domingo, 5 de setembro de 2010

DEIXADOS PARA TRÁS XIA

DEIXADOS PARA TRÁS XI
A BATALHA CÓSMICA DAS ERAS
ARMAGEDOM
Em memória de A. W. Tozer, que buscou a Deus.
Agradecimentos especiais
a David Allen
pela consultoria técnica especializada.
O PERÍODO DA TRIBULAÇÃO COMPLETA SEIS ANOS;
DOIS ANOS E MEIO DENTRO DA GRANDE TRIBULAÇÃO
Os Crentes
Rayford Steele - Idade: perto de 50 anos; ex-capitão-aviador do 747 das Linhas
Aéreas Pan-Continental; perdeu esposa e filho no Arrebatamento; ex-piloto do
potentado da Comunidade Global Nicolae Carpathia; membro fundador do
Comando Tribulação; fugitivo internacional exilado em Petra.
Cameron ("Buck") Williams - Idade: cerca de 35 anos; ex-articulista sênior do
Semanário Global; ex-editor do Semanário Comunidade Global, de propriedade
de Carpathia; membro fundador do Comando Tribulação; editor da revista virtual
A Verdade; fugitivo exilado em San Diego.
Chloe Steele Williams - Idade: cerca de 25 anos; ex-aluna da Universidade
Stanford; perdeu a mãe e o irmão no Arrebatamento; filha de Rayford; esposa de
Buck; mãe de Kenny Bruce, um menino de três anos e meio; presidente da
Cooperativa Internacional de Mercadorias, uma associação secreta composta de
crentes; membro fundadora do Comando Tribulação; fugitiva exilada em San
Diego.
George Sebastian - Idade: perto dos 30 anos; ex-piloto de helicóptero da divisão
de combate da Força Aérea norte-americana com base em San Diego;
escondido em San Diego com alguns membros do Comando Tribulação e da
Cooperativa Internacional de Mercadorias.
Ming Toy - Idade: cerca de 25 anos; viúva; ex-guarda do Presídio de
Reabilitação Feminina da Bélgica (PRFB); desertora da Comunidade Global;
escondida em San Diego.
Ree Woo - Idade: cerca de 25 anos; piloto da Cooperativa Internacional de
Mercadorias; escondido em San Diego.
Tsion Ben-Judá - Idade: pouco mais de 50 anos; ex-estudioso das doutrinas dos
rabinos e estadista israelense; revelou sua crença em Jesus como o Messias em
um programa de TV levado ao ar internacionalmente, o que provocou o assassinato
de sua esposa e de seus dois filhos adolescentes; fugiu para os Estados
Unidos; ex-professor e líder espiritual do Comando Tribulação; atualmente
doutrina os judeus remanescentes em Petra; suas pregações diárias, via internet,
alcançam mais de um bilhão de pessoas.
Dr. Chaim Rosenzweig - Idade: pouco mais de 70 anos; botânico e estadista
israelense ganhador do Prêmio Nobel; recebeu o título de Criador da Notícia do
Ano pelo Semanário Global; assassino de Carpathia; atualmente é líder dos
judeus remanescentes em Petra.
Abdullah Smith - Idade: cerca de 35 anos; ex-piloto de aviões de caça na
Jordânia; ex-co-piloto do Fênix 216; dado como morto em acidente aéreo;
atualmente está em missão em Petra.
Al B. (conhecido como "Albie") - Idade: pouco mais de 50 anos; nascido em Al
Basrah, no norte do Kuwait; piloto; trabalhou no mercado negro internacional;
atualmente é membro do Comando Tribulação; escondido em Al Basrah.
Mac McCullum - Idade: pouco mais de 60 anos; ex-piloto de Carpathia; dado
como morto em acidente aéreo; escondido em Al Basrah.
Hannah Palemoon - Idade: pouco mais de 30 anos; ex-enfermeira da
Comunidade Global; dada como morta em acidente aéreo; escondida em Long
Grove, Illinois.
Leah Rose - Idade: pouco mais de 40 anos; ex-enfermeira-chefe do Arthur
Young Memorial Hospital de Palatine, Illinois; escondida em Long Grove, Illinois.
Lionel Whalum - Idade: perto de 50 anos; ex-empresário; piloto da Cooperativa
Internacional de Mercadorias; escondido em Long Grove, Illinois.
Chang Wong - Idade: 20 anos; irmão de Ming Toy; espião do Comando
Tribulação dentro da sede da Comunidade Global, em Nova Babilônia.
Gustaf Zuckermandel (conhecido como "Zeke" ou "Z")
- Idade: cerca de 25 anos; falsificador de documentos e especialista em
disfarces; seu pai foi morto na guilhotina; escondido em Avery, Wisconsin.
Os Inimigos
Nicolae Jetty Carpathia - Idade: perto de 40 anos; ex-presidente da Romênia;
ex-secretário-geral da Organização das Nações Unidas; autodesignado
potentado da Comunidade Global; assassinado em Jerusalém; ressuscitou no
palácio da CG, em Nova Babilônia.
Leon Fortunato - Idade: cerca de 55 anos; ex-supremo comandante da
Comunidade Global e braço direito de Carpathia; recebeu o título de
Reverendíssimo Pai do Carpathianismo e proclamou o potentado como o deus
ressurreto; mora no palácio da CG, em Nova Babilônia.
Viv Ivins - Idade: perto de 70 anos; amiga de longa data de Carpathia; trabalha
para a CG; vive no palácio da CG, em Nova Babilônia.
Suhail Akbar - Idade: cerca de 45 anos; chefe do Serviço de Segurança e
Inteligência, a serviço de Carpathia; reside no palácio da CG, em Nova Babilônia.


PRÓLOGO
Extraído de Profanação
- Pela primeira vez depois de tanto tempo - disse Carpathia -,
estamos jogando de igual para igual. Os rios e lagos estão retornando ao
normal, e precisamos reconstruir toda a infra-estrutura. Vamos nos
esforçar para convocar os nossos cidadãos leais a cerrarem fileiras
conosco. O diretor Akbar e eu reservamos algumas surpresas especiais
para os dissidentes de vários níveis. Estamos de volta ao trabalho,
pessoal. É chegada a hora de recuperar nossas perdas e partir para o
ataque.
O clima festivo durou três dias. A seguir, as luzes se apagaram.
Literalmente. Tudo deixou de brilhar - o sol, a lua, as estrelas, as
lâmpadas das ruas, as luzes elétricas, os faróis dos carros. Tudo o que
antes emitia luz estava apagado - teclas luminosas de telefones,
lanternas, materiais iridescentes ou fosforescentes. Luzes de emergência,
placas indicando saída, perigo de incêndio, alarmes - tudo. Escuridão
total.
A expressão popular de não enxergar um palmo adiante do nariz
tornou-se verdadeira. Fosse qual fosse a hora do dia, ninguém enxergava
nada. Nem relógios, nem fogo, nem fósforo, nem grelhas de gás, nem
grelhas elétricas. A impressão era de que a luz desaparecera
completamente; qualquer vestígio parecia ter sido engolido pelo universo.
As pessoas gritavam de terror. Tratava-se do maior pesadelo da
humanidade, e elas já haviam enfrentado muitos outros. Estavam
completamente cegas - totalmente incapazes de enxergar alguma coisa,
a não ser a escuridão total, todo o tempo.
Os moradores do palácio tateavam no escuro, querendo sair.
Apertavam todos os interruptores dos quais se lembravam. Gritavam
entre si para saber se o problema era localizado ou se era geral. Encontre
uma vela! Esfregue um pedaço de madeira no outro! Friccione o carpete
para gerar eletricidade estática! Faça alguma coisa! Qualquer coisa que
proporcione algum vestígio de sombra, por menor que seja.
Tudo em vão.
Chang sentia vontade de rir. Ele queria extravasar o que pensava.
Queria dizer a todos que, mais uma vez, Deus enviara um flagelo, um
julgamento sobre a terra, que atingiu apenas aqueles que possuíam a
marca da besta. Chang conseguia enxergar, mas de maneira diferente.
Ele também não via as luzes. Simplesmente via tudo em tonalidade sépia,
como se o fluxo de carga da corrente elétrica tivesse sido reduzido.
Ele enxergava tudo o que necessitava, inclusive seu computador,
a tela, o relógio e o apartamento. Seus alimentos, sua pia, seu fogão -
tudo. E melhor ainda. Ele podia andar nas pontas dos pés pelo palácio
usando sapatos de sola de borracha, desviando-se dos colegas que
tateavam para encontrar o caminho.
Depois de algumas horas, entretanto, uma coisa mais estranha
ainda aconteceu. As pessoas não estavam morrendo de fome nem de
sede. Elas eram capazes de encontrar comida e água. Mas não podiam
trabalhar. Não havia nada a discutir, nada a ser tratado, a não ser para
falar da praga da escuridão. E, por algum motivo desconhecido, elas
também começaram a sentir dor.
Elas se coçavam, chegando a arranhar-se. O local ficava dolorido
e era esfregado com força, o que provocava gritos e mais coceira ainda.
Para muitas pessoas, o sofrimento chegava a ser tão intenso que elas se
curvavam e apalpavam o chão para saber se não havia nenhum buraco,
nenhum vão de escada em que pudessem cair e ficar amontoadas ali,
Contorcendo-se, gemendo, coçando-se, procurando alívio.
Quanto mais o tempo passava, mais a situação piorava, e agora
as pessoas blasfemavam, amaldiçoavam Deus e mordiam a língua.
Arrastavam-se pelos corredores à procura de armas, implorando aos
amigos, e até mesmo a estranhos, que as matassem. Muitas se
suicidaram. O palácio inteiro transformou-se em um hospício de gritos,
lamentos e gemidos guturais, como se o povo estivesse convencido de
que aquilo era o que todos imaginavam - o fim do mundo.
Mas não era. Quem não tinha força ou coragem para se matar
simplesmente sofria. E o sofrimento aumentava com o passar das horas.
Piorava a cada dia. Não dava trégua. E, no meio de tudo isso, Chang teve
a idéia mais brilhante de sua vida.
Aquele era o momento perfeito para uma fuga. Ele entraria em
contato com Rayford ou Mac, qualquer um que estivesse disposto e
disponível para buscá-lo. Todos os membros do Comando Tribulação, ou
melhor, todos os crentes que possuíam o selo de Deus na testa, tinham
as mesmas vantagens que ele.
Alguém poderia vir buscá-lo com um jato e pousar bem ali, em
Nova Babilônia. O pessoal da CG teria de correr para esconder-se,
imaginando quem teria condições de fazer tal coisa na mais completa
escuridão. Se Chang e o piloto não conversassem entre si, nenhum deles
seria identificado. O Comando Tribulação poderia apossar-se de
aeronaves e armas, de tudo o que desejasse.
Se alguém se aproximasse para inquiri-los, os membros do
Comando Tribulação teriam a enorme vantagem de poder enxergar. Eles
estariam em posição de superioridade perante todos os demais. E agora
que faltava apenas um ano para o Glorioso Aparecimento, Chang
pensava, as pessoas de bem finalmente estavam em melhores condições
que antes, uma vez que as horas do dia pertenciam somente a elas.
Enquanto durasse esse flagelo, enquanto Deus julgasse
necessário manter o mundo debaixo de sombras e as luzes apagadas,
tudo estaria favorecendo os crentes.
Deus, orou Chang, só preciso de mais dois dias de escuridão para
sair daqui.
UM
Pela primeira vez desde a decolagem, Rayford Steele teve
dúvidas sobre a passageira que viajava com ele e Abdullah Smith.
- Não devíamos ter trazido essa moça, Smitty - ele disse, olhando
de esguelha para Abdullah, que estava no comando da aeronave.
O jordaniano sacudiu a cabeça.
- Sinto muito, capitão, mas o problema é seu. Eu tentei lhe dizer
que ela era muito importante em Petra.
A escuridão envolvendo apenas Nova Babilônia, mas visível a
uma distância de mais de 160 quilômetros, era diferente de tudo o que
Rayford já vira. No momento em que Abdullah iniciou as manobras de
pouso do Gulfstream IX em direção ao Iraque, o relógio marcava 12
horas, horário do palácio.
Normalmente, as magníficas estruturas da capital do novo mundo
reluziam de maneira deslumbrante ao sol do meio-dia. Agora, apenas
uma impressionante e solitária coluna negra erguia-se nas imensas
fronteiras de Nova Babilônia e subia em direção ao céu sem nuvens, até
a uma altura que os olhos conseguiam enxergar.
Chang Wong era o espião de Rayford dentro do palácio.
Confiando nas informações do jovem de que eles seriam capazes de
enxergar o que outros não conseguiriam, Rayford trocou um olhar com
Abdullah, o co-piloto que conduzia a aeronave na escuridão, baseando-se
apenas na brancura refletida pela areia do deserto. Abdullah acendeu as
luzes de pouso.
Rayford olhou para ele de esguelha.
- Vamos precisar de ILS?
- Sistema de pouso por instrumentos? - disse Abdullah.
- Acho que não, capitão. Estou enxergando o suficiente.
Rayford comparou a terrível escuridão com o dia lindo que eles
passaram em Petra. Olhou para a jovem por cima do ombro, imaginando
ver medo em seu semblante. Ela estava tranqüila.
- Ainda temos possibilidade de voltar - Rayford disse a ela. - Seu
pai parecia relutante quando você subiu a bordo.
- Talvez por não querer causar problemas para o senhor - disse
Naomi Tiberias. - Ele sabe que vou ficar bem.
O humor e a autoconfiança daquela adolescente perita em
informática eram excelentes. Ela pareceu tímida e retraída na presença
dos dois adultos até o momento de conhecê-los melhor; depois, passou a
conversar de igual para igual. Rayford sabia que ela ensinara Abdullah a
ser um profundo conhecedor dos assuntos de informática e que manteve
contato constante com Chang desde que a escuridão tomou conta de
Nova Babilônia.
- Por que está escuro somente aqui? - Naomi perguntou.
- É muito estranho.
- Não sei - respondeu Rayford. - A profecia diz que ela afetaria o
trono da besta e que seu reino se transformaria em trevas. É só isso que
eu sei.
A cada visita a Petra, Rayford presenciara a crescente influência e
responsabilidade de Naomi perante os remanescentes. Por ter se
sobressaído como um prodígio em tecnologia, Naomi tornou-se chefe de
fato e de direito do imenso centro de informática de Petra. Passando
rapidamente de subordinada a chefe, ela se tornou professora dos outros
professores.
O centro de tecnologia que havia sido projetado pelo falecido
David Hassid, o antecessor de Chang, era agora o ponto nevrálgico que
mantinha Petra em contato com mais de um bilhão de almas todos os
dias. Milhares de computadores permitiam que muitos mentores
acompanhassem o público virtual de Tsion Ben-Judá. Naomi coordenava
pessoalmente o contato entre Chang, em Nova Babilônia, e o Comando
Tribulação ao redor do mundo.
A idéia de incluí-la no vôo que resgataria Chang em Nova
Babilônia partira dele próprio. A princípio, Rayford não concordou. Já
havia assumido responsabilidade suficiente quando viajou mais de 12 mil
quilômetros de San Diego a Petra, onde pegou Abdullah para ser seu copiloto
durante os últimos 800 quilômetros até Nova Babilônia.
George Sebastian, o piloto especialista em aeronaves de
combate, teria sido melhor escolha, mas Rayford sabia que o grandalhão
passara por maus bocados recentemente. Havia muito trabalho para ele
em San Diego, e Rayford queria poupar George para o evento ao qual o
Dr. Ben-Judá dava o nome de "a batalha do grande dia do Deus Todo-
Poderoso", que ocorreria antes de um ano.
Mac McCullum e Albie estavam em Al Basrah, cidade localizada
cerca de 300 quilômetros ao sul de Nova Babilônia, aguardando ordens.
Mas Rayford tinha outros planos para eles.
O genro e a filha de Rayford - Buck e Chloe Williams -
prontificaram-se a tirar Chang da toca do inimigo, o que não era surpresa
alguma, porém Rayford estava convencido de que, em breve, Buck seria
mais útil em Israel.
Quanto a Chloe, a Cooperativa Internacional de Mercadorias havia
sentido sua falta quando ela esteve ausente por uns tempos. E alguém
teria de cuidar do pequeno Kenny.
- Pegue todos os equipamentos de que você necessita enquanto
estivermos a caminho, Chang - Rayford dissera, com o telefone
encaixado entre o ombro e ouvido enquanto arrumava a mala.
- Smitty e eu chegaremos aí dentro de dois dias.
Chang explicara que a missão era complicada demais e que ele e
Naomi, trabalhando juntos, poderiam tirá-lo de Nova Babilônia muito mais
rápido.
- Eu não quero deixar nada para trás - ele dissera. - Ela pode
ajudar. Quero ter condições de monitorar este palácio de qualquer lugar
do mundo.
- Não se preocupe - disse Rayford. - Logo você estará frente a
frente com ela.
- Não sei do que o senhor está falando.
- O pai dela é um dos anciãos de Petra, você sabe.
- E daí?
- Só restaram os dois na família. Ele a protege muito.
- Ela e eu temos muito trabalho a fazer.
- Entendo.
- Não estou brincando, capitão Steele. Por favor, ela precisa vir
com o senhor. Eu já vi o rosto dela na tela.
- E então, o que você achou dela?
- Eu já lhe disse. Temos muito trabalho a fazer.
***
Rayford sentiu um cutucão no espaldar de sua poltrona quando
Naomi esticou o corpo para a frente.
- O Sr. Smith tem condições de pousar? - ela perguntou. - Ele está
enxergando bem?
- Não sei - respondeu Rayford. - Parece que alguém pintou as
janelas da aeronave de marrom. Procure entrar em contato com nosso
garoto.
A missão de Chang era confirmar se as pistas de Nova Babilônia
estavam em condições, mas ele não podia dizer isso por telefone, com
medo de que alguém escutasse. Naomi tirou um computador pequeno de
dentro de uma caixa de alumínio, e seus dedos começaram a correr pelo
teclado.
- Evitem pista três esquerda e três direita - ela disse. - E Chang
quer saber que pista será escolhida para poder estar lá quando
pousarmos.
Rayford olhou de relance para Abdullah e dirigiu-se à jovem.
- Ele está falando sério, Naomi?
Ela assentiu com a cabeça.
- Diga a ele que a torre está fechada e que não vamos comunicar
nossa chegada. Daqui, não podemos distinguir as pistas, portanto ele vai
ter de nos dar as coordenadas e...
- Um momento - disse Naomi, digitando mais algumas palavras. -
Ele incluiu em um anexo tudo o que o senhor necessita.
Naomi virou a tela em direção a Rayford e apontou para o anexo.
- O sistema de voz está ativado. Diga a ele o que o senhor quiser.
- O aparelho vai reconhecer minha voz? - perguntou Rayford,
examinando a tela.
- Sim - respondeu o computador.
Naomi riu.
- Anexo, por favor - disse Rayford.
Uma imagem detalhada apareceu na tela exibindo a vista aérea
do aeroporto de Nova Babilônia.
- Vou acertar as coordenadas para você, Smitty - disse Rayford,
procurando programar o sistema de controle de vôo.
- Esta coisa faz tudo. Só não é capaz de preparar comida para o
senhor, capitão Steele - disse Naomi. - O senhor tem uma saída de raio
infravermelho?
- Acho que sim. Temos, Smitty?
Abdullah apontou para um botão no painel de controle.
- Aqui - disse Naomi. - Deixe por minha conta.
Ela debruçou o corpo por cima do ombro de Rayford e apontou a
parte traseira do computador na direção da saída.
- Pronto para aterrissar, capitão?
- Positivo.
- Iniciar manobras de pouso - ela disse, apertando um botão.
- Em qual pista? - perguntou o computador.
Naomi olhou para Rayford, que, por sua vez, olhou para Abdullah.
- Será que essa coisa reconhece tudo, até meu sotaque? -
perguntou o jordaniano.
- Sim - disse o computador. - Pista três esquerda e pista três
direita congestionadas. Escolha pistas 11 ou 16.
- Onze - disse Abdullah.
- Esquerda ou direita? - perguntou o computador.
- Esquerda - respondeu Abdullah. - Por que não?
Abdullah acionou o piloto automático para a esquerda e tirou as
mãos dos controles.
- Obrigado - ele disse.
- De nada - respondeu o computador.
Seis minutos depois, o Gulfstream pousou na pista.
***
Pouco depois de uma hora da madrugada em San Diego, Buck
deu um salto na cama. Chloe se mexeu.
- Volte a dormir, querido - ela disse. - Você ficou vigiando três
noites seguidas. Hoje não.
Ele levantou a mão.
- Você precisa dormir, Buck.
- Acho que ouvi alguma coisa.
O pequeno walkie-talkie na mesinha de cabeceira vibrou.
Sebastian acionou seu código. Buck agarrou o aparelho.
- Sim, George.
- Sinais no detector de movimento - Sebastian sussurrou.
Chloe sentou-se na cama.
- Vou verificar pelo periscópio - disse Buck.
- Tome cuidado - alertou Sebastian. - Não levante nem gire o
aparelho.
- Entendido. Alguém mais sabe disto?
- Negativo.
- Mãos à obra.
Chloe já havia se levantado e vestido um agasalho. Ela abriu um
armário, retirou duas Uzis e jogou uma para Buck, que se dirigiu para o
periscópio ao lado do minúsculo quarto de Kenny. Ele colocou a arma no
chão, guardou o walkie-talkie no bolso do pijama e curvou-se para
enxergar no visor.
Enquanto seus olhos se acostumavam à escuridão, ele notou que
Chloe abriu e fechou a porta do quarto de Kenny. O garoto estava prestes
a completar quatro anos; dormia bem, mas o sono era menos profundo
que antes.
- Ele está dormindo? - perguntou Buck, sem desgrudar os olhos
do periscópio.
- Como um anjo - respondeu Chloe, colocando uma malha de lã
ao redor dos ombros de Buck. - É o que você devia estar fazendo.
- Quem me dera - disse Buck.
- Também acho. - Ela pousou as mãos abertas nos ombros do
marido. - O que você está vendo?
- Nada. George acha que não devo girar o aparelho. Ele está
apontando para o oeste, no nível do chão. Eu adoraria levantá-lo uns 15
centímetros, o que me daria um ângulo de visão de 36°.
- Ele está certo, meu bem - ela disse. - Você sabe que esse
aparelho faz barulho quando é movimentado. Alguém lá fora poderá ouvir.
- Não acho que haja alguém lá fora - disse Buck, afastando-se do
aparelho para coçar os olhos.
Ela deu um longo suspiro.
- Quer uma cadeira?
Buck assentiu com a cabeça e voltou a olhar pelo periscópio.
- Pode ter sido um animal. Talvez o vento.
Chloe colocou uma cadeira atrás de Buck e o fez sentar-se.
- É por isso que você devia ter permitido que eu...
- Oh!, não - ele disse.
- O que foi?
Buck colocou o dedo indicador diante dos lábios e pegou o walkietalkie.
- George - ele sussurrou. - Seis, sete, oito, nove. Nove homens da
CG, fardados e armados, na direção oeste.
- Fazendo o quê?
- Nada de importante. Chutando as aberturas de ventilação.
Parecem entediados. Talvez tenham visto alguma coisa no caminho.
- Veículos?
- Eu teria de levantar e girar o periscópio.
- Negativo. Há mais alguns?
- Deste ângulo, não sei dizer. Não passou mais ninguém. Agora só
estou vendo três.
- Você está ouvindo ronco de motores?
Buck ficou em silêncio por alguns instantes. Em seguida,
respondeu:
- Sim, ouvi um. Depois outro.
- Também estou ouvindo - disse George. - Devem estar indo
embora. Posso ir até aí?
- Diga a ele que não - sussurrou Chloe.
***
Ao olhar para a lúgubre paisagem em tonalidade sépia através da
janela da cabina de comando, Rayford imaginou que o pessoal do palácio
deveria estar sofrendo muito. Chang lhe contara que o povo se contorcia
e gemia, mas o zumbido de um jato na pista os assustaria ainda mais.
Eles pensariam que teria havido um acidente aéreo, como
aconteceu antes nas pistas três esquerda e três direita.
Parecia que o povo desistira de tentar enxergar. As pessoas
próximas ao Gulfstream IX tropeçaram na escuridão para afastar-se dele
e agora estavam aglomeradas aqui e ali.
- Aquele deve ser Chang - disse Rayford, apontando para um
asiático correndo na direção deles e gesticulando nervosamente para que
abrissem a porta.
- Deixe por minha conta, Srta. Naomi - disse Abdullah, desatando
o cinto de segurança e pulando por cima dela.
Assim que Abdullah abriu a porta e abaixou a escada, Rayford viu
Chang virar-se para um pequeno grupo de homens e mulheres que
tateavam no escuro, procurando segui-lo.
- Afastem-se! - ele gritou. - Perigo! Motores quentes! Combustível
vazando!
Eles se viraram e correram em todas as direções.
- Como ele conseguiu pousar? - gritou alguém.
- Milagre - disse outro.
- Vocês se lembraram de usar sapatos de sola de borracha? -
perguntou Chang, estendendo a mão para ajudá-los a sair do avião.
- Prazer em conhecê-lo, Sr. Wong - disse Abdullah.
Chang pediu silêncio.
- Eles não estão enxergando, mas não são surdos.
- Chang - Rayford começou a dizer, mas o rapaz estava
cumprimentando timidamente Naomi. - Tudo bem. Vocês dois terão
tempo para se conhecerem melhor. Vamos fazer o que for necessário e
sair daqui.
***
- Devo trocar de roupa? - perguntou Buck quando viu Sebastian
trajando farda de serviço.
- Não. Eu sempre uso esta farda quando estou de vigia. Deixe-me
ver o que está acontecendo. - Ele olhou através do periscópio. - Nada.
Vamos levantar e girar o periscópio, Buck?
- Faça como quiser.
- Tudo em ordem. Alarme falso.
Chloe respirou fundo.
- Não diga isso só para me tranqüilizar. Vocês viram pelo menos
nove homens da CG lá fora, e sabemos que havia mais. E eles vão voltar.
- Ei - disse Sebastian -, por que não pensar no melhor em vez de
pensar no pior?
- Talvez eu esteja fazendo isso - ela disse. - Priscilla e Beth Ann
estão dormindo tranqüilas?
Ele assentiu com a cabeça.
- Não quero alarmar Priss e gostaria que você...
- Que eu não dissesse nada? Faz sentido, George. Deixe sua
mulher em paz, ignorando que é chegada a hora de sairmos daqui - disse
Chloe.
- Sair daqui? - perguntou Buck. - Eu não imaginei essa hipótese.
- O que você acha? Devemos ficar aqui e aguardar até que eles
nos encontrem, se é que ainda não nos encontraram?
- Chloe, preste atenção - disse Buck. - Eu deveria ter permitido
que você visse aqueles sujeitos. Eles não desconfiaram de nada. Deviam
estar conversando sobre este lugar que, antes, foi uma base militar. Não
estavam tensos, não estavam à procura de nada. Apenas notaram as
aberturas de ventilação e foram verificar, só isso.
Chloe sacudiu a cabeça e desabou em uma cadeira.
- Detesto viver desta maneira.
- Eu também - disse Sebastian. - Mas quais são nossas opções?
A CG encontrou ontem em Los Angeles, ou melhor, no que restou
daquela cidade, um grupo de pessoas sem a marca. Mais de 20 foram
executadas.
Chloe estremeceu.
- Crentes?
- Acho que não. Se fosse um grupo de judaístas, eles teriam
noticiado. Tenho a impressão de que pertenciam a um foco de resistência
da milícia ou algo parecido.
- É essa gente que estamos querendo alcançar - disse Chloe. - E
estamos todos sentados aqui, sem poder mostrar o rosto, criando bebês
que quase não vêem a luz do sol. Será que não existe outro esconderijo
em um lugar qualquer, onde a CG nem imagine nos encontrar?
- O melhor lugar é Petra - disse Buck. - A CG sabe quem está lá,
mas não pode fazer nada.
- Esse lugar está ficando cada vez mais atraente. Mas... o que
vamos fazer a respeito do que acabou de acontecer?
Buck e Sebastian entreolharam-se.
- Vamos, rapazes - disse Chloe. - George, você pensa que
Priscilla não notou que você saiu e que não vai perguntar onde esteve?
- Ela sabe que eu estava no posto de vigia.
- Mas você não viria até aqui, a menos que houvesse algo
importante.
- Espero que ela não tenha acordado.
Chloe levantou-se e sentou-se no colo de Buck.
- Vejam, eu não quero ser rabugenta. Buck, diga isso a ele.
- Chloe Steele Williams está dizendo que não quer ser rabugenta -
ele anunciou.
- Que bom - resmungou Sebastian. - Você quase me enganou,
Chloe.
Ela sacudiu a cabeça.
- Por favor, George. Você sabe que eu o considero um elemento
muito importante para o Comando Tribulação. Você é muito talentoso e
nos livrou de tragédias mais de uma vez. Mas todos que moram aqui têm
o direito de saber o que vocês viram esta noite. O fato de não contar nada
a ninguém, fingir que nada aconteceu, não vai mudar a situação. Quase
fomos descobertos.
- Mas não fomos, Chloe - disse Sebastian. - Por que assustar todo
mundo?
- Já estamos assustados! Passo o dia inteiro com essas mulheres
e seus filhos. Estamos vivendo como cães abandonados, mesmo sem ter
a CG bisbilhotando por aqui e transitando acima de nós no meio da noite.
As crianças só respiram ar puro quando acordam antes do nascer do sol
e alguém as leva até a porta de acesso ao estacionamento. Vocês dois
precisam sair furtivamente e dirigir cerca de 50 quilômetros para chegar
aos aviões, sempre na esperança de não estar sendo seguidos. Só estou
dizendo que se não resolvermos nos defender, pelo menos temos o
direito de estar preparados.
***
Rayford teria de fazer uma pergunta a Tsion. Por que a escuridão
era tão opressiva a ponto de deixar suas vítimas angustiadas? Ele ouvira
falar de tragédias - desastres ferroviários, terremotos, batalhas - que
sempre deixavam as equipes de resgate assustadas por causa dos gritos
e gemidos dos feridos.
Enquanto ele, Abdullah, Chang e Naomi atravessavam na ponta
dos pés as enormes pistas do aeroporto, desviando-se de equipamentos
pesados e de gente se contorcendo, ficou claro que aquelas pessoas
preferiam morrer. E algumas já deviam estar mortas. Dois aviões que se
chocaram no ar estavam despedaçados na pista, ainda em chamas, com
muitos corpos carbonizados presos às poltronas.
Rayford sentia um aperto no peito à medida que passava por entre
cadáveres e pessoas sofrendo. Os gemidos cortavam-lhe o coração e ele
reduziu o ritmo dos passos, querendo ajudar. Mas o que poderia fazer?
- Oh! Alguém! - Era o grito de uma senhora de meia-idade. - Por
favor! Ajude-me!
Rayford parou e olhou. Ela estava deitada de lado no chão, perto
do terminal. Algumas pessoas ordenaram-lhe que se calasse. Um homem
gritou:
- Estamos todos perdidos e cegos, mulher! Você não precisa de
mais ajuda que nós!
- Vou morrer de fome! - ela choramingou. - Alguém tem alguma
coisa para eu comer?
- Estamos todos morrendo de fome! Cale a boca!
- Eu não quero morrer.
- Eu quero!
- Onde está o potentado? Ele vai nos salvar!
- Quando você viu o potentado pela última vez? Ele já tem
preocupações suficientes.
Rayford não conseguia afastar-se dali. Olhou para a frente, mas
ele enxergava apenas uns seis metros adiante e havia perdido seus
companheiros de vista. Abullah foi a seu encontro.
- Eu não me atrevi a chamá-lo pelo nome, capitão, mas você
precisa vir conosco.
- Não posso, companheiro.
- Você é capaz de encontrar o caminho de volta ao avião?
- Sim.
- Então vamos nos encontrar lá.
Abdullah seguiu em frente, mas a conversa sussurrada entre eles
provocara um silêncio entre os gritos e lamentos. Alguém gritou:
- Quem está aí?
- Para onde ele foi?
- Quem tem um avião?
- Você está vendo alguma coisa?
- O que está vendo?
A mulher voltou a falar.
- Oh!, Deus, salva-me. Quero dormir...
- Você aí, cale a boca!
- Deus é grande. Deus é bom. Vou agradecer a Ele...
- Pare de falar, mulher! Se você não é capaz de fazer alguma
coisa útil, cale a boca!
- Deus! Oh, Deus! Salva-me!
Rayford ajoelhou-se e tocou no ombro da mulher. Ela recuou com
um berro.
- Espere! - ele disse, tocando-a novamente.
- Ai! Está doendo!
- Eu não quis machucá-la - ele disse em voz baixa.
- Quem é você? - ela disse com um gemido.
Rayford viu o número 6 dos Estados Unidos Europeus gravado em
sua testa.
- Um anjo?
- Não.
- Eu orei pedindo um anjo.
- A senhora orou?
- Prometa que não vai dizer a ninguém. Eu lhe imploro.
- A senhora orou a Deus?
- Sim!
- Mas eu vi a marca de Carpathia em sua testa.
- Eu falsifiquei a marca! Conheço a verdade. Sempre conheci. Mas
nunca quis saber de nada.
- Deus a ama.
- Eu sei, mas é tarde demais.
- Por que a senhora não pediu perdão a Deus e aceitou sua
dádiva? Ele queria salvá-la.
Ela soluçou baixinho.
- Como você pode estar aqui e me dizer isso?
- Eu não sou daqui.
- Você é meu anjo!
- Não, mas sou crente.
- E consegue enxergar?
- O suficiente para me locomover.
- Oh, cavalheiro, estou com fome! Leve-me ao terminal, até a
máquina de sanduíches. Por favor!
Rayford procurou ajudá-la a levantar-se, mas ela reagiu como se
seu corpo estivesse em chamas.
- Por favor, não me toque!
- Sinto muito.
- Deixe que eu segure a manga de sua camisa. Você está vendo o
terminal?
- Mais ou menos - ele disse. - Posso levá-la até lá.
- Por favor. - A mulher levantou-se com dificuldade e agarrou
desajeitadamente o punho da camisa dele com o polegar e o indicador.
- Devagar, por favor. - Ela caminhava com passos miúdos atrás de
Rayford. - Está longe?
- Pouco menos de cem metros.
- Não sei se vou conseguir - ela disse, com lágrimas correndo pelo
rosto.
- Vou buscar alguma coisa para a senhora comer - ele disse. - O
que a senhora quer?
- Qualquer coisa - ela respondeu. - Sanduíche, doce, água...
qualquer coisa.
- Não saia daqui.
Ela deu uma risadinha triste. - Não estou enxergando nada. Não
posso ir a lugar algum.
- Eu volto logo. Vou encontrar a senhora.
- Eu orei para que Deus salvasse minha alma. E quando isso
acontecer, vou poder enxergar.
Rayford não sabia o que dizer. Ela já havia dito que era tarde
demais.
- Deus amou muito o mundo - ela prosseguiu. - O Senhor é o meu
pastor. Oh!, Deus...
Rayford correu em direção ao terminal, passando por entre
pessoas angustiadas. Ele queria ajudar todas, mas não podia. Havia um
homem deitado, imóvel, do lado de dentro da porta automática, impedindo
a passagem. Rayford aproximou-se o suficiente para acionar o sensor. A
porta abriu alguns centímetros e foi de encontro ao homem.
- Por favor, afaste-se da porta - disse Rayford.
O homem estava dormindo ou morto.
Rayford empurrou a porta com força, mas ela mal se movimentou.
Ele abaixou o ombro e investiu contra a porta, sentindo a pressão nos
quadris quando ela se abriu lentamente e empurrou o homem. Rayford
ouviu-o gemer.
Dentro do terminal havia uma fileira de máquinas automáticas,
mas assim que ele pegou algumas moedas no bolso, viu que elas
estavam emperradas. Muitas pessoas que conseguiram chegar até ali
haviam arrombado as máquinas e saqueado tudo o que havia dentro.
Rayford vasculhou uma a uma, procurando encontrar alguma
coisa, qualquer coisa que tivesse sobrado ali. Mas só encontrou garrafas,
latas e pacotes vazios.
- Quem entrou lá? - alguém quis saber. - Aonde você pensa que
vai? Consegue enxergar? Há luz em algum lugar? O que aconteceu?
Vamos todos morrer? Onde está o potentado?
Rayford correu para fora.
- Aonde você está indo? - gritou outro. - Leve-me com você!
Ele encontrou a mulher deitada de bruços, com o rosto escondido
entre os braços. Seu choro era tão sofrido que ele mal suportou olhar
para ela.
- Estou de volta, senhora - ele disse em voz baixa. - Não há
comida. Sinto muito.
- Oh, Deus, oh, Deus e Jesus, ajuda-me!
- Senhora - ele disse, estendendo o braço.
Ela soltou um grito quando Rayford a tocou, mas ele a virou de
lado até poder ver seus olhos fundos e aterrorizados.
- Eu sabia de tudo antes dos desaparecimentos - ela disse, com
voz chorosa. - Depois, tive certeza. Mesmo com todas essas pragas e
julgamentos, eu afrontei Deus. Ele procurou me alcançar, mas eu queria
viver por conta própria. Não queria submeter-me a ninguém. Mas sempre
tive medo do escuro, e meu maior pesadelo é morrer de fome. Mudei de
idéia, quero voltar atrás...
- A senhora não pode.
- Eu não posso! Não posso! Esperei demais!
Rayford conhecia a profecia: o povo rejeitaria Deus tantas vezes
que Ele endureceria seus corações e eles não teriam condições de
aceitá-lo, mesmo que quisessem. Mas o fato de saber disso não
significava que Rayford entendia. E, certamente, não significava que ele
tinha de gostar.
Era difícil conciliar tudo aquilo com o Deus que ele conhecia, o
Deus amoroso e misericordioso que parecia fazer uso de todos os meios
para receber cada pessoa no céu, sem deixar nenhuma de fora.
Rayford levantou-se e sentiu o sangue fugir-lhe da cabeça no
momento em que ouviu uma voz partindo dos alto-falantes.
- Aqui fala o potentado! - soou a voz forte. - Tenham bom ânimo.
Não fiquem com medo. Seu tormento está quase no fim. Acompanhem o
som de minha voz até a torre de alto-falantes mais próxima. Lá, haverá
comida, água e instruções.
***
- Quero fazer um trato com vocês - disse Chloe. - Vou assumir o
posto de vigia se vocês concordarem em contar a todos, assim que o dia
amanhecer, que tivemos visitas esta noite.
Buck olhou para George, e George apontou para Buck.
- Na ausência de seu sogro, você é o responsável, companheiro.
- Só porque sou o mais velho de vocês. Transfiro a missão a você
que é militar.
- Não estamos em guerra, homem. O assunto tem a ver com
relações públicas. Se você aceita um conselho, faça o que deseja fazer,
desde que seja a coisa certa. Diga ao pessoal: "Achamos por bem contar
a vocês que vimos a CG rondando por aqui esta noite, mas, pelo que
sabemos, ainda não há motivos para preocupações."
- Tudo bem, Chloe? - Buck perguntou.
Ela assentiu com a cabeça.
- Eu preferia orar e entregar munições ao pessoal, mas minha
resposta é sim. Tratem todos como adultos e vocês extrairão o que eles
têm de melhor.
- Se você vai mesmo ocupar o posto de vigia, Chloe - disse
Sebastian -, vou para casa e desligar meu walkie-talkie.
- Combinado.
DOIS
Para conseguir a façanha de agrupar as pessoas aterrorizadas de
Nova Babilônia em vários locais, alguém imaginou que uma música
tocada bem alto no sistema de som atrairia o povo para as torres dos altofalantes.
- Caminhem com cuidado, leais cidadãos. Ajudem uns aos outros.
Evitem perigo.
Enquanto Leon Fortunato, o braço direito de Carpathia, dizia com
tranqüilidade essas palavras, ouvia-se ao fundo a gravação de um coral
carpathianista de 500 vozes cantando uma versão gravada de "Salve
Carpathia":
Salve Carpathia, nosso rei ressurrecto e senhor;
Salve Carpathia, dono do mundo e nosso governador.
Todos nós o adoraremos eternamente;
Ele é nosso Nicolae, nosso amado dirigente.
Salve Carpathia, nosso rei ressurrecto e senhor.
Rayford detestava aquela canção e o hábito infernal do Sistema
de Transmissão da Comunidade Global de executá-la, via rádio, a cada
duas horas pelo menos. Carpathia insistia nessa execução todas as
vezes que aparecia em público. Os desfiles e as concentrações em sua
homenagem sempre iniciavam e terminavam com ela.
No entanto, algo estranho estava acontecendo naquele momento.
O povo se levantou lentamente e caminhou angustiado em direção ao
som, mas ninguém cantava.
- Lembrem-se - disse Fortunato, fazendo uma careta de dor ao
pronunciar cada palavra -, aqueles que vão servir vocês, levando água e
comida, também estão acompanhando o som para chegar aos lugares
certos. Por favor, tenham paciência e abram caminho para os veículos.
Há alimento suficiente para todos, desde que vocês cooperem. Agora,
cantem com o coral. Vocês serão levados ao local de adoração da
imagem de nosso supremo potentado, que no momento não é visível.
As pessoas em volta de Rayford não demonstraram entusiasmo.
- Não vou cantar - disse alguém. - Morte ao potentado!
- Tome cuidado com o que diz - alertou outro. - Está querendo
morrer?
- Carpathia não consegue enxergar mais que nós! Ele não sabe
quem está falando.
- Ele não é um simples mortal. Eu não me arriscaria.
- O que ele tem feito por você ultimamente?
O pessoal de dentro do palácio estava em melhores condições,
era o que Rayford pensava. Pelo menos, eles tinham condições de tatear
o caminho que os levava a lugares conhecidos, inclusive chuveiros,
camas e geladeiras. Os de fora não podiam sequer encontrar o caminho
de volta para casa.
Rayford tentava imaginar como o povo devia estar desorientado,
sem ter nenhum foco de luz. A situação era frustrante até para ele que
conseguia enxergar um pouco.
