar.
- Eu também.
- Posso apertar sua mão enquanto não há ninguém olhando? - perguntou Chang. David aproximou-se, e ele apertou-lhe a mão com força. - Não me leve muito a sério. Eu gosto de mexer com a cabeça das pessoas.
- Acho que poucos podem competir com você - disse David.
- Você pode.
- Vou liberar você e não vou fazer nem dizer nada. Eles que perguntem o que decidi. Caso insistam, vou dizer, com relutância, que tenho um lugar para você. E nós dois vamos manter distância um do outro.
- Assim, quando você fugir, eles não vão desconfiar de mim.
- Mais ou menos. Mas...
- Desculpe-me, Sr. Hassid, mas você pensou em desaparecer sem que eles imaginem que está fugindo da marca?
David balançou a cabeça negativamente.
- Podemos conversar por mais alguns minutos, Chang?

VINTE E UM

Uma semana antes de Nicolae Carpathia, o ressurreto, anunciar aos quatro cantos do mundo seu retorno triunfal a Jerusalém, Rayford Steele convocou uma reunião do Comando Tribulação para as oito horas no salão perto dos elevadores do Edifício Strong.
Sofrendo por causa da perda do pastor grego, que conhecera brevemente, e da querida esposa de Laslos, Rayford estava nervoso e lutava para não demonstrar seus sentimentos. Deus lhe devolvera a liderança do grupo, e ele estava determinado a cumprir seu dever. Enquanto cada um tomava seu lugar, Rayford releu suas anotações escritas no seu bloco amarelado e gasto e limpou a garganta. Ele não queria deixar transparecer nenhuma emoção, temendo prejudicar sua posição de líder perante o grupo. Mas não conseguiu controlar a voz trêmula ao proferir as primeiras palavras.
Havia 11 pessoas na casa secreta, incluindo Rayford, Buck e Chloe - os três membros fundadores do Comando Tribulação - e Kenny Bruce. Os outros, pela ordem de chegada, eram Tsion, Leah, Albie, Chaim, Zeke, Hattie e Ming.
- É importante - disse Rayford - que sempre nos lembremos dos demais membros de nossa família. Na Grécia, sobrou apenas Laslos. Em Nova Babilônia, temos David, Mac, Abdullah, Hannah Palemoon e Chang Wong. Talvez, mais cedo do que imaginamos, estaremos todos juntos. Enquanto esse dia não chegar, sou grato a Deus por cada pessoa deste grupo.
Rayford pediu a Tsion que orasse, e todos no recinto levantaram-se espontaneamente ou ajoelharam-se.
"Senhor Deus, nosso Pai, vimos à tua presença sentindo-nos fracos, fragilizados e profundamente tristes. Muitos aqui sofreram grandes perdas, mas somos gratos a ti por tua graça e misericórdia. Tu és um Deus de amor e de bondade. Oramos em favor de cada membro de nossa família e principalmente pelos planos que tens para nós nos próximos sete dias.
"Estamos confortados por saber que tu zelas por nossos queridos muito mais do que nós. Aguardamos ansiosamente o dia em que te veremos face a face e suplicamos que nos concedas a alegria de levar mais almas a ti. Em nome de Jesus Cristo. Amém."
Assim que todos voltaram a sentar-se, Rayford retomou a palavra:
- Cada um de nós tem uma tarefa a cumprir. As seguintes pessoas permanecerão aqui durante a missão à qual demos o nome de Operação Águia: Chloe e Kenny, Ming, Zeke e Tsion. Tenho planos para Ming, mas no momento ela se encontra vulnerável por ter-se ausentado sem permissão do sistema penal da CG. Podemos mudar as feições dela, tarefa que será um verdadeiro teste para Zeke. Por ora, ele já forjou novas identidades, aparências, nomes e documentos para todos os que necessitarem. Albie e eu voaremos amanhã com o caça e o Gulfstream para Mizpe Ramon, no Neguev, para supervisionar o término de uma pista de decolagem por controle remoto e um centro de reabastecimento para aeronaves. Buck e Chaim partirão, disfarçados e sob nomes falsos, em um vôo comercial para Jerusalém. Chaim ficará hospedado no reconstruído Hotel Rei David, aguardando o confronto que terá com Carpathia quando ele chegar a Jerusalém. Buck seguirá para Tel-Aviv e chegará a Jerusalém antes de Carpathia. Hattie e Leah seguirão em vôo comercial para Tel-Aviv, onde coordenarão os veículos e motoristas voluntários que ajudarão os crentes a fugirem de Jerusalém para os aviões no Neguev quando isso se tornar necessário. Elas também acompanharão a chegada de Carpathia, e, da mesma forma que Buck, Hattie se misturará à multidão para observar o show aéreo que nossos irmãos e irmã de Nova Babilônia planejam realizar para o potentado, além de acompanhar a comitiva de Carpathia a Jerusalém. Leah usará um veículo alugado para pegar os quatro de Nova Babilônia no antigo Aeroporto Internacional Rainha Alia, na Jordânia, hoje conhecido como Aeroporto Internacional da Ressurreição. Ela levará o grupo de Nova Babilônia para o local de decolagem, e eles voarão para os Estados Unidos com Albie e comigo. Alguma pergunta?
