domingo, 5 de setembro de 2010

DEIXADOS PARA TRÁS VIB

— Isso está muito além e acima...
— Não precisa me agradecer. Colocamos em cima da mesa o que possuímos, e nenhum de nós é mais importante que o outro. Talvez Tsion seja.
— Quer dizer que você tem sido ríspida comigo só porque...?
— Você mereceu. Devia ter demonstrado mais interesse por meus ferimentos. Eu não perguntei sobre o seu joelho?
— Várias vezes.
— Não foi por cortesia. Fui responsável pelo machucado em seu joelho. Eu não sabia que você não estava me vendo, mas, de qualquer maneira, eu não devia ter parado na sua frente. Você é um homem extraordinário. Estava machucado. Eu me preocupei. Perguntei. Você me deu uma resposta machista e encerrou a conversa. Eu também estava machucada, e você foi o responsável. Estava me seguindo perto demais, correndo mais rápido do que devia.
Rayford sacudiu a cabeça.
— Suas costelas estão melhorando?
— Para dizer a verdade, estão melhorando muito lentamente. Devo ter quebrado mais de uma costela. Sinto dores o tempo todo e, quando faço um movimento brusco, tenho vontade de gritar.
— Sinto muito. Espero que você melhore logo. Ela limitou-se a olhar para ele.
— Estou falando sério - ele disse.
— Eu sei. Com tantos problemas para resolver, você não tem tempo para preocupar-se com meus problemas.
— Você está sendo bem tratada aqui?
— Muito. Não tenho do que me queixar.
— Sou a única ovelha negra?
— Agora que consegui atrair sua atenção, você pensaria em algo para eu fazer quando me recuperar totalmente? Sou ágil. Sou esperta. Corro riscos, como fiz com vocês mais de uma vez no hospital. Não tenho família, não tenho nada a perder. Se você precisar que eu vá a algum lugar, faça entregas, retire mercadorias, me comunique com alguém, conte comigo para essas tarefas corriqueiras. Concordo que quase coloquei tudo a perder diante da CG naquela noite...
— Você estava desistindo cedo demais, foi tudo. Mas se recuperou a tempo e disfarçou muito bem.
— Não se esqueça de tudo o que eu disse. As mulheres têm mais facilidade que os homens de não ser reconhecidas. Basta tingir os cabelos e mudar a maquiagem. A CG não vai deixar minha fotografia circulando por muito tempo. Providencie uma carteira de identidade falsa para mim e me arrume um trabalho.
— Tudo tem sua hora certa. Por enquanto, estou muito animado por você se prontificar a tomar conta da cozinha.
— Eu achei que ia me arrepender de ter feito aquela proposta.
Rayford levantou-se. O dedo do pé e o joelho ainda estavam doloridos. Chloe aproximou-se deles, vindo do quarto da frente.
— Más notícias, papai. Tenho tentado falar com Nancy, a irmã de Hattie. Eu queria que ela soubesse que temos certeza de que Hattie está viva. Pois bem, eu a encontrei. O nome de Hattie apareceu em uma lista de pessoas mortas por inalação de fumaça.
Rayford olhou para o chão.
— Bem - ele disse, com ar de tristeza -, mais um motivo para eu descobrir o paradeiro de Hattie.

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Mac e Abdullah estavam programados para retornar a Nova Babilônia na manhã de sexta-feira a bordo do novo Comunidade Global Um, conduzido pelo ex-co-piloto de Mac. O nome do avião tomado de Peter II foi mudado de II Um para Fênix 216. Leon Fortunato viria de Nova Babilônia para levar os heróis feridos. Mac mal podia esperar para falar com David e Annie. Seria
necessário instalar um aparelho de escuta clandestina no novo avião, e David tinha um assunto a tratar com ele que não podia ser mencionado por telefone. E, quando o técnico de segurança em comunicações do líder mundial não podia mencionar alguma coisa por telefone, era sinal de que se tratava de assunto muito sério.
Pouco depois das 16 horas, enquanto arrumava sua mala, Mac recebeu um telefonema de Rayford.
— Estou seguindo para Palwaukee. Quero pressionar aquele sujeito de quem já lhe falei, o tal de Bo. Em seguida, vou para a Europa e preciso de algumas coisas. Albie ainda pode cooperar conosco?
— Claro que sim. Do que você está precisando?
— Oh!... ah!... prefiro falar diretamente com ele. Você tem o número do telefone dele?
— Não aqui comigo. Espero estar em casa hoje à noite. Você pode esperar até lá?
— Talvez. Você não pode pedir a David que localize o número para mim?
— Está em meu computador. Algumas horas a mais vão fazer muita diferença?
— Acho que não.

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Com sua nova aparência e documentos que pareciam autênticos, Buck pegou um vôo comercial para Tel-Aviv. Ele espantou-se com o número reduzido de vôos que havia. O flagelo do fogo, fumaça e enxofre continuava a devastar a Terra, e tudo o que se referia à vida tinha sido afetado. O Arrebatamento mudara a face da sociedade, e a vida jamais voltara a ser a mesma desde o grande terremoto, mas Buck sabia que a situação iria piorar. Praticamente não havia ninguém que não tivesse perdido um ente querido.
Foi difícil partir sem Chloe e o bebê. Ele estava vivendo com a família havia mais de dez meses, desde o momento do nascimento de Kenny. Buck não podia imaginar que ficaria tão ligado a seu filho e que sentiria tanta saudade de segurá-lo no colo. Ele sabia o que significava estar longe de Chloe, e esse sofrimento quase chegava a enlouquecê-lo. Parecia que com Kenny a saudade seria maior ainda.
No avião, havia uma mulher asiática sentada algumas fileiras atrás dele carregando um bebê no colo, talvez poucos meses mais novo que Kenny. Buck lutou para não sair do lugar quando o menino começou a chorar durante a decolagem. Assim que foi possível, ele dirigiu-se à mulher e perguntou se ela falava inglês.
— Um pouco - ela disse.
— Qual é o nome do bebê?
— Li - ela respondeu.
— Oi, Li - ele disse. O bebê cravou os olhos nele. - Tem quantos meses?
— Sete.
— É um belo garoto.
— Muito obrigada, senhor.
— Será que eu poderia carregá-lo um pouco?
— Como assim?
Buck estendeu os braços para pegar o bebê. - Posso? A mulher hesitou. - Eu carrego.
— Tudo bem - ele disse. - Compreendo. Eu não permitiria que um estranho carregasse meu filho.
— Você tem um filho pequeno?
Buck mostrou-lhe uma fotografia de Kenny. Ela murmurou alguma coisa e mostrou-a a seu filho, que tentou segurá-la.
— E um belo menino. Sente saudade dele?
— Muita.
Ela fez um gesto para que Buck pegasse Li. Buck estendeu os braços, e Li inclinou o corpo para a frente. Mas, assim que Buck o segurou, Li fez uma careta e manteve os olhos fixos na mãe.
— Ela não vai fugir - disse Buck ao bebê. - Mamãe está aqui.
Li, porém, começou a chorar, e a mãe voltou a segurá-lo. Buck estendeu a mão à mulher, e ela a apertou timidamente.
— Meu nome é Greg North - ele disse.
— Muito prazer, Sr. Greg - ela disse, sem mencionar seu nome.
Mais tarde, depois de ter terminado sua refeição, Buck ficou emocionado quando a jovem mãe lhe pediu ajuda. Ele a vira caminhando pelo corredor, com Li no colo, até o bebê adormecer.
— O senhor poderia carregá-lo enquanto eu como? - ela perguntou.
O bebê continuou dormindo nos braços de Buck durante quase 20 minutos, até a mãe voltar. Ele detestou ter de devolvê-lo.
Depois de descer em Tel-Aviv, Buck tentou localizar alguém que tivesse o selo na testa. A única pessoa que ele viu foi um homem que estava sendo interrogado. Buck resolveu não abordá-lo para não se complicar.
O relógio marcava nove horas da manhã em Israel quando Buck jogou a sacola por cima dos ombros e saiu do terminal do Aeroporto Ben-Gurion, a fim de ligar para a casa de Chaim Rosenzweig. A voz de uma jovem atendeu em hebraico. Buck refletiu por alguns instantes.
— Inglês, por favor - ele disse.
— Residência do Dr. Rosenzweig - ela disse. - Posso ajudar?
— Hannelore?
— Sim - ela respondeu. - Por favor, quem é?
— Eu vou dizer quem sou, mas você não pode pronunciar meu nome em voz alta, entendeu?
— Quem é, por favor?
— Quero fazer uma surpresa a Chaim, tudo bem?
— Quem?
— Hannelore, é Buck Williams.
— Buck! - ela murmurou entusiasmada. - Não há ninguém por perto. Onde você está?
— No Ben-Gurion.
— Você pode vir até aqui? O doutor e Jacov vão ficar muito contentes!
— Quero rever todos vocês.
— Espere aí. Vou mandar Jacov buscar você.
— Ele não pode dizer o meu nome, Hannelore. Se ele precisar falar comigo, estou usando o nome de Greg North.
— Greg North. Ele vai chegar aí logo, Buck... isto é, Greg. Não vou contar nada ao Dr. Rosenzweig. Ele vai ficar tão...
— Como vai Jonas?
— Oh! Buck, sinto muito. Ele faleceu. Esperamos em Deus que esteja no céu. Vamos lhe contar tudo depois.

TREZE







Rayford pegou a sacola com o dinheiro e subiu apressado a escada da torre do Aeroporto de Palwaukee. Ao ver dois carros no estacionamento, ele teve a certeza de que T conseguira ganhar tempo para que Bo Hanson não saísse dali. Quando faltavam alguns degraus para chegar ao fim da escada, o joelho de Rayford protestou, e ele terminou a subida mancando até a porta.
Rayford já havia estado várias vezes naquela torre e sabia que qualquer pessoa que estivesse ali teria ouvido o som de seus passos. T estava sentado a sua mesa e acenou-lhe para que entrasse. Bo, sentado em uma cadeira ao lado da mesa, ergueu os olhos ao perceber que alguém estava entrando na sala. Rayford nunca considerara Bo um rapaz muito inteligente, apesar de ter tido uma criação privilegiada. Seus cabelos eram descoloridos, cortados à escovinha e penteados com gel, e ele deu um longo suspiro, prendendo um pouco a respiração. Rayford imaginou que ele quisesse exibir seus músculos. A pose, porém, não serviu para disfarçar seu medo.
— Faz um bocado de tempo que não nos vemos, Bo.
— É verdade, Sr. Steeles.
— Steele - corrigiu Rayford.
— Sinto muito.
— O que você anda fazendo, Bo?
— Nada de muito importante. E você?
— Recentemente perdi um amigo de quem eu gostava muito. Aliás, perdi dois.
Rayford sentou-se, colocando a sacola perto dos pés.
— Dois? - perguntou Bo.
— Um deles era meu médico. Você o conheceu.
— Ah! sim. Do que ele morreu?
— De alguma coisa que ele pegou de Hattie.
— Oh! Eu soube o que aconteceu com ela. Que pena.
— O que você ouviu falar?
— Saiu em todos os noticiários - disse Bo. - Desastre de avião. Acho que foi na Espanha. Eu também perdi um amigo. Ernie morreu queimado um dia desses na Califórnia.
— Sinto muito.
— Obrigado. Eu também sinto muito a perda de... Hattie.
— Quanto ela lhe pagou, Bo? - inquiriu Rayford.
— Pagou?
— Para você ajudá-la a fugir daqui de avião, inventar uma história, simular a morte dela.
— Eu não sei do que você está falando.
— Você aprovou o vôo. Suas iniciais estão na ficha. Você não pensou em mudar o prefixo do avião. Embora o piloto não se tenha identificado, o avião levou as autoridades até irmão Sam, em Baton Rouge.
— Ele... eu... eu continuo sem saber do que você está falando.
— Você se julga um homem de negócios, Bo?
Bo olhou para T. - Eu tenho uma parte neste aeroporto. Faço tudo direitinho.
— Cinco por cento - esclareceu T.
Bo parecia aflito.
— Tenho outros negócios, outros interesses, outras preocupações.
— O quê! - disse Rayford. - Suas palavras me impressionaram. Algumas dessas outras coisas têm nome?
— Têm - disse Bo. - Uma delas chama-se Não É da Sua Conta. Rayford olhou de relance para T e voltou a concentrar-se em Bo, cujo peito estava arfante. A pulsação em seu pescoço era visível.
— Vou fingir que acredito, Bo. Não É da Sua Conta?
— É isso mesmo, meu negócio é esse. Chama-se Não É da Sua Conta. Entendeu? Ah! Não É da Sua Conta!
— Entendi, Bo. Boa escolha. Seria por causa disso que você precisa receber dinheiro de uma jovem que deseja desaparecer?
— Eu já disse que não sei do que você está falando.
— Não sabe mas negou.
— Neguei o quê?
— Que você pôs Hattie Durham no Quantum de seu irmão para ela fugir daqui.
— Eu nego isso.
— Você nega?
— Claro que sim. Não tive nada a ver com esse assunto.
— Aconteceu, mas você não participou de nada?
— Correto.
— Então, agora você sabe do que estou falando.
— Não sei. Só imagino. Eu nem sequer estava aqui.
— Por que suas iniciais estão na ficha?
— O cara da torre ligou para mim. Disse que um sujeito queria reabastecer um Quantum. Eu concordei. Se era meu irmão, eu não sabia. Se a passageira era Hattie, eu também não sabia. Eu já lhe disse. Eu não estava aqui. Não coloquei ninguém dentro de nenhum avião.
— Mas você tem uma excelente memória. Lembra-se de todos os detalhes do vôo que aprovou na noite em que não esteve aqui.
— Então, prove.
— Provar o quê?
— Prove o que você acabou de dizer. Rayford sacudiu a cabeça.
— Você quer que eu prove que você tem boa memória?
— Não sei. Você está zombando de mim ou coisa parecida, e até agora eu não entendi.
Rayford inclinou-se para a frente e deu um tapa de leve na perna de Bo.
— Vou dizer-lhe uma coisa, Bo. Também sou um homem de negócios. Que tal se eu lhe disser que não tenho nada contra Hattie fugir para a Europa ou se fingir de morta?
Bo encolheu os ombros.
— Tudo bem.
— Ela é uma mulher adulta, tem dinheiro, não precisa da autorização de ninguém. Ela não me deve satisfações. É que eu me preocupo com ela. Hattie não está bem. Não anda tomando decisões certas ultimamente, mas a vida é dela, não é mesmo?
Bo assentiu solenemente com a cabeça.
— Mas, entenda, eu preciso encontrá-la.
— Não posso ajudar você.
— Não fale assim. Preciso conversar com ela, dar uma notícia que ela precisa ouvir pessoalmente. O que posso fazer, Bo? Como posso encontrá-la?
— Sei lá! Eu já lhe disse.
— Você me contou que é um homem de negócios e que faz tudo direitinho. Quanto custa para você ser um homem de negócios, Bo? Isto é suficiente? - perguntou Rayford, curvando-se e abrindo o zíper da sacola.
Bo inclinou-se para a frente e olhou dentro da sacola. Em seguida, olhou para Rayford e, depois, para T.
— Vamos - disse Rayford. - Pegue um dos maços. É dinheiro verdadeiro. Pode pegar.
Bo pegou uma pilha amarrada de cédulas de 20 dólares e folheou-as com o polegar.
— Gostou? - perguntou Rayford.
— Claro que gostei. Quanto você tem aqui?
— Veja você mesmo.
Bo pegou a sacola e a escancarou, sem nenhum constrangimento.
— Eu gostaria de ter um pouco deste dinheiro.
— Uma quantia suficiente para você me contar o que preciso saber?
Bo continuava mexendo a sacola.
— Não há nada melhor do que cheiro de dinheiro. O que você precisa saber?
— Quero voar para a Europa amanhã. Uma hora depois de pisar no chão de lá, quero constatar que Hattie Durham está viva e com saúde. Você conhece alguém que possa me ajudar a fazer isso?
— Talvez.
Rayford pegou alguns maços da sacola e começou a colocá-los na mesa, um de cada vez. Depois de colocar o terceiro maço, ele disse:
— Isto é suficiente para você me passar as informações de que preciso?
— Algumas.
— Por exemplo?
— França.
— Cidade?
— Mais um.
Rayford colocou outro maço na mesa.
— Litoral.
— Você é difícil de ser convencido. Norte ou sul?
— Sim.
A cada pergunta, Rayford colocava mais um maço de dinheiro na mesa.
Finalmente, Bo mencionou o nome de uma cidade no Canal da Mancha:
— Le Havre.
— Você conseguiu ganhar um monte de dinheiro sem sair daqui - disse Rayford -, mas as notas vão voltar para a sacola se eu não ficar sabendo qual é o endereço exato, com quem ela está e o que poderia me causar surpresa. Anote tudo. Vou deixar o dinheiro com T...
— Ei, você está me passando para trás!
— ... e, quando eu encontrar Hattie, vou dizer a ele, e você receberá a bolada. Mas você precisa me informar por escrito.
— Já está escrito - disse Bo, tirando um papel da carteira. Tudo o que Rayford precisava estava escrito à mão com letras miúdas. - Você vai me deixar fora disso, não vai me complicar, certo?
— Prometo - disse Rayford. - Agora vamos tratar da questão do silêncio.
— Silêncio?
— Você provou que não é muito bom nisto, certo?
— Acho que não.
— Eu também não sou.
— Você disse que me deixaria fora disso.
— Suponho que você não queira dizer o nome de quem está com Hattie ou falar dela.
— Exatamente.
— Mas meu silêncio completo pode ser comprado por alguém.
— Comprado por quem?
— Pela CG, claro. De acordo com as leis da Comunidade Global, fraudar uma companhia de seguros por ter simulado uma morte ou forçar uma equipe de salvamento a fazer buscas sob falsas alegações é um delito internacional Classe
X, considerado muito grave, punível com prisão perpétua. Como cidadão, tenho o dever de relatar qualquer tipo de delito de meu conhecimento.
— Eu vou negar.
— Tenho uma testemunha. - Rayford olhou para T, que tinha os olhos fixos na mesa.
— Você está do lado dele, Delanty? Você é um canalha. T disse: - Este assunto é entre você e...
— Esqueça - disse Bo. - Vou tomar minhas providências. Isto é uma ex... extor..., uma chantagem.
— Bo - disse Rayford -, pegue aquele telefone. É melhor você relatar esta extorsão. Deixe bem claro qual é a chantagem que estou fazendo. Você cometeu um delito grave e sabe disto.
Bo bufou e cruzou os braços.
— Ah, você já fez a ligação? - perguntou Rayford. - Eu preciso relatar um crime.
— Você não teria coragem. Vive escondido.
— Eles aceitam denúncias anônimas, não aceitam, T? - T não respondeu. - Vamos descobrir. - Rayford pegou o fone e começou a apertar os botões.
— Tudo bem! Desligue!
— Quer dizer que voltamos a ser homens de negócios, Bo? Prontos para negociar?
—Sim!
— Que tal facilitar as coisas para você? Que tal eu não cobrar de você um dinheiro que você ainda não tem? Que tal?
Bo encolheu os ombros.
— Por exemplo, você ainda não tem este dinheiro - disse Rayford, colocando todo o dinheiro de volta na sacola de uma só vez.
— Ótimo! Vou contar essa história a quem acho que devo contar, e você jamais vai encontrar Hattie Durham.
— Veja, Bo, já pensei nisto. Você não está raciocinando bem. Agora quem dá as cartas sou eu. Seja lá qual for o motivo que levou Hattie a ir embora daqui, você é um fugitivo internacional. Pode acreditar em mim. Tenho vivido nessa situação, e você não vai querer passar por isso. - Rayford estendeu a mão para Bo. -Foi um prazer negociar com você, Bo.
E Beauregard Hanson, de inteligência tacanha, apertou a mão de Rayford.
— Ei - ele disse, recolhendo a mão. - Não foi prazer nenhum negociar com você, seu... seu idiota!
Bo saiu batendo a porta com força, desceu a escada com passos firmes, bateu a porta da torre, bateu a porta do carro e saiu do estacionamento queimando os pneus, atirando poeira e cascalho por todos os lados. Assim que ele passou pelo portão, o carro parou por falta de combustível. Rayford viu, do alto da torre, Bo acenando para pedir uma carona.

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Jacov estacionou no meio-fio do Aeroporto Ben-Gurion e saltou do Mercedes.
— Greg! - ele exclamou exultante, abraçando Buck. Assim que eles entraram no carro, ele disse: - Como você está, meu irmão?
— Preocupado com Chaim. E ansioso para saber de todos vocês.
— Hannelore lhe contou sobre Jonas?
— Sim. O que aconteceu?
— Antes, me conte uma coisa. Você viu os cavaleiros?
— Não.
— Ainda bem que você não os viu, pode acreditar em mim. Criaturas medonhas. Eles andaram provocando estragos em nossa vizinhança enquanto Jonas estava de guarda na cabina de vigia. Você conhece o local.
— Claro.
— Uma casa do outro lado da rua foi queimada e um homem que passava de carro por lá ficou sufocado pela fumaça. Ele morreu ao volante, e o carro colidiu com a cabina. Foi um choque muito grande para Chaim. Ele não queria acreditar que a gente podia ver as criaturas. Ainda acha que estamos mentindo, mas lamenta a morte de Jonas. Meu patrão não pára de dizer: "Pensei que ele fosse um de vocês. Pensei que ele estaria protegido." Agora, ele passou a estudar as mensagens do Dr. Ben-Judá diariamente, chora o tempo todo, de dia e de noite, dizendo: "Nada disso é verdade. É tudo mentira, não é? Tudo mentira." E tem mais, Buck. Ele tem feito coisas estranhas. Sabemos que ele é idoso e excêntrico, apesar de continuar a ser um homem muito inteligente. Ele comprou uma cadeira de rodas. Motorizada. Muito cara.
— Ele está precisando de uma cadeira de rodas?
— Não! Ele já se recuperou das ferroadas dos gafanhotos. Agora, sente muito medo das pragas atuais e parece estar possuído por um espírito maligno. Fica sentado perto da janela, olhando a fumaça. Não sai mais de casa. Passa a maior parte do tempo em sua oficina. Você se lembra do local?
— Sim. E a cadeira? Para que serve?
— Ele anda pela casa toda de cadeira de rodas. Quando se cansa de ficar no pavimento inferior, ele pede a minha ajuda e a de um criado, e temos de transportá-lo para o pavimento superior, e vice-versa. É muito pesado.
— Qual é o motivo de tudo isso?
— Parece que ele está treinando a andar nela, Buck. A princípio, ele teve um pouco de dificuldade, estava sempre dando trombada nos móveis. Não sabia como rodar para trás, virar. Quando a cadeira enrascava em algum lugar, ficava zangado e nos chamava para ajudá-lo a sair dali. Agora ele já está craque em lidar com a cadeira. Sabe ir para a frente e para trás. Passa por espaços estreitos, dá meia-volta em lugares apertados. Aprendeu a se virar sozinho em qualquer pavimento da casa. Acho que ele se diverte com isso.
— O que ele faz na oficina, Jacov?
— Ninguém sabe. Ele se tranca lá durante horas, e nós ouvimos o som de lima desbastando alguma coisa.
— Metal?
— Isso mesmo! Nós vemos minúsculas peças limadas, mas não chegamos a ver o objeto inteiro. Ele nunca teve habilidade com as mãos. É um homem inteligente, criativo, analítico, mas não costumava passar horas fazendo trabalhos manuais. Ele ainda lê assuntos sobre botânica e escreve para periódicos especializados. E está estudando a Bíblia.
Eles já estavam chegando à rua onde Chaim morava, e Buck olhou para Jacov com ar de incredulidade.
— Você está falando sério?
— Claro! Ele compara os textos da Bíblia com os ensinamentos de Tsion. Ele e Tsion têm trocado correspondência.
— Eu sei. É por isso que estou aqui. Tsion está muito preocupado com Chaim. Acredita que ele está perto de aceitar a verdade.
— Eu também pensei, Buck. Nós ficamos ao lado dele depois que vocês partiram. Sempre que ele vê os telejornais, fica muito desapontado com Carpathia. Acha que foi traído, que Israel foi traído. Ele não consegue falar com Nicolae, é sempre barrado pelo comandante.
— Fortunato.
— Sim. É um problema sério. Você vai se surpreender ao ver como ele envelheceu, Buck, mas sua visita vai melhorar seu estado de ânimo.
— Há mais alguma coisa que você queira me contar?
— Que eu me lembre, não. Ah! sim. Não mencione a ele a palavra derrame.
— Derrame?
— Você sabe, quando o corpo...
— Eu sei o que é, Jacov. Por que não posso mencionar essa palavra diante dele?
— Parece que ele está obcecado por esse assunto.
— Derrame... - Buck deixou a frase no ar. - E por quê?
— Não sabemos, Buck. Nós desistimos de tentar compreendê-lo. Um parente dele sofreu um derrame, e agora ele fica olhando para as fotografias desse homem. Meu patrão mudou muito. É uma pena. Ele deve estar com medo de sofrer um derrame também. Ele nunca foi assim. Você sabe.

___________

Os edifícios que compunham o palácio da Comunidade Global passaram a ser um local deprimente. Cerca de 15% dos funcionários tinham sido mortos por fumaça, fogo ou enxofre. Carpathia lançou publicamente a culpa em Tsion Ben-Judá. Os noticiários transmitiam as alfinetadas proferidas pelo potentado:
"Aquele homem tentou me matar diante de milhares de testemunhas em Jerusalém, no Estádio Teddy Kollek, há mais de um ano. Ele está mancomunado com aqueles dois sujeitos radicais que vomitam seu ódio diante do Muro das Lamentações e se vangloriam de ter envenenado a água potável. Seria um despropósito acreditar que essa seita poderia provocar uma guerra bacteriológica no restante do mundo? Certamente, essa gente já desenvolveu algum antídoto, porque até agora ninguém ouviu falar que algum deles tenha sido vítima. Ao contrário, inventaram uma história que nenhum homem ou mulher com o mínimo de raciocínio pode engolir. Querem nos fazer acreditar que nossos parentes e amigos estão sendo mortos por um bando de cavaleiros gigantescos montados em cavalos flutuantes, cuja metade do corpo é cavalo e a outra leão, que expelem fogo pela boca como se fossem dragões. É claro que os crentes, os santos, os que se consideram melhores do que todos nós, podem enxergar essas criaturas monstruosas. Dizem que nós, os mal-informados - na verdade, os não-vacinados -, é que somos cegos e vulneráveis. Os seguidores de Ben-Judá não têm condições de nos persuadir com seu exclusivismo, intolerância, críticas exacerbadas e odiosas. É por isso que optaram por nos matar!"
O número de funcionários do departamento de David estava sendo lentamente reduzido. Os sobreviventes, assustados demais para sair à rua, apesar de não terem segurança nem mesmo dentro de casa, trabalhavam em turnos dobrados e andavam aterrorizados.
A alegria que David e Annie sentiam por viver essa nova fase de seu relacionamento foi ofuscada pelo sofrimento de tantas pessoas. Aqueles que os conheciam, que poderiam ter ficado felizes com a nova situação deles, passaram a considerar o namoro como um fato trivial. Por maior que fosse o amor entre David e Annie, eles não podiam contestar esse ponto. As pessoas estavam morrendo e indo para o inferno. David sentia-se tão triste que pensou seriamente na possibilidade de fugir do palácio com Annie para evangelizar o povo antes que fosse tarde demais.
Annie ajudou-o a refletir mais uma vez sobre a posição privilegiada que ele ocupava. Certa noite, eles se sentaram de mãos dadas diante do computador na sala de David. Um simples toque na letra Y permitiu-lhes ouvir a conversa entre Leon e Peter II no escritório do sumo pontífice localizado no Palácio da Fé.
— A era de Carpathia já terminou, Leon. Você deve parar de reagir todas as vezes que deixo de usar um desses títulos ridículos que vocês dois inventaram.
— Mas você insiste em ser chamado de...
— Eu conquistei meu título, Leon. Sou um homem de Deus. Dirijo a maior igreja que já existiu na História. Milhões de pessoas ao redor do mundo prestam homenagem à minha • liderança espiritual. Quanto tempo ainda demorará para que eu também passe a liderá-los politicamente? Os judeus religiosos e os fundamentalistas cristãos são apenas facções que não aceitam a Fé Mundial Enigma Babilônia.
— Facções? Pontífice, pelos nossos cálculos, um bilhão de pessoas está acessando o site de Ben-Judá todos os dias.
— Isso não significa nada. Sou uma delas. Quantas, porém, são seguidoras dele? Eu não sou, mas preciso me manter atualizado a respeito dessas bobagens. Tenho sido paciente com eles, aceitando suas excentricidades e dissidências em nome da tolerância, mas esse período está chegando ao fim. Pedi a Carpathia que torne ilegal a prática de qualquer religião que não se enquadre na Fé Mundial Única. Em breve, vou conversar com Carpathia a esse respeito e pedir que ele tome uma providência. Você não acha que ele deseja passar para a História por ter-se oposto à figura religiosa mais amada de todos os tempos? Meu pessoal espera que eu me manifeste rapidamente, tome uma atitude definitiva contra esses apóstatas intolerantes. Mas você acredita que Carpathia é um deus.
— Sim, acredito.
— Digno de ser adorado.
— Claro, pontífice.
— Por que, então, esse tal de homem-deus não pode fazer nada contra esses dois pregadores? Eles o estão expondo ao ridículo.
— Sua Excelência negociou com eles e...
— E tudo ficou por isso mesmo. Ele disse que defendeu o fim da barganha, recusando-se a perseguir os crentes se essas tais testemunhas permitissem que os israelenses bebessem água em vez de sangue! Bem, talvez eles estejam bebendo água pura, mas estão morrendo sufocados! Quem passou por bobo, Leon? Nenhuma resposta.
— Você não pode responder a esta pergunta, não, Leon? Não pode admitir que seu patrão-deus é incapaz de fazer a coisa certa. Você mesmo não toleraria uma insolência dessas partindo de um de seus subordinados. Mas fique tranqüilo. Não sei quem são esses dois malucos, nem de onde vêm ou se têm poderes mágicos. Mas eles não estão acima da lei. Estão sujeitos às leis da Comunidade Global, e, se Leon Fortunato fosse potentado, esse problema já teria sido resolvido há muito tempo. Estou certo? Hein, Leon? Você faria o mesmo que eu, não faria? Já teria eliminado aqueles dois.
Nenhuma resposta.
— Assim que eu fizer isso, Leon, você vai ficar do meu lado, vai me ouvir? Se desde agora sou amado e reverenciado pelo povo, imagine só como ficará minha imagem depois que eu acabar com esses traficantes de pragas! Admita, Leon. Nicolae está perdendo tempo. Ele está esperando o quê? É preciso ter coragem. É preciso agir com diplomacia. Ele não pode fazer nada. Defenda-o, Leon! Você não pode, não é verdade? Não pode.
— Tenho de me apressar para atender a um outro compromisso, pontífice, mas devo dizer que, quando o ouço falar com tanta veemência, chego a desejar o retorno daquele tipo de liderança.
— Há potentados regionais que concordam com você, Leon.
— Bem, para ser sincero, pontífice, um homem em minha posição teria de ser cego e surdo para não ver quanto os potentados o veneram.
— Eu também não sou cego, Leon. Gostei de saber que você reconhece minhas qualidades. Chego até a pensar que eles apoiariam minha liderança em outras áreas fora do âmbito espiritual.

QUATORZE






Os novos computadores foram instalados, e os funcionários de David Hassid, agora em número reduzido, estavam trabalhando arduamente. Cérebros jovens e inteligentes combinados com a mais moderna tecnologia, gerada e analisada pelos computadores, tentavam descobrir a origem das transmissões de Tsion Ben-Judá e Cameron Williams.
Ben-Judá tornara-se o nome mais conhecido do mundo, com exceção de Carpathia. Ele transmitia ânimo, exortação, sermões, ensinamentos bíblicos e até mesmo explicações sobre idiomas e palavras, baseado em seus estudos de uma vida inteira.
Buck, por outro lado, transmitia uma revista virtual semanal chamada A Verdade. Ele também tinha um grande número de admiradores que se lembravam do tempo em que ele recebeu o prêmio de articulista mais jovem do Semanário Global. Tornou-se editor da revista depois que Carpathia se apoderou de todos os meios de comunicação - impressos e eletrônicos - e o nome do Semanário Global foi mudado para Semanário Comunidade Global. Quando os seus verdadeiros motivos passaram a ser conhecidos e Buck se converteu a Cristo, ele tornou-se um fugitivo. Por ter uma ligação com Hattie Durham, ex-amante de Carpathia, e com Ben-Judá, ele teve de viver escondido e viajar incógnito.
Buck insistia com seus leitores: "Tenham sempre em mãos um exemplar do Semanário Comunidade Global, o mais moderno periódico de notícias já criado. No dia anterior de cada edição, visitem a página de A Verdade e conheçam a verdadeira história que existe por trás da propaganda que o governo nos tem impingido."
David Hassid adorava ouvir a reação do pessoal do palácio diante dos ataques semanais de Buck ao Semanário Comunidade Global. A revista A Verdade fazia jus a seu nome, e todos sabiam disso. David desenvolvera um programa que lhe permitia monitorar todos os computadores do gigantesco palácio. Suas estatísticas revelavam que mais de 90% dos funcionários da CG visitavam semanalmente a revista virtual de Buck, a segunda mais popular, perdendo apenas para os sites que abordavam assuntos pornográficos e psíquicos.
O uso de enormes antenas parabólicas conectadas a satélites e de tecnologia de microondas tornava teoricamente possível rastrear a origem de qualquer transmissão cibernética. A maioria dos operadores clandestinos mudava constantemente de lugar ou instalava programas de proteção contra rastreamentos, o que dificultava muito a localização. Além de ter ajudado a montar o protocolo de transmissão para o Comando Tribulação sediado nos Estados Unidos, David tomou uma dupla precaução, instalando um dispositivo para provocar falhas nos computadores de seu departamento.
O complicador era puramente matemático. O segredo para traçar coordenadas é medir os ângulos e calcular as distâncias entre vários pontos. No papel, esses cálculos levariam horas para ser feitos. Em uma calculadora, menos tempo. Mas, em um computador, os resultados eram praticamente instantâneos. David implantou aquilo que ele chamava de multiplicador flutuante. Em termos leigos, todas as vezes que o computador fosse acionado para fazer um cálculo, um componente escolhido ao acaso invertia os dígitos na terceira, quarta ou quinta etapa. Nem mesmo David sabia que etapa seria selecionada, e muito menos que dígitos. Quando o cálculo fosse repetido, o erro seria duplicado três vezes seguidas; portanto, de nada adiantaria checar o computador sem ter outra fonte de comparação.
Se alguém levantasse alguma suspeita e eles resolvessem checar o computador usando uma calculadora não-contaminada, o computador ocultaria a falha e forneceria uma leitura correta. Assim que o técnico se convencesse de que poderia ter havido um erro humano ou um defeito temporário na operação anterior, ele passaria para o cálculo seguinte e, provavelmente, só perceberia horas, ou dias depois, que o computador havia voltado a cometer o mesmo erro de antes.
David imaginava que na época em que as discrepâncias apresentadas nos computadores fossem descobertas e se tornassem um problema sério, o projeto estaria tão obsoleto que seria descartado como sucata. Enquanto esse dia não chegasse, os computadores usados para transmitir os ensinamentos de Tsion e a revista de Buck continuariam programados para mudar seus sinais aleatoriamente, modificando, entre um segundo e outro, 9 trilhões de combinações separadas de atalhos.
Sob o pretexto de localizar a origem das transmissões de Buck, os técnicos do departamento de David passavam grande parte do tempo lendo atentamente a revista virtual de Buck. Ficou claro para todos que Williams obtinha informações de dentro do palácio, mas ninguém sabia de onde elas partiam. David tinha conhecimento de que Buck usava dezenas de contatos, inclusive o próprio David, mas Buck era muito esperto e sempre dava um jeito para proteger seus informantes.
A última edição do Semanário Comunidade Global relatou a história do fracassado atentado a Carpathia, promovida pelo potentado regional Rehoboth. Os redatores da revista fingiram ser totalmente imparciais, revelando que o atentado havia sido um choque ao regime de Carpathia. "Homem de caráter, honesto e sincero tenta discutir diplomaticamente as diferenças entre ele e seus comandados", iniciava o editorial.

Mwangati Ngumo, de Botsuana, demonstrou ser um homem honrado quando insistiu há mais de três anos que Nicolae Carpathia o substituísse como secretário-geral da Organização das Nações Unidas. Aquele gesto altruísta e de grande visão resultou na enorme Comunidade Global que desfrutamos hoje, um mundo dividido em dez regiões iguais, cada uma governada por um subpotentado.
Sua Excelência pediu ao supremo comandante Leon Fortunato que visitasse o ilustre Sr. Ngumo para tentar persuadi-lo a permitir que o potentado reconstruísse Botsuana. Ngumo, o grande estadista africano, havia insistido em que sua nação aguardasse até que todos os países mais pobres recebessem ajuda. O Sr. Ngumo foi tão generoso a ponto de permitir que a reunião, programada para realizar-se em Gaborone, fosse transferida para Joanesburgo, porque o aeroporto da capital de Botsuana ainda não tinha condições de acomodar a enorme aeronave da CG.
Quando tomou conhecimento dessa reunião, o potentado Rehoboth, dos Estados Unidos da África, proporcionou todas as condições para a reunião, oferecendo-se, inclusive, para participar dela em prol da diplomacia. A Comunidade Global recusou polidamente essa oferta, uma vez que o assunto a ser tratado era mais de natureza pessoal que política. O potentado Rehoboth recebeu a promessa de que teria um encontro pessoal com Sua Excelência.
Deve ter havido um mal-entendido da parte de Rehoboth, porque ele supôs que o potentado Carpathia participaria da reunião com o Sr. Ngumo. Embora a CG desconhecesse qualquer reação de inveja ou raiva pelo fato de Rehoboth ter sido excluído da reunião, o potentado regional zangou-se a ponto de responder de maneira sanguinária. Deu ordens para assassinar Ngumo e seus assessores, substituiu-os por impostores e entrou no Comunidade Global Um (o Condor 216) para assassinar Sua Excelência.
Apesar de seus capangas terem conseguido destruir a aeronave e matar quatro funcionários nossos, os gestos heróicos do piloto e do co-piloto - Capitão Montgomery (Mac) McCullum e Sr. Abdullah Smith - salvaram a vida do supremo comandante. As Forças Pacificadoras da Comunidade Global reagiram de imediato, o que resultou na morte dos assassinos.