- Há 12 torres de alto-falantes distintas - disse Fortunato.
O volume da música foi reduzido enquanto ele falava.
- Quando os mantimentos chegarem, por favor, mantenham a
ordem. Cada um deve dizer o seu nome para que nosso pessoal possa
gravá-lo em disco de áudio. Em seguida, peguem sua ração de alimento e
água.
- Também queremos respostas! - gritou alguém, como se
Fortunato pudesse ouvi-lo. - O que significa isto? Quanto tempo vai
durar? Por que sentimos tanta dor?
***
Chloe sabia qual seria a reação de Ming Toy quando ouvisse a
notícia de manhã. Ela e Ree Woo haveriam de querer se casar
imediatamente. Todos, exceto Chloe, procuraram dissuadi-los dessa
idéia, mas Ming planejara tudo. Queria que Tsion Ben-Judá realizasse o
casamento sem sair de Petra, por meio de câmera de vídeo.
- Sei que estou exigindo demais de um homem tão importante e
atarefado - ela confidenciara a Chloe. - Mas programei a cerimônia para
durar apenas alguns minutos.
- Acho que ele vai concordar - Chloe lhe dissera. - No lugar dele,
eu concordaria.
As mesmas pessoas que aconselharam Ming e Ree a não se
casarem, em razão do momento em que o mundo se encontrava no
calendário profético, foram as mesmas que haviam aconselhado Chloe e
Buck a não ter filhos durante a Tribulação.
Porém, certos assuntos eram muito pessoais. Chloe não podia
imaginar ter desistido de se casar com Buck, apesar de saber que teriam
pouco tempo pela frente para viver juntos. E, para ela, a vida não teria
sentido sem a existência de seu querido filhinho.
Se Ming e Ree desejassem ficar casados por um ano antes do
Glorioso Aparecimento, de quem seria o problema a não ser deles?
Ambos estavam conscientes das dificuldades. Iniciar uma família naquele
período seria complicado, é claro, mas Chloe entendia que o problema
não era seu, a menos que Ming lhe pedisse conselho.
Aparentemente, Buck voltara a dormir depois de alguns minutos.
Ela achava que George estava certo por ter deixado sua esposa
dormindo no período em que esteve ausente.
Priscilla era uma das pessoas mais atarefadas dali, sempre em pé
antes do amanhecer e esbanjando saúde. Geralmente, começava a ficar
sonolenta após o jantar e ia para a cama às 21 horas.
Chloe ficou feliz por estar de vigia. Um dos motivos era poupar
Buck, que passara quatro noites seguidas no posto. Ela gostou do
trabalho - verificar o detector de movimento, inspecionar a área com o
periscópio. Sua rotina diária era agitada e cansativa; ela passava quase o
dia inteiro no computador, coordenando os trabalhos dos fornecedores e
transportadores de suprimentos e comida ao redor do mundo inteiro.
Aquela era a maneira de Chloe manter-se a par das notícias,
apesar de serem cada vez piores. Seus colaboradores estavam sendo
descobertos, presos pela CG em invasões noturnas e ataques de
surpresa. A CG os executava assim que constatava que eles não tinham
a marca de lealdade a Carpathia.
Segundo o relato de uma testemunha, o motorista de um
caminhão de 18 rodas da cooperativa, que transportava exemplares da
revista virtual de Buck, A Verdade, traduzida para o norueguês, recusouse
a permitir que a carga caísse nas mãos da CG. Ele distraiu os guardas
por algum tempo para que seu motorista auxiliar fugisse. Em seguida,
acelerou o caminhão e despencou de uma ribanceira de 30 metros de
altura. Foi morto a tiros pelos Monitores de Moral.
Chloe também ouviu falar de dissidentes no mundo inteiro - na
maioria judeus - que, em vez de serem condenados à morte, foram
transportados para campos de concentração, torturados e mantidos vivos
propositadamente.
Algumas notícias ocasionais davam conta de intervenções
milagrosas, por exemplo, o aparecimento de um anjo no local da
guilhotina para alertar o povo sobre as conseqüências de aceitar a marca
de Carpathia. Pelo que se sabia, essas decisões de última hora eram
inúteis, porque, de qualquer forma, os retardatários já estavam
condenados à morte. Mas o anjo implorava aos indecisos que aceitassem
a Cristo para ser salvos. E muitos aceitaram.
Chloe passou um xale ao redor dos ombros e foi, pé ante pé, até o
quarto de Kenny, cuja respiração era profunda e lenta. Ela estendeu outro
cobertor em cima dele. O menino não se mexeu.
Depois de fechar a porta, ela verificou o detector de movimento e
sentou-se diante do periscópio. Não havia ninguém à vista, portanto ela
levantou e girou o aparelho para ter uma visão total da área. Ela gostava
de ter um periscópio no meio de sua casa. Isso lhe dava a sensação de
poder proteger - ou controlar, conforme Buck dizia para brincar com ela -
seus amigos e pessoas queridas, cujo número atingia mais de 200, que
moravam escondidos em San Diego.
Todos esperavam viver até o Glorioso Aparecimento, porém, mais
que isso, poder alcançar outras pessoas, mesmo sem sair de suas
moradias subterrâneas.
O periscópio tinha uma característica peculiar: o visor não
precisava ser movimentado com o aparelho. Um simples controle nas
alças fazia o aparelho levantar, abaixar e esquadrinhar em círculo, em
qualquer direção. Chloe não estava interessada em compreender o
conjunto de espelhos necessários para fazer isso.
Descontraída, com a testa encostada no visor enquanto seus
olhos se acostumavam com a pouca iluminação externa, ela notou que
George Sebastian havia deixado o aparelho no nível do chão, apontado
para o oeste.
A lente superior estava camuflada para confundir-se com
folhagem de arbustos. Poderia ser levantada até uma altura de 1,5 metro,
porém, antes de tudo, o mais importante era fazer uma exploração
minuciosa de 360° no nível do chão para certificar-se de que não havia
ninguém por perto que pudesse notar o aparelho.
A exploração poderia ser feita em movimento suave e muito
devagar, porque o Comando Tribulação de San Diego aprendera que as
coisas feitas com lentidão se tornavam muito mais fáceis. O método
escolhido por Chloe era mover o aparelho alguns centímetros por vez.
Cada vez que ela apertasse o minúsculo embolo vermelho na alça
esquerda, a lente lhe daria mais 45° de visão; oito movimentos desses
completariam 360°.
Não havia nada interessante do lado oeste, portanto Chloe
começou a explorar o lado direito. Passavam das três horas da manhã na
Califórnia.
***
Rayford havia caminhado uns 400 metros em direção ao norte do
terminal, passando por homens e mulheres mais jovens que ele, mas que
se arrastavam penosamente, com passos de pessoas idosas.
- Na tentativa de manter todos vocês informados - Fortunato
anunciou -, temos algumas notícias animadoras. Apesar de não haver
nenhum tipo de luz ou claridade em Nova Babilônia, esse fenômeno
intrigante não afetou as transmissões via rádio ou telefone. Nossos
sistemas de aquecimento e refrigeração continuam funcionando. Os
fogões não foram afetados, a não ser aqueles movidos por luz solar. Os
fogões elétricos e a gás continuam a esquentar e a irradiar calor, embora
não possam ser vistos, portanto, tenham muito cuidado.
- Os pilotos de aeronaves que partiram de Nova Babilônia ou que
chegaram aqui relataram que a escuridão está restrita a esta cidade. Não
sabemos quanto tempo ela vai durar, mas se vocês conseguirem
encontrar um caminho que os leve para fora dos limites da cidade,
encontrarão luz.
Rayford ouviu palavras de determinação vindas de todos os lados.
- Eu vou tentar - disse alguém.
- Eu também. Não sei onde nem como, mas vou dar um jeito de
encontrar luz.
- Alguém tem uma bússola em braile? Sem uma, vamos andar em
círculos.
- Atenção - Fortunato voltou a falar -, todo o pessoal da alta cúpula
deve reunir-se no escritório do potentado às 15 horas.
Rayford olhou para seu relógio. São 13h15. Como eles vão
conseguir chegar lá às 15 horas?
- Usem relógios sonoros - disse Fortunato. - São 13h15.
Desligaremos todos os alto-falantes às 14h30, exceto os da torre perto da
entrada oeste do palácio. Acompanhem o som para terem condições de
encontrar o caminho para a reunião. Os elevadores estão funcionando. O
botão inferior direito é o do último andar. O comparecimento é obrigatório,
mas limitado ao pessoal da alta cúpula.
- Eu vou de qualquer jeito - disse alguém.
- Eu também. Quero ir até o fundo disto tudo.
- Quero descobrir o que está acontecendo.
- Dizem que ele é o deus encarnado. Por que não toma uma
providência?
Rayford piscou uma vez, depois outra. Ele imaginou ter visto luz a
distância. Estava cada vez mais longe do avião e do lugar em que Chang,
Naomi e Abdullah se encontravam, mas se o pior acontecesse, ele
poderia seguir o pessoal até a entrada do palácio, às 14h30, e ir ao
encontro dos três. Por ora, ele precisava investigar aquela luz.
***
Chloe já havia movimentado quatro vezes o aparelho na direção
leste. Enquanto examinava a paisagem escura, ela notou um par de
pontos luminosos. Sua respiração acelerou à medida que eles
aumentavam de tamanho. Fosse o que fosse, estavam se aproximando.
De repente, ficou claro que se tratava de um carro ou caminhão. O
veículo rodou até a distância de um quarteirão dali, parou e deu meiavolta.
Agora Chloe via apenas as lanternas traseiras. E elas continuaram
ali. Passaram dez minutos, depois mais cinco.
Chloe explorou rapidamente o caminho ao redor. Nada. Mais um
clique no aparelho e ela voltou a ver o setor leste e o veículo parado. Ela
não queria acordar Buck para contar-lhe o que estava vendo. Todos os
que moravam nos esconderijos sabiam que havia tráfego de veículos nas
redondezas, mas ninguém pararia ali àquela hora da noite.
***
Chloe gostaria que o periscópio tivesse uma lente telescópica para
poder ver o veículo mais de perto e saber se alguém estaria descendo
dele. O estacionamento oculto dos veículos do pessoal que morava nos
esconderijos, usado apenas à noite quando todos sabiam que a área
estava livre, dava acesso para o leste.
Será que ela deveria atrever-se a dar uma espiada mais de perto?
Uma porta de serviço, escondida perto de outra maior, permitiria que ela
enxergasse a área externa, se mantivesse apagadas as luzes internas.
Assim, ela chegaria uns cem metros mais perto, sem aventurar-se a ser
vista por alguém.
Chloe tirou do armário um macacão preto com capuz e vestiu-o
sobre o pijama e o agasalho. Calçou meias de lã e uma bota de cano alto,
própria para caminhadas em terrenos acidentados. Pegou a Uzi, mas não
levou o walkie-talkie. Um som qualquer emitido por ele poderia atrapalhar
seus planos. E ela não queria envolver-se em situações que exigissem
pedido de socorro. A Uzi serviria apenas para tranqüilizá-la. Portanto,
esta foi a oração de Chloe: Senhor, ajuda-me ou perdoa-me, uma coisa
ou outra.
Ela voltou a abrir silenciosamente a porta do quarto de Kenny. O
menino continuava na mesma posição. Ao colocar a mão em seu rosto,
notou que estava úmido por causa do sono, mas confortavelmente
quente. Ela beijou sua testa. Fria e macia.
Depois de fechar a porta, ela foi até o local em que Buck dormia e
firmou um dos joelhos no colchão, perto do centro. Curvou-se para beijálo,
segurando-lhe a cabeça. Se o sono de Buck fosse leve, ele teria
acordado. Chloe surpreendeu-se ao ver o contraste entre sua roupa
escura e a tonalidade branca de sua pele, que raramente ficava sob os
raios do sol.
Ela encontrou um par de luvas e uma máscara de esquiar. Já
estava transpirando quando chegou ao corredor que passava pelas
outras casas e dava acesso ao estacionamento de veículos. A casa em
que eles moravam ficava no centro do conjunto e havia quatro saídas
para as casas de seus companheiros.
Arrastando-se no chão, ela passou pela casa de Sebastian, por
mais três de outras famílias, por uma fileira de aposentos para homens
que viviam sós - inclusive o de Ree Woo e o de Rayford - por mais duas
casas de outras famílias e por uma mistura de casas para famílias e
aposentos para moças que viviam sozinhas, inclusive o de Ming.
Todos sabiam que Grande George estava de vigia naquela noite e
que Buck Williams, o chefe do grupo na ausência de Rayford, se
revezaria com ele. Talvez fosse por isso que o sono do pessoal era tão
profundo.
Rayford atravessou a multidão e caminhou na direção da luz.
Seria imaginação sua? Além de uma distância de seis metros, ele só via
uma espécie de neblina, e ninguém por perto tinha condições de enxergar
nada, muito menos aquela luz. Quanto mais ele se aproximava, mais a
luz assemelhava-se a uma silhueta humana, a uns 50 metros de
distância. Era só isso o que Rayford via. Quando ele trabalhou no palácio
e morou na região, as garagens e os veículos ficavam naquela área.
Será que alguém conseguira um meio de produzir luz? Rayford
havia passado por pequenos grupos de pessoas que andavam com
dificuldade, e agora não havia nada entre ele e aquilo... aquilo o quê?
Uma aparição? Ao longe, a luz tinha pouco brilho, mas, em seguida, as
cores tornaram-se mais nítidas. Primeiro vermelha, depois amarela e,
finalmente, um tom alaranjado forte. Sim, era a figura de uma pessoa,
especificamente de um homem alto e esguio. E ele se mexia.
***
Havia outras pessoas perto do homem, utilizando a claridade
daquela luz para acionar os veículos. Todos deviam estar sofrendo como
os demais, mas trabalhavam rápido, como se sentissem revigorados pela
luz. O homem reluzente parecia ser capaz de enxergar até onde sua luz
irradiava, cerca de um metro. Qualquer um que necessitasse de luz
precisaria estar a essa distância dele.
Rayford imaginou que fosse Carpathia. O Dr. Ben-Judá havia dito
que essa mesma pessoa apareceria em primeiro lugar na forma de uma
serpente, depois, como um leão rugindo e, finalmente, como um anjo de
luz.
Rayford teve de conter o riso. O demônio que havia em Nicolae
certamente gostaria de poder emitir mais luz do que aquele patético brilho
que lhe permitia apenas identificar as pessoas que estavam a um metro
de distância.
Rayford caminhou um pouco mais até misturar-se a um pequeno
grupo ao redor dos mecânicos que tentavam acionar vários veículos, cuja
finalidade ele ainda não conseguira entender.
- Todos os sistemas estão funcionando? - perguntou Carpathia.
- Sim, potentado. O jipe está em ordem.
- Acenda os faróis.
O mecânico obedeceu à ordem.
- O sistema elétrico está em ordem, Excelência, portanto está
passando corrente, mas conforme o senhor pode ver...
- Conforme todos nós podemos ou não podemos ver - disse
Carpathia. - Os faróis não acendem. Bem, de qualquer forma, eu irei
adiante do comboio até atravessarmos a escuridão a caminho de Al
Hillah. Não quero saber quanto tempo vai levar.
Que tipo de estratégia seria aquela? A diretoria se reuniria no
escritório de Carpathia, e ele os conduziria a Al Hillah? Para quê? E
quanto aos milhares que continuariam em Nova Babilônia? Não haveriam
de querer segui-lo, para encontrar um pouco de alívio?
- O que há em Al Hillah? - perguntou Rayford.
- Quem está perguntando? - inquiriu Carpathia. - E como você se
dirige a mim sem usar meu título de honra?
Nicolae estava olhando na direção de Rayford, mas não tinha
condições de enxergar a uma distância maior que o raio de sua aura
diabólica. Quando Nicolae deu alguns passos à frente, Rayford recuou
para a esquerda e postou-se atrás dele.
- Pois não - Rayford disse com tom de voz ligeiramente diferente.
- O que há em Al Hillah, ó Grandioso?
Carpathia virou-se para trás, e Rayford desviou-se novamente.
- Eu estava falando com quem se dirigiu a mim! - disse Carpathia.
- Quem está perguntando?
- Acho que ele fugiu de medo - respondeu Rayford com voz grave
- Excelência.
Aquilo era muito divertido.
***
Chloe sabia que a longa passagem até o estacionamento de
veículos era fria e úmida na maior parte do tempo. Talvez estivesse assim
agora. Mas a agitação em sua mente, os movimentos rápidos para subir a
rampa dos veículos até as portas de acesso ao nível do chão aqueceram
seu corpo em demasia.
Ela retirou as luvas e a máscara de esquiar, ralhando consigo
mesma por tê-las usado sem necessidade. Depois de abaixar o zíper do
macacão, ela se agachou e encostou-se na parede entre a porta de
acesso ao estacionamento e a porta de serviço, para acalmar-se e
recuperar o fôlego.
A sensação de liberdade era deliciosa. Ela estava perto da
superfície, quase fora do esconderijo. Faltava menos de um ano para a
verdadeira liberdade.
Seus joelhos começaram a doer, e ela precisou sentar-se no chão
para esticar as pernas. Depois de deixar a arma de lado, ela estendeu o
corpo até tocar nas pontas das botas, alternando movimentos para a
esquerda e para a direita. Apesar de ter sofrido graves ferimentos, Chloe
se sentia orgulhosa porque sua missão na Grécia provara que seu corpo
ainda estava em muito boa forma.
Ela fechou o zíper do macacão até o pescoço, colocou a máscara
de esquiar no rosto, cobriu a cabeça com o capuz, calçou as luvas,
passou a tira da Uzi por cima da cabeça para que a arma ficasse
encostada em seu quadril direito, levantou-se e dirigiu-se para a porta de
serviço.
A porta de acesso ao estacionamento não podia ser aberta aos
poucos. Todos sabiam disso. A areia, a terra e a vegetação grudadas ali
faziam com que ela se movimentasse de uma só vez. Ou ela ficava
totalmente aberta ou totalmente fechada. Mas a porta de serviço, embora
fosse camuflada da mesma maneira, podia ser aberta aos poucos,
conforme Chloe desejava. Ela apagou a luz e segurou a maçaneta com
firmeza.
***
Rayford seguiu apressado rumo ao palácio. Ele queria verificar
como estavam seus companheiros e falar sobre seu plano. Em seis anos,
ele havia presenciado numerosos eventos bizarros, talvez em número
maior do que um dia chegou a imaginar.
Embora muitos tivessem sido mais significativos, mais
espalhafatosos e mais violentos, aquele era completamente diferente.
Pobres pessoas! Sim, elas haviam escolhido seu destino e, sim, tiveram
muitas oportunidades de voltar-se para Deus. Mas que preço estavam
pagando!
A angústia era geral. Por todos os lugares onde ele andava, mais
e mais pessoas tornavam-se visíveis dentro de seu raio de visão de seis
metros. Muitas estavam mortas. Muitas balançavam o corpo no lugar ou
choravam deitadas no chão. Todas haviam desistido de enxergar alguma
coisa, e a escuridão era tanta que chegava a desorientá-las.
As que acompanhavam a música ou a voz de Fortunato caminhavam
com passos trôpegos ou com os braços esticados para a frente
ou para os lados, balançando o corpo como se estivessem embriagadas
ou com tontura.
Chocavam-se umas com as outras ou com prédios e passavam
por cima de escombros. Muitas não tinham forças, andavam lentamente,
paravam, cambaleavam. Rayford gostaria de ajudá-las, mas não havia
nada que ele pudesse fazer.
Quando estava a caminho do apartamento de Chang, Rayford
teve uma idéia e mudou de direção. Entrou no elevador e chegou ao
último andar do palácio. Lá, ele passou, na ponta dos pés, por entre
vários executivos e seus asseclas, que conversavam ao telefone ou
permaneciam sentados diante de computadores, ditando algumas
palavras mas incapazes de enxergar se suas mensagens estavam sendo
enviadas.
Todas as ligações telefônicas tinham o mesmo tema e o mesmo
tom.
A assistente de Carpathia não era a mesma dos tempos em que
Rayford trabalhou com ele. Chang havia lhe contado qual era o nome
dela. Devia ser aquela mulher falando ao telefone na ante-sala do novo
escritório de Carpathia. Rayford notou que ela se assustou quando o
ouviu sentar-se no sofá do outro lado, mas ele não disse nada e a mulher
continuou a conversa.
- Não sei - ela dizia com voz chorosa. - Ele quer que eu trabalhe
como se não estivesse sofrendo igual aos outros. Mas estou sofrendo,
mãe. Posso fazer algumas pequenas coisas quando ele está aqui, porque
ele emite esse tal brilho. Mas ele convocou uma reunião com a diretoria e
eles estão planejando uma espécie de romaria... Não, eu não quero ir,
não quero mesmo. Ele não está contando ao pessoal que os chefes estão
partindo. Ooh! Ai... não sei descrever o que sinto. Cãibras, acho. Uma dor
de cabeça como nunca senti, e tenho tido um pouco de tontura...
Ela parecia americana, mas estava de costas para Rayford, e ele
não podia ver o número em sua testa ou mão.
- Parece que estou carregando um peso enorme nos ombros,
pressionando minha coluna. Sinto dor no quadril, nos joelhos, nos
tornozelos, nos pés. Semelhante à sua artrite, acho. Mas, mãe, eu só
tenho 36 anos. Parece que tenho 75... Sim, estou me alimentando.
Consigo tatear o caminho até meu apartamento e preparar alguma coisa
para comer, mas quando me deito, tenho vontade de dormir por cem
anos. Mas não posso... É por causa da dor! Não há posição que a alivie.
Parece que a escuridão está me oprimindo e causando todo este
sofrimento, mas todos se queixam da mesma coisa.
Rayford se mexeu no lugar e a mulher assustou-se mais uma vez.
- Um momento, mãe. - Ela se virou e Rayford viu o número - 6 em
sua testa, o que confirmou sua suposição. Estados Unidos Norteamericanos.
- Há alguém aí? Posso ajudar?
Ele sentiu vontade de dizer que tinha algumas perguntas a fazer
sobre a reunião, mas que aguardaria até que ela terminasse a conversa.
Porém, a assistente de Carpathia conhecia os homens que restaram na
diretoria e não reconheceria sua voz. Ele gostaria de dizer-lhe algumas
palavras de conforto, dizer algo que Jesus diria. Mas ela não podia mais
ser ajudada. Rayford nunca se sentira tão manietado.
- Desculpe-me, mãe - ela disse. - Agora estou ouvindo coisas. É
melhor eu desligar. Está chegando a hora da reunião, e eu não sei o que
ele está pretendendo fazer. Ninguém será capaz de ler nada, a não ser
que coloque o papel perto da luz dele, e o grupo é composto de 20
pessoas... Sim, 20... Eu sei... Sim, eram 36. Imagine só!
- Empolgante? Não. Isso já faz muito tempo. Ele não é o homem
que eu imaginava... Ah!, sim, em todos os sentidos. Mesquinho, cruel,
violento, egoísta. Preciso de um dicionário para encontrar outros adjetivos
para ele... Não posso!... Não! Claro que não! Para onde eu iria? O que
faria? Eu sei muita coisa, e ele não vai permitir que eu saia de seu
controle... Não, agora vou ter de conviver com isso... Não sei, mãe. Essa
história não vai terminar bem. Eu não me importo mais. A morte será um
alívio... Bem, lamento muito, mas foi isso mesmo o que eu quis dizer...
Não se preocupe, mãe. Não estou planejando tomar atitude drástica
alguma... Sei que você tem. Todos nós temos. Todos menos o tio
Gregory, acho. Ele ainda está resistindo, não?... Como está vivendo?
Você sabe o que vai acontecer se ele for descoberto... Não, não me
conte. Não quero saber. Assim, se alguém me perguntar vou dizer que
não sei. Diga-lhe que estou orgulhosa dele, que ele continue a resistir,
mas que tome cuidado. Você e o papai também devem tomar muito
cuidado. Se vocês forem pegos ajudando-o de uma forma ou outra...
Rayford ouviu passos no saguão, e ficou claro que ela também
ouviu.
- Preciso desligar, mãe. Tudo de bom para você.
Ela desligou e virou-se quando a porta foi aberta. Um homem alto
e magro, de cerca de 50 anos, arregalou os olhos, boquiaberto, ao ver
Rayford. Ele apontou para a testa de Rayford, e Rayford também notou o
selo na testa dele.
- Posso ajudar? - perguntou a assistente de Carpathia. - Quem
está aí?
Rayford levou o dedo indicador aos lábios, apontou para o saguão
e disse apenas movimentando os lábios:
- Cinco minutos.
O homem fechou a porta e afastou-se correndo. A mulher
encolheu os ombros.
- Obrigada por ter vindo - ela murmurou - seja você quem for.
- Quem chegou acabou de sair - disse Rayford.
Ela deu um salto na cadeira.
- Faz tempo que você está aqui?
- Tempo suficiente para saber quem é o tio Gregory.
- Eu sou uma idiota! Não conheço você, conheço?
- Não.
- Você não faz parte da diretoria.
- Não.
- Há alguém com você?
- Não, Krystall.
- Como sabe meu nome?
- Posso ajudar seu tio.
- Garanto que vou negar cada palavra que eu disse.
- Você não quer que alguém o ajude?
- Você está preparando uma armadilha para mim.
- Não estou. Se eu fosse da CG, não seria capaz de enxergar,
certo?
- Você não está enxergando nada.
- Estou. E posso provar. As cores de suas roupas não combinam.
- Isso não é prova, seu idiota. Não consigo enxergar nada. Eu me
visto apenas usando o tato, como todo mundo está fazendo.
- Já que você não acredita, levante alguns dedos. Vou dizer
quantos... Três... Sua mão direita está de frente para mim e você levantou
o dedo mínimo, o anular e o médio.
- Como você sabe?
- Você quer saber como posso enxergar?
- Você não pode.
- Então me responda uma coisa. Como eu sei que agora você está
me mostrando seis dedos: cinco da mão esquerda e o indicador da
direita, com as duas mãos viradas de costas para mim? Vejo pela
expressão de seu rosto que você está começando a se convencer. Agora
está escondendo as mãos debaixo da mesa.
Krystall comprimiu os lábios, como se desejasse conter o choro.
Rayford levantou-se.
- Fique onde está - ela disse, com a voz trêmula e as mãos no
colo.
Rayford levantou-se e postou-se atrás dela.
- Isso não seria nada divertido - ele disse.
Ela deu um salto e virou-se na cadeira.
- Estou vendo novamente suas mãos. Elas estão fechadas em seu
colo, com os polegares apontando para cima.
- Muito bem, você consegue enxergar. Como?
- Esta escuridão é uma maldição de Deus, e eu sou um dos filhos
dele.
- Você está falando sério?
- Posso ajudar seu tio, Krystall.
- Como?
- Você não estava dizendo que ele ainda não recebeu a marca?
- E se estivesse?
- Então ele ainda tem chance de se salvar. Ele é crente em Cristo?
- Acho que não. Acho que ele não passa de um rebelde.
- Um homem de sorte, se agir rápido.
- Se você imagina que vai me ludibriar para que eu conte onde é o
esconderijo dele, está muito...
- Eu não preciso saber disso. Seria uma tolice você arriscar-se a
me contar. De qualquer forma, você não pediu a sua mãe que não lhe
contasse onde ele está?
Ela não respondeu.
- Se quer ajudá-lo de verdade, diga a ele para entrar no site do Dr.
Tsion Ben-Judá. Você sabe como se escreve o nome dele ou preciso
soletrar?
- Você acha que não conheço esse nome e como se escreve?
- Desculpe-me.
- Foi no site dele que fiquei sabendo que é tarde demais para mim
e meus pais, para minha família inteira... que sentiam tanto orgulho de
mim.
- Lamento muito, Krystall.
- Lamenta muito? Como acha que estou me sentindo?
- Você não vai contar a ninguém que estive aqui, vai?
- Por que eu contaria? Eles não vão enxergar você. O que
poderiam fazer? Ficar tateando à sua procura?
- Bem lembrado.
- O que você está fazendo aqui?
- Tratando de negócios. A idéia de ajudar seu tio ocorreu-me há
poucos instantes.
- Bem, de qualquer forma, obrigada. Você é judaísta, não?
- Sou um crente em Cristo, para ser mais preciso.
- Então, diga-me uma coisa: por que é tarde demais para as
pessoas que já receberam a marca de Carpathia? Não continuamos a ter
livre-arbítrio?
Rayford sentiu um aperto na garganta.
- Aparentemente não - ele conseguiu dizer. - Eu não entendo
muito bem, mas você deve admitir que já teve motivos suficientes para
escolher o outro caminho.
- Durante muitos anos.
- É isso mesmo, Krystall.
- Quer dizer que minhas chances acabaram quando fiz a grande
escolha?
- Sim. Talvez antes disso. Quem pode conhecer a mente de
Deus?
- Estou começando a conhecer.
- Como assim?
- Isso dói muito. Dói mais do que a angústia e o sofrimento
causados pela escuridão. Acho que aprendi tarde demais que não
podemos zombar de Deus.
TRÊS
A possibilidade de abrir apenas uma fresta na porta de serviço
camuflada causou um problema para Chloe: ela não tinha a visão de que
necessitava. Embora a porta estivesse de frente para o leste, onde o
veículo suspeito estava parado a apenas um quarteirão de distância na
última vez que Chloe olhou, ela conseguia apenas enxergar o lado
nordeste.
A porta teria de ser aberta no mínimo 45° para Chloe confirmar se
o carro ou o caminhão continuava lá. Deveria ela se arriscar a abrir um
pouco mais a porta para receber a claridade da lâmpada da rua? Será
que isso não faria barulho ou acionaria algum detector de movimento
portátil da CG?
Chloe resolveu pensar que o veículo poderia estar trazendo boas
notícias em vez de más. Talvez estivesse transportando um grupo de
crentes de outros esconderijos que ouviram falar que o contingente do
Comando Tribulação havia se protegido embaixo de uma antiga base
militar.
Não seria maravilhoso descobrir outros irmãos e irmãs que
estariam chegando para ajudá-los, animá-los, defendê-los? Foi o que
Chloe descobrira em "O Lugar", em Chicago, onde havia um grupo de
crentes autodidatas. De outro lado, toda aquela atividade e movimentação
do Comando Tribulação já estava comprometendo a casa secreta.
Um número maior de pessoas transitando naquela área que,
segundo a CG, estava de quarentena, poderia chamar a atenção dos
guardas e levá-los até lá para bisbilhotar. Se fossem novos amigos
chegando, Chloe teria de aceitar que aquilo seria o fim da grande casa
secreta.
Ela não gostaria que isso acontecesse novamente. Havia muita
gente ali e, embora o local fosse subterrâneo, possuía as mesmas
vantagens do Edifício Strong. E agora eles contavam com a ajuda de
George Sebastian, que havia expandido o que Chloe - e todas as outras
pessoas interessadas - aprendera sobre treinamento de combate com
Mac McCullum em sua missão na Grécia. Os equipamentos de exercícios
em estado precário que George e Priscilla resgataram da base militar não
eram grande coisa., mas George os considerava uma vantagem.
- Esses equipamentos serão úteis para vocês – George disse.
Ele consertou e lubrificou os que tinha em mãos, e depois de seis
semanas vários membros do Comando Tribulação resolveram passar
algum tempo na sala de exercícios para fortalecer os músculos. Aquilo
era apenas um pré-requisito, é claro.
Chloe gostava dos treinamentos comandados por George. Muitos
faziam sentido, outros não. Ele havia recebido um treinamento de alto
nível e provou ser um excelente professor. Chloe achava que agüentaria
carregar uma arma em qualquer situação.
Ao lembrar-se daquele treinamento, ela se deu conta de que
estava cometendo um erro fundamental. Havia-se afastado de seu posto,
e ninguém tinha idéia de onde ela estava. Seria impossível comunicar-se
com alguém a uma distância tão grande. Portanto, se levasse adiante o
plano de abrir a porta de serviço o suficiente para enxergar um inimigo em
potencial a um quarteirão de distância ou, talvez, mais perto ainda, ela
teria de tomar uma decisão.
Deveria abrir a porta de uma só vez, sair e fechá-la de novo ou
deveria continuar com a mão na maçaneta caso necessitasse recuar
rapidamente?
Chloe encostou a orelha na porta para ouvir algum movimento do
lado de fora, mas não logrou êxito. A Uzi bateu de encontro à porta e o
capuz e a máscara de esquiar que ela usava abafavam qualquer tipo de
som. Ela recuou, sentindo-se uma idiota.
Calma. Respirem fundo. Vamos sair bem devagar e fechar a porta
atrás de nós.
O fato de usar o pronome nós a fez sentir-se menos
desamparada, mas ela sabia que estava enganando a si própria.
Tomando o máximo de cuidado, ela caminhou pé ante pé, abriu a
porta, saiu e fechou-a atrás de si. Será que o veículo continuava ali?. Ela
teria de aguardar alguns instantes. Talvez ele estivesse com as lanternas
traseiras apagadas. Chloe dirigiu-se a uma fileira de arbustos no lado
leste e escondeu-se atrás deles. Em seguida, girou o corpo para ver se o
inimigo não estava vindo na outra direção. Ela fez uma pausa para sentir
o gosto da liberdade, a liberdade de estar respirando o ar frio da
madrugada.
Quando seus olhos se acostumaram à fraca luz proporcionada
apenas pelas lâmpadas da rua, Chloe olhou através da folhagem e viu o
caminhão branco, especial para transportar funcionários da CG,
estacionado no mesmo lugar, com as lanternas traseiras apagadas, mas,
aparentemente, e o motor não estava desligado.
A pergunta era se o caminhão estaria vazio. Se estivesse, quantos
soldados trouxera e para onde teriam ido?
***
Rayford caminhou rapidamente, nas pontas dos pés, até o fim do
corredor e encontrou um homem inquieto e retorcendo as mãos.
- Fala inglês? - o desconhecido perguntou, com acentuado
sotaque alemão.
- Sim. Sou americano.
- Irmão, irmão, irmão! - o homem sussurrou, abraçando Rayford
com força.
- Quem é você? Como se chama? O que está fazendo aqui?
O homem tinha músculos firmes, como os de um trabalhador
braçal.
- Eu também quero lhe fazer estas mesmas perguntas, amigo -
disse Rayford, libertando-se do abraço. - Mas precisamos tomar cuidado
para que ninguém nos ouça.
- Sim, muito bem. Onde?
- Tenho alguns companheiros aqui. Eles estão em um
apartamento particular. Você precisa conhecê-los. Vamos conversar lá.
- Será que vou agüentar esperar tanto tempo? Estou muito
emocionado. O apartamento fica longe daqui?
- Seis andares abaixo, na outra ala - disse Rayford, conduzindo-o
ao elevador.
- Você mora aqui no palácio? Trabalha aqui?
- Morei e trabalhei aqui. - Rayford olhou ao redor e aproximou-se
mais do homem. - Estou morando em um esconderijo em San Diego e
tenho amigos em Petra. Vamos tirar nosso espião daqui enquanto é
possível.
- Achei que o espião fosse você!
- Fui um deles. Agora temos apenas um. Pelo menos é o que
imaginamos. Você é daqui?
- Moro a uns dez quilômetros de distância, você pode acreditar?
Havia três executivos diante dos elevadores, amparando-se um no
outro e tateando à procura dos botões. Rayford e seu novo amigo
entreolharam-se e ingressaram no primeiro elevador que chegou. Os três
entraram depois deles.
- Precisamos chegar no horário - disse um executivo.
- É verdade - disse outro. - Eu gostaria de ter um relógio sonoro.
- Retirei o cristal do meu. Estou aprendendo a sentir as horas. O
problema é que fico passando a mão nos ponteiros e nunca sei qual é a
hora exata. - Ele passou dois dedos sobre seu relógio. - Acho que são
14h50. Ainda temos dez minutos.
Rayford notou que o alemão olhou para o próprio relógio e ergueu
as sobrancelhas. O elevador parou dois andares abaixo, e os três
desceram. Mas assim que as portas começaram a se fechar, o
companheiro de Rayford segurou-as com as duas mãos, deu uma batida
de leve no ombro do executivo que calculou as horas e, ao mesmo
tempo, esfregou o polegar no mostrador do relógio dele. O homem
assustou-se, e seu companheiro foi de encontro a ele e perguntou:
- O quê?
E o terceiro perguntou: - O que foi?
O alemão recuou os braços para que as portas se fechassem.
Quando ficou sozinho com Rayford no elevador, ele caiu na gargalhada.
- Acho que foi a última vez que ele ficou sabendo qual era a hora
certa. Agora posso me apresentar?
- Ainda não - disse Rayford.
Em seguida, pronunciou as palavras somente movimentando os
lábios.
- Quase todos os elevadores e corredores daqui têm sistema de
escuta.
***
Imprudência ou coragem? Para Chloe, era uma questão de ponto
de vista. Provavelmente, muitos a tachariam de imprudente. Mas ela
estava curiosa demais a respeito do caminhão e mais curiosa ainda a
respeito de quem eram seus ocupantes.
Acompanhando a fileira de arbustos e distante das lâmpadas da
rua, ela caminhou um quarteirão à esquerda, movimentando-se
silenciosamente no meio da noite, conforme aprendera.
Ela reduziu o ritmo dos passos assim que se alinhou à esquerda
do veículo, a uma distância aproximada de 30 metros. Censurou a si
mesma por não ter levado o binóculo e o walkie-talkie. Poderia ter
deixado o aparelho desligado até o momento de necessitar dele,
evitando, assim, uma transmissão inoportuna. E teria a possibilidade de
comunicar-se com Buck ou com qualquer outra pessoa em caso de
urgência.
No entanto, até aquele momento, não tinha havido urgência
alguma. Chloe aproximou-se mais do veículo, dizendo a si mesma que se
houvesse alguém dentro, o motor estaria funcionando e uma ou mais
janelas estariam abertas. Mas ela não queria avançar sem ter certeza.
Depois de girar lentamente o corpo em círculo para ver se não
havia alguém se aproximando ou ao redor, Chloe chegou perto do
caminhão e olhou através das janelas traseiras. Não havia ninguém.
Mas dali ela não podia saber se havia alguém no banco da frente.
Se houvesse uma pessoa aguardando, deveria estar sentada diante do
volante. Ela aproximou-se pelo outro lado, com o corpo curvado para ficar
abaixo do nível da janela até o momento de poder endireitar-se
rapidamente e pegar o inimigo de surpresa, se necessário.
***
Rayford surpreendeu-se ao ver o grande número de moradores do
palácio aglomerados no saguão dos elevadores. Todos estavam
sofrendo. Ele caminhou em direção ao apartamento de Chang em
companhia de seu novo companheiro.
Havia pessoas abraçadas nos cantos, chorando. Outras
rastejavam na tentativa de encontrar o caminho para os apartamentos,
apoiavam-se nas maçanetas e passavam os dedos nos números antes de
bater e implorar que os amigos lhes abrissem a porta.
- Isso me corta o coração - Rayford cochichou ao ouvido do
alemão.
- O meu não - disse o homem -, mas estou procurando me
sensibilizar.
Rayford deu uma batida de leve na porta de Chang. A conversa lá
dentro cessou.
- Sou eu - ele disse baixinho. - E não se assustem. Trouxe alguém
comigo.
Abdullah abriu uma fresta da porta, o suficiente para enxergar e
encaixar o cano de uma Glock calibre .45. Satisfeito ao ver que era
Rayford, ele examinou o alemão de cima a baixo. Depois de ver o selo
dos crentes na testa do homem, Abdullah abriu a porta com força.
Assim que entrou, o homem não conseguiu ficar parado. Depois
de olhar para todos, para os computadores e para as pilhas de disquetes,
ele perguntou.
- Posso falar? Tudo bem aqui?
Chang fez um movimento afirmativo com a cabeça. Apesar de terse
assustado diante da reação efusiva do homem, ele continuou a
trabalhar com Naomi.
- Meu nome é Otto Weser - ele disse. - Madeireiro alemão,
judaísta, chefe de um pequeno grupo de crentes aqui em Nova Babilônia.
O alemão abraçou Abdullah e disse, rindo:
- Cuidado com essa arma aí!
Ao cumprimentar Chang, quase o levantou do chão.
- Vejam só! Você é asiático. Nosso amigo de turbante é o quê?
Egípcio?
Abdullah o corrigiu.
- Ah! jordaniano. Quase acertei. Eu sou alemão. Rayford Steele,
seu nome é ocidental e você me disse que é americano, mas também
tem a aparência de egípcio.
- É um disfarce.
- E você, minha jovem, também é do Oriente Médio, não? Claro
que é. Não vou abraçá-la sem a permissão de seu pai.
Otto apontou primeiro para Rayford, que fez um movimento
negativo com a cabeça, e depois para Abdullah, que pareceu ofendido.
- Ah!, mas vocês têm idade para ser pai dela. - Ele se virou para
Chang. - Sei que ela não é nada sua, a menos que sejam casados.
Naomi aproximou-se dele, com os braços abertos.
- Meu pai não está aqui, mas se eu tiver de lhe dar permissão,
pode me abraçar.
- Ah! Eu adoro esses jovens que gostam de filmes antigos.
Assim que ficou conhecendo todos, Otto prosseguiu:
- Vou ser breve. Sei que vocês têm uma missão a cumprir e que
precisam sair daqui. Eu não sabia se encontraria algum irmão ou irmã
dentro do palácio, mas estou feliz por ter encontrado. Meus amigos e eu
nos consideramos cumprimento da profecia. Vocês querem saber por
quê? Estávamos escondidos na Alemanha, lutando contra a CG sempre
que possível, e Deus... quem mais poderia ser?... levou-me a ler
Apocalipse 18. Fiquei confuso; o que mais posso dizer? Vocês conhecem
a passagem. Eu a memorizei.