Chaim levantou a mão.
- Tenho milhares de perguntas, mas não seria o momento de meu professor revelar o nome da cidade de refúgio, em respeito a seu aluno mais velho?
Tsion sorriu e olhou para Rayford.
- Em breve, todos saberão para onde os santos voarão depois de terem chegado à pista no Neguev. Sim, Chaim, você se empenhou nos estudos e merece saber para onde levará o povo. É uma cidade que você conheceu a vida toda. Sem dúvida, você já ouviu muitas histórias a respeito dela, e eu não ficaria surpreso se soubesse que você já a visitou como turista. É uma das cidades antigas mais famosas do Oriente Médio, conhecida por alguns como Cidade da Rosa Vermelha. Os olhos de Chaim brilharam.
- Petra! Na antiga terra de Edom.
- Exatamente - disse Tsion.
- Você devia ter-me contado antes. Será difícil entrar lá, muito mais ainda tendo um exército atrás de nós.
- Chaim, Deus tornará impossível a entrada deles lá. Ele planejou obstáculos especiais, semelhantes aos que foram usados na época da saída do povo do Egito. Diga-me uma coisa, você já esteve em Petra?
- Duas vezes, quando era jovem. Nunca vou me esquecer. Oh, Tsion, foi uma tacada de gênio.
- Tinha de ser. Concordo com numerosos estudiosos quando eles afirmam que Deus planejou esse propósito para Petra desde o início.


A tarefa mais difícil para David era planejar a fuga dos quatro crentes sem poder conversar pessoalmente com Hannah. Uma reunião com Mac e Abdullah não atrairia a atenção de ninguém, uma vez que os dois sempre se reportavam a ele.
Apesar de ser forçado a manter uma atitude circunspecta e discreta, David conseguiu passar alguns instantes com Chang sem levantar suspeitas. O que ele realmente desejava era reunir-se com os quatro para planejarem cuidadosamente todo o esquema, o que só foi possível por meio de telefonemas e e-mails sigilosos.
Chang provou ser mais competente do que David esperava. Embora fosse jovem e impetuoso, ele era mais do que um gênio em informática. Também era um bom ator. Empregou toda a sua habilidade no departamento e impressionou o superior imediato com sua diligência.
Quando seus pais retornaram à China, ele foi aquinhoado com um apartamento permanente no palácio. Chang e David projetaram e instalaram um computador no qual incluíram um firewall (programa que recusa mensagens indesejáveis) imbatível, com capacidade para fazer o mesmo que o computador de David fazia.
O Comando Tribulação teria acesso, de qualquer parte do mundo, a todos os recursos que David instalara no sistema do palácio. Porém, o mais importante de tudo era que Chang acompanharia a fuga e ficaria em contato permanente com os computadores da casa secreta em Chicago. Todos saberiam onde cada membro do grupo estava e qual era o andamento da missão.
As sugestões práticas de Hannah foram valiosas. Ela aconselhou que nenhum dos quatro deveria levar uma bagagem muito grande.
- Resistam à tentação - ela disse - de levar tudo o que necessitam para o resto da vida.
Não deveria haver nenhum vestígio de que eles jamais retornariam a seus aposentos ou escritórios. Apesar de ter muitos computadores, David teria justificativa para levar apenas seu laptop.