Fotografias da imponente comemoração em honra ao piloto e co-piloto ilustravam o artigo. Seis dias depois, A Verdade esmiuçou a história. Buck descreveu os fatos dentro de seu estilo jovial:
A Comunidade Global não quer que os cidadãos tomem conhecimento de que o relacionamento entre Carpathia e Ngumo tinha fracassado havia muito tempo. Ngumo não foi assim tão magnânimo como eles nos levam a crer. Ele deixou seu cargo na ONU sob forte pressão, acreditando que seria nomeado um dos dez potentados regionais e que Botsuana receberia autorização para usar a fórmula fertilizante descoberta em Israel, da qual Carpathia tem se aproveitado para negociar com muitos outros países.
Ngumo, que quase chegou a ser endeusado, tornou-se um pária em seu país por ter sido vergonhosamente passado para trás pela Comunidade Global. A fórmula nunca lhe foi entregue. A reconstrução de Botsuana foi esquecida. Ngumo viu sua tão sonhada posição de potentado ser concedida a seu arqui-rival, o déspota Rehoboth - que saqueou a própria terra natal, o Sudão, para favorecer suas inúmeras mulheres e descendentes, transformando-os em multimilionários. Esse homem tornou-se tão impopular no Sudão que desistiu de instalar o opulento palácio regional da CG em Cartum, instalando-o em Joanesburgo, um local impróprio por ser tão descentralizado quanto a Cidade do Cabo.
Sabendo que Rehoboth e Ngumo eram inimigos ferrenhos, a CG programou deliberadamente uma reunião de alto nível no território de Rehoboth, a bordo do CG Um. Rehoboth imaginou que Carpathia estivesse a bordo e vulnerável ao ataque, porque Ngumo também achava que ele estivesse a bordo. Essa armação para insultar Ngumo também enganou Rehoboth, que havia sido convidado para a reunião, o que seria mais uma surpreendente afronta a Ngumo.
O pessoal que escapou com vida foi mais afortunado que heróico. As Forças Pacificadoras da CG, dominadas por Rehoboth, não reagiram durante vários minutos após o avião ter-se incendiado. Os assassinos não foram alvejados. Um deles fugiu, dois morreram por causa da praga da fumaça, fogo e enxofre, conforme aconteceu com muitas outras pessoas naquele dia.
Rehoboth sabia de tudo e permaneceu em seu palácio durante os momentos em que ele achava que Carpathia estava sendo executado. Depois que as coisas desandaram e que Rehoboth foi eliminado, as forças pacificadoras entraram novamente em ação e conseguiram dominar a área. A morte da família inteira de Rehoboth, atribuída pela CG à praga, foi visivelmente uma execução. Até agora, a praga matou cerca de 10% da população da Terra. Qual a explicação que alguém daria para o fato de todos os membros de uma família tão numerosa terem sido atacados em um só dia?
A revista virtual de Buck comentou todos os disparates do regime de Carpathia, mencionando a "predileção por maquiar uma tragédia internacional, imaginando que vocês se preocupam com os desfiles em homenagem ao potentado enquanto a morte ronda o mundo".
David gostava de ouvir clandestinamente as conversas nos escritórios de Carpathia e Fortunato sempre que a revista semanal de Buck era publicada na Internet.
— O que fizemos até agora para rastrear essa revista? -inquiriu Carpathia a Leon naquela manhã.
— Temos um departamento inteiro trabalhando em tempo integral, senhor.
— Quantos?
— Escalamos 70, mas, em razão dos recentes problemas, eu diria que temos uns 60.
— Deveria ser um número suficiente, não?
— Deveria, senhor.
— Onde ele está conseguindo as informações? Parece que ele está acampado do lado de fora de nossa porta.
— O senhor mesmo disse que ele era o melhor jornalista do mundo.
— Isso não tem nada a ver com habilidade para escrever, Leon! Eu poderia acusar esse sujeito de estar inventando coisas, mas nós sabemos que ele não está.
Naquela tarde, David recebeu um memorando de Leon, pedindo-lhe que os detectores de metal destruídos no incêndio do avião fossem substituídos "antes que Sua Excelência apareça em público novamente". Aquele pedido deu uma idéia a David. Talvez ele pudesse ter uma participação na morte de Carpathia. Que tal se ele conseguisse provocar um defeito nos detectores de metal nos pontos estratégicos? Se ele podia montar computadores cheios de truques, será que não seria capaz de provocar um defeito nos detectores de metal?
David respondeu o seguinte a Leon: "Supremo comandante Fortunato, providenciarei para que os novos detectores de metal sejam entregues e instalados no Fênix 216 daqui a dez dias. Nesse meio-tempo, pedirei à tripulação que examine cada detalhe do avião para que tudo esteja dentro dos padrões exigidos pelo potentado. Supervisionarei tudo pessoalmente com a ajuda da tripulação da cabina de comando."
David e Annie, em conjunto com Mac e Abdullah, que aos poucos iam se recuperando, passaram suas horas de folga instalando no Fênix um dispositivo de escuta clandestina de tecnologia tão avançada que o som recebido nos fones de ouvido do piloto e do co-piloto tinham quase a mesma qualidade do som produzido em estúdios de gravação.
Quando tudo estava terminado, David pediu a seus técnicos de primeira linha que examinassem o avião à procura de "grampos". Uma equipe de quatro especialistas vasculhou a fuselagem durante seis horas e não encontrou nada.

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Rayford divertiu-se ao ver Bo Hanson tentando conseguir uma carona, do lado de fora dos portões do Aeroporto de Palwaukee.
— Que bobalhão! - ele disse.
T, que continuava sentado diante de sua mesa na torre, perguntou:
— O que ele está fazendo?
— Pedindo carona. Falta de combustível. - Em seguida, Rayford virou-se para pegar o telefone. - Acho que preciso dizer a Dwayne Tuttle como chegar até aqui. - T começou a levantar-se. - Fique aí. A ligação vai ser rápida.
— Tenho um assunto para resolver - disse T. - Podemos conversar depois?
Rayford consultou seu relógio enquanto o telefone de Tuttle tocava. - Posso ficar mais um pouco.
A Sra. Tuttle atendeu. Enquanto se apresentava e lhe falava sobre os e-mails de sua filha e como conseguira o número, Rayford caminhou até a janela. Trudy chamou Dwayne ao telefone, e Rayford ficou satisfeito por não precisar falar durante esse pequeno intervalo de espera, por causa do susto que levou. T dirigira-se até o carro de Bo e estava despejando gasolina no tanque com uma lata. Será que os dois eram coniventes? Será que T o enganara esse tempo todo?
Alguma coisa lhe dizia que, se ele tivesse mais alguns instantes para refletir, encontraria uma outra explicação. T não havia sido mordido pelos gafanhotos. Tinha o selo de Deus na testa. Conhecia as pessoas da igreja, dizia coisas coerentes, parecia sincero. Mas estaria agora a serviço do inimigo? Ajudando o homem responsável pela fuga de Hattie?
— Sr. Steele! - disse Dwayne.
— Sr. Tuttle, ou posso chamá-lo de Dart?
T retornou, subindo lentamente a escada enquanto Rayford terminava seus acertos para a viagem à França. Depois de desligar, ele olhou para T com ar de interrogação. Ambos estavam sentados frente a frente. O semblante de T era tão sombrio quanto o de Rayford.
— Você pensa que eu não vi? - perguntou Rayford.
— Viu o quê?
— O que você acabou de fazer. Aquele assunto que você precisava resolver.
— O que foi que eu fiz? Rayford revirou os olhos.
— Eu vi você, T. Estava fornecendo gasolina a Bo. T lançou-lhe um olhar como que dizendo: "E daí?"
— O sujeito que...
— Eu sei quem Bo é, Ray. Estou começando a querer saber quem você é.
— Eu? Eu não sou... T levantou-se.
— Você quer ver novamente meu selo, não quer? Vamos, pode ver.
Rayford estava atônito. Como a situação poderia ter chegado a este ponto? Eles eram amigos, irmãos.
— Eu não preciso ver seu selo, T. Só quero saber o que você tinha em mente quando fez aquilo.
— Eu pedi para falar com você, Ray. Lembra-se?
— Sim, e daí?
— Eu queria saber o que você tinha em mente quando falou com Bo.
— Qual é o mistério, T? Eu consegui dele a informação de que precisava. Não o ajudei nem o acobertei.
— Como eu fiz.
— Como você fez.
— É isso o que você acha que eu fiz?
— Que outro nome eu poderia dar ao que você fez, T? Vocês dois estão trabalhando contra mim, pelas minhas costas, é isso?
T sacudiu a cabeça tristemente.
— É isso mesmo, Ray. Estou agindo de comum acordo com um rapaz que não tem nada a perder, só para trair meu irmão cristão.
— É o que parece. O que mais eu deveria pensar?
T levantou-se e caminhou até a janela. Rayford não encontrava explicação para a atitude do amigo.
— Você deveria pensar, Ray, que Bo Hanson não vai durar muito neste mundo. Ele vai morrer e vai para o inferno como aconteceu outro dia com seu amigo Ernie. Ele é nosso inimigo, claro, mas não é alguém que devemos tratar como um canalha, só para que ele não descubra quem somos. Ele já sabe quem somos, irmão. Somos seguidores de Ben-Judá e acreditamos em Jesus. Não fazemos barganhas com sujeitos como Bo, Rayford. Não nos divertimos com eles, não mentimos para eles, não roubamos deles nem fazemos chantagem com eles. Nós amamos essa gente. Suplicamos por eles.
— Bo é tão ingênuo - prosseguiu T -, que lhe passou todas as informações de que você necessitava sem pensar nas conseqüências que ele teria. Não estou dizendo que tenho todas as respostas, Ray. Não sei qual seria a outra maneira de conseguirmos as informações, mas sua atitude não me pareceu ser a de um cristão. Eu preferia que você tivesse comprado a informação. Que ele fosse o vilão. Você foi tão vilão quanto ele. Bem, já falei demais. Entenda como quiser, mas, de agora em diante, me deixe fora desse assunto.

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Buck imaginou que encontraria Chaim Rosenzweig na cadeira de rodas, mas o israelense estava do mesmo jeito que ele o vira na última vez. Pequeno, magro, um pouco mais velho, cabelos brancos esvoaçantes. E um sorriso sincero no rosto. Ele abriu os braços para receber um abraço.
— Cameron! Cameron, meu amigo! Como vai? Que bom ver você. É uma felicidade para meus olhos cansados! O que o trouxe a Israel?
— Você, meu amigo - disse Buck enquanto Chaim o conduzia pelo braço até a sala de visitas. - Estamos todos preocupados com você.
— Ora! - disse Chaim, fazendo um gesto de pouco caso. -Tsion está preocupado pensando que não vai me converter antes que os cavalos me pisoteiem.
— Ele não deveria estar preocupado? Posso dar a ele a notícia de sua conversão?
— Talvez, Cameron. Mas você não precisaria perguntar, certo? Vocês, que podem ver os cavalos, também podem ver os selos uns dos outros. E então? O meu selo está visível?
A maneira como Chaim disse a palavra meu fez o coração de Buck dar um salto. Ele inclinou-se para a frente, mas não viu nada.
— Nós podemos ver o selo na testa de nossos companheiros - disse Buck.
— E podem ver também os homens poderosos montados em cavalos-leões, eu sei.
— Você não acredita nisso.
— Você acreditaria se estivesse em meu lugar, Cameron?
— Ora, Dr. Rosenzweig, eu já estive em seu lugar. Lembra-se? Fui jornalista, fui um homem pragmático, racional. Ninguém conseguia me convencer enquanto eu não me convencesse.
Os olhos de Chaim brilhavam, e Buck se lembrou do quanto aquele homem gostava de um bom debate.
— Quer dizer que eu não desejo ser convencido, certo? -perguntou Chaim.
— Talvez.
— E isso não faz sentido para você, faz? Por que eu não haveria de querer? Eu quero que seja verdade! Que maravilha! Assim eu teria uma resposta para essa loucura, um alívio para tanto sofrimento. Ah! Cameron, estou perto de acreditar, mais do que você imagina.
— Foi o que você me disse na última vez. Receio que você demore muito tempo.
— Todo o pessoal que trabalha para mim se converteu, você sabe. Jacov, sua esposa, a mãe dela, Stefan. Jonas também, mas nós o perdemos. Você ficou sabendo?
— Fiquei. Foi uma pena.
De repente, Chaim perdeu o senso de humor.
— Veja, Cameron, eu não entendo essas coisas. Se Deus é tão bom quanto você diz, preocupa-se com seus filhos e é todo-poderoso, não haveria uma maneira melhor? Por que enviar julgamentos, pragas, destruição, morte? Tsion diz que já tivemos a nossa oportunidade. Então, agora não há mais ninguém bonzinho? Existe uma crueldade tão grande em tudo isso que obscurece o amor que eu deveria enxergar. Buck inclinou-se para a frente.
— Tsion também diz que até mesmo este período de sete anos de tribulação é mais do que merecemos de Deus. Nós não acreditávamos porque não podíamos ver. Agora, não há mais dúvida. Estamos vendo, e, mesmo assim, o povo continua resistente e rebelde.
Chaim mergulhou em silêncio. Em seguida, bateu com as mãos nos joelhos.
— Bem - ele disse finalmente -, não se preocupe comigo. Confesso que estou sentindo minha idade. Estou com medo, assustado, preso em casa. Não posso mais me aventurar a sair. Carpathia, em quem eu acreditava como acreditaria em um filho, provou ser um enganador.
Buck queria aprofundar o assunto, mas não se atreveu. Qualquer decisão tinha de partir do próprio Chaim, e não de uma idéia plantada por Buck ou outra pessoa qualquer.
— Estou estudando - disse Chaim. - Estou orando para que Tsion esteja enganado, que as pragas e as tormentas não continuem a piorar. Procuro me manter ocupado.
— Com o quê?
— Projetos.
— Ciência e leitura?
— E outras coisas.
— Por exemplo?
— Ora, Cameron, hoje você está agindo como um jornalista. Tudo bem, eu vou lhe contar. Meus empregados acham que fiquei maluco. Talvez. Comprei uma cadeira de rodas. Você quer vê-la?
— Você precisa de uma cadeira de rodas?
— Ainda não, mas logo vou precisar. O sofrimento causado pelos gafanhotos me enfraqueceu. A contagem de glóbulos no sangue e outros testes revelaram que estou ameaçado de sofrer um derrame.
— Você está tão saudável quanto um cava... um touro. Rosenzweig endireitou-se na cadeira e riu alto.
— Gostei. Ninguém mais quer ser saudável como um cavalo. Mas não é o meu caso. Corro um sério risco e quero estar preparado.
— Parecem palavras de um homem derrotado, doutor. Com uma dieta bem dosada, exercícios, ar puro...
— Eu sabia que você diria isso. Quero estar preparado.
— 0 que mais você está preparando?
— Como assim?
— No que você está trabalhando? Em sua oficina?
— Quem lhe contou?
— Quem me contou não sabe de nada. Jacov simplesmente mencionou que você passa muito tempo lá.
— É verdade.
— O que é? O que você está fazendo?
— Projetos.
— Eu nunca soube que você tivesse habilidade para isso.
— Há muitas coisas que você não sabe sobre mim, Cameron.
— Posso considerá-lo um amigo querido, Dr. Rosenzweig?
— Eu gostaria muito. Mas será que um amigo querido deve se referir ao outro de maneira tão formal?
— É difícil para mim chamá-lo de Chaim.
— Chame-me do que você quiser, mas você é um amigo querido e me sinto muito feliz por ser seu amigo também.
— Então, quero saber mais sobre você. Se houver muita coisa sobre você que eu não saiba, não vou me sentir seu amigo.
Chaim afastou a cortina e olhou para fora. - Hoje não há fumaça. Mas ela vai voltar. Tsion diz que os cavaleiros não nos deixarão em paz enquanto não for exterminada a terça parte da humanidade. Você pode imaginar como ficará o mundo, Cameron?
— Sobrará apenas metade da população que restou dos desaparecimentos.
— Estamos presenciando o fim da civilização. Talvez não seja como Tsion pensa, mas está acontecendo alguma coisa.
Buck não disse nada. Chaim não havia feito caso de seus argumentos, mas talvez se ele não pressionasse tanto...

___________

Rayford abaixou a cabeça. Sua voz estava trêmula e rouca.
— T, eu não sei o que dizer.
— Você soube o que dizer a Bo. Fez dele um...
Rayford levantou uma das mãos. - Por favor, T. Você tem razão. Eu não sei o que estava pensando naquele momento.
— Você parecia estar gostando.
Rayford queria sumir dali. - Que Deus me perdoe, mas eu gostei. O que está acontecendo comigo? Parece que enlouqueci. Em casa, eu perco as estribeiras. Leah, a pessoa de quem já lhe falei, conseguiu tirar o que havia de pior em mim... Não posso culpá-la por isso. Tenho sido muito grosseiro com ela. Eu não estou me entendendo.
— Se você se entendesse, já estaria longe daqui. Não seja tão duro consigo mesmo, irmão. Você está estressado.
— Todos nós estamos, T. Até Bo. Você sabe que minha bronca não é de hoje. Sempre achei que Bo não passa de um salafrário.
— Ele é um salafrário, Ray. Mas é também...
— Eu sei. É o que estou dizendo. No dia em que eu conheci aquele rapaz, ele estava falando mal dos crentes, e, desde então, criei uma antipatia por ele. Eu queria colocá-lo em seu devido lugar e fiquei feliz quando a oportunidade chegou. Santinho eu, hein?
T não argumentou. Rayford entendeu a atitude dele.
— O que eu devo fazer agora? Correr atrás de Bo e começar a agir como um cristão com ele?
T sacudiu a cabeça e encolheu os ombros.
— Sei lá. Acho que o melhor que você tem a fazer é sumir da vida dele. Se você mudar seu comportamento radicalmente, ele vai desconfiar.
— Eu deveria ao menos me desculpar.
— Não, a menos que você esteja pronto para provar, pagando pela informação que ele lhe deu.
— Agora ele passou a ser o bom e eu o mau?
— Jamais vou dizer que Bo é um bom sujeito, Ray. Eu também não disse que você é mau. Foi você quem disse.
Rayford sentou-se com os ombros curvados durante alguns minutos enquanto T mexia em sua papelada.
— Você é um bom amigo - disse Rayford, finalmente. - Tenho de ser sincero. Outras pessoas não teriam se preocupado comigo.
T contornou sua mesa e sentou-se em uma das pontas.
— Acho que você faria o mesmo por mim.
— Como se você estivesse precisando.
— Por que não? Também achei que você não estivesse precisando.
— Bem, de qualquer forma, obrigado. T cutucou-lhe no ombro.
— E então? O que você acertou com os Tuttles? Vai pilotar um Super J?
— Você acha que eu saberia?
— Depois de todos os aviões que você pilotou? Dizem que quem sabe pilotar um Gulfstream, que é grande, sabe também pilotar o Super J, um modelo mais rápido. Talvez um Porsche em relação a um Chevy.
— Vou pilotar esse avião como se fosse um adolescente.
— Acho que você está ansioso por isso.

___________

A princípio, David ficou entusiasmado, e, logo a seguir, alarmado quando recebeu um e-mail pessoal de Tsion Ben-
Judá no início da noite do dia seguinte. Depois de afirmar a David que gostaria de conhecê-lo antes do Glorioso Aparecimento, Tsion passou para o assunto principal.

Eu não consigo entender tudo aquilo que você é capaz de fazer milagrosamente por nós com essa sua tecnologia genial. Normalmente, não me intrometo nos aspectos políticos de nosso trabalho e nem sequer questiono o que está se passando. Fui chamado para transmitir ensinamentos bíblicos, e quero permanecer concentrado nessa minha missão. O Dr. Rosenzweig, de quem tenho certeza você já ouviu falar, ensinou-me muita coisa quando eu lutava para entender botânica nos meus tempos de faculdade. Minha especialidade está voltada para história, literatura e línguas; ciência não faz meu gênero. Depois de esforços constantes, resolvi recorrer ao Dr. Rosenzweig. Ele me disse: "A coisa principal é manter a coisa principal como sendo principal." Em outras palavras, há necessidade de concentração!
Portanto, eu estou aqui concentrando-me e deixando para o capitão Steele e sua filha a tarefa de organizarem a cooperativa, deixando para Buck a missão de transmitir furtivamente sua revista, e assim por diante. Mas, Sr. Hassid, temos um problema. Permiti que o capitão Steele levasse adiante sua idéia de encontrar Hattie (sei que você está a par deste assunto) sem perguntar-lhe se ele já havia descoberto o que Carpathia sabe a respeito do paradeiro daquela moça.
Ninguém, a não ser as pessoas menos avisadas, acredita que ela afundou no mar dentro de um avião. Se a CG permitiu que aquele boato circulasse, é sinal de que eles têm as cartas na mão. Meu receio, evidentemente, é que eles agora se sintam livres para descobrir o paradeiro dela e matá-la, porque, aos olhos do público, ela já está morta.
A única vantagem que ela leva em fingir que está morta é pôr Carpathia em situação constrangedora ou até mesmo perigosa.
Só posso dizer o seguinte: tenho a impressão de que ninguém que trabalha com você na escuta clandestina ouviu falar que Carpathia tem conhecimento de onde ela se encontra. Acho que, para Rayford, teria sido mais prudente esperar um pouco e procurá-la apenas depois de ter a certeza de que não estaria caindo em uma armadilha da CG.
Posso ser um intelectual paranóico que deveria ater-se unicamente a seu trabalho, mas, se você conhecesse a história de minha vida, saberia que já fui vítima de violência por parte desse sistema mundial demoníaco. Eu gostaria de saber, Sr. Hassid, se existe alguma possibilidade de descobrir uma pista, por mais remota que seja, que pudesse ser transmitida rapidamente ao capitão Steele antes que ele mergulhe cegamente em uma situação de perigo. Se você pudesse ter a gentileza de me confirmar o recebimento deste e-mail e me dizer se acredita que existe uma informação qualquer que nos possa ser útil, eu lhe ficaria imensamente grato.
No nome imaculado de Cristo,
Tsion Ben-Judá.
David digitou rapidamente uma resposta:
Estou em dúvida sobre as probabilidades de sucesso (uma vez que tenho monitorado todas as conversas telefônicas e transmissões por computador do pessoal do alto escalão e até agora não ouvi nada a respeito de Hattie), mas darei total e imediata atenção a este assunto. Compreendo sua preocupação e transmitirei ao capitão Steele, por meio de seu telefone sigiloso, todas as informações pertinentes. Eu poderia me estender mais, porém não posso perder um minuto sequer.

David vasculhou freneticamente seu laptop, acessando o compacto disco rígido, entrando no possante computador do palácio e decodificando cada arquivo criptografado. Procurou referências a Hattie, Darham, HD, assistente pessoal, amante, gravidez, filho, fugitiva, acidente aéreo, e outras palavras que conseguiu lembrar. Evidentemente, tudo o que havia sido falado nos escritórios administrativos durante semanas estava gravado em seu minidisco de alta tecnologia, mas os únicos subtítulos que se encontravam ali eram datas e locais. Não havia tempo para ouvir tudo o que Fortunato e Carpathia disseram desde que Hattie foi dada como morta.
David ligou para Annie, que se dirigiu apressada ao escritório de seu noivo. Ele fechou as persianas e trancou a porta para que ninguém do turno da noite pudesse vê-lo andando de um lado para o outro, passando a mão nos cabelos.
— O que devo fazer, Annie? Tsion tem razão. Rayford está cometendo um grave erro, mesmo que seja bem-sucedido. Você sabe que a CG está mantendo Hattie confinada em algum lugar ou a matou. Com certeza, há guardas vigiando o local onde ela deve estar escondida. Qualquer pessoa que se atreva a ir atrás dela, vai ter de enfrentar a CG. Ela não passa de uma isca. Rayford deveria saber disto.
— Pense em alguma coisa - ela disse.
— Quero que você me ajude.
— Eu gostaria de ajudá-lo, David, mas concordo que você está procurando uma agulha no...
— O que o pessoal do Comando Tribulação dos Estados Unidos estava pensando? Que a CG caiu no conto do acidente aéreo? Eles deviam ser mais espertos! Só fiquei sabendo que Rayford estava atrás dela depois que ele já havia partido. Por que ele não recorreu a mim, em última instância, para vasculhar o serviço de inteligência da CG?
Annie sacudiu a cabeça.
— Você acha que está muito seguro, David?
— O quê?
— Você tem acesso aos computadores deles, aos escritórios deles, ao avião deles, aos telefones deles. Será que ninguém ainda desconfiou de você?
— Não. A demora na instalação dos computadores poderia ter levantado suspeitas, mas não percebi nenhuma reação em Leon. Se eu tivesse de adivinhar, diria que ele confia muito em mim. Tenho muitos dedos no fogo de uma só vez e posso me queimar, mas por enquanto estou na lista dos homens de ouro.
— Aí está a resposta, super-homem!
— Não me venha com enigmas. Rayford já embarcou e está em pleno vôo.
— Pergunte a eles.
— Como assim?
— Fale diretamente com Leon. Diga a ele que o assunto não é da sua conta, mas que você tem pensado muito sobre estas notícias do acidente aéreo, que você sempre admirou sua perspicácia, sua sabedoria, sua esperteza... Você conhece as manhas. Insinue que talvez o acidente não tenha acontecido conforme foi divulgado, e diga que gostaria de saber a opinião dele.
—Annie, você é um gênio!

QUINZE




— Você gostaria de ver meus projetos, Cameron? - perguntou Chaim Rosenzweig. - Será que, depois de vê-los, você ficaria mais satisfeito, se sentiria mais meu amigo?
— Com certeza!
— Prometa que não vai me achar um maluco, um velho excêntrico, como meus empregados pensam.
Buck o acompanhou. Apesar da opinião que os irmãos e irmãs que trabalhavam na casa tinham a respeito de Chaim, ele estava muito lúcido.

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Rayford conheceu os Tuttles, um casal de norte-americanos cujos quatro filhos adultos foram arrebatados.
— E nós perdemos a chance... - disse Dwayne no Super J. cruzando os céus do leste dos Estados Unidos. - O mais velho foi para a faculdade, e achamos que ali se envolveu com religião. Até aí tudo bem, só que ele começou a pregar aos outros três irmãos. De repente, o mais novo passou a freqüentar a igreja também. Foi bom, mas achamos que ele só estava seguindo o exemplo do irmão maior, seu herói.
— Em seguida - prosseguiu Dwayne -, os dois do meio foram convidados para uma atividade da igreja. Acho que eles jamais teriam ido ali se os irmãos não tivessem se convertido. Eles começaram a jogar no time de basquete da igreja, passaram uma semana num acampamento e voltaram salvos. Homem, eu detestava essa palavra, e eles a usavam o tempo todo. "Eu fui salva, ele foi salva, ela foi salvo, você precisa ser salvo..." Eu amava aqueles rapazes mais do que tudo na vida, mas...
Dwayne, que falava muito rápido, foi tomado subitamente pela emoção, e Rayford demorou alguns instantes para perceber como ele estava comovido. Agora aquele homenzarrão falava com voz embargada, esforçando-se para não chorar. Trudy, sentada no banco atrás dele, pousou a mão em seu ombro.
— Eu amava aqueles garotos - ele disse, com voz entrecortada por soluços -, e nunca tive nenhum problema com eles, mesmo depois que se tornaram religiosos. Nunca tive mesmo, não é verdade, Tru?
— Eles amavam você, Dwayne - ela disse, pronunciando lentamente as palavras. - Você nunca precisou fazer marcação com eles.
— Mas eles fizeram marcação comigo. Não era por mal, mas como insistiam! Eu dizia que tudo estava bem, desde que eles não ficassem pedindo que eu fosse à igreja com eles. Nunca gostei disso desde criança, me trazia más recordações. Eles diziam que aquela igreja era melhor. Eu também achava, mas pedia que eles me deixassem em paz. Eles me diziam que eu era responsável pela salvação da alma da mãe
deles. Aquilo me deixava furioso, mas como a gente pode ficar furioso com os próprios filhos quando, mesmo estando errados, eles se preocupam com a alma de sua mãe e de seu pai? Rayford concordou, balançando a cabeça.
— A gente não pode mesmo...
— Claro que não. Eles continuaram a insistir comigo. Queriam me vencer pelo cansaço. Mas eu também era bom nisso. Eu nunca caí na lábia deles. Tru quase caiu, não foi mesmo, meu bem?
— Eu gostaria de ter caído.
— Eu também, querida. Nós só íamos conhecer o Sr. Steele no céu, e eu bem que gostaria de ir logo para lá, depois de tudo o que está acontecendo. Você também, capitão?
— Eu também, Dwayne.
— Acho que você já adivinhou o resto da história. Antes de resolvermos ir para a igreja, aconteceu a coisa que eles nos disseram que ia acontecer. Eles sumiram. Nós sobramos. Para onde a gente foi logo em seguida?
— Para a igreja.
— Igreja! Deixamos de ser tão teimosos, não? Ser salvo não era mais uma bobagem. Não sobrou quase ninguém daquela igreja, mas a gente só queria encontrar alguém que soubesse o que era preciso fazer para ser salvo. Sr. Steele, eu sou um artista. Bem, na verdade sou um vendedor e demonstrador de aeronaves, mas sempre gostei de teatro, desde a faculdade. Eu me especializei em imitar vozes.
— Mac me contou que você imita bem o sotaque australiano.
— Isso mesmo. Ele gostou, não?
— Não sei se naquele momento Mac estava em condições de gostar, mas ele tem certeza de que você conseguiu enganar Fortunato.
— Até uma tartaruga surda poderia enganar aquele sujeito, Rafe. Você não se importa de ser chamado de Rafe, não? Gosto de encurtar as palavras para ter tempo de falar mais. É só uma brincadeira, mas você não se importa, não é mesmo?
— Era assim que minha primeira mulher me chamava. Ela foi arrebatada.
— Então, acho que você não gostaria que eu...
— Não se preocupe, pode prosseguir.
— Quero dizer, Rafe, que sou um sujeito comunicativo. Acho que você já percebeu. Um vendedor tem de ser assim. Mas eu nunca deixo de acrescentar um pouco de minha veia artística. Diziam que eu era sincero, determinado, e todos gostavam muito de mim. Só os esnobes não gostavam. Quando encontrava pessoas desse tipo, eu usava a palavra sou quando deveria usar somos, só para provocá-las. Enfim, sou um cara amigo, arrojado, um cara...
— Espalhafatoso é a palavra que você está tentando se lembrar, querido - disse Trudy.
Dwayne deu uma gargalhada como se tivesse ouvido uma piada pela primeira vez.
— Está bem, Tru, concordo, sou um cara espalhafatoso. Mas você tem de admitir que eu era uma pessoa que fascinava todo mundo. Só que eu não ia à igreja, é verdade. De repente, passei a ir. Estou salvo. Perdi muito tempo e tenho pouco dinheiro, mas estou aprendendo, e é isso o que conta. Ainda vamos sofrer, vamos nos arrepender de não ter sido salvos antes, mas, tudo bem, agora estamos salvos. Continuo sendo este cara comuni...
— Espalhafatoso.
— ... espalhafatoso, mas agora passei a ser também um cara insistente. Não paro de falar sobre a salvação. Até o nosso pastor diz que não entende como eu não afugento as pessoas de tanto paparicá-las... o termo é dele, não meu... paparicá-las para aceitarem a Jesus. Aprendi essa lição quando era vendedor, mas agora é diferente. Não se trata de atingir minha meta, de ganhar uma bonificação ou de ver se posso comprar ou não um belo avião. As pessoas precisam saber, irmão, que não estou vendendo nada. Agora estou falando de salvação de almas. Bem, sempre me empolgo quando falo disso. Gostaria de saber o que eu faria se encontrasse o anticristo. Vou lhe dizer uma coisa, meu amigo, ou ele me mata ou ele se salva, uma coisa ou outra. Sacou? Bem, fiquei animado por não ter deixado de ser um brave... brava...
— Bravateador - ajudou Trudy.
— Certo, fui um bravateador quando vi o ajudante número um do anticristo naquele dia. Meu coração parecia que ia explodir, não posso negar, mas e daí? Sei que, mais cedo ou mais tarde, eu vou morrer. Gostaria de estar aqui quando Jesus voltar, mas, se eu partir antes, tudo bem. No dia
em que aceitei a salvação, decidi que nunca mais ia me envergonhar de falar de Jesus. Já perdi tempo demais. Vou ver meus meninos novamente, e...
De repente, o intrépido Dwayne voltou a emocionar-se. Desta vez, ele não conseguiu prosseguir. Trudy pousou novamente a mão no ombro do marido. Ele olhou para Rayford como se estivesse se desculpando. Rayford assumiu os controles, e o Super J disparou como um foguete na noite escura, em direção ao leste.

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— Que coisa estranha é esta? - perguntou Buck, olhando para uma tira de metal superpolida.
Chaim caminhou pé ante pé até a porta e fechou-a. Buck compreendeu que estava tomando conhecimento de alguma coisa que Rosenzweig ainda não revelara a ninguém.
— Digamos que seja um passatempo que se tornou uma obsessão. Não tem nada a ver com meu trabalho, e não me pergunte o motivo dessa obsessão. Estou tentando afiar manualmente um objeto de metal de uma forma que ninguém conseguiu até hoje. Sei que existem máquinas grandes com micrômetros, computadores e raio laser que fazem este trabalho quase com perfeição. Não estou interessado em mecanismos artificiais. Estou interessado em fazer o melhor que posso. Minha habilidade manual ultrapassou minha capacidade de enxergar. Com uma lâmina presa em uma simples braçadeira instalada em ângulo, sou capaz de deixá-la tão afiada que não consigo enxergar o fio a olho nu. Nem mesmo meus excelentes óculos bifocais podem me ajudar. Preciso colocar a lâmina sob uma luz muito forte e usar uma lupa. Acredite em mim, isto é muito mais interessante do que aquelas criaturas que você e eu analisamos sob a lupa um ano e meio atrás. Aqui está, veja. Chaim entregou a lupa a Buck e apontou para uma lâmina brilhante, de cerca de um metro de comprimento, presa entre dois torninhos.
— Tome muito cuidado, Cameron, para não tocar no fio da lâmina. Digo isto porque é muito perigoso. Antes de sentir o fio da lâmina encostar em sua pele e começar a doer, você já terá perdido um dedo.
Depois desta advertência, Buck olhou a lâmina através da lupa e ficou atônito. O fio parecia muitas vezes mais fino do que o de qualquer lâmina de barbear que ele já vira.
— Puxa! - ele disse.
— A parte mais interessante é esta aqui, Cameron. Afaste-se um pouco, por favor. O material é aço-carbono super-resistente. Parece flexível como uma lâmina de barbear porque é afiado microscopicamente, mas é rígido e forte. Você sabe por que uma faca comum perde o fio com o uso? E por que quanto mais ela é afiada mais rápida se deteriora? -Buck assentiu com a cabeça. - Observe isso.
Rosenzweig tirou uma tâmara seca do bolso.
— Um petisco para mais tarde - ele explicou. - Mas esta aqui ainda não foi limpa e não quero lavá-la. Tenho outras, portanto esta vai servir para você entender melhor o que estou dizendo. Observe.
Ele segurou a tâmara delicadamente pela pontinha, entre o polegar e o dedo médio. Em seguida, levou-a lentamente e com extremo cuidado até o fio da lâmina, colocando a palma da outra mão por baixo. A metade inferior da tâmara caiu na mão dele, dando a impressão de que a fruta não havia sequer encostado no fio da lâmina.
— Agora vou lhe mostrar mais uma coisa. Rosenzweig olhou ao redor do cômodo apinhado de bugigangas e avistou uma bola de pano, seca e dura, esquecida por ali. Ele segurou a bola de cerca de sete centímetros de diâmetro acima da lâmina e soltou-a. Buck levou um susto, não querendo acreditar no que acabara de ver. A bola havia se partido ao meio sem produzir nenhum som e, aparentemente, sem oferecer nenhuma resistência.
— Você também viu o que aconteceu com a fruta - disse Rosenzweig, com um brilho nos olhos.
— É espantoso, doutor - disse Buck. - Mas, por quê? Chaim sacudiu a cabeça.
— Não me pergunte. Não se trata de um segredo de Estado. Nem eu mesmo sei explicar o que se passa comigo.

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No final daquela tarde, David apareceu na sala de espera do escritório de Leon sem avisar.
— Eu gostaria de falar um minuto com o comandante, se for possível - ele disse a Margaret, que estava se aprontando para ir embora depois de um longo dia de trabalho.
— David Hassid? - disse Leon em voz alta pelo interfone. -Claro! Mande-o entrar.
Quando David entrou na sala, Leon levantou-se.
— Quero saber se você já conseguiu alguma coisa sobre a operação rastreamento.
— Infelizmente não - disse David. - Aquela gente deve estar usando algum tipo de tecnologia da qual ninguém ainda ouviu falar. Voltamos ao ponto de partida.
— Sente-se - disse Fortunato.
— Não, obrigado - disse David. - Serei rápido. O senhor sabe que não tenho o hábito de aborrecê-lo com...
— Por favor! Sou todo ouvidos!
— ... assuntos que não dizem respeito a meu departamento. A receptividade de Fortunato terminou ali.
— É claro que, em minha posição, tomo conhecimento de muitos assuntos confidenciais que não posso...
— Tenho uma sugestão a fazer, embora o assunto não me diga respeito.
— Prossiga.
— Bem... a morte recente da ex-assistente pessoal de Sua Excelência...
Fortunato semicerrou os olhos. -Sim?
— Foi uma tragédia, é claro...
— Sim...
— Bem, senhor, não era segredo para ninguém que aquela mulher, a Srta. Dunst...
— Durham. Hattie Durham. Prossiga.
— ... estava grávida e não se sentia feliz com isso.
— A verdade, Hassid, é que ela estava tentando extorquir dinheiro de nós para manter segredo da gravidez. Sua Excelência achou que devia recompensá-la pelo tempo que eles... que eles passaram juntos e pagou-lhe uma quantia generosa. A Srta. Durham deve ter entendido que aquele dinheiro lhe foi oferecido em troca de seu silêncio, mas não foi. Veja, ela nunca se preocupou em guardar segredo de coisas que pudessem ameaçar a segurança internacional, nunca ocultou histórias, verdadeiras é claro, que pudessem constranger o potentado. Portanto, quando ela exigiu mais dinheiro, nós recusamos. Sou forçado a dizer que ela não ficou nem um pouco feliz.
— Obrigado, senhor. O senhor me contou muitas coisas que eu não precisava tomar conhecimento, mas fique descansado. Vou guardar segredo. Eu só queria perguntar sobre o acidente com o avião, mas agora isso deixou de ser relevante. Agradeço o tempo que o senhor gastou comigo.
— Não, por favor. Posso lhe contar tudo o que você deseja saber.
— Sinto-me um pouco constrangido, porque, conforme eu disse, sei que o assunto não me diz respeito... não é da minha conta. Pensando melhor, acho que não devo insistir.
— Por favor, David. Quero conhecer seus pontos de vista.
— Está bem. Sei que, tendo alguém aqui com sua competência e perspicácia, não haveria necessidade de que eu me preocupasse com segurança ou relações-públicas...
— Todos nós devemos nos preocupar o tempo todo com essas coisas.
— Tive a impressão de que o relatório sobre a morte dela foi meio suspeito. Quero dizer, talvez eu tenha lido muitos romances de mistério, mas a história não foi um pouco inconsistente? Alguém encontrou os destroços do avião, os corpos? Alguns poucos objetos pertencentes a ela seriam suficientes para provar que ela morreu?
— Sente-se, David. Eu insisto. Seu raciocínio tem lógica. A verdade é que o tal acidente com o avião em que a Srta. Durham viajava nunca aconteceu. Assim que recebemos
a notícia, pedi ao chefe do serviço de inteligência que investigasse os fatos. A Srta. Durham, seu piloto amador e o avião foram rapidamente localizados. O piloto agiu de modo imprudente, fugindo quando nosso pessoal pediu para interrogar a Srta. Durham. Infelizmente, ele foi morto em uma troca de tiros. Você entende que, por motivos de segurança e princípios morais, nem todos os incidentes são divulgados à imprensa.
— Claro.
— A Srta. Durham está sob custódia.
— Custódia?
— Ela se encontra em um local confortável e seguro em Bruxelas, protegida pela falsa notícia de sua morte. Essa moça não representa uma ameaça à Comunidade Global, mas estamos preparando uma armadilha que nos leve até o local onde os companheiros dela a esconderam. Ela será solta assim que conseguirmos pegá-los.
— Companheiros dela?
— Antigos funcionários da CG e simpatizantes de Ben-Judá proporcionaram-lhe asilo quando a presença dela foi exigida em Nova Babilônia. Eles representam uma ameaça muito maior do que ela.
— Quer dizer que ela se tornou uma isca sem querer e é responsável pelo que lhe aconteceu.
— Exatamente.
— E essa armadilha, foi idéia do senhor?
— Aqui nós trabalhamos em equipe, David.
— Mas a idéia foi sua, não? Parece coisa de uma pessoa inteligente como o senhor.
Fortunato ergueu a cabeça.
— Nós nos cercamos de gente muito boa, e, quando ninguém se importa de receber o mérito, se consegue muita coisa.
— Mas a idéia de preparar uma armadilha para os companheiros dela foi sua.
— Acredito que pode ter sido.
— E deu certo?
— Ainda não. Ninguém sabe da morte do piloto. Mandamos avisar o irmão dele, cúmplice nessa história, dizendo que ele estava escondido e que não daria notícias por vários meses.
— Brilhante!
Fortunato assentiu com a cabeça, dando a entender que não podia contestar.
— Não vou mais tomar seu tempo, comandante. De agora em diante, vou tirar esse tipo de preocupação da cabeça, porque sei que o senhor e seu pessoal estão tomando conta de tudo.
— Não se sinta constrangido. Sempre que você tiver alguma dúvida, não hesite em perguntar. Depositamos muita confiança em uma pessoa de seu nível e com alto grau de responsabilidade. Poucas pessoas têm acesso a essas informações, é claro, portanto...
— Não precisa dizer nada, senhor - disse David, levantando-se. - Não tenho palavras para expressar minha gratidão.