- Não sou nenhum intelectual, nenhum estudante, nenhum
teólogo, mas procuro ficar um passo adiante de meu pessoal para poder
ensinar alguma coisa a eles. Bem, Apocalipse 18 fala sobre a destruição
desta cidade, desta mesma onde estamos. Iniciando no versículo quatro,
lemos: "Ouvi outra voz do céu, dizendo: Retirai-vos dela, povo meu, para
não serdes cúmplices em seus pecados, e para não participardes dos
seus flagelos; porque os seus pecados se acumularam até ao céu, e
Deus se lembrou dos atos iníquos que ela praticou. Dai-lhe em retribuição
como também ela retribuiu, pagai-lhe em dobro segundo as suas obras,
e, no cálice em que ela misturou bebidas, misturai dobrado para ela.
Quanto a si mesma se glorificou e viveu em luxúria, dai-lhe em igual
medida tormento e pranto, porque diz consigo mesma: Estou sentada
como rainha. Viúva não sou. Pranto, nunca hei de ver! Por isso em um só
dia sobrevirão os seus flagelos, morte, pranto e fome, e será consumida
no fogo, porque poderoso é o Senhor Deus que a julgou."
- Bem, vocês devem conhecer esta passagem melhor que eu.
"Retirai-vos dela, povo meu"? O que podíamos entender desta frase a
não ser o óbvio? Devia haver povo de Deus aqui, ou pelo menos uma
pequena parte, até pouco antes de acontecerem esses flagelos! Quem
eram eles? Nunca imaginei que pudesse haver crentes aqui. E se
existissem, não durariam muito tempo! Como isso seria possível? Se a
CG e os Monitores de Moral estão matando gente no mundo inteiro por
não ter a marca de Carpathia, que chance alguém daqui teria?
- Não sabíamos, mas queríamos descobrir. E vou dizer uma coisa
a vocês. Não era mais possível ficar brincando de esconde-esconde com
a CG na Alemanha. Reunimos um grupo de quase 40 pessoas,
arrumamos nossas coisas e viemos para cá. Devo dizer que a viagem
não foi fácil. Também não tem sido fácil viver aqui, mas sabíamos disso
quando decidimos vir. Perdemos seis pessoas de nosso grupo desde que
chegamos... Quatro de uma só vez. Dois, devo admitir, morreram por
minha culpa e vou sentir vergonha disso pelo restante da vida. Mas
vamos nos encontrar novamente, não é verdade? E eu mal posso
esperar.
- E outra coisa que eu esperei ansiosamente foi esta praga da
escuridão. Quando ela chegou e percebemos que ninguém podia
enxergar, exceto nós, decidi que queria conhecer este lugar. Queria
conhecer os prédios, o pátio, o palácio, tudo... principalmente o escritório
do potentado. Não pude trazer os outros comigo, mas estou aqui, e quem
mais eu poderia encontrar a não ser vocês? Bem, se somos cumprimento
da profecia por fazer parte de um pequeno grupo do povo de Deus que
deve sair daqui antes que chegue o fim, vocês são uma resposta à minha
oração. Se tivermos de sair daqui, precisamos descobrir um lugar para
ficar, de preferência que seja seguro. Se vocês têm ligações com Petra, é
para lá que queremos ir, se eles nos aceitarem.
- Desculpe-me, Rayford - disse Chang. - Esta conversa está muito
interessante e agradável, mas preciso mostrar a Naomi, você sabe, como
funciona o sistema que David instalou aqui. Depois, acho que devemos
partir.
- Certo - disse Rayford -, e vou me sentir mais tranqüilo se
Abdullah ficar com vocês. Quero voltar ao escritório de Carpathia para ver
se Otto e eu podemos entrar na grande reunião e saber o que está
acontecendo.
- Ah! Eu adoraria! Conforme já disse, eu queria conhecer o
escritório dele. Foi por isso que eu estava lá, mas fiquei tão assustado
quando vi alguém com o selo...
- Otto - disse Rayford -, precisamos ir.
***
Depois de ficar agachada por um bom tempo ao lado da porta
direita do caminhão, Chloe quase desistiu de levar seu plano adiante. O
que aconteceria se ela erguesse o corpo e o motorista estivesse sentado
ali, aguardando o retorno dos soldados?
Talvez ela tivesse de apontar a arma para ele. E fazer o que
depois? Desarmá-lo? Impedi-lo de falar pelo rádio? Forçá-lo a contar para
onde foram os soldados e o que pretendiam fazer?
Porém, tudo aquilo só serviria para comprometer o esconderijo, a
não ser que Chloe estivesse disposta a matar o motorista e tentar
afugentar o restante do pessoal. Para isso, ele teria de lhe contar onde os
soldados estavam.
Finalmente Chloe disse a si mesma que se o caminhão estivesse
vazio, ela faria um amplo reconhecimento do terreno ao redor do
esconderijo para saber se a CG não estava por perto ou prestes a
capturá-los; em seguida, voltaria para buscar ajuda.
Chloe soltou a trava de segurança da Uzi, colocou o indicador
direito no gatilho, apoiou o cano da arma na palma da mão esquerda e
levantou-se rapidamente.
Vazio.
Era como ela também se sentia: vazia. Os efeitos da adrenalina
em seu organismo desde o momento em que ela se aventurara a sair
pela porta de serviço haviam-na deixado quase imóvel. Ela se abaixou ao
lado do caminhão para recompor-se. Seus braços e pernas pareciam ser
feitos de borracha. Se seus sentidos não estivessem em estado de alerta
máximo, ela teria encostado o queixo no peito e dormido ali mesmo.
Apesar da sensação de estar sendo observada, imaginando que
havia no mínimo nove soldados da CG com armas apontadas em sua
direção, ela se sentia uma mulher de sorte em razão da fragilidade de seu
plano. Na verdade, ela mal elaborara um plano.
Embora concordasse com o lema do Comando Tribulação - "Não
acreditamos em sorte" -, era difícil atribuir a Deus a proteção que
recebera até aquele momento, principalmente porque se sentia tola
demais por ter novamente testado seu destino.
Chloe levantou-se e começou a fazer o reconhecimento do
terreno. Enquanto caminhava silenciosamente no escuro, sentindo-se
vulnerável e procurando ser mais cautelosa que rápida, ela só percebia o
ritmo acelerado de sua respiração e as batidas fortes de seu pulso.
***
Quando Rayford e Otto chegaram ao conjunto de escritórios de
Carpathia, a reunião já havia começado, e alguns retardatários
atravessavam desajeitadamente a porta da sala de conferências. Rayford
viu o fraco brilho emitido por Carpathia. Apenas Leon Fortunato
permanecia perto dele o suficiente para receber um pouco de luz.
Rayford tocou levemente nos ombros dos homens que estavam
na porta e eles abriram caminho para ele e Otto passarem. Por questão
de segurança, eles se sentaram na outra extremidade da sala, longe de
Carpathia.
O potentado pediu a Krystall que procedesse à chamada dos
presentes, o que foi feito quase que de memória. Ao constatar que havia
se esquecido dos nomes de três diretores, ela perguntou se poderia ler o
restante da lista sob a luz de Carpathia.
- É melhor que as pessoas cujos nomes não foram chamados se
identifiquem - disse Nicolae.
Enquanto elas se identificavam, Otto cutucou o braço de Rayford e
disse, apenas movimentando os lábios, que gostaria de gritar seu nome
para ver a confusão que isso provocaria.
- Cavalheiros, se vocês tiverem a bondade de reprimir seus
gemidos - Carpathia começou a dizer -, o diretor do Serviço de Segurança
e Inteligência, Suhail Akbar, vai mencionar o primeiro item da reunião.
- Obrigado, Excelência. Oh! Perdoe-me, senhor, mas estou
sentindo muitas dores. Ai!
- Suhail, por favor!
- Desculpe-me, potentado, mas não sei o que...
- Controle-se, homem!
- Vou tentar, senhor. Nosso primeiro assunto, senhoras e
senhores, além do óbvio, é que uma...
- O que pode ser mais importante que o óbvio? - perguntou
alguém com sotaque indiano. - Temos de encontrar uma solução para
este...
- Quem está falando? - Carpathia interpelou. - Raman Vajpayee, é
você?
- Sim, senhor, eu só quero saber...
- Raman, eu só quero que você fique calado. Como se atreve a
interromper um membro de meu gabinete?
- Bem, senhor, há algo mais importante que...
- Há algo mais importante que tudo. Sua ofensa merece um
miserável pedido de desculpas, e é melhor que seja feito imediatamente.
- Sinto muito, potentado, mas...
- Sua resposta foi mais miserável ainda. Não posso imaginar
tamanha insubordinação em uma época de crise internacional. Estou
pensando em...
- Pensando em quê? - desafiou Vajpayee. - Em me matar como
faz com qualquer um que fala o que pensa? Eu lhe digo uma coisa:
prefiro morrer a viver desta maneira! No escuro! Sofrendo dores! Sem
nenhuma possibilidade de alívio. E, apesar disso, o senhor está...
- Apresente-se, Raman! Imediatamente!
O indiano correu para a frente, empurrando quem estava no
caminho. Para Rayford, ficou claro que ele estava simplesmente seguindo
o som da voz de Carpathia, incapaz até mesmo de enxergar o brilho.
- Estou aqui, distante um braço do senhor! Mate-me por eu ter
ousado falar o que penso ou revele-se como um covarde!
- Suhail - ordenou Carpathia -, tire este homem daqui e execute-o.
- O senhor é mesmo um covarde! Não vai usar suas mãos para
me matar! Pelo menos tenha um pouco de respeito comigo.
- Eu só sinto desprezo por você, Raman. Você arruinou sua
posição dentro da Comunidade Global e eu...
- Mate-me com suas mãos, seu medroso...
Ao ouvir estas palavras, Carpathia arremessou-se em direção ao
indiano, permitindo, assim, que um enxergasse o outro. Os dois homens
começaram a lutar enquanto os outros ouviam aterrorizados. Carpathia
conseguiu agarrar a cabeça do homem com as mãos. Com uma forte
torção, ele quebrou o pescoço de Vajpayee, e o homem caiu morto no
chão.
- Há outros dissidentes aqui? - perguntou Carpathia. - Alguém que
prefira morrer a sofrer pela causa? Hem? Se não há, prossiga, Suhail, e
quando terminar, tire este corpo daqui.
Ainda abalado, Akbar conseguiu controlar seus gemidos de dor
enquanto relatava que uma aeronave havia pousado em Nova Babilônia
naquela tarde.
- Só podemos imaginar que a aeronave estava ligada no piloto
automático - ele disse -, mas não temos registro do equipamento.
Solicitamos cautela por parte de todos, porque deve haver subversivos
entre nós.
- Se não conseguirmos que os ocupantes da aeronave se
identifiquem - disse Carpathia -, eu mesmo vou inspecioná-la depois
desta reunião.
- Esta é a nossa deixa - Rayford cochichou ao ouvido de Otto. -
Temos de sair daqui antes disso.
Enquanto eles começavam a sair sorrateiramente da sala,
Carpathia prosseguiu:
- Conforme vocês sabem, estou determinado a pôr um fim em
nosso problema com os judeus, e se isso incluir os judaístas covardes
que continuam escondidos nas montanhas, tanto melhor. Estou
convocando uma reunião com todos os dez líderes das regiões globais
daqui a seis meses. A reunião será em Bagdá e terá a finalidade de traçar
nossa estratégia para livrar o mundo de nossos inimigos. Nesse ínterim,
nosso posto de comando será transferido para Al Hillah, onde há luz.
Conforme é do conhecimento da maioria de vocês - e se for novidade,
espero que tratem o assunto com total discrição -, em Al Hillah está
localizado nosso imenso depósito de armamento nuclear, voluntariamente
entregue a nós por todo o mundo. Isto nos será muito útil neste derradeiro
esforço para encontrarmos uma solução final.
- Enquanto as outras partes do mundo se preparam para cerrar
fileiras comigo, planejo começar a reunir forças de combate em Israel.
Todos os militares dos Estados Unidos Carpathianos que ainda não foram
designados para trabalhar como soldados das Forças Pacificadoras ou
Monitores de Moral deverão apresentar-se no vale de Jezreel para
treinamento de combate.
- Quanto ao nosso deslocamento para Al Hillah, estejam prontos
em 24 horas. Levem tudo o que for necessário para ajudá-los nessa
transferência.
- E quanto aos nossos funcionários, nossos departamentos?
- Continuarão aqui, e eles não devem saber para onde vamos,
nem que estamos indo. Entendido?
Rayford já estava do lado de fora da porta quando constatou que
ninguém respondeu.
- Entendido?
- Sim - murmuraram alguns.
- Então, mãos à obra. O Sr. Akbar, o reverendo Fortunato e eu
vamos nos dirigir ao aeroporto.
Rayford fez um sinal para que Otto o acompanhasse e correu para
os elevadores.
- Chame todos os elevadores e aperte todos os botões. Retarde
esses elevadores o mais que puder. Vou descer pela escada. Não tenho
idéia de onde meus amigos estão, mas preciso deixar um bilhete no
apartamento de Chang caso eles voltem para lá. Temos de sair daqui
antes que Carpathia descubra a identidade de nosso avião e onde
estamos. Entendeu?
- Entendi. Obrigado por confiar em mim.
- Você estava esperando ir conosco? Isso só será possível se
você...
- Não, vamos deixar esse assunto para mais tarde. Não quero ir
sem meus companheiros.
- Se você encontrar meus amigos antes de mim, mande-os para o
avião.
Rayford desceu correndo a escada, provocando gritos estridentes
do povo sofrido que estava sentado nos degraus. Alguns perguntaram,
aos brados, como ele conseguia correr daquela maneira no escuro.
Rayford detestava ter de desprezá-los.
Quando chegou ao piso principal, ele saltou por cima de várias
pessoas e correu em ziguezague no meio de outras. Passou rapidamente
pela porta e disparou rumo ao avião. Se conseguisse ligar o motor e
posicionar a aeronave, ficaria esperando e orando para que Chang,
Naomi e Abdullah estivessem a caminho.
***
Buck dormiu profundamente durante horas até o momento em que
alguma coisa começou a perturbá-lo. Ele foi ficando cada vez mais
agitado e acordou de repente. A sensação era de culpa por ter deixado
Chloe de vigia depois de ela ter trabalhado arduamente o dia inteiro nos
assuntos da cooperativa e cuidado do filho. Que tipo de marido ele era?
Passou as mãos no cabelo, sentou-se na cama e gritou:
- Está tudo bem, querida?
Talvez ela estivesse no quarto de Kenny. Ou preparando chá na
cozinha. Buck saiu do quarto, espreguiçando-se.
- Chloe! - ele chamou. - O detector de movimento está sinalizando
alguma coisa aqui!
Ele se curvou para olhar no periscópio e fez uma rápida
exploração. Não havia ninguém. De repente, ao virar o aparelho para
sudoeste, ele avistou um vulto sozinho, armado.
- Chloe! - ele gritou, com a testa franzida. - É melhor chamar
George. Estou vendo um fantasma às oito horas da manhã. Chloe?
O sangue de Buck gelou. Ele se levantou e foi até a cozinha. Tudo
escuro. E Kenny estava chorando. Buck pegou o telefone a caminho do
quarto de Kenny e digitou o número de Ming.
- Ei, garotão - ele disse.
O menino, em pé na cama, passou rapidamente do choro ao riso.
- Mamãe?
- Ela já vem. Deite mais um pouco e volte a dormir. Ainda está
escuro.
Ming atendeu.
- Peço desculpas por despertá-la, Ming, mas tenho uma
emergência aqui.
- Estou às ordens, Buck.
- Você poderia cuidar de Kenny por alguns instantes? Acho que
Chloe saiu.
- Chego aí em um minuto.
Ele agradeceu a Ming e ligou o walkie-talkie.
- George, você já está em pé?
QUATRO
Rayford já havia ligado os motores e feito uma manobra de meiavolta
com a aeronave quando avistou a luz de Carpathia ao longe. O
potentado parecia apressado, mas, por ter de conduzir Suhail Akbar e
Leon Fortunato, ele tinha de andar lentamente para iluminar o caminho
para os dois.
No entanto, essa luz não ajudaria muito sem o ronco dos motores
do jato, portanto Rayford desligou tudo e orou para que aquele trio com
dificuldade para enxergar se perdesse no caminho, para dar tempo ao
outro trio - seus três companheiros - de encontrá-lo.
Rayford pegou seu celular e ligou para Mac McCullum em Al
Basrah para contar-lhe as novidades.
- Você e Albie podem seguir para Al Hillah hoje?
- Estamos sentados aqui como dois patetas, sem fazer nada.
- Pelo que entendi, a resposta é sim. Vocês estão muito visados
depois do que aconteceu na Grécia. Como vão conseguir andar por aí?
- Com muita conversa, charme, e viajando somente à noite, é
claro. Acho que você está querendo saber o que NC e seus garotos estão
aprontando.
- O ideal seria que vocês descobrissem onde eles vão se reunir
em Bagdá e instalar nesse lugar um sistema de escuta para nós.
- Ah!, claro. Eu vou dizer ao pessoal de lá que sou o novo criado
pessoal dele e perguntar se posso passar algumas horas na sala de
reunião antes da chegada deles.
- Se fosse tão fácil assim, eu mesmo faria isso – disse Rayford.
- Albie conhece todo mundo. Se tiver de ser feito, pode contar com
ele.
Chang, Naomi e Abdullah chegaram, cada um carregando várias
caixas e maletas. Naomi estava pálida como um lençol. Rayford abriu a
porta e abaixou a escada.
- Chegaram na hora exata - ele disse.
- Providenciamos tudo, capitão - disse Abdullah. - Graças a este
jovem gênio.
- Só estava fazendo algumas demonstrações - disse Chang,
colocando sua bagagem dentro da aeronave e ajudando Naomi a entrar.
- Eu queria mostrar a ela como David grampeou o palácio inteiro e
que podíamos ouvir tudo o que se passa no escritório de Carpathia.
- Então você sabia que ele estava vindo - disse Rayford,
permitindo que Abdullah se sentasse na poltrona do piloto.
- Por favor, vamos mudar de assunto? - disse Naomi. Aquelas
palavras provocaram um silêncio constrangedor.
Rayford atreveu-se a olhar para trás. A pálida silhueta alaranjada
estava caminhando mais rápido. Carpathia devia ter abandonado Akbar e
Fortunato ou os dois estavam sofrendo dores muito fortes.
Aparentemente, o sofrimento não atingira Carpathia. Talvez Deus
estivesse reservando outra coisa para ele.
Rayford e Abdullah evitaram fazer uma inspeção formal da
aeronave e verificaram apenas os pontos críticos.
- Ligue os motores - disse Rayford.
Mas Abdullah continuou parado, esticando o pescoço para ver a
luz aumentar cada vez mais de tamanho à medida que se aproximava do
avião.
- O que você está esperando, Smitty? Vamos embora.
- Um momento, por favor, capitão. A que distância você acha que
ele consegue enxergar?
- Até onde o brilho dele alcança. Agora vamos.
- Um momento, por favor.
- O que está havendo, Sr. Smith? - gritou Naomi. - Aquele não é
Carpathia?
- Ele não sabe para onde está indo. Mas eu sei.
- Assim que ligarmos o motor, ele não vai poder fazer nada - disse
Rayford. - Mas é melhor que ele não saiba quem somos.
- Ele não vai saber - disse Abdullah.
Rayford inclinou o corpo sobre Abdullah e viu Carpathia correndo
na pista, cerca de seis metros atrás da aeronave.
- Lá vamos nós - gritou Abdullah, acionando os motores e
deixando a luz alaranjada para trás, até a figura de Nicolae desaparecer
ao longe.
Assim que ganharam altitude, Naomi inclinou-se para a frente.
- Posso falar com o senhor? - ela perguntou. Rayford tirou os
fones de ouvido. - Vocês acham tudo isso normal?
- Hoje, nada mais é normal, Naomi. Você tem visto muitas coisas
com os próprios olhos.
- Nunca ouvi falar que um homem foi assassinado. E nunca andei
no meio de tantas pessoas feridas sem poder fazer alguma coisa por
elas. Estamos isolados em Petra, e eu gostaria de estar no meio da ação.
Nunca vi nada semelhante a isto, mas está tudo bem comigo. E vamos
poder fazer coisas em nosso centro de informática que jamais imaginei.
- Você passou por situações difíceis, sinto muito - disse Rayford. -
Eu também passei.
Ele contou sobre a conversa que teve com a assistente de Nicolae
e como procurou ajudá-la.
- Vamos procurar o nome do tio dela no sistema - disse Naomi. - E
acho que também vamos receber notícias do Sr. Weser.
- Espero. Que sujeito bom!
Naomi aproximou-se um pouco mais de Rayford. Apesar de ter de
falar alto por causa do ruído dos motores, ela conseguiu que só Rayford
ouvisse suas palavras.
- Chang não está bem.
- O que houve?
- Por pior que tenha sido, ali era o seu lar. Ele deve estar
estranhando ter de abandonar tudo.
- Pensei que ele ficaria feliz por sair de lá.
- Eu gostaria de ter conhecido o Sr. Hassid, aquele homem do
qual Chang tanto fala. O que eles fizeram no palácio e os equipamentos
que instalaram onde estamos morando...
Rayford assentiu com a cabeça.
- Você acha que vai ser capaz de fazer a mesma coisa em Petra,
isto é, monitorar esse lugar?
- Com a ajuda de Chang, sim. Vai ser maravilhoso poder contar
com ele.
- Ele vai concorrer com você?
- Acho que não. Vou deixar que ele faça o que quiser. Ele gosta
de assuntos técnicos, de lidar com as partes internas do computador,
muito mais do que lidar com pessoas. Mas ele poderá dar aulas, se
quiser.
O celular de Rayford soou. Era George Sebastian.
- Faz tempo que estava querendo falar com você. Seu celular
estava desligado? - George perguntou.
- Deixei-o desligado para cuidar de uma missão no palácio. Estava
esperando vocês acordarem para contar as novidades. Ainda é noite aí,
não?
- Temos um problema.
- Por que está sussurrando? Onde você está?
- Fora do esconderijo.
- Que horas são aí?
- Quase cinco. Não conseguimos encontrar Chloe.
***
Buck concluiu que o vulto que havia visto através do periscópio
era o de Chloe, mas onde ela estava? Fazia parte do comportamento dela
sair sem um walkie-talkie ou um telefone, o que Buck considerava uma
estratégia e não uma imprudência. Mas ele teria dificuldade para
convencer o pessoal.
Ele e George haviam se separado, ambos armados e em
constante contato um com o outro. George descobrira o caminhão da CG
vazio - que devia ser uma espécie de chamariz - mas não viu ninguém da
CG nem Chloe. Buck esperava não ter de chamar outras pessoas para
ajudá-los, porque não queria expor seus companheiros nem o esconderijo.
Duas horas depois, quando o sol despontou no horizonte, Buck e
George tiveram de retornar ao esconderijo. Eles haviam percorrido uma
área de dois quilômetros quadrados, sem encontrar nada.
Quando chegaram ao esconderijo, todos já estavam em pé,
preocupados, orando e ansiosos por saber notícias de Chloe. Ming Toy
levou Kenny e Beth Ann, a filha de George, para sua casa "pelo tempo
que for necessário".
George e Priscilla instalaram um centro de comando na sala de
operações. Ree Woo, sentado diante de uma mesinha dobrável em um
dos cantos, folheava os arquivos para ver se encontrava algum codinome
que não havia sido usado ou que não estivesse comprometido.
Buck admitiu que pouco poderia ajudar.
- Estou paralisado.
- Pare de pensar no pior - disse George. - Desse jeito, você não
está ajudando nem Chloe nem nós.
Buck olhou firme para George, sabendo que seu companheiro
estava certo.
- Para você, é fácil falar, Sebastian. Não é a sua mulher que está
lá fora.
Priscilla olhou para o outro lado. George deixou seus papéis
caírem sobre a mesa e aproximou-se de Buck. Colocou as mãos nos
braços da poltrona de Buck e ficou frente a frente com ele.
- Vou dizer uma vez só. Se minha esposa estivesse lá fora, eu não
ficaria sentado aqui com as mãos no colo. Devo um favor enorme a sua
esposa. Ela arriscou a vida por mim na Grécia. Posso imaginar como
você se sente. O fato de não sabermos nada é melhor do que saber que
aconteceu o pior. Talvez você esteja furioso com Chloe porque ela não
obedeceu ao protocolo e infringiu várias regras.
- Talvez - ele prosseguiu - você esteja se sentindo culpado por ter
se zangado com sua mulher e agora está com medo de que tenha
acontecido algo com ela. Eu não culpo você. Não culpo mesmo. Mas vou
lhe dizer uma coisa. Precisamos da ajuda de todos, principalmente de
alguém com sua inteligência. Eu lhe faço uma pergunta: você quer
descobrir onde Chloe está para trazê-la de volta sã e salva ou quer
pensar no pior e começar a chorar desde já?
- George! - ralhou Priscilla.
- Não estou pretendendo ser duro demais com ele - disse George.
- É que não há nada que possamos fazer lá fora durante o dia, a não ser
que a gente saiba que o terreno está livre ou que existe alguém com um
bom disfarce e um codinome. Enquanto isso, vamos ter de ficar calmos e
planejar uma estratégia, e não queremos que Buck continue sentado aqui
se sentindo infeliz...
- Muito bem, George, já entendi! Certo?
- Você e eu estamos entendidos?
- Claro.
- Você acha que saí daqui no meio da noite para brincar?
- As notícias não são boas - disse Ree. - Os nomes "Chloe Irene"
de Chloe e "Howie Johnson" de Mac foram descobertos depois do que
houve na Grécia. O nome de "Indira Jinnah" de Hannah ainda está limpo,
mas só ela pode usá-lo, e ela está muito longe daqui. As identidades de
cidadãos do Oriente Médio utilizadas por Rayford e Abdullah continuam
válidas, mas Abdullah está em Petra e Rayford vai precisar de descanso
quando chegar aqui.
- Não tenha tanta certeza assim - disse George. - Ele vai querer ir
até o fim.
- Tenho certeza - disse Buck.
- O nome de "Comandante Elbaz" usado por Albie já está
comprometido? - perguntou Ree.
Buck assentiu com a cabeça.
- Infelizmente, sim.
- Ele também está muito longe daqui - disse George. - Temos
mais alguém?
- Temos mais um. "Chang Chow", o nome masculino que Ming
adotou.
- Não vamos pôr a vida de Ming em risco - disse Buck.
- Por que não? - estranhou George. - Ela ainda tem a farda. Pode
cortar o cabelo e...
- Ei! - interrompeu Ree. - Você está falando de minha noiva.
- E daí?
- Pelo menos ela precisa ser consultada.
- Não, Ree - disse George. - Acho que devemos arrastá-la até
aqui, segurá-la e cortar o cabelo dela.
- Calma, rapazes - disse Priscilla. - Ninguém me conhece. Eu
poderia inventar um codinome e...
- Você não - disse George.
- Agora a pimenta ardeu nos seus olhos, não? - disse Buck. - A
idéia de sua mulher sair daqui...
- Pare com isso! - disse George. - Eu só acho que ela é
inexperiente e não tem muita saúde.
- Ming não tem um bom físico - disse Ree. - Não recebeu
treinamento para lidar com armas.
- Não me venha com essa - disse Buck. - Ela trabalhou no PRFB.
- Cuidar de detentas em uma prisão feminina não é o mesmo que
resgatar um de nós das mãos da CG.
- De qualquer forma, ninguém daqui gostaria que ela fizesse isso -
disse George. - Buck e eu, e talvez você, Ree, temos de resgatar Chloe.
Vamos precisar de Ming, ou de outra pessoa, para descobrir onde ela
está.
***
Quando estava no meio do caminho para voltar ao esconderijo,
Chloe avistou outros dois veículos da CG, que rodavam em direção ao
sul. Enquanto ela observava, os dois caminhões pararam, e mais de meia
dúzia de homens desceram de cada um dos veículos. Ficou claro que
eles levavam adiante um cuidadoso plano de encontrar acampamentos
clandestinos. E a casa secreta subterrânea ficava no caminho deles.
Talvez estivessem com ar de tédio quando Buck os viu pelo periscópio
poucas horas antes, mas haviam notado alguma coisa estranha.
Aqueles homens tinham o semblante compenetrado. Carregavam
detectores de metal, sondas e alguma coisa parecida com aparelho para
descobrir substâncias radioativas. Chloe não sabia se teria tempo de
correr de volta ao esconderijo para alertar os outros. Se calculasse mal o
tempo, levaria a CG diretamente ao esconderijo.
Determinada a distraí-los e desviar o rumo deles, ela começou a
caminhar novamente. Queria que eles a vissem, mas sem perceber que
ela estava fazendo isso de propósito. Ela caminhava com passos furtivos,
mas determinados.
Em vez de seguir à direita e dar meia-volta para chegar à entrada,
Chloe continuou a caminhar na direção oeste, mais para o sul. Quando
ouviu um dos veículos vindo em sua direção, ela começou a andar mais
depressa e, em seguida, correu a toda velocidade. Não conseguiria ir
mais depressa que o caminhão, mas talvez pudesse chegar aonde ele
não chegasse.
A Uzi, por mais leve que fosse, começou a ficar pesada. Fazia
mais sentido livrar-se dela e vir buscá-la depois, a não ser que Chloe
acreditasse ser capaz de dominar um ou dois pelotões da CG com ela.
Chloe jamais teria condições de explicar o uso de uma arma como
aquela. Ao ouvir o ronco de um caminhão - talvez dois - a cerca de um
quarteirão e rodando rápido, Chloe deu meia-volta e atirou a Uzi e a
máscara de esquiar atrás de algumas árvores. Retomou o ritmo dos
passos e correu cerca de 500 metros. Sua idéia tinha dado certo. Agora
os dois caminhões a seguiam.
Ao ver que estava bem longe do esconderijo, Chloe decidiu que a
melhor atitude seria a de indiferença, portanto abaixou a cabeça e
continuou a correr. O caminhão da frente emparelhou com ela, mas Chloe
não olhou para ele.
Da janela do lado do passageiro, uma moça gritou:
- Quer uma carona?
- Não, obrigada.
- Entre.
- Não, obrigada. Estou bem.
- Queremos fazer-lhe algumas perguntas.
- Pode fazer.
- Vamos lá, pare e venha conversar conosco.
- Converse comigo onde estou.
- De onde você é?
- Moro a uns dez quilômetros a oeste.
- Tempos atrás, havia ali um reservatório de água subterrâneo
proveniente de um tsunami (palavra japonesa usada para definir um tipo
de onda oceânica, gerada por distúrbios sísmicos).
- É claro que eu sei disso.
- O que está fazendo aqui?
- Correndo.
- Como chegou até aqui?
- Correndo.
- Para onde está indo?
- Para casa.
- Como se chama?
- Febe.
Parece um nome bíblico.
- Febe de quê?
- Febe Evangelista.
- Nome estrangeiro?
- Meu marido é. Ele é WASP [Protestante Branco Anglo-saxão]
- Você tem um documento de identidade?
- Não está comigo.
- Muito bem, senhora, vou ter de pedir que pare e venha conversar
conosco por alguns instantes.
- Não, obrigada. Você poderá acompanhar-me até em casa, se
quiser.
Vou me distanciar do esconderijo até cair de exaustão.
- Preciso saber de que região você é. Também quero ver sua
marca.
- Não vou tirar o capuz nem as luvas porque está frio e estou
transpirando.
- O quê? Você recebeu a marca na testa e na mão? Chloe fez um
gesto de pouco caso e continuou a correr.
O caminhão saiu da estrada e parou diante dela. Chloe desviou-se
dele e continuou seu caminho. Ouviu as portas sendo abertas e passos
de botas no asfalto. De repente, dois homens da CG apareceram e
começaram a correr a seu lado.
- Muito bem - disse um deles -, a brincadeira acabou. Pare ou vai
ter de entrar no caminhão. Vamos, a senhora sabe que podemos obrigála
a entrar à força, mas não há necessidade.
Chloe continuou a correr. O homem à sua direita atirou a arma ao
companheiro da esquerda, e, a seguir, passou os dois braços ao redor do
pescoço dela, forçando os joelhos no meio de suas costas. O homem
devia pesar uns 90 quilos. Chloe perdeu o equilíbrio e caiu de bruços no
chão. O sangue começou a escorrer-lhe pela testa. O homem pressionou
um dos joelhos na nuca de Chloe, puxou-lhe as mãos para trás e
algemou-as.
Desesperada para retardá-los, Chloe fingiu estar sem forças para
sair do lugar.
- Faça como quiser - disse um deles.
O homem segurou-a pelas algemas e arrastou-a em direção ao
caminhão. Ela continuou com o rosto encostado no chão, deixando que a
areia, os pedregulhos e o asfalto lhe ferissem a face.
Deitada de bruços ao lado do caminhão, ela só poderia ser
levantada do chão se forçasse os ombros para cima. Foi o que o homem
da CG procurou fazer.
- Há um jeito mais fácil - ele disse -, já que ela quer assim.
Ele agarrou-a pelos pés e dobrou suas pernas, forçando os
tornozelos a encostarem-se às algemas e amarrou-os ali com uma tira de
plástico. Em seguida, jogou-a dentro do caminhão.
Chloe tinha certeza de que havia fraturado uma costela. Durante o
percurso de 20 minutos até a sede da CG, ela começou a orar.
Deus, dá-me força. Permite que eu morra antes de delatar
alguém. Fica com Kenny, Buck e meu pai.
Ela se lembrou das histórias espetaculares que George contou
quando foi preso na Grécia. Ele não disse absolutamente nada a seus
captores. Se ao menos ela tivesse aquela coragem. Preferia ridicularizálos,
provocar a ira deles, deixá-los confusos. O que seria melhor? Ficar
sentada sem dizer uma só palavra ou enfrentá-los, para que eles
soubessem que ela não era uma presa fácil?
Tortura. Como enfrentaria uma tortura? Com a tua força, Senhor.
Permite que eu ofereça minha vida em troca da vida das pessoas que
amo.
Quando Chloe chegou à sede, eles retiraram suas algemas,
revistaram-na e perguntaram novamente seu nome e sua região. Ela não
disse nada. Passou cuidadosamente a palma da mão no rosto e sentiu os
ferimentos na testa e nas faces.
- Ela já nos disse. Febe Evangelista. Americana.
- Então deve haver o número - 6 em algum lugar, escondido
debaixo de todo esse sangue. Pegue uma toalha molhada e limpe os
ferimentos.
Alguém segurou Chloe pela nuca e passou uma toalha em seu
rosto. Ela gritou de dor.
- Não estou vendo nada. Mas deve haver um número. Alguém
está procurando o nome e a descrição dela nos arquivos?
- Sim. Até agora, nada.
- Jock vai chegar às nove. Ela precisa tomar banho e vestir um
macacão limpo. E não se esqueçam das impressões digitais.
Chloe pensou em soltar o corpo e deixar que uma funcionária da
CG a despisse, a colocasse debaixo do chuveiro e tornasse a vesti-la,
mas obedeceu às ordens. Saiu do chuveiro com o rosto ardendo, vestiu
um macacão verde escuro e fechou as mãos com força.
Continuou com as mãos fechadas quando foi conduzida aos locais
para tirar foto e impressões digitais. Ela parecia tão diferente da aluna
que estudou em Stanford seis anos antes que não se preocupou com a
foto. Ninguém a reconheceria.
Uma mulher mexicana, do tipo matrona, procurou abrir a mão de
Chloe e disse:
- Primeiro a mão direita, por favor.
Chloe fez um movimento negativo com a cabeça.
- Vamos, querida. Você não vai querer me enfrentar. Vou tirar
suas impressões digitais e você precisa cooperar.
Chloe fez o mesmo movimento com a cabeça.
- Eu vou fazer isso, você entendeu? Será que vou ter de chamar
dois caras daqui para fazer você me obedecer? Se for assim, veja o que
costumamos usar.
A mulher mostrou a Chloe um fio de metal semelhante ao usado
pelos homens da "carrocinha" para laçar cães.
- Eu amarro este fio um pouco acima de seus pulsos. Quando ficar
bem apertado, você vai abrir as mãos. Não sei quem você é nem por que
está aqui, mas não vai querer passar por isso.
Chloe sacudiu novamente a cabeça, e a mulher solicitou ajuda
pelo rádio. Chloe resistiu quando dois homens chegaram, mas, conforme
a mulher dissera, o esforço não valeu a pena. Quando o fio de metal foi
amarrado ao redor de seus braços, ela abriu as mãos. A CG tirou suas
impressões digitais e enviou-as, via Internet, aos bancos de dados do
mundo
inteiro.
- Também fizemos uma leitura de seus olhos com a câmera,
querida. Vamos descobrir se você tem licença para dirigir, se cursou
faculdade ou se é casada. Vamos descobrir tudo sobre você.
Chloe esperava que a CG estivesse com falta de pessoal para
trabalhar. Talvez as informações demorassem a chegar, dando tempo
para que Buck, George e o restante do grupo viessem resgatá-la. Quem
eu estou enganando?
***
Rayford havia planejado descansar um ou dois dias antes de
voltar a San Diego, mas agora teria de sair de Petra assim que a
aeronave fosse reabastecida. A presença de Mac McCullum aguardando
por ele ali o deixou atônito.
- Buck já me contou - ele disse. - Penso que Tsion e Chaim
precisam saber o que aconteceu a fim de reunir o pessoal daqui para
orar. Albie já entrou em contato com Al Hillah e está resolvendo o
assunto, portanto não necessita de mim. Vou ser seu piloto.
- Mac, não posso lhe pedir que...
- Você não pediu. Eu me ofereci. Vamos lá. Se você não quiser
ficar para trás, é melhor se apressar.
Rayford não sabia como expressar sua gratidão a Mac. Assim que
ganharam altitude, Mac disse:
- Você pode pensar, orar, dormir ou conversar. Vou levar esta
lindeza aqui até San Diego. Não vejo a hora de rever aquele pessoal e
conhecer os novos. Meu palpite é que Chloe já está lá, aguardando sua
chegada.
- Eu estava pensando igual a você - disse Rayford. - Mas agora
estou tendo um pressentimento ruim, muito ruim. Se Buck e George não
encontrarem Chloe logo, ou se descobrirem que a CG a pegou, vamos ter
de tirar aquelas pessoas de lá.
- E levá-las para onde?
- Petra é o único lugar que me veio à mente.
- Chloe não vai dizer nada à CG. Se não a viram saindo do
esconderijo, não vão descobrir nada.
- Ela devia estar nas redondezas. Se ela não puder convencê-los
de que veio de outro lugar qualquer, com certeza eles vão vasculhar a
área.
Rayford segurou a cabeça com as duas mãos e procurou dormir.
Não conseguiu. Tudo o que ele podia fazer era orar. Chloe sempre foi a
garotinha preferida do papai. Ela adorava ir à escola, era curiosa,
decidida, obstinada. Foi a última pessoa da família a aceitar a Cristo, e
Rayford sabia que não leve participação alguma nisso. Ele a ensinara a
acreditar somente no que ela podia ver, cheirar e tocar.
Chloe sempre quis estar no meio da ação, e se alguém não a
colocasse lá, ela própria se encarregava de intrometer-se. Rayford
gostaria de censurá-la por isso, mas estava angustiado e com medo. Só
queria saber se ela estava em lugar seguro, na companhia de Buck e
Kenny. Ele sabia que, independentemente do que acontecesse, eles
voltariam a reunir-se um dia, e que isso ocorreria em menos de um ano.
Mas esse pensamento não o confortou.
Eles iriam para Cristo quando morressem, mas se sobrevivessem,
estariam com Ele aqui na terra por um período de mil anos. Porém, a
idéia de morrer ainda era algo temeroso. Aparentemente, os membros do
Comando Tribulação que morressem durante o ano seguinte seriam
mártires pela causa de Cristo, mas seus parentes e amigos chorariam por
eles, sentiriam saudades deles. E, pior ainda, Rayford não queria pensar
como seus queridos morreriam.
Talvez o sofrimento não durasse muito tempo, mas ninguém
gostaria de imaginar uma pessoa querida sendo submetida a torturas ou
agonizando.
Pai, Rayford orou, permite que o pior que possa acontecer seja
uma nova mudança para outro local. Não sou melhor que ninguém para
merecer um tratamento especial, para que protejas minha filha de
maneira sobrenatural. Tu não necessitas dela; não necessitas de nenhum
de nós. Mas nós nos entregamos a ti e confiamos que sabes o que estás
fazendo.
***
Jock era um homem alto e corpulento. Trajava uma farda que um
dia lhe serviu, mas agora estava tão apertada que lhe dificultava os
movimentos. Seus funcionários tiraram Chloe da pequena cela em que
ela se encontrava e a levaram para um cômodo um pouco maior, a sala
dele. Sentado diante de uma mesa de metal, Jock apontou para uma
cadeira, e Chloe sentou-se à sua frente.
Ele colocou uma pasta do tipo sanfona em cima da mesa e tirou o
paletó, deixando-o sobre o encosto da cadeira. Parecia exausto e soltou
um longo suspiro.
- Febe Evangelista. De onde você tirou esse nome? Chloe o
encarou. Ela notou um sotaque australiano e viu o número 18 em sua
testa. No dorso da mão direita havia uma tatuagem com o rosto de
Nicolae Carpathia.
- Você se importa se eu fumar?
Chloe ergueu as sobrancelhas e movimentou a cabeça
afirmativamente.
- Bem, eu não quero saber se você se importa ou não. Tenho
muito trabalho para fazer hoje, moça, e você está me atrapalhando.
- Vá direto ao assunto - disse Chloe.
- Ah!, ela fala - ele disse, tirando um pequeno charuto do bolso. -
Pensei que você fosse uma daquelas que não gostam de falar. Bem, meu
serviço agora é você, e você não foi uma boa garota. Mentiu para meus
funcionários, não?
-Sim.
- Você quer dizer alguma coisa ou quer que eu conte o que nós
descobrimos?
Chloe encolheu os ombros.
- Não vamos extrair nada de você, vamos?
- Não.
- Demorou um pouco, mas conseguimos. Além de estarmos com
falta de pessoal, nossos sistemas estão com problemas e...
- Isso me corta o coração.
Jock pegou uma pasta.
- Pelo que descobrimos, imagino que isso seja verdade. Tenho
boas e más notícias esta manhã, Sra. Williams. Qual você prefere?