Os quatro planejaram deixar um pouco de dinheiro em seus respectivos armários, coisas por fazer, quadros nas paredes, objetos pessoais espalhados. Eles estavam determinados a não levar nada que deveriam deixar caso fossem retornar após alguns dias. Talvez a lâmpada da cozinha acesa, o rádio ligado, roupas e sapatos à mostra, listas de compras, sobras de comida na geladeira, cartas não abertas.
Mac marcou uma consulta médica para dois dias depois de sua suposta volta. Abdullah levou dois uniformes à lavanderia do palácio para serem apanhados na tarde em que ele supostamente retornaria. David agendou reuniões rotineiras e encontros com seus principais assessores para a semana inteira após sua volta. Enviou memorandos aos colegas mencionando assuntos que gostaria de discutir "logo após conseguirmos encaixar uma reunião em nossa agenda maluca".
O comunicado da promoção de Walter Moon a Supremo Comandante foi feito sem nenhuma pompa e quase passou despercebido. David, que se reportava oficialmente a Moon pela primeira vez, perguntou casualmente se os planos dele relacionados a Israel seriam alterados em razão da mudança de cargos ocorrida na alta cúpula.
- E que planos são esses, diretor Hassid?
- Mac e Abdullah estão escalados para pilotar o Fênix 216 a Tel-Aviv, onde o potentado Carpathia e seus convidados VIPs vão inaugurar o primeiro centro de aplicação da marca da lealdade aberto ao público. Entendemos que ele vai passar os dois primeiros dias em reunião lá.
- Correto. Ele e o Reverendo Fortunato terão outras reuniões com os subpotentados e seus representantes religiosos.
- Mac e Abdullah voltam a Nova Babilônia e retornam a Tel-Aviv em um dos Quasi Two, levando com eles a jovem dos Serviços Médicos que tem experiência com o sistema de injetores de biochips.
- Posso dizer desde já, David, que eu não gostaria de ver esses planos mudados. Sua Excelência sente orgulho daquele avião e adoraria exibi-lo ao povo.
- Achamos que Mac poderia fazer um pequeno show aéreo para que o povo saiba o que aquela lindeza tem condições de fazer.
- O potentado vai adorar essa idéia - disse Walter. - Eu também, desde que o senhor ache que não seria muita extravagância eu ir junto.
- Absolutamente. Você pode ir.
- Mac é capaz de fazer de tudo com aquele avião. Ele e seu co-piloto podem testar o avião com a jovem e eu a bordo, mais o equipamento para a aplicação da marca. Depois de aterrissar, Mac pode apresentar a enfermeira e arrumar o equipamento, enquanto o povo se organiza em fila.
- Perfeito. Sua Excelência vai fazer aquele local funcionar, e nós seguimos para Israel, onde ele tem planos de fazer alguma coisa.
No dia seguinte, Mac e Abdullah levantaram-se antes do amanhecer. David supervisionou o carregamento do Fênix 216, no qual o potentado e sua comitiva voariam para Tel-Aviv. A tarefa mais difícil para o pessoal responsável pela carga, que recentemente havia perdido sua chefe, foi colocar no avião aquele porco gigantesco trazido de Bagdá na noite anterior.
- Não existem porcos na Terra Santa? - o supremo comandante Moon quis saber.
Um jovem russo designado chefe interino do serviço de carga, com a anuência de David, respondeu:
- O falecido Sr. Hickman, que sua alma descanse em paz, insistiu que queria o porco maior e mais gordo, e o senhor está olhando para ele. Ou para ela.
David gostou do russo porque ele obedecia as ordens à risca, e essa obediência foi posta em prática mais tarde naquele mesmo dia quando Hannah foi enviada ao hangar para autorizar o carregamento no Quasi Two. Pelo fato de ter sido designada para trabalhar com David em Israel, ela podia conversar com ele em seu escritório sem levantar suspeitas.
- Funcionou como um passe de mágica - ela disse. - Veja isto.
Hannah entregou a David, por cima da mesa, uma cópia do registro de carga emitido pelo departamento de expedição. No final, havia uma Nota Especial manuscrita:
Tendo acompanhado os esforços infrutíferos do chefe interino de cargas, que tentou convencer a Srta. Palemoon de que a aprovação deveria vir diretamente do diretor Hassid, comunicamos que este avião está, na opinião do referido chefe, com uma carga de no mínimo 20% a mais de sua capacidade. Se este conhecimento de embarque não incluir a assinatura do diretor Hassid, o pessoal encarregado da carga não poderá ser responsabilizado pela segurança desta aeronave.