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Rayford pilotou um grande trecho sobre o Atlântico, o que não serviu para diminuir a verborragia de Dwayne. Embora gostasse de ouvi-lo papaguear, Rayford queria conhecer Trudy um pouco mais. Quando chegou o momento de devolver os controles a Dwayne, Rayford resolveu ligar para Albie (abreviação de Al B., nome que, por sua vez, havia sido abreviado de Al Basrah). Albie era o chefe do controle do tráfego aéreo de Al Basrah, uma cidade localizada no extremo sul do rio Tigre, perto do Golfo Pérsico. Ele era conhecido por muita gente como o melhor elemento no mercado clandestino. Mac o apresentara a Rayford, e foi Albie quem forneceu o equipamento de mergulho para Rayford explorar o fundo do rio Tigre à procura dos destroços de um avião.
Albie, um muçulmano devoto, detestava o regime de Carpathia e era um dos poucos gentios não-cristãos que resistiam bravamente à Fé Mundial Enigma Babilônia. Seus negócios eram simples. Para as pessoas em quem confiava, ele fornecia qualquer coisa, desde que recebesse dinheiro em troca. O dinheiro servia para cobrir o preço da mercadoria e das despesas, e, se alguém fosse pego com o contrabando, ele afirmava que nunca ouvira falar dessa pessoa.
Naquele momento, Dwayne estava surpreendentemente quieto enquanto Trudy cochilava. Rayford vasculhou sua sacola e pegou seu celular fenomenal - termo que Mac usava para descrever o telefone montado por David, porque o celular fazia de tudo e transmitia de qualquer lugar.
Dwayne só notou o celular quando ouviu o telefone de Albie tocando.
— Isto é o que eu chamo de telefone! Que maravilha! Sim, é um telefone e tanto! Aposto que ele é capaz de captar ruídos que nunca ouvi e...
Rayford levantou a mão pedindo silêncio e disse:
— Daqui a pouco eu deixo você examiná-lo.
— Não vejo a hora, parceiro. Com certeza, vou dar uma olhada nele.
— Torre de Al Basrah, Albie falando.
— Albie, é Rayford Steele. Podemos conversar?
— A quatro nós do leste. Qual é sua posição?
— Quero me encontrar com você para tratar de uma compra.
— Positivo. Sinto pelo fracasso da missão anterior. E o co-piloto?
— Mac está se recuperando. Tenho certeza de que você já ouviu falar sobre...
— Positivo. Aguarde um minuto, por favor. - Albie cobriu o fone com a mão, e Rayford ouviu-o conversando em sua língua. Em seguida, ele retornou. - Agora estou sozinho, Sr. Steele. Lamento muito o que aconteceu com sua esposa.
— Obrigado.
— Tenho andado muito preocupado com Mac. Fiquei sem notícias dele por uns tempos. Agora que ele passou a capitão, não está mais precisando muito de meus serviços. O que posso fazer pelo senhor?
— Preciso de uma arma, pequena para ser escondida, mas poderosa.
— Em outras palavras, o senhor quer uma coisa que faça aquilo que ela precisa fazer.
— Você entendeu em alto e bom som, Albie.
— Muito difícil. O potentado é um pacifista...
— O que significa que você é o único fornecedor de confiança.
— Muito difícil.
— Mas não impossível para você, certo?
— Muito difícil - disse Albie.
— Caro demais, é o que você quer dizer?
— Agora você está me entendendo em alto e bom som.
— Se o dinheiro não for problema, você teria alguma coisa em mente?
— Quando o senhor diz que ela precisa ser escondida, o que isso significa? Que possa passar por detectores de metal sem ser notada?
— É possível?
— Só se for feita de madeira e plástico. Duas seqüências de disparos, três violentos, aí ela se desintegra. Alcance limitado, é claro, até seis metros.
— Preciso de uma que alcance mais ou menos 30 metros. Um só disparo.
— Sr. Steele, eu posso conseguir-lhe uma. É mais ou menos do tamanho de sua mão. Pesada, mas certeira. O peso é por causa do mecanismo de disparo, que normalmente é usado em rifles de tamanho grande.
— Que tipo de ação?
— Exclusiva. Usa injeção por combustível e vácuo hidráulico.
— Parece mais um motor. Nunca ouvi falar de coisa semelhante.
— E quem já ouviu? Ela dispara um projétil a duas mil milhas por hora.
— Munição?
— Calibre 48, alta velocidade... ponta macia, cônica.
— Em uma pistola?
— Sr. Steele, o deslocamento de ar causado pela rotação da bala é suficiente para causar um grave ferimento no tecido do corpo humano de mais ou menos cinco centímetros.
— Não estou entendendo.
— Um homem foi alvejado com uma dessas pistolas a uma distância aproximada de dez metros. O tiro rasgou a pele dele e feriu o tecido subcutâneo do braço. Os médicos não encontraram nenhum resíduo de metal no tecido. O ferimento foi causado pelo deslocamento de ar provocado pela rotação da bala.
— Que coisa! Você falou o que eu queria ouvir. Vale quanto? Muito mais de cem?
— Milhares.
— Mil?
— Eu disse milhares, no plural, meu amigo.
— Quanto?
— Depende do local de entrega ou se você vem buscar o material... o que eu prefiro.

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David estava frustrado. Ele havia corrido até seu quarto para ligar para Rayford, mas o telefone estava ocupado. Aquele telefone emitia um sinal quando havia outra pessoa tentando completar uma ligação. David também instalara um dispositivo que fazia o telefone tocar mesmo quando estivesse desligado, desde que o usuário o deixasse na posição de "inativo". Rayford sempre fazia isso. Ele fez nova ligação. Continuava ocupado.

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— Eu não tinha a intenção de escutar sua conversa, capitão, mas entendi que você estava encomendando uma arma. Gostei de ver que você não se importa, mesmo sabendo que isso é ilegal. Não estamos debaixo das leis do anticristo.
— É assim que eu penso. Você queria ver o telefone, não?
— Ah, sim, obrigado. Quero dar uma olhada.
Dwayne examinou minuciosamente o telefone e colocou-o na palma da mão.
— É bem pesado. Deve fazer de tudo, até preparar seu desjejum, estou certo?
— Até isso, só não faz ovos mexidos.
— Ahá! Você ouviu o que ele disse, Tru? Oh! - Ele colocou a mão na boca quando viu que sua esposa estava dormindo. Em seguida, cochichou. - Este modelo aqui é daqueles que enviam e recebem ligações de qualquer lugar, não é mesmo?
— É isso aí. O melhor de tudo é que ele é sigiloso. Usa quatro canais diferentes por segundo, por isso não pode ser rastreado nem grampeado. É a maravilha das maravilhas.
— Você costuma guardá-lo na sacola? - perguntou Dwayne.
— Sim.
Dwayne fechou o aparelho e esticou o braço para trás a fim de colocá-lo de volta na sacola de Rayford. Depois de refletir por alguns instantes, ele resolveu desligar também o botão que desativava todas as funções do telefone.
— Daqui em diante, pode deixar por minha conta - disse Dwayne, assumindo o controle do avião. - Sei que estou metendo o nariz onde não devo, mas você poderia me dizer o que vai fazer com uma pistola tão poderosa?
Rayford pensou por alguns momentos. Ele havia se acostumado a abrir-se com qualquer companheiro crente, até mesmo para falar de assuntos do Comando Tribulação. Ele apenas tomava o cuidado de não revelar o local da casa secreta ou contar o nome falso de um dos membros do Comando para que o interlocutor não viesse a sofrer por causa de uma informação que não necessitava saber. A arma, porém, era um assunto pessoal que causava muito sofrimento a Rayford, porque ele sabia muito bem de onde ia tirar aquele dinheiro todo para comprá-la. Naquele momento, ele não podia imaginar se conseguiria levar seu plano até o fim.
— A Comunidade Global talvez seja pacifista e esteja desarmada por força de uma lei - ele disse. - Mas perdemos um piloto em um tiroteio, e quase todos nós já estivemos na linha de fogo, pelo menos uma vez, e alguns foram alvejados. Atiraram em Buck e Tsion quando eles estavam fugindo de Israel pelo Egito. Buck foi atingido. Buck também foi perseguido quando ajudava Hattie a fugir de um hospital da CG no Colorado. Nossa mais nova companheira e eu escapamos de um tiroteio recentemente. E você sabe o que aconteceu com Mac e Abdullah.
— Estou entendendo, irmão. Não tenho argumentos para contestar. No entanto, acho que ficaria muito caro equipar cada um de vocês com armas desse tipo.
— Eu vou testá-la em primeiro lugar - disse Rayford.
— Boa idéia. É claro que os dois últimos que você mencionou nunca vão poder portar armas em serviço. Seria bom se cada um deles tivesse uma arma escondida no avião.
— Fizemos isso quando eu era capitão do Comunidade Global Um. Tínhamos duas pistolas guardadas no compartimento de cargas. O acesso a elas era muito difícil, mas teríamos de usá-las como último recurso. Agora elas não existem mais.
— A propósito, Rafe - disse Dwayne, apontando para o horizonte -, aquilo ali é o que chamamos de sol no ramo da aviação. Nossa chegada está prevista para daqui a 40 minutos. A alfândega de Le Havre é muito exigente quando alguém chega lá pela primeira vez. Você tem o carimbo de visto britânico no passaporte?
Rayford assentiu com a cabeça.
— Eu já perguntei quem você é hoje e por que o ajudei a atravessar o Canal da Mancha?
Rayford pegou seu passaporte e abriu-o.
— Thomas Agee. Importação/Exportação. E você, quem é? Dwayne sorriu e mostrou dois passaportes da União das
Nações Britânicas, dizendo com um sotaque inglês arcaico. - As suas ordens, senhor. Rayford leu em voz alta.
— Ian Hill. O nome da esposa é... Eiva. Muito prazer em conhecê-los.

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David não ouvia mais o sinal de ocupado. Ele discou novamente, desta vez com muito cuidado, para ter a certeza de que não havia errado. O número estava correto. Ou Rayford não podia ouvir o toque ou o telefone tinha sido totalmente desativado. David ligou para Tsion e o despertou. Alguém teria de entrar em contato com aquele avião em uma freqüência livre. E rápido.

DEZESSEIS






Buck estava cansado por causa da longa viagem e por ter ficado acordado até tarde conversando com o Dr. Rosenzweig. Ele havia passado grande parte da noite tentando convencer Chaim a aceitar a Cristo.
— É por este motivo que estou aqui - disse Buck a seu amigo. - Você não deve adiar sua decisão. Já não é mais criança. Os julgamentos e os ais vão piorar cada vez mais até o fim. Talvez você não sobreviva até lá.
Chaim, deitado no sofá em frente a Buck, quase adormecera por várias vezes.
— Estou em uma encruzilhada, Cameron. Só posso dizer-lhe uma coisa: deixei de ser agnóstico. Qualquer pessoa que se considere agnóstica é mentirosa. Reconheço a grande batalha sobrenatural entre o bem e o mal.
Buck inclinou-se para a frente.
— E então, doutor? Você continua neutro? Neutralidade significa morte. Neutralidade não leva a nada. Você finge deixar o assunto para os outros resolverem, mas vai acabar perdendo.
— Existem muitas coisas que eu não entendo.
— Quem, além de Tsion, entende grande parte do que está acontecendo? Somos todos novatos no assunto, tateando para descobrir o caminho. Você não precisa ser um teólogo. Precisa apenas conhecer os elementos básicos, e isso você conhece. A pergunta é a seguinte: o que você faz com tudo o que sabe? O que você faz com Jesus? Ele é o dono de sua alma. Ele quer você, e tem tentado de tudo para convencê-lo. O que mais é necessário, Chaim? Você precisa ser pisoteado pelos cavalos? Precisa ser sufocado com enxofre, ser queimado? Você quer viver aterrorizado pelo resto da vida? Chaim sentou-se no sofá e sacudiu a cabeça tristemente.
— Doutor, vou ser bem claro. A vida não vai ficar mais fácil. Nós perdemos a primeira oportunidade. A situação vai piorar para todos nós. E os crentes vão sofrer mais do que os incrédulos porque está chegando o dia...
— Eu já conheço essa parte, Cameron. Sei o que Tsion diz a respeito da marca necessária para comprar ou vender. E você ainda vem me dizer que minha vida vai ser pior do que já está.
— Estou lhe dizendo a verdade. Sua vida vai piorar, mas morrer será a melhor coisa que lhe poderá acontecer! Não importa como será a sua morte, você acordará no céu! E se sobreviver até o dia do Glorioso Aparecimento... imagine só! Estas são as opções dos crentes, doutor. Morrer e estar com Cristo, só retornando quando Ele retornar. Ou sobreviver até seu aparecimento.
— Chaim - prosseguiu Buck -, queremos que você passe para o nosso lado. Queremos que seja nosso irmão, agora e para sempre. Não podemos imaginar perdê-lo, sabendo que você estará separado para sempre do Deus que o ama. - Buck não conseguiu conter as lágrimas. - Chaim, se eu pudesse, trocaria de lugar com você! Você não sabe o que sentimos por você, o que Deus sente por você? Jesus assumiu o seu lugar para que você não tivesse de pagar o preço.
Chaim ergueu os-olhos e surpreendeu-se ao notar lágrimas nos olhos de Buck. O aviso alarmante parecia ter aberto caminho para que Chaim começasse a compreender. Talvez ele não conhecesse a profundidade do amor que o Comando Tribulação lhe dedicava. Buck sentia como se estivesse defendendo a causa de Deus sem a presença de Deus. Deus estava ali, é claro, mas, aparentemente, muito distante de Chaim.
— Vou garantir a você o mesmo que garanti certa vez a Tsion - disse Chaim. - Não vou ter a marca de Nicolae Carpathia. Mesmo que eu tenha de morrer de fome por assumir essa posição, ninguém me forçará a estampar uma marca, só para viver como um homem livre nesta sociedade.
Buck achou que aquilo já era um bom começo, mas não o suficiente. Ele chorou no quarto de hóspedes até adormecer, orando por Chaim. Às 9 horas, ele continuava exausto. Esperava poder dar uma olhada nas duas testemunhas, mas prometera a Chloe que, na viagem de volta, visitaria Lukas Miklos na Grécia. O novo amigo, a quem eles chamavam de Laslos, seria o contato principal que a cooperativa teria naquela parte do mundo.

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O relógio marcava 7 horas em Le Havre quando Rayford e os Tuttles passaram pela alfândega como Thomas Agee e lan e Eiva Hill. Trudy foi encarregada de alugar um carro e apresentar-se no Le Petit Hotel, localizado no sul da cidade, onde eles haviam reservado dois quartos. O hotel era caro, mas sua localização não atraía olhares curiosos.
Dwayne usaria outro carro alugado para deixar Rayford a dois quarteirões de distância da Rua Marguerite, onde Bo Hanson dissera que Hattie e o irmão dele estavam escondidos sob nomes falsos. Rayford planejava simplesmente bater no apartamento e dizer, pela fresta da porta, que a CG estava atrás dos dois e que eles deveriam sair dali. Rayford acreditava que Hattie deduziria que Bo lhe fornecera o endereço e, portanto, a história sobre a CG devia ser verdadeira. Se eles estivessem preparados para fugir imediatamente, Rayford lhes ofereceria uma carona para instalá-los em um hotel discreto.
Os três se encontrariam com Dwayne e improvisariam alguma coisa. No momento em que entrassem no carro ou no meio do caminho, Rayford e Dwayne se livrariam de Samuel Hanson, deixando-o à própria sorte. Ele tinha um avião. Depois que retornassem aos Estados Unidos, eles se explicariam.
Rayford queria surpreender Hattie e Samuel logo ao amanhecer, portanto ele e Dwayne alugaram o primeiro carro que encontraram. Depois de um rápido adeus a Trudy, que se encarregou de colocar todas as sacolas no carro que ela alugara, eles partiram. Dwayne apresentava uma idéia atrás de outra sobre como ludibriar Samuel.
— Você tem certeza de que deseja ir fundo nesta operação do Comando Tribulação? - perguntou Rayford.
— Você está querendo brincar comigo? Estou sempre atrás de um pouco de aventura desde que fui salvo. Preste atenção, podemos nos livrar desse rapaz assim que entrarmos no carro. Você pede a ele que desça por alguns minutos porque tem um assunto particular a tratar com ele. O assunto pode ser o irmão dele. Você se afasta com ele do carro e, em seguida, diz que esqueceu um papel lá dentro. Você entra correndo no carro, eu acelero e vamos embora.
— Talvez dê certo - disse Rayford.
— Que tal esta outra idéia? - disse Dwayne, enquanto seguia as instruções de Rayford sobre o trajeto a ser feito. - Assim que você conseguir trazê-los até o carro, eu faço algumas mesuras e você me apresenta os dois. Eu abro a porta para a moça e peço a ela que entre. Em seguida, dou um safanão nesse tal de Hanson. Ele rola uns seis metros pelo chão, sem se machucar. Assim que ele se der conta do que aconteceu, já estaremos longe.
Rayford analisou o mapa da cidade e o bilhete de Bo. - Eles estão usando os nomes de James Dykes e Mae Willie. Às vezes agente...
— Tenho uma outra idéia - disse Dwayne, mas Rayford o interrompeu.
— Não quero ofendê-lo, Dwayne, mas a maneira como vamos agir não me preocupa, desde que a gente consiga o que deseja.
— Você deve ter um plano.
— Tenho muitos. Se eu achar que não devo convidá-lo a sair do carro, você saberá o que fazer.
— É isso aí, parceiro.

___________

O desespero tomara conta de David. Já se encontrava no meio da manhã em Nova Babilônia. Ele e Mac estavam reunidos secretamente no escritório do piloto. David programara seu telefone sigiloso para discar o número de Rayford a cada 60 segundos e deixar uma mensagem digital que dizia simplesmente ABORTE, acompanhada do número do celular de David.
— Se eu soubesse que a coisa seria assim - disse Mac -, eu teria voado até a França para impedir Rayford de levar seu plano adiante.
David, sem saber o que fazer, ligou seu computador para ouvir as conversas telefônicas gravadas entre Leon e o chefe do serviço de inteligência, Walter Moon, no dia anterior, no próprio dia e no dia seguinte ao comunicado sobre a morte de Hattie. Quando ele conseguiu ouvir alguma coisa útil que poderia ajudar Rayford, sua sensação de mal-estar aumentou.
— Isto vai servir para piorar o seu dia, Mac - Preste atenção. É uma conversa entre Leon e Moon.

— O que você pretende fazer no caso Durham, Wally?
— Já está feito, comandante. Ela facilitou as coisas. Faz tempo que estamos tentando...
— Faz muito tempo. O que está feito? O que você fez?
— Conforme eu disse, já nos livramos do piloto. Ele estava usando o nome falso de Dykes, mas rastreamos o avião e localizamos Sam Hanson, em Louisiana.
— Quando você diz que já se livraram do...
— Você quer saber ou não? Digamos que Sam já virou picadinho. A boneca está em cana em Bruxelas. Ela estava usando o nome de Mae Willie, e decidimos manter esse nome na prisão para que ela possa ficar no anonimato lá dentro, se quiser. Sei que o chefão... desculpe, Excel... Sua Excelência não quer barulho a respeito disto.
— Correto. Mas, quem acreditaria que ela é Hattie Durham? Ela foi dada como morta.
— E foi ela quem fez isso. A gente podia deixá-la na Bélgica para sempre.
— Que vantagem levamos nessa história?
— Mandamos ao único parente vivo do piloto, o irmão dele, um bilhete que parece ter sido escrito por Sam, dizendo que ficaria na França por uns tempos e que o irmão não deveria se preocupar se não recebesse notícias dele. Imaginamos que, com o passar do tempo, o irmão vai desconfiar de alguma coisa ou perder a paciência e sair à procura dele. Só esperamos que os amiguinhos da moça saibam do paradeiro dela pelo irmão, porque temos uma surpresa para eles.
— Estou ouvindo.
— Pusemos um cara no apartamento que vai se identificar como Dykes. No início, ele vai criar caso, mas depois
vai prometer informar qualquer coisa que souber sobre Hattie. Eles vão cair como patinhos, se é que você está me entendendo.
— Excelente, Wally.

Mac abanou a cabeça, aborrecido.
— Você está mantendo Tsion informado? Rayford está se metendo em um vespeiro, e aquela gente de lá, principalmente a filha dele, deve estar preparada, caso ele nunca mais volte.
David assentiu e pegou o telefone, que começou a tocar. Ele apertou a tecla de identificação de chamadas.
— É ele!
Mac inclinou o corpo para ouvir, e David apertou a tecla para conversar com Rayford.
— Capitão Steele, onde o senhor está? Estou tentando ligar para o senhor...
— Sinto muito, senhor. Aqui fala a Sra. Dwayne Tuttle. Pode me chamar de Trudy. Meu marido e o capitão Steele me incumbiram de dar entrada no hotel e tomar conta da bagagem. Vi este telefone na sacola do capitão e liguei-o apenas por curiosidade. Sinto muito. Há dezenas e dezenas de mensagens para ele, todas vindas do mesmo número com o seguinte recado: ABORTE. Achei que devia ligar.
— Muito obrigado, madame. Onde está Rayf... o capitão Steele neste momento?
— Ele e meu marido estão a caminho para tentar encontrar a Srta. Durham.
— Seu marido tem celular?
— Não, senhor, ele não...
— Existe um meio de entrarmos em contato com eles?
— Tenho o endereço do local para onde eles estão indo. Talvez vocês queiram ligar para a moça.
Mac pegou o telefone.
— Madame, meu nome é Mac McCullum. A senhora se lembra de mim na África?
— Sim, senhor, como vai...
— Trudy, preste atenção e faça exatamente o que vou dizer. Trata-se de um assunto de vida ou morte. Você conhece a cidade onde está?
— Só do aeroporto até aqui.
— Pegue um mapa na recepção e peça que alguém lhe informe qual o caminho mais rápido até o endereço de Hattie. Dirija-se para lá imediatamente. Não deixe que ninguém tente impedi-la, diga que explicará mais tarde. Você precisa pedir ao capitão Steele que aborte. Ele vai entender.
— Que aborte, sim, senhor.
— Alguma pergunta?
— Não, senhor.
— Faça isto agora mesmo, Trudy! E ligue para nós informando o que aconteceu.

___________

Dwayne passou de carro diante do endereço da rua Marguerite e parou um quarteirão e meio adiante.
— Lugarzinho sujo este, não? - comentou Dwayne.
— É perfeito para o que eles querem - disse Rayford. - Estou impressionado. Talvez seja o que eles conseguiram de melhor nesta história desastrosa. Vamos aguardar um pouco para ver se ela chega ou sai.
Após dez minutos, Rayford começou a ficar aflito ao ver que apenas duas pessoas haviam saído do prédio, e nenhuma delas era Hattie.
— Se eu não voltar em cinco minutos, vá atrás de mim -ele disse a Dwayne.
— E se eles estiverem armados?
— Duvido. Se Sam for tão inteligente quanto o irmão, ele não sabe de que lado deve apontar a arma. E Hattie ficaria preocupada em quebrar as unhas.
Rayford, porém, gostaria de estar portando a arma que Albie descrevera. Ele jamais atiraria em Hattie, e não se arriscaria a sofrer as conseqüências por ter acertado um sujeito tão bobalhão como o irmão de Bo Hanson. A missão não seria tão perigosa, ele imaginou. Hattie o deixaria entrar. Se não deixasse, ele tinha forjado uma história sobre Sam Hanson para convencê-la.
No prédio de três andares, havia três conjuntos de dez caixas de correio embutidas na parede do saguão, onde não havia nenhum porteiro ou vigia. Rayford ficou surpreso por eles não terem escolhido um edifício com sistema de interfones. Ele leu "J. Dykes" na caixa número 323 e subiu.
A escada entre um andar e outro era composta de quatro lances de degraus. Quando chegou ao último andar, Rayford estava ofegante e com dor no joelho. O apartamento 323 ficava na frente do prédio, à esquerda. Talvez alguém o tivesse visto quando ele entrou no prédio. Sam e Hattie poderiam ter visto o carro passando na rua.
Rayford se recompôs e avistou o botão da campainha em uma caixa de metal no meio da porta do apartamento. Ao apertá-lo, ouviu um forte toque de dois sons, que se poderia escutar também nos outros apartamentos do andar. Rayford percebeu um movimento do outro lado da porta, mas ela não foi aberta. Quando ele fez menção de apertar novamente o botão, teve a certeza de que havia alguém lá dentro. Talvez a pessoa estivesse se vestindo.
— Não se apresse - ele gritou. - Posso aguardar.
Ele imaginou que alguém tivesse andando pé ante pé até a porta para ouvir. Não havia olho mágico. Quem quer que estivesse ali, deveria estar prestando atenção para saber se ele havia desistido. Ele apertou o botão rapidamente.
— Quem é? - A voz era a de um homem.
— Tom Agee.
— Quem?
— Thomas Agee.
— Não sei quem é.
— Sou amigo da mulher que mora aí.
— Aqui não mora nenhuma mulher. Só eu.
— Mae Willie não mora aí? Silêncio.
— Por favor, posso falar com Mae? Diga a ela que é um amigo.
Rayford ouviu o som inconfundível de uma pistola semi-automática sendo destravada. Ele virou-se. Talvez tivesse vindo da escada, mas a porta abriu-se abruptamente e um jovem musculoso apareceu, colocando uma das mãos em suas costas. Ele estava descalço e sem camisa, usando apenas calça jeans.
Rayford decidiu enfrentá-lo.
— Posso entrar?
— Quem você disse que estava procurando?
— Você ouviu, senão não teria aberto a porta. Onde ela está?
— Eu já lhe disse, moro sozinho aqui. O que você quer com ela?
— Com quem? Com a mulher que não mora aqui?
— Desembuche logo ou suma daqui.
— Você é Samuel Hanson?
O rapaz olhou firme para ele.
— Meu nome é Jimmy Dykes.
— Então você é Samuel Hanson. Onde está Hattie Durham? O rapaz começou a fechar a porta.
— Você bateu em porta errada, cara. Não há ninguém aqui com esse...
Rayford avançou e colocou um dos pés entre a porta e o batente.
— Se eu bati em porta errada, como eu sabia o seu nome verdadeiro e o de Hattie? Vamos, quero falar com ela.
"Dykes" parecia estar refletindo.
— Você não é da CG, é?
— Sou amigo de Hattie - disse Rayford bem alto para que ela pudesse ouvi-lo.
— Você também não se chama Tommy Agee, acertei?
— Temos de ser muito cautelosos, Samuel. Sou Rayford Steele. Estou trazendo notícias de seu irmão Bo.
Samuel continuava sem se mexer.
— Hattie não está aqui, mas eu posso levá-lo até ela. Entre enquanto eu troco de roupa.
Samuel escancarou a porta, e Rayford entrou. Enquanto a porta estava sendo fechada, ele ouviu passos de alguém subindo as escadas correndo. Samuel dirigiu-se para um outro cômodo, e Rayford o viu pegar uma arma no bolso traseiro da calça e segurá-la.
Samuel colocou a arma em cima de uma mesa, bloqueando a visão de Rayford com seu corpo. Ele pegou uma camisa e, quando começou a vesti-la, alguém bateu com força na porta e apertou a campainha ao mesmo tempo, fazendo com que os dois se assustassem.
Rayford esperava que fosse Hattie. Sem fazer caso de Samuel, ele abriu a porta. Trudy?! Os pensamentos rodavam em sua cabeça em câmara lenta enquanto ele tentava desesperadamente lembrar-se do nome fictício de Trudy. Ao olhar para Samuel, ele viu o rapaz tirando a camisa com tanta força a ponto de rasgá-la e esticando o braço para pegar a arma.
— Aborte! - gritou Trudy, tentando tirar Rayford do apartamento, mas ele percebeu que nenhum dos dois poderia fugir daquela arma. O fato de Trudy aparecer ali com uma mensagem pedindo-lhe para abortar o fez entender que aquele rapaz, fosse quem fosse, ia matá-los.
Trudy disparou escada abaixo, e Rayford imaginou que ele receberia uma bala calibre 45 nas costas e outra no alto da cabeça. Trudy seria morta antes de chegar ao primeiro andar. Rayford não poderia deixar aquele rapaz sair do apartamento.
Ele virou-se enquanto a porta se fechava lentamente e correu na direção do moço, que havia se livrado da camisa rasgada e segurava a arma. Em seguida, Rayford viu que ele engatilhou a arma e colocou o dedo indicador no gatilho.
Rayford não queria cometer a loucura de lutar com um homem que portava uma arma. Ele conseguiria facilmente cobrir a mão do rapaz com as suas, mas as probabilidades de levar vantagem não lhe pareciam favoráveis. Resolveu, então, investir contra ele com as mãos fechadas, de encontro ao peito, cotovelos para fora, como um jogador de futebol americano indo de encontro ao adversário que acabou de agarrara a bola.
O rapaz não se intimidou, mas voou para longe. Rayford o atingiu no pescoço com o cotovelo, atirando o corpo dele para trás com a cabeça para a frente. Com o impulso da pancada, os pés descalços do rapaz escorregaram no piso e ele tropeçou em uma mesinha, caindo com os pés para cima e batendo a parte posterior da cabeça com força na janela. Ainda tonto, com a arma na mão e o dedo no gatilho, o rapaz viu Rayford correr em direção à porta, tão rápido que os pés dele mal tocavam o chão. Rayford tinha a impressão de que estava tendo um pesadelo, sendo perseguido por um monstro e correndo na lama.
Ele abriu a porta com força e olhou para trás enquanto corria. A cabeça do rapaz continuava presa no vidro quebrado da janela. Ele estava na posição horizontal, com o tronco abaixo do nível dos pés. Por mais que se esforçasse e se contorcesse, não conseguia sair dali.
No entanto, isso não o impediu de atirar. Dois estrondos ensurdecedores, quase simultâneos, fizeram desabar a parede divisória de madeira.
Rayford desceu as escadas, pulando três ou quatro degraus por vez, quase passando por cima de Trudy, que tentava fugir o mais rápido que podia, descendo um degrau por vez. Quando chegou ao segundo andar, Rayford agarrou o corrimão e rodopiou no meio da escada, o que serviu para piorar a dor no joelho. Ele só conseguiu equilibrar-se no momento em que Trudy chegava ao último degrau.
Ela gemia enquanto corria como se estivesse certa de que receberia um tiro. Rayford também tinha a sensação de que uma bala atravessaria suas costas.
Trudy havia deixado o carro, com o motor ligado e a porta aberta, bem em frente ao prédio. Dwayne a vira chegar e encostara o carro atrás do dela, sem saber que outra atitude tomar. Quando avistou Rayford e Trudy correndo em sua direção, ele gritou:
— O que...?
— Acelere! - disse Rayford, fazendo um gesto para que ele desaparecesse dali. - Vamos dar um jeito de alcançar você!
Rayford sentou-se rapidamente ao volante, e Trudy abriu a porta do lado do passageiro sob uma saraivada de balas, vindas do terceiro andar. Assim que ouviu a porta ser fechada, Rayford pisou fundo no acelerador, deixando atrás de si um rasto de poeira e cascalho.
Seus instintos o salvaram, ele sabia disso, mas, enquanto seu coração bombeava sangue para todo o corpo, Rayford não conseguia sentir-se agradecido por aquela presença de espírito. Ele sabia que Deus estivera a seu lado, protegendo-o, poupando sua vida. Mas, naquele momento, Rayford sentia ficar mais forte a raiva que o atormentava havia meses.
Aquele sentimento iniciava e terminava em Nicolae Carpathia. Rayford queria assassinar o homem e decidiu que levaria seu plano adiante, mesmo que fosse a última coisa que ele fizesse neste mundo. E ele pouco se importava com isso. Faria o possível para comprar a arma de Albie e estaria no lugar certo e no momento certo, custasse o que custasse.
Trudy, ofegante, esforçava-se para atar o cinto de segurança. Enquanto Rayford seguia Dwayne pelas ruas estreitas da cidade, ela pegou o telefone dele no chão do carro e perguntou:
— Qual... é.... o número... de discagem rápida para Mac...?
— Dois.
Ela apertou o botão, e Rayford ouviu a voz de Mac atendendo.
— Sra. Tuttle?
— Mi... mi... missão cumprida! - exclamou Trudy, passando o telefone a Rayford e irrompendo num choro convulsivo.

DEZESSETE







David estava exausto.
Ele e Mac tinham ouvido o relato de Rayford enquanto os dois carros atravessavam, em alta velocidade, as ruas de Le Havre em direção ao hotel. Todos concordavam que, se eles não estivessem sendo seguidos, chegariam rapidamente ao hotel onde estavam registrados sob nomes falsos. Porém, teriam de sair do país o mais rápido possível. Rayford dissera seu nome falso e o verdadeiro a "Samuel", que, evidentemente, era um espião da CG. Se ele não estivesse gravemente ferido, já teria informado o pessoal de lá que Rayford estava na França.
Aquilo poderia ter dificultado a passagem de Rayford pela alfândega. Felizmente, ele separou-se dos "Hills", que passaram antes pela alfândega. O nome falso de Rayford não foi relacionado com o deles.
— Não podemos ajudá-lo daqui - disse David.
— Manterei contato - disse Rayford. - Só que não vou voltar direto para casa.

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Buck partiu de Israel sem visitar o Muro das Lamentações e sem relatar a Tsion os detalhes de seu encontro com Chaim Rosenzweig. Queria fazer isso pessoalmente, porque sabia que Tsion se sentiria tão pesaroso quanto ele. Todos eles haviam aprendido a amar Chaim. Não bastava dizer que não foi possível fazer o israelense tomar uma decisão. Os crentes que amavam Chaim queriam que ele se convertesse.
Buck ficou satisfeito com o caloroso encontro que teve com Lukas Miklos e sua esposa. Em seu inglês arrastado, a Sra. Miklos contou a Buck com orgulho:
— Laslos adora uma conspiração. Ele me lembra dia e noite que o nome do amigo é Greg North, e não o outro que eu sei.
Laslos cumprira sua parte no acordo. O comércio de linhito prosperou tanto que ele obteve grandes lucros. Seu plano era vender a empresa à Comunidade Global pouco antes do início das restrições de compra e venda, que estavam prestes a ser postas em prática.
Laslos mostrou a Buck uma área enorme, instalada em um novo local, onde ele abrigaria os caminhões e empilhadeiras para poder embarcar mercadorias aos diversos pontos onde funcionava a cooperativa. Esse novo empreendimento seria semelhante a um negócio aprovado pela CG, só que dez vezes maior do que aparentava. Seria o centro das atividades da cooperativa naquela parte do mundo.
Buck também visitou a igreja secreta de Laslos, composta de um grande número de crentes liderados por um judeu convertido, cuja preocupação principal era conseguir acomodar tanta gente no local. Buck retornou aos Estados Unidos animado pelo que viu na Grécia, mas triste pela indecisão espiritual de Chaim Rosenzweig.
Ao chegar à casa secreta, ele encontrou Tsion e Chloe nervosos por causa de uma atitude que tiveram de tomar com relação a Leah. Buck aprovou, mas Tsion e Chloe estavam preocupados, sem saber se deviam ir adiante sem consultar Rayford. Em razão da quase tragédia com Rayford e da dificuldade de comunicação entre os membros do Comando Tribulação com o resto do mundo, Tsion sugerira designar uma pessoa para centralizar todas as informações. Leah se prontificou imediatamente, dizendo que tinha tempo disponível entre o preparo de uma refeição e outra. Chloe passara horas com ela, ensinando-a a lidar com o computador, e Leah disse que nunca se sentira tão realizada.
Os quatro reuniram-se ao redor do computador, e Leah contou que havia encontrado um programa que a ajudava a incorporar todas as mensagens recebidas e transmitidas. Com um pouco de atenção e a ajuda de algumas teclas, ela transmitia a todos da casa as mensagens que saíam e chegavam.
— Assim, nunca vamos ter dúvidas se alguém está ou não por dentro do assunto, se já tomou conhecimento ou não. Se Mac ou David relatarem um incidente que todos necessitem saber, vou providenciar para que todos tomem conhecimento.
A medida que a metade do período da Tribulação se aproximava, Buck tinha a sensação de que eles estavam convenientemente preparados.

