domingo, 5 de setembro de 2010

DEIXADOS PARA TRÁS IIIB

— Digamos, então, que estou orando para que Deus me dê mais um dia. Preciso conversar com meu piloto, e depois todos nós trabalharemos juntos tentando descobrir o melhor lugar para sairmos daqui rumo aos Estados Unidos.
— Há uma coisa que você precisa saber — disse Michael.
— Só uma?
— Não, mas uma coisa muito importante. Creio que o Dr. Ben-Judá não vai querer fugir daqui.
— Que outra opção ele tem?
— O problema é esse. Ele talvez não queira ter opções. Com a morte da esposa e dos filhos, ele talvez não veja motivos para fugir, nem mesmo para viver.
— Que absurdo! O mundo necessita dele! Precisamos manter vivo o seu ministério.
— Você não precisa me convencer, Sr. Williams. Só estou dizendo o que penso. Talvez você tenha dificuldade para convencê-lo a fugir para os Estados Unidos. Acredito, no entanto, que lá ele estará muito mais seguro que em qualquer outro lugar, se é que vai conseguir estar seguro em algum lugar.

— Você não vai molhar as botas se ficar em pé na proa e pular quando ouvir o fundo do barco se arrastando na areia disse Michael, dirigindo o barco para a margem leste. Ele deixou para o final a tarefa de desligar os motores e levantá-los da água, assim imaginou Buck. Correu para perto de Buck e ficou atento, cruzando os braços ao redor do corpo.
— Atire sua mochila o mais distante que puder, pule comigo para bem longe do barco!
O barco movimentou-se lentamente, e Buck seguiu as instruções. Mas ao saltar, caiu de lado e rolou no chão. O barco estava se afastando. Ele sentou-se, com o corpo coberto de areia molhada.
Ajude-me, por favor! — gritou Michael, que agarrara o barco e estava tentando arrastá-lo em direção à margem.
Assim que os dois amarraram o barco, Buck bateu no corpo para tirar a areia. Ficou satisfeito ao ver que suas botas estavam secas, e começou a seguir seu novo amigo. Buck carregava apenas uma mochila. Michael carregava apenas uma arma. Ele sabia para onde estava indo.
— Agora preciso pedir-lhe para permanecer em completo silêncio — cochichou Michael, enquanto ambos abriam caminho por entre a vegetação rasteira. — Estamos em lugar ermo, mas não podemos nos arriscar.
Buck não havia imaginado que cinco quilómetros eram uma distância muito grande. O solo era irregular e úmido. Os ramos dos arbustos batiam-lhe no rosto. De vez em quando, ele trocava a mochila de ombro, mas sentia-se desconfortável. Ele estava em boa forma, mas a situação era difícil. Aquela caminhada não era um passeio normal nem uma corrida que ele costumava fazer a pé ou de bicicleta. Não sabia aonde ia dar aquele terreno arenoso à margem do rio.
Buck estava apreensivo quanto ao encontro que teria com o Dr. Ben-Judá. Queria estar ao lado de seu amigo e irmão em Cristo, mas o que alguém pode dizer a uma pessoa que perdeu a família? Nenhum chavão, nenhuma palavra de conforto o faria sentir-se melhor. Aquele homem pagara o preço mais alto que alguém poderia pagar, e só os céus poderiam recompensá-lo.
Meia hora depois, ofegando e com o corpo dolorido, ele e Michael chegaram perto do esconderijo. Michael encostou o dedo nos lábios pedindo silêncio e abaixou-se, afastando os galhos secos enquanto ambos avançavam. Quase vinte metros adiante, no meio de um arvoredo, havia uma abertura que dava para um abrigo subterrâneo invisível a qualquer pessoa que não conhecesse o local.


ONZE




BUCK surpreendeu-se ao ver que não havia camas nem travesseiros dentro do esconderijo. Então era esse o local a que as testemunhas se referiram quando citaram o versículo sobre não ter onde reclinar a cabeça, Buck pensou.