- Gostei - disse David, rabiscando sua assinatura. - Depois que despencarmos, a investigação vai começar e terminar em nosso amigo russo. Ele vai ser o triste herói que nos avisou, e nós não lhe demos atenção. Provavelmente, será promovido à posição que deseja ocupar, e o desaparecimento de todos nós, mais os milhões de Nicks provenientes do avião e da carga, será explicado como erro humano. Meu.
- Estou muito orgulhosa de você - disse Hannah, apertando a mão de David para cumprimentá-lo. - Quase morri de emoção neste meu primeiro trabalho para você. -Ela pareceu assustar-se pela má escolha da palavra, em razão da perda recente sofrida por David.
- Não se preocupe, Hannah - ele disse. - Eu também falo o tempo todo de morte, como se eu precisasse me lembrar disso.
Ela deu um longo suspiro.
- Foi um plano muito engenhoso. Posso dizer isso porque minha participação foi mínima.
- A minha também - disse David. - Se tudo der certo, o mérito vai ser de Mac e Abdullah. Mac admitiu para mim, e talvez até para o próprio Smitty, que as melhores idéias partiram de Abdullah.
Na manhã do terceiro dia, Mac e Abdullah estavam fazendo a verificação preliminar do vôo, enquanto David e Hannah subiam a bordo do Quasi. O russo andava de um lado para o outro e balançava a cabeça negativamente, tentando convencer os pilotos. Mac lhe disse:
- O chefe é ele. A gente faz o que pode, mas sempre lembrando que o chefe é quem manda.
- Diga isso a si mesmo quando o avião estiver despencando.
- Se eu soubesse que se tratava de uma questão de vida ou morte, teria enfrentado o chefe.
- Estou com a consciência limpa - disse o russo. - Quem vai morrer é você.
Hannah havia exagerado ao informar o peso de cada peça do equipamento colocado no avião. A carga era grande e volumosa e mantinha as cordas esticadas ao máximo, mas o centro de gravidade estava perfeito e permitiria a Mac pilotar a aeronave sem prejudicá-la.
A única carga mais pesada do que parecia eram os pilotos e os passageiros. Hannah os advertira de que as coisas que porventura subissem à superfície depois do acidente deveriam ser apenas malas com roupas, sapatos, objetos pessoais e artigos de higiene. Cada um deles levou uma mala extra para deixar evidências na água. A outra continha artigos de primeira necessidade.
- Observem isso - disse Mac ao manobrar o elegante jato, saindo do hangar em direção à pista. Quando fez a primeira curva, ele aumentou a velocidade para forçar o avião a inclinar-se para um dos lados. - Deve ser o suficiente para fazer o russo sacudir a cabeça.
Enquanto Mac aguardava autorização para decolar, alguém do setor de operações perguntou-lhe se ele estava ciente do excesso de peso informado pelo chefe interino de cargas.
- Não é novidade para mim, torre - disse Mac. - Vamos correr o risco.
- Você sabe como abortar a decolagem se não conseguir acelerar a aeronave?
- Positivo.
Mac forçou o avião a balançar a cauda enquanto ganhava velocidade na pista e ouviu mais uma advertência da torre.
- Advertência anotada - disse Mac.
Mac pegou a rota de Tel-Aviv, mas quando estava no meio do caminho entre Nova Babilônia e o Aeroporto Internacional da Ressurreição, na Jordânia, ele informou a ambas as torres que faria um pouso na Jordânia como medida de precaução.
- Para maior segurança, conseguimos que parte da carga seja levada de carro a Tel-Aviv - disse Mac.
Leah, tendo em mãos uma ordem impressa emitida por David, chegou sem problemas à pista dirigindo uma van discreta. Ela a estacionou ao lado do depósito de carga, onde os pilotos e os passageiros ajudaram a carregar duas guilhotinas e metade das caixas de injetores na van. Mac ajustou os freios e os pilotos automáticos, e os quatro entraram agachados na van deitando-se no chão. Leah dirigiu lentamente a van entre os hangares para que Mac pudesse enxergar o avião pela janela.