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Rayford tinha de ser justo com Dwayne. Talvez ele fosse um homem espalhafatoso, mas havia engendrado o melhor plano para tirar Rayford de Le Havre.
— Não precisamos usar minhas idéias para nos livrar do amiguinho de Hattie - disse Dwayne -, portanto estamos quites.
Evidentemente, Trudy ficou orgulhosa de sua façanha aquela manhã, mas continuava abalada e não queria assumir responsabilidade por outra aventura no momento em que estivessem saindo do país.
Trudy e Dwayne chegaram ao aeroporto 15 minutos antes de Rayford para entregar o carro alugado e preparar o avião para a decolagem. Rayford deveria chegar logo depois e entregar o outro carro. Em seguida, ele se dirigiria normalmente para os fundos do terreno do estacionamento, onde havia uma cerca que separava os carros do terminal. Dwayne notara que o local atrás da cerca dava acesso à extremidade do terminal do aeroporto e à pista.
— Você pode pular a cerca e correr até o avião - dissera Dwayne -, assim que ouvir os motores funcionando, ou eu conduzo o avião até perto da cerca para facilitar as coisas para você.
— Quais são os prós e os contras?
— Você vai ter de correr um bocado até o avião com esse joelho dolorido. Por outro lado, se eu conduzir o Super J até a cerca, vou atrair a atenção de muita gente e pode ser que alguma autoridade não permita que eu me aproxime daquela área.
Ficou decidido que Dwayne deixaria o Super J na posição de decolagem e, em seguida, pediria permissão para taxiar até perto do terminal a fim de verificar um problema na parte inferior do avião. Com isso, ele ficaria perto do local onde Rayford pularia a cerca.
— Vou dizer que ouvi um rangido em uma das rodas e tentar levá-los comigo para examinarmos a roda juntos. Enquanto isso, você entra no avião.
Deu tudo certo até o momento em que Rayford parou o carro no estacionamento. O Super J estava na pista, com os motores funcionando. O funcionário da locadora de carros perguntou-lhe alguma coisa em francês e, em seguida, traduziu para o inglês.
— O senhor vai pagar com cartão de crédito?
Rayford assentiu com a cabeça. O funcionário começou a imprimir o recibo, olhando ora para Rayford ora para a impressora.
— Com licença - ele disse, dando as costas a Rayford e falando em seu walkie-talkie. Rayford entendia pouco de francês, mas teve a certeza de que o funcionário estava fazendo algumas perguntas a um colega sobre "Thomas Agee".
Enquanto isso, o recibo foi impresso, mas o funcionário não o entregou a Rayford.
— Não deu certo - ele disse.
— O que você está dizendo? - perguntou Rayford. - O cartão está aí.
— Por favor, aguarde. Vou tentar novamente.
— Estou atrasado - disse Rayford, recuando ao perceber movimento perto do terminal. - Mande a conta para mim.
— Não, o senhor precisa aguardar. Precisamos de um novo cartão.
— Mande a conta para mim - insistiu Rayford.
Ele olhou por cima dos ombros e viu o Super J taxiando lentamente em sua direção. Três homens saíram apressados do terminal rumo ao estacionamento. Rayford correu para a cerca, e um dos homens gritou pedindo ajuda. Pelos cálculos de Rayford, a cerca devia ter mais ou menos 1,40m de altura. O Super J estava a uns 100 metros de distância, rodando lentamente. Os três homens que corriam atrás de Rayford estavam a aproximadamente 30 metros dele. Todos pareciam jovens e de porte atlético.
Rayford tentou dar um impulso e saltar por cima da cerca, mas o salto do sapato do pé dianteiro enroscou-se nela. Com a parada brusca, ele perdeu o equilíbrio e ficou com o corpo tombado para o outro lado da cerca. Ele agarrou-se na parte superior da cerca para não se estatelar no chão, mas, enquanto tentava se soltar, ficou de cabeça para baixo por alguns instantes. Finalmente, ao conseguir se desenroscar, caiu, batendo o ombro com força no chão, levantou-se rapidamente e correu em direção ao avião.
Ao olhar de relance para trás, ele viu que seus perseguidores tinham conseguido pular a cerca com facilidade. Se Dwayne não aumentasse a velocidade, eles alcançariam Rayford. Ele ouviu o ronco dos motores e viu um homem com uma prancheta na mão acenando para que Dwayne reduzisse a velocidade. Felizmente, ele não obedeceu. Trudy abaixou a escada, e Rayford tentou subir.
Os homens gritavam para que ele parasse. Enquanto Trudy inclinava o corpo para fora tentando segurar a mão dele, Rayford ouviu passos atrás de si. No momento em que ele deu um impulso para agarrar-se à escada, um dos homens, o mais rápido deles, mergulhou no chão e segurou-o pelo calcanhar. Rayford desequilibrou-se e quase caiu da escada pela lateral, mas Trudy provou ser mais forte do que aparentava. Rayford agarrou o pulso dela e receou arrastá-la para fora, mas o peso dele a fez cair no piso do avião. Ela ficou atravessada na porta, com os ombros presos em um dos lados e os joelhos no outro. Ele saltou sobre ela. Dwayne acelerou, e Rayford ajudou Trudy a fechar a porta.
— É a segunda vez que você salva minha vida hoje - ele disse. Trudy sorriu, desabando trêmula no banco.
— E também foi a última. Estou muito cansada. Dwayne gritava como se estivesse em um rodeio enquanto o Super J disparava rumo ao céu.
— Que maravilha! Ela não é fenomenal? Segura, peão!
— É uma bela máquina - disse Rayford, imaginando a dor que sentiria no corpo na manhã seguinte.
Dwayne lançou-lhe um olhar desconcertado.
— Eu não estava falando da aeronave, parceiro. Estava falando desta mulherzinha.
Trudy inclinou-se para a frente e passou os dois braços ao redor do pescoço do marido.
— É melhor você parar de me chamar assim - ela protestou.
— Querida, vou chamar você da maneira como este meu velho coração mandar. Segura, peão!
— Você está indo para o oeste? - perguntou Rayford repentinamente.
— Vou na direção que você quiser, Rafe. É só dizer.
— Leste.
— Entendido, e vou ficar abaixo da linha do radar por uns tempos até que eles se esqueçam de tentar nos localizar. Apertem os cintos e se segurem!
Dwayne não estava brincando. Ele fez uma manobra tão rápida para mudar a rota do Super J que a cabeça de Rayford ficou grudada no encosto do banco.
— Igual a uma montanha-russa, não? Você vai adorar esta viagem!
Rayford resmungou alguma coisa para si mesmo.
— Que tal esta outra manobra, capitão? - perguntou Dwayne.
— Eu disse que você precisa ser um pouco mais entusiasmado. Dwayne riu tanto que chegou a chorar.

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No final do dia, David recebeu um e-mail pessoal de Annie, comunicando que o chefe do departamento dela e dois outros funcionários do alto escalão haviam-se reunido rapidamente no escritório de Fortunato. David respondeu o seguinte: "Eu adoraria de todo o coração estar a seu lado mesmo que você não fosse o dedo-duro mais importante da organização." Enquanto ele vasculhava o disco rígido do computador tentando localizar o áudio da referida reunião, a tela exibiu outro sinal de mensagem recebida. Era outra de Annie. "Nunca imaginei receber um elogio tão lisonjeiro do amor de minha vida. O dedo-duro lhe agradece do fundo do coração. Beijos, AC."
Quando encontrou o que procurava, David reconheceu a voz de seu colega, o chefe do departamento de Annie. Depois de fazer os rapapés obrigatórios, ele passou a palavra ao chefe de análise do serviço de inteligência. Jim Hickman era muito inteligente, senhor de si e parecia gostar do som de sua voz.
— Esses beatos - Hickman começou a dizer - são aquilo que eu chamo de fundamentalistas. Eles acreditam em escritos antigos, principalmente na Tora judaica e no Novo Testamento cristão, e não fazem distinção entre registros históricos, muitos deles corretos, e registros figurativos, com linguagem simbólica, das tais passagens proféticas. Por exemplo, qualquer pessoa, inclusive eu, que tenha estudado superficialmente a história das antigas civilizações sabe que muitos dos chamados livros proféticos da Bíblia não são nada proféticos. Depois da ocorrência de alguns fenômenos sobrenaturais, alguém poderia fazer essa descrição cheia de imaginação encaixar-se ao evento. Por exemplo, essa onda atual de morte por fogo, fumaça e enxofre, talvez provocada por essa gente, passou a ser o cumprimento daquilo que eles acreditam ser uma profecia, que inclui cavalos monstruosos com cabeça de leão, montados por 200 milhões de cavaleiros.
— Aonde você quer chegar, Jim? - perguntou Fortunato. -Sua Excelência está à procura de fatos específicos.
— Ah! sim, comandante. Só posso dizer o seguinte: como esses beatos levam as palavras ao pé da letra, eles atribuem a esses dois pregadores malucos...
— O potentado os chama de Dupla de Jerusalém! - disse Fortunato.
— Sim! - exclamou Hickman. - Adorei o termo! Os seguidores de Ben-Judá acreditam que esses velhos caducos são as tais testemunhas mencionadas no capítulo 11 do livro de Apocalipse. Um dos versículos deste capítulo diz: "Darei às minhas duas testemunhas que profetizem por mil duzentos e sessenta dias, vestidas de pano de saco."
— Então, é por isso que aqueles dois se vestem com roupas de aniagem - disse Fortunato. - Eles estão tentando nos fazer acreditar que são essas tais testemunhas.
Hickman aquiesceu.
— Exatamente, comandante. E Ben-Judá sempre garantiu que esse período começou no dia em que o governo mundial assinou um tratado de paz com Israel. Se contarmos 1.260 dias a partir daquela data, chegaremos ao que os pregadores chamam de "tempo determinado".
Fortunato pediu licença aos outros para ficar a sós com Hickman por alguns instantes. David ouviu o som de cadeiras sendo arrastadas e de pessoas saindo. Em seguida, Fortunato disse:
— Jim, preciso confidenciar-lhe uma coisa que está me incomodando. Você é um sujeito esperto...
— Obrigado, senhor.
— Nós dois sabemos que existem coisas nesses escritos antigos que são difíceis de ser falsificados.
— Não sei, não. A transformação da água em sangue está sendo feita pelas mesmas pessoas que estão nos matando com a guerra biológica. Trata-se de um truque, alguma coisa que eles puseram nas estações de tratamento de água.
— Mas no Estádio Teddy Kollek a água transformou-se em sangue depois de engarrafada.
— Tenho visto mágicos fazerem a mesma coisa. Eles colocam alguma substância que reage de acordo com a temperatura, talvez quando ela cai em determinado período da noite. Se soubéssemos quando isso ocorre, poderíamos fazer o mesmo e provocar o fenômeno.
— E por que está demorando tanto tempo para chover?
— Coincidência! Já vi Israel passar meses sem chuva. Qual é a novidade? É fácil alguém afirmar que está impedindo que chova quando não há chuva. O que eles vão dizer quando a chuva começar a cair? Que nos deram uma trégua?
— As pessoas que tentaram matá-los foram incineradas...
— Alguém disse que os dois têm um lança-chamas escondido, que usam quando a multidão se distrai. Francamente, comandante, o senhor não está querendo dizer que aqueles dois expelem fogo pela boca!
Fortunato permaneceu em silêncio por alguns instantes. Em seguida, disse:
— Bem, se eles não são quem dizem ser, como poderemos saber que ficarão vulneráveis no momento determinado?
— Não vamos saber. Mas ou eles são vulneráveis, ou não são quem dizem ser. De qualquer maneira, nós venceremos. Eles sairão perdendo.
David deveria transmitir a informação a Tsion, mas precisava antes ouvir o relato de Fortunato a Carpathia. Ele verificou os telefones de Fortunato e Margaret. Nada. O escritório de Fortunato estava silencioso. Ele resolveu dar uma vasculhada no escritório de Carpathia. Fortunato tinha acabado de relatar sua conversa com Hickman.
— Mil duzentos e sessenta dias desde o tratado -repetiu Carpathia. - Já decidimos fazer uma grande festa. Agora sabemos exatamente quando devemos encená-la. Você precisa elaborar um plano de trabalho, Leon. Precisa fazer com que os potentados regionais fiquem contra Peter Segundo. É verdade que já estão contra ele, mas o tal homem precisa ser eliminado. Vou deixar o assunto sob sua responsabilidade. Eu tomarei conta das tais testemunhas. O mundo, principalmente Israel, aguarda ansiosamente o fim daqueles dois. Durante meses, acreditei que não caberia a mim a tarefa de livrar o mundo dos dois. Pensei em dar uma ordem para que as tropas da CG os matassem. Mas eles serão tão malvistos até mesmo por seus seguidores que resolvi eliminá-los pessoalmente, transformando esse ato na façanha mais importante de minha vida até agora.
— O senhor está certo disso?
— Você não concorda?
— Seria fácil demais, Excelência. Melhor fazer isso sem comprometê-lo. O senhor poderia até deplorar o ato publicamente, reafirmando que incentiva a liberdade de expressão e de idéias.
— Mas não a liberdade para atormentar o mundo com pragas e julgamentos, Leon!
— Essas pragas e julgamentos não sugerem que eles são quem dizem ser?
— Isso não faz nenhuma diferença, você não entende? Quero responsabilidade e votos de confiança, ganhar pontos por me levantar contra esses impostores.
— Claro. Como sempre, Excelência, o senhor é insuperável.

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O Super J pousou no final da pista em Al Basrah. Assim que eles chegaram, vários funcionários do aeroporto correram descalços até o avião, olhando curiosos para suas linhas arrojadas e a bandeira britânica. No local em que "Dart", o alter ego australiano de Dwayne colocara o emblema "Trabalho Honesto", havia agora um decalque que dizia "Angus Negro".
Rayford ficou impressionado com o sotaque britânico carregado de Dwayne e até mesmo com o volume de sua voz.
— Muito bem, cavalheiros - ele disse. - Sou Ian Hill, proprietário da aeronave, e esta é minha esposa, Eiva. Obrigado por cuidarem do reabastecimento.
Rayford apresentou-se como Jesse Gonder, e um dos funcionários entregou-lhe um envelope contendo chaves e um bilhete que dizia: "Você se lembra do caminhão. Vá com ele até este endereço. Sigo atrás de você. Al B."
Rayford encontrou o velho caminhão de Albie, e eles se dirigiram até um local de comércio muito movimentado no centro da cidade. Ele, Dwayne e Trudy aguardaram Albie sentados sob o toldo de um agitado café encravado numa construção de pedra.
Aparentemente, Dwayne sabia manter um tom de voz baixo em público, principalmente quando precisava acentuar seu sotaque britânico. Os três bebericavam refrigerantes enquanto Rayford e Dwayne conversavam reservadamente sobre o Comando Tribulação. Trudy cochilava entre um gole e outro.
— Sinto muito - ela disse. - Foi aventura demais para um dia só.
— Ela é um verdadeiro soldado - cochichou Dwayne, olhando para os fregueses sentados por perto, que, provavelmente, não entendiam o que ele dizia. - Mas acho que ela nunca ficou tão assustada na vida.
Trudy concordou com a cabeça e em seguida continuou a cochilar.
— Sua filha é um azougue, e não me importo de dizer isso a você, Rafe. Sei que vocês todos têm muitas idéias, mas ela conseguiu organizar essa cooperativa como ninguém. Você sabe que tenho sido exageradamente arrojado a respeito de minhas crenças.
— Ouvi dizer.
— Vou ter de pôr um fim nisso assim que exigirem que a gente tenha uma marca para comprar e vender. A posição que defendo vai ficar clara, e, pelo que entendo, posso perder a cabeça. Todos nós podemos perder a cabeça. Pelo menos é isso o que dizem as mensagens do pastor Ben-Judá.
Rayford deu um sorriso cansado. Ele estava pensando em Hattie e na tolice que ela cometera para ser presa. Mas ele nunca vira ninguém referir-se a Tsion como pastor Ben-Judá, e gostou disso. Era um título perfeito. Ele era mais que um pastor do Comando Tribulação. Era o pastor de qualquer pessoa que desejasse ouvir suas pregações cibernéticas diárias.
Enquanto Dwayne falava sobre a honra que ele e Trudy sentiam por ser os elementos principais da região sudoeste na condução dos negócios da cooperativa de mercadorias, Rayford pensava na sugestão de Leah. Ela estava certa; não tinha mais obrigações familiares. Talvez pudesse deslocar-se de um lugar para outro. Era uma fugitiva recente em comparação aos outros que moravam na casa secreta. Sua fisionomia só seria reconhecida pelo pessoal da CG de sua cidade. Com um pouco de maquiagem, lentes de contato, tintura no cabelo, ela poderia viajar para qualquer lugar.
Até mesmo para Bruxelas.
Ela poderia passar por parente de Hattie. Alguém teria de dar a ela a triste notícia sobre sua irmã. Rayford esperava que a CG mantivesse Hattie viva até que ela se convertesse, mas não se importaria se ela ficasse presa até que eles ultrapassassem a metade do período da Tribulação. Se ela fosse libertada, tentaria assassinar Nicolae. Rayford tinha de admitir que aquela façanha lhe pertencia. Embora soubesse que agiria de modo ridículo, ele teria mais condições que Hattie de perpetrar o ato. Fosse quem fosse o autor do crime, não sairia ileso. Ele orou silenciosamente: Senhor, peço-te que entendas meus motivos. Eu desejo o que tu desejas. Desejo que Hattie seja salva antes que cometa um ato que possa pôr um fim à vida dela.
— Eu gostaria de conhecer aquele grego do qual você me falou - Dwayne estava dizendo. - Explorar o oceano a partir do Estreito de Bering, despachar grãos do sudoeste e comercializar produtos da Grécia são coisas que fazem parte daquilo que a Sra. Williams já pôs em prática. Tudo vai dar certo, Rafe.
Uma charanga mais velha que o caminhão emprestado por Albie freou com grande estardalhaço na rua estreita. Albie saltou, deu um tapa na lataria da charanga e ela continuou a rodar, sacolejando. Rayford levantou-se para cumprimentá-lo, mas Albie, carregando um saco de papel pardo, fez um gesto para que ele se sentasse. Albie curvou-se para cumprimentar Trudy, mas ela ainda cochilava, apoiando o queixo com a mão.
— Um de meus funcionários me disse que viu pessoas estranhas - ele cochichou, puxando uma cadeira.
— Pode confiar em nós, Albie - disse Dwayne.
— Eu confio porque alguém já me falou do senhor - disse Albie. - O senhor está com ele. Eu confio nele, confio no senhor.
— Pessoas estranhas onde? - perguntou Rayford, não querendo se envolver novamente com a CG. - Elas estão aqui?
— Você nunca vai vê-las aqui - disse Albie. - Isso não significa que não estejam aqui. Elas aprenderam a se misturar no meio do povo.
— Então, onde elas estão?
— No aeroporto.
— Precisamos voltar para aquele avião, Albie.
— Não se preocupe. Pedi a alguém que colasse um aviso de quarentena na porta, igual ao da CG, alertando que há vapores de enxofre a bordo. Ninguém vai ousar aproximar-se. E, até onde sei, não há ninguém da CG na pista. Se vocês conseguirem levantar vôo e permanecer abaixo da linha do radar por alguns instantes, poderão fugir.
— Mas eles estão à nossa procura? Albie encolheu os ombros.
— Sou um empresário, e não um espião. Vocês conhecem essas coisas melhor do que eu. Vamos, deixe-me mostrar a sua mercadoria. Você não se importa que seus amigos a vejam?
— De jeito nenhum.
— Vamos nos afastar daqui para testá-la.
— Prefiro ficar aqui com Trudy - disse Dwayne. Ela parecia estar dormindo profundamente, com a cabeça sobre os braços apoiados na mesa. - Não se esqueça de nós aqui, ouviu?
— Fique atento - cochichou Rayford, levantando-se.
— Não se preocupe comigo, parceiro. Não vou cochilar. Não me divirto tanto desde que minha irmã foi devorada pelos porcos.
Rayford lançou um olhar perplexo para Dwayne.
— Estou brincando, Rafe. É uma expressão que usamos no interior.

___________

— É verdade? - Leon perguntou.
— Não entendi, senhor - disse David, sentando-se no escritório de Fortunato.
— É verdade que você não viu o relatório de auditoria interna sobre seu departamento?
David lutou para manter a calma.
— Eu sabia que eles estavam fazendo uma auditoria, mas achei que não ficaram lá o tempo suficiente para fazer um relatório.
— Eles chegaram a algumas conclusões, e eu não gostei nem um pouco.
— Ninguém conversou comigo.
— Desde quando o pessoal da auditoria interna conversa com alguém? Eles fazem o que precisa ser feito, mas nunca trocam idéias com ninguém. Você também não vai gostar do que eles encontraram, mas continuo insistindo para que você responda à minha pergunta.
David sabia que sua pulsação estava rápida demais e tentou controlar a respiração.
— Eu gostaria muito de analisar o que eles encontraram e me explicar da melhor maneira que puder.
— Eles lhe deram notas altas. Disseram que a culpa não é sua.
— Culpa?
— Pelo fiasco, pelo fracasso, mas que isso não tem nada a ver com sua liderança, que eles consideram excelente.
— O que eles estão chamando de fracasso?
— É claro que o fracasso não tem relação com o estado de espírito de seus funcionários. Nem com sua ética de trabalho, David. Com exceção do potentado e de mim, você trabalha muito mais do que qualquer outra pessoa.
— Bem, eu não sabia disso...
— O ponto principal, Hassid, é que eles estão recomendando cancelar o projeto para detectar as transmissões via Internet.
— Oh! não! Eu gostaria de continuar tentando.
— Sei que esse trabalho é a menina de seus olhos e que você pôs a alma e o coração nele. O fato é que o custo do projeto não é compensador.
— Mas não valeria a pena investir um pouco mais de tempo para ver se conseguimos descobrir alguma coisa?
— Você não está nem perto de descobrir alguma coisa, está, David? Seja honesto. A auditoria interna diz que você não obteve nenhum sucesso desde o dia em que o equipamento foi instalado e que, em razão do número de horas trabalhadas e do dinheiro que foi gasto, não faz sentido dar prosseguimento ao projeto. David simulou uma expressão de grande desapontamento.
— Vou voltar à minha pergunta inicial - disse Leon. - É verdade? É verdade que esse projeto está nos trazendo mais dores de cabeça do que esperávamos? Devemos cancelá-lo?
— O que o potentado vai dizer?
— Esta é a minha preocupação. Vou usar o argumento de que não temos tanta necessidade de saber de onde partem aqueles e-mails e que os seguidores de Ben-Judá estão nos fazendo de tolos. Ele vai concordar. E você?
— Quem sou eu para discordar do potentado e do supremo comandante?
— É assim que se fala, garoto.
— Sem mencionar a auditoria interna.
— Você entendeu o espírito da coisa. Tenho uma idéia para aproveitar aquelas horas de trabalho e os computadores.
— Que bom! Detesto desperdiçar tempo e dinheiro.
— Agora que a tripulação da cabina de comando voltou ao trabalho e que o Fênix 216 está totalmente equipado, Sua Excelência incumbiu-me de fazer uma viagem para visitar as dez regiões nas próximas semanas. Como preparativo para a celebração de gala por termos chegado ao ponto intermediário do acordo de paz de sete anos, assinado entre a Comunidade Global e Israel, ele gostaria que eu me reunisse com cada um dos potentados regionais, inclusive com o novo líder africano. Eu gostaria de poder contar com seus funcionários, aqueles que estarão com o tempo ocioso em razão do cancelamento do outro projeto...
— Com licença, comandante, tenho uma pergunta tola...
— A única pergunta tola é aquela que não é feita.
Nunca ouvi essa pérola antes!, pensou David. - Bem, quero dizer que não diz respeito à minha área de atuação.
— Desembuche.
— Em termos de custos, não seria melhor que os dez... hã... potentados viessem até aqui ou se encontrassem com o senhor em algum lugar qualquer?
— Seu raciocínio tem lógica, mas existem motivos para agir da maneira como lhe falei. - Leon falava agora de maneira condescendente. Com as mãos abertas e juntando as pontas dos dedos, ele prosseguiu. - Além de muitas outras excelentes qualidades de liderança que possui, Sua Excelência Nicolae Carpathia é um diplomata incomparável. Ele lidera por meio de exemplos. Lidera sendo útil aos outros. Lidera ouvindo. Lidera delegando poderes, e esta é a razão de minha viagem. O potentado sabe que cada um de seus dez subpotentados necessita ter a sensação de que está sempre contando com a presença dele. Para mantê-los leais, fortalecidos e inspirados, ele prefere delegar-lhes autoridade e autonomia dentro de seus territórios. O fato de Sua Excelência me enviar como seu emissário para visitá-los, digamos, em seus campos de atuação, é uma honra para eles.
— Isto lhes dará a oportunidade de estender seus tapetes vermelhos - prosseguiu Fortunato -, provar a seus súditos que estão sendo honrados com a presença de um visitante do palácio. Em cada capital internacional, farei um convite oficial em público ao potentado regional para que compareça à Festa de Gala Global em setembro. Seus súditos também serão convidados, e insistiremos que estendam a viagem a Jerusalém, fazendo uma peregrinação a Nova Babilônia.
— Interessante - disse David.
— Eu esperava este seu comentário. E é aí que você, seus funcionários e todos os computadores disponíveis entram na história. Para mim, Sua Excelência sempre foi um exemplo impecável de orador público. Você sabe que ele fala vários idiomas fluentemente. Minha fluência não chega a tanto, mas eu gostaria de compreender uma frase ou duas do idioma falado em cada grupo principal ao qual deverei dirigir a palavra. Não sei se você já notou, mas o potentado nunca, nunca mesmo, usa gírias, nem mesmo durante uma conversa informal.
— Tenho tido pouco contato com ele...
— Claro. Mas deixe-me falar sobre o magnífico dom de oratória que ele possui e de sua habilidade inigualável para memorizar páginas e páginas de um discurso, fazendo com que jamais pareça longo ou inoportuno. A verdade é a seguinte: o potentado Carpathia conhece a história de cada país que visita com detalhes, tanto quanto o próprio povo a quem ele dirige a palavra. Você já teve a oportunidade de ver os videoteipes de seu primeiro discurso na Organização das Nações Unidas três anos atrás?
— Tenho certeza de que todos nós tivemos.
— Aquele discurso em si, David, praticamente selou sua nomeação como secretário-geral e, depois, líder da nova ordem mundial. Ele subiu à tribuna como um simples orador convidado, presidente de um pequenino país do leste europeu. A posição que o potentado ocupou como secretário-geral nem sequer estava vaga quando ele iniciou seu discurso. No entanto, com sua inteligência, poder de sedução, perspicácia, conhecimento do idioma de cada país filiado à ONU e uma extraordinária narrativa da história daquela importante instituição, ele granjeou a simpatia do mundo inteiro. Se não tivéssemos acabado de perder entes queridos em conseqüência dos desaparecimentos em
todo o planeta, que nos fizeram mergulhar no mais profundo sofrimento, eu garanto que a platéia que assistiu àquele maravilhoso discurso teria sido muito maior. Mas, aparentemente, tudo transcorreu conforme Deus ordenou, e Sua Excelência foi perfeito naquele momento. Fortunato tinha um olhar perdido.
— Ah! foi um momento mágico - ele disse. - Eu sabia, dentro do coração, que se um dia tivesse o privilégio de contribuir, nem que fosse de maneira ínfima, para os ideais e objetivos daquele homem, eu confiaria minha vida a ele. Você já sentiu a mesma coisa a respeito de alguém, David?
— Posso dizer que sim. Sinto essa mesma devoção dentro de mim.
Aquela frase pareceu tirar Leon de seus devaneios. - Sério? Posso saber quem é?
— Quem é? O senhor quer saber quem eu... idolatro a ponto de confiar minha vida a ele? Ah! sim. Meu Pai.
— Que coisa bonita, David. Ele deve ser um homem maravilhoso.
— Oh! Ele é. Ele é como Deus para mim.
— Verdade? O que ele faz?
— Ele é criativo, trabalha com as mãos.
— Mas, pelo que entendi, é o caráter dele que o fascina.
— Mais do que o senhor pode imaginar. Mais do que eu posso dizer.
— Deve ser alguém muito especial. Eu adoraria ter a oportunidade de conhecê-lo.
— Ah! o senhor terá - disse David. - Tenho certeza de que o senhor se encontrará um dia com Ele, face a face.
— Espero que esse dia chegue logo. Mas fugi da minha linha de raciocínio. Vou voltar ao ponto em que parei e, em seguida, liberarei você. Desculpe-me, mas gosto de incentivar um jovem leal que tem uma carreira promissora.
— Não há o que desculpar.
— Eu gostaria que seus funcionários usassem aqueles computadores para vasculhar fatos importantes a respeito de cada homem que vou visitar, sua região, sua história. Se souber informações detalhadas sobre eles, poderei homenageá-los. Você poderia conseguir isso para mim, David? Preciso de informações que me façam parecer admirável, que façam Sua Excelência parecer admirável, o que será muito bom para a Comunidade Global.
— Aceitarei seu pedido como um desafio pessoal, senhor.

DEZOITO






Estrelas cintilavam no céu escuro quando, finalmente, Albie parou o velho caminhão em um local poeirento de uma planície deserta. Ele deixou os faróis do veículo acesos iluminando uma pedra grande próxima a uma árvore, cerca de cem metros de distância. Albie saltou para a carroceria do caminhão, subiu na cabina e olhou para trás.
— Meus olhos precisam acostumar-se à escuridão - ele disse -, para eu ter certeza de que estamos sozinhos. - Satisfeito, ele pulou para a carroceria e, em seguida, para o chão.
— Eu costumava descer daqui com um salto só. Mas meu tornozelo... você se lembra?
— Foi ferido no terremoto - disse Rayford.
— Não foi tão grave, considerando tudo o que aconteceu. Albie fez um gesto para que Rayford o seguisse até a frente do caminhão, onde ele se agachou diante dos faróis e pegou uma sacola de papel, tirando dela uma peça retangular de metal preto, semelhante a uma caixa de mais ou menos 25 centímetros de comprimento por 12 de largura e 4 de altura.
— Capitão Steele, isto aqui é sensacional. Custa caro, mas encontrei o que o senhor queria. Observe atentamente e veja como a peça é feita. Se o senhor não conhecer o truque, não vai saber como funciona. Segure para ter uma idéia do que isto representa.
Rayford pegou a peça e ficou impressionado com seu peso e solidez. Não havia emendas visíveis, e a peça parecia resistente.
— Abra - disse Albie.
Rayford revirou a peça sob a luz, procurando uma trava, um dispositivo para abrir, uma mola para apertar, qualquer coisa. Não viu nada.
— Tente - disse Albie.
Rayford segurou a peça pelas pontas e puxou com força. Em seguida, procurou por todos os lados para ver se havia alguma abertura. Virou-a, sacudiu-a e apertou as beiradas.
— Estou convencido - ele disse, devolvendo-a a Albie.
— O que esta peça faz lembrar?
— Uma pedra de lastro. Talvez algum tipo de peso. Quem sabe uma antiga bateria de computador?
— O que o senhor diria ao agente da alfândega se este objeto aparecesse na tela do radar?
— Uma das coisas que eu citei. Eu diria que deve pertencer ao computador que deixei em algum lugar durante minha última viagem.
— Vai funcionar, porque ele não será capaz de abrir. Só se ele fizer isto, mas não acredito.
Albie segurou a peça diante de si, na posição horizontal, e colocou o polegar esquerdo no canto superior esquerdo, firmando o dedo médio esquerdo na parte de trás do canto inferior esquerdo. Depois, fez o contrário com a mão direita, colocando o polegar no canto inferior direito, o dedo médio na parte de trás do canto superior direito.
— Estou empurrando delicadamente com os polegares e firmando os dedos. Quando eu sentir um leve movimento indicando que a peça está sendo destravada, passo os polegares pela borda inferior, coloco os dedos indicadores na borda superior, seguro com força e puxo. Veja como ela se abre facilmente.
Rayford tinha a impressão de que estava presenciando um truque de mágica a um passo de distância, sem ter nenhuma pista de como funcionava. A peça abriu-se pouco mais de dois centímetros, e Albie a fechou rapidamente.
— As emendas parecem sumir, porque esta é uma peça inteiriça feita de um bloco de aço. Tente mais uma vez, capitão.
Rayford colocou os polegares e os dedos médios nos lugares indicados por Albie. Quando ele apertou suavemente os polegares e sentiu a pressão nos dedos, percebeu um leve movimento de que a peça estava sendo destravada. Ele se lembrou de um brinquedo dos tempos de infância, que consistia em tentar fazer uma moedinha cair dentro de um buraco raso feito em um pedaço de cartolina. A moeda só caía quando se inclinava num ponto determinado, nem mais nem menos.
Ele segurou as extremidades da peça conforme Albie fizera, e ela se abriu suavemente. Em sua mão esquerda, estava um bloco de aço compacto, no formato de um grande quebra-cabeça, que se ajustava perfeitamente com a arma pesada em sua mão direita. Impressionante.
— Está carregada?
— Alguém me ensinou que sempre devemos ter muita certeza, ao segurar uma arma, de que está descarregada. Muitas pessoas já morreram em acidentes com armas que acreditavam estar sem balas.
— Concordo. Mas, e se eu apontar e atirar...
— A bala vai ser disparada? Sim.
— Você tem algo que eu possa colocar em cima daquela pedra e usar como alvo?
— Por enquanto, é melhor só mirar na pedra. Você precisa acostumar-se com a arma.
— Eu era um bom atirador nos tempos da academia militar, anos atrás.
— Só anos? Não décadas?
— Que beleza! Fui ofendido por meu fornecedor.
— Conheça primeiro a sua arma.
Rayford colocou o bloco no chão, segurou a arma e examinou-a detalhadamente. Embora fosse muito pesada, era bem-feita e adaptava-se perfeitamente à palma de sua mão. Ele imaginou se não seria difícil segurá-la com firmeza em razão do peso.
— Nenhuma outra arma - disse Albie - possui esse mecanismo. Só os rifles de alta potência. Não é necessário engatilhar. Ela é semi-automática. Você precisa puxar o gatilho para cada novo tiro, mas ela dispara uma seqüência de tiros rapidamente enquanto você solta o gatilho e o puxa de novo. Acho que é a arma mais barulhenta que existe, e eu recomendo que você use alguma coisa para tapar o ouvido que fica próximo à arma. Por enquanto, basta cobrir o ouvido com a outra mão.
— Não estou vendo trava de segurança.
— Não existe. Você simplesmente aponta e dispara. A lógica por trás desta peça é que você não precisa abrir o bloco de aço e deixar a arma à vista, a não ser que pretenda atirar.
E você não vai querer atirar, a não ser que pretenda destruir aquilo que você está mirando. Se você atirar naquela pedra, vai destruí-la. Se você der um tiro e atingir uma das partes vitais do corpo de uma pessoa, a 60 metros de distância, vai matá-la. Se você atingi-la em uma parte neutra, atirando da mesma distância, a munição vai rasgar pele, carne, gordura, tendões, ligamentos, músculos e ossos e atravessar o corpo deixando duas perfurações. Se você estiver a três metros de distância, a cápsula oca terá tempo de se abrir por causa do calor da explosão do tiro e da força centrífuga provocada pela rotação da bala. As estrias sulcadas dentro do tambor produzem a rotação. O projétil fica, então, com quase quatro centímetros de diâmetro.
— A bala se abre e se transforma em um disco giratório?
— Exatamente. Conforme eu lhe disse por telefone, uma bala que errou o alvo e passou a cinco centímetros de um homem a uma distância de quase dez metros do atirador causou-lhe um ferimento profundo só por causa do deslocamento de ar. Se você acertar alguém que esteja a uma distância entre 3 e 60 metros, o buraco da bala vai ser de mais ou menos 15 centímetros de diâmetro, dependendo da parte do corpo que ela atingir. A bala, afiada e girando rapidamente, perfura qualquer coisa que esteja no caminho por causa de sua altíssima rotação. O sangue coagulado fica grudado nela como grama na lâmina de um cortador, e ela se transforma em um grande objeto de destruição. Durante o teste desta arma, um técnico, a uma distância aproximada de seis metros, recebeu um tiro acidental acima do joelho. A perna dele foi praticamente decepada. A parte debaixo ficou presa só por uma fina tira de pele de cada lado do joelho.
Rayford sacudiu a cabeça e olhou firme para aquele objeto medonho que tinha nas mãos. O que ele estava fazendo? Será que se atreveria a carregar aquela monstruosidade? Teria coragem de usá-la? Seria muito difícil justificar-se dizendo que aquilo era uma arma de defesa.
— Você está tentando me convencer a ficar com a arma ou a desistir dela? - Rayford perguntou.
Albie encolheu os ombros.
— Quero que você fique satisfeito com a compra. Não aceito reclamações. Eu disse que poderia encontrar uma mais barata. Você disse que queria eficiência. Não me interessa o que você vai fazer com esta arma e não quero ficar com ela. Mas eu lhe garanto, capitão, que, se um dia você tiver de usá-la para acertar alguém, não vai precisar usá-la duas vezes.
— Não sei - disse Rayford, com o corpo dolorido por ter ficado agachado. Ele mudou de posição, pegou a outra metade da peça e segurou-a olhando de frente para a arma a fim de ver como elas se ajustavam.
— Pelo menos, faça uma tentativa - disse Albie. - Vai ser só uma experiência.
— Espero.
Rayford pôs o bloco no chão novamente, ficou em pé entre os faróis do veículo, afastou as pernas e apontou a arma para a pedra, firmando a mão que apertaria o gatilho com a outra.
Albie tapou os ouvidos. Em seguida, disse:
— Você precisa tapar o ouvido direito.
Rayford enfiou a mão no bolso e pegou o bilhete que Albie havia escrito. Rasgou um pedaço, umedeceu-o na língua e amassou-o fazendo uma bolinha. Colocou-a no ouvido e voltou à posição de atirar.
— É estranho não poder engatilhar esta arma - ele disse. -Tenho a sensação de que ela está pronta e eu não.
— Não estou ouvindo nada - gritou Albie. - Estou com medo de que você atire quando eu tirar as mãos dos ouvidos.
A arma estava relativamente perto do ouvido que Rayford protegeu com a bolinha de papel. Quando ele apertou o gatilho, recebeu um tranco que o atirou de costas contra o capo do caminhão, fazendo-o cair sentado no pára-choque e, em seguida, no chão. A explosão soou como uma bomba e o deixou surdo por alguns instantes, impedindo-o de ouvir o eco. Rayford ficou satisfeito por não ter apertado novamente o gatilho no momento em que caiu no chão. Albie olhava para ele com ar de expectativa.
— Você tinha razão - disse Rayford, com o ouvido zumbindo. - Foi uma experiência!
— Veja - disse Albie, apontando para um local distante. Rayford semicerrou os olhos para ver melhor. A pedra parecia intacta.
— Eu a atingi? - ele perguntou.
— Você acertou na árvore!
Rayford mal podia acreditar. A bala tinha atingido o tronco a uma altura de quase três metros do chão, um pouco abaixo dos galhos.
— Eu preciso ver isso - ele disse, levantando-se do chão com esforço.
Albie o seguiu e, ao chegar perto, viu que mais da metade do tronco havia sido decepada. A outra parte que ficou intacta não agüentou o peso dos galhos e a copa da árvore desabou no chão, caindo ao lado da pedra.
— Ouvi falar que existem cirurgiões de árvores - disse Albie. - Mas...
— Quantas balas ela comporta?
— Nove. Quer tentar novamente para ver se consegue acertar o que você está mirando?
— Vou ter de contrabalançar o peso. Ela puxa para cima e para a direita.
— Não, não puxa.
— Você viu o que eu acertei. Eu estava mirando o meio da pedra.
— Perdoe-me, capitão, mas o problema não estava na arma. Estava no atirador.
— O quê?
— Em sua profissão, diriam que foi um erro do piloto.
— O que foi que eu fiz?
— Você hesitou.
— Não hesitei.
— Hesitou. Você esperou ouvir o som forte e a ação e, sem querer, apontou o tambor para cima e para a direita. Desta vez, além de concentrar-se no que você está fazendo, firme bem o pé atrás para poder suportar o tranco com as duas pernas.
— É muita coisa para a gente pensar.
— Tente. Caso contrário, você vai cair no chão outra vez e dar um tiro de misericórdia na árvore.
Rayford tapou os dois ouvidos, firmou a perna direita no chão e dobrou levemente o outro joelho. Ele não poderia hesitar de jeito nenhum no momento de apertar o gatilho. Com os ouvidos bem tapados e atento para não bater com as costas no caminhão, ele mirou a pedra e atirou. Uma parte enorme do topo explodiu! Rayford recolheu do chão um pedaço de pedra de cerca de 25 centímetros de diâmetro por 8 centímetros de espessura.
— A propósito, quem fabrica esta coisa?
— Só sabe quem precisa saber.
— Ela não tem marca - disse Rayford. - Como é o nome dela?
— As pessoas que conhecem a arma a chamam de Sabre.
— Por quê?
Albie encolheu os ombros.
— Talvez para que a outra parte da peça possa ser chamada de bainha. Quando o bloco e a arma se encaixam, a peça fica parecida com uma espada dentro da bainha.
Albie mostrou novamente a Rayford como montar a peça e a colocou numa sacola de papel. Em seguida, levou Rayford de volta ao centro da cidade no velho caminhão.
_ Você deve saber que eu não carrego tanto dinheiro assim - disse Rayford.
— Eu a recebi em consignação. Você pode me mandar o dinheiro daqui a duas semanas?
— Mac vai cuidar disso. -Muito bom... In!... Oh!...
Rayford levantou a cabeça. A estrada que dava acesso à área comercial estava bloqueada por carros das Forças Pacificadoras da CG com luzes pisca-pisca. Albie desviou pelas ruas secundárias. Quando eles avistaram o café, Albie parou bruscamente e deu um longo suspiro. Rayford foi atirado para a frente, batendo a cabeça no pára-brisa. Uma multidão estava na rua. Não havia ninguém no café, a não ser os Tuttles.
Trudy continuava sentada na mesma posição em que Rayford a deixara, com a cabeça apoiada nos braços sobre a mesa. Mas havia um enorme buraco na parte detrás de sua cabeça, e ela estava coberta de sangue, que pingava no chão.
Ao lado dela, de frente para Rayford, estava o grandalhão, loiro e sardento Dwayne. Sua cabeça tinha sido atirada para trás, e seus braços pendiam ao longo do corpo, mãos abertas e polegares apontando para fora. Em sua testa, havia uma perfuração redonda, de onde jorrava sangue formando uma poça debaixo da cadeira em que ele estava sentado.
Rayford fez menção de abrir a porta do caminhão, mas sentiu os dedos de Albie agarrando-lhe o braço com força.
— Você não pode fazer nada por eles, amigo. Não mostre a cara na frente de seus inimigos. Dê-me seu celular.
Atordoado, Rayford entregou-lhe o celular. Em seguida, começou a esmurrar o painel do caminhão, enquanto Albie afastava-se em marcha a ré do local, atravessando um terreno arenoso. Ele falou rapidamente em sua língua nativa. Em seguida, desligou o celular e o colocou ao lado de Rayford.
Rayford não conseguia parar de esmurrar o painel. Sua cabeça latejava, e os punhos doíam por causa dos murros. Seus dentes estavam cerrados, e seu cérebro zunia. Parecia que sua cabeça ia explodir. O instinto lhe dizia para orar, mas ele não conseguia. Suas forças se esvaíam como se ele tivesse deixado uma torneira aberta. Afundou-se no banco do caminhão.
— Preste muita atenção - disse Albie. - Você sabe que quem fez aquilo está atrás de você. Eles vão ficar de tocaia no aeroporto e talvez já tenham colocado um caça ou dois no ar. Você sabe pilotar aquele avião?
— Sei.
— Eu pedi a um funcionário da torre que avisasse que o aeroporto ia ficar fechado por causa de ventos na redondeza. Ele vai dar dez minutos para o pessoal sair antes de apagar as luzes da pista. Ele me disse que não há ninguém perto de seu avião, mas que há muito mais gente no aeroporto do que o normal. O local vai estar escuro e vazio, assim espero, quando chegarmos lá. Mas, para maior segurança, vou pedir que você desça antes que eu entre na torre. Caminhe no escuro até seu avião. Quando eu ouvir o barulho dos motores, acendo as luzes da pista para você.
Rayford não conseguia falar e muito menos agradecer a Albie. Ali estava um homem que nem sequer era crente, mas era inimigo de Carpathia e estava disposto a fazer qualquer coisa para contrariá-lo. Albie não conhecia a situação de Rayford e pedira-lhe, insistentemente, que não lhe contasse. Ele não queria saber. Porém, ao tentar ajudar Rayford, estava arriscando a própria vida. Rayford jamais se esqueceria disso.
Eles estavam chegando ao aeroporto quando as luzes se apagaram e uma pequena fila de carros saiu do estacionamento. Albie parou e fez sinal a Rayford para que descesse, apontando para a área ao redor do aeroporto, agora completamente às escuras. Rayford pegou a sacola e começou a descer, mas Albie o segurou e abriu a peça de aço. Em seguida, entregou as duas partes a Rayford. Colocou um pouco mais de munição na palma da mão e a despejou no bolso de Rayford.
— Para uma eventualidade - ele disse, guardando a sacola de papel vazia debaixo do banco.
A raiva deixou Rayford com a garganta apertada, impedindo-o de falar. Ele guardou a arma em um dos bolsos e o bloco no outro, pegou seu celular e estendeu a mão para Albie. Eles trocaram um forte aperto de mão.
— Eu sei, eu sei... - disse Albie. - Agora vá.
Rayford caminhou apressado no escuro pelo terreno arenoso, livrando-se do mato rasteiro e ouvindo sua própria respiração ofegante. Quando finalmente suas cordas vocais destravaram, ele começou a gemer a cada respiração. De repente, deu um urro abafado, tão forte e agudo que chegou a ficar zonzo e quase caiu no chão. Quando estava a uns 30 metros do avião, ele ouviu o som de passos atrás dele e um grito.
— Rayford Steele! Pare em nome das Forças Pacificadoras da Comunidade Global!
— Não! - resmungou Rayford. Ele continuou a caminhar e enfiou a mão no bolso para pegar a arma.
— Você está preso!
Ele continuou a caminhar.
— Pare ou eu atiro!
Rayford sentiu um comichão nas costas. Parecia um acontecimento distante e irreal ele ter ludibriado um outro homem da CG naquele mesmo dia... Ele sacou a arma e virou-se.
Com a fraca luz que vinha da estrada, ele avistou o vulto do homem da CG aproximando-se, de arma em punho.
Rayford parou.
— Não me obrigue a atirar em você! - ele gritou, mas o homem continuou a caminhar em sua direção.
Rayford apontou a arma para baixo e atirou no chão, a cerca de um metro do homem, levantando uma nuvem de areia. O homem voou para trás e caiu de bruços com um grito, soltando a arma. Rayford correu na direção do avião. Ao olhar por cima do ombro, ele viu o homem estendido imóvel no chão.
Deus, não permitas que ele morra! ele orou, abrindo a porta com força e mergulhando dentro do avião. Quando fechou a porta, ele viu que estava banhado de suor. Eu não queria matar aquele homem!
Rayford pulou por cima do encosto da poltrona do piloto e ligou os motores. O ponteiro do mostrador do tanque de combustível subiu, os outros dispositivos brilharam no painel e as luzes da pista foram acesas.
— Tudo certo? - ele perguntou pelo rádio, tomando o cuidado de não mencionar o nome de Albie.
— Dois fantasmas a seis milhas ao norte - soou a resposta. Eles poderiam alcançá-lo em segundos, mas esperariam que ele seguisse para oeste e decolasse rapidamente.
Rayford olhou para a sua esquerda antes de alcançar a velocidade para decolagem. O homem da CG conseguira levantar-se do chão e cambaleava como se estivesse recuperando a respiração e procurando sua arma. O Super J subiu suavemente e Rayford rumou para o sul, permanecendo abaixo da linha do radar até ter a certeza de que não estava sendo seguido. Pouco depois, ele acelerou o mais que pôde. O impulso fez seu corpo grudar no encosto da poltrona. Ele embicou o avião na direção das estrelas e rumou para o oeste. Tudo o que ele queria era cruzar o céu, alcançar a velocidade máxima na altitude mais favorável e voltar para casa a fim de rever seus companheiros.