Três jovens de rosto abatido e olhar desesperado, que poderiam ser irmãos de Michael, ajuntaram-se dentro do abrigo, onde mal havia espaço para ficar em pé. Buck percebeu que havia uma abertura no nível do solo para enxergar quem se aproximava. Isso explicava por que Michael não os avisara sobre sua chegada nem dera nenhum sinal.
Buck foi apresentado aos que ali estavam, mas, dos quatro, apenas Michael falava inglês. Buck semicerrou os olhos, tentando enxergar Tsion. Podia ouvi-lo, mas não o via. Finalmente, alguém acendeu uma lanterna de luz fraca. Sentado em um canto, encostado na parede, estava talvez uma das primeiras e, com certeza, a mais famosa dentre todas as pessoas que passariam a ser as 144 mil testemunhas profetizadas na Bíblia.
Ele estava sentado com os joelhos encostados no peito e com os braços ao redor das pernas. Trajava uma camisa branca com as mangas enroladas e calças escuras e curtas que cobriam apenas parte de suas canelas, deixando um espaço até o cano de suas meias. Não tinha sapatos nos pés.
Como Tsion parecia jovem! Buck sabia que ele estava chegando à meia-idade, mas, sentado ali, balançando o corpo e chorando, ele parecia uma criança. Não ergueu os olhos nem reconheceu Buck.
Buck disse em voz baixa que gostaria de ficar alguns momentos a sós com Tsion. Michael e os outros saíram do esconderijo e ficaram debaixo do arvoredo, com as armas engatilhadas. Buck curvou-se em direção ao Dr. Ben-Judá.
—Tsion — ele disse — Deus ama você.
Buck ficou surpreso com suas próprias palavras. Será que Tsion sentia que Deus o amava naquele instante? E que tipo de palavras eram aquelas? Seria agora a sua vez de falar no lugar de Deus?
— O que você sabe com certeza? — prosseguiu Buck, sem mesmo entender o que ele próprio queria dizer.
A resposta de Tsion, com seu sotaque israelense quase imperceptível, soou estridente e em tom contrito.
— Eu sei que meu Redentor vive.
— O que mais você sabe? — perguntou Buck, procurando prestar atenção na resposta.
— Sei que Aquele que começou boa obra em mim há de completá-la.
Louvado seja Deus! pensou Buck.
Abaixando-se até o chão, Buck sentou-se ao lado de Ben-Judá e encostou-se na parede. Ele havia ido até lá para resgatar aquele homem, para dar-lhe assistência, e ouvira aquelas palavras. Só Deus podia proporcionar tanta segurança e confiança em um momento de tanto sofrimento.

— Sua esposa e seus filhos eram crentes ...
— E estão com Deus — Tsion concluiu a frase.
Buck tinha se preocupado, tinha perguntado a si mesmo: Estaria Tsion tão aniquilado pela perda injusta de seus entes queridos a ponto de sua fé ter sido abalada? Estaria ele tão frágil a ponto de não ter forças para prosseguir? Ele sofreria, com certeza. Choraria muito. Mas não como um idólatra, sem nenhuma esperança.
— Cameron, meu amigo — disse Tsion em voz fraca — você trouxe sua Bíblia?
— Não em formato de livro. Tenho a Bíblia inteira em meu computador.
— Perdi mais que minha família, Buck.
— Como assim?
— Perdi minha biblioteca. Meus livros sagrados. Todos foram queimados. Não existem mais. Eu gostava muito deles. Quase tanto quanto gostava de minha família.
— Você não trouxe nada de seu escritório?
— Precisei usar um disfarce ridículo, com cabelos longos como usam os ortodoxos, e uma barba falsa. Não carreguei nada, para não ter a aparência de um erudito.
— Será que alguém não poderia mandar os livros de seu escritório para você?
— Essa pessoa estaria pondo sua vida em risco. Sou o principal suspeito do assassinato de minha família.
— Que absurdo!
— Nós dois sabemos disto, meu amigo, mas a percepção do homem não demora a transformar-se em realidade. De qualquer forma, como alguém poderia enviar minhas coisas sem ser rastreado por meus inimigos?