Ele comunicou-se com a torre por meio de um rádio portátil com controle remoto para taxiar a aeronave e decolar. Quando o Quasi já estava desaparecendo de vista, Mac comunicou-se com a torre por meio de uma transmissão intencionalmente distorcida, dizendo que acreditava estar perdendo a potência do rádio. Perguntou se poderia informar à torre do Aeroporto Ben Gurion que estava no horário, que realizaria o show aéreo e que agradeceria se eles pudessem autorizar o pouso imediatamente após o espetáculo. Ele também deu a entender que gostaria de ter reduzido um pouco mais a carga, mas estava confiante de que o resto da viagem transcorreria normalmente.
- Aconselhamos desistir do show - respondeu a torre do Aeroporto Internacional da Ressurreição.
- Por favor, repita.
- Aconselhamos desistir do show aéreo e fazer o pouso convencional.
- Não estou ouvindo, torre.
Eles repetiram o conselho, mas Mac desligou o rádio. Leah saiu do aeroporto e dirigiu-se para Mizpe Ramon conduzindo as quatro falsas vítimas.
- Devemos cruzar os dedos - disse Mac. - Já vi aqueles Quasis fazerem coisas impressionantes comandados apenas pelo sistema de computador de bordo. Mas este vôo é muito longo e pedi que o avião fizesse coisas interessantes para evitar turbulência.
- Cruzar os dedos? - disse Hannah. - Só Deus pode fazer tudo dar certo. Você é o especialista no assunto, capitão McCullum, mas, se aquele avião cair em algum outro lugar que não seja no fundo do Mediterrâneo, não vai demorar muito para que alguém descubra que não havia ninguém a bordo.


Buck e Chaim chegaram a Israel sem incidentes no dia anterior e hospedaram-se no Hotel Rei David. Chaim, com o ar aborrecido de sempre, escondeu dois comentários em sua maleta. Buck achou que, vestido com aqueles trajes, Chaim estava parecido com um monge idoso, mas se perguntava, no íntimo, se o israelense teria condições de dirigir e prender a atenção de uma platéia.
Na primeira vez que se encontrou com o Dr. Rosenzweig para entrevistá-lo como o Homem do Ano eleito pelo Semanário Global, Buck ficou impressionado com a fala mansa daquele homem. Apesar de ter grande domínio da língua inglesa, ele falava com um acentuado sotaque israelense. Mas sua capacidade científica, seu amor pela vida e seu entusiasmo originavam-se de um modo de falar firme e característico. Será que isso bastaria para lhe dar a autoridade, o comando e o respeito de que ele necessitava para atuar como um Moisés da atualidade? Será que aquele homem pequenino, com seu jeito tranqüilo, seria capaz de conduzir o que restou do povo de Israel e os santos da tribulação para a Terra Prometida?
Ele teria de desafiar o dirigente do mundo, afrontar os exércitos do anticristo, expor-se na linha de frente diante do próprio Satanás. Sim, Chaim tivera a coragem de levar a efeito o plano de assassinar Carpathia, mas havia admitido que, na época, não sabia com quem estava lidando.
Buck guardou para si seus temores e continuou a orar. Já se havia metido em tantas encrencas naquela cidade que a simples idéia de assistir de camarote a essa pequena parte da profecia parecia-lhe a coisa mais natural do mundo.
A impressão era a de que a nação inteira dirigira-se ao Aeroporto Ben Gurion para dar as boas-vindas ao potentado e aguardava com grande expectativa seu discurso para o dia seguinte. A inauguração do primeiro centro de aplicação da marca aberto ao público era um grande acontecimento, mas ver o dirigente ressurreto de todas as nações retornar à cidade onde foi morto... bem, era com isso que o país estava entusiasmado.
Boatos espalhavam-se de que Sua Excelência faria sua suprema e derradeira provocação aos obstinados judaístas usando um dos locais tradicionais mais sagrados da cidade, a Via Dolorosa. Ninguém podia imaginar a cena. Haveria oposição? Protestos? A maioria do povo receberia de braços abertos o seu ídolo e admiraria sua coragem. Poderia Carpathia tomar o lugar do objeto de adoração de tantos crentes, prestando homenagem a Jesus com humildade e categoria, àquele que muitos agora consideravam seu antecessor?