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Passava um pouco do meio-dia em Illinois. Tsion Ben-Judá estava em pé olhando para fora através da janela do andar superior da casa secreta. O verão se aproximava. Ele acabara de fazer uma refeição leve com Buck, Chloe, o bebê e Leah. Leah havia revelado ser uma mulher extraordinária e fervorosa. Ele não entendia por que Rayford se aborrecia com ela. Para Tsion, ela era muito simpática.
Ele havia quase terminado sua mensagem aos fiéis e ia começar a revisão que seria transmitida dali a poucos minutos. Na mensagem, ele advertia que quanto mais o calendário se aproximasse de setembro - o 42° mês do período da Tribulação - o número de mortes provocadas pelos 200 milhões de cavaleiros chegaria cada vez mais perto de atingir a terça parte da população. A gravidade da mensagem entristeceu Tsion, e ele sentiu um súbito desejo de orar por seu velho mentor e compatriota, Chaim Rosenzweig.
Pai, ele orou, já não sei mais como orar por meu amigo. Prosseguindo em sua intercessão, ele citou um versículo bíblico: "Também o Espírito, semelhantemente, nos assiste em nossa fraqueza; porque não sabemos orar como convém, mas o mesmo Espírito intercede por nós sobremaneira com gemidos inexprimíveis. E aquele que sonda os corações sabe qual é a mente do Espírito, porque segundo a vontade de Deus é que ele intercede pelos santos." E, concluiu dizendo: Obrigado, Senhor.
E, quando abriu os olhos, Tsion Ben-Judá pensou, a princípio, que estivesse sonhando. Tomando conta de todo o seu campo de visão, do outro lado da vidraça, havia um exército de cavaleiros montados em cavalos preparados para a guerra. Centenas e centenas de milhares, cavalgando, cavalgando. A cabeça do cavalo era semelhante à cabeça de um leão, e ele expelia fogo e fumaça pela boca.
Tsion já havia escrito a esse respeito, tinha ouvido relatos de outras pessoas, desejando no íntimo ter um vislumbre dessa cena. Mas agora, enquanto os fitava com os olhos arregalados, sem piscar, querendo chamar os companheiros, principalmente Buck, que também não os havia visto, ele não conseguia proferir uma só palavra.
No meio do dia, com o sol da primavera a pino banhando a cena, o imenso exército de cavaleiros parecia irado e determinado. Suas couraças coloridas brilhavam, e os enormes animais nos quais eles estavam montados lado a lado movimentavam-se fazendo um ruído estrondoso, ganhando velocidade e passando do trote para o galope e do galope para uma corrida desenfreada. Parecia que o tempo deles havia chegado. As incursões ocasionais tinham sido um simples ensaio. A cavalaria demoníaca, que só pouparia os escolhidos de Deus, disparou enraivecida para atacar toda a Terra. Aquele certamente seria seu ataque final.
— Tsion! - chamou Buck, do pé da escada. - Olhe pela janela! Rápido!

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Rayford ajustou os controles do Super J no rendimento máximo do piloto automático. O cansaço havia tomado conta de seu corpo, mas ele não queria cochilar, mesmo tendo uma tecnologia tão avançada à sua disposição. Quando pegou o celular para ligar para casa, seus olhos captaram uma cena estranha a algumas milhas abaixo. Fogo e rolos de fumaça preta e amarela subiam partindo de uma infinita extensão de milhões de cavaleiros e cavalos agitados, que cruzavam rapidamente o oceano em direção à terra.

DEZENOVE





Três Meses Depois


O mês de agosto começou quente e úmido em Monte Prospect, sem vento, e o ar estava quase tão parado quanto Rayford. A casa secreta não possuía ar-condicionado e, com a morte da metade da população mundial desde o Arrebatamento, nada voltara a ser como antes.
Um terrível pressentimento tomava conta de todos da casa. Os ânimos estavam exaltados, e os nervos, à flor da pele. O bebê já dava seus primeiros passos e falava algumas palavras, passando a ser o único a trazer um pouco de alegria à casa. Mas Kenny também andava irritado com o calor, e até mesmo Tsion saía da sala quando a criança começava a ficar irrequieta e Chloe não conseguia acalmá-la.
Se o Arrebatamento havia imposto um sofrimento coletivo ao mundo por causa da perda de familiares e de todas as crianças, e o terremoto da grande ira do Cordeiro modificara o modo de vida e a forma de locomoção do povo, os julgamentos que se seguiram haviam sido piores ainda. A escuridão temporária do Sol, da Lua e das estrelas, a destruição de um terço da população da Terra por meio de fogo, o envenenamento de um terço da água e agora a matança de mais de um bilhão de pessoas... bem, pensava Rayford, seria difícil haver alguém com as idéias no lugar.
Talvez não houvesse. Talvez todos tivessem enlouquecido. Rayford alimentava pensamentos que ele próprio considerava absurdos. Haveria a possibilidade de acordar ao lado de sua querida esposa Irene - tão negligenciada e desprezada -, de ver Raymie, de apenas 12 anos, dormindo no quarto, no fim do corredor, de ainda ter tempo de ser o marido e o pai que deveria ter sido? Teria isso tudo sido apenas um aviso em forma de sonho, como o daquele personagem do famoso conto de Natal de Charles Dickens, que viu como seria terrível sua vida futura se não mudasse seu modo de ser?
Será que ele despertaria um novo homem, pronto para entregar sua vida a Deus, exercendo influência positiva sobre sua filha, sua esposa e seu filho?
Talvez fosse possível, não? Ou tudo continuaria a ser o pior dos pesadelos? Rayford sabia que seu cérebro limitado não havia sido programado para assimilar todo o sofrimento que lhe fora imposto. Ele não queria mais nem pensar em tudo o que vira, tudo o que perdera. A dor havia sido maior do que um mortal poderia suportar e, mesmo assim, ele continuava vivo.
O mundo inteiro tinha sido convidado para a Festa de Gala Global a realizar-se dali a um mês em Jerusalém. Como Carpathia ousava fazer tal festa? Como poderia concordar com essa grande comemoração, sabendo que o número de pessoas mortas na última praga havia sido maior do que o de desaparecidos no Arrebatamento, três anos e meio antes?
Tsion alertou seus leitores a não comparecerem, a não se deixarem induzir pelas profecias que indicavam aquela data como a derrocada da fé mundial, o tempo determinado para as duas testemunhas e para a morte de Carpathia. Apesar de morar na mesma casa, Rayford também lia as mensagens diárias de Tsion, assim como todos os que residiam ali. Tsion escrevera o seguinte a respeito da malfadada Festa de Gala Global:
Estranhei ter sido convidado como um "estadista internacional". Tudo foi perdoado, eles declararam anistia aos dissidentes e nos garantiram proteção. Bem, meus queridos amigos, irmãos e irmãs em Cristo, eu não comparecerei. Há uma profecia que diz que um terremoto exterminará a décima parte daquela cidade. Não temo por minha vida, porque meu futuro está assegurado - da mesma forma que o de todos os que se entregaram a Cristo para receber perdão e vida eterna.
Porém, não optei por testemunhar pessoalmente o mais singular e o mais histórico dos eventos, porque está evidente que Satanás marcará presença ali. Minha família foi trucidada em retaliação ao "pecado" que cometi por manifestar em público minha crença de que Jesus é o Messias aguardado há tanto tempo. Durante a fuga de minha terra natal até o local onde me encontro exilado, fui oprimido pela terrível presença do autor da morte.
A morte estará pairando no ar em Jerusalém no próximo mês, meus amigos, apesar da maneira vistosa como este evento vem sendo embrulhado e vendido ao mundo. É uma afronta transformar uma festa em desculpa para reunir essa gente. Por um lado, o tal potentado mundial decreta o fim dos sacrifícios e oferendas no templo, porque violam os princípios da tolerância defendidos pela Fé Mundial Enigma Babilônia. Por outro, ele tem em mente comemorar o acordo entre a Comunidade Global e Israel. Como podemos juntar estas duas coisas? Embora o potentado tenha intimidado o mundo e impedido que inimigos em potencial atacassem Israel, ele passa por cima das tradições milenares desse povo e trai sua herança e autonomia religiosa.
Da mesma forma que o restante do mundo, acompanharei os festejos pela Internet ou pela televisão. Porém, meus queridos, não aceitarei o convite para comparecer. Esse evento antecede a segunda metade da Tribulação, chamada a Grande Tribulação, que fará com que estes dias terríveis que estamos vivendo pareçam apenas cansativos.
Nem mesmo os meios de comunicação controlados pela CG poderão dourar a pílula daquilo que sabemos ser a verdade. O crime e o pecado estão descontrolados. Os gêneros de primeira necessidade começam a faltar por escassez de mão-de-obra e de condições para fabricá-los e distribuí-los. Apesar disso, por todos os cantos da Terra continuam a existir bordéis, sessões espíritas e casas de quiromancia ou templos pagãos para adoração de ídolos. A vida passou a ser insignificante, e nossos concidadãos morrem diariamente deixando casas e negócios nas mãos de saqueadores. Não existem Forças Pacificadoras suficientes para fazer o policiamento, porque grande parte de seu contingente morreu, e aqueles que continuam trabalhando estão sendo subjugados ou são corruptos.
Mesmo com um número tão reduzido de pessoas em todos os ramos de atividade, é impressionante observar que muita coisa ainda continua a prosperar. Praticamente, não existem mais filmes e programas novos na TV, mas a pornografia e a perversão proliferam nas centenas de canais que ainda funcionam, sendo livremente assistidos por qualquer um que tenha um televisor em casa.
Estes tempos sombrios não nos causam surpresa, meus queridos irmãos e irmãs. Oro para que vocês se mantenham firmes e continuem a divulgar a verdade até a volta de Jesus. Daqui em diante, vocês passarão a maior parte do tempo lutando para sobreviver. Exorto a todos que se preparem, que tracem planos para enfrentar o inevitável dia em que a proibição de entrar neste site ou de declarar-se cristão passará a ser mais abrangente. Estejam preparados para o dia em que será exigida a traiçoeira marca da besta na testa ou na mão para poder comprar ou vender legalmente.
É muito importante que vocês não cometam o erro fatal de pensar que podem estampar aquela marca por conveniência e, ao mesmo tempo, ser um crente em Cristo. Ele deixou bem claro: "Aquele que me negar diante dos homens, eu também o negarei diante de meu Pai." Nas próximas mensagens, explicarei por que a marca do demônio não pode ser invalidada.
Se vocês já aceitaram a Cristo e estão salvos, por certo possuem o selo de Deus na testa, visível apenas aos crentes. Felizmente, o selo na testa e a decisão que vocês tomaram também não podem ser invalidados, portanto não há motivos para ter medo de perder a posição que ocupam perante Ele. Porque está escrito: "Quem nos separará do amor de Cristo? Será tribulação, ou angústia, ou perseguição, ou fome, ou nudez, ou perigo, ou espada? Em todas estas coisas, porém, somos mais que vencedores, por meio daquele que nos amou." Assim como o apóstolo Paulo, "estou bem certo de que nem morte, nem vida, nem anjos, nem principados, nem coisas do presente, nem do porvir, nem poderes, nem altura, nem profundidade, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo Jesus nosso Senhor".
Mesmo em meio a provações e tribulações, devemos continuar a agradecer a Deus, que nos dá a vitória por meio de nosso Senhor Jesus Cristo. A Bíblia também diz: "Portanto, meus amados irmãos, sede firmes, inabaláveis, e sempre abundantes na obra do Senhor, sabendo que, no Senhor, o vosso trabalho não é em vão."
Permaneçam firmes no amor. Seu amigo,
Tsion Ben-Judá
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Hattie estava presa, sem saber da morte de sua irmã, e Rayford sentia-se responsável por ela.
Os assassinatos de Dwayne e Trudy Tuttle foram um golpe duro para o coração dele.
A reação de Bo Hanson diante da morte do irmão serviu apenas para aumentar o desespero de Rayford. T foi incumbido de dar a notícia a Bo, porque demonstrara ser amigo dele, apesar das diferenças de idéias entre ambos. Rayford havia tido uma discussão acalorada com Bo, e agora esperava que T conseguisse dar um testemunho cristão ao rapaz quando lhe transmitisse a triste notícia. Depois disso, talvez Rayford pudesse desculpar-se por seu mau comportamento e tivesse a oportunidade de ver o rapaz aceitar a Cristo.
T retornara animado de seu encontro com Bo. Depois de um telefonema, ele se dirigiu ao apartamento do rapaz e contou-lhe o que havia acontecido. Entre lágrimas, Bo lhe perguntou sobre o bilhete que recebera de Sam.
— Eu disse a ele que o bilhete foi forjado pela CG, Ray - explicou T. - Aparentemente, ele aceitou. Chorou muito, sentindo-se culpado. Disse que entregou seu irmão por dinheiro. Mas ele não fez isso. Simplesmente cometeu o erro de envolver Sam em um plano malfeito. Bo estava abatido quando o deixei, mas permitiu que eu orasse com ele. Achei que foi um grande passo.
— Tenho certeza disso - disse Rayford -, mas você não quis encontrar-se comigo só para dar esta boa notícia. O que aconteceu?
T recostou-se na cadeira e deu um longo suspiro.
— Bo se matou ontem à noite, Ray. Bebeu demais em um bar, sacou uma arma, amaldiçoou Carpathia e o mundo e deu um tiro em si mesmo.
Rayford passara dias e dias inconsolável.
— Parece que fui eu que puxei o gatilho - ele dizia.
O pessoal do Comando Tribulação o consolou dizendo que ele não era culpado. Finalmente, Rayford concordou com seus companheiros e jogou a culpa naquele que era o responsável por tudo: Nicolae Carpathia.
Rayford passou a concentrar-se nas passagens proféticas a respeito da morte do anticristo, deixando de buscar os conselhos ou as interpretações de Tsion. Em sua obsessão, ele interpretava a Bíblia da maneira que lhe convinha, arvorando-se no agente escolhido por Deus para perpetrar o ato. Quando lia "se alguém matar à espada, necessário é que seja morto à espada", Rayford estremecia porque tinha certeza de que até mesmo Tsion acreditava que o versículo referia-se ao anticristo. Será que a mensagem era dirigida a ele? Um versículo mais adiante dizia: "[...] que façam uma imagem à besta, àquela que, ferida à espada, sobreviveu." Esta devia ser uma referência a uma das cabeças da besta que foi "golpeada de morte, mas essa ferida mortal foi curada".
Ele não conseguia compreender. Quem conseguiria? Sem a ajuda de Tsion, Rayford acreditava que encontrara uma explicação para aqueles versículos. Carpathia ia ser mortalmente ferido na cabeça por uma espada e, em seguida, voltaria a viver. Uma espada? Como era mesmo o nome que Albie deu àquela máquina mortífera fenomenal que Rayford escondera no porão, atrás de alguns tijolos soltos? Sabre.
Seria ele o autor? Teria condições? Seria dele a incumbência? Rayford sacudiu a cabeça, atordoado. Que pensamentos mais estranhos!

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Mac sentia a falta de Rayford. Para ele, Rayford tinha sido a voz da razão, um mentor, um exemplo de espiritualidade. Mac também gostava de David e Annie, dois jovens excelentes. Mas não tinha muita afinidade com eles. Abdullah era um ótimo co-piloto e companheiro de vôo, porém passava dias sem dizer quase nada, limitando-se apenas a responder às perguntas de Mac.
A vida era interessante, mas, certamente, nunca mais voltaria a ser divertida. Voar para as principais capitais e ouvir a incessante bajulação de Fortunato aos dez reis eram situações que se tornaram cansativas e, ao mesmo tempo, fascinantes. Ocupando uma tribuna na pista do aeroporto de Nairóbi, Leon discursou com grande pompa:
— Saúdo um dos principais potentados regionais de Sua Excelência Nicolae Carpathia, o ilustre Sr. Enoch Litwala.
O esquecimento do nome deste grande líder e renomado pacifista durante a fase inicial da escolha de um potentado regional para os Estados Unidos da África ficará registrado na história da Comunidade Global como um fato constrangedor. Talvez tenhamos nos lembrado dele um pouco tarde, mas nós o descobrimos, não? A multidão aplaudia seu filho favorito. Leon prosseguiu:
— Sua Excelência envia suas mais sinceras saudações à África e os mais altos elogios pelos objetivos internacionais alcançados. Em nome de Sua Excelência, tenho o prazer de convidar o novo potentado para a Festa de Gala Global a realizar-se no mês de setembro em Jerusalém!
Após aguardar alguns instantes até que a multidão se aquietasse, Leon deu um tom de seriedade à voz.
— Temos atravessado tempos difíceis e enfrentado perdas de muitas vidas. Mas Sua Excelência não está poupando esforços nem dinheiro para a realização de uma festa como nunca se viu antes. Além de comemorar a metade do período de vigência do tratado de paz com Israel, também tenho a satisfação de afirmar-lhes que recebi permissão para comunicar publicamente que Sua Excelência está garantindo - sim, os senhores ouviram bem -, garantindo um fim aos dois assassinos. Os senhores querem saber como ele fará isso? O potentado afirma que, se as tais testemunhas diante do Muro das Lamentações não desistirem de atormentar o povo de Israel e o restante do mundo, ele próprio se incumbirá de lidar com os dois.
Esta mensagem foi repetida em todas as capitais, sendo recebida com entusiasmo pelo povo. Mac achava que as pessoas estavam tão cansadas de morte e devastação e tão prisioneiras de seus pecados que queriam desfrutar a vida antes que os dois profetas que pregavam a condenação soltassem o anjo do céu. Será que Carpathia assassinaria os dois? Ele já não havia feito esta ameaça antes? E acabou ridicularizado pelos profetas. Mas agora ele estava garantindo. E estava também empenhando sua palavra de que ajudaria o povo a comparecer à Festa de Gala Global, apesar da escassez de serviços públicos em razão do número reduzido da população.
— Estamos prestes a presenciar uma reviravolta dramática em direção aos nossos objetivos e ideais que visam a uma sociedade utópica - disse Fortunato, citando as palavras de Carpathia. A Festa de Gala Global marcaria o primeiro passo.
Mac achava estranho ver o anticristo envolvido pessoalmente em um assunto de relações públicas, tentando salvar sua imagem.
Nas capitais, Leon prosseguiu em seus elogios aos potentados regionais incluindo promessas da Comunidade Global para melhorar o serviço público.
— Vamos trabalhar com mais vigor e mais afinco - ele dizia -, para atender às necessidades dos senhores. Dentro de uma década, a única lembrança amarga será a tristeza por causa daqueles que perdemos. A palavra inconveniência fará parte do passado, porque trabalharemos juntos até conseguir uma tecnologia de ponta que nos proporcione serviços de alto nível como jamais imaginamos.
Havia sempre uma sessão de fotografias reservada para a imprensa controlada por Carpathia, nas quais Fortunato observava, com ar solene, as áreas subdesenvolvidas em conseqüência do alto índice de mortalidade. Em seguida, ele beijava os bebês e os levantava nos braços, proclamando "o futuro da Comunidade Global". Depois de atrair o entusiasmo dos habitantes do local, ele convidava o potentado regional para entrar no majestoso Fênix 216 para "uma reunião confidencial de alto nível, na qual o líder dos senhores poderá melhor representar as necessidades desta região".
Fortunato ouvia o que os potentados tinham a lhe dizer e fazia promessas que nem mesmo um milhão de Carpathias poderiam cumprir. E, em cada reunião particular, o assunto principal passava a girar em torno da "situação da Fé Mundial Enigma Babilônia". Enquanto ouvia a conversa pelo sistema de escuta clandestina, Mac notou que a maioria dos potentados sabia exatamente o que Leon queria dizer, assim que o assunto era levantado. Alguns perguntavam: "De que situação o senhor está falando?", mas, no momento em que Leon partia para visitar uma nova região, ele já sabia com quais potentados poderia contar. O fato mais surpreendente para Mac era que todos afirmavam estar fazendo oposição ao arrogante Peter Segundo.
Mac ficou tão intrigado que resolveu ter uma conversa telefônica particular com Tsion, apesar da diferença de fusos horários. O telefonema foi atendido por Leah, que passara a coordenar todas as ligações. Mac lhe garantiu que, se Tsion não tivesse tempo para atendê-lo, ele compreenderia. No dia seguinte, os dois conversaram pela linha sigilosa.
— Capitão McCullum, meu amigo, estou muito agradecido por toda a informação que você nos tem enviado. Isso tem facilitado muito o meu trabalho e me fornecido dados que eu jamais conseguiria sem sua ajuda. Em que lhe posso ser útil?
— Bem, senhor, tenho uma pergunta rápida a lhe fazer, assim espero. Sei que David tem mantido todo o pessoal informado, por intermédio de Leah, sobre a conspiração para instigar os dez reis contra Peter Segundo. Sabemos que nem todos os reis são leais a Carpathia, mas eles têm subido a bordo, um de cada vez, para ouvir coisas contra Peter. Minha pergunta é se eles estão apenas enrolando Fortunato ou estou sendo ingênuo demais a ponto de acreditar que a raiva deles contra Peter é verdadeira e todos estão de acordo?
— Excelente pergunta, capitão. Eu só não tratei ainda deste assunto pela Internet porque achei que estaria me expondo em demasia e me intrometendo no curso da História, o que seria um precedente perigoso. Devemos nos abster de tentar ajudar Deus a cumprir suas promessas. Se Ele disse que vai acontecer, vai acontecer.
— Mas nós sabemos - prosseguiu Tsion -, que os dez reis estão dispostos a conspirar contra Peter Segundo. É bíblico. Deus está elaborando seu plano eterno. Ele está usando esses reis da mesma forma que usou exércitos pagãos nos tempos do Antigo Testamento para punir seu povo e hoje usa exércitos demoníacos para chamar a atenção dos incrédulos. Em Apocalipse 17 lemos o seguinte: "Os dez chifres que viste" (estes são os reis, Mac) "e a besta, esses odiarão a meretriz" (que é a falsa religião, representada agora por Peter Segundo), "e a farão devastada e despojada, e lhe comerão as carnes, e a consumirão no fogo."
— Agora, preste atenção, capitão. O versículo seguinte responde à sua pergunta. Eles estão concordando com essa conspiração, mas, na verdade, não passam de egomaníacos que não concordam com nada, nem mesmo com Carpathia. E o motivo é este. Ouça atentamente o que vou ler. "Porque em seus corações incutiu Deus que realizem o seu pensamento, o executem à uma e dêem à besta o reino que possuem, até que se cumpram as palavras de Deus."
— Que coisa!
— Não é demais? É maravilhoso testemunhar o cumprimento da profecia.
— Obrigado, senhor.
— Você vai descobrir que, se esses reis pensam da mesma maneira, foi porque Deus quis assim. E você sabe que isso redundará na morte de Peter, não sabe?
— Imagino que sim.
— A pergunta é como e onde esse fato ocorrerá.
— Eu tenho uma idéia - disse Mac.
— Verdade? - perguntou Tsion.
Mac contou-lhe acerca da conversa particular entre Leon e o rei recentemente nomeado, o queniano Enoch Litwala. Fortunato ouviu a lista de sugestões e pedidos de Litwala e anotou tudo, dizendo o que pensava a respeito. Em seguida, mudou o assunto para Peter Segundo:
— Sua Excelência pediu-me que tratasse pessoalmente com você de uma situação muito delicada. Ele tem grande admiração por sua sabedoria e habilidade em compreender as circunstâncias, mas este é um assunto com o qual talvez você não esteja familiarizado. Você tem conhecimento de qualquer, digamos, hesitação por parte dos outros potentados regionais quanto ao... exibicionismo de Peter Segundo?
Litwala respondeu tão rapidamente que Mac precisou aprumar o corpo na cabina de comando e ajustar melhor o fone de ouvido.
— Não sei e não me interessa o que meus colegas pensam - disse Litwala -, mas vou ser franco com o senhor. Para mim, aquele homem é um sujeito desprezível. Ele é egoísta, apegado demais às leis, tem sangue-frio. Apropriou-se de enormes quantias de dinheiro para sua Enigma Babilônia que deveriam ter sido usadas em meu país para ajudar meu povo. Eu não o considero leal a Sua Excelência, o potentado e...
— Sério?
— Assim que ouviu falar que meu nome estava sendo cogitado para ocupar este posto, ele veio me ver. Voou até aqui, creio eu, neste mesmo avião. Este avião era dele, certo?
— Era.
— Ele tentou conquistar meu apoio para conseguir uma função mais abrangente no governo mundial, além da que já ocupa como religioso. Eu não disse nada. Acho que ele já tem prestígio demais. Por que eu haveria de querer que ele tivesse mais ainda? Eu disse que ia estudar suas propostas e, caso tivesse a honra de ser escolhido para ocupar esta posição, conversaria com os potentados regionais mais experientes para conhecer a opinião deles. Aparentemente, aquilo o deixou satisfeito. Ele tentou extrair de mim uma opinião negativa sobre o que eu penso a respeito de Sua Excelência, mas me limitei a ouvir. Não o provoquei nem contestei, mas também não revelei minha posição. Aquela conversa provou ser valiosa posteriormente.
— Muito bem, potentado Litwala. Ele acredita que conta com o apoio dos outros e supõe que você também vai ceder. Você concorda que ele representa um perigo em potencial para a harmonia da liderança da Comunidade Global?
— Não só um perigo em potencial. Ele é um perigo iminente.
— O que você proporia em relação a ele? Esta é a pergunta que Sua Excelência tem para você.
— Ele não gostaria de conhecer os meus sentimentos mais profundos.
— Talvez você tenha uma surpresa.
— Se o potentado gostar de saber que eu acho que Peter deve ser eliminado, isso me causaria uma grande surpresa.
— Para você, eliminado significa ser retirado diplomaticamente do...
— Para mim, supremo comandante, eliminado significa eliminado.
Houve um silêncio por alguns instantes. Litwala voltou a falar:
— Meu problema é que há poucas pessoas em quem confio.
Depois de tudo o que tive de suportar com Rehoboth e outros...
— Eu estou lhe dizendo que os outros potentados estão de acordo com esta idéia - disse Leon.
— Que ele deve ser eliminado?
— Exatamente. Outra pausa.
— Mas quem faria isso?
— Você precisa conversar com eles a esse respeito.
— Deve haver uma maneira de ter certeza de que estamos unidos, de que não existe nenhuma possibilidade de traição. Todos seremos igualmente responsáveis.
— Quer dizer todos contribuindo para o pagamento do responsável pela eliminação...
— Não! - disse Litwala. - Todos nós devemos ser igualmente responsáveis e culpados pela ação.
Depois que Litwala saiu da aeronave, Mac ouviu Fortunato conversando com Carpathia pelo telefone.
— O senhor conseguiu dobrar o novo potentado da África!... Verdade?... O senhor não está falando sério... É verdade?... Impressionante. O senhor já fez isso comigo?... Chegou a me hipnotizar... O que ele vai sugerir?... Todos os dez? Ao mesmo tempo? Assim, um não vai poder delatar o outro. Brilhante! Mac ligou para David.
— Você tem gravado as conversas telefônicas de Carpathia?
— O tempo todo.
— Ligue o gravador para ouvir. Você se lembra daquela história que Buck Williams contou sobre Nicolae, quando ele convenceu as pessoas de que elas tinham visto uma coisa que não aconteceu e que, dali em diante, só se lembrariam da história que ele próprio inventou? Acho que Nicolae acabou de contar a Leon que fez algo parecido outra vez.
— Eles ainda estão conversando?
— Estão.
— Vou ouvir a conversa ao vivo, Mac. Boa viagem.

___________

Quando David acessou o telefone de Carpathia, a conversa entre Nicolae e Leon estava terminando.
— Eu vou ficar totalmente fora dessa história - Carpathia estava dizendo. - Ninguém vai querer falar, não haverá arma, não haverá corpo. Apenas DNA suficiente nas cinzas para identificar o corpo, caso alguém desconfie, mas, como Peter não vai aparecer nunca mais, tenho certeza de que não haverá dúvida nenhuma.
— E quem confirmaria a enfermidade? Eles se atreveriam a envolver mais pessoas?
— Leon! Pense! Od Gustav.
— Ah, sim! O doutor Gustav. Por que precisaríamos usar alguém de fora se um dos dez pode assinar o atestado de óbito? Eu já disse que o senhor é brilhante, Excelência?
— Talvez, mas até mesmo um homem confiante como eu gosta de ouvir um elogio destes mais de uma vez.
— A idéia do gelo é estupenda. Estou falando sério. Não há outra palavra para descrevê-la.
— Obrigado, comandante. Boa viagem.
David sorriu ao ouvir as mesmas palavras que ele usara para despedir-se de Mac. Dois companheiros dizendo adeus. Dave e Mac; Nick e Leo. Duas duplas de parceiros traçando planos, tentando derrotar os concorrentes. Ele deu um longo suspiro. Só que a diferença entre as duplas era infinita.
David resolveu ouvir a gravação da conversa desde o início, quando Fortunato disse:
— O senhor conseguiu dobrar o novo potentado da África!
— E como! - disse Carpathia. - Eu tenho esse homem nas mãos desde o dia em que visitei a ONU pela primeira vez. Eu sabia que teria de esperar enquanto não resolvêssemos a situação com Ngumo ou Rehoboth. Percebi que esse sujeito era muito sugestionável!
— Verdade?
— Desde o início. Eu o hipnotizei por telefone uma vez. Disse que ele seria totalmente leal a mim, que meus inimigos seriam seus inimigos e que meus amigos seriam seus amigos.
— O senhor não está falando sério.
— Quer que eu prove? Ele está disposto a eliminar Peter, no sentido literal da palavra.
— É verdade?
— Ele quer todos metidos nisso, todos os dez. Que tal?
— Impressionante. O senhor já fez isso comigo?
— Fiz o quê?
— Chegou a me hipnotizar?
— Eu não preciso fazer isso, Leon. Você é o amigo e o conselheiro em quem mais confio. Com Enoch, consegui até a incutir um plano inteiro na cabeça dele. Ele vai pensar no assunto e, quando voltar a falar comigo, vai sugerir o que já está incutido na cabeça dele.
— O que ele vai sugerir? - perguntou Leon.
— Uma reunião em Jerusalém na manhã anterior à Festa de Gala Global. Ele vai convidar Peter para discutir a minha sucessão, vai dizer que Peter ocupará meu lugar se um determinado plano der certo. Será uma reunião entre Peter e os potentados.
— Todos os dez?
— Sim. A reunião será realizada no elegante Grande Hotel da Comunidade Global, onde as esculturas de gelo se tornaram muito populares. Eles vão encomendar uma grande escultura de Peter, em tamanho natural, retratando-o como um anjo poderoso com asas enormes e penas pontudas e afiadas. Enquanto os dez reis estiverem admirando a escultura, cada um deles pegará uma das afiadas penas de gelo. Peter vai estranhar o que está acontecendo. Nesse meio-tempo, cada um dos reis o atacará de diferentes ângulos, no pescoço, nos olhos, nas têmporas, no coração.
— Ao mesmo tempo? - quis saber Leon. - Assim, um não vai poder delatar o outro. Brilhante!
— As armas derreterão, o corpo será transportado para o crematório dentro de um saco que o potentado Gustav, da Escandinávia, trará na maleta. O corpo será queimado para evitar que se espalhe uma doença mortal, que provoca sangramento até a morte por secreções das membranas mucosas.
— Isso explicará os vestígios de sangue na sala de reuniões.
— Exatamente. Eu vou ficar totalmente fora dessa história. Ninguém vai querer falar, não haverá arma, não haverá corpo. Apenas DNA suficiente nas cinzas...