Buck vasculhou sua mochila e retirou o laptop de dentro.
— Não sei por quanto tempo ainda vai durar a bateria — ele disse, acendendo a tela.
— Você tem aí o Antigo Testamento em hebraico? — perguntou Tsion.
— Não, mas existem programas desse tipo no mercado.
— Se existem, já é um bom sinal — disse Tsion, com a voz ainda embargada. — Meus estudos mais recentes fizeram-me acreditar que nossa liberdade religiosa em breve começará a ser reprimida em ritmo alarmante.
— O que você gostaria de ver?
A princípio, Buck pensou que Tsion não ouvira sua pergunta. Ou talvez Tsion tivesse respondido e ele não ouvira. O computador começou a funcionar, exibindo uma variedade de livros do Antigo Testamento. Buck olhou de relance para seu amigo. Ele estava tentando falar, mas as palavras não saíam de sua boca.
— Às vezes, encontro conforto na leitura dos Salmos — disse Buck.
Tsion assentiu, cobrindo a boca com a mão. O peito do rabino arfava e ele não conseguia conter os soluços. Inclinou-se na direção de Buck e rompeu em pranto.
— A alegria do Senhor é a minha força — ele disse em tom de lamento. — A alegria do Senhor é a minha força.
Alegria, pensou Buck. Que conceito, neste lugar, nesta ocasião. Agora o objetivo era sobreviver. Agora, a alegria passara a ter um significado diferente na vida de Buck. Ele costumava relacionar alegria com felicidade. É claro que Tsion Ben-Judá não estava dando a entender que se sentia feliz. Talvez nunca voltasse a ser feliz. A alegria deste momento era uma paz profunda e permanente, a certeza de que Deus era soberano. Eles não precisavam gostar do que estava acontecendo. Simplesmente precisavam confiar que Deus sabia o que estava fazendo.
Mas isso não facilitava as coisas. Buck sabia que tudo ficaria pior. Se alguém não permanecesse firme na fé naquele momento, jamais teria fé. Sentado no esconderijo cavado na terra, abafado e úmido, no meio de um lugar desconhecido, Buck estava mais convicto do que nunca que depositara sua fé no unigénito Filho de Deus. Ao lado de seu amigo aniquilado pela dor e chorando em seu ombro, Buck sentiu uma proximidade muito grande com Deus, a mesma que sentira no dia em que aceitou a Cristo.
Tsion se recompôs e estendeu o braço em direção ao computador. Atrapalhou-se com as teclas e pediu ajuda.
— Mostre o arquivo dos Salmos — ele disse.
Buck fez o que ele pediu, e Tsion usou o mouse para encontrar o que queria. Com a outra mão, cobria a boca enquanto chorava.
— Peça aos outros que venham até aqui para orarmos — ele disse.
Alguns minutos depois, os seis homens ajoelharam-se em círculo. Tsion proferiu algumas palavras em hebraico, e Michael as traduziu em voz baixa no ouvido de Buck.
— Meus amigos e irmãos em Cristo, apesar de estar sofrendo profundamente, sinto que devo orar. Oro para o Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó. Louvo teu nome porque tu és o único e verdadeiro Deus, o Deus acima detodos os outros deuses. Estás sentado nos céus. Não há ninguém semelhante a ti. Em ti não há variação ou sombra de mudança.
Tsion rompeu em pranto novamente e pediu que os outros orassem por ele.
Buck nunca tinha ouvido várias pessoas orando junto em voz alta e em língua estrangeira. O fervor daqueles homens, uma mistura de testemunhas e evangelistas, fez com que Buck caísse prostrado no chão. Ele sentiu a lama fria nas costas das mãos ao encostar o rosto em suas palmas. Não sabia o que se passava com Tsion, mas sentiu que seu amigo estava envolvido pelo manto da paz. De repente, a voz de Tsion elevou-se acima da dos companheiros. Michael curvou-se até o chão e sussurrou no ouvido de Buck.
— Se Deus é por nós, quem será contra nós?