Então, era isso. Em poucas horas ela foi identificada pelas
impressões digitais e pela leitura feita em seus olhos.
- Você jamais vai me dar uma boa notícia.
- Não seja precipitada. Somos pessoas razoáveis, por mais que
você e seu pessoal pensem ao contrário e por mais que tentem
convencer aquele rebanho todo que segue um maluco chamado Ben-
Judá.
Tsion tem muito mais cérebro que dez homens da CG juntos.
- Tenho uma proposta a lhe fazer, senhora.
- Eu não quero ouvi-la.
- É claro que quer.
- Vou adivinhar. Minha liberdade em troca de algumas
informações?
- Você pode brincar de sabichona comigo, mãe, mas acho que
deveria me ouvir, porque a proposta que vou fazer tem relação com seu
bebê.
CINCO
O submundo do mercado negro em que Albie viveu compunha-se
de uma lista de operadores que, em sua maioria, eram conhecidos por
apelidos e iniciais. O próprio Albie havia escolhido para si o nome de sua
cidade natal, Al Basrah. As pessoas que necessitavam saber quem ele
era não tinham muitos problemas para obter informações a seu respeito.
Albie havia sido um dos três principais homens do mercado negro
do Oriente Médio. Depois de sua conversão, restaram apenas dois. E
com a morte de um deles, possivelmente levada a efeito pelo outro em
razão de um mau negócio, restou apenas um. E era aquele que Albie
precisava encontrar.
Ele nunca gostou de MM, ou Mainyu Mazda, mesmo nos tempos
em que fazia parte daquele grupo. Matar nunca foi novidade para Mainyu.
Era assim que ele mantinha sua reputação e autoridade. Se alguém
precisasse de alguma coisa, qualquer coisa, ele era a pessoa certa. Mas
pobre daquele que tentasse ludibriar ou passar aquele homem para trás.
Diziam que ele havia assassinado, com as próprias mãos, 12
pessoas - entre elas uma de suas esposas - por não cumprirem sua parte
em uma barganha. Ninguém se atrevia a calcular quantas mortes ele
perpetrara por intermédio de assassinos contratados.
Quem afirmava saber o número certo dizia que Mainyu
comemorava cada morte acrescentando a tatuagem de um MM no próprio
pescoço. Sua vida de assassino começou 20 anos antes quando ele
estrangulou um guarda em uma prisão do Kuwait.
A primeira tatuagem foi aplicada por ele próprio, usando uma
mistura de aparas de borracha das solas de seus sapatos, lascas da
pintura das grades da prisão e sangue. A aplicação foi feita com um clipe
de papel afiado, aquecido em um isqueiro. Ele tatuou o primeiro MM logo
abaixo do pomo de Adão.
A cada assassinato subseqüente, ele tatuava um MM de um lado
e de outro, portanto todos tinham condições de saber se o número de
pessoas mortas por ele era par ou ímpar.
Na última vez que Albie viu Mainyu, seu pescoço tinha um MM a
mais do lado esquerdo, e ele contou 12. As tatuagens recentes eram mais
nítidas e feitas por profissional. A que representava uma de suas esposas
tinha um leve toque feminino.
Albie propagou pelas ruas que queria ter uma conversa com
Mainyu. Depois de duas horas, alguém enfiou um bilhete por baixo de sua
porta contendo um endereço na área clandestina do comércio de rua da
ilha de Abadã, localizada no rio Chat el Arab, na região sudoeste do Irã.
Parecia que MM farejava dinheiro. A imensa refinaria de Abadã
era ligada aos campos petrolíferos do Irã por meio de oleodutos.
Evidentemente, Mainyu realizava seu comércio de mercado negro nos
arrabaldes da cidade.
Da mesma forma que todos os que não possuíam a marca de
lealdade a Carpathia, Albie só se aventurava a sair à noite. Ele e Mac
dividiam um flat em uma área abandonada de Al Basrah. O proprietário
não queria saber quem eram os inquilinos, nem se tinham a marca de
Carpathia, desde que o envelope estivesse recheado de dinheiro no
primeiro dia de cada mês.
Albie dissera a Mac que uma motoneta era o melhor veículo para
transportá-los de um lado para o outro pelo fato de ter um tamanho ideal
para ser guardada dentro de casa ou na mata, onde eles escondiam um
avião de pequeno porte.
Albie aguardaria o sol se pôr antes de aventurar-se a entrar em
uma balsa que o levaria com a motoneta para a ilha, onde ele encontraria
o endereço que ficava a uns 50 quilômetros de distância de sua casa.
***
Quando Jock, o grandalhão, resmungou que a hora do desjejum
de Chloe havia se esgotado, ela começou a salivar.
- Você já deve ter compreendido, madame, que não servimos
refeições a prisioneiros que não cooperam conosco. Ah!, talvez você
receba uma barra de cereal para mantê-la viva até o momento de sua
execução. - Ele deu uma batida de leve no arquivo. - Não posso ter
certeza enquanto não receber notícias da divisão internacional, mas tudo
isto aqui me faz pensar que assistiremos a um espetáculo. Você não
acha?
- Isso não é da minha conta.
- Mas seu bebê... como ele se chama?
Chloe nivelou os olhos com os de Jock e comprimiu os lábios. Ela
adorava pronunciar o nome de seu bebê. Kenneth Bruce Williams. Kenny
Bruce. Kenny B. Mas não diria nada àquele homem. Não havia nenhum
registro oficial do nascimento de Kenny, e a CG não tinha idéia se o bebê
era menino ou menina.
- Que mal pode haver se eu souber o nome dele?
- Febe Evangelista Filha.
Jock olhou para o teto.
- Sabe de uma coisa? Não achei graça alguma. Nem me causa
surpresa, porque estou acostumado a lidar com gente da sua laia. Dizem
que vocês são pessoas admiráveis, que perseveram até o fim, mesmo
sabendo que vão sair perdendo. Mas achei que você fosse uma pessoa
religiosa... Vamos lá, você não é religiosa? Achei que ficaria um pouco
preocupada com o destino de seu bebê. É uma menina? Que idade ela
tem?
- Olhe - disse Chloe -, você sabe quem eu sou, o que sou e o que
não sou. Sabe que não sou leal a Carpathia. Isso é punível com a morte,
portanto por que você não...
- Ei, espere um pouco, madame. Essas coisas ainda são
negociáveis. Não tire conclusões precipi...
- Não vou fornecer informação alguma para reduzir minha
sentença. Não estou interessada em passar a vida na prisão. Não vou
receber a marca mesmo que você prometa liberdade para minha família.
E todo mundo sabe que os que estão recebendo a marca agora também
são executados.
- Oh!, onde você ouviu isto? É terrível. E uma mentira também.
- Não acredito em você.
Jock recostou-se na cadeira e gritou:
- Nigel?
- Sim.
- Você poderia abrir a janela? Está muito abafado aqui. Um jovem
fardado entrou na sala e abriu uma janela deixando pesadas barras de
ferro à mostra. Não haveria meios de fugir dali.
- Considero justo mencionar o que tenho a lhe oferecer -
prosseguiu Jock. - Veja, sabemos muito mais coisas além de seu nome.
Sabemos que você abandonou a Universidade de Stanford seis anos
atrás. Sabemos que você é filha do primeiro piloto do potentado
Carpathia. Sabemos, e você também sabe, que seu pai se tornou
subversivo e que deve ter tramado o assassinato do potentado ou
participado dele.
- Seu marido também foi funcionário de Sua Excelência e agora
publica uma revista clandestina. Os dois têm fortes ligações com Tsion
Ben-Judá e Rosenzweig, o assassino traidor. E você, Sra. Williams, não é
nenhuma santinha. Não. Você dirige um mercado negro judaísta. Esse
mercado negro mantém vivos milhões de pessoas sem a marca, gente
que não tem o direito legal de comprar ou vender.
- Não, madame, você não tem direito a nada, a nenhuma troca,
nenhum favor, nada, nem mesmo para seu filho. Porque, acima de tudo,
você esteve envolvida em uma operação na Grécia onde se fez passar
por uma oficial da Comunidade Global.
- Como você sabe disto? - Chloe deixou escapar, sem pensar.
Haveria um espião no meio do Comando Tribulação? Ela nunca
desconfiou de ninguém.
- Só vou responder se você me contar algumas coisas.
- Para mim, tanto faz.
- Foi por causa da maravilha da tecnologia que faz a leitura da íris.
As câmeras normais de segurança, como aquelas que existem em
nossos escritórios em Ptolemaïs, foram capazes de fazer uma leitura de
sua íris e compará-la com uma anterior, quando você se matriculou na
Universidade de Stanford. Essa tecnologia tem pontos de referência em
número quatro vezes maior que as impressões digitais, e nunca houve
um erro sequer. Um sujeito do grupo de vocês matou uma pessoa de
nossa corporação naquele mesmo edifício, e perdemos o paradeiro dele.
Mas agora ele está vivendo nesta cidade, não é mesmo? A que distância
daqui? Muito longe do lugar em que você estava correndo?
***
Buck mal podia acreditar no que estava ouvindo. E aquelas
palavras partiam de Sebastian, que estava ali graças aos atos heróicos e
altruístas do Comando Tribulação, principalmente de Chloe.
- Não é fácil dizer isto, Buck - prosseguiu George. - Mas temos de
pensar que estamos pondo em risco a vida de 200 pessoas para salvar
apenas uma, e as probabilidades são quase nulas.
- Você está supondo que a CG a pegou - disse Buck.
- Ela pode estar em outro lugar qualquer. E mesmo que você
tenha razão, por que as probabilidades de agora são mais remotas do
que a sua, na Grécia?
- Eu sei, Buck. E não pense que quero ficar aqui sem fazer nada.
Mas existe uma grande diferença agora. O prisioneiro naquela situação
era um homem grande e forte, treinado para matar. Depois de tudo o que
Mac, Hannah e Chloe fizeram por mim, fiquei frente a frente apenas com
um de meus captores. Até mesmo naquela situação as probabilidades
eram remotas, e poderia ter dado tudo errado. Se eu falhasse,
comprometeria os três. Perderíamos quatro pessoas. Se invadirmos a
sede daqui, vamos pôr tudo a perder.
- E daí? Você acha que devemos deixar Chloe apodrecendo aqui
enquanto nos mudamos para Petra?
***
- Veja o que tenho em mente para seu bebê, Sra. Williams - disse
Jock -, caso você recupere o juízo e nos ajude um pouco. Acho que você
prefere que seu filho ou filha continue a ser educado da maneira
tradicional, como você e seu marido têm feito até agora. É claro que isso
vai contra os nossos objetivos. Queremos ver todas as crianças fazendo
parte da CG Júnior antes de se matricularem na escola. Mas, no seu
caso, estamos dispostos a fazer de conta que ele ou ela não existe, até
completar 12 anos.
- E quem vai educá-lo? - perguntou Chloe, piscando ao perceber
que a fome era uma tática excelente.
- Ah!, então estamos falando de um menino. Muito bem. Não quer
me dizer o nome dele? Assim, será mais fácil levarmos nossas
negociações adiante.
Chloe não respondeu. Aquilo não era nenhuma negociação. Ela
só precisava proteger Kenny por mais um ano, e a CG não poria as mãos
nele.
- Ora, vamos, Sra. Williams. Você é uma mulher inteligente. Sabe
que é muito valiosa para nós. Os judaístas têm sido um transtorno e, devo
admitir, um constrangimento para nós. Temos quase certeza de que seu
pessoal está por trás desse nosso probleminha em Nova Babilônia. Você
pode nos ajudar. Não sou tão ingênuo a ponto de pensar que você deseja
fazer isso, mas estou tentando apresentar-lhe um motivo. Você tem
muitas coisas para negociar conosco.
- Posso me levantar?
- Pode, mas devo avisá-la de que está trancada aqui. Sou três
vezes maior que você, mas só por brincadeira, digamos que você me
domine, que me jogue no chão, que quebre meu pescoço e me mate.
Mesmo assim, não vai sair daqui.
- Eu só quero movimentar um pouco o corpo, senhor.
- À vontade. E pode me chamar de Jock.
Ah!, agora você passou a ser meu melhor amigo.
- Ei, você quer comer alguma coisa?
- Claro.
- Eu também. O que deseja para o desjejum?
- Qualquer coisa. Não sou exigente.
- Mas eu sou. Gosto de coisas que entopem as artérias. Ovos,
bacon, lingüiça, torradas, panquecas com molho à beça. Você aceita?
Ele devia estar brincando. Chloe levantou-se com os braços
cruzados e virou-se para trás.
- Ora, vamos. Não consigo que você me chame pelo primeiro
nome. Não consigo que você me diga o que quer comer. Que tal? Vai me
fazer companhia? Vai querer o mesmo que eu?
- Eu já disse. Não sou exigente.
- Você também disse que estava com fome. Vou pedir o desjejum
para nós, viu, Chloe? Você se importa se eu a chamar de Chloe?
- A bem da verdade, eu me importo.
- Ah!, está bem, que seja assim. Você é a figura principal daqui.
Quero saber o que você deseja. Se o travesseiro de sua cela não estiver
macio, me avise. Ou avise a recepção.
Então, o jogo ia começar. Chloe o convencera de que não ia
cooperar, e ele agora se fingia de policial bonzinho. Ou não seria
fingimento? Jock passou por ela e chamou Nigel novamente. Chloe o
ouviu pedindo a comida que descrevera. Ele virou-se para ela.
- A comida servida aqui é a mesma que servimos nas celas,
Chloe, mas até os garçons estão sobrecarregados de serviço. Vamos
conversar enquanto aguardamos. Vejo que você não é uma pessoa
maleável. Eu não esperava que fosse. E não a respeitaria se fosse. O
acordo é o seguinte. Você sabe que não vamos libertá-la mesmo que nos
conte tudo. Como ficaríamos perante o público? Mas posso transformar
sua execução em prisão perpétua e mandá-la para uma penitenciária
onde você viveria em melhores condições. Eu lhe dou minha palavra.
Seria uma penitenciária de segurança máxima, é claro, mas seu filho
ficaria sob sua guarda até completar 12 anos.
O fato era que Kenny estava seguro com Buck, e se ela
conseguisse manter a sanidade, a situação não precisaria ser mudada.
Se ao menos ela pudesse alertar Buck para ele tirar todos do esconderijo
e levá-los para Petra!
Chloe sentiu uma leve tontura provocada pela fome.
- E esse acordo seria em troca de...?
- Receber a marca de lealdade seria o ponto principal. Sem isso,
nossa credibilidade iria por água abaixo. Com a marca, você continuaria a
viver em vez de morrer. Mas, se quiser ir para uma penitenciária melhor e
ter a guarda de seu filho, terá de nos contar o que sabe.
- Você deve estar achando que vou delatar meu pessoal.
- Estou, e sabe por quê? Porque você é uma mãe amorosa. Pensa
que seu pessoal não a entregaria em questão de minutos para não ter a
cabeça decepada pela lâmina da guilhotina? É melhor colaborar comigo.
***
Albie sentia um frio na espinha enquanto atravessava Abadã em
sua motoneta, com os olhos quase cobertos pelo boné. Al Basrah não era
um lugar melhor que aquele, mas Abadã talvez pudesse ser comparada a
Sodoma e Gomorra antes de Deus incendiar as duas cidades.
Nas ruas, eram praticadas todas as formas de pecado e
devassidão. O local que antes foi o lado mais sujo da cidade era, agora,
seu centro comercial. Filas e mais filas de bares, bandos de cartomantes,
prostíbulos, sex shops e clubes destinados a satisfazer a qualquer tipo de
perversão fervilhavam, oferecendo bebidas e mercadoria humana. O ar
estava impregnado de odor de haxixe. Vendia-se cocaína e heroína em
plena luz do dia.
Os soldados das Forças Pacificadoras e os Monitores de Moral da
CG costumavam fazer uma ruidosa batida policial duas vezes por semana
para manter as aparências. Mas com a redução do número de pessoal,
eles agora se concentravam em crimes contra o governo. Se alguém não
se curvasse diante da imagem de Carpathia três vezes por dia ou
deixasse de reverenciá-la, seria levado à prisão.
E se fosse pego sem a marca de lealdade? Tolerância zero. A CG
gostava de brincar com o povo dizendo que eles teriam uma última
chance. Quando uma alma profundamente agradecida se aproximava
ansiosamente do centro de aplicação da marca, era empurrada ou
arrastada, aos gritos, até a guilhotina para servir de exemplo.
Além da sujeira existente em Abadã, havia uma parte da cidade
que era pior ainda: o local onde Mainyu Mazda e seu bando exerciam seu
comércio. No mercado ao ar livre, onde as pechinchas e as trapaças
faziam parte do dia-a-dia, havia espeluncas camufladas, feitas de tábuas,
que consistiam apenas de paredes sem teto e uma porta com tranca. Um
encerado, jogado a um canto, poderia ser rapidamente preso a quatro
estacas para protegê-los da chuva.
Os homens do mercado negro e seus sequazes (um deles sempre
ficava de guarda do lado de fora) realizavam suas transações dentro
daquelas espeluncas, reunidos com pessoas que desejavam alguma
coisa, qualquer coisa, e estavam dispostas a pagar um preço alto para
consegui-la. Sem descer da motoneta, Albie desligou o motor e foi
arrastando o veículo com os pés pelos becos da cidade.
Em meio a bêbados dormindo havia também pessoas dementes,
mulheres de má reputação, homens e mulheres que vendiam
mercadorias das mais variadas espécies. Todos acenavam para o
homem franzino com roupa de couro que passava por eles arrastando a
motoneta.
Albie não olhava nem para a direita nem para a esquerda; seguia
seu caminho sem fitar ninguém nos olhos. Sabia aonde estava indo e
queria que todos soubessem. Não conseguia esconder certo orgulho ao
ver que seus negócios nunca chegaram a uma situação tão lastimável.
Evidentemente, o que Albie havia feito durante anos era ilegal, e não
havia justificativas para isso. Mas comparado ao que via agora, ele
trabalhara com dignidade. Construíra uma pista para aeronaves - sua
obra mais importante. E sua clientela era composta de homens de
negócio abastados e pilotos, bem como de gente de baixo nível e
trapaceira.
Porém, ele conhecia esse mundo e sua linguagem. Necessitava
da ajuda de um sujeito de má índole, mas que conhecesse pessoas
importantes. Precisava de alguém que mantivesse contato com o palácio
e soubesse onde seriam realizadas as reuniões em Al Hillah. Alguém que
pudesse informar onde estavam armazenadas as ogivas nucleares.
Alguém que, antes da chegada de Carpathia e seus asseclas, pudesse
entrar na sala de reuniões e instalar uma escuta clandestina ali, para
transmitir tudo em uma freqüência à qual apenas uma pessoa no mundo
teria acesso. Só Albie e seus companheiros sabiam quem era essa
pessoa: Chang em Petra.
Se dispusesse de um dia a mais, Albie poderia fazer esse serviço
com a ajuda de seus contatos, pessoas que apresentavam menos riscos,
menos problemas. Mas havia ocasiões na vida de um homem em que ele
precisava analisar suas opções e jogar o dado. E embora essa analogia
fosse estranha na nova vida em que ele levava, a ocasião havia chegado.
***
- Por favor, sente-se à mesa enquanto a porta vai ser aberta
brevemente, Chloe - disse Jock.
O aroma da comida era tentador, e ela sentou-se de costas para a
porta.
- Coloque aqui, Nigel, por favor.
Jock sentou-se de frente para ela, atirou um guardanapo a Chloe,
prendeu o seu, em grande estilo, acima do nó da gravata e abriu-o para
cobrir todo o seu peito e barriga. Chloe desdobrou seu guardanapo e
abriu-o sobre o colo enquanto Nigel ajeitava a bandeja abarrotada de
comida entre os dois.
Nigel colocou uma pilha de panquecas diante de Jock. Um jarro
com molho. Um prato com torradas, manteiga e geléia. Uma xícara
grande na qual ele despejou café fumegante, deixando o bule sobre a
mesa. Um prato enorme de ovos mexidos com bacon e rodelas de
lingüiça. Os talheres de Jock foram colocados ao lado do prato principal.
Em seguida, Nigel colocou uma faca, um garfo e uma colher
diante de Chloe. E ela continuou sentada ali, tendo apenas os talheres à
sua frente e o guardanapo no colo. Nigel pegou a bandeja vazia e saiu,
trancando a porta.
Jock esfregou as mãos e disse, mostrando os dentes:
- Não é uma maravilha? Nem sei por onde começar. - Ele puxou
os pratos para perto de si, pegou a faca e o garfo e ajeitou os ovos
mexidos para dar a primeira mordida. - Ah!, desculpe-me. Onde estão
minhas boas maneiras? Você quer agradecer a comida? Pedir a bênção?
Não? Então, eu mesmo faço isso. Obrigado, Excelência, pela delícia que
vou apreciar.
Jock enfiou um bocado enorme de ovos na boca, depositou-o na
bochecha direita para dar lugar a uma nova garfada de rodelas de
lingüiça, e falou com a boca cheia.
- Acho que Nigel se esqueceu da sua comida, não é mesmo,
Chloe? Ah!, mas está tudo bem. Você não está cooperando, certo? O
problema é seu.
O homenzarrão continuou sentado, lidando com a faca, o garfo e a
colher, lambendo os beiços, sorvendo o café com força e rindo.
- Tem certeza de que não quer um pouco? Não quer mesmo?
Está uma delícia. Mas o problema é seu. Se você cooperar, Nigel vai ficar
de olho em você, e aquela barra de cereal para dar energia será entregue
em sua cela, digamos dentro de uma hora, talvez duas, depois que você
desistir de lutar contra nós. E energia talvez não seja a palavra certa. A
barra de cereal vai servir para manter você viva até ser executada. Ela
apenas nutre, mas não proporciona energia. Mas você vai adorar comer
uma barra daquelas e aguardar ansiosamente por ela. Não vamos servir
bacon com ovos, e essas barras de cereais serão seu único alimento.
***
Albie parou diante de uma pequenina estrutura que parecia ser
feita de uma mistura de tábuas amarelas desbotadas com fios de arame e
pregos. A tranca ficava à mostra na porta, guardada por um homem alto e
magro que Albie reconheceu de anos antes. E, se Albie não estivesse
enganado, o nome do homem era Sahib, ex-cunhado de Mainyu. Excunhado
porque era irmão da esposa que Mainyu assassinara. Que
lealdade!
Albie desceu da motoneta e estendeu a mão. Sahib não estendeu
a sua e olhou-o de esguelha na escuridão.
- Está querendo vender essa moto? Veio ao lugar certo.
- Não. Quero falar com Mainyu, Sahib.
Ao ouvir seu nome, Sahib olhou firme para ele.
- Albie?
Agora o homem estava apertando sua mão. Ele levantou um
dedo, destrancou a porta e entrou. Albie ouviu uma conversa firme, em
voz baixa. Um desconhecido de olhar frio saiu dali e foi embora
apressado.
Sahib reapareceu e fechou a porta atrás de si.
- Aguarde dois minutos, Albie - ele disse, fazendo um gesto para
indicar que Mainyu estava falando ao telefone. - Cinqüenta Nicks para
tomar conta de sua moto.
- Vinte.
- Vinte e cinco.
- Combinado. Mas se ela não for encontrada do jeito que a deixei,
abro sua cabeça ao meio.
- Eu sei, Albie. Pagamento adiantado.
- Dez agora, quinze depois.
- Quinze agora.
Albie contou as notas. Ele esperava que haveria negociação, até
mesmo ameaças. O ruído de alguém limpando a garganta, vindo de trás
da porta, foi a deixa para Sahib permitir a entrada de Albie. Antes de
acompanhar Sahib, Albie avistou uma pequena mulher aparecer diante
deles, vindo de um cubículo a uns 30 metros dali.
- Espere - disse Albie. - Sahib, tome conta da moto.
- Eu disse que ia tomar conta. Ah!, ela é uma convidada que vai
participar da reunião.
A mulher jovem de olhos grandes e olhar severo, trajando um
manto da cabeça aos pés, tinha o número 42 na testa e carregava uma
sacola. Assim que Albie entrou, Sahib a empurrou para dentro, saiu e
trancou a porta.
Mainyu, iluminado por uma lâmpada movida a bateria, estava
sentado atrás de uma frágil mesa de madeira, tendo uma caneca diante
de si. Ao sorrir, ele exibiu uma fileira de dentes surpreendentemente
brancos.
- Albie, meu amigo, como vai? - ele disse, estendendo as duas
mãos.
- Vou bem, Mainyu. Mas devo insistir que meu assunto com você
é particular.
- Como sempre, claro. Por favor, sente-se.
Albie sentou-se em uma cadeira dobrável de metal enferrujado. A
mulher deu a volta na mesa, pegou uma caixa de madeira em um dos
cantos e sentou-se em cima dela, abrindo a sacola. Albie olhou para
Mainyu e ergueu a cabeça em direção à mulher.
- Ela? - perguntou Mainyu, com ar de pouco caso. - É uma artista
em tatuagens. Não tem ouvidos nem boca.
A mulher sorriu enquanto retirava seus instrumentos da sacola e
segurou a lâmpada diante de Mainyu para iluminá-lo melhor. Ele levantou
o queixo e, com a ajuda de uma mecha de algodão, ela aplicou um líquido
desinfetante em uma pequena área de seu pescoço onde uma tatuagem
igualaria os números de um lado com o do outro.
- Você sabe o que dizem sobre minhas tatuagens, não, meu velho
amigo?
Albie sorriu.
- Todo mundo sabe o que elas significam.
- Bem, verdade ou não, elas funcionam, certo?
- Sim. É verdade, Mainyu?
- Claro.
- Quem foi a ultima vitima?
- Você está perguntando quem vai ser?
- Como assim?
- Às vezes, eu providencio a tatuagem antes.
***
Mesmo contra a vontade, Rayford havia cochilado. E enquanto o
Gulfstream voava rumo aos Estados Unidos, ele começou a vasculhar
suas sacolas.
- O que está havendo, Ray? - perguntou Mac.
- Que horas são em Nova Babilônia?
- Perto de 22 horas.
- Então a manhã deve estar terminando em San Diego, e nada de
notícias. Buck prometeu ligar se eles tivessem descoberto onde Chloe
estava. Você se lembra do número principal do palácio?
- Eu nunca soube. E você?
- Sabia em épocas passadas.
- Deve ser fácil conseguir. Mas não há mais ninguém de nosso
pessoal lá, Ray. Você quer falar com alguém em Petra?
- Não. Você se lembra do que David ou Chang disseram? Que é
impossível rastrear esses telefones?
- Disso eu me lembro.
Mac passou a Rayford a combinação de símbolos e números por
meio dos quais ninguém poderia identificar de que local partiam as
chamadas via satélite feitas por aqueles telefones.
Rayford digitou o número da operadora internacional.
- Palácio da Comunidade Global em Nova Babilônia, por favor -
ele disse.
- Estou tentando completar a ligação - disse a telefonista -, mas lá
não há luz, portanto é provável que o senhor tenha de aguardar um
pouco.
- Obrigado.
- Você ligou para o Palácio da Comunidade Global em Nova
Babilônia. Por favor, tenha um pouco de paciência. Em razão de
problemas técnicos, pode ser que sua chamada não seja atendida
imediatamente.
E lá estava Rayford ouvindo novamente o "Salve Carpathia"
cantado pelo grande coral.
- Droga! - ele disse.
- Comunidade Global, para quem devo direcionar sua chamada?
- Krystall, por favor.
- No escritório do potentado?
- Claro.
- Senhor, já é noite aqui. Todos os escritórios estão fechados.
- Eu sei. Ligue para o apartamento dela, por favor.
- Posso saber quem deseja falar com ela?
- Eu mesmo digo.
- Eu preciso saber, senhor, caso contrário não vou acordar
ninguém a esta hora.
- Já que você precisa saber, diga a ela que é o tio Gregory.
- Um momento.
Mac olhou para Rayford, sem entender nada.
- Tio Gregory?
- É uma longa história.
- O vôo também vai ser longo. Não vejo a hora de saber do que se
trata.
- Tio Gregory? - disse Krystall, com a voz rouca por causa do
sono.
- Esta linha é segura? - perguntou Rayford.
- Acho que sim. Não sei. Você não é meu tio, é?
- Você sabe quem está falando.
- Você nunca me disse o seu nome.
- Você sabe que sou seu amigo.
- Só vou saber de verdade se você ajudar meu tio. Já transmiti seu
recado a ele.
- Já? Ele está acompanhando o site?
- Acho que sim.
- Pode acreditar em mim. Se seu tio fizer contato, nosso pessoal
vai conseguir tudo o que ele necessitar.
- Eu agradeço, mas por que você está ligando...
- Preciso de um favor.
- Eu sabia. Não posso...
- Peço que me deixe falar. Quando conversei com você, não tinha
idéia de que necessitaria de um favor. Eu preciso de uma informação que
só você pode me fornecer.
- Eu não posso fornecer infor...
- Trata-se de uma coisa relativamente simples - ele disse -, mas
não quero criar problemas para você.
- Ah! E qual é a diferença? Tanto faz. Ser obediente a ele também
não está resolvendo nada.
- Eu preciso saber se existe alguma notícia sobre a prisão de
alguém muito importante nos Estados Unidos Norte-americanos, uma
mulher jovem...
- Sim! Sim! Foi no final do dia, algumas horas depois do
encerramento do expediente. Ainda estávamos trabalhando por causa da
mudança amanhã à tarde. O Sr. Akbar chegou todo eufórico falando
sobre uma prisão em San Diego. A CG de lá prendeu alguém que tinha
ligações com os judaístas.
- Você sabe se eles estão planejando...
- É tudo o que eu sei. Verdade.
- Você não faz idéia do quanto me ajudou Krystall. Existe alguma
coisa que eu possa fazer por você?
- O que, por exemplo?
- Eu só gostaria...
- Se você puder me enviar um par de olhos... Não me lembro de
outra coisa mais importante.
SEIS
A artista em tatuagem calçou luvas de borracha e perguntou a
Mainyu Mazda, com sotaque indiano, se ele queria anestesia. O homem
recuou o corpo e olhou para ela.
- Eu nunca sei - ela disse. - Cabeça para trás, queixo levantado.
Albie sabia que seria bizarra uma reunião com aquele homem
nessa parte da cidade, mas nunca imaginou que teria de disputar espaço
com um procedimento dermatológico.
- Vá em frente, meu amigo - disse Mainyu, gesticulando. - Você
veio aqui para quê?
Albie inclinou-se para a frente, com os antebraços pousados na
mesa, e contou a MM sobre o serviço que necessitava ser feito
urgentemente em Al Hillah.
O aplicador de tatuagem movido a bateria emitia um clique alto e
rápido enquanto a mulher trabalhava. Mainyu estremecia o corpo mas
tentava animar Albie a prosseguir, balbuciando "hã, hã" e "hum".
Finalmente, ele disse:
- Um momento, Kashmir.
A mulher afastou-se e ficou segurando a agulha sob o brilho da luz
da lâmpada.
- Não é segredo para ninguém que você não é amigo do
potentado - disse MM.
Albie sorriu.
- Espero que seja segredo em alguns lugares.
- Por que não autoriza Kashmir a aplicar a marca de lealdade em
você? Escolha o número que quiser.
- Você sabe que não posso fazer isso, Mainyu.
- Ah! Sim. Agora você é judaísta e acredita em espíritos malignos.
- Espíritos malig...?
Mainyu fez um gesto de pouco caso.
- O seu pessoal não acredita que qualquer um que tenha a marca
de Carpathia vai para o inferno ou algo parecido?
- O mais importante de tudo é a quem nós somos leais. MM olhou
para Kashmir, recostou-se na cadeira e sorriu para Albie. Em seguida,
soltou uma sonora gargalhada.
- Você não vai começar a falar dessas coisas para mim, vai, meu
velho amigo? Estou achando que sim.
- Não, você já fez a escolha. Eu também gostaria de saber por que
você tem um 72 e não um 216.
- Você acha que sou amigo do regime internacional?
- Bem, eu...
- Acha que minha marca é autêntica? Você me conhece muito
bem.
Depois de dizer isso, ele cuspiu.
- Mas a punição para uma marca falsa é pior que a morte - disse
Albie.
- Tortura em público, eu sei - disse Mainyu. - Mas a CG não está
interessada em mim. Só quer saber como posso ser útil a eles. Se eu
fosse exibir a marca de alguém a quem sou leal, teria de ser o número 1..
O que dizem os nossos amigos mexicanos, Albie? "Preste atenção ao
número uno!". E se eu não fosse útil à CG, seria enviado para a planície
de Jezreel da mesma forma que outros milhões de pessoas. Que tipo de
negócio eu poderia fazer lá?
- De que forma você é útil à CG?
Kashmir limpou um filete de sangue que escorria no pescoço de
Mainyu.
- Sou um homem de negócios, Albie. Procuro obter lucro máximo
gastando o mínimo, e agora estou ganhando muito dinheiro.
- Você...
- Entrego desleais às Forças Pacificadoras. Claro que faço isso.
Você quer saber quanto ganho com esse tipo de negócio? Vinte mil Nicks
por cabeça. O preço é igual tanto para vivos quanto para mortos. Prefiro
mais entregar gente morta. Quando a vítima morre, não há mais perigo,
ela não pode mais fugir, não pode criar problemas. Um saco plástico de
tamanho correto evita qualquer tipo de sujeira no carro. Está entendendo?
- Então, você é um fornecedor de...
- Para a CG, sim, claro. Se o lema dos homens de negócios é
pouca despesa e alto lucro, que melhor coisa pode haver quando não
gastamos nada e ainda saímos lucrando? Eles estão dispostos a pagar
pelo que eu faço.
Albie gostaria de saber quantos judaístas foram vítimas de
Mainyu.
- Quer dizer que meu pedido apresenta um conflito de interesses
para você? - perguntou Albie.
- Claro que não, meu amigo! Desde que você tenha trazido
dinheiro. Não sou amigo da CG. Simplesmente faço negócios com eles.
Meu interesse é lucro.
- Eu não sabia quanto custava esse tipo de serviço.
- Ah!, sim, você sabia. Não faz muito tempo que abandonou seus
negócios. E é claro que não esperava que eu aceitasse seu pedido sem
ver todo o dinheiro na minha frente. Além de tudo, você está pedindo um
serviço urgente.
- Você tem gente para fazer isso, equipamento e...?
- Você sabe que tenho tudo. O serviço vai ser feito. Desde que
você tenha o dinheiro.
- Alguns anos atrás, um serviço como esse custava 20 mil Nicks -
disse Albie.
- Então, suponho que você trouxe mais, considerando a inflação e
a natureza urgente do pedido.
Albie hesitou.
- Claro que trouxe, e você não vai cometer o erro de me enrolar,
porque sabe que é muito fácil para mim descobrir quanto dinheiro você
tem.
- É verdade. Eu trouxe 30 mil Nicks.
- Hummm.
- Claro que é suficiente. Cinqüenta por cento a mais deve cobrir a
inflação e a pressa.
- Não é suficiente - disse Mainyu. - Quero mais 20 mil.
Albie imaginou que o negócio estava prestes a ir por água abaixo.
Eles estavam na fase da pechincha, e qualquer grosseria de um dos
lados indicaria falta de respeito.
- Eu só trouxe 30 mil e é tudo o que estou disposto a pagar.
- Hã-hã. E está tudo com você ou uma parte ficou na moto?
- Você sabe muito bem que eu não faria isso, Mainyu. Quem
deixaria dinheiro nestes becos aqui?
Mainyu riu.
- Sahib!
O homem alto destrancou a porta e entrou.
- Quanto nosso amigo está pagando para você tomar conta da
moto dele?
- Vinte e cinco.
- Quanto ele ainda está devendo?
- Dez.
Mainyu virou-se para Albie.
- Você tem 30 mil mais os dez que deve a Sahib?
- Sim.
- Mais algum dinheiro?
- Uns trocados para a viagem de volta.
- Quero ver os 30 mil.
Albie enfiou a mão no bolso da jaqueta e tirou um maço de notas
embrulhado em papel celofane.
- Agora quero ver os dez que você deve a Sahib.
Albie jogou uma nota de dez em cima da mesa.
- Agora os trocados.
Do bolso esquerdo, Albie tirou algumas notas e moedas.
- Acho que tenho mais 15 - ele disse.
Mainyu comprimiu os lábios e levantou a cabeça, arqueando as
sobrancelhas para Albie.
- Ainda faltam 20 mil.
- Eu disse que estava disposto a pagar somente 30 mil.
- Então temos um problema. O que vamos fazer quanto aos outros
20?
Albie lutou para conter o riso. Sempre foi difícil barganhar com
Mainyu.
- Você está falando sério? - perguntou Albie. - Não vai aceitar os
30? Quer que eu procure outra pessoa para fazer o serviço?
- Ah, não! E deixar escapar o que está diante de mim? Não!
- E então, negócio fechado?
- Já está fechado, meu amigo. Pouca despesa e lucro alto.
Cinqüenta mil e alguns trocados sem gastar quase nada.
- Cinqüenta?
- Kashmir, ligue para o palácio, por favor. Chame o Sr. Akbar.
Sahib? Lembra-se do que aprendeu comigo sobre negócios? Soluções
criativas até se chegar ao ponto em que o negócio se torne lucrativo?
Sahib assentiu com a cabeça.
- Sim, Sr. Mazda.
- Sua arma, por favor.
Sahib entregou-lhe um revólver .44.
Mainyu Mazda levantou-o e girou-o nas mãos.
- Meu velho amigo e eu estamos separados por 20 mil Nicks, e a
solução é ele próprio. Qual é a recompensa por cidadãos sem a marca,
Sahib?
- Vinte mil.
- Somados aos 30, lucramos 50. Nem sequer vamos ter de fazer o
serviço.
Ele apontou o cano da arma entre os olhos de Albie e puxou o
gatilho.
***
O local de sua cela, pensou Chloe, era muito estranho. Consistia
de uma espécie de gaiola em um canto de um cômodo maior. Uma
prateleira grande de metal projetava-se da parede. Sua cama, ela
imaginou. Em um lugar bem visível, havia uma combinação de pia com
instalações sanitárias. Mas ela se preocupava com o que não havia ali.
Nada era movível ou removível. Não havia assento no vaso sanitário,
nem cobertor ou travesseiro. Nenhum material de leitura. Nada.
Atordoada pela fome, Chloe arrastou-se até a cama na parede e
deitou-se de lado, de frente para a porta. A cama era sustentada por tiras
trançadas de metal de cerca de dez centímetros de largura, que poderiam
ter cedido se ela pesasse uns 50 quilos a mais. Nem mesmo o sempre
presente Nigel estava à vista.
O cômodo em que a cela se encontrava estava bastante
iluminado, e os raios do sol atravessavam as janelas e as grades. Mas
tinha um aspecto desagradável, com seus azulejos, piso de linóleo e
barras de aço - tudo pintado com a tradicional cor verde.
Chloe queria gritar, dizer a alguém que estava com fome, mas o
orgulho sobrepujava o desconforto. Ela se sentou rapidamente quando
ouviu a porta ser aberta. Um homem com uniforme de agente
penitenciário entrou apressado. Em seu cinto havia alguns frascos de
produtos de limpeza ao lado de um telefone celular. Ele carregava um
trapo e tinha outro no bolso traseiro.
- Oh!, oi - ele disse. - Eu não sabia que havia alguém aqui.
- Você não tinha meios de saber - ela disse, jogando um pouco de
charme.
- Como assim?
- Eu estava andando por aí. Tranquei-me aqui como se fosse uma
idiota.
Ele riu. Seu sorriso era radiante.
- E você também teve a má sorte de estar usando um macacão
parecido com o de uma detenta. Que tragédia!
- Pois é, veja só - ela disse.
- Pode ser que você foi trancada aqui porque não tem gosto para
se vestir, não?
- Pode ser.
- Bem, eu só vim pegar um balde. Sucesso para você.
- Obrigada.
Ele pegou um balde em um dos cantos em que havia um aparelho
de TV preso à parede por um suporte e virou-se para sair. De repente, ele
parou e deu meia-volta.
- Eles permitiram que você desse um telefonema, não?
- Ah! Claro. Estou sendo tratada como uma rainha. Liguei para o
Papai Noel.
O homem depositou o balde no chão e aproximou-se da cela.
Olhou para a porta por cima do ombro e disse em voz baixa.
- Eu estou falando sério. Esta é a única coisa desagradável aqui.
Quero dizer, as pessoas recebem o que merecem por não terem aceitado
a marca, como você. Não sou tão ingênuo a ponto de pensar que elas
não devem ser julgadas por isso, mas o que aconteceu com o direito de
dar um telefonema? Isto aqui ainda é a América, não?
- Não é a América que conheci.
- Também acho. Ei, você gostaria de ligar para alguém?
- O quê?
- Mas prometa que não vai contar a ninguém, para não me criar
problemas.
- O quê? Ligar no seu telefone?
- Claro. Este aqui. - Ele tirou o celular do cinto e virou-o de lado
para passá-lo entre as grades. - Mas só uma ligação, e tem de ser rápida.
Depois, você precisa esconder o telefone. Ou deixá-lo no chão, do lado
de fora da cela, como se ele tivesse caído sem eu perceber. Volto daqui a
pouco.
- Você está falando sério?
- Sim. Que mal há? Vá em frente. Divirta-se, belezinha. Eu já
volto.
As mãos de Chloe tremiam enquanto ela se dirigia a um canto, de
costas para a porta. Então, eles pensam que sou uma idiota? Esta coisa
não deve estar funcionando, e se estiver, não vai funcionar aqui. Mas
valia a pena tentar. Ela precisava falar com alguém. Não queria correr o
risco de ligar para a casa secreta, imaginando que aquilo não passava de
uma trapaça e que qualquer chamada poderia ser rastreada. Chloe
discou o número de seu pai. Ele já devia estar em Petra.
***
Rayford ligou para o palácio e despertou Krystall novamente.
- Estive pensando em seu pedido - ele disse.
- Meu pedido?
- O par de olhos.
- Não brinque comigo.