VINTE






Buck estava se sentindo desprezado.
Fazia muito tempo que ele e Chloe haviam começado a se desentender.
— Sei que temos apenas três anos e meio pela frente -ela disse -, mas você acha que eu quero criar esta criança sozinha?
— Nada de ruim vai acontecer - ele disse, tentando abraçá-la. Ela se esquivou.
— Você vai partir - ela disse. - Está escrito em seu rosto. Eu adoro Chaim, mas não é justo o que ele está pedindo.
— Se eu não for, Tsion irá, e não queremos isso. Chaim Rosenzweig havia recebido um convite para
comparecer à Festa de Gala Global como convidado de honra de Sua Excelência, o potentado. Chaim pedira a Jacov que avisasse o pessoal do Comando Tribulação por meio de uma mensagem criptografada no site de Tsion. Leah encontrou a mensagem, quase por acaso.
— Você sabe o que é isto? - ela perguntou a Rayford quando os dois estavam trabalhando, tarde da noite, em seus computadores na cozinha da casa secreta. - Estas iniciais não são coincidência, são?
Ela virou o laptop para que ele visse o que estava escrito na tela. A mensagem era uma entre as milhares enviadas ao site do Dr. Ben-Judá. Algumas o incentivavam, outras faziam perguntas, outras continham críticas ou ameaças. Parte do serviço de Leah era fazer uma triagem e separar as que precisavam de uma resposta pessoal. A maioria não necessitava. A mensagem que ela estranhara tinha-lhe chamado a atenção por ser muito curta e conter iniciais estranhas. Dizia o seguinte: "C (B) W ligue J ref patrão. Assinado, H."
— Não sei quem é J nem o que esse H significa - ela disse -, mas quantas pessoas sabem que podem enviar mensagens para Cameron (Buck) Williams neste site? Ou estou imaginando coisas?
Rayford analisou a mensagem e chamou Buck. Os três se sentaram diante da tela do computador de Leah. De repente, Buck pulou da cadeira.
— É Jacov! - ele disse. - Que esperto! Ele é marido de Hannelore e quer falar sobre Chaim.
Buck consultou seu relógio e fez a ligação. Eram sete horas em Israel. Jacov costumava levantar cedo.
— Ele foi convidado para a Festa de Gala Global - disse Jacov rapidamente. - Todos nós achamos que não deve ir. Ele não tem passado bem, fica acordado até tarde da noite. Sua aparência está horrível. Converse com ele, quem sabe ele desiste.
Pela voz, Chaim demonstrou que não estava bem. Ele tentou dar um tom jovial à conversa, mas seu acentuado sotaque israelense deixava transparecer cansaço e, às vezes, uma certa dificuldade para pronunciar as palavras.
— Eu não vou desistir, Cameron, mas insisti em levar meu criado e dois convidados. Disseram-me que posso ir acompanhado de quem eu quiser. Stefan tem aversão a Carpathia e diz que prefere pedir demissão a comparecer à festa. Jacov concordou em fazer as funções de motorista e criado.
— Dr. Rosenzweig, você não deve ir. Já leu as advertências de Tsion e...
— A advertência de Tsion é para aqueles que a Comunidade Global chama de seguidores de Ben-Judá. Eu gosto muito de Tsion e o considero como uma pessoa da família, mas não soa seguidor de Judá. Estou decidido a ir, mas quero que você e Tsion me acompanhem.
Buck revirou os olhos.
— Perdoe-me, doutor, mas você está sendo ingênuo. Nós dois somos considerados persona non grata perante a CG, e não confiamos nem um pouco na proteção garantida por Carpathia.
— Eles disseram que posso levar quantos convidados eu quiser.
— Eles não sabem quem você pretende convidar.
— Cameron, você e eu nos tornamos amigos, não?
— Claro.
— Nossa amizade não é profissional, certo?
— Certo, mas...
— Você é um cosmopolita. Devia saber que, em minha cultura, consideramos altamente ofensiva a recusa a um convite formal. Eu estou convidando formalmente você e Tsion para comparecerem à Festa de Gala comigo, e me sentirei insultado se vocês não aceitarem.
— Doutor, eu tenho família. O Dr. Ben-Judá é responsável por milhões de pessoas que contam com seus...
— Vocês estarão em minha companhia! O regime de Carpathia tem cometido atos abomináveis, mas ameaçar a segurança de alguém tão importante quanto Tsion na presença de um convidado de honra...
— Eu posso dizer-lhe de antemão, doutor, que Tsion não comparecerá. Nem sei se vou transmitir-lhe o convite. Talvez ele se sinta na obrigação de atender ao seu pedido, porque gosta muito de você, mas seria uma irresponsabilidade de minha parte...
— Você também gosta muito de mim, não, Cameron?
— Sim, gosto o suficiente para lhe dizer que isso é...
— Eu retiro o convite a Tsion se você vier. Buck hesitou.
— Eu não poderia usar meu nome verdadeiro. E, embora eu esteja com a fisionomia bastante diferente para passar pela alfândega, não vou poder aparecer a seu lado se você estiver perto da chefia da CG. Eles me reconheceriam imediatamente.
Chaim calou-se por alguns instantes. Em seguida, disse:
— Estou muito triste porque dois de meus amigos a quem prezo tanto, amigos que dizem que se preocupam muito comigo...
— Doutor, não fale assim. Não é verdade. Você quer que eu vá só porque está me fazendo sentir culpado? É justo? Você não está pensando em minha mulher e meu filho?
Rosenzweig, demonstrando total insensibilidade, ignorou completamente a última observação de Buck e perguntou:
— O que Tsion diria se você lhe contasse que eu talvez esteja pronto para ser um seguidor de Judá?
Buck suspirou.
— Antes de mais nada, ele detesta esse termo. Você, mais do que ninguém, deveria conhecer muito bem Tsion a ponto de saber que não faz parte do caráter dele ter seguidores. E tomar uma decisão a respeito de sua alma como se estivesse fazendo uma barganha...
— Cameron, eu já lhe pedi alguma coisa antes? Faz muitos anos que o considero um jovem cuja admiração por mim é gratuita, mas muito sincera. Acho que nunca tirei vantagem disso. Tirei?
— Não, e é por isso que...
— Você é um jornalista! Como pode querer não estar presente?
Buck ficou sem resposta. Na verdade, ele ficou com vontade de comparecer à Festa de Gala desde o momento em que ouviu falar dela. Ele mal podia acreditar que o próprio Carpathia estivesse patrocinando um evento no qual muitas profecias seriam cumpridas. Mas nunca pensara seriamente em ir, apesar de sentir um certo orgulho pela facilidade com que entrou e saiu de Israel usando um nome falso, pouco tempo atrás. Mas e Chloe? E Kenny? E os avisos de Tsion para que nenhum crente comparecesse? Buck considerava essa viagem fora de cogitação.
Finalmente, Chaim conseguira tocar no ponto vulnerável de Buck. Incrédulo ou crente, solteiro ou casado, com ou sem filhos, ele era jornalista desde que se conhecia por gente. Quando criança, sempre fora curioso - xereta, conforme diziam os amigos e a família -, mesmo antes de ter uma oportunidade de publicar suas histórias. Sua marca registrada era realizar uma reportagem incisiva e testemunhada pessoalmente. Ele só se sentia feliz de verdade quando estava trabalhando em alguma matéria, não ali escondido na casa secreta, onde o máximo que podia fazer era comentar material já publicado.
Sua hesitação pareceu animar Rosenzweig, como se ele soubesse que Buck mordera a isca e que dali em diante bastava puxar a linha e tirá-lo do anzol.
— Não estou dizendo que não quero estar aí - disse Buck vacilante, detestando dar um tom de lamento à voz.
— Então você virá? Isso significaria muito para...
— Não se trata de uma decisão que eu possa tomar sozinho - disse Buck, dando-se conta de que havia conseguido lavrar um tento. Depois de uma recusa taxativa, ele descobrira um meio de protelar sua decisão.
— Esta é uma das diferenças entre nossas culturas - disse Chaim. - O homem do Oriente Médio é dono do próprio nariz, de seus caminhos, não deve satisfações a...
— Eu não posso ser visto com você - disse Buck.
— Fico feliz só em saber que você estará lá, Cameron. Com certeza, encontraremos um momento para uma conversa particular. Vou retirar meu convite formal a Tsion, e não vou me alongar sobre nossas discussões de natureza espiritual.
— Você não precisa esperar por mim para tomar uma decisão, doutor. Na verdade, eu insisto que, antes de pensar em participar da festa, você deveria...
— Eu preciso discutir essas coisas pessoalmente, Cameron. Você compreende.
Buck não compreendia, porém, se permanecesse mais tempo ao telefone, receava fazer outras concessões. Mesmo tendo a certeza de que suscitaria a ira do Comando Tribulação, ele negociou uma condição.
— Eu insisto em uma coisa - ele disse.
— Ora, Cameron, você não vai voltar atrás, vai?
— Eu não quero que você esteja presente no segundo dia da festa.
Chaim não argumentou, mas Buck ouviu o som de papéis sendo revirados.
— O evento vai durar cinco dias - disse Rosenzweig -, de segunda a sexta-feira da próxima semana. O aniversário do tratado é na segunda. Nicolae quer que eu esteja presente na tribuna para essa comemoração. Na terça-feira, haverá uma festividade no Monte do Templo, onde eu receio que se inicie um confronto entre ele e os dois pregadores. É isto que você quer que eu evite?
— Exatamente.
— Concordo.
— Obrigado, doutor.
— As informações de que disponho exigem a honra de minha presença nas cerimônias de abertura e de encerramento. A abertura será na segunda-feira à noite, e o encerramento, na sexta-feira à noite.
— Por mim, você não compareceria a nenhuma delas.
— Ouvi você dizer que estaria lá.

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Annie e David desenvolviam cada vez mais seu relacionamento. Ele não gostou quando Annie lhe disse que, às vezes, ela achava que o namorado gostava mais dela como uma companheira subversiva do que como alguém que o amava. Olhando ao redor para ter certeza de que estavam sozinhos no final de um corredor, ele segurou o rosto de Annie e encostou a ponta do nariz no dela.
— Eu amo você - ele disse. - Em outras circunstâncias, eu me casaria com você.
— Você está me pedindo em casamento?
— Bem que eu gostaria. Você pode imaginar a pressão, o desgaste que estou sofrendo. Você também sente isso. As únicas duas pessoas crentes que vimos por aqui, além de Mac e Abdullah, foram aquelas duas mulheres que trabalham no inventário. Elas foram descobertas ontem à noite.
— Oh! não! Nem tivemos tempo de conversar com elas. Provavelmente pensaram que eram as únicas crentes.
— Elas foram enviadas para Bruxelas hoje cedo.
— Oh, David.
— Acho que nós também não vamos permanecer aqui por muito mais tempo. Não sei exatamente quando eles vão começar a exigir a tal marca, mas vamos ter de fugir antes.
— Eu quero ser sua esposa, nem que seja por poucos anos.
— Eu também quero me casar com você, mas não podemos fazer nada enquanto não soubermos se vamos conseguir sair juntos daqui. Se um de nós for embora e o outro não, a vida não terá mais sentido.
— Eu sei - ela disse. - Vamos ser os primeiros da lista quando Carpathia começar a exigir a marca da lealdade. E você sabe que ele vai começar aqui no palácio.
— É bem provável.
— Enquanto isso, David, seria melhor você dizer ao pessoal do Comando Tribulação nos Estados Unidos que, se eles precisarem viajar, agora é a melhor ocasião. Vi um documento que vai ser enviado às Forças Pacificadoras do mundo inteiro, dizendo que haverá um período de trégua no qual ninguém poderá ser preso nem detido até o término da Festa de Gala, nem mesmo os inimigos da Comunidade Global.

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Evidentemente, Buck não guardou segredo a Tsion sobre o convite feito por Rosenzweig. A partir daquele momento, Tsion começou a demonstrar uma melancolia inusitada. - Eu não vou dizer o que você deve fazer, Buck - ele disse na frente de Rayford -, mas gostaria que seu sogro o fizesse desistir.
— Para ser franco - disse Rayford na reunião seguinte -, eu gostaria de acompanhar Buck.
— Você está permitindo que ele vá - disse Chloe, carregando o filho de 14 meses no colo. Kenny virou-se para ela e cobriu-lhe os olhos com as mãos enquanto a mãe falava. Chloe precisou virar o rosto para enxergar. - Eu não posso acreditar. Então, por que você não vai com ele, papai? Por que não vamos todos nós? Se, ao que tudo indica, não vamos conseguir chegar até o final da Tribulação, que tal atirarmos todas as precauções pela janela? Que tal deixarmos Kenny órfão sem ter nem mesmo um avô?
— Kenny! - repetiu o bebê. - Vovô!
Rayford deu um tapa na perna e abriu os braços. Kenny escorregou do colo de Chloe e correu na direção do avô. Rayford o levantou acima da cabeça, fazendo-o gritar de alegria. Em seguida, sentou-o no colo.
— A verdade é que estou pensando em fazer uma viagem, mas não para Israel.
— Que ótimo! - exclamou Chloe. - Quer dizer que não temos mais direito a voto, que podemos fazer como Hattie, fugir para onde a gente quiser?
— Não estamos praticando uma democracia verdadeira -disse Rayford. Quando viu o olhar que Tsion lhe lançou, ele percebeu que estava pisando em terreno perigoso. O bebê desceu de seu colo e engatinhou até o outro cômodo. - Leah e eu temos conversado, e...
— Leah também vai viajar? - perguntou Chloe. - Não posso abrir mão do trabalho dela.
— Não será por muito tempo - disse Leah.
— Vocês já decidiram antecipadamente?
— Não estamos discutindo. Estamos simplesmente comunicando - disse Rayford.
— É claro. Vamos ouvir o que você tem a nos dizer. Rayford começou a falar com cautela, temendo demonstrar seus verdadeiros planos. No fundo do coração, ele queria ir a Jerusalém com seu Sabre. Mas ele disse:
— Precisamos fazer contato com Hattie. Sinto-me responsável por ela, quero saber se ela está bem, quero que ela saiba que continuamos a seu lado, quero ver o que podemos fazer por ela. E, acima de tudo, quero ter a certeza de que ela ainda não nos delatou.
Até Chloe não soube contra-argumentar.
— Hattie precisa saber o que aconteceu com a irmã dela, mas a CG está atrás de você, papai.
— Eles não vão suspeitar muito de uma mulher. Estamos pensando em fazer Leah se passar por tia materna de Hattie. Para isso, ela vai precisar mudar a fisionomia, ter uma nova cédula de identidade. Ela vai dizer que ouviu um boato ou que alguém fez vazar a informação de que Hattie está lá. Se eles não associarem Leah conosco, por que não permitiriam que ela entrasse em contato com Hattie?
— Mas justo agora, papai? Bem agora que Buck vai viajar?
— David nos disse que esta é a melhor ocasião para viajarmos. Em breve, será quase impossível ir a qualquer lugar.
— É verdade - disse Tsion.
Rayford olhou surpreso para ele, e percebeu que os outros também tiveram a mesma reação.
— Não estou apoiando essa viagem - disse Tsion. - Mas, se aquela pobre garota morrer na prisão separada de Deus, depois de ter morado debaixo de nosso teto por tanto tempo... - A voz de Tsion ficou trêmula e ele fez uma pausa. - Não sei por que Deus me fez sentir tanta ternura por aquela moça.
Chloe sentou sacudindo a cabeça, desanimada. Rayford sabia que ela não estava feliz, mas não tinha mais argumentos.
— T acha que seria muito arriscado eu voltar a voar no Super J e está preparando o Gulfstream - disse Rayford.
— Eu não ficaria surpresa se você dissesse que a viagem já está acertada - disse Chloe.
Rayford notou um ar de admiração resignada no rosto da filha, como se ela já aceitasse o fato de que ele nunca voltava atrás depois de ter metido um plano na cabeça.
— Buck pode voar conosco até Bruxelas. De lá, ele pode pegar um vôo comercial até Tel-Aviv. Com isso, economizaremos alguns dólares. Vou ficar escondido na Bélgica e me encontrarei com Leah quando ela terminar sua missão.
— Talvez Buck possa voltar com vocês - disse Chloe. - Isso vai depender de quanto tempo vocês vão querer esperar por ele em Bruxelas.
— Talvez - disse Rayford. - Você prefere assim, Chloe?
— É melhor que ele volte para casa com meu pai do que arriscar a vida voando por aí com uma tripulação desfalcada. Sim, prefiro. É claro que prefiro que ele não vá, mas, já que isso é impossível, que seja assim.

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O clima era de festa no Fênix 216 quando Mac e Abdullah partiram, na manhã de sábado, num vôo rumo a Israel com a aeronave lotada. Parecia que todo o setor administrativo de Carpathia estava a bordo, o que para ele era uma glória. Mac ligou o botão secreto enquanto Leon pedia que os passageiros se reunissem.
— Sejam todos bem-vindos - ele disse. - E, para o nosso convidado muito especial, que generosamente cedeu esta aeronave à Sua Excelência em tempos difíceis, enviamos uma saudação também muito especial.
Seguiu-se um aplauso discreto, e Mac gostaria de ter visto o rosto de Peter Mathews.
— O senhor teria alguma coisa a dizer antes que Sua Excelência tome a palavra, pontífice? - perguntou Fortunato.
— Oh! sim, obrigado, comandante. Eu... nós, da Fé Mundial Enigma Babilônia, aguardamos com ansiedade a realização da Festa de Gala. Como os senhores sabem, Israel é uma das últimas regiões a concordar com nossos ideais. Creio que teremos a oportunidade de dar um novo aspecto à fé mundial e que, a partir desta semana, conquistaremos muitos novos membros. Eu, francamente, gosto de ter oportunidades para desafiar dissidentes, e, sabendo que os dois pregadores e os seguidores de Judá estarão presentes, não poderá haver local melhor para fazer isso. É muito bom estar com vocês!
— Obrigado, sumo pontífice - disse Leon. - Agora, Sua Excelência...
Carpathia parecia extasiado, aguardando os acontecimentos.
— Minhas saudações pessoais a todos vocês - ele disse. -Creio que, um dia, vocês vão se recordar da próxima semana como o início do melhor momento de suas vidas. Temos sofrido da mesma maneira que o mundo inteiro em razão das pragas e mortes. Mas o futuro está claro. Sabemos o que temos de fazer e estamos felizes por isso. Divirtam-se!
É tempo de alegria, de festa. Jamais a liberdade pessoal foi tão comemorada. E posso dizer que há mais lugares em Jerusalém do que em qualquer outra cidade para vocês se divertirem. Regalem-se nos prazeres físicos e gastronômicos que mais lhes apetecerem. Mostrem ao restante da Comunidade Global que eles têm permissão para se entregarem aos prazeres epicuristas da carne mesmo nesses tempos difíceis e de caos que atravessamos. Vamos saudar o novo mundo com um festival que ninguém jamais viu. Muitos de vocês foram responsáveis pela organização desses momentos de lazer e diversão, e eu lhes sou muito grato. Mal posso esperar para assistir ao espetáculo!
Mac e Abdullah desfrutaram a regalia de ficar hospedados em quartos privativos adjacentes no exuberante Hotel Rei Davi, onde Carpathia reservara dois andares inteiros. O restante da comitiva foi acomodado em locais próximos, igualmente luxuosos. Os dez potentados regionais ficariam hospedados no Grande Hotel da CG, distante cerca de meio quilômetro do Hotel Rei Davi.
Durante os dois dias que precederam a abertura oficial da Festa de Gala, a tripulação da cabina foi incumbida de fazer viagens de ida e volta no 216 a Tel-Aviv. Na manhã de segunda-feira, eles ajudaram a conseguir transporte do Aeroporto Ben Gurion até Jerusalém para os potentados e suas enormes comitivas. Mac trabalhou com o serviço de segurança da CG para descarregar os detectores de metal que David colocara no compartimento de cargas, os quais foram instalados nos dois lados do gigantesco palanque construído a pouco menos de um quilômetro do Monte do Templo e do Muro das Lamentações. Todos os que estariam no palanque, desde artistas até convidados de honra, passariam pelos detectores de metal.
O piso do palanque estava a uma altura de quase quatro metros do chão e tinha uma área de cerca de 90 metros quadrados. Uma enorme cobertura de lona impermeabilizada protegia o lugar do Sol forte. Nas imponentes armações em formato de torre, foi instalado o sistema de alto-falantes, que transmitiria músicas e discursos à multidão estimada em dois milhões de pessoas. Estendendo-se ao fundo do palanque, uma cortina combinando com a cobertura de lona ostentava mensagens variadas, escritas nos principais idiomas ali representados. Elas saudavam os delegados e anunciavam a programação dos cinco dias da Festa de Gala Global, em meio ao reluzente logotipo da Comunidade Global.
Mac notou que a frase mais extensa impressa na cortina dizia o seguinte: Um Só Mundo, Uma Só Verdade: Liberdade Individual para Todos. Por toda parte, em todos os postes, muros e paredes, lia-se o slogan: Hoje É o Primeiro Dia do Restante da Utopia.
Enquanto Mac e Abdullah ajudavam na instalação dos detectores de metal, vários grupos musicais e de dançarinos ensaiavam, e os técnicos de som aglomeravam-se no local. Mac puxou Abdullah para perto de si e cochichou:
— Eu devo estar vendo coisas. Com quem se parece aquela moça, a segunda da esquerda para a direita?
— Eu estava tentando não olhar - disse Abdullah -, mas já que você insiste... Que coisa! Ela é muito parecida. Mas não é possível, é?
Mac sacudiu a cabeça, concordando que não era ela. Eles sabiam que Hattie estava em Bruxelas. Aquela moça se destacava das outras dançarinas por parecer um pouco mais velha. O restante não passava de um bando de adolescentes.
O chefe da segurança recordou aos músicos e dançarinos que ninguém poderia permanecer no palanque, a partir da cerimônia de abertura na noite de segunda-feira, sem portar um crachá e sem passar pelo detector de metais.
— Se vocês estiverem usando bijuterias ou jóias, devem retirá-las para que sejam examinadas antes de subirem ao palanque - ele disse.
Em uma reunião com os funcionários do setor de segurança, Mac ouviu o chefe instruir os policiais fardados dizendo que eles se revezariam na frente do palanque.
— Principalmente quando o potentado estiver diante do microfone - ele disse -, mantenham suas posições. Deixem que o público mude de lugar se vocês estiverem impedindo a visão. Vocês devem ficar em semicírculo, de oito em oito, com os pés afastados, mãos nos cintos, olhando para a frente. Não conversem, não sorriam, não façam nenhum gesto. Se forem chamados pelos fones de ouvido, não digam nada. Limitem-se a obedecer às instruções.
Mac sentiu uma grande tristeza enquanto caminhava até a van que levaria Abdullah e ele de volta ao Hotel Rei Davi. Olhou para trás e observou o palanque a distância, do outro lado do enorme terreno asfaltado. A música ensurdecedora voltou a tocar, e o grupo de dançarinos terminou uma seqüência de danças sensuais.
— Este é um novo mundo, Abdullah. Agora existe uma liberdade individual, sancionada pelo governo internacional.
— E até mesmo comemorada - disse Abdullah. De repente, ele parou e debruçou-se em uma cerca. - Capitão, nestas ocasiões eu sinto um desejo enorme de ir para o céu. Não quero morrer, principalmente da maneira como tenho visto acontecer com outras pessoas. Mas não será nada fácil viver até o dia do Glorioso Aparecimento.
Mac assentiu com a cabeça.
— Foi terrível o que aconteceu com os Tuttles. Provavelmente eles nem viram o que os atingiu. Acordaram no céu.
Abdullah olhou para o céu sem nuvens.
— Que Deus me perdoe, mas eu quero ter uma morte rápida e sem dor.
Mac ouviu Eli e Moisés pregando a uma distância de uns 800 metros, mas não conseguia entender o que eles diziam.
— Tenho ouvido falar muito sobre eles - disse Mac. - Acho que não seria muito arriscado se alguém nos visse lá.
— Eu adoraria ver os dois - disse Abdullah. - Que tal passarmos por lá a pé, no caminho de volta ao hotel? Não precisamos ficar no meio da multidão. Só vamos ver o que for possível e ouvir o que conseguirmos.
— Concordo plenamente, Smitty - disse Mac.
Ao longo do caminho, Mac e Abdullah passaram por bares, clubes de strip-tease, casas de massagem, prostíbulos, templos pagãos e estabelecimentos de cartomantes. Em uma cidade com uma história milenar de religiosidade e onde - da mesma forma que no restante do mundo - metade da população havia sido exterminada a partir do Arrebatamento, essas atividades não eram proibidas. Não funcionavam clandestinamente nem eram relegadas a uma determinada parte da cidade. Também não funcionavam no escuro por trás de portas negras ou entradas em formato de labirinto poupando ameaças "reais" àqueles que estavam ali de propósito.
Ao contrário, enquanto o resto da Cidade Santa parecia estar sucumbindo por negligência ou falta de mão-de-obra, ali se viam fachadas bem iluminadas e expostas, exibindo com orgulho todo o tipo de perversão e pecado carnal que o homem conhecia.
Mac apressou o passo, apesar da dificuldade que Abdullah tinha para andar, e os dois seguiram rapidamente em direção ao Monte do Templo e às duas testemunhas, como se elas fossem uma fonte em que lavariam toda a sujeira que haviam visto.

VINTE E UM






Da mesma forma que os demais moradores da casa secreta, Buck não conseguia entender o relacionamento entre seu sogro e Leah Rose. Ela parecia uma pedra no sapato de Rayford, mas ele tinha de reconhecer a grande contribuição que ela dera ao Comando Tribulação, além de sua fortuna.
Rayford discutia com Leah por causa de coisas insignificantes, e ela mantinha-se inflexível. Mesmo assim, eles passavam cada vez mais tempo juntos, à medida que a metade do período da Tribulação se aproximava. Após Rayford ter comunicado seus planos de levá-la a Bruxelas, a proximidade entre os dois ficou menos misteriosa para Buck. Aparentemente, Rayford necessitava que Leah lhe prestasse um serviço, e ela estava ansiosa por executá-lo. Talvez fosse esse o motivo da aproximação entre os dois.
Zeke Jr., o rapaz com o corpo tatuado e conhecido por Z, conseguiu ótimos resultados com os documentos que forjou para Leah. Sua fisionomia ficou totalmente modificada depois que ela tingiu os cabelos de loiro, colocou lentes de contato escuras e adaptou um imperceptível aparelho nos dentes que a deixou não muito bonita, com a arcada superior projetada para a frente. Leah passou a ser Donna Clendenon, da Califórnia, ex-esposa de um dos irmãos da mãe de Hattie Durham. Ela seria a portadora da notícia da morte de Nancy, a irmã de Hattie (o que, infelizmente, era um fato verídico). Rayford imaginava que essa notícia facilitaria sua entrada na prisão da Comunidade Global em Bruxelas, cujo nome havia sido mudado para Presídio de Reabilitação Feminina da Bélgica, conhecido popularmente como PRFB. Tratava-se de um presídio de segurança máxima. As mulheres que ali entravam dificilmente saíam. E, quando saíam, não estavam nem um pouco reabilitadas.
A esperança de Buck - e a de Rayford, assim ele imaginava - era que a CG considerasse Hattie uma pessoa valiosa demais para ser simplesmente eliminada. Carpathia devia considerá-la, no mínimo, uma isca para ajudá-lo a capturar Rayford, Buck ou até mesmo Tsion Ben-Judá. Os outros moradores da casa secreta esperavam que a CG não tivesse perdido a paciência com Hattie pela frustração de não ter conseguido, por duas vezes, agarrar Rayford.
Para Buck, a despedida foi relativamente suave, porque Chloe não quis manifestar o que sentia naquele momento. Ela lhe dissera em particular, e também durante a reunião, que considerava seu interesse pela Festa de Gala uma obsessão perigosa.
— Não estou querendo impedi-lo de fazer a cobertura de um dos eventos mais importantes da História, mas você está disposto a sofrer as conseqüências de um terremoto e, agora, os riscos são muito maiores. Você está mais preocupado em manter a palavra dada a Chaim do que em proteger sua família.
Mas no dia em que Chloe, Tsion e o bebê viram os três partindo, ela parecia ter decidido a não tocar mais no assunto. Buck entendeu que sua esposa se conformara. Ela permitira que ele ficasse bastante tempo com Kenny. Na hora da despedida, abraçou o marido e prometeu orar por ele, dizendo que seu amor jamais morreria.
— Espero que seu amor por mim também não morra - ela complementou.
— Meu amor por você jamais morrerá, mesmo que eu morra.
— Não foi exatamente o que eu gostaria de ter ouvido. Buck agradeceu a Chloe por ela ter permitido que ele viajasse. Ela deu-lhe um leve tapa no braço, dizendo:
— Como se eu tivesse escolha. Será que tornei sua vida tão infeliz assim? Acho que é por isso que você está indo embora.
Chloe conseguiu manter o bom-humor, apesar das lágrimas que teimaram em rolar por seu rosto quando Buck, Rayford e Leah saíram da casa secreta depois da oração de Tsion, que os abençoou e desejou-lhes boa viagem.

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— Você acredita nisso? - perguntou Mac a Abdullah enquanto eles olhavam com curiosidade para os refletores, cabos de TV e satélites montados perto do Muro das Lamentações. Parecia que o local havia sido tomado só por câmeras.
Abdullah, com seu costumeiro estilo lacônico, limitou-se a sacudir a cabeça.
Mac emocionou-se ao ver Eli e Moisés, mesmo a uma distância razoável. Eles estavam pregando as doutrinas do Evangelho aos gritos, e a multidão parecia alvoroçada. Alguém havia dito a Mac que, normalmente, o público ouvia os pregadores em silêncio, por respeito ou por medo. O povo mantinha distância daqueles dois homens estranhos, que, segundo diziam, lançavam fogo em direção a seus agressores deixando-os carbonizados. Ninguém queria correr tal risco.
Aquela multidão - maior do que o normal e mais turbulenta
— parecia composta de pessoas que chegaram antecipadamente para a Festa de Gala. Algumas saudavam, aplaudiam, assobiavam e diziam amém após cada frase proferida pelas duas testemunhas. Outras gritavam, vaiavam. Mac olhou espantado para algumas pessoas que dançavam e corriam em direção à cerca, como que querendo demonstrar valentia. Ficou claro que os pregadores sabiam distinguir entre assassinos em potencial e recém-chegados à cidade, que consideravam essa pregação parte da diversão da Festa de Gala.
O mais estranho, contudo, era um grupo de cerca de uma dúzia de pessoas que pareciam comovidas pela pregação. Elas se ajoelharam a uns três metros da cerca e estavam chorando. Eli e Moisés falavam, um por vez, suplicando ao povo que aceitasse a Cristo antes que fosse tarde demais. Aquele grupo estava atendendo ao apelo dos dois.
— Um motivo para sermos agradecidos - disse Mac -, no meio de toda esta confusão.
As duas testemunhas pareciam sentir urgência. Mac conhecia as razões. Também era aluno de Tsion e sabia que o "tempo determinado" mencionado por Eli e Moisés com tanta freqüência coincidia com o início da Festa de Gala Global, que ocorreria a pouco menos de um quilômetro dali.

___________

No caminho até Palwaukee, Buck conheceu um pouco mais do relacionamento - ou falta dele - entre Rayford e Leah. A conversa dela girava em torno de Tsion.
— Tsion?
— Ele parece tão solitário - ela disse.
— É verdade - concordou Rayford. - Com exceção de Chloe e de Buck, todos nós somos solitários, vivendo em aposentos isolados.
— Como se eu não soubesse... - ela disse, perguntando, em seguida, detalhes sobre a vida de Tsion antes de ele integrar-se ao Comando Tribulação. Buck lhe contou a história toda.
Em Palwaukee, T entregou o Gulfstream abastecido, inclusive com uma geladeira, e com o mapa de vôo a bordo.
— É muito mais do que merecemos, T - disse Rayford.
— Não diga isso. Os membros de nossa pequena igreja estão orando por todos vocês, embora, por motivos óbvios, eu não tenha fornecido detalhes da viagem.

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Mac ligou de Israel para David, na Nova Babilônia, no final da noite de domingo.
— Este lugar aqui parece uma cidade fantasma - disse David. - Temos toda liberdade, sem ninguém para nos espionar. Annie e eu estamos passando bastante tempo juntos, planejando como fugir daqui e decidindo para onde ir.
— Não vá embora antes da hora - disse Mac. - Precisamos de você aí.

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O relógio marcava duas horas mais cedo, horário da Bélgica, quando Rayford aterrissou em Bruxelas. Ele estava tão nervoso quanto no dia em que batera na porta do apartamento de Hattie em Le Havre, mas não podia deixar transparecer isso. Buck e Leah imaginavam que sua função ali seria a de simples motorista. Como eles interpretariam um nervosismo sem nenhum motivo?
"Donna" se hospedaria em um hotel mais ou menos próximo do PRFB, planejando uma visita para o dia seguinte. Buck, sob o novo pseudônimo de Russell Staub, pegaria um vôo comercial para Tel-Aviv.
— Você memorizou o número de meu telefone sigiloso? -perguntou Rayford a Leah enquanto taxiava a aeronave para perto do terminal.
— O seu e o de Buck.
— Não vou poder fazer muita coisa se você não conseguir falar com Rayford - disse Buck.
— Se eu não conseguir contatar Rayford - ela disse pegando sua sacola -, vou precisar mesmo me despedir de alguém. Deseje-me boa sorte.
— Não costumamos desejar boa sorte - disse Buck. - Você se lembra?
— Ah! sim - ela disse. - Então, ore por mim.
Rayford sabia que devia ter dito alguma coisa, mas estava preocupado. E Leah já havia partido.
— Onde você vai se hospedar, Ray? - perguntou Buck. Rayford lançou-lhe um olhar de censura.
— Quanto menos você souber, menor será a sua responsabilidade.
Buck levantou as mãos.
— Ray! Fiz uma pergunta genérica. Você tem onde ficar, coisas para fazer, meios de passar despercebido?
— Já tomei minhas providências - disse Rayford.
— E Leah sabe tudo o que queremos dizer a Hattie?
— Eu não teria trazido Leah até aqui se soubesse que ela não estava preparada.
Rayford sabia que estava irritando Buck. O que se passava com ele?
— Só estou querendo saber se está tudo em ordem para eu poder seguir a viagem tranqüilo, Ray. Vou enfrentar uma situação estressante e quero ter poucas coisas com que me preocupar.
— É melhor você ir - disse Rayford, olhando para o relógio. - Se você descobrir um jeito de se preocupar com poucas coisas, me informe. Estamos enviando uma espiã novinha em folha para a prisão e, esperta como é, quem sabe o que ela vai fazer ou dizer se for pressionada?
— Isso me deixa mais tranqüilo.
— É tempo de crescer, Buck.
— É tempo de pegar um pouco mais leve, papai.
— Tome cuidado, ouviu? - disse Rayford.
Rayford sentiu-se solitário quando Buck desceu do avião. Ainda não havia decidido por onde começar e sabia o que os outros do Comando Tribulação pensariam a respeito do que ia fazer. Se Deus o usasse para assassinar Carpathia, ele não teria como fugir. Rayford receava ter visto seus queridos pela última vez. E esperava não ter sobrecarregado Buck com seus problemas, uma vez que seria seu genro quem cuidaria do retorno de Leah aos Estados Unidos.
Dez minutos depois que Buck entrou no terminal, Rayford reabasteceu a aeronave e pediu autorização à torre para decolar. Ele havia pensado em descobrir uma pista de pouso que não fizesse parte do Ben Gurion ou do aeroporto de Jerusalém, mas decidiu que, com seu novo pseudônimo -Marv Berry -, seria melhor descer onde houvesse maior movimento. Ben Gurion.

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David estava com dificuldade, mesmo com a ajuda de Annie, de memorizar os pseudônimos que os três membros do Comando Tribulação estavam usando no exterior. Ele escreveu em um cartão as iniciais invertidas de cada um deles, ao lado do pseudônimo, desta forma: "RL Donna Clendenon; SR. Marvin Berry; WC Russell Staub." Para maior segurança, acrescentou o pseudônimo de Hattie: "DH Mae Willie."

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Buck foi diretamente para Jerusalém em um vôo noturno e registrou-se em uma hospedaria usando o nome falso. A meia-noite, pegou um táxi e dirigiu-se para o Muro das Lamentações. A multidão era tão grande que ele não conseguia enxergar Moisés e Eli. Aproveitando a ocasião, ligou para David, depois para Chloe, e, em seguida, para Mac. Por último, ligou para Chaim. Jacov atendeu.
— Oh! Buck! - ele disse. - Esperei tanto por seu telefonema! Foi medonho, terrível!
— O que aconteceu?
— O Dr. Rosenzweig não conseguiu levantar-se hoje de manhã nem conversar conosco. Ele parecia paralisado e muito assustado. Balbuciou alguma coisa, e sua mão esquerda estava crispada, o braço esticado. Não conseguia pronunciar direito as palavras. Chamamos uma ambulância, mas ela demorou muito. Ficamos com medo de que ele morresse.
— Foi um derrame?
— Disseram que sim. Eles o transportaram para o hospital e estão fazendo os exames necessários. Só vamos saber o resultado amanhã, mas parece que foi grave.
— Onde ele está?
— Eu posso lhe dizer, Buck, mas você não vai conseguir entrar. Nenhum de nós tem autorização para visitá-lo. Ele está na UTI, e disseram que os sinais vitais ainda estão em ordem, depois de tudo o que aconteceu. Mas estamos preocupados. Enquanto a ambulância não chegava, nós oramos por ele, suplicando que ele se convertesse. Como o Dr. Rosenzweig não podia falar, ficamos observando se ele também orava. Mas não vimos nada. Ele parecia zangado e assustado, acenando o tempo todo com a outra mão para que eu me afastasse dali.
— Sinto muito, Jacov. Quero que você me avise assim que receber notícias dele.
— Não podemos ligar para você daqui. Seu telefone é sigiloso, mas o nosso, não.
— Você tem razão. Vou ligar sempre que puder. E vou orar por ele.