Buck não sabia por quanto tempo estava deitado no chão. As orações foram se transformando em gemidos, que soavam como se fossem versões hebraicas de améns e aleluias. Buck ajoelhou-se e sentiu o corpo dolorido. Tsion olhava para ele, com o rosto ainda molhado de lágrimas, mas não chorava mais.
— Acho que finalmente vou conseguir dormir — disse o rabino.
— Você está precisando. Não vamos a lugar nenhum esta noite. Tomarei providências para que tudo seja feito amanhã, após escurecer.
— Você precisa ligar para seu amigo — disse Michael.
— Você faz ideia de que horas são? — perguntou Buck. Michael olhou para seu relógio, sorriu, balançou a cabeça e disse simplesmente: -Oh.
— Alexandria? — perguntou Ken Ritz pelo telefone na manhã seguinte. —Claro, posso chegar lá com facilidade. O aeroporto é enorme. Quando você vai estar lá?
Buck tinha se banhado e lavado uma muda de roupas em um afluente do rio Jordão, e se enxugado com um cobertor. Um dos guardas de Tsion Ben-Judá estava por perto. Ele preparara o desjejum e agora estava secando as meias e a roupa de baixo de Tsion sobre uma pequena fogueira.
— Partiremos daqui esta noite, assim que escurecer — disse Buck. — Por mais que um barco de madeira de 12 metros com dois motores de popa e seis homens a bordo demore para chegar a Alexandria ...
Ritz estava rindo.
— Como já lhe contei, esta é a primeira vez que venho para cá — ele disse — mas de uma coisa estou certo: se você pensa que vai sair daí e chegar a Alexandria sem ter de arrastar esse barco por terra até o mar, está muito enganado.
Ao meio-dia todos os homens saíram do esconderijo. Eles estavam confiantes de que ninguém os seguira até aquele lugar remoto e que, enquanto não pudessem ser vistos por algum avião, poderiam estender as pernas e respirar um pouco de ar fresco.
Michael não achou tanta graça na ingenuidade de Buck quanto Ken Ritz. Achava que havia poucos motivos para sorrir em tempos como aquele. Encostou-se em uma árvore e disse:
— Há alguns aeroportos pequenos aqui em Israel — ele disse. — Por que você está tão determinado a partir do Egito?
— Bem, aquele sonho — não sei, tudo isto é novidade para mim. Estou tentando ser prático, ouvir o que dizem as testemunhas, seguir as orientações de Deus. O que devo fazer em relação àquele sonho?
— Sou um crente mais novato que você, meu amigo — disse Michael. — Mas não iria contra um sonho que foi tão claro.
— Talvez tenhamos mais oportunidades no Egito que em Israel — disse Buck.
— Não acredito — disse Michael. — Para sair legalmente de Israel e entrar no Egito, você vai precisar passar pela alfândega.
— O quanto há de verdade nisso, levando-se em consideração meu convidado?
— Você quer dizer sua carga de contrabando?
A conversa parecia derivar para o lado humorístico, mas Michael estava sério ao dizer isso.
— Eu só gostaria de saber — disse Buck — o quanto os fiscais da alfândega e os guardas da fronteira estão empenhados em encontrar o Dr. Ben-Judá.
— Você gostaria de saber? Eu não. Ou evitamos atravessar a fronteira ou teremos de procurar um meio sobrenatural.
— Estou aberto a qualquer sugestão — disse Buck.

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Rayford estava conversando com Amanda por telefone. Ela o pusera a par dos últimos acontecimentos.
— Estou com muita saudade de você.
— Sua ideia de me fazer vir para cá foi muito boa — ela disse. — Com Buck viajando e Chloe ainda se restabelecendo, sou necessária aqui.
— Você também é necessária aqui, querida, e estou contando os dias nos dedos.
Rayford contou a Amanda sua conversa com Hattie e os planos dela de voar para os Estados Unidos.
— Confio em você, Rayford. Ela parece estar sofrendo muito. Vamos orar por ela. O que eu não daria para que essa moça ouvisse alguns ensinamentos profundos!
Rayford concordou.
— Se ao menos ela pudesse passar pela nossa cidade no caminho de volta. Talvez quando Bruce estiver falando de algum capítulo sobre ...