- Não estou brincando. A idéia não me sai da cabeça. Talvez eu
conheça um par de olhos que você poderia usar. Você se lembra daquele
dia em que trocamos algumas palavras? Pouco antes, alguém abriu a
porta, fechou-a novamente e saiu correndo. Lembra-se?
- Como eu poderia esquecer? Foi quando você quase me matou
de susto.
- Ele também é crente, e pode enxergar aí em Nova Babilônia.
- Continue.
- Eu poderia falar com ele, convencê-lo a ajudá-la depois que
todos tiverem partido. Ele tem condições de ajudá-la, de dizer onde as
coisas estão, fazer tudo por você.
- O que você está querendo?
- Deve haver coisas nos arquivos que eu preciso saber.
- Muito mais do que você pensa.
- Está vendo? Ele a ajuda durante alguns dias ou pelo tempo que
for necessário, e você lhe dá acesso às coisas que podem me ajudar.
Combinado?
- E qual seria o interesse dele?
- Deixe por minha conta. Vou ligar para ele agora para ver se
podemos acertar tudo. Não, vou ligar para ele amanhã. Não faz sentido
despertá-lo.
- Não faz. Mas por que eu sou a única pessoa que pode ser
despertada a esta hora?
- Sinto muito. - Rayford ouviu um bip sinalizando que havia alguém
ligando para ele. - Aguarde um instante, Krystall. - Ele verificou o
identificador de chamadas. O código de área era de San Diego, mas ele
não reconheceu o número. - É melhor eu atender. Se conseguirmos
acertar tudo, vou pedir que o sujeito ligue para você.
Rayford apertou o botão de chamada duas vezes, terminou uma
ligação e atendeu a outra.
- Aqui é Steele.
- Papai, sou eu.
- Chloe!
- Por favor, só escute. Você ainda tem aquele recurso de gravação
em seu telefone?
- Tenho, mas...
- Acione-o imediatamente. Faça isso. Já fez? Está ligado?
- Sim, mas...
- Sei que esta ligação está sendo rastreada e que seu telefone
não vai mais poder ser usado, mas eu não podia ligar para o restante do
pessoal. Estou em uma prisão da CG em San Diego, e eles estão
tentando negociar comigo para pegar o resto do pessoal. Diga a Buck e a
Kenny que eu os amo de todo o coração e que se não puder vê-los aqui
na terra, estarei aguardando por eles lá no céu. Papai, a culpa foi toda
minha. Eu estava correndo a uns 50 quilômetros de casa quando tudo
aconteceu. Quero apenas que você saiba que, por enquanto, estou bem.
Enquanto passo o tempo sentada aqui, fico me lembrando daquela
viagem maravilhosa que você, mamãe e eu fizemos ao Colorado quando
eu tinha cinco ou seis anos. Você se lembra?
- Mais ou menos. Chloe, preste atenção...
- Papai, não posso falar muito. É importante para mim que você se
lembre daquela viagem!
- Querida, aquilo foi há mais de 20 anos. Eu...
- Exatamente! Mas foi muito especial, e eu gostaria que todos nós
pudéssemos voltar para lá. Meu maior sonho é podermos ir todos para lá
agora, o mais rápido possível.
- Chloe...
- Não diga nada, papai. Você sabe que eles devem estar ouvindo.
Só quero dizer que amo todo o nosso pessoal. Peça que orem para que
eu seja forte até o fim. Não vou fornecer informação alguma. Nada. E,
papai, pense na viagem ao Colorado para que pensemos a mesma coisa,
na mesma hora. Eu amo você, papai. Nunca se esqueça disto.
- Eu também amo você, querida. Eu...
- Adeus, papai. E ela desligou.
***
- Você foi treinado para ser um homem de combate, George -
disse Buck -, mas não pára de falar em arrumar as coisas para sairmos
daqui.
- Só quero que você saiba, Buck, que não vou me ofender com
suas agressões verbais enquanto Chloe não voltar sã e salva. Depois
disso, você vai ver.
- Ah! sim. Ela vai fazer picadinho de você, George - disse Priscilla.
Buck devia ter achado graça. George não gostava nem um pouco
quando Priscilla tentava, em vão, melhorar o humor dele. Só que Buck
estava desolado. Seu sogro acabara de descobrir onde Chloe estava, por
meio de seu contato no palácio. Mas a sede da CG em San Diego não
era um lugar fácil de ser invadido.
- A melhor coisa que temos a nosso favor - disse Sebastian - é
que, assim que eles souberem quem ela é, vão querer mantê-la viva. Ela
é muito valiosa para eles.
Buck sabia que isso era verdade, mas a idéia de sua amada
esposa estar sendo considerada mercadoria de guerra deixava-lhe um
gosto amargo na boca.
No final da tarde, Ming levou Beth Ann Sebastian e Kenny para a
sala de operações. Ree levantou-se rapidamente e abraçou Ming. Buck
sabia que a situação de Chloe o abalara. Ele gostaria de saber se Ree
estava reconsiderando a idéia de se casar.
Beth Ann correu para o lado da mãe e, depois, para o lado do pai.
Kenny, com a testa franzida, correu em direção a Buck e sentou-se em
seu colo.
- Ele não dormiu - disse Ming.
Buck assentiu com a cabeça e encostou o rosto de Kenny em seu
peito.
- Está com sono, rapazinho? - ele perguntou.
Kenny movimentou a cabeça negativamente.
- Quero a mamãe.
- Ela vai chegar mais tarde.
O menino fechou os olhos. Buck olhou para Priscilla e mordeu o
lábio, incapaz de conter as lágrimas.
- Esta é a parte que vou passar a detestar - ele disse, apenas
movimentando os lábios e com o peito arfando.
Kenny despertou, mas Buck ajeitou a cabeça do garoto sob o
queixo e passou os dois braços ao redor dele, balançando o corpo. E
chorando.
Priscilla soltou-se de Beth Ann, que correu para perto do pai, e
aproximou-se de Buck.
- Não abandone a luta, Buck - ela disse. - Nenhum de nós vai
abandonar.
***
Chloe queria ligar para todas as pessoas que conhecia, mas tinha
quase certeza de que sua conversa foi ouvida pela CG. Tudo havia sido
fácil demais. O sistema de posicionamento global (GPS) no telefone de
seu pai deveria ter indicado à CG onde ele se encontrava. Ela imaginara
Petra, mas pelos sons que ouviu, ele estava no ar. Por quanto tempo seu
pai e Abdullah ficaram em Nova Babilônia? E por que ele estava
retornando somente agora? Ela não conseguia entender. Evidentemente,
alguém o informara sobre o desaparecimento dela. Talvez ele estivesse a
caminho de casa. Ela só esperava que ele conseguisse livrar-se do
telefone antes de aproximar-se da Califórnia. A última coisa que ela
queria era levar a CG diretamente à casa secreta.
Chloe esticou o corpo o mais alto que pôde e atirou o telefone
através de uma abertura na cela. Ele voou mais de dois metros antes de
cair no chão e espatifar-se.
- Que pena - ela disse -, isso acontecer depois que aquele homem
bondoso me entregou seu telefone.
O homem retornou em seguida, ainda trajando o uniforme mas
sem nada nas mãos. Nenhum balde, nenhum produto de limpeza,
nenhum trapo. E nenhum sorriso também. Ele ajoelhou-se para ajuntar os
pedaços do telefone.
- Obrigada por ter-me emprestado seu telefone. Foi uma ótima
idéia. Talvez você possa me trazer um bolo com uma serra dentro ou
avisar meu pessoal. Peço desculpas pelo estrago.
- Está tudo certo, boneca - ele disse, sem olhar para ela. -
Conseguimos o que precisávamos. Parece que seu pai está um pouco
distante da costa leste. Deve estar reabastecendo. Vamos alertar todos
os aeroportos prováveis. Você devia fazer um favor a si mesma, colaborar
com Jock. Ele é um sujeito legal. É verdade. Não estou dizendo que ele é
um santo, mas é realista. Você tem a informação que ele quer, e ele sabe
o que vai ganhar com isso.
- Sem dúvida, amigo. Diga a Jock que estou pronta para o que der
e vier. Vou fornecer todas as informações que ele quiser, agora que sei
que ele é um sujeito legal. Foi você quem me disse, e eu o conheço muito
bem para confiar plenamente em você.
- Pode bancar a espertinha o quanto quiser, garota. Você vai ver
aonde vai chegar. Ah!, a propósito, Nigel conseguiu sua barra de cereais.
Devo dizer a ele que você está com fome?
Chloe sentou-se na cama de metal. Estava morrendo de fome,
porém o orgulho era maior que o desespero.
- Não. Tive um maravilhoso desjejum. Estou completamente
satisfeita.
- Talvez queira ver algum programa na TV.
- Deixe para lá. Já ouvi propagandas suficientes para o restante
da vida.
- Mas está na hora do noticiário.
- Ah! sim a eminente CNNCG, sempre tão objetiva. Ei, basta! O
volume está muito alto!
Ele fingiu que não ouviu. Deixou o volume nas alturas e dirigiu-se
para a porta.
- Abaixe o volume, por favor!
- Não estou ouvindo nada - ele disse. - O som da TV está alto
demais.
Jock devia ter engendrado tudo. O noticiário das 17 horas estava
começando. A âncora Anika Janssen falava ao vivo de Detroit.
- Boa noite. A escuridão continua a atormentar a sede da
Comunidade Global Internacional em Nova Babilônia. Ela está confinada
aos limites da cidade e acreditamos ser um ato de agressão da parte dos
dissidentes contrários à Nova Ordem Mundial.
- O Sr. Suhail Akbar, chefe do Serviço de Segurança e Inteligência
da CG, conversou conosco por telefone há poucos instantes, diretamente
da capital isolada pela praga. Apesar do tumulto existente naquele local,
ele tem boas notícias para todos nós, e esta vai ser a reportagem
principal desta noite.
- Sim Anika - disse Akbar - depois de meses de cuidadoso
planejamento e cooperação entre as várias filiais da Comunidade Global
que visam ao cumprimento da lei, temos a satisfação de informar que
uma força-tarefa combinada de agentes das Forças Pacificadoras e dos
Monitores de Moral logrou êxito na captura de uma pessoa do alto
escalão do grupo de judaístas que está aterrorizando o mundo.
- Após meses de planejamento, a prisão foi efetuada hoje em San
Diego, antes do alvorecer. Prefiro não fornecer detalhes da operação,
mas a pessoa suspeita foi desarmada e presa sem nenhum incidente.
Seu nome é Chloe Steele Williams, 26 anos, ex-radical do campus da
Universidade de Stanford, em Palo Alto, Califórnia, de onde foi expulsa
seis anos atrás por ter ameaçado a vida dos funcionários da
administração.
- Obrigada, chefe Akbar. Posteriormente, ficamos sabendo que a
Sra. Williams é filha de Rayford Steele, que trabalhou como piloto do
Supremo Potentado da Comunidade Global Nicolae Carpathia. Ele foi
demitido do posto anos atrás por insubordinação e embriaguez durante os
vôos, e o serviço de inteligência da CG acredita que o ressentimento o
levou a transformar-se em terrorista internacional. Ele também participou
da conspiração para matar o potentado Carpathia e tem ligações com o
ex-estadista israelense Dr. Chaim Rosenzweig, atualmente líder dos
judaístas. Eles estão a serviço do rabino Tsion Ben-Judá, chefe dos
judaístas, o último foco de resistência à Nova Ordem Mundial.
- A Sra. Williams é esposa de Cameron Williams, ex-famoso
jornalista americano que também trabalhou diretamente para o potentado
antes de perder o emprego em razão de diferenças no estilo de
administração. Atualmente, ele edita uma revista clandestina impressa e
também divulgada pela internet, com circulação limitada.
- Williams, sua esposa e o pai dela são fugitivos internacionais
exilados, procurados por mais de 30 mortes ao redor do mundo. A Sra.
Williams dirige uma operação de mercado negro que é suspeita de
contrabandear mercadorias valiosas de diferentes países e vendê-las,
obtendo lucros exagerados, a pessoas que não podem comprar e vender
legalmente por terem se recusado a jurar lealdade ao potentado.
- O casal Williams, que amealhou uma fortuna no mercado negro,
tem um filho nascido, segundo dizem, após a Sra. Williams ter abortado
duas vezes. Uma filha mais velha morreu sob circunstâncias duvidosas. O
filho, a quem eles deram o nome de Jesus Salvador Williams, cuja foto
está sendo exibida, tem dois anos de idade. Pessoas relacionadas ao
casal dizem que a criança é a reencarnação de Jesus Cristo, que, um dia,
dominará Nicolae Carpathia e restabelecerá o cristianismo no mundo.
Chloe olhava firme para uma criança, que evidentemente não era
Kenny Bruce, com uma Bíblia no colo e trajando uma camiseta onde se
lia: "Morte a Carpathia!"
- O chefe Akbar informa que seus homens localizaram a célula
dos judaístas em San Diego, nos Estados Unidos Norte-americanos, onde
a Sra. Williams foi presa hoje. Os funcionários da CG de San Diego dizem
que ela já está "cantando como um passarinho, oferecendo todos os tipos
de informações sobre seus companheiros, inclusive a própria família, para
escapar da condenação à morte".
- Aqui está a repórter Sue West, da CNNCG de San Diego, com o
coronel Johathan "Jock" Ashmore. Sue?
- Obrigada, Anika. Coronel Ashmore, até que ponto essa prisão é
importante?
- Ela é inestimável - respondeu Jock, nervoso e espremido dentro
do paletó de sua farda, que não podia ser abotoado. - E a Sra. Williams
demonstrou ser uma típica terrorista que sabe quando é chegada a hora
de negociar. Quando ela soube que foi identificada e nós a informamos
sobre as acusações que lhe pesam, em questão de minutos ela começou
a fazer várias propostas para salvar a pele.
- O senhor tem autorização para nos dizer que propostas foram
essas?
- Não todas, embora ela já tenha se comprometido a matricular
seu filho na CG Júnior assim que for possível. Ela revelou o paradeiro de
um negociante de mercado negro do Oriente Médio chamado Al Basrah,
que adotou para si o nome de uma cidade iraniana.
- Creio que essa cidade fica no Iraque, coronel, mas prossiga.
- O quê?
- Al Basrah está localizada no Iraque, senhor.
- Que seja. De qualquer forma, esse sujeito se matou com um tiro
para não ser preso.
- Daqui a pouco vamos mostrar uma fotografia do falecido Al
Basrah - disse Sue West -, mas devemos advertir a todos que a foto está
bem nítida.
Chloe levantou-se e viu a foto sendo exibida. Era Albie com um
furo entre os olhos, e sem vida. Sua cabeça estava mergulhada em uma
poça de sangue. Era ele mesmo. Mas a foto seria verdadeira ou
montada?
- Jock! Jock! Nigel! Vá chamar Jock! - ela gritou. Os gritos
transformaram-se em soluços, mas ela continuou a exigir uma resposta. -
É verdade? Quero saber se é verdade! Albie está morto? Diga-me que
Albie não morreu!
Mas ninguém apareceu. Ninguém respondeu. Enquanto a TV
continuava ligada no volume máximo, Chloe foi escorregando até cair no
chão, gemendo:
- Deus, por favor! Não!
SETE
- Lembrei-me de um amigo na Flórida - disse Mac. - Em
Jacksonville. Um sujeito da cooperativa. Podemos reabastecer lá para
evitar locais muito visados.
- Vou colocar este telefone sob uma das rodas antes de
decolarmos - disse Rayford. - Se eles encontrarem uma mistura de metal
e plástico na pista, o que vão fazer com ela?
- Não seria melhor atirá-lo na água? Não vai levar mais de um
minuto para ele afundar no Atlântico.
- E como vou fazer isso, Mac? Abrir a janela e jogar o telefone
para fora?
- Não. Havia um artifício excelente que costumávamos usar em
meus tempos de militar quando queríamos atirar um objeto do alto. Você
prende o objeto no freio controlador da velocidade. Ele fica encostado no
solo, você sabe. Assim que ganharmos altitude, eu ativo o freio...
- Que abrirá o painel. Lindo.
- Sim - disse Mac. - Você levanta vôo, acelera, ativa o freio e o
telefone vai parar no fundo do mar azul.
- Não quero perder tempo voando por aí.
- Dê-me esse telefone. Eu faço isso. Não vai levar mais que um
minuto.
- Antes, preciso transcrever a gravação de Chloe. Ela estava
querendo me dizer alguma coisa, tenho certeza.
- Já está na hora de meu descanso, Ray. Assim que você decifrar
a mensagem de Chloe, troque de lugar comigo e eu vou estudá-la.
***
Chang havia chegado a Petra no meio da tarde, e Naomi
ofereceu-se para levá-lo a conhecer o lugar.
- Vou deixar um recado no centro de tecnologia para que eles nos
avisem quando receberem alguma notícia sobre Chloe - ela disse -, mas
só quero que você conheça o centro por último, está bem?
Ele encolheu os ombros.
- Abdullah pediu que levassem suas malas a sua nova casa, que
fica mais ou menos perto da dele. Ele vai acompanhá-lo para que você
possa arrumar suas coisas. Eu passo depois por lá para darmos o
primeiro giro por esse lugar.
Chang estava determinado a não ficar dependente de uma só
pessoa. Principalmente de Naomi. Ela ainda era uma adolescente. Ele já
tinha 20 anos. E, embora não houvesse dúvidas quanto à inteligência e
conhecimentos técnicos de Naomi, eles iam trabalhar juntos durante um
ano. Para que complicar as coisas?
Mas, mesmo assim... ela era muito bonita. Pele morena e belos
olhos escuros que se destacavam por causa de seus cabelos longos e
pretos. Para Chang, era difícil não ficar olhando para ela. Naomi tinha um
sorriso lindo e tímido e parecia muito simpática e prestativa. Ele nunca
havia tido uma namorada, apenas garotas pelas quais se interessou no
curso de segundo grau, mas que jamais souberam desse seu segredo.
Enquanto se dirigia à sua casa pré-fabricada em companhia de
Abdullah, Chang notou que o jordaniano parecia conhecer a todos e
queria que todos conhecessem o recém-chegado. Eles trataram Chang
como se ele fosse um rei, mas o rapaz estava tão envergonhado pelo fato
de portar a marca de Carpathia que cobriu a testa com um boné de beisebol.
Seu desejo era retirar o boné e curvar-se a cada cumprimento, mas
não podia.
- O nosso homem de dentro do palácio - era assim que Abdullah o
apresentava, e o povo o abraçava ou o cumprimentava com um aperto de
mão. Muitos o abençoaram.
Para Chang, aquilo era um prelúdio do céu.
- Eu gostaria de ter a oportunidade de conhecer o Dr. Ben-Judá e
o Dr. Rosenzweig - ele disse.
- Oh!, sinto muito - disse Abdullah. - Eu devia ter-lhe contado. Eles
pediram desculpas por não poder recepcioná-lo como gostariam. Estão
reunidos com os anciãos tratando do assunto do desaparecimento de
Chloe, e haverá uma reunião do conselho mais tarde. Você está
convidado para saborear o maná com eles amanhã cedo.
- Ótimo. Obrigado, Sr. Smith. Quero fazer uma pergunta ao Dr.
Ben-Judá.
- Creio que o pai de Naomi também gostaria de conhecer você.
Pela inflexão da voz de Abdullah, Chang imaginou que ele
estivesse insinuando alguma coisa, mas não mordeu a isca.
- Eu também quero conhecê-lo - ele disse.
Quando eles chegaram ao setor das casas pré-fabricadas,
trazidas e montadas por um grupo dirigido por Lionel Whalum, Abdullah
mostrou a sua em primeiro lugar.
- Você pode ver que gosto de ficar perto do chão. Eu me sento do
lado de fora, perto de uma fogueira, para comer o maná. Lá dentro,
durmo no chão. Se este não for o seu costume, não é necessário fazer o
mesmo que eu. Sua casa tem mais ou menos o mesmo tamanho do
apartamento em que você morava no palácio, mas, evidentemente, é
muito mais simples e tem menos mobília.
- É perfeita - disse Chang quando eles chegaram. Suas malas
estavam perto de uma cama de lona. Os computadores e as caixas de
arquivos haviam sido deixados perto da porta.
- Esta noite vou dormir como um homem livre, sem me preocupar
com nada, a não ser com o bem-estar de nossos companheiros.
- Vou deixá-lo sozinho para você desfazer suas malas. Se precisar
de alguma coisa, sabe onde fica a minha casa. Alguma pergunta?
- Apenas uma. Estou um pouco nervoso a respeito do maná.
Todos daqui gostam?
- Sim, gostam. E tenho certeza de que você também vai gostar.
Imagine só, receber alimento do Rei. Sim, o maná serve apenas para
sustentar, e tem a aparência de pão. Mas vem das cozinhas do céu.
Existe coisa mais gloriosa que isso? Recebemos uma porção pouco antes
do pôr-do-sol, portanto você vai saber se gostou ou não antes de se
encontrar com os doutores para o desjejum amanhã cedo.
Meia hora depois, quando já havia arrumado suas coisas do jeito
que queria, Chang ouviu uma batida na porta.
- Entre! - ele disse, mas ninguém entrou. - Está aberta! Nada.
Chang abriu a porta e viu Naomi.
- Entre, entre!
- Ah!, eu não devo - ela disse. - Em nossa cultura, isso é
impróprio.
- Sinto muito.
- Com o tempo, você vai aprender. Venha, quero lhe mostrar
Petra.
- Alguma notícia de Chloe? - ele perguntou assim que começaram
a caminhar.
Ela sacudiu a cabeça.
- O final não vai ser bom, você sabe.
- Este é o meu medo - ele disse. - Mas vamos esperar e orar.
Naomi contou que a cidade era tão grande que levaria dias para
conhecê-la inteira.
- Vamos ter um sistema de TV avançado perto do centro de
tecnologia. Primeiro vou lhe mostrar o Tesouro, depois alguns túmulos na
redondeza. São muitos. Por último, quero levá-lo ao lugar alto onde o
míssil caiu e a fonte ainda borbulha, fornecendo água diariamente para
mais de um milhão de pessoas. Se eu calculei bem o tempo, devemos
estar perto do pôr-do-sol, e poderemos saborear o maná com água diretamente
da fonte.
Chang não estava acostumado a essas caminhadas e subidas,
portanto ficou feliz quando cada um deles entrou em um veículo pequeno
de quatro rodas. Ele ficou deslumbrando diante da magnífica arquitetura
de Petra e gostaria de saber como alguém foi capaz de escavar
estruturas tão maravilhosas naquelas rochas sólidas.
Quando, finalmente, eles chegaram à crista do lugar alto, em que
a fonte caía em forma de cascata dentro de cisternas e aquedutos que
levavam a água para a área inteira, Naomi desligou o motor de seu
veículo e pediu a Chang que fizesse o mesmo.
- Você está com sede? - ela perguntou.
- Muita. Mas procuro me acostumar a não ficar preocupado com
alguém que esteja me olhando.
- Não acredito. Você quer beber água das minhas mãos? Chang,
normalmente esperto e petulante, apenas sorriu.
- Desde que sua cultura permita.
Ela se ajoelhou, lavou as mãos na correnteza e sacudiu-as para
secá-las. Chang fez o mesmo. Ela o levou até um local mais próximo do
centro da fonte.
- Pronto? - ela perguntou.
Ele assentiu com a cabeça. Naomi fez uma espécie de cuia com
as mãos e enfiou-as na água. Em seguida, aproximou-as do queixo dele.
- Rápido - ela disse, rindo. - Minha mão não é impermeável.
Ele abaixou a cabeça e sorveu um enorme gole. Sua garganta
estava seca. E embora a água estivesse apenas alguns graus mais fria
que o ar, parecia gelada. Ele riu, tossiu e disse:
- Mais.
Depois que ele tomou outro gole, ela disse:
- Agora é a minha vez.
Chang também fez uma espécie de cuia com as mãos e pegou um
pouco de água para ela beber.
- Satisfeita? - ele perguntou quando suas mãos ficaram vazias.
Naomi assentiu com a cabeça, e ele limpou com as mãos a poeira
que estava sob os olhos dela. Em seguida, abriu as mãos e passou-as
levemente pelos cabelos da moça.
Naomi fechou os olhos, levantou o rosto para receber os raios do
sol poente e abriu os braços com as palmas das mãos para cima.
- O maná está chegando, Chang. Receba seu pão diário que vem
do Deus do céu.
Chang deu um passo para trás, olhou para cima e estendeu os
braços. Dos céus, começaram a cair pedacinhos de pão macio, como se
fossem neve, que cobriram toda a área. Lá embaixo, a multidão de um
milhão de pessoas começou a sair de suas casas com jarros e cestos,
para recolher o alimento que comeria no jantar.
- Fazemos como está escrito na Bíblia - disse Naomi. - Pegamos
apenas a quantidade necessária, sem guardar nada, porque ele se
estraga. E se o guardarmos, demonstramos falta de fé em Deus para
supri-lo todos os dias.
Chang sentou-se ao lado dela e colocou o maná na palma da
mão.
- Você pede a Deus que abençoe o alimento que Ele próprio nos
manda? - ele perguntou.
Ela riu.
- Você gostaria que eu fizesse isso?
- Por favor.
Chang tirou rapidamente o boné assim que ela começou a orar.
Ao grande Deus de Abraão, Isaque e Jacó, e ao Pai
de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, oferecemos
nosso humilde agradecimento por tudo o que nos
proporcionas.
Sua voz de menina era tão pura e doce, e suas palavras tão
perfeitas que o rosto de Chang se contorceu quando as lágrimas
começaram a brotar em seus olhos.
Obrigada pela proteção que deste à nossa missão
hoje e por nos permitires trazer Chang para cá. Que ele
possa encontrar paz renovada e descanso em ti.
Em nome de Jesus te pedimos que abençoes esta
dádiva que vem de ti.
Amém.
Com lágrimas rolando pelo rosto, Chang virou-se e recolocou o
boné. Sentou-se segurando o maná com uma das mãos, incapaz de
comer por causa do choro. Naomi tocou-lhe delicadamente no ombro.
- Deus o abençoe, Chang. Que Ele o abençoe.
Chang recompôs-se e enxugou o rosto com a mão livre.
- Não me espere - ele conseguiu dizer. - Coma sua porção de
maná.
- É o que vou fazer - ela disse meigamente. - Eu nunca me canso
deste alimento.
- Que gosto tem? - ele perguntou.
- Ah!, não sou eu quem deve lhe dizer. Não sei explicar. Chang
escolheu duas porções brancas e pequenas e levou-as à boca.
- E então? - ela perguntou.
Ele parecia ter emudecido e só conseguiu murmurar:
- Oh! Oh!
- É só isso que você tem a dizer?
Chang enfiou mais alguns bocados na boca.
- Oh!
- Pelo jeito, você aprovou.
- Senti gosto de mel. Claro, tem gosto de mel.
- Sim.
- O sabor é doce, parecido com o de bolo de mel. E são nutritivos.
Gostaria de comer mais, porém já estou satisfeito.
- Imagine só - disse Naomi. - Recebemos três porções por dia, e
elas são suficientes para nos sustentar durante 24 horas.
- É um milagre.
- Êxodo 16.31 diz: "Deu-lhe a casa de Israel o nome de maná; era
como semente de coentro, branco, e de sabor como bolos de mel."
- Estou impressionado - disse Chang. - Você decorou o Antigo
Testamento inteiro?
Ela riu.
- Quem me dera! Mas você sabe que nos tempos de minha
infância não o chamávamos de Antigo Testamento. Chamávamos de
Bíblia. Eu a estudava todos os dias. Continuo a fazer isso, mas agora é
diferente. Agora eu conheço Deus de verdade.
- Eu também costumo memorizar trechos da Bíblia - disse Chang.
- Mas nunca tive uma. Cresci ateu e leio a Bíblia na internet.
- Você decora os textos?
- Não é assim que todo mundo faz? Em suas mensagens diárias,
o Dr. Ben-Judá nos adverte a decorarmos trechos bíblicos.
- E quais você está decorando?
- O livro de João, no Novo Testamento. Estou no capítulo três.
Sou muito lento.
- Você já decorou até esse ponto? - ela perguntou. - Está muito
bom.
- Acho que sim. Mas não faça um teste comigo. Bem, pode me
pedir que recite o capítulo três, porque foi exatamente aí que parei, mas...
Chang não prosseguiu. Ele poderia ficar sentado ao lado de
Naomi a noite inteira, mas ela se levantou e sorveu outro gole da água da
fonte.
- Eu vou lhe mostrar mais uma coisa - ela disse, aproximando-se
de Chang e estendendo a mão para ajudá-lo a levantar-se. - Você prestou
atenção em minha roupa?
Ele encolheu os ombros e movimentou a cabeça afirmativamente.
Será que havia prestado atenção? Apenas lançara alguns olhares furtivos
para ela. Ele não sabia que nome dar àquela indumentária. Parecia mais
um manto que um vestido, semelhante aos trajes das mulheres dos
tempos bíblicos, conforme ele sempre imaginou.
- É a única roupa que uso aqui. Estou com ela desde o dia em que
chegamos.
- Parece nova.
- Eu a lavo todas as noites, e ela se renova a cada manhã, da
mesma forma que a misericórdia do Senhor.
- Outra passagem que você decorou?
- Sim. Esta é uma passagem que meu pai me ensinou depois que
sobrevivemos ao ataque das bombas.
- Você estava aqui naquela época?
- Fomos os primeiros a chegar.
- E como foi?
- Como se fosse um sonho, Chang. Às vezes, não consigo
imaginar que aquilo aconteceu.
- Qual é a passagem?
- Lamentações 3.22-24: "As misericórdias do SENHOR a causa de
não sermos consumidos, porque as suas misericórdias não têm fim;
renovam-se cada manhã. Grande é a tua fidelidade. A minha porção é o
SENHOR, diz a minha alma; portanto esperarei nele."
- É linda.
- Sim, muito linda. Bem, prometi a meu pai que voltaríamos ao
centro de tecnologia antes do pôr-do-sol. Fica perto do anfiteatro, portanto
vamos ter de nos apressar.
- Você vai terminar de me contar sua história? - ele perguntou.
- Claro. E eu quero ouvir a sua. Talvez amanhã, depois do
desjejum.
Para Chang, o centro de tecnologia era exatamente o que ele
esperava encontrar ali. O único fato inusitado foi ver a enorme rede de
computadores instalada em uma construção cavada nas pedras. Mas,
agora, ele estava muito mais impressionado com Naomi do que com
equipamentos de informática.
- Você é capaz de encontrar o caminho de casa sozinho? - ela
perguntou. - Aqui, nós nos recolhemos cedo e nos levantamos quando o
sol nasce.
- Acho que sim, mas prefiro não correr o risco - ele disse.
- Por ser meu primeiro dia aqui, ainda necessito de um guia.
- Vou encontrar alguém. Aguarde um instante.
- Naomi! - ele disse. - Estou brincando. É claro que sei o caminho.
Só queria que você me acompanhasse até lá.
- Em minha cultu...
- Já sei, não é apropriado. Que tal eu levá-la até sua casa?
- Isso seria aceitável e um ato de cavalheirismo de sua parte. Meu
pai está me esperando, e já estará escuro quando eu chegar. Ele vai
gostar de ver alguém me acompanhando.
Assim como Abdullah, o pai de Naomi tinha acendido uma
pequena fogueira do lado de fora da casa. Ele era um homem alto, de
silhueta arredondada e tinha barba crespa e espessa. Chang aproximouse
timidamente, tirou o boné no escuro e curvou o corpo.
- Chang Wong - ele disse.
O pai de Naomi segurou-o pelos ombros e encostou a face direita
no rosto de Chang, e depois a esquerda.
- Eleazar Tiberias - ele disse, com voz grossa e firme.
- Talvez você conheça o meu lago.
Chang coçou a cabeça e olhou para Naomi, e esse gesto fez o pai
e a filha acharem muita graça.
- Já ouvi falar muito de você, jovem - disse o ancião.
- Sou grato por você ter cuidado de minha filha e espero conhecêlo
melhor.
No caminho até sua casa, Chang respirou fundo o ar fresco da
noite. A fogueira de Abdullah já estava se extinguindo, e a roupa de
Chang ficou impregnada de fumaça. Ele se sentia tão livre, tão feliz e tão
apaixonado que, por certo, não seria capaz de dormir.
Em casa, ajoelhou-se ao lado da cama, sem saber exatamente
como orar. Procurou lembrar-se do versículo citado por Naomi, mas só se
lembrava destas palavras: "Grande é a tua fidelidade", portanto repetiu-as
várias vezes enquanto se ajeitava na cama.
Através da janela aberta, ele contemplou o céu tão límpido que
parecia ser possível contar todas as estrelas do universo. Mas em pouco
menos de 60 segundos, ele não viu mais nada, a não ser Naomi em seus
sonhos.
***
Mac analisava os rabiscos de Rayford.
- Você transcreveu todas as palavras dessa conversa, não?
- Eu não sabia mais o que fazer - disse Rayford. - Está claro que a
dica está naquele assunto do Colorado.
- Você se lembra de alguma coisa de lá, Ray?
- Faz muito tempo, Mac. Foi uma daquelas férias de verão que a
gente costuma viajar com os filhos pequenos. Raymie ainda não era
nascido. Fomos só nós três.
- Sim, mas depois de falar sobre Buck e Kenny, Chloe diz que a
culpa foi toda dela. E essa história de estar correndo... ela não estava
falando sério, estava?
- A uns 50 quilômetros de casa? Não. Ela estava tentando
despistar a CG, é claro, mas eles não vão cair nessa.
- Ela promete que não vai entregar ninguém, e eu acredito
piamente nisso.
- Eu também. Eles não vai extrair informação alguma de Chloe.
- Aí ela diz que a viagem foi "muito especial, e eu gostaria que
todos nós pudéssemos voltar para lá". Mas você disse que só vocês três
foram.
- Correto. Então, o que mais pode ser? Será que ela quer que todo
o pessoal de San Diego vá para o Colorado?
- Não pode ser - disse Mac. - Ela diz que sabe que a CG está
ouvindo a conversa. Mas diz também que seu "maior sonho é podermos ir
todos para lá agora, o mais rápido possível". Em que parte do Colorado
vocês estiveram, Ray?
Rayford sacudiu a cabeça.
- Eu não me lembro. Você já esteve lá?
- Várias vezes - disse Mac. - Que cidades você visitou?
- Apenas Springs e Denver, acho.
- Você viajou na estrada de ferro com trilhos engrenados?
- Pikes Peak, claro.
- O lugar que tem aquelas enormes formações rochosas?
- Sim, o Jardim dos Deuses.
- Aquele lugar dos cowboys, o rancho?
- Flying W, uma autêntica cidade do velho oeste, com comidas e
trajes típicos, claro. Eu jamais deixaria de visitar.
- E a Academia de Força Aérea?
- Só passei por lá. Não tive tempo de visitá-la. Estávamos indo a
um concerto.
- Onde?
- Nos arredores de Denver. Um concerto ao ar livre. Parecia que a
subida não acabava nunca, e eu tive de carregar Chloe. Aquela altitude
me deixou com a respiração curta.
- Red Rocks [Pedras Vermelhas]?
- Sim! Exatamente. Ouvimos música country. Chloe adorou.
- Você ainda não entendeu, Ray?
- Entendeu o quê?
- O que ela queria lhe dizer?
- Não, mas acho que você já entendeu, Mac. Fale.
- Red Rocks.
- Foi o que eu disse.
- Hã-hã.
- Ah! Petra! A CG está tentando encontrar a casa secreta, e nós
temos de tirar o pessoal de lá e levar todos para Petra.
***
De manhã, Abdullah conduziu Chang até uma área perto do local
onde o conselho dos anciãos se reunia diariamente. O chão por todo o
caminho estava coberto de maná fresco, e muitas pessoas estavam
saindo de suas casas e recolhendo-o para o desjejum.
- Não vou lhe fazer companhia hoje - disse Abdullah -, porque a
Srta. Naomi necessita de mim no centro de informática. Ela gostaria que
você fosse até lá para ajudá-la, quando puder.
- Algum problema?
- Receio que sim.
Chang parou. Abdullah parecia muito tristonho e taciturno.
- O que houve?
- Prefiro não estragar seu desjejum, mestre Chang.
- Estragar meu desjejum? Estou indo ao encontro de meus heróis,
e aqui posso ir aonde quiser e fazer o que quiser, e, mesmo assim, você
me diz que existe uma coisa que pode arruinar meu dia?
- Por favor, vamos nos apressar. Não podemos chegar atrasados.
- Eu preciso saber Sr. Smith. Não me diga que a notícia se refere
a Chloe Williams.
- Ela está viva, por enquanto. A CNNCG está espalhando as mais
infames mentiras a respeito da Sra. Williams, mas todos imaginam que a
CG não vai executá-la enquanto estiver achando que vai ser capaz de
extrair informações dela.
Chang sacudiu a cabeça, enquanto continuavam a andar.
- Teria sido melhor se ela tivesse fingido estar prestes a abrir a
boca - ele disse -, pelo menos dar a entender que forneceria alguma
informação, do que deixar claro desde o início que não vai cooperar.
- Você conheceu a Sra. Williams?
- Claro que não.
- Mas tratou com ela por telefone e pela internet o suficiente para
conhecer...
- Conhecer a personalidade dela. Sim. Além de não dizer nada,
ela também vai gostar que eles saibam disso.
- Meu medo - disse Abdullah - é que isso reduza as chances dela
com a CG e, por conseqüência, reduza sua vida.
- Certamente o Comando Tribulação de San Diego está
planejando invadir o local para resgatá-la.
- Não sei. Pelo que conheço de Cameron, ele deve estar querendo
invadir o local sozinho. George Sebastian vai querer liderar essa missão,
e ele é o homem preparado para isso. Mas não será o mesmo que
surpreender um bando de amadores na mata, como eles fizeram na
Grécia. Você deve imaginar que a CG de San Diego está alerta a respeito
disso.
- Você não está me contando tudo, está, Sr. Smith?
- Prefiro que você tome conhecimento do restante da história no
centro de tecnologia. Mas acho que Naomi não está ansiosa por lhe
contar.
Chang parou novamente e colocou a mão no ombro de Abdullah.
- Perdoe-me a familiaridade - ele disse -, mas não me esconda
informação alguma. Por favor, eu preciso saber. Não quero chegar lá
despreparado.
Abdullah parecia estar analisando o chão. Parou e pegou um
punhado de maná, sem levá-lo à boca.
- A CNNCG disse que Chloe denunciou Albie e que ele cometeu
suicídio para não ser preso.
- Ora, vamos, Sr. Smith. Sabemos que isso não é verdade. Ela
jamais faria...
Abdullah segurou Chang pelo cotovelo e insistiu para que
continuassem a andar.
- Ninguém suspeita que Chloe tenha feito isso, e todos os que
conhecem Albie não acreditam que ele se matou.
- Então, qual é o proble...
- Há evidências de que Albie pode estar morto. Ele e o Sr.
McCullum eram amigos íntimos, conforme você sabe, e quando Mac
soube da notícia, procurou entrar em contato com Albie de várias
maneiras.
- Pode ter sido uma coincidência. Talvez estivesse longe do
telefone. Talvez...
- Ele nunca fica longe do telefone. Mac sempre conseguiu falar
com ele quando precisou.
- Mas Mac e o capitão Steele já devem estar em San Diego.
Talvez o problema tenha sido a distância e...
Agora foi a vez de Abdullah parar.
- Já estamos quase chegando. O Dr. Ben-Judá e o Dr.
Rosenzweig estão aguardando por você depois da próxima curva. O Sr.
Tiberias fará as apresentações e participará do desjejum. As refeições
são rápidas aqui porque comemos apenas um alimento acompanhado da
água da fonte.
- Obrigado, Sr. Smith. Vou continuar acreditando que Albie ainda
vai ligar.
- Muito bem, se é assim que você pensa... Alguém atendeu ao
telefone de Albie, mas não foi ele. Conforme você sabe, ele estava
trabalhando em uma missão perigosa e deve ter cometido o erro terrível
de ir sozinho. O homem que atendeu ao telefone disse a Mac que, se ele
quisesse saber notícias de seu amigo, deveria assistir ao noticiário. Nós
vimos e gravamos o noticiário, mestre Chang. Naomi vai lhe mostrar
depois do desjejum. Agora vá.
***
Às 21 horas em San Diego, Chloe estava deitada na cama de aço
de sua cela, chorando baixinho. Depois que o sol se pôs, a sala maior
mergulhou na escuridão, e agora a única claridade vinha da TV ligada no
último volume. Ninguém aparecera depois que o falso agente
penitenciário voltou para recolher o que sobrou de seu telefone. Ela
ouvira o noticiário mais de uma dúzia de vezes - somente porque não
tinha escolha - mas recusava-se a ver as imagens.
Chloe não se importava com as mentiras. Nenhum judaísta
acreditaria naquilo. E, se alguém acreditasse, Buck esclareceria tudo na
próxima edição de A Verdade. Mas Albie, pobre e precioso Albie. Ela
esperava que a notícia de sua morte fosse mentira e orou por isso, mas
como eles foram capazes de produzir uma imagem tão vivida de um
homem morto tão parecido com ele?
Ela não havia comido nada desde as 19 horas do dia anterior.
Dobrou os joelhos até encostá-los no peito e passou os braços em volta
das canelas. Balançando o corpo, ela tentava acalmar a dor no estômago.
Procurava consolar a si mesma imaginando a operação que George,
Buck e seu pai estariam planejando naquele exato momento.
Chloe procurou desviar os pensamentos de Kenny, porque a
saudade que ela sentia dele era tanta que seus braços chegavam a doer.
Será que o veria novamente? Como Buck estaria respondendo às
perguntas do filho a respeito da mãe? Quem cuidaria de Kenny quando
Buck estivesse ausente?
Ela gostaria de saber se o sono aliviaria a angústia da fome e se
seria possível dormir. Aprendera muita coisa com George e sabia que
qualquer tentativa de resgate teria de ocorrer quando a CG menos
esperasse, portanto isso poderia demorar dias, talvez muito mais tempo.