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Rayford, ou melhor, Marv Berry, foi barrado por pouco tempo no movimentado setor da alfândega. O agente aceitou sua história de que a pesada caixa de metal em sua maleta era uma bateria de computador. Rayford alugou um carro e hospedou-se em um hotel simples na região oeste de Tel-Aviv. Ele ligou para o hotel de Leah em Bruxelas, onde já passava um pouco da meia-noite. Ela ainda devia estar acordada por causa da mudança de fuso horário e do cansaço da viagem. A telefonista do hotel relutou em ligar para o quarto da Sra. Clendenon, mas o "Sr. Berry" insistiu que se tratava de uma emergência. Após o sexto toque, Leah atendeu com voz sonolenta, e Rayford ficou impressionado com o autocontrole dela.
— Aqui fala Donna - ela disse.
— É Marv. Acordei você?
— Sim. O que houve?
— Está tudo bem. Preste atenção, não vou poder buscar você antes de sexta-feira.
— O quê?
— Não posso entrar em detalhes. Esteja pronta na sexta-feira.
— Bem... Marv... é que eu devo estar pronta na terça-feira.
— Não ligue para mim antes de sexta-feira, está bem? -Esta bem, mas...
—•Está bem, Donna?
— Está bem! Você não poderia ser mais específico?
— Eu bem que gostaria.

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Buck despertou cedo na segunda-feira e dirigiu-se apressado 30 Muro das Lamentações. Na noite anterior, não conseguira aproximar-se de Eli e Moisés, mas ficou emocionado ao ver algumas pessoas saindo do meio da multidão e ajoelhando-se perto da cerca para aceitar a Cristo.
As testemunhas sempre falavam com energia e insistência, mas Buck percebeu que elas sabiam, como as demais pessoas, que seu tempo estava se esgotando. A população do mundo havia diminuído em razão das mortes causadas pelos 200 milhões de cavaleiros. Aqueles que sobreviveram estavam determinados a continuar no pecado. Agora, parecia que as testemunhas estavam usando seus últimos recursos para livrar as almas do Maligno.
Na segunda-feira, a multidão no Monte do Templo aumentou, enquanto as pessoas aguardavam a Festa de Gala, que só começaria no início da noite. Centenas de milhares de delegados estavam curiosos para ver os pregadores, que ainda não conheciam pessoalmente. O centro de Jerusalém, onde as atividades lascivas proliferavam, também estava lotado, mas a maioria dos turistas preferiu dar uma olhada naqueles homens estranhos que pregavam detrás da cerca.
Aquele era o 1.260° e último dia para que pregassem e profetizassem antes do "tempo determinado". Buck sentia ser um privilégio indescritível poder estar ali. Ele abriu caminho com os ombros em meio à multidão até conseguir ficar um passo à frente dos novos convertidos, ajoelhados diante da cerca. Aproximou-se de Eli e Moisés o mais que pôde, quase tocando a cerca. Algumas pessoas o advertiram, dizendo que muita gente havia morrido por ter se aproximado mais do que devia. Ele ajoelhou-se, com os olhos fixos nos dois, e preparou-se para ouvir.
Eli estava em pé, e Moisés, sentado um pouco atrás, encostado na parede de uma pequena construção de pedra.
— Observe aquele ali! - gritou alguém. - Ele tem um lança-chamas escondido!
Muitas pessoas riram, mas a maioria pediu silêncio. Buck surpreendeu-se ao perceber a emoção na voz de Eli, que gritava, quase em lágrimas, alto o suficiente para ser ouvido a quarteirões de distância, apesar de suas mensagens estarem sendo transmitidas com freqüência pela CNN da CG. Os repórteres de TV espalhados por toda Jerusalém noticiavam o entusiasmo crescente do povo pela Festa de Gala naquela noite. Parecia que todos haviam resolvido estar ali diante do Muro. Eli gritava:
— Como o Messias se desesperou ao contemplar do alto esta cidade! Deus, o Pai, prometeu abençoar Jerusalém se seu povo obedecesse a seus mandamentos e não adorasse a outros deuses. Viemos em nome do Pai, e não nos recebestes. Jesus disse: "Jerusalém, Jerusalém! que matas os profetas e apedrejas os que te foram enviados! Quantas vezes quis eu reunir os teus filhos, como a galinha ajunta os seus pintinhos debaixo das asas, e vós não o quisestes! Eis que a vossa casa vos ficará deserta. Declaro-vos, pois, que desde agora já não me vereis, até que venhais a dizer: Bendito o que vem em nome do Senhor!"
A multidão silenciou. Eli prosseguiu:
— Deus enviou seu Filho, o Messias prometido, que cumpriu as profecias de mais de cem dos antigos profetas, sendo, inclusive, crucificado nesta cidade. O amor de Cristo nos leva a dizer-vos que Ele morreu por todos, que aqueles que vivem não mais viverão para si mesmos, mas para Ele, que morreu por todos os pecadores e ressuscitou.
— Somos embaixadores de Cristo, pois Deus nos pediu que clamássemos por vós. Oramos por vós em nome de Cristo, para que vos reconcilieis com Deus. Porque aquele que não conheceu pecado, Ele o fez pecado por nós; para que nele fôssemos feitos justiça de Deus. Eis que este é o tempo certo; eis que este é o dia da salvação.
— E não há salvação em nenhum outro; porque abaixo do céu não existe nenhum outro nome, dado entre os homens, pelo qual importa que sejamos salvos. Embora este mundo e seus falsos profetas prometam que todas as religiões levam a Deus, isso é mentira. Jesus é o único caminho que leva a Deus, conforme Ele próprio declarou: "Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida; ninguém vem ao Pai senão por mim."
Eli parecia exausto e afastou-se da cerca. Moisés levantou-se e proclamou:
— Este mundo pode estar presenciando o nosso fim, mas vós não presenciareis o fim de Jesus, o Cristo! De acordo com os profetas, Ele virá novamente em poder e grande glória para estabelecer seu reino aqui na Terra. O Senhor virá, com milhares e milhares de seus santos, para julgar a todos e para tornar todos os ímpios convictos de todas as obras ímpias que impiamente praticaram, e de todas as palavras insolentes que proferiram contra Ele.
— O seu domínio é domínio eterno, que não passará, e o seu reino jamais será destruído. Achegai-vos a Ele hoje, agora! O Senhor não deseja que nenhuma alma pereça, mas que todos se arrependam. Assim diz o Senhor.
Eli levantou-se e aproximou-se de Moisés, e ambos disseram em uníssono:
— Temos servido ao Senhor Deus Todo-Poderoso, criador do céu e da Terra, e a Jesus Cristo, seu unigênito Filho. Vede, temos cumprido o nosso dever e encerrado a nossa missão até o tempo determinado. Ó Jerusalém, Jerusalém...
Os dois permaneceram em pé diante da cerca, imóveis, sem piscar; seus cabelos, barbas e mantos oscilavam ao sabor da brisa. A multidão começou a agitar-se. Alguns pediam mais pregações; outros escarneciam deles. Buck levantou-se lentamente e se afastou, sabendo que os dois haviam terminado suas pregações. Para muitos, a impressão era a de que Carpathia vencera. Ele havia decidido realizar sua Festa de Gala Global em Jerusalém e silenciado os pregadores.

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Rayford receava encontrar inesperadamente Buck ou alguém da CG. Ele havia deixado de barbear-se de propósito desde o dia do vôo. Na segunda-feira, dirigiu-se de carro a Jerusalém, estacionou na periferia e caminhou até o centro da cidade, usando um turbante verde de tecido grosso por cima de uma longa peruca grisalha. Os óculos escuros com pequeninos orifícios permitiam-lhe enxergar bem, sem que seus olhos ficassem visíveis.
Ele também usava um manto que ia até a altura do tornozelo, comum naquela região. Dentro do bolso interno, carregava o Sabre. O manto era largo o suficiente para que ele caminhasse só com as mãos para fora e a arma escondida. Embora tivesse visto detectores de metal de ambos os lados do enorme palanque, os milhares de espectadores tinham permissão para caminhar pela área sem ser revistados.
Rayford sentia um comichão que percorria a coluna vertebral inteira por saber que portava uma arma poderosíssima, que podia matar alguém a mais de 30 metros de distância. Depois de tanta ansiedade para realizar seus planos, ele agora implorava a Deus que o poupasse dessa missão. Estaria ele disposto a ir até o fim e assassinar Carpathia se Deus tornasse isso claro?
A multidão havia se reunido ali bem antes do início da festa, e uma banda latina, que precedia a cerimônia de abertura, tocava alto para os que apreciavam esse tipo de música. Metade da multidão dançava e cantava, e, à medida que a tarde avançava, o número de pessoas aumentava cada vez mais. Música, cantorias e danças, intercaladas com avisos eufóricos sobre a breve chegada do potentado, levavam a multidão ao delírio.
Enquanto o céu escurecia aos poucos, Rayford continuava a caminhar, sempre atento para passar despercebido. Em um determinado momento, ele quase parou e tirou os óculos. Poderia jurar que Hattie passara rente a ele. Com o coração batendo acelerado, ele virou-se e viu uma moça caminhando. A mesma altura, o mesmo porte, o mesmo modo de andar. Não podia ser. Simplesmente não podia ser.

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Mac e Abdullah caminhavam a esmo pelo local da Festa de Gala, em meio a uma multidão de delegados.
— Você prefere que a gente ande junto ou separado nesta semana? - perguntou Mac.
Abdullah encolheu os ombros.
— Se você quiser andar sozinho, não há problema.
— Não é bem isso - disse Mac. - Eu só quero que você se sinta livre para fazer o que bem entender.
Abdullah encolheu os ombros novamente. A verdade era que Mac não se importaria de ficar sozinho. Sozinho no meio de uma multidão. Sozinho, pensando como o mundo e sua vida haviam mudado. Ele tinha tomado uma decisão. Se Carpathia conseguisse sobreviver a esse evento, se, por um motivo qualquer, Tsion Ben-Judá estivesse enganado a respeito das profecias, Mac tinha um plano. Rayford tinha lhe falado sobre o que achava sobre o assunto. Tempos atrás, um deles devia ter embicado o avião de Carpathia em direção a uma montanha, sacrificando a própria vida pelo bem de todos. Mac não queria ser tão egoísta a ponto de envolver Abdullah. Ele precisava encontrar um meio de voar sozinho com o potentado. Na verdade, não haveria necessidade de uma montanha. Bastava cortar a energia e deixar que a gravidade tomasse conta do resto.
Será que ele poderia? Deveria? Mac olhou para Abdullah e esquadrinhou a multidão. Isso não era vida para ninguém.

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Finalmente, os helicópteros apareceram no céu. Rayford olhou para cima enquanto o povo gritava de alegria. Os helicópteros pousaram, dos dois lados do palanque, e os dignitários desceram sob intensa ovação. Os dez potentados regionais, o supremo comandante e uma mulher, trajando uma vestimenta pomposa da Fé Mundial Enigma Babilônia, subiram rapidamente a escada que dava ao palanque. Um contingente reforçado da segurança formava um semicírculo ao redor da tribuna.
Depois que todos já estavam acomodados em seus lugares, Carpathia chegou sozinho em outro helicóptero. Sob aplausos ensurdecedores, ele subiu ao palanque, sendo saudado pelos convidados de honra, todos parecendo ansiosos por apertar-lhe a mão. Fortunato foi o último a cumprimentá-lo e, em seguida, conduziu o potentado até uma enorme poltrona, enfeitada como um trono.
O restante dos presentes só sentou depois dele, mas os aplausos intermináveis obrigaram Carpathia a levantar-se várias vezes e acenar de modo tímido e humilde para a multidão. Sempre que ele se levantava, o pessoal do palanque fazia o mesmo. Rayford estava a cerca de 60 metros de distância do potentado e por duas vezes havia enfiado as mãos no bolso e tateado o Sabre, abrindo a caixa apenas alguns centímetros para, em seguida, voltar a fechá-la. Ele não tinha uma visão clara de Carpathia por causa da multidão. Se a missão fosse dele, Deus teria de comandar. Rayford aguardaria o momento certo para ver se Deus providenciaria uma abertura ou abriria um caminho até a frente. Se alguém no meio daquela multidão atirasse em Carpathia, ninguém perceberia de imediato, em razão do fascínio com que todos olhavam para o potentado.

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Buck, depois de deixar com relutância o Muro das Lamentações, chegou após o início da solenidade e permaneceu atrás da multidão de quase dois milhões de pessoas. Ele observava a festança sem conseguir aplaudir. Estava preocupado com Chaim. Tentou ligar para Jacov, mas percebeu que não conseguiria ouvir nada.
Finalmente o povo se aquietou o suficiente para permitir que Leon tomasse a palavra. Ele se virou para verificar se Carpathia estava bem acomodado e, em seguida, aproximou-se da tribuna.
— Sejam bem-vindos todos os cidadãos do novo mundo -ele começou a dizer, sendo interrompido mais de uma dezena de vezes pelos aplausos.
Cada frase provocava entusiasmo no povo, fazendo Buck se perguntar de que planeta surgira essa multidão. Será que ninguém considerava aquele líder responsável por tantas mortes e sofrimentos? Em três anos e meio, a população tinha sido reduzida à metade e, mesmo assim, esse povo comemorava?
— Meu nome é Leon Fortunato. Tenho o privilégio de servir aos senhores e a Sua Excelência como supremo comandante da Comunidade Global. Quero apresentar os potentados regionais, e peço que os senhores os recebam com o entusiasmo que eles merecem. Antes, porém, devemos receber a bênção do grande deus da natureza e, para tanto, passo a palavra à assistente do supremo pontífice da Fé Mundial Enigma Babilônia, que tem um comunicado a fazer. Por favor, uma salva de palmas para a vice-pontífice Francesca D'Angelo.
Buck admirou-se ao ver que, aparentemente, a vice-pontífice não fez caso das vaias e assobios. De repente, ele sentiu um arrepio que tomou conta de todo o seu corpo. Quando a Sra. D'Angelo aproximou-se da tribuna, Carpathia levantou-se e a multidão, em vez de aplaudir, mergulhou em profundo silêncio. Buck sentiu que era o único capaz de não olhar para o rosto de Carpathia. Os potentados encaravam fixamente seu líder, e Fortunato também virou-se para olhar para ele.
Carpathia começou a falar com aquela mesma voz soturna e hipnótica que Buck já ouvira apenas uma vez. Três anos e meio antes, Nicolae cometera um duplo assassinato depois de ter dito a todos os presentes na sala do que eles deviam lembrar-se e do que não deviam. Buck, na época um crente recém-convertido, foi o único que não passou pela lavagem cerebral. Posteriormente, ninguém se lembrou de que Buck estava presente na sala.
Agora o potentado falava, mas sua voz não era transmitida pelos alto-falantes. Buck, em pé a uma grande distância do palanque, ouvia claramente as palavras dele, como se Carpathia estivesse a seu lado.
— Vocês não se lembrarão de que eu me antecipei à vice-pontífice - disse Nicolae.
Oh! Deus, orou Buck silenciosamente, protege-me! Não permitas que eu seja dominado por ele.
— Vocês vão ouvir falar de uma morte que lhes causará surpresa - disse Carpathia. Ninguém se mexeu no lugar. -Esta notícia vai chegar até vocês como se já tivesse sido comunicada tempos atrás. Vocês não vão fazer caso dela.
Carpathia sentou-se, e o burburinho recomeçou do ponto em que havia parado. A Sra. D'Angelo tomou a palavra:
— Antes de rezar para o grande deus em quem todos nós confiamos e que confia em todos nós, tenho um comunicado a fazer. O sumo pontífice Peter Segundo morreu subitamente nesta manhã. O vírus que o acometeu era altamente contagioso, tornando-se necessário que seu corpo fosse cremado. Nossas condolências a seus familiares. Uma cerimônia religiosa em sua memória será realizada amanhã cedo neste mesmo local. Agora, vamos rezar.
Amanhã cedo?, pensou Buck. O programa da Festa de Gala mencionava um "debate" entre Carpathia e a "Dupla de Jerusalém" às 10 horas de terça-feira, seguido de uma "comemoração do meio-dia até a meia-noite" no distrito hedonista. Buck olhou para o rosto dos delegados. Eles estavam impassíveis. Buck ficou abalado. Nicolae foi capaz de controlar a mente de dois milhões de pessoas ao mesmo tempo!
A multidão aplaudiu a reza, que parecia prestar homenagem a todas as células vivas. Em seguida, aplaudiu a apresentação de cada potentado regional, principalmente o mais recente, o Sr. Litwala, da África. Os delegados pareciam igualmente impressionados com os discursos enfadonhos de cada potentado, elogiando Carpathia em cada frase proferida. Finalmente, chegou o grande momento.
— E agora - Fortunato começou a dizer, mas os aplausos frenéticos da multidão abafaram o início de seu discurso, que Buck só conseguia ouvir porque estava debaixo de um alto-falante -, o homem que Deus escolheu para liderar o mundo e livrá-lo da guerra e do derramamento de sangue, transformando-o em uma sociedade utópica de perene harmonia, o supremo potentado dos senhores e meu, Sua Excelência Nicolae Carpathia!
O restante dos convidados de honra - com exceção de Fortunato - deixou humildemente o palanque. Carpathia acenava com as duas mãos e sorria, andando de um lado para o outro no palanque, sempre protegido pelo impassível contingente de segurança. Leon, que comandava os aplausos, permaneceu em pé atrás de Nicolae e na frente de uma cadeira colocada ao lado direito do trono.

VINTE E DOIS







Buck tinha de admitir que o dom de oratória demonstrado por Nicolae Carpathia na Organização das Nações Unidas, três anos e meio atrás, havia melhorado ainda mais com o passar do tempo. Naquele época, Nicolae usou sua prodigiosa memória para relembrar fatos históricos e dominar com maestria vários idiomas, surpreendendo a todos, inclusive a imprensa. Quem já viu os meios de comunicação se levantarem para aplaudir, de forma unânime, um orador veemente?
Aquele primeiro discurso transmitido ao mundo inteiro havia sido proferido dias após o desaparecimento de milhões de pessoas, inclusive de todos os bebês e crianças. Carpathia parecia o homem perfeito para o momento, e o mundo aterrorizado - inclusive Buck - o aceitou de braços abertos. Povos de todas as raças consideravam Carpathia a voz da paz, da harmonia e da razão. Ele era jovem, bonito, dinâmico, carismático, eloqüente, brilhante, decidido e, paradoxalmente, humilde. Parecia relutante em aceitar a liderança que a população fascinada lhe impunha.
Nicolae modificara completamente o mundo dividindo-o em dez regiões, cada uma com um potentado. Em meio ao antagonismo crescente que oprimia a Terra, ainda pior que a perda de milhões de pessoas no Arrebatamento, ele se destacou como uma voz paternal de conforto e encorajamento. Durante todas as catástrofes -Terceira Guerra Mundial, fome, terremoto da grande ira do Cordeiro, queda de meteoros, desastres marítimos, contaminação da água, escuridão e resfriamento da temperatura do mundo, invasões de gafanhotos e, mais recentemente, pragas de fogo, fumaça e enxofre que exterminaram outra terça parte da população -Carpathia permaneceu firme no controle.
Havia rumores de insubordinação por parte de pelo menos três potentados, mas nada de concreto acontecera ainda. De vez em quando, o povo sofrido e dominado pelo desespero rebelava-se contra o novo mundo, querendo saber por que a situação piorava a cada dia, mas Carpathia acalmava a todos, por meio dos sistemas de comunicação, demonstrando solidariedade e prometendo trabalhar incansavelmente em prol do bem-estar da humanidade.
O povo acreditava nele, principalmente aqueles que lutavam pela liberdade pessoal a qualquer custo. Enquanto a Comunidade Global reconstruía cidades, aeroportos, estradas e sistemas de comunicações, o índice de assassinatos, roubos, bruxarias, orgias e adorações a ídolos continuava em ascensão. Estes três últimos eram aplaudidos por Carpathia e por todos aqueles que não sabiam distinguir o bem do mal.
O único ponto vulnerável de Carpathia eram duas testemunhas em Jerusalém, contra as quais ele parecia impotente. Foi por isso que ele programou a Festa Global de Gala: para apressar a chegada do "primeiro dia do resto da utopia" na cidade onde os dois profetas atingiram o auge do atrevimento. Se Nicolae fosse novamente humilhado por sua inabilidade de dominá-los, se eles não parassem de transformar a água em sangue e de impedir que chovesse, a estrutura de sua liderança poderia finalmente começar a enfraquecer.
Apesar disso, ali estava ele, de frente para as câmeras que transmitiam sua imagem ao mundo inteiro pela TV e pela Internet. Aos 36 anos de idade, confiante e charmoso como nunca, ele caminhava pelo palanque, protegido pelo contingente de segurança. Sem se contentar em permanecer diante da tribuna, ele se movimentava o tempo todo para ter a certeza de que seus acenos e sorrisos alcançavam cada segmento da multidão, que parecia jamais cansar-se de olhar para ele.
Finalmente, ele levantou as mãos para acalmar o povo. Sem anotações, sem pausas, sem tropeçar nas palavras, Carpathia falou durante 45 minutos, sendo interrompido por aplausos entusiasmados entre uma frase e outra. A animação demonstrada por ele no início do discurso aumentava cada vez mais.
Ele reconheceu as dificuldades, o sofrimento e a tristeza que se abateram sobre todos e o trabalho que ainda necessitava ser feito. Dando à voz um tom embargado, ele dirigiu-se a seus queridos compatriotas que haviam sofrido grandes perdas.
Quando o discurso dramático e eloqüente começou a chegar ao fim, Carpathia passou a falar mais alto, mais direto, com mais segurança ainda. Para Buck, parecia que a multidão estava pronta para explodir de tanto amor. Todos o adoravam, confiavam nele, acreditavam nele, contavam com ele para sobreviver.
Nicolae fez uma pausa comovente, afastou-se um pouco até a beira do palanque, pousou uma das mãos no anteparo, cruzou as pernas na altura dos tornozelos e colocou a outra mão fechada no quadril. A imagem, mostrada nas gigantescas telas instaladas por toda a praça, era a de um homem imponente e arrogante fazendo promessas ao público. Exibindo um sorriso maroto que provocou murmúrios de empolgação, gargalhadas, assobios e aplausos, demonstrava claramente que estava pronto para fazer um pronunciamento ousado.
Carpathia aguardou até a tensão aumentar. Em seguida, caminhou decididamente em direção à tribuna e apoiou-se nela com as duas mãos.
— Amanhã cedo - ele disse -, conforme vocês podem ver na programação, voltaremos a nos reunir perto do Monte do Templo, onde eu estabelecerei a autoridade da Comunidade Global sobre todas as localidades geográficas. -Mais aplausos e gritos de alegria. - Não importa que estejam proclamando isto ou aquilo, advertindo isto ou aquilo ou sendo responsáveis por todo tipo de ataques insidiosos contra esta cidade, esta área, esta nação... eu mesmo cuidarei de pôr um fim ao terrorismo religioso perpetrado por dois impostores assassinos. De minha parte, estou cansado de opressões supersticiosas, cansado da seca, cansado de ver a água transformar-se em sangue. Estou cansado dessas tais profecias bombásticas, de escuridão e julgamentos, de promessas que nunca se cumprem!
— Se a Dupla de Jerusalém não parar com isso até amanhã, não descansarei enquanto não cuidar pessoalmente deles. E, assim que minha missão for cumprida, dançaremos nas ruas!
O povo ameaçava aproximar-se do palanque, aclamando e gritando sem parar: "Nicolae, Nicolae, Nicolae!" Carpathia falou mais alto, abafando os gritos da multidão:
— Divirtam-se esta noite! Aproveitem! Mas durmam bem para que amanhã possamos participar da festa que não terá fim!
Os helicópteros reapareceram no céu, e o povo foi afastado do local de pouso. Carpathia acenava e sorria enquanto caminhava em direção à escada do palanque. Leon, logo atrás dele, ajoelhou-se com os braços abertos e começou a gesticular espalhafatosamente. Para espanto de Buck, a maioria do povo fez o mesmo. Dezenas de milhares de pessoas dobraram os joelhos e adoraram Carpathia como se ele fosse um atleta, um artista... ou um deus.

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Rayford estava nervoso demais. Ele caminhava para não evidenciar que se recusava a ajoelhar-se. Cada passo o levava para mais perto do palanque. Enfiou a mão no bolso e retirou o Sabre da caixa. A arma pesada, sólida e mortal o animou e, ao mesmo tempo, o assustou. Rayford parecia estar sonhando, vendo seu corpo de longe. Como havia chegado a este ponto? Tinha se transformado num maluco, deixando de ser um homem pragmático? Ele não queria atrever-se a fazer parte da história, a menos que tivesse plena certeza de que esse era o plano de Deus. O assassino, fosse quem fosse, jamais voltaria a ser livre. Seria identificado no videoteipe e não teria condições de ir muito longe.
Ele estava a cerca de 15 metros do palanque quando Carpathia fez o último aceno, agradeceu à multidão e desapareceu a bordo do helicóptero. Rayford encontrava-se bem abaixo do helicóptero e podia ter atirado para o alto. Ele cerrou os dentes e fechou o Sabre dentro da caixa, recolocando-a no bolso interno e deixando as mãos à mostra.
Os dentes cerrados provocaram-lhe dor nos maxilares.
Enquanto a multidão saía do local para festejar, Rayford caminhou com passos firmes até seu carro, ainda cerrando os dentes, as mãos escondidas dentro das mangas imensas. Ele não agiria precipitadamente, a menos que recebesse um aviso de Deus.

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Buck estava sentindo saudade de sua família. O espetáculo da Festa de Gala o deixara triste. Ele caminhou pelas ruas como um sonâmbulo, acompanhando displicentemente a multidão, mas tendo certeza de que estava se dirigindo para a hospedaria. Ligou para casa, conversou com Chloe, Kenny e Tsion. Ligou para Nova Babilônia, conversou com David, "conheceu" Annie. Ele não gostou de ter de interromper o telefonema, principalmente porque era a primeira vez que conversava com ela, mas um bip o avisou de que havia uma nova ligação, e a tela exibia o nome de Leah.
— Lamento incomodá-lo, Buck - ela disse -, mas tive um dia frustrante no PRFB e queria conversar com alguém.
— Não há problema, mas não seria melhor você ligar para Rayford?
— Não posso ligar para ele até sexta-feira.
— O quê?
Ela lhe contou as instruções recebidas de Rayford.
— E em caso de acontecer algum problema?
— Imaginei que eu deveria ligar para você.
— O que posso fazer? Alugar um carro e ir até a França?
— Não, eu sei que você não pode fazer nada.
— Você viu Hattie?
— Eles estão estudando meu pedido e vão me informar depois.
— Essa história não está cheirando bem.
— Parece que eles estão desconfiando de alguma coisa, Buck. Não sei se vou em frente ou desisto.
— Vou ligar para Rayford e saber qual é a opinião dele.
— Você faria isso por mim?
Buck parou sob um poste iluminado a alguns quarteirões de distância do Muro das Lamentações e ligou para o número de Rayford. Ele saberia quem estava chamando, porque veria o nome de Buck na tela. Rayford atendeu.
— Espero que o assunto seja importante, Buck.
— Achei que deixar alguém do nosso grupo à própria sorte é importante. Como você pôde fazer isso com ela?
Rayford parecia aborrecido.
— Qual é o problema? Ela se meteu em alguma encrenca? Buck contou-lhe o que sabia.
— Diga a ela para seguir o plano e não ligar para você nem para mim até sexta-feira.
— O que você tem em mente, Ray?
— Ouça, Buck. Quando eu disse a Leah que não queria que ela ligasse para mim até sexta-feira, eu não esperava que ela ligasse para você. Preciso que você confie em mim.
Buck deu um suspiro e concordou com relutância. Decidiu não contar a Chloe que ele e o pai dela poderiam vir a se desentender. Ele não sabia qual era o problema.
Buck subiu em uma árvore para enxergar o Muro das Lamentações e avistou Eli e Moisés. Eles continuavam em pé, lado a lado, com os olhos fixos em um ponto, imóveis, na mesma posição em que os vira da última vez. O povo escarnecia dos dois.
Buck ligou para Jacov para saber notícias de Chaim.
— Tenho uma boa e uma má notícia - disse Jacov. - Os exames ficaram prontos.
— E o que poderia ser a má notícia?
— O médico não sabe determinar a causa da paralisia e da perda da fala. Tudo indica que foi um derrame, mas ele não tem certeza.

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No dia seguinte, Rayford partiu logo cedo em direção ao Muro das Lamentações. As ruas estavam molhadas pelo sereno, um pouco mais que o normal. Ele ficou espantado ao ver uma aglomeração tão grande duas horas antes do proclamado confronto. Havia rumores de que a cerimônia religiosa em memória do sumo pontífice Peter Segundo fora cancelada por falta de interesse e porque a Sra. D'Angelo já tinha sido destituída do cargo. Aparentemente, a Fé Mundial Enigma Babilônia desapareceria após a morte de seu fundador. No governo de Carpathia, não havia espaço nem mesmo para religiões pagas.
Com o Sabre escondido sob o manto, Rayford abriu caminho até o meio da multidão alvoroçada. Ele não havia dormido bem. Orou grande parte da noite e agora gostaria de ter um lugar para se sentar. Mas agüentou firme. As testemunhas pareciam duas estátuas, e o povo dizia que elas estavam em pé nessa mesma posição havia horas. Certamente, elas se movimentariam quando Carpathia chegasse para confrontá-las.
A um quarteirão de distância, ouvia-se o som estridente de bandas de música ensaiando para a festa que duraria um dia e uma noite inteira.
[Fazer fio aqui]
Buck tentou subir na mesma árvore da noite anterior, mas os guardas de segurança da CG o afugentaram dali. Ele descobriu um lugar em uma saliência de rocha, de onde teria uma visão clara da multidão. O silêncio das testemunhas o entristecia, e ele gostaria que, quando Carpathia chegasse, os dois pelo menos se movimentassem. Mas o tempo determinado chegara; aquele era o 1.261° dia. A Bíblia dizia que eles seriam dominados.
Quando faltava um minuto para as dez horas, o ronco dos motores dos helicópteros tomou conta do local. Da mesma forma que no dia anterior, três helicópteros desceram trazendo os potentados, Fortunato e Carpathia. Agora, não havia nenhum representante da Enigma Babilônia. Era a primeira vez que Buck via Carpathia sem gravata. Ele estava usando sapatos luxuosos, calça e camisa com o colarinho aberto e paletó esporte de casimira, deixando à mostra em um dos bolsos alguma coisa parecida com uma Bíblia.
Os potentados e Fortunato postaram-se atrás de uma barreira que os separava da multidão. O refletores foram acesos, as câmeras entraram em ação e Carpathia caminhou apressadamente em direção à cerca. Em sua camisa, estava preso um microfone sem fio, e ele parou diante de um maquiador para empoar o rosto. Em seguida, sorriu para a multidão barulhenta e aproximou-se das testemunhas, que continuavam em pé, movimentando apenas o peito por causa da respiração.
Carpathia, como um mágico pronto a encenar seu número, tirou o paletó esporte e pendurou-o em um dos ferros pontudos da cerca. O paletó pendeu para o lado do bolso onde havia um objeto. Quando Nicolae arregaçou as mangas como se fosse partir para a luta, a multidão foi à loucura.
— O que vocês, cavalheiros, têm a dizer em seu favor esta manhã? - ele perguntou, olhando primeiro para as testemunhas e depois para a multidão.
Buck orou para que os dois reagissem com eloqüência, com provocação, com energia.

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Era madrugada em Illinois. Tsion sentou-se em uma poltrona diante da TV vestindo pijama, roupão e chinelos. Chloe acomodou-se em uma cadeira.
— O bebê está dormindo? - perguntou Tsion.
— Está - respondeu Chloe. - Espero que ele não acorde para ver isto.
Quando Carpathia começou a fazer aquela pergunta desafiadora, Chloe disse baixinho:
— Acabe com ele, Eli. Vamos, Moisés. Mas os dois não reagiram.
Oh, Deus, orou Tsion. Oh, Deus, oh, Deus. Eles estão oprimidos e humilhados e, mesmo assim, não abrem a boca; como cordeiros, estão sendo levados ao matadouro e, como ovelhas, se calam perante os seus tosquiadores, por isso não abrem a boca.

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Buck desejava estar portando uma arma naquele instante. Ele tinha uma visão clara de Carpathia. Que arrogância! Que presunção! Como ele gostaria de acertar a testa de Carpathia entre os olhos, mesmo que fosse com um estilingue. Buck sacudiu a cabeça. Ele era apenas um jornalista, um observador. Não era esse o seu objetivo. Seu coração estava do lado das testemunhas. Mas ele não podia fazer nada.

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Rayford não conseguia ficar imóvel. Ele precisou morder a língua para não gritar com Carpathia. Escondeu os braços sob o manto e segurou a caixa com as duas mãos. Se Carpathia estivesse pretendendo fazer Eli e Moisés de tolos, talvez o tolo acabaria sendo ele, caindo em cima do próprio sangue. Carpathia se deliciava com sua glória.
— Vocês perderam a língua? - ele disse, andando de um lado para o outro diante das testemunhas silenciosas, olhando para a multidão em busca de apoio. - A água de Jerusalém está fria e refrescante hoje! O veneno acabou? Os comparsas dos conspiradores fugiram? Deixaram de ter acesso ao sistema de abastecimento de água?
O povo gritava e zombava dos dois.
— Expulse estes dois daqui! - gritou alguém.
— Que sejam presos!
— Que mofem na cadeia!
— Que sejam mortos!
Rayford sentia vontade de gritar: "Calem a boca!", mas certamente não seria ouvido por causa dos protestos da multidão ensandecida. E Carpathia continuava a provocar os dois.
— Era chuva aquilo que bateu em minha janela esta manhã? O que aconteceu com a seca? Ei, alguém está vendo gafanhotos por aqui? Homens montados em cavalos? Fumaça? Cavalheiros! Vocês não podem fazer nada!
A multidão mordeu a isca. Rayford estava exaltado.
— Faz dois anos que proibi vocês dois de permanecerem nesta área! - disse Carpathia, de costas para a multidão, mas certo de que poderia ser ouvido pelo povo e pela TV por causa do microfone preso em sua camisa. - Por que vocês ainda estão aqui? Saiam já ou serão presos! Vocês não me ouviram dizer que seriam executados se fossem vistos em público em qualquer lugar depois da reunião daqueles fanáticos? Carpathia virou-se para a multidão.
— Eu disse isso, não disse?
— Sim! Sim! Mate os dois!
— Eu tenho sido negligente! Não tenho cumprido meus deveres! Como posso estar aqui diante dos cidadãos que me acusaram de ser um ditador depois de eu ter afirmado que esse crime não passaria impune? Eu não quero ser envergonhado perante meu povo! Não quero sentir-me constrangido na festa de hoje! Vamos! Saiam de trás dessa cerca e me enfrentem! Provoquem-me! Respondam! Passem por cima da cerca, pulando ou voando, venham até aqui se tiverem coragem! Não me obriguem a abrir o portão!
Carpathia virou-se novamente para a multidão.
— Será que eu devo temer o fogo que eles expelem pela boca? Será que esses dragões vão me incinerar, me trucidar?
A multidão já não gritava tanto. Os risos eram nervosos. As testemunhas não saíram do lugar.
— Já estou perdendo a paciência! - disse Nicolae.
O chefe das Forças Pacificadoras da CG tirou uma chave do bolso e entregou-a a Nicolae. Ele abriu o portão, e a multidão se afastou. Algumas pessoas tinham a respiração ofegante. Um grande silêncio se abateu sobre o local.
Carpathia abriu o portão com um gesto estudado e caminhou apressado em direção às testemunhas.
— Fora! - ele gritou, mas os dois continuaram na mesma posição.
Carpathia aproximou-se de Eli pela direita e atirou-o de encontro a Moisés, fazendo com que ambos cambaleassem em direção ao portão. Ele os afugentava dali com empurrões, socos e safanões.
A multidão afastou-se um pouco mais. Carpathia agarrou Eli e Moisés pelas roupas e atirou-os contra a cerca. Em seguida, virou as costas para eles e sorriu para a multidão.
— Aqui estão os seus algozes! - disse Carpathia. - Seus juizes! Seus profetas! - Ele cuspiu após dizer esta última palavra. - E o que eles têm a dizer para se defender? Nada! Eles já foram julgados, condenados e sentenciados. Agora só falta serem justiçados, e, conforme eu decretei, vou fazer isso!
Ele virou-se para os dois, puxando-os pelas roupas novamente até que eles ficassem a pouco menos de dois metros da cerca.
— Vocês têm alguma coisa a dizer pela última vez?
Eli e Moisés entreolharam-se e, em seguida, olharam para o céu.
Carpathia caminhou até o local onde colocara o paletó e tirou um objeto preto do bolso. Rayford levou um susto ao reconhecer o objeto. Nicolae estava de costas para a multidão, retirando um Sabre da caixa. Ele se afastou uns três metros das testemunhas e apontou a arma para o lado direito de Eli. A súbita explosão fez com que todos recuassem e tapassem os ouvidos. A bala penetrou no pescoço de Eli; ele cambaleou e, em seguida, bateu com a cabeça na cerca antes que seu corpo tombasse ao chão. O sangue que saía do enorme rombo em seu pescoço esguichou na cerca e na construção de pedra atrás dele.
Moisés ajoelhou-se e cobriu os olhos como se estivesse orando. Carpathia acertou um tiro no alto da cabeça dele. Seu corpo voou na direção da cerca, caindo de bruços, com os braços e as pernas abertos.
A boca de Rayford estava seca, a respiração era curta e seu pulso parecia bater nas pontas dos dedos das mãos e dos pés. Ao redor dele, as pessoas continuavam com os ouvidos tapados, olhando estarrecidas para os corpos. Carpathia encaixou novamente a arma na caixa, colocou-a no bolso do paletó, vestiu-o e, com um sorriso, fez uma reverência à multidão.
O desejo de atirar em Carpathia era tanto que Rayford abaixou o ombro e correu na direção dele. Ao fazer esse movimento, ele deu uma cabeçada no homem que estava à sua frente, o qual deu um berro no momento em que a multidão aplaudia Carpathia. O povo pulava, gritava, assobiava e dançava. Rayford abriu caminho à força, tentando aproximar-se de Carpathia, tomando cuidado para não largar seu Sabre.
A multidão estava agitada demais. Havia gente caindo, brigando, se divertindo. Rayford levou um tombo no meio do povo e não conseguiu levantar-se por estar com os braços escondidos dentro do manto. Com muito custo, ele passou uma das mãos pela abertura da manga para poder apoiá-la no chão e ficar em pé, mas alguém lhe deu um esbarrão com força e ele caiu novamente. Enquanto tentava abrir espaço com os cotovelos, a caixa do Sabre rolou pelo chão. Ele começou a procurá-la, mas a multidão enlouquecida o empurrava de um lado para o outro. Quando ele conseguiu passar a outra mão pela abertura da manga, sentiu uma pancada nas costas e caiu, batendo a cabeça no concreto. Depois de muito esforço, e com um enorme galo na cabeça, ele virou o corpo de lado e conseguiu levantar-se, mas onde estava o Sabre? Teria se saído da caixa? Ele estava carregado e pronto para ser usado.