Rayford parou ao se dar conta do que acabara de dizer.
— Oh, Ray — disse Amanda.
— Ainda faz muito pouco tempo — ele disse. — Só espero que Deus envie outro professor de estudos bíblicos para nós. Mas não vai ser igual a Bruce.
— Não — disse Amanda — e não vai ser tão breve assim a ponto de beneficiar Hattie, se ela concordar em passar por aqui.

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No final daquela tarde, Buck recebeu uma ligação de Ken Ritz.
— Você ainda quer que eu o encontre em Alexandria?
— Estamos conversando sobre isso, Ken. Voltarei a ligar para você.
— Você sabe dirigir um carro com câmbio manual, Buck? — perguntou Michael.
— Claro.
— Um bem antigo?
— Um daqueles carros esquisitos?
— Não tanto assim — disse Michael. — Comprei um velho ônibus escolar que cheira a peixe e tinta. Costumo usá-lo nas duas profissões. Está um bagaço, mas se você conseguir chegar até a embocadura sul do Jordão, talvez encontre um caminho para atravessar a fronteira em direção ao Sinai. Eu poderia fornecer-lhe gasolina e água. Aquela coisa consome mais água que gasolina.

— Que tamanho tem o ônibus?
— Não é muito grande. Acomoda cerca de vinte passageiros.
— Tração nas quatro rodas?
— Não, sinto muito.
— Queima muito óleo?
— Não tanto quanto a água que consome, mas devo dizer
que sim.
— O que há no Sinai?
— Você não sabe?
— Sei que é um deserto.
— Então você sabe tudo o que precisa saber. Vai ter de se preocupar com o motor do ônibus e com a água que ele consome.
— O que você está me propondo?
— Eu lhe vendo o ônibus, sem maiores problemas. Você fica com toda a documentação. Se alguém parar você, eles virão atrás de mim, e eu direi que vendi o ônibus.
— Prossiga ...
— Você esconde o Dr. Ben-Judá debaixo dos bancos no fundo do ônibus. Se você conseguir atravessar a fronteira e chegar ao Sinai, o ônibus poderá levá-lo até El Arish, que fica a menos de 50 quilómetros a oeste da Faixa de Gaza, à margem do Mediterrâneo.
— E daí você pega seu barco de madeira, se encontra conosco e nos leva até os Estados Unidos?
Finalmente Buck conseguiu extrair um sorriso resignado de Michael.
— Há uma pista de vôo lá, e penso que os egípcios não estão preocupados com um homem procurado em Israel. Se começarem a criar caso, poderão ser comprados.
Um dos guardas entendeu o nome da cidade litorânea, e Buck achou que ele estava pedindo, em hebraico, que Michael lhe explicasse sua estratégia. Ele mantinha o semblante sério enquanto falava com Michael, e este virou-se para Buck.
— Meu companheiro tem razão a respeito dos riscos. Israel talvez já tenha divulgado a promessa de uma enorme recompensa pela captura do rabino. Se você não puder cobrir essa quantia, é provável que os egípcios criem caso.
— Como vou saber qual é a tal quantia?
— Você vai ter de adivinhar. Negocie até cobri-la.
— E quanto você acha que é?
— Um milhão de dólares ou mais.
— Um milhão de dólares? Você acha que todos os norte- americanos têm esse dinheiro?
— Você não tem?

— Não! E se alguém tivesse, não carregaria consigo.
— Você não teria metade?
Buck balançou a cabeça e afastou-se. Voltou ao esconderijo. Tsion o seguiu.
— Qual é o problema, meu amigo? — perguntou o rabino.
— Preciso tirar você daqui — respondeu Buck. — E não sei como.
— Você tem orado?
— Constantemente.
— O Senhor lhe mostrará o caminho.
— Neste momento, isto parece impossível.
— Jeová é o Deus dos impossíveis — disse Tsion.