Ela teria de aprender a dormir. Precisava manter a sanidade apesar do
modo que estava sendo tratada.
Todos os vestígios dos direitos dos prisioneiros haviam
desaparecido desde a ascensão de Nicolae Carpathia. - Aqui estamos
nós, faltando um ano para o fim da história, e podendo ser morta em
minha cela por não ter a marca.
Sozinha, com fome, com saudade de seus queridos, chorando por
Albie, Chloe fechou os olhos no escuro, tapou os ouvidos e começou a
cantarolar baixinho para não ouvir o som que vinha da TV. E foi por causa
disso, ela imaginou, que só ouviu a chegada da agente penitenciária do
turno da noite quando a mulher já estava em pé perto de sua cela. Chloe
estremeceu e sentou-se rapidamente, aterrorizada diante da silhueta
volumosa.
OITO
O pai de Naomi cumprimentou Chang da mesma maneira da noite
anterior, encostando as duas faces no rosto dele. Chang curvou-se, mas
não retirou o boné à luz do dia.
- Um conselho ao sábio - murmurou o ancião Tiberias a seu
ouvido durante o abraço. - Em qualquer cultura, é grosseria não tirar o
chapéu na presença de um ancião.
- Perdoe-me, senhor - Chang disse suavemente -, mas se eu tirar
o boné vou revelar uma desgraça.
Eleazar Tiberias fechou os olhos e assentiu com a cabeça, como
se já conhecesse o problema de Chang.
- Eu entendo - ele disse. Em seguida, pegou um cesto repleto de
maná. - O Dr. Ben-Judá estará aqui dentro de alguns instantes, mas
antes quero apresentar-lhe o Dr. Rosenzweig. Venha, venha.
Chang acompanhou o homem até a casa dele e ficou surpreso
quando viu o pequenino Chaim Rosenzweig, que mais se parecia com
Albert Einstein do que com o famoso Miquéias que afrontara o potentado.
Aparentemente, fazia muito tempo que Rosenzweig chegara a Petra.
Seus cabelos estavam compridos e a pigmentação de sua pele já havia
retornado ao normal.
Rosenzweig levantou-se rapidamente, demonstrando muita
energia para um homem de sua idade.
- Então, você é Chang Wong, o gênio espião.
- Bem, eu...
- Não se faça de modesto, meu jovem amigo. Você tem sido
usado por Deus. E de maneira muito poderosa! Ah! Quantas
recompensas aguardam por você no céu. - Chaim segurou Chang pelo
braço e puxou-o para perto de si.
- Venha, vamos esperar o Dr. Ben-Judá do lado de fora. Eleazar,
faça companhia a nós, por favor. Conforme você sabe, o Dr. Ben-Judá é
o líder daqui, embora tenha sido meu aluno durante muitos anos. Ah! sim,
no mínimo 20 anos. Fui seu professor há muitos e muitos anos. É
verdade. Bem, Sr. Wong, seja bem-vindo, seja bem-vindo, seja bemvindo.
É uma pena estarmos vivendo um dia triste por causa da morte de
um de nossos membros e da prisão de outro, mas nos sentimos felizes
por tê-lo em nossa companhia.
Ao longe, Chang viu a comoção causada pela chegada do Dr.
Ben-Judá. A seu lado, havia vários anciãos, e todos estavam vindo do
centro de tecnologia.
O Dr. Rosenzweig confidenciou:
- Aqueles homens não participarão de nossa reunião. Não são
guarda-costas. Não necessitamos de guarda-costas aqui, claro. Mas o Dr.
Ben-Judá é tão popular e querido que está sempre rodeado de anciãos,
por onde quer que ande. Todos querem um momento de seu tempo, mas
esses momentos estão se acumulando. Eles desejam expressar gratidão
e amor, porém o Dr. Ben-Judá tem muitas coisas para fazer e está
assoberbado.
- Para mim, é uma honra tomar um pouco do tempo dele - disse
Chang. - Assim como todos aqui, quero um momento de seu tempo.
- Ah! Confie em mim, meu jovem amigo. Eu o conheço muito bem,
e sei que ele está aguardando esta oportunidade.
Os anciãos dispersaram-se quando o Dr. Ben-Judá chegou.
- Lamento muito ter adiado esta reunião e, mesmo assim, ter
chegado atrasado - ele disse. - Mas não houve condição. Bem, quero ser
apresentado ao nosso morador mais recente.
Eleazar Tiberias riu alto quando o Dr. Rosenzweig disse:
- Ah!, creio que você já sabe quem ele é. Dr. Tsion Ben-Judá,
apresento-lhe Chang Wong.
O Dr. Ben-Judá evitou o tradicional cumprimento judeu. Curvou o
corpo da mesma forma que Chang, deu um passo a frente e abraçou o
rapaz com força.
- Sente-se, sente-se - ele disse. - Sente-se aqui entre mim e o Dr.
Rosenzweig. Anos atrás ele foi meu profe...
- Eu já contei a ele, Tsion - disse Chaim. - Vamos orar e comer.
Tsion inclinou o corpo na direção de Chang e falou em voz baixa,
mas fez questão que suas palavras fossem ouvidas por Chaim.
- Os idosos não têm muita paciência!
Tsion segurou a mão de Chang e a de Chaim ao mesmo tempo.
- Eleazar, por favor, vamos dar as mãos.
Depois que os quatro estavam de mãos dadas, o Dr. Ben-Judá
olhou para cima e Chang curvou a cabeça.
- Grande Pai, criador, mestre e amigo - ele começou a orar -,
neste momento em que iniciamos mais um dia que precede o glorioso
aparecimento de nosso Senhor e Salvador, nós abençoamos o teu nome.
Somos gratos a ti pelo nosso pão diário. Sentimo-nos humildes quando
nos lembramos de onde estávamos poucos anos atrás. O Sr. Tiberias, um
homem de negócios e dedicado religioso. O Dr. Rosenzweig, um estadista,
erudito e agnóstico. Eu, um estudioso da Bíblia, mas cego d
verdade. E o Sr. Wong, um jovem brilhante e ateu. Quem a não ser um
Deus bondoso nos daria uma segunda chance e nos redimiria mediante o
sangue de seu precioso Filho? Nós te louvamos em nome dele.
Tsion estendeu o cesto de maná a Chang, que pegou um pequeno
punhado. Os homens mais velhos pegaram porções generosas, e Tsion
disse:
- Quero mostrar-lhe como me sirvo de minha provisão diária. Sou
grato porque esta refeição não consome meu tempo, mas tenho de
admitir que sinto falta dos rituais que, antigamente, acompanhavam
minhas refeições. Em geral, as refeições aqui duram cinco minutos.
Ele colocou uma porção de maná na palma da mão direita, passou
delicadamente os dedos ao redor e formou um círculo com o polegar e o
indicador.
- Como se fossem amendoins, não é mesmo? - ele prosseguiu,
sorrindo. Em seguida, derrubou a porção inteira na boca. - Um punhado -
ele disse, mastigando -, e já estou satisfeito.
O Sr. Tiberias levantou-se, colocou as sobras dentro de um cesto
e atirou-as ao vento, e elas se espalharam pelo chão.
- Dr. Ben-Judá - perguntou Chang -, é verdade o que estão
dizendo sobre Albie?
- Que ele está morto? Acho que sim - respondeu Tsion. - Suicídio?
Não, nenhum de nós acredita nisso.
Após alguns instantes, Chaim disse:
- Tsion, nós precisamos ir.
- Ah!, senhor - disse Chang ao Dr. Ben-Judá -, eu hesitei em lhe
fazer uma pergunta porque fiquei sabendo que o senhor é muito ocupado
e que todos querem um pouco de seu tempo...
- Por favor, Chang. Temos uma grande dívida com você. Pergunte
qualquer coisa. Se eu souber a resposta, será um prazer.
- Eu necessito ficar a sós com o senhor. Por favor, não se ofenda,
Dr. Rosenzweig.
- De maneira alguma. O Sr. Tiberias e eu temos de preparar nossa
reunião.
Tsion conduziu Chang até a parte traseira de uma grande rocha.
- O que posso fazer por você?
Chang tirou o boné, deixando à mostra o número 30 em sua testa
e a linha fina e rosada onde o biochip da Comunidade Global havia sido
inserido. Ele viu um ar de piedade nos olhos de Ben-Judá.
- Confesso que é estranho, Wong, ver essa marca e o selo dos
crentes em sua testa.
- Não suporto olhar no espelho - disse Chang. - Não tenho
coragem de tirar o boné aqui. Sim, esta marca me manteve vivo e sim,
tive acesso a lugares aonde nenhum crente imaginou chegar perto. Mas
eu me sinto ridículo, detestável. Eu a odeio.
- Você foi obrigado a recebê-la, filho. Não teve escolha nem culpa
por...
- Eu sei de tudo isso, senhor, mas gostaria que ela desaparecesse.
É possível?
- Não sei.
- Senhor, eu leio seus ensinamentos todos os dias. O senhor diz
que, para Deus, tudo é possível. Por que Ele não faz esta marca
desaparecer agora?
- Não sei, Chang. Não quero prometer que Ele fará isso.
- E se eu acreditar que Ele fará? E se o senhor acreditar?
- Nós dois podemos ter fé, Chang. Porém, por mais que a gente
acredite, confie e estude, ninguém pode afirmar que conhece a mente de
Deus. Se você quiser que eu ore a Deus para que Ele a elimine, vou orar.
E creio que Deus pode e vai fazer aquilo que Ele deseja. Mas quero que
você prometa que vai acatar a decisão dele, seja ela qual for.
- Claro.
- Não diga isso precipitadamente. Sei que você deseja muito
retirar a marca, mas se Deus não atender a esse pedido, não quero ver
sua fé ameaçada.
- Vou ficar desapontado e sem entender o por que, mas vou
aceitar. O senhor poderia orar por mim?
O Dr. Ben-Judá parecia analisar o rosto de Chang. Comprimiu os
lábios e desviou o olhar. Finalmente, disse:
- Vou orar. Venha, sente-se aqui e espere. Por mais que você
deseje que esse assunto seja tratado reservadamente, prefiro orar com
os homens de Deus. Você se importa?
- Claro que não. Eu só não queria que eles me vissem com esta...
- Não há como evitar. Faz parte do preço a ser pago.
Chang assentiu com a cabeça, e Tsion afastou-se para chamar
Eleazar e Chaim. Quando chegaram, eles olharam tristemente para
Chang, que estava sentado em uma rocha, chorando. Tsion contou-lhes
rapidamente o problema e pediu que orassem com ele. Os três
aproximaram-se. Ben-Judá ficou no meio, Tiberias à sua esquerda e
Rosenzweig à sua direita.
Tsion colocou a mão esquerda na parte posterior da cabeça de
Chang e firmou o pulso direito em sua testa. Os outros dois seguraram as
mãos de Chang e colocaram as mãos livres sobre seus ombros. Chang
estremeceu quando aqueles três homens de Deus o tocaram suavemente
e sentiu-se amado por eles e por Deus. Seu corpo enrijeceu-se e, depois,
relaxou.
- Deus Criador - Tsion começou a falar de maneira tão suave que
Chang mal conseguia ouvir - reconhecemos que criaste este jovem. Tu o
conheces e o amas desde antes da formação da Terra. Tu, que és rico
em misericórdia, nos amaste mesmo estando nós mortos em nossos
delitos, nos deste vida com Cristo e com Ele nos ressuscitaste, e nos
fizeste assentar nos lugares celestiais em Cristo Jesus, para mostrar nos
séculos vindouros a incomparável riqueza de sua graça, em bondade
para conosco, em Cristo Jesus. Porque, pela graça somos salvos, por
meio da fé, e isso não vem de nós, é dom de Deus; não de obras, para
que ninguém se glorie. Porque somos criação de Deus realizada em
Cristo Jesus...
- Agora, Chang Wong, sabemos que você não foi redimido
mediante coisas corruptíveis, como prata ou ouro, mas pelo precioso
sangue de Cristo, como de um cordeiro sem mancha e sem defeito. Por
meio de seu Filho, você deve crer em Deus. Ele ressuscitou a Cristo
dentre os mortos e o glorificou, para que sua fé e esperança esteja em
Deus. Nós estamos aqui reunidos em fé e cremos nisso. Oramos ao Deus
para quem nada é impossível, o Deus que nos poupou da mesma forma
que poupou Sadraque, Mesaque e Abede-Nego da fornalha do inimigo. E
Ele fez isso para mostrar que somos povo seu e que o fogo não tem
poder algum sobre nossos corpos; os cabelos de nossa cabeça não
foram chamuscados, nossas roupas não foram afetadas, e o cheiro do
fogo não passou sobre nós.
- Deus, de acordo com tua vontade, nós te suplicamos que retires
deste rapaz qualquer sinal do maligno.
Chang sentia o corpo frouxo, como se cada uma de suas pernas
pesasse cem quilos. Cada poro seu transpirava profusamente e ele sentia
o suor escorrer-lhe pelo rosto, braços e tronco. As mãos dos homens
estavam úmidas, mas eles continuaram imóveis e em silêncio.
No momento em que Chang sentiu que, se os homens o
soltassem, ele escorregaria da rocha, Tsion disse:
- Obrigado, cavalheiros.
Eles apertaram os ombros e as mãos de Chang e deram um
passo para trás. Agora, Chang estava amparado apenas por Tsion, que
continuava com a mão esquerda na parte posterior de sua cabeça e a
direita sobre sua testa. Em seguida, Tsion escorregou suavemente a mão
direita até juntá-la com a mão esquerda que estava atrás da cabeça de
Chang.
Chang abriu os olhos, piscou por causa da luz do sol e olhou firme
para o rosto do Dr. Ben-Judá, que também olhava para ele.
Tsion sorriu.
- Cavalheiros - ele disse -, o que vocês estão vendo?
Tiberias inclinou-se de um lado e Rosenzweig do outro.
- Louvado seja Deus! - exclamou Chaim.
Eleazar levantou a cabeça e deu uma sonora gargalhada. Sua voz
era forte e grossa.
- Só estou vendo o selo dos crentes! Tenho um espelho em casa.
Venha, Chang, você vai ver com os próprios olhos!
***
Rayford nunca vira Mac tão abatido. Ou tão resoluto.
- Se alguém matou aquele velho companheiro, vou ter de tomar
uma providência, Ray - ele disse. - Pense em alguma coisa que eu possa
fazer, que me dê a chance de descobrir tudo. Estou falando sério.
- Albie e eu também éramos bons amigos - disse Rayford.
- Eu sei. Parece que sempre o conheci, desde a infância.
- O que sua intuição está lhe dizendo, Mac? Que isso faz parte da
propaganda da CG ou que ele está morto?
Mac suspirou fundo.
- Bem, ele não se matou, de jeito nenhum, mas acho que eles o
pegaram.
Rayford usou o telefone de Mac para ligar para Buck a fim de
contar-lhe que eles estariam pousando por volta de 22 horas, horário de
San Diego.
- Celular de Buck. Ei, Mac, aqui é George.
- Bem, este telefone é de Mac, mas quem está falando é Rayford.
Como estão as coisas aí, George?
- Da forma que você imagina. Buck está arrasado. Queremos
evitar a todo custo que ele vá sozinho até a sede da CG.
- Vocês podem nos pegar às dez?
- Dez? A viagem foi rápida.
- Mais ou menos. Paramos só uma vez. Depois, tivemos de
desviar um pouco da rota para jogar meu telefone no mar. Leve Buck com
você. Talvez possamos ajudá-lo a acalmar-se.
- É melhor você convencê-lo a ir comigo. Ele não quer me ouvir e
não vai querer me acompanhar.
- Ele está aí?
- Está lá embaixo com Kenny. O menino não está conseguindo
dormir sem a mãe.
- Bem, diga a Buck que é uma ordem minha. Nós quatro
precisamos conversar assim que o avião pousar na pista. Alguém pode
tomar conta de Kenny?
- Claro. No momento, há um excesso de babás voluntárias aqui.
- Ei, você acha que é muito tarde para ligar para Lionel Whalum,
em Illinois?
- Não. Ele não dorme cedo. Qual é o problema?
- Descobri qual era a mensagem de Chloe. Ela está convencida de
que devemos tirar todo o pessoal de San Diego e levar para Petra.
- É o que eu receava - disse Sebastian.
- Lionel é o único sujeito que me veio à mente. Ele tem aeronaves
suficientes, contatos suficientes e experiência suficiente para fazer uma
coisa dessas... e rápido.
- Este lugar era tão perfeito.
- Todas as casas secretas que tivemos foram perfeitas até o
momento em que deixaram de ser secretas, George.
- Isso é verdade.
- Você me faria o favor de ligar para Lionel? Também preciso
entrar em contato com Zeke. Veja se ele está pronto para sair da toca e
nos ajudar em Petra.
- Em que você está pensando, capitão?
- Em uma atividade para Buck fazer para que ele não enlouqueça,
e em algo para mim e Mac. Algo que nos deixe sentir que estamos
fazendo alguma coisa por Albie.
- Espero fazer parte disso.
- Nós não sonharíamos em fazer qualquer coisa sem você,
George.
***
- Cansada dessa TV? - perguntou a agente penitenciária do turno
da noite para Chloe.
- Estou.
- Espero não ter perdido nada.
Chloe tinha visto o ajuntamento dos exércitos de todos os países
dos Estados Unidos Carpathianos, com exceção da cidade de Nova
Babilônia, que quase não foi mencionada no noticiário. Sob a iluminação
fraca que vinha da TV, Chloe viu que a mulher era negra.
- Sou Florence - ela disse, dirigindo-se à TV e desligando-a com
seu bastão. - Fui escalada para lhe dar alguma coisa para comer, desde
que você tenha se comportado bem. Você se comportou bem?
- Estou oficialmente com fome, se é isto que você está querendo
dizer.
- Não foi o que eu perguntei, mas tenho uma barra de energia no
bolso, se você quiser.
- Eu quero.
- Não levou muito tempo para você mudar de idéia. Ouvi dizer que
você foi muito arrogante e muito espertinha, como se não precisasse de
ninguém, não quisesse nada.
- Eu só quero continuar viva.
- Por quanto tempo? É melhor abrir o jogo e contar alguma coisa
que Jock possa usar ou, então, não vai tomar seu primeiro banho.
- E quando vai ser?
- Daqui a uma semana. Uma semana a partir de hoje.
- Eu vou ficar uma semana sem tomar banho?
- Use aquela pia à vontade. Que gosto tem aquela água?
- Não tem gosto de água.
Florence soltou uma gargalhada.
- Não é verdade. E você vai gostar dela. Vai ter de gostar. E vai
continuar viva por causa das 250 calorias por dia, mas não por muito
tempo.
- O que mais há por aqui?
- Ah! Você sabe, alguém vai gostar de você, vai querer tirar uma
casquinha. Você sabe do que estou falando.
Chloe riu. Era a única coisa que podia fazer.
- Você está achando graça? O que pretende fazer?
- Prefiro morrer - respondeu Chloe. - Antes, essa gente vai ter de
me matar.
- Você está dizendo isto agora. Mas não vai conseguir me matar.
Veja o meu tamanho e veja o seu.
- Uma de nós não vai sair viva daqui.
- Conversa fiada. Você vai cantar uma música diferente quando
não agüentar com o peso do seu corpo, quando estiver fedendo e alguém
tirar esse seu macacão.
- Eu vou avisar desde já, enquanto estou lúcida. Quero que você e
todos aqui saibam que vão se arrepender se tentarem alguma coisa
comigo.
- Acabou?
- Sim, e isso inclui Jock.
- Jock não vai fazer esse tipo de coisa e sabe quando deve olhar
para o outro lado.
- Quando ele olhar para trás, vai encontrar alguém morto. Alguém
daqui ou sua famosa prisioneira.
- Por que você não cede um pouco, moça? Conte alguma coisa a
Jock. Ele não vai fazer muitas perguntas. E você vai conseguir coisas que
ninguém jamais conseguiu. Entrar aqui sem a marca e continuar viva?
Você devia pensar um pouco. Está em posição de negociar.
- Eles já podiam ter me matado.
- Não pense que eu não gostaria de fazer isso.
- Você? Você não me conhece. Eu não quero matar você.
- Você acabou de dizer que ia me matar, moça, se eu entrasse na
cela.
- É verdade, mas só se você me fizesse alguma malvadeza. Aí, eu
teria de me defender.
- Eu desejo todo o mal do mundo para você. Ou você está do
nosso lado ou contra nós, querida.
- Eu estou contra vocês - disse Chloe.
- Disso eu já sei. Conte outra coisa.
- Quero saber de que forma vou receber essas 250 calorias.
- Você sabe. Da barra de energia.
- É só isso que vou comer?
- Só isso. Uma vez por dia.
- Ninguém consegue sobreviver com essa quantidade de calorias.
- Quem está dizendo é você. É claro que quanto mais coisas você
contar, talvez receba mais calorias.
- Talvez?
- Talvez, mas acho que não. Já que você não comeu nada hoje,
eu trouxe uma barra esta noite. Você só vai receber uma a cada 24 horas.
Mas você está sendo muito malcriada. Acho que vou devolver esta barra
a Nigel. Ele vai cuidar disso amanhã.
Chloe queria implorar que a mulher lhe entregasse a barra, mas
não faria isso. Ficaria em silêncio, esperando que Florence se divertisse
um pouco por estar encarregada de servir o alimento todos os dias.
- Se você ainda estiver acordada e parar de ser atrevida, vou
trazer uma barra lá pela meia-noite. Agora, se quiser ler alguma coisa ou
fazer maquiagem, pintar as unhas, seja lá o que for, vou deixar as luzes
acesas. E já que a TV está desligada, vou providenciar uma música para
você adormecer.
Oh! por favor, nada de luzes acesas e nada de música.
Florence caminhou com passos bamboleantes até a porta, com os
cotovelos apoiados no cinto de couro, que tinha tudo menos uma arma de
fogo - bastão, cassetete, molho de chaves, coldre vazio e, por um motivo
qualquer, um suprimento de projéteis. Ela acendeu as luzes, todas. Para
Chloe, o cômodo estava mais claro do que quando os raios de sol
atravessaram as janelas.
Isso não seria problema. Ela viraria o rosto para a parede. Apesar
do profundo arrependimento de ter-se privado de alimento por mais
algumas horas, ela conseguiria sobreviver.
Tentaria orar, pensar em seus queridos, recitar os trechos bíblicos
memorizados e aguardar a chegada do sono.
Mas, de repente, soou uma música, em volume mais alto que o
necessário. Alto demais. E, evidentemente, tratava-se do hino "Salve
Carpathia" que, pelo jeito, tocaria a noite inteira.
Buck lhe ensinara a adaptação feita por ele. Aquilo a distrairia por
alguns minutos. Como era mesmo? Ela começou a recordar-se e, em
seguida, a cantarolar baixinho:
Abaixo Carpathia, seu farsante, velhaco e indecente; Abaixo
Carpathia, que pensa enganar toda gente! Vou espernear e lutar até você
morrer; E no lago de fogo e enxofre você vai arder. Abaixo Carpathia, seu
farsante, velhaco e indecente!
***
Depois de olhar no espelho de Eleazar Tiberias, Chang correu ao
centro de tecnologia, onde saltou e gritou de alegria, exultando em
companhia de Abdullah e Naomi.
Após algum tempo, eles lhe mostraram o vídeo de Albie, que o
deixou triste. Apesar de ter saído recentemente do palácio, Chang ficou
atônito diante do atrevimento da CG de levar ao ar uma notícia contendo
uma mentira tão infamante sobre Chloe. Ele gostaria de saber se os
simpatizantes da CG acreditariam em tal besteira. Naomi, porém, lhe
mostrou vários e-mails vindos de judaístas do mundo inteiro comprovando
que muitas pessoas passariam a necessitar de confirmações e ser
lembradas de que o demônio é o pai da mentira.
- Os redatores desta seção - Naomi disse a Chang - estão
elaborando respostas contundentes para as perguntas mais comuns. Elas
serão transmitidas para os digitadores, que poderão escolher as mais
apropriadas e enviá-las imediatamente.
Naomi pediu permissão a um redator para imprimir uma lista
atualizada das respostas e mostrou-a a Chang.
A única parte da notícia que está correta é o nome e a idade de
Chloe e o fato de que ela é filha de Rayford e esposa de Cameron "Buck"
Williams. Embora seja verdade que Chloe estudou na Universidade de
Stanford, ela nunca foi radical nem expulsa. Abandonou o curso após o
Arrebatamento, mas suas notas alcançaram a média de 3,4 e ela
participou ativamente de assuntos relacionados aos estudantes.
Rayford Steele trabalhou, mesmo depois de convertido, como
piloto de Nicolae Carpathia e forneceu informações valiosas à causa dos
seguidores de Cristo no mundo inteiro. Ele nunca foi demitido e jamais foi
acusado de insubordinação ou de embriaguez durante os vôos. Demitiuse
do cargo depois que sua segunda esposa foi morta em um acidente
aéreo.
Os judaístas não são, de forma alguma, os "últimos focos de
resistência à Nova Ordem Mundial". Muitas facções de judeus e
muçulmanos, bem como ex-grupos da milícia, principalmente dos Estados
Unidos Norte-americanos, ainda se recusam a aceitar a marca de
lealdade ao supremo potentado e são obrigados a viver na
clandestinidade por medo de perder a vida.
Cameron Williams foi, realmente, um famoso jornalista americano
que também trabalhou diretamente para o potentado, mas ele se demitiu,
e não é verdade que "perdeu o emprego em razão de diferenças no estilo
de administração". Quanto à revista clandestina impressa e também
divulgada pela internet, com "circulação limitada", essa afirmação é,
naturalmente, uma questão de ponto de vista. A Verdade circula entre as
mesmas pessoas que são doutrinadas diariamente pelo Dr. Tsion Ben-
Judá, cujo número chega a mais de um bilhão.
Rayford Steele, Cameron Williams e Chloe Williams não são
"procurados por mais de 30 mortes ao redor do mundo". O Comando
Tribulação reconhece uma morte perpetrada por Cameron Williams e
duas por Rayford Steele, as duas em defesa própria.
A Cooperativa Internacional de Mercadorias, dirigida pela Sra.
Williams, nunca contrabandeou mercadorias, nem as vende para obter
qualquer tipo de lucro. Simplesmente faz permutas para beneficiar seus
membros.
O casal Williams não amealhou fortuna alguma no mercado negro.
A bem da verdade, a cooperativa existe graças à generosidade de seus
membros.
A Sra. Williams nunca abortou nem perdeu uma criança. Ela
engravidou apenas uma vez, e dessa gravidez nasceu um filho, hoje com
três anos e meio de idade. O casal Williams jamais alegou que seu filho
fosse divino ou que tivesse poderes especiais, embora acreditem
sinceramente que Nicolae Carpathia é o anticristo e que Jesus Cristo
dominará Carpathia um dia e estabelecerá seu reino aqui na Terra.
Uma pessoa que teve um contato rápido com a Sra. Williams
depois de sua captura confirmou que ela está determinada a não negociar
com a CG, e esta é a política do Comando Tribulação. Além de não
oferecer nada em troca para evitar a sentença máxima, ela já provou
várias vezes no passado sua disposição de morrer pela causa de Cristo.
Não há prova alguma de que a Sra. Williams tenha fornecido
informações sobre o ativista do Comando Tribulação Al Basrah, nem
existem provas de que ele cometeu suicídio.
- Isso vai servir para alguma coisa? - perguntou Chang.
- Sim, para o nosso pessoal - respondeu Naomi. - Até mesmo as
pessoas que já conhecem a verdade querem ser tranqüilizadas. Os
outros estão preocupados com o agrupamento das tropas no vale de
Jezreel.
- O que está acontecendo em San Diego?
- Quase nada até a chegada do capitão Steele e do Sr. McCullum,
que deve ocorrer a qualquer momento. Estamos nos preparando para a
chegada de, pelo menos, 200 pessoas nos próximos dias. Elas poderão
nos contar alguma coisa. Você conversou com sua irmã recentemente?
- Não. Mas tenho pensado em ligar para ela, agora que tenho
novidades para contar.
- Ela também tem novidades para lhe contar.
- Que novidades?
- Ah!, não quero estragar a surpresa.
- Naomi!
- Não, não posso. Estou ansiosa por conhecê-la e não quero
cometer uma falha logo no início e trair a confiança dela.
- Ela lhe contou alguma coisa que deixou de me contar?
- Não exatamente. Mas minha função não permite que eu passe
informações que outras pessoas não devem saber.
- Por exemplo?
- Mensagens aos líderes. Em vez de pedirmos que eles venham
ao centro e as leiam diretamente na tela do computador, nós as
imprimimos e as entregamos pessoalmente.
- E foi numa dessas mensagens que você ficou sabendo alguma
coisa sobre minha irmã que ela não quis me contar?
Naomi assentiu com a cabeça.
- Bem, eu posso resolver isso rapidamente - ele disse, pegando
seu celular. - E quando você terá alguns minutos para mim?
- Pode ser agora - ela respondeu. - Mas tenho apenas alguns
minutos. O dia de hoje vai ser muito agitado.
- Você está me devendo uma história.
- A minha história, você quer dizer? A história diz respeito a meu
pai e a mim, mas, como não é longa, vou ter tempo para contá-la.
- Voltamos a conversar daqui a dez minutos - disse Chang,
digitando o número do telefone da irmã.
- Alô, Chang - disse Ming. - Perdoe-me por estar sussurrando,
mas estou tomando conta de Kenny Bruce, e só agora ele conseguiu
dormir.
- Eu só queria saber como você está e como vão as coisas aí.
- Tenho certeza de que você sabe.
- Sim. Tenho novidades para você.
- Conte-me, irmão.
- Deus eliminou a marca da besta de minha testa.
- Louvado seja Deus! Quero que me conte tudo! Estou ansiosa
para ver você novamente.
Ele contou o que acontecera.
- Foi maravilhoso demais, Chang. Que pena isso ter acontecido
em um dia tão triste.
- Sim, e você também tem uma novidade para me contar, não?
- Do que você está falando?
- Não faço idéia. Foi só um palpite.
- Ah!, Chang. Ree me pediu em casamento, e eu pedi ao Dr. BenJudá
que realize a cerimônia quando chegarmos aí.
NOVE
- Vou fazer o reconhecimento da área - disse Buck -, para ver se
eles poderão aterrissar com segurança.
George, sentado ao volante do Hummer, olhou de esguelha para
Buck.
- Não havia ninguém na área quando saímos do esconderijo, não
vimos pessoa suspeita alguma no caminho e ninguém nos seguiu. Nos
últimos 800 metros, rodamos em estrada de terra e acendemos os faróis
apenas para saber se estávamos no rumo certo. Buck, a pista aérea é
muito mais segura do que já foi.
Buck suspirou fundo e sacudiu a cabeça.
- Desde quando eu passei a ser cauteloso? O militar é você.
- Existe cautela e prudência, e há paranóia - disse Sebastian. - Sei
que eles pegaram Chloe, mas não estavam vigiando ninguém. A culpa foi
dela. Sinto muito, mas seu sogro disse que ela reconheceu a culpa. E
essa história de Chloe ter se aventurado a sair...
- Mas por que ela saiu? Eu vi os caras. Ela também deve ter visto.
E eles a pegaram.
- Eles deviam estar fazendo uma simples verificação de rotina.
Você mesmo disse que pareciam entediados.
- Mas agora não estão mais entediados, estão?
- Não, Buck, agora eles não estão entediados. Vou estacionar no
final da pista. Se quiser andar um pouco pela mata até a chegada deles,
fique à vontade.
- Você não vai me acompanhar?
- O chefe é você. Se quiser que eu o acompanhe, tudo bem. Mas
você disse claramente: "Vou fazer o reconhecimento da área." Bem,
estou deixando que você faça o reconhecimento da área.
- Venha comigo.
- É uma ordem?
- Estou pedindo como amigo.
- Isso não é justo, Buck. Não tente me convencer.
- Ora, vamos. E se eu descobrir alguma coisa? Você nunca se
perdoará.
- Você é mesmo um caso perdido.
Buck sabia que Sebastian tinha razão. A verdade é que ele estava
fragilizado e precisava fazer alguma coisa. Estava pronto para invadir a
sede da CG em San Diego, disparando uma rajada de metralhadora, para
resgatar Chloe.
- Você sabe que Rayford deve estar pronto para ir atrás de Chloe -
disse Buck, enquanto eles caminhavam pela mata, com fardas de
camuflagem, cada um carregando uma Uzi do lado.
- Mas ele e Mac passaram quase 16 horas no ar, provavelmente
revezando-se no comando. Esses caras vão precisar descansar um
pouco.
- Mac já ficou sabendo do que houve com Albie. Deve estar ligado
e pronto para partir.
- Ele vai querer voltar a Al Basrah para descobrir o que realmente
aconteceu. De qualquer forma, Buck, se planejarmos uma invasão,
quando vamos fazer isso? E quem vai levar nosso pessoal para Petra
nesse meio tempo?
- Pensei que Rayford fosse encarregar Lionel disso.
- Lionel vai organizar e fornecer o necessário, claro. Mas temos de
liderar essas pessoas e providenciar para que tudo funcione.
Buck deu um tapa em um mosquito.
- O que estamos fazendo? Não há nada aqui. De quem foi a idéia?
Você ouviu o barulho de um jato?
- Não. Já que estamos aqui, vamos fazer alguma coisa.
- Você quer procurar alguma coisa para fazer?
- Não quero perder tempo, só isso. Não podemos nos afastar
muito da pista de pouso.
De repente, Buck foi envolvido por uma nuvem de insetos. Ele
soltou a Uzi, deixando-a dependurada no cinto, e começou a bater na
cabeça e no rosto com as duas mãos.
- Vamos dar o fora daqui - ele disse.
Quando os dois saíram da mata, estavam mais ou menos no
ponto intermediário da pista.
- Agora vamos ter de caminhar até o fim da pista quando eles
chegarem - disse George.
- Vamos já para lá - disse Buck. - Você pode ocupar seu tempo
me ajudando a planejar o ataque.
- Na sede da CG?
- Onde mais?
- O que você sabe sobre aquele lugar?
- Como assim? Acabamos de passar por lá. Você viu.
- Buck, nenhum de nós entrou lá. Sei que o prédio tem quatro
pavimentos e um porão, mas não sei se os prisioneiros ficam no porão.
Você sabe?
- Não, mas lembro que havia grades nas janelas debaixo.
- Tudo bem. Isso ajuda. Mas quanto mais você sabe, mais certeza
tem de que não sabe nada.
- O que deve haver dentro daquele mostrengo?
George parou.
- Muito bem, preste atenção. Vou dar minha opinião sobre a sede
da CG em San Diego. Sei que é uma das maiores dos Estados Unidos
Norte-americanos, mas não tenho idéia de quanta gente trabalha lá. Você
tem?
- Não.
- Só sei que ela tem quatro pavimentos e um porão, mas não sei
onde ficam as celas. Você sabe?
- Não.
- Imagino que eles tenham celas separadas para homens e
mulheres, mas não tenho certeza. Você tem?
- Não.
- Bem, se tiverem celas separadas, os homens e as mulheres
ficam no mesmo pavimento ou em pavimentos diferentes?
- Não sei dizer.
- Você está vendo que não sabemos nada, Buck? Absolutamente
nada. Uma operação militar, principalmente um ataque de surpresa, é
complicada e exige planejamento meticuloso. Temos um único objetivo
que é tirar Chloe viva de lá. Mas, para isso, precisamos infiltrar alguém lá.
- Não podemos infiltrar ninguém lá!
- Então, como vamos fazer, Buck? Pense, homem. Pense no que
precisamos saber antes de invadir o local. Será que a CG separa os
prisioneiros mais importantes dos comuns? E se separa, onde eles ficam?
- Está certo. Você já deu sua opinião.
- Eu nem comecei ainda, Buck. Vocês de fora acham muito bonito
o treinamento militar, mas não sabem metade da história. É preciso ter
bom senso. Além de sabermos exatamente onde Chloe está, temos de
saber qual é o caminho mais curto para entrar e sair. Temos de saber que
portas e janelas são menos vigiadas. Temos de saber quanta munição
vamos ter de levar. Buck, você sabe o que isto significa? Sabe o que
determina a quantidade de munição que devemos levar?
- O tamanho e a resistência das portas e janelas?
- Mais ou menos. Mas o problema é o pessoal de lá, companheiro.
Quantos vão cruzar nosso caminho e que armas estarão empunhando?
Se você me dissesse que Chloe está no canto nordeste do segundo
pavimento e quantos homens da CG eu teria de enfrentar para chegar lá,
se me dissesse quantas pessoas estão vigiando e que tipo de armas elas
têm, eu seria capaz de planejar uma missão para você. Caso contrário,
vamos ficar rodando no mesmo lugar, fazendo suposições e levando
adiante uma missão que, provavelmente, será um fracasso total.
Eles chegaram ao final da pista e sentaram-se na grama, no
escuro.
- E como deve ser feita uma invasão desse tipo?
George colocou a arma no colo.
- Nunca é fácil, mas existem pré-requisitos. Nos velhos e bons
tempos, quando as pessoas não eram identificadas por uma marca, a
gente podia infiltrar alguém em determinado lugar. Alguém que tivesse
um grande conhecimento do prédio, talvez acesso às plantas, ao
planejamento do piso e aos sistemas de encanamento, eletricidade e
ventilação.
- Eu me sinto de mãos atadas, George. O que vamos fazer?
Buck avistou as luzes de pouso antes de ouvir o ronco dos
motores do Gulfstream. Ele sinalizou com uma lanterna possante que a
área estava livre. Em poucos minutos, o avião estava no chão e
escondido, e Rayford e Mac desembarcando.
Os quatro cumprimentaram-se com um aperto de mão, sem dizer
nada. Em seguida, Buck e Rayford se abraçaram. Nenhum deles
demonstrou emoção, mas o abraço foi mais apertado e mais longo do que
nas vezes anteriores. Eles transferiram as bagagens para o Hummer,
mas, antes de entrarem no carro, Mac disse:
- Eu me sinto 20 anos mais velho. Será que temos de sentar em
outro lugar apertado imediatamente?
- Não temos pressa - disse Rayford. - Estique as pernas.
- Eu não me importo de retardar um pouco a volta para casa -
disse Buck. - Não vimos atividade alguma da CG hoje, mas com certeza
eles vão bisbilhotar por lá mais tarde.
Rayford disse:
- Você não está imaginando que Chloe conseguiu despistá-los
quando disse que estava a uns 50 quilômetros de casa?
Buck riu.
- Acho que não, mas você sabe que ela deve ter tentado. Na
verdade, vai ser interessante ver que lugar eles vão vigiar esta noite. Com
isso, vamos ter uma idéia de onde eles a pegaram.
- Agora você está raciocinando - disse George. - Vamos ter uma
idéia do tempo que eles vão necessitar para descobrir o esconderijo e do
tempo que precisamos para sair de lá.
***
- Eu não devia ter me afastado muito de lá - disse Naomi, sentada
ao lado de Chang perto de um pilar que fazia parte do pórtico da Tumba
das Urnas. - Se eu tivesse alguém como você para me substituir no
trabalho, eu poderia ir mais longe ainda.
- Com quem? - Chang perguntou, e ela riu. - Falando sério, estou
curioso para conhecer sua história.
- Eu adoro essas lembranças, Chang, apesar de minha história ser
triste. Meu pai era um homem de negócios, proprietário de um
restaurante, com várias filiais na área que contorna o Estádio Teddy
Kollek. Você conhece Jerusalém?
- Não.
- Ele era honesto e bom e todos gostavam dele, o respeitavam.
Isso é muito importante na minha cultura.
- Na minha também.
- Acho que a reputação de uma pessoa é importante em qualquer
cultura. Para meu pai, era um orgulho ter um número tão grande de
amigos e um negócio lucrativo. Ele proporcionava tudo o que minha mãe
e eu necessitávamos. Também era um homem muito religioso e
transmitiu esses princípios à família. Íamos à sinagoga todos os sábados.
Conhecíamos as Escrituras. Amávamos a Deus. Creio que meu pai sentia
orgulho disso, mas não um orgulho no mau sentido. Você entende o que
estou dizendo?
Chang assentiu com a cabeça.
- Cerca de oito anos atrás - ela prosseguiu -, quando eu tinha 11
anos, minha mãe adoeceu. Câncer. Câncer no... bem, perdoe-me. Sou
tímida demais para mencionar o local. Ainda não nos conhecemos o
suficiente para eu lhe contar certas coisas.
- Está tudo bem.
- Ela ficou muito mal. Meu pai foi bom demais para ela. Tinha
dinheiro e podia contratar alguém para ajudá-la em tempo integral. Mas
não fez isso. Contratou uma pessoa por meio período e reduziu suas
horas de trabalho pela metade, para poder passar as tardes e as noites
com ela. Meu pai foi um exemplo maravilhoso para mim, e eu passei a
querer ser mais prestativa ainda. Nós amávamos minha mãe, e meu pai
dizia que considerava um privilégio poder servi-la da mesma maneira que
ela nos serviu durante tantos anos. Ele a fez sentir-se feliz, apesar do
sofrimento.
- Parece que ele é um homem maravilhoso.
- Ah!, ele é, Chang. Sempre foi. Pouco depois de meu 12º
aniversário, o estado de saúde de minha mãe piorou e ele precisou
interná-la em um hospital. Ela foi desenganada pelos médicos. Mas meu
pai não acreditava na palavra "desenganada". Ele acreditava em Deus.
Disse aos médicos e a qualquer pessoa que quisesse chorar
antecipadamente a morte dela que nós lhes provaríamos o que ia
acontecer. O "nós" incluía sua filhinha. Mas como poderíamos provar
alguma coisa? Apenas orando. Deus faria sua obra e minha mãe seria
curada.
Chang notou angústia na voz de Naomi, e ela se calou.
- Está bem - ele disse. - Termine a história em outra ocasião.