E quanto a seu plano de fazer um pronunciamento ao mundo no interior do templo reconstruído de Jerusalém... correndo o risco de ofender dois grupos principais no mesmo dia? Não era segredo que os cristãos, os judeus messiânicos e os judeus ortodoxos eram os últimos entraves ao Carpathianismo. Mas o próprio Carpathia e o Reverendo Fortunato não haviam provado a supremacia de Nicolae por meio de sua ressurreição e milagres? Uma coisa era ler a respeito de mitos e lendas e talvez relatos de pessoas que testemunharam uma ressurreição séculos atrás. Mas ter visto com os próprios olhos uma pessoa voltar a viver após sua morte ter sido comprovada e ver seu homem de confiança imbuído de poderes sobrenaturais... bem, essa era a religião da atualidade.
A cobertura feita por Buck para A Verdade de alguns incidentes mais dramáticos do dia foi lida por um grande número de judaístas e carpathianistas. Ele havia conseguido provocar uma reação no mundo inteiro ao relatar os primeiros casos de pessoas submetidas aos instrumentos de imposição à lealdade. Atribuiu o relato a testemunhas oculares sem identificar-se como uma delas, portanto ninguém tinha pistas de onde partira a informação. Ele esperava que até mesmo os simpatizantes de Carpathia ficassem chocados com aquela falta de humanidade.
Parecia que o mundo inteiro dirigia-se à Terra Santa. Tsion insistira com os crentes para que estivessem presentes. Chloe, por meio da Cooperativa Internacional de Mercadorias, havia recrutado pilotos, aviões, motoristas e veículos. Nesse ínterim, Fortunato reuniu carpathianistas de todo o planeta para comemorar o corajoso retorno de seu ídolo ao local em que foi assassinado.
Os líderes cívicos de Jerusalém haviam conseguido dinheiro e pessoal para dar um novo brilho à cidade. Faixas, cartazes e jardins surgiram praticamente do dia para a noite. Embora 10% da cidade destruída pelo recente terremoto continuassem em ruínas, os olhos dos visitantes eram direcionados para a parte nova. Se a pessoa não prestasse muita atenção, diria que o lugar voltara a ser o mesmo que abrigara a Festa de Gala.
Vendedores ambulantes e quiosques ofereciam, por uma bagatela, ramos de palmeira, perfeitos para serem agitados ou colocados no caminho por onde o potentado passaria. Podia-se comprar chapéus, sandálias, óculos de sol, broches estampando a imagem de Nicolae e outras coisas do gênero.
O trânsito de Tel-Aviv estava congestionado, com inúmeros veículos e pessoas dirigindo-se à praia e ao grande anfiteatro improvisado que abrigaria o equipamento de aplicação da marca. Tudo estava pronto, inclusive as áreas cobertas para proteger o povo do Sol causticante. Só faltavam chegar os injetores, os instrumentos de imposição e o pessoal para trabalhar no local. O povo já estava em fila, ansioso por prometer lealdade a Nicolae. Se pudesse, Buck gostaria de ser Moisés ou Eli, ou até mesmo Chaim. Quando estacionou seu carro alugado a uma distância de vários quarteirões do centro, Buck teve vontade de deixar a razão de lado e gritar ao povo desinformado:
- Não façam isso! Vocês estão vendendo a alma ao diabo! Ele olhou para seu relógio e apressou o passo. Queria ter uma boa visão do show aéreo, porque sabia como seria o tal show. Enquanto se dirigia à praia, ele ligou para Rayford.
- Quatro minutos para chegar ao lugar ideal para assistir - ele disse. - Calculei o tempo necessário e devo estar na posição perfeita.
- Lembre-se de ver todos os detalhes.
- Não me ofenda, pai. Como eu poderia me esquecer disso? Eles estão no horário?
- A caminho. A operação no aeroporto foi um sucesso. Estão preocupados com o sistema de gerenciamento do vôo, porque não há possibilidade de monitorá-lo pessoalmente. Um erro pode matar pessoas inocentes.
- Eu seria uma delas.
- Também acho. Mac comunicou-se por telefone com o pessoal de Moon informando quando deverá chegar e que está com problemas no rádio.
- Como vão as coisas na central Águia?
- Impressionantes. Esses anônimos virtuais continuam se apresentando para trabalhar, sem nenhuma supervisão. Eles querem simplesmente cooperar, ir em frente, manter o trabalho em andamento. Eles conseguiram mais coisas do que Albie e eu imaginávamos, e estamos adiantados na programação. Dezenas de helicópteros já chegaram aqui para levar a Petra os enfermos e inválidos que não conseguirem atravessar o desfiladeiro. Até agora, nossa presença não foi detectada, mas isso não vai durar muito.