A noite estava se aproximando. Buck estava pronto, mas sem saber aonde ir. Emprestou um mapa de Michael e estudou-o cuidadosamente, analisando o norte e o sul e os pequenos rios que separavam Israel da Jordânia. Se ao menos houvesse um caminho marítimo partindo do rio Jordão ou do Lago Tiberius até o Mediterrâneo! Buck enrolou o mapa e devolveu-o para Michael.
— Você sabe — ele disse, raciocinando — que tenho duas carteiras de identidade. Entrei no país como Herb Katz, um empresário norte-americano. Mas também carrego minha identidade verdadeira.
— E daí?
— Que tal eu atravessar a fronteira como Herb Katz e o rabino como Cameron Williams?
— Você se esquece, Sr. Williams, que até um país antigo e empoeirado como o nosso já está informatizado. Se você entrou em Israel como Herb Katz, não existe registro de que Cameron Williams está aqui. E se ele não está aqui, como pode sair?
— Está bem, mas digamos que eu saia como Cameron Williams e o rabino saia como Herb Katz. Apesar de não haver nenhum registro de que Cameron Williams está aqui, posso mostrar-lhes minha autorização e minha proximidade com Carpathia e pedir-lhes que não me façam perguntas. Isso geralmente funciona.
— Existe uma chance remota, mas Tsion Ben-Judá não fala inglês como um judeu americano, fala?
— Não, mas ...
— E ele não se parece nem um pouco com você nem com a foto que está em sua identidade.
Buck estava frustrado.
— Nós concordamos que temos de tirá-lo daqui, não foi?
— Sem dúvida — disse Michael.
— Então o que vocês sugerem? Não sei mais o que fazer. O Dr. Ben-Judá aproximou-se deles, demonstrando claramente que não queria mais permanecer no abrigo subterrâneo.
— Michael — ele disse — não tenho palavras para agradecer tudo o que você tem feito por mim, sacrificando-se para me proteger. Agradeço também sua solidariedade e orações. Tudo tem sido muito difícil para mim. Minha natureza humana me diz para não prosseguir. Quero morrer e fazer companhia à minha esposa e meus filhos. Só a graça de Deus me sustenta. Só Ele me impede de vingar aquelas mortes a qualquer preço. Penso que, a partir de agora, meus dias serão longos e solitários, e minhas noites, negras de desespero. Minha fé é firme e inabalável, e dou graças ao Senhor por isso. Sinto que Ele está me chamando para continuar a servi-lo, apesar de todo o meu sofrimento. Não sei por que Ele permitiu que tudo aquilo acontecesse, e também não sei quanto tempo de vida ele ainda me concederá para pregar e ensinar o evangelho de Cristo. Mas algo dentro de mim me diz que ainda posso ser útil a Deus, caso contrário Ele não teria permitido que eu me preparasse a vida inteira e não teria dado a mim esta segunda chance, usando-me para proclamar ao mundo que Jesus é o Messias.
— Sofri um golpe terrível. Há um enorme vazio dentro de meu peito. Não posso imaginar como ele será preenchido. Oro a Deus para que Ele alivie minha dor. Oro para que Ele me liberte do ódio e dos pensamentos de vingança. Mas, acima de tudo, oro para que Ele me conceda paz e serenidade a fim de que eu possa reconstruir minha vida com estes fragmentos que restaram. Sei que minha vida não vale mais nada neste país. Minha mensagem provocou a ira de todos, com exceção dos crentes, e essa falsa acusação contra mim me obriga a sair daqui. Se Nicolae Carpathia passar a me perseguir, serei um fugitivo em qualquer lugar do mundo. Mas não vejo sentido nenhum em permanecer aqui. Não posso viver escondido pelo resto da vida, e preciso encontrar um meio para prosseguir meu ministério.
Michael, que estava em pé entre Tsion e Buck, segurou a mão de ambos.
— Tsion, meu amigo, você sabe que meus compatriotas e eu estamos arriscando tudo para protegê-lo. Amamos você como nosso pai espiritual e estamos dispostos a morrer em seu lugar. Todos nós concordamos que você deve ir. Às vezes penso que um homem tão conhecido e tão perseguido como você não teria nenhuma possibilidade de atravessar as fronteiras de Israel, a menos que Deus enviasse um anjo para tirá-lo daqui. Diante de sua dor e sofrimento, não nos atrevemos a pedir-lhe conselhos. Mas se Deus lhe disse alguma coisa, precisamos saber, e precisamos saber neste momento.