- Não - ela disse, enxugando os olhos. - Parece que tudo
aconteceu recentemente. Vou terminar. Quero terminar. Uma noite, quase
madrugada, meu pai chegou do hospital muito aborrecido. Eu não o
acompanhava ao hospital à noite, somente à tarde. Eu lhe perguntei: "Pai,
o que houve? A mamãe piorou?", e ele respondeu: "Não, mas penso que
ela pode piorar por minha causa."
- Aquilo me assustou. Ele nunca discutiu com minha mãe, jamais
disse uma palavra maldosa sobre ela, pelo menos na minha frente. Minha
mãe disse alguma coisa a meu pai, e ele imaginou que ela estivesse
delirando por causa da medicação que estava recebendo. Ela chorou e
disse que isso não era verdade, que ela acreditava no que havia lhe
contado. Eu perguntei: "O que foi, papai, o que foi?" Ele começou a
chorar e disse que levantou a voz para ela, que a mandou parar de falar
bobagens.
- "Eu fiz sua mãe chorar", ele me contou, chorando, chorando alto.
"Magoei a mulher que amo de todo o coração, que está morrendo diante
de meus olhos." E eu perguntei: "Mas, papai, a mamãe também o
magoou. O que ela disse?" Ele respondeu: "Ela me disse: 'Jesus é o
Messias'. Eu quis saber onde sua mãe tinha ouvido tamanha heresia,
mas ela não respondeu. Tinha medo de que eu criasse problemas para
alguém, e confesso que eu faria isso!"
- Eu não sabia o que pensar. Levei um susto quando meu pai
repetiu as palavras dela. Ele disse à minha mãe que me proibiria de vê-la
novamente caso ela continuasse a acreditar nessa bobagem, mas aquilo
só serviu para me fazer chorar. Naquela mesma noite, fomos chamados
para comparecer ao hospital. Disseram que se quiséssemos vê-la viva,
deveríamos ir imediatamente.
- Meu pai chorou durante todo o percurso, culpando-se por ter sido
rude com ela. "Eu fui o causador disso tudo!", ele repetia sem parar.
Suplicou a Deus que poupasse a vida dela, fez promessas. Nunca vi meu
pai tão arrasado. Estávamos ao lado de minha mãe quando ela morreu.
Suas últimas palavras foram dirigidas a nós. Digo nós, Chang, porque ela
me fitou nos olhos e, em seguida, fitou os olhos de meu pai, e disse: "Vou
para junto de Deus. Estudem as profecias. Estudem as profecias."
- Puxa!
- Eu não aceitei Jesus da maneira que você imagina. A conclusão
lógica seria esta: meu pai e eu fomos para casa, estudamos as profecias
e passamos a acreditar no que minha mãe acreditava. Mas não
aconteceu dessa maneira. Meu pai ficou tão angustiado que se revoltou
contra Deus e deixou de estudar as Escrituras. Paramos de orar.
Paramos de ir à sinagoga.
- Ele ainda me amava e cuidava de mim, mas tentava sufocar o
sofrimento no trabalho. Seus amigos não podiam fazer nada, apenas
sentir pena dele, porque meu pai não era mais o mesmo homem de
antes.
- Eu não conseguia esquecer as últimas palavras de minha mãe,
mas meu pai proibiu-me de estudar qualquer trecho da Bíblia,
principalmente as profecias. Fiquei triste, muito triste, porque minha vida
mudou radicalmente com a perda de minha mãe e com a mudança
drástica ocorrida na vida de meu pai. Todas as vezes que eu mencionava
que Deus poderia nos ajudar, que encontraríamos conforto na sinagoga
ou que a Bíblia nos forneceria respostas, ele não queria ouvir.
- Eu tinha 13 anos quando ocorreram os desaparecimentos. Aquilo
chamou a atenção de todo mundo, até de meu pai. Assustados demais,
voltamos a recorrer a Deus, voltamos à sinagoga, voltamos a ler as
Escrituras. Comecei a estudar as profecias. Apesar de minha pouca
idade, passei a compreender aquilo que minha mãe compreendeu
quando alguém lhe disse aquelas palavras. Meu pai não queria admitir,
mas acho que ele também passou a compreender.
- Quando ouvimos falar que o conhecido estudioso da Bíblia, o Dr.
Tsion Ben-Judá, ia aparecer na TV, em rede internacional, para
apresentar suas conclusões a respeito do Messias com base nas
profecias bíblicas, assistimos ao programa juntos. No dia seguinte, todos
estavam comentando sobre o problema que o Dr. Ben-Judá criou para si
quando declarou que o Messias já tinha vindo ao mundo, mas meu pai e
eu ficamos empolgados demais com o que ouvimos. Ele encontrou um
Novo Testamento, e começamos a estudá-lo todas as noites.
- Quando chegamos à história do judeu chamado Saulo, que se
tornou Paulo, meu pai ficou muito entusiasmado. Enquanto líamos cada
vez mais depressa e trechos cada vez mais longos, passamos a acreditar
que Jesus era o Messias e que Ele poderia perdoar nossos pecados.
Memorizamos 1 Coríntios 15.1-4: "Irmãos, venho lembrar-vos o
evangelho que vos anunciei, o qual recebestes e no qual ainda
perseverais; por ele também sois salvos, se retiverdes a palavra tal como
vo-la preguei, a menos que tenhais crido em vão. Antes de tudo vos
entreguei o que também recebi: que Cristo morreu pelos nossos pecados,
segundo as Escrituras, e que foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia,
segundo as Escrituras."
- Meu pai e eu queríamos fazer tudo o que Paulo havia feito.
Aceitar aquela verdade mediante a qual Paulo disse que poderíamos ser
salvos. Não sabíamos o que dizer ou fazer. Simplesmente oramos e
contamos a Deus que acreditávamos naquelas palavras e queríamos
aceitá-las. Depois de algumas semanas de leitura foi que
compreendemos o que havíamos feito e o que aquilo tudo significava. Um
dia, meu pai encontrou, no final do Novo Testamento, um guia para a
salvação, mencionando que devíamos aceitar, crer e confessar.
Estudamos a parte que se chama estrada para a salvação, aqueles
versículos que falam que todos nós pecamos e carecemos da glória de
Deus, que o salário do pecado é a morte, mas que o dom de Deus é a
vida eterna por meio de Jesus Cristo, nosso Senhor.
Chang continuou no mesmo lugar, olhando para ela.
- As histórias nunca são iguais - ele disse. - Já ouvi muitas
histórias sobre pessoas que se converteram, e cada uma é diferente da
outra. Quero dizer, todas chegam ao mesmo lugar, mas quase sempre
começaram por ocasião dos desaparecimentos. No seu caso, a
responsável por tudo foi sua mãe.
- Não vejo a hora de voltar a vê-la, Chang. E não vai demorar
muito.
***
Chloe não sabia se estava cochilando ou desmaiada quando
Florence voltou à meia-noite, fazendo muito barulho. Ela enfiou a barra de
energia, com toda força, entre as grades da cela e deixou-a cair no chão.
Chloe queria agarrar a barra, rasgar a embalagem e devorá-la de uma só
vez, mas o orgulho ainda era maior. Ela se virou para olhar, mas não saiu
do lugar.
- Seu jantar, querida - disse Florence. - Recomendo um vinho
branco para acompanhar, do tipo água de torneira.
Chloe só se movimentou depois que ela saiu. Comeu metade da
barra, que não tinha gosto de nada. Mas aprendera que o tempero mais
saboroso era a fome. Embrulhou a outra metade, determinada a reservála
para o desjejum. Mas as poucas calorias que acabara de ingerir
serviram apenas para estimular seu apetite. Ela aguardaria meia hora e
comeria o restante.
Embora Chloe ainda estivesse fraca, a barra serviu para saciar um
pouco a fome e ela conseguiu cochilar.
Sonhou primeiro com sua família. Buck e Kenny estavam perto o
suficiente para que ela pudesse sentir o cheiro deles, mas não podia
alcançá-los, nem tocá-los, nem beijá-los. A seguir, as expressões dos
rostos deles se modificaram, demonstrando horror e repulsa ao vê-la.
Teria ela a marca na testa? Estaria terrivelmente feia? Eles fizeram uma
careta e lhe viraram as costas. Ainda sonhando, Chloe correu até um
espelho e descobriu que estava sem cabeça. Desmaiou de susto e,
quando caiu no chão, despertou.
Sentou-se no catre, com as mãos no rosto, balançando o corpo.
Aquilo ia ser mais difícil do que ela imaginara. Mas não se deixaria
enganar e, mesmo sob tortura, não forneceria nenhuma informação à CG.
Ela apenas orou pedindo a Deus que, se não fosse libertada de
alguma forma - e essa missão seria praticamente impossível -, sua
execução fosse rápida.
***
- Tomei uma decisão muito difícil, Buck - disse Rayford. Eram
duas horas da madrugada no esconderijo. Rayford estava em seus
aposentos conversando com Buck, que passaria a noite ali. Ming se
transferira para a casa de Buck e Chloe para que Kenny pudesse dormir
em sua própria cama. Sebastian e um jovem companheiro estavam no
posto de vigia.
- Eu não vou querer ouvir qual é a decisão, vou? - perguntou
Buck.
- Provavelmente não. Mas, por um motivo ou outro, Deus me
colocou nesta posição. Embora eu seja tendencioso e tenha quase os
mesmos interesses que você, necessito assumir a liderança deste caso.
Mac está dormindo. Quando ele estiver completamente descansado,
seguirá para Wisconsin a fim de pegar Zeke. Ele vai deixá-lo em Petra
para começar a trabalhar em nossa próxima missão.
Buck abaixou a cabeça.
- Nossa próxima missão não será aqui?
- Ouça, Buck. Mac vai esclarecer o assunto em Al Basrah e se
mudará para Petra. Quando ele estiver a caminho de lá, vou lhe pedir que
ligue para Otto Weser, o sujeito de quem lhe falei. Otto está no palácio e
talvez tenha condições de descobrir o que está acontecendo em Al Hillah.
A assistente de Carpathia sabe que Nicolae está planejando uma reunião
em Bagdá com os dez chefes de Estado do mundo inteiro. Acreditamos
que será nessa ocasião que ele ajuntará os efetivos militares de todas as
outras regiões com os exércitos que já estão se enfileirando em Israel.
- Sinto muito, pai, mas no momento não estou nem um pouco
interessado no que está acontecendo longe daqui. Parece que todas as
atenções estão voltadas para as atividades de lá. Enquanto isso,
deixamos Chloe perecendo aqui.
- Buck, nós dois estamos sem dormir há muito tempo. Acredite em
mim. Tenho chorado, orado e me preocupado tanto quanto você, o que
é...
- Duvido.
-...muito desgastante. Preciso descansar, e você também.
- Pai, não vou conseguir dormir.
- Eu não estou falando em dormir. Tire essa roupa, deite-se e
estique o corpo, coloque os pés para cima. Descanse um pouco, mesmo
que não consiga desligar. Precisamos de você inteiro, Buck.
- Com isso, você está querendo me dizer que não vou
acompanhar George esta noite.
- Não vou permitir que George vá, Buck. Não queremos prejudicálo
de maneira alguma. Ele reuniu um grupo que pode seguir o rastro dos
homens da CG se eles aparecerem esta noite. Só queremos saber que
área eles estão começando a vasculhar. Tenho a impressão de que
nosso pessoal já começou a aprontar-se para sair daqui. Lionel já
providenciou os aviões e os pilotos. Temos de estar preparados para
partir a qualquer momento.
Buck inclinou-se para a frente e apoiou os cotovelos nos joelhos.
- Eu confio em você, pai, e sei que deseja o melhor para Chloe.
Mas não estou entendendo. Quando vamos começar a investigar a sede
da CG, descobrir como entrar lá ou como encontrar alguém que conheça
tudo sobre o local?
- Nós dois podemos tentar chegar o mais perto possível de lá,
amanhã à noite. Se George estiver livre, vamos levá-lo.
- Estamos perdendo tempo. Rayford endireitou o corpo e suspirou.
- Minha prioridade é preservar os recursos de que dispomos. E
isso inclui o elemento humano. Nossas mentes nos dizem que ainda
temos vigor físico, mas se começarmos a nos desgastar desta maneira,
vamos ficar mais lentos, vamos agir com precipitação e pouca eficiência.
Confie em mim, Buck. Quero ver Chloe fora de lá tanto quanto você, mas
ela não é a única pessoa sob nossa responsabilidade.
- Mas eu quero ser informado imediatamente assim que o grupo
de George descobrir alguma coisa sobre...
- Não. E tem mais. Dei uma ordem para que ninguém nos perturbe
até a metade da manhã, a não ser em caso de emergência.
- Pai!
- O fato de você saber de alguma coisa e não poder agir não vai
servir para nada. Chega de conversa. Vamos descansar um pouco.
***
Ao meio-dia, quando o sol estava a pino, Chang preferia trabalhar
internamente, da mesma forma que todos moradores de Petra. Ele
descobrira, por meio de erros e acertos, que podia ter acesso a tudo o
que se passava em Nova Babilônia, a partir de Petra. O problema era que
todos os executivos haviam partido para Al Hillah.
Depois que o plano de instalação de uma escuta clandestina no
palácio fracassou, ele foi encarregado de descobrir um meio que
permitisse a Otto Weser passar-lhe as informações. Para conseguir isso,
foi necessário saber que equipamentos o pessoal deixou no palácio e se
os tais equipamentos permitiriam que as conversas fossem ouvidas em
Petra.
Chang preocupava-se por estar demonstrando abertamente seu
interesse por Naomi. Queria passar o tempo todo ao lado dela. Decidiu
não fazer conjecturas e não sair de perto de seu computador na hora do
almoço. Estava com fome, mas podia aguardar o maná da noite.
Ele ficou emocionado quando Naomi aproximou-se timidamente
com um cesto na mão.
- Ei, trabalhador! - ela disse. - Não quero que morra de fome.
- Oi - ele disse.
- Eu trouxe alguns bolos de mel para você.
***
O hino "Salve Carpathia" passara a fazer parte da rotina de Chloe.
Ela calculou que deveria ser quatro horas da madrugada. Tentara tapar
os ouvidos enquanto cochilava, mas quando o sono chegou, suas mãos
escorregaram. Foi por isso que ela ouviu a porta ser aberta e prendeu a
respiração.
Pelo som dos passos pesados e do tilintar das chaves, ela
imaginou que fosse Florence. O que aquela mulher queria?
Chloe percebeu que ela estava perto da cela e sentiu cheiro de
comida. Cheiro de hambúrguer com todos os ingredientes. E o som de
líquido sendo sorvido por um canudinho. Para Chloe, aquilo parecia ser o
néctar dos deuses.
Ela se virou lentamente e, sob a iluminação fraca, viu Florence
sentada no chão e encostada na cela. Chloe apoiou-se em um cotovelo e
respirou fundo.
- Está acordada? - Florence perguntou.
- Penso que sim.
- Quer que eu desligue aquela música?
- E se eu quiser? Você vai se importar?
- Não me provoque novamente.
- Se você quer saber mesmo se quero, minha resposta é sim,
quero que desligue a música.
- Eu não sou uma pessoa tão má quanto você imagina - disse
Florence.
Ela colocou perto da cela a metade do hambúrguer que havia sido
mordido, metade da bebida e um copo alto de papel, com tampa. Em
seguida, caminhou em direção à porta. A música parou.
Quando Florence retornou, Chloe disse:
- Obrigada.
- Hã-hã - ela resmungou, sentando-se no chão novamente. - Estou
comendo um hambúrguer.
- Eu sei.
- Eu trouxe uma coisa para você.
- Não acredito.
- Está vendo? Por que você é assim o tempo todo? Será que uma
pessoa não pode ser gentil com a outra?
- Como eu gostaria que isso fosse verdade.
- Bem, seu desejo foi atendido, se é que você gosta de chocolate.
- Quem não gosta?
- Que tal um chocolate batido com leite?
- Eu ainda devo estar sonhando, certo? A música foi desligada e
agora me oferecem um chocolate no meio da noite. O que aconteceu com
você?
- Eu já disse. Não sou tão má assim. Ninguém é.
Conheço alguém que é.
- Se for verdade que você vai me oferecer um chocolate, só posso
lhe dizer que fico muito agradecida.
- Eu também sou mãe.
- Verdade?
- Hã-hã. O nome dele é Brewster. Está com quase três anos.
- Você tem uma foto dele?
- Tenho! Você quer mesmo ver?
- Claro.
- Espere um pouco. Não posso acender as luzes quando estou
sozinha com você.
Ela terminou o sanduíche, deixou o chocolate no chão e afastouse
para jogar o resto no lixo. Chloe queria tanto aquele chocolate que
chegou a tremer. Será que poderia conquistar a simpatia daquela mulher,
de mãe para mãe?
Florence saiu e acendeu as luzes. Quando retornou, a porta foi
trancada pelo lado de fora. Chloe já sabia que aquilo fazia parte da regra.
O copo com o chocolate não poderia passar pela malha
entrelaçada da cela, portanto se a porta da cela fosse aberta, a outra teria
de ficar trancada. Mas aquilo fez Chloe pensar que Florence mentiu
quando disse que estava sozinha. Caso contrário, como faria para sair
dali?
- Se eu destrancar esta cela, o que é totalmente contra as regras,
você não vai abusar de minha bondade e fazer alguma coisa contra mim,
vai? Sou maior e mais forte que você, mas mesmo que queira...
- Sim, eu sei. Jock já me contou. Nós duas estamos trancadas.
- Exatamente.
- Se eu ficar bem comportada e pegar o chocolate, e se você me
trancar aqui nesta cela, como vai conseguir sair?
- Eu toco a campainha, e eles me deixam sair.
- Quer dizer que não estamos sozinhas.
- Bem, não, não depois que eu tocar a campainha.
- E se eles virem que você me entregou alguma coisa?
- Aí eu vou ficar encrencada. Por isso, se você quiser o chocolate,
é melhor ser rápida.
- Eu quero.
- Fique onde está. Não se levante quando eu abrir a porta, se não
eu tranco de novo.
Florence destrancou a cela, entregou o chocolate a Chloe, e
trancou-a novamente. Foi a primeira vez que Chloe notou um sinal de
emoção no rosto de Florence. Ela parecia nervosa, talvez assustada.
Talvez entusiasmada por estar fazendo uma boa ação quando não
deveria.
Chloe sorveu avidamente o chocolate e não ficou desapontada. O
líquido ainda estava gelado, espesso, saboroso e, aparentemente, com
uma quantidade exagerada de chocolate. Ou substancioso, conforme ela
costumava dizer, rindo, às amigas quando alguma comida tinha um sabor
muito acentuado.
Florence continuava em pé, observando-a.
- Puxa vida, moça. Veja o que está fazendo com seu estômago
vazio. É melhor ir mais devagar.
- É o que vou fazer. Não quero congelar meu cérebro. Florence
riu.
- E não se esqueça de me mostrar a fotografia de Brewster - disse
Chloe.
- Ah! Vou mostrar. Assim que você terminar.
Por que não agora? Foi a pergunta que Chloe fez a si mesma
enquanto sorvia mais um pouco do líquido. O açúcar e a cafeína a
manteriam acordada, mas não havia acontecimento especial algum
aguardando por ela de manhã. Talvez Jock aparecesse e saboreasse o
desjejum na frente dela.
- Jock - disse Chloe, rindo sem motivo.
- O quê? - perguntou Florence.
- Ovos na minha frente.
- Do que você está falando?
- Jock. Jack. Jick. Jeck...
- Hein?
Chloe estava zonza. O copo começou a escorregar. Ela procurou
segurá-lo com a outra mão para firmá-lo, mas o líquido caiu no chão e
espirrou. Ela ainda teve tempo de lembrar-se de que aquilo era a maior
tragédia que poderia ter acontecido e começou a chorar.
Seus olhos queriam fechar. Ela se forçou a mantê-los abertos e
levantou o queixo para tentar enxergar Florence, que continuava no
mesmo lugar, observando-a. Florence tocou a campainha. A outra porta
foi aberta. Nigel e Jock entraram, empurrando uma maca.
- Vou limpar tudo - disse Florence, destrancando a cela.
- Excelente trabalho, Flo - disse Jock. - Adorei quando você disse
que tinha um filho.
- Ora, meu bem, essa gente facilita nosso trabalho quando está
com fome.
DEZ
Buck foi despertado no meio da manhã por uma batida leve,
porém insistente, na porta do quarto de Rayford. Ele esticou o braço e
abriu-a, sem levantar-se do sofá-cama.
- Imaginei estar acordando seu sogro - disse Sebastian.
Foi nesse momento que Buck despertou completamente.
- Que horas são? - ele perguntou.
- Quase dez horas.
- O que houve? O que seus homens encontraram?
- Buck, tenho de obedecer à hierarquia.
- O quê? Você está brincando comigo? Não pode me contar o que
está acontecendo com minha esposa?
- Eu me reporto a Rayford, Buck. E você também.
- Você sempre sai ganhando, George. Sabe de uma coisa? - Buck
levantou-se do sofá-cama e bateu na porta de Rayford. - Sebastian está
aqui e tem notícias para lhe dar, pai. Abra a porta.
Rayford apareceu, com ar sonolento.
- Ei, rapazes - ele disse. - Vocês conseguiram dormir?
- Da mesma forma que você - respondeu Buck. - Agora vamos ao
que interessa.
Buck ajeitou os lençóis e os cobertores entre o assento e o
encosto do sofá, fechou-o e sentou-se. Rayford também se sentou.
- Meu subordinado está aguardando no corredor - disse
Sebastian. - Queria ter certeza de que vocês estavam apresentáveis.
- Mande-o entrar - disse Rayford. - Aqui estamos nós em trajes de
dormir.
George abriu a porta.
- Razor! - ele chamou. - Pode entrar.
Razor era um rapaz hispânico, de pouco mais de 20 anos, com
aparência de militar. Ele fez continência a todos, e Buck dispensou o
protocolo, dizendo:
- Vamos, vamos. Somos só nós. O que você descobriu?
- Senhores, eu estava no posto de vigia, conforme todos sabem, e
notei atividade no detector de movimento por volta das três horas. Uma
pessoa do nosso grupo de três é mulher, portanto pedi a ela que
verificasse o periscópio na residência do casal Williams, porque havia
uma mulher sozinha lá... bem, com um bebê, e eu não queria passar por
cima das regras...
- Estamos entendendo, Sr. Razor - disse Buck. - Por favor,
prossiga.
- Sim, senhor. Ela verificou e relatou atividade do inimigo a uma
distância de dois quarteirões do esconderijo. Também obteve permissão
da Sra. Toy para que eu entrasse na casa.
Buck olhou de relance para Rayford, sacudiu a cabeça e fitou o
chão. Por tudo o que é mais sagrado...
- Observei pessoalmente uma atividade semelhante e reuni meu
pessoal. Saímos com fardas de camuflagem, rostos pintados de graxa e
armas automáticas leves e possantes. Nosso objetivo era observar,
chegar perto o suficiente para ouvir a conversa deles, se possível... e, se
necessário, defender o esconderijo ou atrair o inimigo para uma área
neutra, para dar aos ocupantes daqui...
- Tempo de fugir - complementou Buck. - Sim, e daí, o que
aconteceu?
- Observamos dois pelotões da CG examinando a área.
Aparentemente, eles haviam começado cerca de dois quarteirões a oeste
e estavam seguindo naquela direção.
- O que significa que eles estavam se afastando em vez de
aproximar-se daqui?
- Sim, senhor, mas as notícias não são tão boas assim.
Observamos a direção que os homens seguiam e a velocidade de seus
passos e conseguimos ficar lado a lado com eles. Os dois que me
acompanhavam, caminhando escondidos no meio de arbustos, foram
capazes de ouvir o que os homens diziam. Chegaram à conclusão que o
objetivo daquela missão era recomeçar no ponto em que eles pararam e,
dali em diante, vasculhar uma área mais ampla que leva ao local em que
a Sra. Williams foi capturada. Eu calculo, Sr. Williams, que o ponto em
que eles pararam é o mesmo que o senhor e o Sr. Sebastian observaram
24 horas antes.
- Estou orando para que você tenha seguido os homens até o tal
ponto - disse Buck.
- Seguimos, senhor. Também ouvimos aqueles homens dizerem
que amanhã à noite, na mesma hora, eles vão fazer o percurso de volta e
passar por onde começaram, o que inclui o esconderijo novamente.
Achamos que eles vão levar a tarefa até o fim e, se for possível, devemos
sair daqui antes das duas horas de amanhã.
- Você já informou as pessoas certas? A mudança está sendo
providenciada?
- Sim, senhor, mas ainda não terminei. Perto do local onde a Sra.
Williams foi capturada, nosso pessoal encontrou a Uzi dela e a máscara
de esquiar.
- O que você acha disto, Buck? - perguntou Sebastian.
- Que ela as escondeu.
- Mas nós também... pelo menos meus comandados... ouvimos
dois homens da CG conversando sobre o que iam fazer com ela.
Buck não conseguiu conter-se.
- Por favor, recruta Razor, conte-me o que ouviu sobre o que eles
vão fazer com minha esposa.
- Pela conversa deles, ela vai ser transferida, senhor.
- Quando?
- Dentro de uma hora, senhor. Entendemos que a transferência vai
ser feita antes que Carpathia comece a convocar as tropas desta região.
- Vamos voltar ao assunto "dentro de uma hora", Razor - disse
Buck. - Em uma hora a partir de agora ou daquele momento?
- Daquele momento, senhor.
- Está bem, mas, por favor, pare com esse "senhor". Sei que você
foi militar, mas eu não fui, e isso está me deixando maluco. Você está me
dizendo que Chloe foi transferida às quatro horas desta madrugada?
- Sim, senh...
- Para onde?
- Pelo que meu pessoal conseguiu entender, senh... isto é, Sr.
Williams, eles disseram "algum lugar perto do leste".
- Algum lugar perto do leste. - Buck levantou-se, abriu as duas
mãos e olhou para Rayford e George. - Eles a levaram para algum lugar
perto do leste, o que deve ter sido feito por avião... - Buck olhou para seu
relógio. - ...seis horas atrás.
- Diga-me uma coisa, Razor, nenhum de vocês pensou em ir até a
sede da CG para ver se seria possível abortar a transferência?
- Não, senhor.
- Ninguém pensou que se tratava de uma emergência, que valia a
pena chamar o Sr. Steele ou Sebastian ou eu?
- Quando ouvimos a conversa, senhor... perdão... a transferência
já devia estar sendo feita.
- Você supôs.
- Sim, foi uma suposição.
- No único momento em que, provavelmente, eles estavam mais
vulneráveis, tirando uma mulher da cela, levando-a para fora do edifício,
caminhando ao ar livre até um veículo que a conduziria ao avião...
estávamos todos dormindo.
- Peço que me desculpe, senhor, mas em meu julgamento não
havia nada que pudesse ser feito. Já era tarde demais quando ouvimos a
conversa e, ah, o horário em que a operação seria feita.
Buck não conseguia ficar parado. Andava de um lado para o outro,
olhando com ar de expectativa para os três.
- Dormimos no ponto - ele disse. - Tivemos uma boa oportunidade,
mas estávamos descansando.
- Por favor, Buck - disse Rayford, mas Buck não se acalmava.
- Algum lugar perto do leste - ele repetiu, imitando Razor. - Isso
reduz nossas chances, não? Talvez se começarmos a caminhar na
direção leste, poderemos alcançá-los, não?
- Obrigado, Razor - disse Sebastian. - Se não houver mais nada a
relatar, pode ir.
- Obrigado, senhores - disse Razor.
- Ah! Sim, obrigado por nada - disse Buck.
- Eu lamento muito, senhor, se...
- Ora, pode ir - disse Buck.
Rayford fez um sinal com a cabeça para dispensar o rapaz, que
disparou porta a fora.
- Buck - disse George -, provavelmente ele tomou a decisão certa.
Correr até lá de madrugada, na esperança de chegar a tempo de fazer
alguma coisa, sem ter um plano...
- Pelo menos poderíamos ter feito uma tentativa, não?
- Buck chutou uma cadeira que foi parar na cozinha e bateu na
mesa e no armário. - Acho que se eu quiser ver minha esposa
novamente, vou ter de arregimentar um comando de um homem só.
- E ser morto - disse Rayford. - Você já desabafou. Agora chega.
- Não vou parar enquanto não tiver Chloe de volta.
***
Chloe havia caído da cama de metal, em cima do chocolate
esparramado no chão. Incapaz de impedir a queda, ela bateu com a
cabeça no ladrilho. Permaneceu deitada desajeitadamente sobre uma
perna, com a cabeça zonza e lutando para não dormir. A substância
misturada ao chocolate devia ser um tranqüilizante muito forte porque ela
queria apenas dormir o sono profundo dos drogados. Aquilo a fez
lembrar-se de como se sentiu depois do parto, quando Kenny nasceu.
Florence destrancou a cela e ajoelhou-se para limpar a sujeira.
Rolou o corpo de Chloe e puxou-a pelo pé para que as duas pernas
ficassem esticadas. Segurou o corpo de Chloe com uma das mãos
enquanto limpava o chão. Quando a soltou, Chloe rolou no chão e ficou
deitada de costas.
Seus olhos se fecharam e sua respiração passou a ser profunda e
regular, mas ela orava desesperadamente.
- Deus, eu preciso continuar consciente. Preciso ouvir. Ajuda-me a
ouvir.
- O chão já está seco? - Jock perguntou.
- Só mais um instante - respondeu Florence.
- Coloque o lençol no chão, Nigel, e segure-a pelos tornozelos.
Chloe sentiu as mãos de Jock em suas axilas e as de Nigel
segurando-lhe os pés.
- Em três! - disse Jock, e eles a levantaram do chão com a ajuda
do lençol e a colocaram na maca. Chloe ficou feliz por estar com os olhos
fechados. Ela não tinha equilíbrio e sentia que poderia cair da maca a
qualquer momento.
- Para o caminhão imediatamente.
A maca rodou atravessando a sala maior, passou pela porta e
parou. Chloe ouviu as portas do elevador sendo abertas. Ela foi
empurrada para dentro, e o elevador subiu um andar. Em seguida, ela
estava do lado de fora do edifício. Não conseguia abrir os olhos por mais
que tentasse. Com o corpo descoberto, ela sentiu o ar frio, mas alguma
coisa a impedia de tremer. Queria encostar uma perna na outra e
massagear os braços com as mãos, mas não podia se movimentar.
- Senhor, por favor. Eu preciso ficar acordada.
- Um carro fúnebre? - perguntou Nigel. - De quem foi a idéia?
- Minha - respondeu Jock, rindo. - As pessoas não vão olhar se
pensarem que há um morto dentro.
- Você vai com ela até lá? - perguntou Florence.
- Vou - respondeu Jock, e Chloe notou orgulho em sua voz. - É
meu dever ir até o fim.
- Quando vai ser? - perguntou Florence.
Chloe sentiu o veículo rodando.
- Ainda não sei. Eles vão querer extrair o máximo de informações
dela. O passo seguinte é o soro da verdade.
- Isso sempre funciona, não?
- Geralmente.
Não desta vez, Chloe pensou, Deus, não permitas que eu diga
algo que tu não desejas.
Ela estava imóvel, dos pés até a cabeça, mas Deus parecia ter
atendido ao seu pedido de manter-se consciente. Podia ouvir, podia sentir
cheiro. Não podia tocar nem ver, mas sentia o ar fresco da madrugada.
Aquela foi a viagem mais suave da qual ela se lembrava, uma
viagem que durou menos de uma hora. De repente, a maca foi retirada do
carro fúnebre, rodou uns cem metros e foi levantada do chão para subir
por uma escada, que ela imaginou ser a de um avião. E quando os
motores começaram a funcionar, ela sabia que estava certa.
Chloe ouviu as felicitações e despedidas de Nigel e Florence. Em
seguida, Jock e, pelo jeito, outro homem a deitaram em vários assentos
que tinham os braços levantados. Os homens amarraram-lhe o tronco e
os joelhos com os cintos de segurança dos assentos.
Pelo som das vozes, Chloe imaginou que eles deviam estar
sentados na fileira à sua frente. Ela teve a impressão de que havia ali
apenas os três mais os pilotos de um Jumbo. Não conhecia outra
aeronave com tantos assentos enfileirados para permitir que alguém se
deitasse com o corpo esticado.
- Quanto tempo vai demorar este vôo? - perguntou um homem
com sotaque espanhol.
- Eu calculo quatro horas, Jess - respondeu Jock.
- Depois, vamos ter de rodar cerca de 80 quilômetros a partir do
sudoeste. A área inteira de Chicago está contaminada por radiação,
portanto vamos ter de seguir para o norte, sempre que possível.
A conversa passou para assuntos triviais, e Chloe sucumbiu ao
sono.
***
Buck sabia que estava sendo inconveniente, mas não conseguia
conter-se. Enquanto todos os moradores do esconderijo se preparavam
para a grande mudança, ele questionava o pessoal. Alguém havia
trabalhado na sede da CG antes de se converter? Alguém conhecia um
homem ou mulher que tivesse trabalhado lá? Existe alguma conexão,
alguma pista, alguma notícia? Alguém poderia falar com uma pessoa que
tenha condições de fornecer informações sobre o paradeiro de Chloe?
Ele procurou ligar para a sede por meio de um telefone seguro,
fingindo ser um funcionário da CG Internacional. Ninguém acreditou.
Talvez Ming lograsse êxito. Buck rascunhou algumas frases para ela
usar, enquanto ele brincava com Kenny. Também não funcionou.
Finalmente, Rayford encontrou Buck e lhe disse:
- Faça o que quiser, mas esteja pronto para partir com o pessoal.
- Eu vou fazer uma viagem mais curta, chefe - disse Buck. - Será
que um dos homens de Lionel poderia me deixar em algum lugar perto do
leste?
Rayford negou com a cabeça e começou a afastar-se.
- Ei, pai - chamou Buck -, seu quarto está destrancado?
- Está. E vazio. Só deixei suas coisas lá.
- Vou pegá-las imediatamente.
A caminho do quarto de Rayford, Buck cruzou com Razor no
corredor.
- Senhor - disse o rapaz, fazendo continência instintivamente.
- Ei, filho, espere um pouco. Eu lhe devo um pedido de desculpa.
- Não, está tudo bem. Eu entendo que o senhor está passando por
um problema sério.
- Existe um motivo, mas isso não serve como justificativa. Quero
que me perdoe. Perdi o controle.
- Entendo, senhor. Não pense mais nisso.
- Bem, obrigado. Posso lhe fazer uma pergunta?
- Pois não.
- Por que você tem esse nome?
Razor (em inglês, razor significa navalha) corou e abaixou a
cabeça.
- Acidente com um snowmobile, aquele veículo que desliza na
neve.
- O quê!? Acha que vale a pena me contar?
- Foi na primeira vez. Em Minnesota. O lugar não é muito parecido
com o México, o senhor sabe. Eu não vi o arame farpado. Quase morri. O
arame prendeu-se no meu capacete e fez um estrago nele, mas não
decepou minha cabeça. Chegou a arrancar o capacete quando me
abaixei e passei por baixo. As pessoas que estavam assistindo disseram
que o arame se enrolou no capacete, mas não se partiu. Enquanto eu
corria para bem longe, o arame funcionou como um estilingue e atirou o
capacete de volta. Ele bateu na minha nuca, e eu desmaiei.
- Mas você está aqui. E, apesar de toda a minha grosseria, estou
feliz por você estar aqui conosco.
Depois de ouvir aquela história maluca, Buck começou a pensar
insistentemente em decapitação. Seu maior medo era perder Chloe, é
claro, mas ele se preocupava com o sofrimento que seria imposto à sua
esposa. Buck não suportava imaginar que ela pudesse estar sendo
ultrajada, sofrendo maus-tratos, torturada - não queria sequer considerar
todas as possibilidades. Não o confortava o fato de saber que, mesmo
que ela fosse martirizada, ele voltaria a vê-la em menos de um ano. O
que aquilo significaria para Kenny?
E, para piorar as coisas, ele começou a pensar no tipo de morte a
que Chloe seria submetida. Morte é morte, e a maneira de morrer não
fazia diferença alguma, ele sabia. Mas, se ela fosse morta e se a CG
fizesse disso um espetáculo público como certamente faria, ele não
suportaria assistir à cena. A idéia de ver sua querida esposa morrendo de
maneira tão horripilante e grotesca lhe causou náuseas.
Não havia dúvida de que ela permaneceria firme na fé até o fim.
Ele ouvira histórias semelhantes e chegou a ver seu velho amigo Steve
Plank afrontar Carpathia e glorificar a Deus antes de morrer. Buck
também sabia que, se Chloe tivesse o mesmo fim, ela receberia um novo
corpo no céu. Mesmo assim, rejeitava a idéia de que a pessoa que ele
mais amava pudesse morrer da pior maneira imaginável.
Se, agora, ele não estava conseguindo livrar-se desses
pensamentos, como seria se aquilo acontecesse realmente? Ele resolveu
falar com Rayford.
- Estou muito ocupado - disse seu sogro -, e você também deveria
estar. Não espero que você se esqueça de Chloe; eu também não
consigo me esquecer dela. Mas você deveria ser mais produtivo.
- Eu sei. Só preciso de um minuto seu.
Buck contou a Rayford os pensamentos que o atormentavam.
Para sua surpresa, os lábios de Rayford começaram a tremer. Sua voz
ficou embargada.
- Eu também estou pensando a mesma coisa, Buck, mas não
queria lhe contar.
- Sério? Em tudo o que pode acontecer a ela?
- Exatamente. O sentimento de um pai é diferente, você sabe.
Imagine como se sente a respeito de Kenny. Eu estava presente quando
Chloe nasceu. Parece que foi ontem. Ela era uma garotinha vermelha,
rechonchuda, que chorava o tempo todo e só parava quando era enrolada
em um cobertor ou colocada de encontro ao peito da mãe. De repente,
ela se transformou na criatura mais linda do mundo. Fazíamos tudo por
ela, qualquer coisa para protegê-la. E isso nunca mudou. Ela cresceu e
se tornou uma linda mulher. E, apesar de todos os ferimentos e cicatrizes
em seu rosto, eu ainda a vejo daquela maneira.
- Eu também.
- Portanto, Buck, sei o que você está pensando. Temos de ser
fortes e tentar não remoer essa idéia. Não sei mais o que fazer.
***
Chang estava acompanhando Naomi até a casa dela à noite.
- Amanhã, eu quero lhe mostrar uma coisa em meu computador -
ele disse. - Descobri que a solução encontrada pelo chefe de produção da
CNNCG para a praga da escuridão foi tatear o caminho até a sala de
controle e encontrar o botão que permite que a rede internacional seja
acessada, por meio de controle remoto, por três ou quatro afiliadas mais
importantes.
- Genial - disse Naomi. - Não é mesmo?
- Ah! Fiquei impressionado. E estou empolgado. Também posso
acessá-la e ser mais rápido que as afiliadas, usando o sistema que David
Hassid instalou em Nova Babilônia.
- Estou ansioso para ver.
- A capacidade é ilimitada, Naomi. Quando Cameron Williams
chegar aqui, vamos trabalhar juntos e contra-atacar as mentiras
veiculadas pela CG, e isso pode ser feito imediatamente.
- Não há nada que eles possam fazer para impedir?
- Que eu saiba, não. Só se eles instalarem uma rede totalmente
nova. Talvez eles pensem que vão ter tempo, mas o fim está mais
próximo do que eles imaginam.
***
- Então, você tirou a pior carta do baralho, hein, parceiro? - disse
Mac.
- Sinto muito, Sr. McCullum - disse Ree -, mas não conheço essa
expressão.
- Bem, sem entrar em detalhes, significa que o pior serviço ficou
com você.
Eles haviam estudado a área através do periscópio uma hora
antes e constataram que poderiam retirar o Hummer do estacionamento
sem ser detectados.
- Levar o senhor até o avião? Não há problema. Eu gosto de fazer
isso. Só gostaria de voar com o senhor até Wisconsin. Pilotei um
Gulfstream apenas uma vez e gostei.
- Se essa foi sua única experiência, prefiro que não seja meu
piloto. Você entende o que estou dizendo?
Em pouco mais de três horas, Mac pousou em Hudson,
Wisconsin, onde foi recebido pelo grandalhão Gustaf Zuckermandel Jr.,
mais conhecido como Zeke.
- Eu gostaria que o senhor conhecesse o pessoal de Avery - disse
o rapaz de 25 anos. - Mas o sujeito que me trouxe de carro já retornou.
Levamos uma hora para arrastar minhas tralhas até um arbusto.
Mac o acompanhou ao local onde estavam suas caixas e baús.
- Você tem certeza de que quer transportar todas estas coisas até
o avião em plena luz do dia, Zeke?
- Se o senhor quiser aguardar até escurecer, para mim não há
problema, mas não há necessidade. A CG se esqueceu desta parte do
país. Não vi ninguém das Forças Pacificadoras desde que cheguei aqui.
Enquanto eles colocavam a bagagem no avião, Mac disse:
- Você não pensou duas vezes antes de sair daqui? Deve ter feito
muitos amigos.
- Pensei várias vezes, mas acho que a gente deve ir para onde foi
chamado. Fui convocado para ficar aqui, e agora estou sendo chamado
para lá. Que seria de um sujeito jogado para as traças como eu se
ninguém se lembrasse dele?
- Você é o melhor criador de disfarces e falsificador de
documentos que já conheci, e fiquei sabendo que você fez grande
sucesso aqui.
- Ah! Isso não é verdade. O senhor não conhece os fatos
verdadeiros, Sr. McCullum. Não havia mais nada para eu fazer aqui em
matéria de disfarces e falsificação de documentos, porque ninguém
necessitava disso. Resolvi, então, envolver-me em estudos bíblicos,
aperfeiçoar minha leitura, essas coisas. Logo em seguida, o líder me
convocou. Eu nunca fui professor ou pregador, mas fiz o melhor que
pude. E gostei. Gostei de ter uma ocupação. Aquele título de assistente
de pastor me foi dado por bondade.
- Foi uma honra, não?
- Sim, eu gostei.
- Espero que se sinta honrado, porque esse título é muito
significativo.
- Vou sentir falta de todos, mas devo lhe dizer que estou querendo
chegar a Petra e conhecer o lugar. E ver novamente o Dr. Ben-Judá, Dr.