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Buck continuou em pé na saliência da rocha, completamente abatido, vendo o povo dançando e se divertindo, os helicópteros pegando Carpathia e os convidados de honra para levá-los ao local da festa. Buck detestava estar presenciando aquela cena terrível, contemplando os corpos dos pregadores a quem ele tanto amava. Com o tempo, ele passara a gostar de tudo o que se referia aos dois: a pele escura e curtida pelo sol, os pés grosseiros e sujos, os trajes de aniagem cheirando a fumaça. Para Buck, eles eram reis, patriarcas majestosos. Suas mãos e ombros ossudos, o pescoço e o rosto enrugados, os cabelos e a barba longos e grisalhos acrescentavam um ar de mistério sobrenatural àquelas figuras maravilhosas.
Seus corpos haviam sido destruídos. Eles, que eram invencíveis, agora estavam atirados contra a cerca de ferro, amontoados um ao lado do outro numa cena grotesca. Buck sentiu-se constrangido ao vê-los expostos daquela maneira. As roupas de aniagem mal cobriam suas pernas. As mãos estavam encolhidas sob o corpo, os olhos abertos, a boca escancarada. O sangue vermelho-escuro, quase preto, corria sob seus corpos trucidados por uma arma tecnologicamente tão avançada que jamais poderia ser chamada de pistola.
Buck sabia o que aconteceria a seguir. Ele não queria presenciar a comemoração programada para ser realizada do meio-dia até a meia-noite, mas que, na verdade, duraria mais de três dias. Do lugar onde estava, contemplava com profunda tristeza a ascensão do pecado, a maldade tomando conta de pessoas que haviam sido alertadas e que tiveram todas as oportunidades possíveis de se converter.

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Tsion abaixou a cabeça.
— Não imaginei que pudesse ser tão horrível... Chloe não conseguia desgrudar os olhos da tela.
— Buck deve estar lá.
— Chloe - disse Tsion, levantando-se -, estamos presenciando coisas terríveis. Isto é apenas o começo. Em breve, Carpathia deixará as formalidades de lado. A maioria das pessoas não terá condições de opor-se a ele.

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Rayford virou o corpo e agachou-se, desesperado, à procura do Sabre. De repente, pisou nele e conseguiu pegá-lo, mas foi jogado ao chão novamente pela turba enlouquecida. Ajoelhou-se e agarrou-o com as duas mãos, apertando-o de encontro ao peito, enquanto o povo pulava por cima dele. Finalmente, escondeu-o dentro do manto e, depois de muito esforço, livrou-se da multidão. Àquela altura, Carpathia já estava muito longe dali.

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Buck retornou à hospedaria, passando pelo meio do povo que comemorava em todas as esquinas e aglomerava-se em torno de aparelhos de TV. Ele ligou para Leah. Não obteve resposta.

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Nos três dias que se seguiram, a Festa de Gala concentrou-se no local do assassinato das testemunhas. A música estridente e os discursos censuravam a Dupla de Jerusalém e elogiavam Nicolae. Fortunato conclamava o povo a considerar Carpathia uma divindade, "talvez a divindade, o Deus criador e salvador da humanidade". E o povo aplaudia sem parar.
A única menção à morte de Peter Segundo partiu do próprio Carpathia, que disse o seguinte:
— Além de cansado dos pregadores pseudo-religiosos e de sua arrogância, eu também não suportava mais a intromissão da Fé Mundial Enigma Babilônia, que não será restabelecida. Cada pessoa deve encontrar dentro de si a divindade necessária para conduzir sua vida da maneira que desejar. Para mim, a liberdade individual está acima da religião instituída.
Rayford começou a passar mais tempo perto do palanque da Festa de Gala, onde seria realizada a cerimônia de encerramento na noite de sexta-feira. Ele calculou os ângulos, a distância, a hora de chegar, onde ficar, onde movimentar-se e como se posicionar, caso Deus o escolhesse como seu instrumento. A cerimônia se encerraria com um discurso de Carpathia. Talvez aquele fosse o momento certo.

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O povo comemorava por toda Jerusalém. Buck sentia-se enojado ao ver os noticiários mostrando os corpos intumescidos e fétidos de Eli e Moisés, que se decompunham sob o calor do sol. A multidão dançava dia e noite ao redor deles, tapando o nariz e, às vezes, atrevendo-se a aproximar-se para chutar os corpos. Sangue e secreções formavam um líquido viscoso ao redor deles.
De todas as partes do mundo, chegavam notícias de comemorações, de pessoas trocando presentes como se fosse Natal. Um ou outro comentarista sugeria que era "tempo de acabar com aquilo, de dar a esses homens um enterro digno e de sair dali". Porém o povo em festa se recusava a atender a esses pedidos, e pesquisas realizadas no mundo inteiro mostravam que a maioria desejava que os corpos dos dois continuassem ali e não fossem enterrados.
Na noite de quarta-feira, Buck finalmente recebeu permissão para visitar Chaim no hospital. A cor havia voltado ao seu rosto, e ele já conseguia pronunciar algumas palavras, mas ainda estava abatido demais; o lado esquerdo continuava paralisado, e a mão direita, crispada. O médico, atordoado diante dos resultados dos exames, relutava em atender ao pedido de Chaim de "voltar para casa e morrer em paz".
Chaim implorou a Buck, balbuciando.
— Pegue uma cadeira de rodas e me tire daqui! Por favor! Quero ir embora para casa.
Até a madrugada de sexta-feira, Buck ainda não havia conseguido falar com Leah nem com Rayford, mas recebeu um agradável telefonema de Jacov.
— Não sei como ele conseguiu - disse Jacov -, mas o Dr. Rosenzweig deu um jeito de sair do hospital e vir para casa. Ele melhorou bastante, e o médico acredita que foi um pequeno derrame com sintomas de um derrame mais sério. Para mim, ele não parece melhor, mas já dá para entender o que ele diz... E está me obrigando a levá-lo à cerimônia de encerramento hoje à noite.

VINTE E TRÊS







Enquanto tomava uma ducha na manhã de sexta-feira, Buck se deu conta de que deveria estar no Muro das Lamentações naquele dia, mesmo correndo o risco de ser identificado. Ele acreditava em Tsion, acreditava na Bíblia, acreditava nas profecias. Não haveria nada mais gratificante do que ver os escarnecedores de Eli e Moisés receberem o troco.
Buck prometera a Jacov que o ajudaria a convencer Chaim a não comparecer ao encerramento da Festa de Gala naquela noite, para garantir que seu amigo tivesse a felicidade de estar incluído nos 90% que seriam poupados do terremoto, profetizado para acontecer em Jerusalém.

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Rayford dormiu quase a manhã inteira, sem fazer caso dos toques insistentes de seu celular, a não ser para olhar no visor e ver quem estava chamando. Todas as ligações eram de Leah. O que ele poderia lhe dizer? Sinto muito, mas não vou buscar você hoje à noite nem levá-la de volta aos Estados Unidos, porque devo estar preso ou morto?
Ele queria estar bem descansado e alimentado. Queria estar preparado e atento, mesmo sem saber como seria o seu dia. Rayford também orou para que Deus o alertasse, caso ele estivesse agindo por conta própria. Estava disposto a chegar à festa pelo menos três horas antes do pôr-do-sol, misturar-se à multidão e permanecer no local que ele já escolhera. Feito isso, Deus teria de puxar o gatilho.
Rayford pegou seu celular e leu o último recado de Leah no visor: "Nosso passarinho fugiu da gaiola. E agora?"
Hattie não estava na penitenciária? Sua pergunta era a mesma de Leah. E agora? Ele ligou para ela. Não obteve resposta.

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Buck estava zangado consigo mesmo por não ter chegado mais cedo ao Muro das Lamentações. Seu lugar na saliência da rocha já estava ocupado. Os guardas da CG não permitiam que ninguém subisse nas árvores. A área estava repleta de gente bêbada. Buck podia jurar que algumas delas não saíam dali havia dias. Quanto tempo essa festa ainda ia durar? Danças, atos lascivos praticados em público, gritarias, cantorias, bebedeiras, gente cambaleando...
Milhares de pessoas gritavam palavras de ordem em vários idiomas, e agora só as mais corajosas se aproximavam dos cadáveres das testemunhas, escurecidos e curtidos pela exposição ao Sol. Buck sentiu um cheiro rançoso de morte a centenas de metros de distância. Mesmo assim, ele estava disposto a aproximar-se. Depois de contornar o lado esquerdo do muro, ele avistou um pequeno bosque composto de arbustos altos. Buck não queria arriscar-se a ser reconhecido, mas achou que valeria a pena enfrentar o perigo. Se aquele pequeno bosque desse acesso à mesma vegetação rasteira que, um dia, lhe permitira aproximar-se de Eli e Moisés sem atrair a atenção dos guardas, ele seria testemunha ocular de um dos maiores milagres da História.

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Tsion e Chloe levantaram-se antes do amanhecer para assistir novamente aos noticiários exibidos pela TV. Eles se revezavam para distrair Kenny, quando as câmeras mostravam a cena horripilante dos corpos de Eli e Moisés.
— Por mais terríveis que tenham sido essas mortes - disse Tsion -, o que virá a seguir será extraordinário.
Sentado no sofá, Tsion balançava o corpo de um lado para o outro, sem conseguir ficar parado. Todas as vezes que seus olhos cruzavam com os de Chloe, ele se lembrava de sua filha, quando ela ainda era menina, na manhã do dia de seu aniversário.

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Buck esgueirou-se por entre os arbustos, passando despercebido por dois postos de segurança, e chegou ao outro lado, onde poderia ficar perto da cerca sem ser visto. Ele mal podia acreditar em sua sorte. Jamais seria descoberto, a menos que acontecesse alguma coisa errada. Na mesma hora, ele se lembrou de sua própria advertência a Leah. Nós não desejamos sorte.
— Obrigado, Senhor - ele murmurou.
Era muito triste ver o que restara dos dois homens poderosos a quem ele aprendera a amar. Com exceção dos chutes ocasionais dados por algumas pessoas mais irreverentes, os corpos estavam imóveis ali havia três dias e meio, servindo de alimento a animais, sendo bicados por aves e comidos por vermes. Buck disse a si mesmo que jamais deixaria um corpo apodrecendo ao sol, mesmo que fosse o de seu pior inimigo.
Uma banda barulhenta invadiu o local levando o povo ao delírio. Os mais corajosos fizeram um círculo ao redor dos corpos, dançando com os braços sobre os ombros do companheiro do lado. Buck temia não conseguir enxergar o milagre se ficasse atrás desse grupo de bêbados malucos. O malfadado círculo transformou-se em uma fila, quando o grupo começou a dançar entre os corpos e a cerca.
A dança foi ficando cada vez mais rápida até que alguém inverteu a direção. A fila parou e seguiu o líder, mas alguns do grupo decidiram ir para o outro lado. Formou-se uma confusão total. Os dançarinos colidiam uns com os outros, gargalhando, gritando, chorando de tanto rir. Uma senhora de meia-idade, sem um dos sapatos, curvou-se para vomitar e foi atropelada por aqueles que continuavam dançando.
De vez em quando, o grupo se abaixava, deixando Buck com uma visão clara de Eli e Moisés, que agora não passavam de meras partes retorcidas, desconjuntadas e fétidas de corpos em decomposição. Um sentimento de piedade fez Buck soluçar, sentindo um nó na garganta.
De repente, os mortos começaram a se movimentar. Buck prendeu a respiração. Os participantes da dança começaram a gritar e afastaram-se, chamando a atenção do restante do povo. A notícia de que os corpos estavam se movimentando se espalhou. Os que estavam mais próximos dali saíram correndo, ao passo que os que estavam mais longe começaram a dirigir-se ao local.
A música parou, a cantoria transformou-se em gritos de terror. Muitas pessoas cobriram os olhos ou viraram o rosto. Milhares fugiram. Outros milhares começaram a aproximar-se.
Eli e Moisés, com muito esforço, ficaram de joelhos. Seus corpos imundos começaram a movimentar-se em câmera lenta, o peito arfante. Com dificuldade, colocaram as mãos nas pernas, piscaram os olhos e viraram-se para ver o que se passava. Ambos, um após o outro, apoiaram a mão no pavimento e, em seguida, endireitaram o corpo, levantando-se lentamente e provocando gritos terríveis do povo, paralisado de medo.
Quando ambos finalmente ficaram em pé, a sujeira seca ao redor deles transformou-se em água. As feridas cicatrizaram, a pele - esticada e rompida pelo inchaço - contraiu-se, os hematomas roxos e pretos foram desaparecendo aos poucos. Os cabelos e partes do tecido que estavam na cerca e na parede mais adiante sumiram e se integraram ao corpo deles.
Buck ouvia os gritos agudos da multidão, mas não conseguia tirar os olhos de Eli e Moisés. Eles ajeitaram a parte de cima do manto junto ao peito, enquanto o restante da roupa de aniagem, muito limpa, oscilava ao sabor da brisa. Ambos voltaram a ser altos e fortes, figuras dignas, vitoriosas e imponentes.
Eli e Moisés olharam para a multidão com ar de tristeza e nostalgia. Em seguida, ergueram o rosto em direção ao céu. Eles pareciam tão esperançosos que muitas pessoas na multidão também olharam para o céu.
Nuvens brancas como a neve flutuavam no céu azul-escuro e arroxeado. O Sol, que estava escondido, reapareceu em todo o seu esplendor tornando o céu multicolorido, envolto em uma neblina branca.
Uma voz ecoou do céu, tão alta que fez o povo tapar os ouvidos e se abaixar: "SUBAM!"
Ainda com os olhos voltados para o céu, Eli e Moisés subiram. Um suspiro coletivo foi ouvido por todo o Monte do Templo, enquanto pessoas se ajoelhavam, algumas com o rosto em terra, chorando, gritando, orando, gemendo. As testemunhas desapareceram no meio de uma nuvem, que subiu tão rapidamente que, logo em seguida, transformou-se em um ponto branco, antes de sumir de vez.
Os joelhos de Buck tremiam tanto que ele caiu no chão chorando e soluçando.
— Louvado seja Deus - ele murmurou. - Obrigado, Senhor! Por toda parte, milhares de pessoas se prostraram, chorando, lamentando, implorando a Deus.
Buck começou a levantar-se, mas, antes que suas pernas se endireitassem, sentiu o chão se retirar de debaixo dele, como se o tivessem puxado. Ele correu para uma árvore, mas tropeçou e caiu, arranhando o pescoço e as costas. Quando se levantou, viu centenas de pessoas caírem depois de terem sido atiradas a uma grande altura.
O céu ficou negro, e uma chuva fria tomou conta da área. A quarteirões de distância, ouviam-se terríveis sons de edifícios desabando, árvores caindo, metais e vidros estilhaçando, carros sendo atirados de um lado para o outro.
— Terremoto! - o povo gritava, correndo.
Buck saiu cambaleando de seu abrigo, surpreso diante da devastação provocada por um terremoto tão rápido. O Sol surgiu por entre as nuvens, criando uma atmosfera sinistra. Buck caminhou atordoado rumo à casa de Chaim.

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No momento do terremoto, Rayford estava no quarto do hotel com a TV ligada. A energia elétrica foi cortada, e tudo o que havia no quarto acabou sendo atirado ao chão, inclusive ele. Quase que imediatamente, os caminhões da CG com alto-falantes começaram a percorrer as ruas.
— Atenção, cidadãos! Necessitamos de voluntários na região leste da cidade. A cerimônia de encerramento será realizada esta noite, conforme planejado. Alguns fanáticos fugiram levando os corpos dos pregadores. Não acreditem em histórias da carochinha de que eles desapareceram, ou que foram responsáveis por este fenômeno da natureza. Repetindo: A cerimônia de encerramento será realizada esta noite, conforme planejado.

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Mac havia-se deitado tarde na noite anterior. Quando acordou, ligou a TV para ver as notícias do dia. Ele chorou quando as câmeras mostraram Eli e Moisés ressuscitando e subindo ao céu no meio das nuvens. Como a CG poderia contestar um fato mostrado ao mundo inteiro? David Hassid lhe contara que vira a sinistra aparição de Carpathia na TV na noite de segunda-feira, mas aquele incidente não apareceu em nenhum dos teipes do evento. E agora, os noticiários também não mostravam nenhuma imagem das ressurreições.
Que poder, pensou Mac. Que controle total da mídia e até da moderna tecnologia!
Se, por um motivo qualquer, Carpathia saísse vivo de Israel, Mac não permitiria que ele aterrissasse vivo. Não em um avião que ele estivesse pilotando. Será que deveria esperar tanto tempo? Ele vasculhou o fundo de sua sacola de vôo e tateou a pistola contrabandeada, igual à que Abdullah carregava. Se tivesse de levar a arma consigo naquela noite, Mac teria de permanecer longe dos detectores de metais.

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O bairro de Chaim havia sido seriamente atingido. Ao contrário das casas vizinhas, que desabaram, a de Chaim escapara quase ilesa. Apenas os tijolos da garagem ficaram abalados e uma parte dela desmoronou.
A energia elétrica foi restabelecida rapidamente naquela área, e Buck pôde assistir aos noticiários da TV ao lado de Chaim e dos empregados da casa. O número de mortes anunciado chegava a centenas, mas logo subiu a milhares.
A maior devastação ocorreu na região leste de Jerusalém, onde casas e edifícios desabaram, avenidas transformaram-se em tiras retorcidas de asfalto e lama, e milhares de pessoas morreram. No início da noite, ficou evidente que a décima parte da Cidade Santa havia sido destruída e que o número de mortos na manhã seguinte chegaria a, no mínimo, sete mil.
Todos os noticiários repetiam a insistência da CG para que os delegados assistissem ao encerramento da Festa de Gala.
— A cerimônia será abreviada - dizia Leon Fortunato, dando à voz um tom solene adequado à ocasião. - O potentado está envolvido nas operações de busca e salvamento, mas pediu-me que eu estendesse suas mais sinceras condolências a todos os que perderam familiares. Estas são as palavras dele: "A reconstrução inicia-se imediatamente. Não seremos derrotados. O caráter de um povo é revelado por sua reação diante de uma tragédia. Vamos nos erguer, porque somos a Comunidade Global. É tremendamente importante estarmos reunidos conforme planejado. Música e dança não serão apropriadas, mas estaremos juntos, animando uns aos outros e dedicando-nos mais uma vez aos ideais que tanto prezamos."
— Permitam-me incluir uma palavra pessoal - disse
Fortunato. - O potentado Carpathia ficará extremamente encorajado se um número expressivo comparecer. Vamos homenagear os mortos e o valor daqueles que participaram dos resgates, além de cuidar dos feridos.
Buck não tinha nenhum interesse em assistir à mesma baboseira da cerimônia de abertura - os potentados regionais elogiando seu líder destemido e ele, com expressão de santo, fascinando a multidão.
— Você prometeu comparecer - ralhou Chaim.
— Ora, doutor, as estradas continuam intransitáveis, a rampa para cadeira de rodas talvez tenha sido danificada. Seria melhor assistirmos pela...
— Jacov pode dirigir em qualquer estrada e me levar a qualquer lugar.
Jacov encolheu os ombros. Buck fez uma careta como que indagando por que ele não o apoiava.
— Ele tem razão - disse Jacov. - Vamos colocar a cadeira de rodas no carro e levá-lo até lá.
— Eu não posso correr o risco de ser reconhecido - disse Buck a Chaim.
— Eu só quero que você fique no meio da multidão me dando apoio.

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O Sol surgiu por trás das nuvens e aqueceu Jerusalém. O tom alaranjado no céu da velha cidade deixou Rayford extasiado diante de tanta beleza. A devastação havia produzido o mesmo efeito nele. Rayford não podia imaginar por que Carpathia estava tão determinado a cumprir a programação. Mas o potentado agia de modo que os planos de Deus fossem cumpridos. Depois de andar escondido atrás dos grupos de pessoas,
Rayford parou no meio de uma aglomeração perto da torre de alto-falantes, à esquerda de Carpathia. Calculou que estava a cerca de 20 metros da tribuna.
— Eu não vou - avisou Abdullah. - Prefiro ver pela TV.
— Como quiser - disse Mac. - Talvez eu ainda vá me arrepender de ter ido.
A van que levaria Mac estava estacionada, e ele aguardou mais de 20 minutos até ela sair. Quando finalmente partiram, ele olhou para trás e viu Abdullah saindo apressado do hotel, com as mãos nos bolsos da jaqueta.

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Buck chegou ao local da festa antes de Jacov e Chaim e aguardou perto da entrada, animado por não estar sendo reconhecido por ninguém. Seu novo rosto ajudava muito. Naquele momento, os funcionários da CG tinham a preocupação voltada para um convidado de honra que acabara de chegar.
Alguém estacionou o carro de Chaim, enquanto Jacov o conduzia na cadeira de rodas para passar pelo detector de metais do lado direito do palanque.
— Seu nome, por favor - disse o guarda dirigindo-se a Jacov.
— Jac...
— Ele está comigo, jovem - ralhou Chaim. - Deixe-o em paz.
— Lamento muito, senhor - disse o guarda. - Estamos intensificando nossa segurança, conforme o senhor pode imaginar.
— Eu já disse que ele está comigo!
— Tudo bem, senhor, mas assim que ele o ajudar a subir até o palanque, deverá sair de lá.
— Que absurdo! - disse Chaim. - Agora...
— Ora, patrão - disse Jacov rapidamente. - Eu não quero ficar lá no palanque. Por favor.
Buck viu Chaim fechar os olhos como se estivesse exausto e fazer um gesto de resignação.
— Só me leve até lá - ele disse.
— O senhor também terá de passar pelo detector de metais -disse o guarda. - Não há exceções.
— Ótimo! Vamos lá!
— Você primeiro, moço.
As chaves no bolso de Jacov fizeram acionar o alarme. Na segunda tentativa, ele passou sem problemas.
— O senhor vai precisar levantar-se da cadeira por alguns instantes, Dr. Rosenzweig - disse o guarda. - Meus companheiros poderão ajudá-lo.
— Não! - gritou Chaim.
— Senhor - disse Jacov ao guarda -, ele sofreu um derrame na seg...
— Estou sabendo de tudo.
— O senhor está querendo insultar um israelense, ou, mais ainda, um estadista conhecido no mundo inteiro?
O guarda parecia confuso. - Preciso, pelo menos, revistá-lo.
— Está bem - resmungou Chaim. - Seja rápido!
O guarda fez uma revista completa em Chaim, tentando localizar qualquer objeto estranho preso nos braços, pernas, frente e costas.
— Mesmo que o senhor estivesse portando alguma arma, não poderia fugir tão rápido - disse o guarda.
Jacov e mais três homens carregaram Chaim na cadeira de rodas até o palanque, deixando-o na extremidade esquerda de uma fileira de cadeiras. O guarda fez um sinal para que Jacov voltasse.
— Devo deixá-lo ali sozinho?
— Sinto muito - disse o guarda. Jacov encolheu os ombros.
— Vá! - disse Chaim. - Eu vou ficar bem.
Jacov desceu do palanque e postou-se ao lado de Buck, de onde eles viram Chaim se divertindo com a cadeira de rodas motorizada, indo de um lado ao outro do palanque vazio, para alegria da multidão que aumentava cada vez mais.

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O céu estava escuro, mas um extenso sistema de iluminação clareava toda a praça. Rayford calculou que o número de presentes era maior do que o do dia da cerimônia de abertura, mas sem o mesmo alvoroço.
Os convidados de honra foram transportados em carros, porque os helicópteros estavam a serviço da equipe de resgate às vítimas do terremoto. Não houve ostentação, danças, nem oração. Os potentados subiram a escada, cumprimentaram Chaim e aguardaram em pé diante de suas cadeiras. Leon subiu atrás de Nicolae, os dois cercados por um imenso aparato de segurança. O povo aplaudiu com entusiasmo, mas sem gritos ou assobios.
Após fazer a apresentação dos potentados, Leon disse:
— Contamos também com a presença de mais um convidado muito especial, a quem gostaríamos de saudar neste momento, mas Sua Excelência insistiu para ter esse privilégio. Agradeço a colaboração de todos durante estas comemorações e passo a palavra a Sua Excelência, Nicolae Carpathia.
Rayford enfiou as duas mãos dentro do manto e retirou o Sabre da caixa. Orando silenciosamente, ele disse a Deus que estava preparado para exibir a arma no momento certo.
Carpathia, desta vez um pouco mais contido, fez cessar os aplausos.
— Quero reforçar os agradecimentos do supremo comandante e enviar minhas condolências a todos os que perderam entes queridos. Não vou me delongar, porque sei que muitos aqui presentes precisam retornar a seus países e estão preocupados com os meios de transporte. Os vôos estão decolando de ambos os aeroportos, evidentemente com um certo atraso.
— Antes de fazer outras observações, quero apresentar meu convidado de honra. Ele deveria ter estado aqui na segunda-feira, mas foi acometido de um derrame. Tenho a enorme satisfação de anunciar o milagroso restabelecimento deste grande homem, o que possibilitou sua presença aqui conosco nesta noite, mesmo em cadeira de rodas, mas com ótimas perspectivas de completa recuperação de sua saúde. Senhoras e senhores da Comunidade Global, tenho a honra de apresentar-lhes o estadista, o cientista, o cidadão leal e meu dileto amigo, o ilustre Dr. Chaim Rosenzweig!
O povo aplaudiu com alegria no momento em que Carpathia apontou na direção de Chaim, e Rayford vislumbrou uma oportunidade. As pessoas à sua frente levantaram os braços para aplaudir e acenar, e ele empunhou a arma e mirou. Porém, Chaim estendeu a mão sadia para cumprimentar Carpathia, o qual, por sua vez, se curvou sobre a cadeira de rodas para abraçar o ancião.
Rayford não podia atirar, pois atingiria Chaim. Ele abaixou a arma e escondeu-a nas dobras da manga, observando o abraço desajeitado. Nicolae ergueu o braço de Chaim, e a multidão aplaudiu novamente. Carpathia retornou à tribuna, e a oportunidade foi perdida.

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Mac McCullum sabia que Buck Williams devia estar no meio da multidão. Talvez fosse melhor tentar procurá-lo depois que tudo estivesse terminado. Abdullah também estaria ali? E por que ele disse que não iria?

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Tremendo por ter quase atingido seu intento, Rayford sentiu um gosto amargo na boca. Carpathia o enojava.
— Cidadãos e companheiros - Nicolae estava dizendo solenemente -, nos primeiros anos da história deste nosso governo mundial, temos lutado ombro a ombro contra fortes oposições como as que enfrentamos agora. Eu havia preparado um discurso de despedida para voltarmos para nossos lares com vigor renovado e maior dedicação aos ideais da Comunidade Global. A tragédia tornou esse discurso desnecessário. Provamos mais uma vez que somos um povo com determinação e ideais, com espírito de servir e fazer boas ações.
Três potentados sentados atrás de Carpathia ficaram em pé, o que obrigou os outros sete a fazerem o mesmo, embora com relutância. Carpathia percebeu que a atenção do povo fora desviada e virou-se para trás. Os três potentados que se levantaram primeiro começaram a bater palmas, seguidos por seus colegas e pela multidão. Rayford pensou ter visto uma troca de olhares entre Carpathia e Fortunato.
Estaria havendo uma conspiração? Mac lhe contara que três potentados não eram tão leais quanto Nicolae pensava. Seriam aqueles três que se levantaram primeiro?
Os potentados sentaram-se e, pela primeira vez desde as reuniões no Estádio Teddy Kollek, Carpathia demonstrou estar confuso. Ele tentou reiniciar o discurso, parou e repetiu as palavras que já havia dito. Em seguida, virou-se para os potentados e disse em tom de brincadeira:
— Não façam isso comigo.
A multidão voltou a aplaudir, e Nicolae aproveitou a situação para provocar uma grande gargalhada. Sem deixar transparecer sua preocupação, ele recomeçou a falar, olhou para trás rapidamente e retomou o discurso, conseguindo atrair risos silenciosos da platéia.
De repente, os três potentados levantaram-se novamente e aplaudiram como se estivessem tentando somar pontos com Nicolae. Rayford notou que um deles enfiou a mão no bolso ao levantar-se. A multidão achou que os três potentados estavam fazendo uma espécie de encenação improvisada. Quando Chaim virou sua cadeira e rodou na direção de Fortunato, o povo riu e vibrou de alegria.
Rayford teve a atenção desviada para a esquerda. Hattie? Não era possível. Ele tentou não perdê-la de vista, mas as pessoas à sua frente levantaram as mãos novamente, gritando, aplaudindo, pulando. Ele nivelou a arma, mirando-a num ponto entre os dois guardas de segurança que estavam um de cada lado de Nicolae, e tentou apertar o gatilho. Mas não conseguiu! Seu braço estava paralisado, sua mão trêmula e a visão embaralhada. Será que Deus não queria que ele atirasse? Será que ele se precipitara? Ele se sentia um tolo, um covarde, um fraco, apesar de ter uma arma na mão. Rayford tremia, sem tirar os olhos de Carpathia. Enquanto a multidão comemorava, Rayford recebeu um tranco nas costas e no lado do corpo e a arma disparou. No momento da explosão, o povo afastou-se em pânico, formando um círculo ao redor dele. Rayford correu, tendo várias pessoas em seu encalço. Ele jogou a arma no chão, deixando que a outra metade da caixa também caísse. O povo gritava e pisoteava os que se atiraram ao chão.
Enquanto tentava abrir caminho em meio a uma massa compacta de gente, Rayford olhou para trás em direção ao palanque. Não conseguiu ver Carpathia. Os potentados abaixaram-se para se proteger e um deles deixou cair alguma coisa, enquanto saía correndo do palanque. A princípio, Rayford também não conseguiu ver Fortunato. A tribuna tinha sido destruída, e a enorme cortina de fundo de 30 metros de extensão soltou-se da armação e voou pelos ares. Rayford imaginou que a bala tivesse atravessado Carpathia e a cortina.
Será que ele havia sido usado por Deus mesmo tendo sido tão covarde? Será que ele havia cumprido a profecia? O disparo fora acidental. Ele não pretendia atirar!

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Assim que ouviu o tiro, Buck escondeu-se debaixo de uma armação de ferro. Uma multidão desvairada passou por ele dos dois lados, e algumas pessoas tinham uma expressão de alegria. Seriam alguns convertidos que viram Carpathia assassinar seus heróis diante do Muro das Lamentações?
Quando Buck olhou para o palanque, viu os potentados tentando levantar-se, a cortina voando a distância e Chaim em estado catatônico, com a cabeça rígida.
Carpathia estava estendido no chão, com os olhos, o nariz, a boca e - conforme parecia a Buck - também o alto da cabeça sangrando. O microfone em sua lapela continuava ligado. Por estar bem abaixo da torre dos alto-falantes, Buck ouviu o murmúrio gutural de Nicolae:
— Mas eu pensei... eu pensei... que havia feito tudo o que vocês pediram.
Fortunato debruçou seu corpanzil sobre o peito de Carpathia, passou a mão por baixo da cabeça dele e levantou-a. Sentado no chão do palanque, ele embalava seu potentado, gemendo o tempo todo.
— Não morra, Excelência! - gritava Fortunato. - Nós precisamos do senhor! O mundo precisa do senhor! Eu preciso do senhor!
Os guardas de segurança cercaram os dois, empunhando metralhadoras. Buck já havia presenciado tragédias suficientes para um só dia, mas ele não conseguia tirar os olhos da cena, observando fixamente o crânio ensangüentado e esfacelado de Carpathia.
Com certeza, o ferimento havia sido fatal. E, do local em que Buck estava, não havia dúvida sobre a arma que o provocara.

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— Eu não esperava um disparo - disse Tsion olhando firme para a TV, enquanto a segurança da CG afastava o pessoal e retirava Carpathia do palanque.
Duas horas depois, a CNN CG confirmou a morte e reproduziu infinitas vezes o pronunciamento agoniado do supremo comandante Leon Fortunato.
— Devemos suportar essa tragédia dentro do espírito corajoso de nosso fundador e defensor da moral, o potentado Nicolae Carpathia. A causa da morte só será divulgada depois de concluídas as investigações. Mas os senhores podem estar seguros de que o culpado será levado à Justiça.
Os noticiários comunicaram que o corpo do potentado ficaria exposto no palácio da Nova Babilônia até o sepultamento, que se daria no domingo.
— Não saia de perto da TV, Chloe - disse Tsion. - É provável que a ressurreição seja captada pelas câmeras.
Mas a sexta-feira acabou e o sábado amanheceu em Monte Prospect. Quando a noite de sábado começou a se aproximar, até mesmo Tsion passou a se questionar. A Bíblia não mencionava nada sobre a morte por projétil. O anticristo morreria de uma ferida na cabeça e, em seguida, ressuscitaria. O corpo de Carpathia continuava sendo velado.
Na madrugada de domingo, enquanto via o povo passando pelo esquife de vidro no pátio do palácio da CG banhado de sol, Tsion começou a duvidar de si mesmo.
Será que ele estava enganado?
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Duas horas antes do sepultamento, David Hassid foi chamado ao escritório de Leon Fortunato. Leon e os diretores do Serviço de Inteligência e Segurança estavam aglomerados diante de um aparelho de TV. O rosto de Leon demonstrava um sofrimento terrível e a promessa de vingança.
— Assim que Sua Excelência for sepultado - ele disse, com voz rouca -, o mundo chegará a uma conclusão. Quem o matou será executado. Observe conosco, David. Os ângulos principais estão bloqueados, mas veja esta imagem secundária. Diga-me se você está vendo o mesmo que nós.
David olhou atentamente.
Oh, não!, ele pensou. Não pode ser!
— E então? - perguntou Leon, olhando firme para ele. -Existe alguma dúvida?
David estava sem fala, mas seu silêncio fez com que os outros dois homens olhassem para ele.
— A câmera não mente - disse Leon. - Já sabemos quem o matou, não?
Por mais que quisesse inventar outra explicação para uma cena tão evidente, David sabia que perderia sua posição se desse uma resposta sem lógica. Ele assentiu com a cabeça.
— Claro que sabemos.



EPÍLOGO




"Passou o segundo ai. Eis que, sem demora, vem o terceiro ai."
Apocalipse 11.14

SOBRE OS AUTORES

Jerry B. Jenkins (www.jerryjenkins.com) é o autor da série Deixados para Trás e de mais de 100 livros, quatro dos quais figuraram na lista de mais vendidos do New York Times. Foi vice-presidente da divisão editorial do Instituto Bíblico Moody de Chicago e trabalhou muitos anos como editor da Moody Magazine, com a qual colabora até hoje.
Escreveu artigos para várias publicações, tais como Reader's Digest, Parade, revistas de bordo e numerosos periódicos cristãos. Seus livros abrangem quatro gêneros literários: biografias, obras sobre casamento e família, ficção para crianças e ficção para adultos.
Dentre outras, Jenkins colaborou nas biografias de Hank Aaron, Bill Gaither, Luis Palau, Walter Payton, Orei Hershiser, Nolan Ryan, Brett Butler e Billy Graham.
Cinco de seus romances apocalípticos - Deixados para Trás, Comando Tubulação, Nicolae, A Colheita e Apoliom - constaram da lista dos mais vendidos da Associação Cristã de Livreiros e do semanário religioso Publishers Weekly. Deixados para Trás foi indicado para receber o prêmio de Romance do Ano, pela Associação das Editoras Cristãs Evangélicas, em 1997 e 1998.
Como autor e conferencista de assuntos relacionados ao casamento e à família, Jenkins tem participado com freqüência do programa de rádio do Dr. James Dobson, Focus on lhe Family (A Família em Foco).
Jerry também é o autor das tiras cômicas Gil Thorp, distribuídas aos jornais dos Estados Unidos por Tribune Media Services.
Ele mora com sua esposa, Dianna, no Colorado.
Convites para conferências podem ser feitos pela Internet no seguinte endereço: speaking@jerryjenkins.com.

O Dr. Tim LaHaye, que idealizou o projeto de romancear o Arrebatamento e a Tribulação, é autor famoso, ministro do evangelho, conselheiro, comentarista de televisão e palestrante de temas sobre vida familiar e profecias bíblicas. É fundador e presidente do Family Life Seminars (Seminários sobre a Vida Familiar) e também fundador do The PreTrib Research Center (Centro de Pesquisas do Período Pré-Tribulação). Atualmente, o Dr. LaHaye faz palestras sobre profecias bíblicas nos Estados Unidos e no Canadá, onde seus sete livros sobre profecias fazem muito sucesso.
O Dr. LaHaye é formado pela Universidade Bob Jones, com mestrado e doutorado em ministério pelo Western Conservative Theological Seminary (Seminário Teológico Conservador do Oeste). Durante 25 anos, foi pastor de uma das mais prósperas igrejas dos Estados Unidos, em San Diego, a qual se expandiu para outras três localidades. Nesse período, fundou duas escolas cristãs de ensino médio reconhecidas pelo governo, um sistema de escolas cristãs composto de dez estabelecimentos e a Christian Heritage College (Faculdade Herança Cristã).
O Dr. LaHaye escreveu mais de 40 livros, com mais de 11 milhões de exemplares impressos em 32 idiomas, abordando uma ampla variedade de assuntos, tais como vida familiar, estados de humor e profecias bíblicas. Estas obras de ficção, escritas em parceria com Jerry Jenkins - Deixados para Trás, Comando Tribulação, Nicolae, A Colheita e Apoliom -, alcançaram o primeiro lugar na lista dos livros cristãos mais vendidos. Outras obras escritas por ele: Temperamento Controlado pelo Espírito; Como Ser Feliz Mesmo Sendo Casado; Revelation, Illustrated and Made Plain (O Apocalipse Ilustrado e Simplificado); Como Estudar Sozinho as Profecias Bíblicas; Um Homem Chamado Jesus e Estamos Vivendo os Últimos Dias? -publicados pela Editora United Press -, No Fear of the Storm: Why Christians Will Escape Ali the Tribulation (Sem Medo da Tempestade: Por Que os Cristãos Escaparão do Período da Tribulação); e Deixados para Trás - Série Teen.
O Dr. LaHaye é pai de quatro filhos e tem nove netos. Gosta muito de esquiar na neve e na água, de motociclismo, de golfe, de férias com a família e de caminhadas.

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