Zeke havia feito um disfarce excelente para Buck, que se admirava todas as vezes que ele conseguia ver sua imagem em um espelho ou vidro transparente. Quando parou ao lado de uma barraca, ele se sentia tão invisível quanto no dia em que ficou debaixo do arbusto perto do local onde Moisés e Eli ressuscitaram. O povo parecia afluir de todos os lugares, aguardando com ansiedade a aparição ao vivo de Nicolae Carpathia. E ele não desapontou seus seguidores.
Meia dúzia de carros oficiais abertos chegou ao local com grande estardalhaço. A elite mais poderosa do mundo desceu e caminhou rapidamente à plataforma para receber aplausos calorosos. Carpathia estava com ar triunfante, agradecendo humildemente a cada pessoa por ter comparecido e por ter acolhido a todos - ele, o Reverendo Fortunato, os dez subpotentados e seus respectivos representantes do Carpathianismo - com tanto carinho. Falava sem parar de seus esforços para melhorar as condições do mundo, de sua energia renovada "depois de dormir, por três dias, o melhor sono que tive na vida" e de suas expectativas sobre o tempo que passaria em Tel-Aviv e Jerusalém.
- E agora - ele disse com sincera satisfação -, antes da maravilhosa surpresa que tenho para vocês, apresento-lhes o novo chefe de nossa religião perfeita, o Reverendíssimo Leon Fortunato.
Leon ajoelhou-se imediatamente, segurou a mão direita de Nicolae entre as suas e a beijou. Quando chegou ao púlpito, ele disse:
- Permitam-me ensinar-lhes um novo hino que homenageia o único que morreu por nós e agora vive para nós.
Com uma surpreendente voz de barítono bem afinada, Leon cantou uma versão comovente e sincera de "Salve Carpathia, Nosso Rei e Senhor Ressurreto".
Buck estremeceu. Sentiu o conhecido comichão de expectativa quando avistou o Quasi a distância e ouviu o zumbido de seus motores. A multidão aprendeu rapidamente a melodia simples e vibrante, e, depois que todos a cantaram pela segunda vez, Carpathia elogiou a tecnologia evidente do novo Quasi Two.
- Ele está trazendo o equipamento necessário para este centro e fará uma rápida exibição de sua capacidade, habilmente demonstrada pelo piloto de meu Fênix 216, o capitão Mac McCullum. Divirtam-se.
O povo vibrou de alegria quando o majestoso jato apareceu e sobrevoou a cidade zunindo em direção à praia. Buck ficou surpreso ao ver como ele voava baixo, mas os gritos de emoção do povo deixavam claro que achavam que isso fazia parte do show. Buck preocupou-se imaginando o que aconteceria se o programa do computador falhasse e causasse um grave acidente.
O avião subia e descia sobrevoando a praia e o Mediterrâneo, cujas águas brilhavam sob o reflexo da luz do Sol. De repente, ele ganhou velocidade, inclinou-se para um dos lados, equilibrou-se e inclinou-se para o outro lado, antes de voar extremamente baixo novamente. Para Buck, o jato estava a uns três metros acima da água e ele nem podia acreditar que Mac tivesse feito uma programação com uma margem de erro tão pequena.
Depois de uma manobra rápida e baixa, o jato brincalhão sobrevoou as cabeças dos dignitários, que tentaram manter a serenidade, olhando de esguelha para o céu, com as gravatas voando ao vento, sem deixar transparecer que estavam apreensivos. O Quasi fez outra manobra em direção ao Mediterrâneo voando paralelo à água por uns 400 metros e, depois, embicando para cima.
O povo murmurou quando o avião subiu como um míssil. Todos deviam estar imaginando qual seria a sensação das pessoas a bordo. Buck também teria pensado isso, mas sabia que o Quasi Two estava vazio. Qualquer espectador esperto perceberia que o avião apresentava problemas. Ao chegar ao ponto mais alto, a aeronave reduziu a velocidade e embicou em direção à água com a barriga de frente para a praia.
Eufóricas, as pessoas conversavam e riam imaginando a arrancada que nivelaria o avião no último minuto. Quando aparentemente não havia mais tempo, todos acharam que ele subiria na vertical e retornaria ao Aeroporto Ben Gurion para receber mais aplausos.