Rosenzweig e todos os outros, bem...
- E você vai ter um trabalho muito importante.
- Eu gostaria que o senhor me contasse.
***
Chloe passou a maior parte do tempo dormindo durante as quatro
horas de vôo. Quando o efeito das drogas passou, ela voltou a si. E
estava com fome. Uma barra de energia e alguns goles do líquido que ela
ingeriu antes de sentir o efeito do narcótico foram seu único alimento
desde as 19 horas da noite anterior, quando foi seqüestrada. Aquilo seria
uma boa desculpa para fingir que estava inconsciente.
- Que horas são aqui? - perguntou o companheiro de Jock quando
o avião pousou.
- Perto de meio-dia, e estou com fome - disse Jock. - E você?
- Eu também.
- Vou oferecer alguma coisa à prisioneira. Fingir que sou um tira
bonzinho. Injetar um pouco de soro da verdade. Ver se ela começa a
cantar.
- Ela é um passarinho difícil de cantar, não?
- Você nem imagina, Jess. Até agora, estou cantando o coro de
"Aleluia" sozinho.
- E se ela não falar? Quanto tempo você vai esperar?
- Quando a gente não consegue extrair nada nas primeiras 48
horas, a coisa fica cada vez mais difícil.
- A fome não ajuda?
- Para mim, ajudaria, mas acho que já fizeram isso com
prisioneiros de guerra. Aqueles que sobrevivem ao primeiro round de
tortura física e psicológica não falam, por mais que a gente insista.
Enquanto Chloe estava sendo transportada através do túnel de
acesso ao terminal, Jock disse:
- Aquela prisão nunca abrigou uma detenta antes de tomarmos
posse dela. A nossa prisioneira vai ficar numa solitária. É a única maneira
de mantê-la separada do restante da população carcerária.
Chloe foi deitada no banco traseiro de um espaçoso veículo
utilitário, com tela de arame nas janelas e nenhuma maçaneta interna.
Jock a algemou.
- Ela vai voltar a si logo - ele explicou. - Um pouco de cuidado
nunca é demais.
Quando eles pararam no caminho, Chloe procurou imaginar uma
forma de fugir. Jock disse:
- Vou buscar comida. Fique aqui com ela.
Chloe sentou-se.
- Preciso ir ao banheiro.
Jock olhou firme para ela.
- Está falando sério?
- Claro.
- Não temos uma policial para acompanhá-la. Você vai ter de usar
o banheiro masculino, e um de nós vai ficar a seu lado.
- Esqueça.
- Você quer que eu compre uma daquelas fraldas para adultos?
- Quanto tempo falta para chegarmos ao destino?
- Meia hora.
- Eu espero.
Enquanto Jock não voltava, Chloe procurou puxar conversa com o
homem para quem ela não olhara até aquele momento. Ele tinha um 0 na
testa, o que significava que era dos Estados Unidos Sul-americanos. Sua
pele era surpreendentemente escura, e ele tinha dentes perfeitos.
- Você me faz lembrar meu marido - ela disse.
- Sério?
- Sim, só que ele não é tão feio assim.
O homem achou graça e virou-se para ela.
- Você é muito engraçadinha - ele disse. - Por que está me
hostilizando?
- Você é um dos que vão me matar. Acho que não vou ser capaz
de lutar com você, machucá-lo, portanto...
- É verdade.
- Jock chamou você de Jess.
- Sim, meu nome é Jessé - ele disse.
- Hum. Nome em homenagem a Jesus. Esse é o seu nome
verdadeiro? Jesus? - Chloe pronunciou o nome em espanhol.
- A bem da verdade, sim, e tenho uma irmã chamada Maria.
- Ela também é carpathianista?
- Claro.
- Que decepção o seu homônimo deve estar sentindo!
Jock trouxe a comida e tirou as algemas de Chloe. Os homens
começaram a devorar o lanche deles. Chloe continuou sentada atrás da
grade que a separava do banco dianteiro. Ela orou em voz alta:
- Senhor, obrigada por este alimento. Peço-te que me ajudes a
comê-lo lentamente para eu não passar mal, e que elimines qualquer tipo
de veneno que Jock possa ter colocado aqui. Dá-me força para resistir às
tentativas de Jock ou Jessé de me obrigarem a falar o que não devo. Oro
em nome de Jesus. Amém.
ONZE
- Eu gostava muito de Albie - disse Zeke, enquanto Mac pilotava o
avião, cruzando o Atlântico. - Ele era um homem bom.
- Você tem razão, Z - disse Mac. - E nunca vou entender o que
aconteceu, mas penso que ele fez uma tremenda bobagem para ser
morto daquela maneira.
- Não parece ser do feitio dele. Você, o capitão Steele e o restante
do pessoal sempre respeitavam as idéias dele.
- Mas todos nós somos humanos. Quem sabe ele abaixou a
guarda por alguns segundos, ficou confiante demais? Ele estava
determinado a ter a vida comum que sempre teve. Mesmo quando nós
dois concordamos que eu deveria ir a Petra e transportar Rayford de volta
para os Estados Unidos, Albie insistiu que queria levar sua pequena
missão até o fim. Eu também tive culpa. Nós dois achamos que se tratava
de um assunto que precisava ser feito... e rápido. Agora, veja o que
aconteceu.
- Rayford disse que isso foi um baque para Tsion e Chaim.
- Para todos nós. Já passamos por muitos sofrimentos, mas nunca
é fácil. Eles estão planejando realizar um pequeno culto em memória de
Albie em Petra, assim que todo o pessoal de San Diego chegar lá.
- Quando eles vão chegar?
- Ah! A primeira leva deverá chegar amanhã, por volta das três da
madrugada. Você e eu estamos 13 horas na frente deles. Assim que eu
deixar você lá, sigo para Al Basrah e pego as minhas coisas e as de Albie
que ficaram em nosso apartamento. Não podemos deixar pista alguma.
Depois, volto para Petra e pego um avião maior, porque vou ter de
transportar Otto Weser e todo o seu pessoal para lá.
- O capitão Steele me contou sobre esse homem. Pelo que estou
entendendo, você vai levar toda aquela gente para Petra por causa de um
trecho da Bíblia que diz que o povo de Deus deve ser tirado da Babilônia
antes que Ele a destrua, é isso?
- Exatamente.
Z olhou para o oceano, cerca de 12 quilômetros abaixo.
- Como deve ter sido quando as águas se transformaram em
sangue?
- Não dá para imaginar.
- Ei, Mac, você acha que Rayford deve confiar na secretária de
Carpathia?
- Pelo jeito que ele contou, acho que sim. Você também não
acha?
- Não confio em ninguém que não seja crente. E se ela estiver
preparando uma armadilha para pegar você e esse tal de Otto?
- Que pensamento agradável!
- Você mesmo disse que um pouco de cuidado nunca é demais.
- Bem - disse Mac -, precisamos saber o que está acontecendo
em Al Hillah e o que vamos ter de enfrentar depois disso. Não temos
outro recurso.
Uma hora mais tarde, Zeke vasculhou uma de suas sacolas e tirou
um livro de dentro. Ele parecia compenetrado.
- Eu não lia bem quando você me conheceu em Chicago.
- Eu ia dizer que...
- Mas agora que estou lendo melhor, acho que vou poder fazer
outras coisas, você sabe, coisas mais científicas.
- Por exemplo?
- Estou imaginando que vocês vão me pedir para criar novos
disfarces e identidades para um monte de gente.
- Correto. Todos os nossos antigos codinomes e disfarces já foram
descobertos.
- Encontrei este livro em uma biblioteca abandonada, do outro
lado da divisa do Estado de Minnesota. Aqui, há coisas de que eu nunca
ouvi falar. Novas maneiras de mudar a cor da pele e dos olhos, tudo.
Imitar cicatrizes e manchas. Quantas pessoas vão precisar disso?
- Penso que cinco - disse Mac. - Acho que Ray vai querer
disfarces para mim, para ele, Buck, Sebastian e Smitty.
- Sério? Só isso? Eu trouxe um exagero de coisas.
- O que você trouxe?
- Tudo o que sobrou quando saímos de Chicago. Uniformes da
CG com todos os tipos de patentes, documentos de identidade e de
outros tipos, roupas para homens e mulheres. Vai ser fácil. Quero dizer,
isso leva tempo, mas eu imaginei que fossem dez ou 12. O mais difícil de
todos é o Sr. Sebastian, mas já bolei uma idéia para ele.
- Qual e?
Zeke colocou o livro no colo, aparentemente para poder gesticular
com as duas mãos.
- O problema com pessoas grandes é que, por mais que a gente
queira, nunca pode diminuir o tamanho delas. Uma pessoa miúda pode
ficar maior se a gente colocar enchimentos e outras coisas por baixo da
roupa delas, mas não é possível tirar alguns quilos de quem é corpulento.
- Mas, veja - prosseguiu Zeke -, posso dar uma nova aparência a
George, a aparência de um homem bem mais velho. Aí, o tamanho dele
não vai fazer diferença. Ele pode ficar com jeito de um velho, sem que
ninguém perceba que recebeu treinamento militar. Posso dar uma
bengala a ele, óculos. Fazer com que fique parecido com aqueles sujeitos
de meia-idade que envelheceram depressa demais. Corto aquele cabelo
loiro, aplico fios brancos, coloco algumas rugas no rosto. De repente, em
vez de parecer um sujeito de mais ou menos 30 anos, grandalhão e em
perfeita forma, ele vai aparentar ter o dobro dessa idade, abatido por
estar mal alimentado, com o corpo um pouco curvado, talvez sofrendo de
diabetes, problemas nos joelhos, nos pés. Eu coloco um pouco de
enchimento na frente e nas costas dele, para que ande com passos
miúdos. Assim, ele não vai representar ameaça para ninguém.
- Brilhante. E o que você vai fazer comigo?
- O maior problema com você é seu sotaque sulino. Você é capaz
de imitar outros sotaques? De um ianque ou um inglês?
- É mais fácil imitar um inglês do que um ianque, com certeza.
- Então, vou dar um jeito de você ficar parecido com um inglês.
Com terno de tweed e tudo.
***
A suposição de Chloe quanto ao local para onde estava sendo
levada foi confirmada quando Jock conversou, pelo rádio, com alguém à
frente e, pouco depois, o veículo em que ela viajava foi cercado por
batedores da CG em motocicletas e viaturas. Eles escoltaram a famosa
prisioneira às instalações que, um dia, foram conhecidas como Centro
Correcional Stateville, em Joliet, Illinois.
O local era uma casa de horror, em estilo gótico, que um dia
abrigara uma penitenciária estadual e, agora, se transformara em uma
das maiores prisões internacionais da CG, para homens e mulheres. A
população carcerária feminina dali era imensa e só perdia para o Presídio
de Reabilitação Feminina da Bélgica (PRFB).
A primeira coisa que Chloe notou foi o número enorme de
caminhões da imprensa atravancando a entrada. Havia câmeras de todos
os lados apontadas para o veículo em que ela viajava. Assim que o
veículo passou pelos caminhões, Chloe olhou para trás e viu uma
multidão de fotógrafos e jornalistas no imenso pátio, lutando para
conseguir uma posição privilegiada.
Nos últimos dois anos e meio, o pátio de Stateville tornara-se
famoso. Os prisioneiros só recebiam permissão para permanecer naquele
lugar em duas situações. Quando eram levados a passar diante da
gigantesca estátua de bronze de Carpathia três vezes por dia, onde
paravam em grupos de 30 a 50 e se ajoelhavam para adorá-la, ou quando
eram levados para lá a fim de serem executados. O pátio tinha sete
guilhotinas separadas por cerca de dez metros uma da outra e
posicionadas de maneira a receber a luz do sol desde o alvorecer até o
crepúsculo.
Jock parou o veículo no meio do pátio.
- Olhe para lá, meu bem - ele disse. - Aquelas lâminas são afiadas
todas as noites, mas nenhuma jamais foi limpa. Não são esfregadas, não
são lavadas, não recebem protetores contra ferrugem.
- E você está vendo aquelas ranhuras de cada lado, por onde as
lâminas maiores descem? Nos tempos em que éramos mais bonzinhos,
elas eram lubrificadas depois de serem usadas. Não são mais. Agora, as
lâminas descem com dificuldade pelas laterais, algumas vezes emperram,
ficam enrascadas, demoram a cair. Mas são suficientemente pesadas.
Mesmo quando não descem de uma vez, elas afundam pelo menos uns
dez centímetros na hora em que atingem o pescoço de alguém.
- Nos velhos tempos, a lâmina não era tão eficiente assim, para
tristeza nossa. A regra era colocar a cabeça lá e esperar a lâmina cair.
Se, por um motivo ou outro, ela não matasse a pessoa, bem... o castigo já
havia sido aplicado. E não pense que era raro isso acontecer. Muitas
pessoas ficavam andando por aí com ferimentos graves no pescoço.
- Mas agora, se a lâmina não matar na primeira vez, ela é
levantada para descer de novo. Duas, três vezes, até completar o serviço.
E, conforme eu disse, aquela lâmina enferrujada e empastada de sangue
é afiada todas as noites.
Cerca de seis metros adiante de cada guilhotina havia uma mesa
franzina de madeira, também cinza e gasta pela exposição ao sol e ao
vento. Atrás de cada uma, viam-se duas cadeiras de espaldar alto, ao
estilo das encontradas no Banco da Inglaterra, que não combinavam com
o local. O vento não desgastara sua madeira vermelha polida.
- Os processadores e os aplicadores da marca costumam sentarse
ali - ele disse. - Os condenados ficam enfileirados.
Assim que as informações sobre eles são registradas e nós
confiscamos seus pertences pessoais, eles recebem um cesto de
plástico, do tipo daqueles usados em lavanderia, e o entregam ao
executor ou à executora. Ele ou ela o coloca do outro lado, onde a lâmina
despenca. A cabeça cai no cesto e o corpo continua no lugar onde a
pessoa se ajoelhou. Os condenados à prisão perpétua fazem o
recolhimento. Vamos, eu vou lhe mostrar.
- Peço que me poupe disso.
- Ora, você vai gostar.
Jock afastou-se.
- Algeme esta mulher, Jess.
Jessé se virou e abriu a grade.
- Estique os braços.
- É melhor me dopar outra vez - disse Chloe.
- O quê?
- Você acha que vou me deixar ser algemada para que vocês me
levem para um lugar que eu não quero ir?
Jock abriu a porta traseira do carro.
- Espere, Jock! - gritou Jessé. - Ela ainda não está algemada.
- O que está...?
Para Chloe, Jock estava querendo aparecer diante das câmeras
quando entrou rapidamente no veículo pela porta traseira. Chloe
continuou sentada com as mãos fechadas entre os joelhos.
- Você gosta de ser difícil, hein? - ele disse.
Jock agarrou os pulsos de Chloe e a forçou a levantar as duas
mãos juntas, para que Jessé colocasse a algema. Assim que ela foi
algemada, Jock saiu do veículo, puxando-a pelas algemas e arrastando-a
para fora. Com os braços esticados para a frente, ela bateu a cabeça na
porta, arranhou os joelhos no chão do carro e, depois, no terreno. Jock a
forçou a ficar em pé.
Chloe estava toda machucada, mas se sentia feliz por ter dado
tanto trabalho a eles. Talvez outra pessoa não resistisse e caminhasse
docemente em direção à morte. Ela não. Jock a segurou pelo cotovelo e a
conduziu para perto da máquina mortífera do centro.
- Ela vai ser toda sua amanhã, se você não cooperar hoje. O mau
cheiro a sufocou. Os dois homens taparam a boca e o nariz com um
lenço. Chloe, desta vez misericordiosamente algemada com as mãos
para a frente, dobrou os braços e cobriu o nariz com os dedos.
- Conforme você pode ver - disse Jock -, nós não lavamos a
plataforma nem o chão. Por que deveríamos fazer isso?
Para Chloe, a área ao redor das guilhotinas enfileiradas, que
ocupavam um espaço de mais de 50 metros, tinha a aparência de um
matadouro. O chão ao redor era preto, empastado de sangue.
- Você está vendo aquela caçamba ali? - perguntou Jock. Bem
atrás da máquina do centro, talvez a uma distância de 30 metros, havia
uma caçamba enorme, cujo tamanho era cerca de metade de um vagão
para transporte de carga. Ele não tinha tampa.
- Um coletor pega o cesto e joga a cabeça lá - prosseguiu Jock. -
Dois coletores arrastam o corpo para o mesmo lugar. Você está vendo
aquelas trilhas pretas que começam nas guilhotinas e terminam na
caçamba? Você sabe o que elas significam.
Chloe sabia muito bem. Procurou prender a respiração, mas Jock
continuava a puxá-la pelo braço, impedindo-a de tapar o nariz com as
mãos. Ela orou para que ele não a forçasse a olhar dentro da caçamba.
- Ela é esvaziada uma vez por semana - ele disse.
A CG mantinha a imprensa afastada, mas o pessoal gritava de
longe.
- O que é aquilo no macacão dela? Está sujo de terra?
Chloe, mortificada, gritou:
- Chocolate!
Jock se virou e a espancou na testa com as costas da mão.
- Não fale com ninguém, a não ser conosco, entendeu?
- Eles me drogaram com um choco...!
Jock se postou atrás dela e cobriu-lhe a boca com a mão. Quando
Chloe quis mordê-la, ele fincou o joelho nas costas dela, fazendo-a perder
o equilíbrio.
- Jess, me dê a fita adesiva.
- A situação não precisava ter chegado a este ponto, senhora -
disse Jessé, pegando um rolo de fita adesiva no bolso da jaqueta.
- Pensei que não fosse necessário.
Jock esticou o braço para pegar um pedaço da fita, deixando livre
a boca de Chloe.
- A verdade é uma só! Eu fui drogada! Eles...
Jock passou a fita tão apertada sob o nariz de Chloe que provocou
um inchaço imediato no lábio superior dela. Quando ele apertou a fita
contra as bochechas, ela não pôde mais movimentar a mandíbulas, e
muito menos falar.
Deus, Chloe orou silenciosamente, ajuda-me a ser forte. Eu não
quero fraquejar. Não quero ser surrada nem levada a falar alguma coisa
por medo. E, se eu tiver de morrer, permite que eu fale antes. Ajuda-me a
lembrar-me de todos os versículos que memorizei. Por favor, Deus,
permite que eu fale tuas palavras.
Jock e Jessé forçaram-na a atravessar o pátio em direção a uma
porta de aço na parede de um dos conjuntos de celas. A porta ficava no
nível do chão, mas ela supôs que teria de descer uma escada de acesso
à cela solitária no porão.
Eles pararam a uns dez metros da porta. A imprensa estava do
outro lado, a mesma distância.
- Ela contou mais alguma coisa? - perguntou uma mulher.
- Ah! Sim - respondeu Jock.
Chloe movimentou negativamente a cabeça, com muita firmeza.
- Um pouco de cada vez - ele prosseguiu. - É claro que tivemos de
dizer a ela que não existe mais clemência em troca de, ah, favores
físicos, como havia antigamente. Ela só poderá ajudar a si mesma se
contar a verdade. Tenho certeza de que chegaremos lá. Ela já nos
forneceu outras pistas sobre o esconderijo judaísta e a cooperativa de
mercado negro. Já extraímos mais informações dela do que de qualquer
outra pessoa. Como vocês sabem, ela entregou o Sr. Al Basrah, o
principal subversivo do Oriente Médio, e ele já está morto.
Chloe continuou a sacudir a cabeça, mas sabia que não
apareceria na CNNCG naquela noite.
- Por ora, basta, turma. Temos mais alguns pré-requisitos para
que a Sra. Williams seja condenada à prisão perpétua, e não à morte,
mas nossas execuções diárias aqui serão realizadas amanhã, às dez
horas. Não esperamos ter o mesmo número de condenados de ontem,
quando todas as máquinas trabalharam por quase meia hora, mas a
última contagem é de 35, ou seja, cinco em cada máquina.
A imprensa começou a dispersar-se, mas Jock e Jessé
continuaram em pé ao lado de Chloe.
- Vou terminar meu discurso de guia turístico, madame, e você vai
ter de me ouvir até o fim - disse Jock. - Os dias mais felizes de minha vida
foram passados neste pátio, vendo essa gente receber o castigo que
merece. Sinceramente, fiquei desapontado quando fui transferido para
San Diego, mas a chefia me garantiu que havia um grupo enorme de
judaístas naquela cidade. Disseram que eu poderia transportá-los para cá
se conseguíssemos arrancá-los de lá. Esperamos que você seja apenas
a primeira.
***
Mac estava satisfeito por ter a companhia de Zeke naquele vôo
tão longo. Apesar de ter pouco estudo, o jovem era inteligente e curioso.
Tinha sempre uma pergunta a fazer ou histórias para contar.
- É difícil inventar um disfarce para Abdullah, porque seus traços
são muito evidentes. Ele não tem facilidade para mudar de sotaque, por
isso acho melhor manter sua aparência de homem do Oriente Médio, mas
um pouco diferente de um jordaniano. Rayford é bem fácil, porque posso
inventar qualquer tipo para ele. Buck é o mais difícil de todos por causa
daquelas cicatrizes no rosto. Mas digamos que posso transformar vocês
cinco em pessoas totalmente diferentes. O que vocês vão fazer?
- Ainda não sei ao certo, Z - respondeu Mac. - Dizem que
Carpathia está convocando os dez reis. Ele chama esses homens de
potentados regionais, mas nós sabemos o que vai acontecer, não?
- Eu sei.
- Se Otto tiver êxito em Nova Babilônia, vamos descobrir o local da
grande festança antes que ela comece, para instalarmos as "escutas" lá.
Não devemos tentar impedir os eventos proféticos, mas será muito bom
saber exatamente o que está acontecendo.
- E aquela secretária de Carpathia?
- Krystall? Se eles pedissem minha opinião, eu diria que devemos
convencê-la de que sabemos o que vai acontecer em Nova Babilônia e
tirá-la de lá.
- Para Petra?
Mac sacudiu a cabeça.
- Por mais que a gente queira pensar de outra forma, Deus
separou aquela cidade de refúgio apenas para seu povo. É muito triste
dizer isto, mas ela tomou uma decisão, tomou partido e aceitou a marca.
Se nós a tirarmos de Nova Babilônia, ela não vai morrer no meio daquela
confusão, quando Deus julgar a cidade. Mas, de qualquer maneira, ela vai
morrer antes do Glorioso Aparecimento. E quando ela morrer, não vai
gostar da vida eterna que vai ter. Mas isso não significa que não devemos
ser amigos dela e ser gratos por sua ajuda. Ou que não lamentemos por
ela ter esperado tanto tempo para conhecer a verdade.
- Eu ainda tenho dúvidas se podemos confiar nela – disse Zeke.
***
O horário para a partida de San Diego foi antecipado para a meianoite,
em parte porque os preparativos estavam adiantados e em parte
por questões de segurança. Ninguém sabia ao certo quando a CG
iniciaria a próxima ronda para vasculhar o local.
Buck estava no estacionamento conversando por meio de um
walkie-talkie com Ming, que se encontrava em seu apartamento cuidando
de Kenny e manipulando o periscópio. Quando ela disse que o terreno
estava livre, Buck ordenou que os veículos carregados seguissem para a
pista aérea, onde os aviões e os pilotos providenciados por Lionel
Whalum estariam aguardando. Às 18 horas, Ming o chamou.
- Buck, Chloe está na TV.
- Kenny está vendo?
- Vou levá-lo para o quarto dele.
Buck retornou rapidamente a seu apartamento e, quando chegou,
Rayford já se encontrava ali. O noticiário mostrou Chloe tentando
comunicar-se com a imprensa e Jock golpeando-a na testa. Buck ficou
furioso, principalmente quando eles colaram uma fita adesiva na boca de
Chloe. Ele já estava acostumado às mentiras proferidas pela CG, mas
não suportava ver sua esposa sendo agredida.
- O que você está achando disto, Ray? - ele perguntou. Rayford
sacudiu a cabeça.
- Estou procurando entender.
Uma das repórteres disse:
- Aqui em Louisiana todas as prisões são terríveis, mas nenhuma
chega aos pés da prisão de Angola. A terrorista internacional Chloe
Williams se arrependerá do dia em que provocou a CG até o ponto de ser
enviada para cá. A guilhotina será um refresco comparada ao trabalho
forçado que ela terá de enfrentar pelo restante da vida.
- Angola, Louisiana! - exclamou Buck. - É para lá que eu vou.
Quero levar Sebastian e Razor, e você também há de querer ir, é claro,
pai. Quem mais você acha que devemos...
- Calma, Buck - disse Rayford. - Nós não vamos a Louisiana.
- O quê? Você mandou três pessoas importantes à Grécia para
resgatar George, e agora vai permitir que a CG faça o que quiser com
Chloe?
- Ela não está em Louisiana.
- Você acabou de ouvir!
- Pense um pouco, Buck. Eles querem que a gente acredite que
ela está em Louisiana. Eles a tiraram de San Diego para impedir uma
invasão. E jamais anunciariam para onde ela foi levada.
Buck sabia que Rayford estava certo.
- Mas ela está em uma prisão, não? Eles não estão disfarçando
isso.
- Claro que não.
- Ray, eu não posso ir para Petra e deixar Chloe aqui. Se eu ficar
em algum lugar perto do leste, pelo menos vou ter uma chance de...
- E como você vai descobrir onde ela está?
- Eu jamais me perdoaria se partisse para um lugar seguro e
deixasse Chloe morrer sozinha. Não sei como você pode fazer isso.
- Eu não estou querendo fazer isso.
- Ora, vamos, pai, estamos juntos nessa missão. Não seja
teimoso.
- Quero ligar para Krystall para saber se ela ouviu alguma coisa. O
problema é que, lá, são quatro horas da madrugada, e ela acha que não
há ninguém que possa fornecer alguma informação. As pessoas que
sabem de alguma coisa estão em Al Hillah, e não temos acesso a elas.
Krystall vai chamar a atenção se começar a fazer perguntas sobre Chloe.
***
Chloe não ficou surpresa por ter sido deixada sozinha no meio da
noite em Illinois. Ela estava com razão a respeito da solitária. A escada
dava acesso ao porão, e ela foi conduzida para uma pequena cela sem
cama, sem pia, sem instalação sanitária, sem cadeira, sem banco, sem
nada. E também sem luz e sem janela. A fita adesiva havia sido retirada
de sua boca, e quando a porta resistente de metal foi fechada, ela ficou
na mais completa escuridão.
Uma portinhola quadrada na porta foi aberta, preenchida pelo
rosto de Jock.
- Vou deixar você descansar um pouco - ele disse -, e eu também
vou descansar. Pense em tudo o que pode me contar para seu próprio
bem, porque quando eu voltar, vamos ver se haverá necessidade de uma
injeção para você abrir a boca. Esta cela é resultado das besteiras que
você fez hoje. E você não vai gostar daqui se sofrer de claustrofobia ou
tiver medo do escuro.
Chloe sofria de claustrofobia e tinha medo do escuro, mas não
admitiria isso. Temia entrar em pânico ou enlouquecer, porém quando
ouviu os passos de Jock se afastando, ela foi tomada por uma sensação
de paz.
- Obrigada, Senhor - ela disse. - Eu necessito de ti. Estou disposta
a morrer, mas não quero te envergonhar. Preciso de ti para não sucumbir
ao soro da verdade. Não permitas que eu diga alguma coisa nem que
prejudique alguém. Torna-me forte para que eu não me preocupe muito
comigo. Ajuda-me a manter a lucidez, a concentrar-me em minhas
prioridades. E sê com Kenny, Buck e papai.
Ao pensar neles, um soluço subiu-lhe à garganta. Chloe encostouse
na parede e abaixou-se até o chão frio.
- Deus, por favor, faze-me lembrar dos trechos da Bíblia que
queres que eu tenha na memória neste momento. Não permitas que a
fome, o cansaço ou o medo obscureçam minha memória. Tu sabes quem
eu sou e quem eu não sou. Eu só quero ser aquilo que tu desejas. Tu
sabes muito bem que estás lidando com uma pessoa imperfeita.
Ela se deitou de lado sem sentir palpitações decorrentes da
claustrofobia ou da escuridão. Aquilo era prova de que Deus ouvira sua
oração. Ela começou a lembrar-se de versículos bíblicos, desde o
começo da Bíblia. Porém, quando sua mente falhou, ela entrou em
pânico.
- Senhor, revigora minha mente. Não permitas que eu esqueça.
Quero citar tuas palavras quando estiver frente a frente contigo.
Seus pensamentos começaram a ficar desordenados. Como eu
vou me lembrar? E se minha memória se apagar?
- Senhor, por favor - ela orou.
De repente, surgiu uma luz. Estaria ela sonhando? A luz a fez
piscar. O cômodo sujo e cheirando a bolor estava tão claro que ela teve
de proteger os olhos. Uma visão? Um sonho? Uma alucinação?
Em seguida, uma voz. Citando seus versículos favoritos. Ela os
repetiu, palavra por palavra.
- É tua resposta, Senhor? Tu citarás os versículos para que eu os
repita? Obrigada! Obrigada!
Uma batida forte na porta.
- Silêncio aí dentro!
- Sim, paz, continua onde estás. Aquela voz veio de um dos
cantos!
Chloe tirou as mãos dos olhos e avistou uma figura, sentada, com
um dedo nos lábios.
- És tu, Senhor? - ela perguntou, sem fôlego.
- Ninguém pode ver a Deus e continuar vivo - ele sussurrou.
- Então, quem és?
- Ele me enviou.
- Louvado seja Deus.
- Sim, por favor.
- Alguém mais pode ver-te?
- Amanhã. Antes disso, não.
- Vais me fazer lembrar das promessas de Deus?
- Sim.
- Tua presença me faz querer cantar.
- À vontade.
- Canta comigo.
- Não estou aqui para cantar, mas para falar. Você canta.
Chloe começou a cantar.
- "Em Jesus confiar, sua lei observar; oh, que gozo, que bênção,
que paz! Satisfeito guardar, tudo o que Ele ordenar, alegria perene nos
traz."
- Silêncio aí dentro!
Chloe cantou mais alto.
- "Crer e observar, tudo o que Ele ordenar! O fiel obedece ao que
Cristo mandar."
- Se eu tiver de abrir esta porta, você vai se arrepender
amargamente!
- "Que delícia de amor! Comunhão com o Senhor..."
Aquele cântico provocou batidas na porta, como se alguém
estivesse usando um bastão, e Chloe riu alto.
- Eles não estão gostando de minha voz - ela disse a seu novo
amigo.
- Ou das palavras - ele disse, e Chloe riu mais alto ainda.
- Você aí, está maluca?
- Não! Você tem algum pedido a fazer?
- Só quero que você pare com essa cantoria!
- Sinto muito! - E ela voltou a cantar. - "Firme nas promessas do
meu Salvador, cantarei louvores ao meu Criador; cada dia alegro-me no
seu amor, firme nas promessas de Jesus."
- Muito bem! - A portinhola foi aberta com força.
O cômodo escureceu novamente.
- Você tinha uma luz aí?
- Claro! A luz de Deus.
- Estou falando sério! Você tinha uma luz aí?
- Somente a luz da presença dele.
- Se Jock voltar e descobrir que você tem alguma coisa aí, vai se
arrepender.
- Arrepender de fazer uma surpresa para ele? Acho que não. Você
sabe cantar? Cante comigo. "Firme nas promessas do meu Salvador..."
O guarda fechou a portinhola com força.
DOZE
Rayford tinha apenas uma idéia do que Buck devia estar sofrendo.
Talvez os sentimentos de marido fossem diferentes dos de pai. Mas ele
não estava com certeza disso.
- Vamos fazer o seguinte - ele disse ao genro. - Lionel me arrumou
um avião de dois lugares. É rápido, mas carrega pouco combustível.
Vamos ter de reabastecer no caminho, talvez em Cypress. Primeiro,
temos de ajudar todo o pessoal a sair daqui. Depois, se tivermos de ficar
aguardando na pista, para mim tanto faz. Voamos para algum lugar do
meio-oeste, ou do sul. Onde você achar que vai ficar mais perto de Chloe.
- E fazer o quê?
- Podemos levar aquela pequena TV via satélite e manter contato
com Mac, Otto e Krystall, para ver se conseguimos alguma pista - disse
Rayford.
- Você quer estar no mesmo continente quando ela morrer, é isso?
- Bem, hã, não...
- Pai, pense um pouco. Eu não sei pilotar avião. Você não tem um
co-piloto. Nenhum de nós é militar. Se você conseguiu um avião de dois
lugares, só para duas pessoas, não vamos poder trazer Chloe conosco.
Rayford sentou-se e segurou a cabeça com as mãos.
- Não sei mais o que fazer, Buck. Não quero sair daqui enquanto
ela estiver presa. Mas não sabemos onde ela está, não podemos levar
uma tripulação conosco.
- Para onde você acha que devemos ir?
- Que tal Wisconsin, onde Zeke estava? Ele me contou que a CG
nunca aparece por lá. O lugar é central. Assim que soubermos onde ela
está, poderemos partir rápido.
***
Jock conduziu Chloe a um cômodo mal iluminado, cerca de cem
passos da cela solitária.
- Hoje somos só nós dois, madame. Nada de brincar de policial,
nada de luzes nos olhos, nada de pressão.
Porém, quando Chloe viu o lugar em que deveria sentar-se - uma
cadeira de aço presa ao chão e com tiras de couro nas pernas e braços -
ela disse:
- Não, só nós dois, não, Jock.
- Como assim?
- Você sozinho não vai conseguir me amarrar naquela cadeira.
- Acho que vou conseguir, mas você não vai gostar.
- Você vai se arrepender de tentar fazer isso sozinho. E não vou
ficar amarrada de jeito nenhum, a menos que seja à força.
- Que tal tentarmos um jeito mais fácil? - ele perguntou. - Que tal
conversarmos um pouco para ver se você precisa mesmo ser amarrada?
- Sem soro da verdade?
- Sim, se você cooperar.
- Estou dizendo desde já que não vou cooperar.
- Será que não vou conseguir convencer você a pensar mais um
pouco, ser simpática, ajudar a si mesma?
- Não. E tem mais. Preciso usar o toalete das senhoras. Antes
disso, não vou me sentar nesta cadeira e muito menos ser amarrada.
Jock suspirou fundo e a acompanhou até o fim do corredor.
- Conforme você pode imaginar - ele disse -, não existem janelas
neste tipo de prisão. O único caminho para sair é o caminho da entrada, e
eu vou ficar aqui esperando.
***
Mac estava conversando por telefone com Rayford enquanto
sobrevoava o Atlântico no meio da noite.
- Quando Weser vai estar no palácio?
- Por volta de oito horas, horário de lá.
- Estou achando que a prioridade máxima é Chloe.
- Correto.
- E depois os planos de Carpathia.
- Exatamente.
- Vou tentar falar com Weser daqui a meia hora, quando ele já
estiver lá. Ligo para você assim que souber de alguma coisa.
***
Chloe saiu do banheiro sujo da prisão de Stateville e avistou Jock
acompanhado de três guardas - uma mulher e dois homens.
- Então, Jock, não seríamos só nós dois? - ela perguntou.
- Poderia ter sido. Quando você estiver amarrada naquela cadeira
e muito infeliz, vai ver sua cara no espelho. Pelo menos você me avisou
antes, não me fez perder tempo com conversa boba para depois eu ter de
amarrá-la na cadeira, sem ajuda de ninguém.
Enquanto Chloe atravessava o corredor, a mulher agarrou sua
mão direita e torceu-a para trás; um dos homens fez o mesmo com a
esquerda. Ela pensou em protestar; havia deixado claro a Jock que não ia
cooperar. Assim que eles entraram na saleta, o terceiro guarda curvou-se
e levantou-a do chão pelos tornozelos. A dor provocada pela distensão
dos músculos de seus ombros a fez gritar de dor, mas, em questão de
segundos, ela estava amarrada na cadeira.
Os guardas saíram, deixando uma seringa hipodérmica com Jock.
Ele fechou a porta e se aproximou de Chloe.
- Última chance - ele disse. - Você não vai contar a verdade sem
isto?
O pulso de Chloe começou a bater aceleradamente até o
momento em que ela viu seu amigo da cela solitária sentado na cadeira
de Jock.
- Eu não vou contar a verdade de jeito algum - ela disse.
- Ah! Isto aqui já derrotou gente mais forte que você - disse Jock.
Ele começou a inserir um receptáculo em uma das veias do
antebraço de Chloe. Fez isso com tanta precisão que ficou claro que tinha
experiência. Chloe não sentiu qualquer dor, e ele prendeu o receptáculo
no lugar com muita destreza. Em seguida, inseriu um tubo que ia até a
lateral da mesa dele.
Jock sentou-se, e o novo amigo de Chloe ficou em pé atrás dele.
Ela conteve-se para não rir, olhando para ele por cima da cabeça de
Jock.
- Para quem você está olhando? - ele perguntou.
- Você não o conhece - respondeu Chloe, já que ele queria a
verdade, havia um pouco de verdade nessa resposta.
Jock inseriu a seringa no tubo.
- Quando eu empurrar o embolo, vou injetar 15cc de soro em suas
veias. Isso vai lhe dar uma sensação de tranqüilidade. Você deve saber
como essa coisa funciona. Ela neutraliza a substância química em seu
cérebro que a impede de ser totalmente sincera. É exatamente isto que
eu quero de você: que seja sincera.
- Eu não vejo a hora de ouvir o que tenho a dizer.
- Diga o suficiente. É isso que vai fazer a diferença entre a vida e a
morte para você.
- Ora, Jock, penso que há alguém aqui que necessita mais do soro
da verdade que eu.
- Você está duvidando de mim?
- Você sabe muito bem que, mesmo que eu conte tudo, vou
morrer.
- Necessariamente não.
- Você é um mentiroso. Eu sei disto, e esta é a verdade. Se eu
não estiver enganada, você ainda não me injetou nada.
- De fato, mas chega de conversa. Vou começar.
O amigo de Chloe fez um gesto atrás de Jock como se fosse um
diretor musical. Ela começou a cantarolar em voz baixa:
- "Chuvas de bênçãos teremos, é a promessa de Deus, tempos
benditos trazendo chuvas de bênçãos dos céus."
- O soro não age assim tão rápido, por isso o que você está
cantando não é verdade.
- "Chuvas de bênçãos, chuvas de bênçãos dos céus! Gotas
benditas já temos, chuvas rogamos a Deus."
- Você é afinada.
- Obrigada. A canção também é linda.
Dali a poucos minutos, Chloe sentiu o efeito do soro. Era uma
estranha sensação de bem-estar, de confiança, e ela se sentia livre para
dizer qualquer coisa. Mesmo que não soubesse tudo, queria ajudar
aquele homem e responder às suas perguntas. Nada de mal aconteceria
a ela, e tudo ficaria bem.
Mas ela sabia que não. Olhou por cima da cabeça de Jock.
- Por quanto tempo ficarás aqui comigo? - ela perguntou.
- Pelo tempo que for necessário - respondeu o homem invisível.
- Hã? - disse Jock - Pelo tempo que for necessário. Já descansei
um pouco. Posso ficar aqui até quando você quiser.
- Garanto que não pode.
- Então, tente.
Chloe sorriu.
- Creio que você vai achar que quero demais.
- Como está se sentindo?
- Tranqüila.
- Ótimo. É um bom começo. Qual é o seu nome?
- Chloe Steele Williams, e sinto orgulho dele.
- Qual é o nome de seu pai?
- Rayford Steele.
- E de seu marido?
- Cameron Williams. Eu o chamo de Buck.
- Você tem um filho?
- Tenho.
- Qual é o nome dele?
- O nome dele é muito especial para Buck e para mim, porque ele
tem o nome de dois amigos e compatriotas muito queridos, que já
morreram.
- E qual era o nome deles?
- Se eu responder, você vai saber o nome de meu filho.
- E por que eu não devo saber o nome de seu filho?
- Quanto menos você souber sobre ele, mais dificuldade vai ter de
encontrá-lo.
- Eu já lhe disse que não vamos fazer mal algum a seu filho.
- É mentira.
- De qualquer forma, você mencionou o nome dele para seu pai
pelo telefone. É Kenny.
Jock empurrou o embolo novamente. Talvez fosse psicológico,
mas Chloe sentiu um impulso de falar. Aquilo era estranho, mas a droga
parecia forçá-la a contar a verdade, mesmo que as respostas não fossem
as que Jock desejava.
O rosto dele estava mais corado do que o normal. Estaria ela
deixando-o furioso? Tomara que sim.
- Você faz parte de um grupo subversivo que se opõe ao governo
da Comunidade Global e a seu supremo potentado, Nicolae Jetty
Carpathia?
- Sim.
- É verdade que vocês não acreditam que o potentado é um ser
divino?
- Sim, e tem mais. Nós acreditamos que ele é o anticristo da
Bíblia.
- Você está ciente de que a afirmação que acabou de fazer é
punível com a morte?
- Sim. Também estou ciente de que Deus deseja a verdade, que a
lei de Deus é a verdade, que Jesus é a verdade e que, se você conhecer
a verdade, ela o libertará.
De onde vieram essas palavras? Obrigada, Senhor.
- Você faz parte de uma facção judaísta que tem um grupo
enorme morando em San Diego, Califórnia?
- Você está me perguntando quem eu sou?
- Estou perguntando se você faz parte de uma...
- Sou seguidora de Cristo, o Filho do Deus vivo. Ele é mais
poderoso do que eu, e não sou digna de desatar as correias de suas
sandálias.
- O quê?
- Você não ouviu o que eu disse?
- Os judaístas ou uma facção dos judaístas chamada Comando
Tribulação têm alguma coisa a ver com a escuridão que tomou conta de
Nova Babilônia?
- Isso foi obra do próprio Deus.
- Você ou o grupo que representa deseja destruir o governo deste
mundo?
- Ele já está destruído. Só que muita gente ainda não sabe.
- O governo da Comunidade Global está destruído?
- Esse fato se tornará conhecido de todos.
- Você adora a imagem de Nicolae Carpathia pelo menos três
vezes por dia?

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