Só que o Quasi Two não deu a arrancada. O avião não estava fazendo uma acrobacia em cima do Mediterrâneo. Não, aquela maravilha da moderna tecnologia, que valia milhões e milhões de Nicks, estava acelerando, com as turbinas quentes e soltando vapor, deixando para trás uma trilha de fumaça. O avião foi arremessado em direção à praia a pouco mais de um quilômetro ao sul do local onde a multidão se encontrava.
O Quasi, com seus supostos piloto, co-piloto e dois passageiros, bateu com força na praia, na posição perpendicular, quase na velocidade do som. Buck teve a mesma sensação que tomou conta do povo: susto seguido de silêncio. O zunido dos motores ainda se fazia ouvir mesmo depois que o avião se desintegrou e desapareceu atrás de uma negra coluna de fumaça e de labaredas de cor alaranjada. Um silêncio sepulcral tomou conta do lugar. Um Instante depois do som do impacto ouviu-se uma explosão ensurdecedora acompanhada do ronco e do assobio da fúria do fogo.
Um grito, depois outro. Ninguém se mexeu no lugar. Não havia necessidade de correr, nem para fugir do acidente nem para dirigir-se até ele. O avião havia estado ali, com toda a sua glória, provocando expectativas, e agora não passava de um monte de peças incandescentes. A fuselagem estava afundada em uma cratera na areia.
Outra tragédia em um mundo de sofrimento.
Atordoadas, as pessoas viraram-se ao ouvir o som do sistema de alto-falantes. Carpathia estava falando de maneira tão emocionada e baixa que o povo teve de prestar muita atenção para ouvir cada palavra.
- Paz seja com todos vocês. Eu lhes dou a minha paz. Não a dou como o mundo a dá. Peço-lhes por favor que saiam deste local devagar, homenageando-o como local sagrado onde desapareceram quatro valentes funcionários. Vou solicitar que o local de aplicação da marca da lealdade seja transferido e agradeço a atitude de respeito que todos vocês tiveram durante essa tragédia.
Ele virou-se e cochichou algumas palavras ao ouvido de Leon, que aproximou-se do microfone e abriu os braços. As amplas mangas de seu manto esvoaçavam ao vento como se fossem asas enormes.
- Meus amados, este triste acontecimento encerra as atividades de hoje em Tel-Aviv, mas a agenda de amanhã será mantida. Aguardamos a presença de todos vocês em Jerusalém.
Buck caminhou apressado até seu carro e ligou para Rayford.
- O avião está debaixo da areia da praia. Ninguém poderia ter sobrevivido. Estou voltando para ouvir a voz que clamará no deserto.
Ao entrar no trânsito das ruas que davam acesso à cidade antiga, Buck foi tomado por uma emoção estranha. Parecia que seus companheiros haviam afundado na areia dentro daquele avião. Ele sabia que o Quasi Two estava vazio, mas o final simulado havia sido dramático demais. Ele gostaria de saber se aquilo representava o fim ou o começo de alguma coisa. Haveria esperança de a CG estar atarefada demais para fazer uma investigação minuciosa no local? As possibilidades eram remotas.
Buck sabia que tudo o que ele sofrera em três anos e meio foi um refresco comparado ao que viria. Durante todo o caminho de volta, ele permaneceu em silêncio, orando por seus queridos e pelos membros do Comando Tribulação. Ele tinha quase certeza de que o anticristo possuído por Satanás não hesitaria em usar todos os recursos disponíveis para esmagar a rebelião programada para levantar-se contra ele no dia seguinte.
Buck nunca sentira medo, nunca recuara diante de um perigo mortal. Porém, Nicolae Carpathia era a personificação do diabo, e no dia seguinte Buck estaria na linha de fogo, quando a batalha dos séculos entre o bem e o mal para ganhar almas de homens e mulheres irromperia dos céus, e o inferno tomaria conta da terra.

EPÍLOGO

Ouvi, vinda do santuário, uma grande voz, dizendo aos sete anjos: Ide, e derramai pela terra as sete taças da cólera de Deus.
Saiu, pois, o primeiro anjo e derramou a sua taça pela terra, e, aos homens portadores da marca da besta e adoradores da sua imagem, sobrevieram úlceras malignas e perniciosas.
Apocalipse 16.1-2

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