— O céu está escurecendo e temos de agir agora, a não ser que aguardemos mais 24 horas. O que devemos fazer? Para onde devemos ir? Estou disposto a fazê-lo passar por qualquer uma de nossas fronteiras, mas todos nós sabemos que isso seria uma tolice.
Buck olhou para o Dr. Ben-Judá, que simplesmente abaixou a cabeça e orou em voz alta mais uma vez.
— Ó Deus, que nos ajudaste em tempos passados ...
Buck começou a tremer e caiu de joelhos no chão. Sentiu a mão do Senhor sobre ele e ouviu a resposta de que necessitava. Em sua mente ecoava uma frase que ele só podia entender que tinha vindo de Deus: "Eu falei. Eu supri. Não vaciles."
Buck sentiu-se submisso e encorajado, mas ainda não sabia o que fazer. Se Deus lhe havia dito para passar pelo Egito, estava disposto a obedecer. Seria isso? O que Deus havia suprido?
Michael e Tsion estavam ajoelhados ao lado de Buck, com os ombros encostados nos dele. Nenhuma palavra lhes saía da boca. Buck sentiu a presença do Espírito de Deus e começou a chorar. Os outros dois tremiam. De repente, Michael disse:
— A glória do Senhor será a tua retaguarda.
Muitas palavras vieram à mente de Buck. Apesar de ter dificuldade de pronunciá-las por causa da emoção que sentia naquele momento, conseguiu dizer:
— Tu me deste água viva e nunca mais terei sede.
O que seria aquilo? Será que Deus estava dizendo que ele poderia atravessar o deserto do Sinai sem morrer de sede? Prostrado no chão, Tsion Ben-Judá soluçava e gemia:
— Oh, Deus, oh Deus, oh Deus ...Michael ergueu o rosto e disse:
— Fala Senhor, porque os teus servos estão ouvindo. Atentai nas palavras do Senhor. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça...
Tsion prosseguiu:
— Jurou o Senhor dos Exércitos, dizendo: Como pensei, assim sucederá, e como determinei, assim se efetuará.
Buck sentiu-se envolto na nuvem de fumaça do Espírito de Deus. De repente, descobriu o que devia fazer. As peças do quebra-cabeça estavam todas ali. Ele e seus companheiros estavam aguardando uma intervenção milagrosa de Deus. O fato era o seguinte: se Deus desejasse que Tsion Ben-Judá saísse de Israel, Ele faria isso. Se Deus não desejasse, não o faria. Deus lhe havia dito em sonho para seguir outro caminho, através do Egito. Deus lhe suprira o transporte por intermédio de Michael. E agora prometera que sua glória seria a retaguarda deles.
— Amém e amém — disse Buck, levantando-se. — É chegada a hora, senhores. Vamos.
O Dr. Ben-Judá parecia surpreso.
— O Senhor falou com você? Buck devolveu-lhe a pergunta:
— Ele falou com você, Tsion?

— Sim! Eu só queria ter a certeza de que estávamos pensando a mesma coisa.
— Se eu puder votar — disse Michael — haverá unanimidade. Vamos.
Os compatriotas de Michael puxaram o barco para a margem. Buck atirou sua mochila dentro e subiu a bordo, acompanhado de Tsion. Enquanto Michael ligava os motores e o barco começava a descer o Jordão, Buck entregou a Tsion os documentos de identidade que estampavam o nome verdadeiro e a fotografia de Buck. Tsion demonstrou surpresa:
— Tive a impressão de que não ia precisar usar este documento.
— E eu tenho certeza de que não devo carregá-lo comigo — disse Buck. — Entrei neste país como Herb Katz, e vou sair daqui como Herb Katz. Vou pedir que você o devolva quando chegarmos ao Sinai.
— Isto é emocionante — disse Tsion — não é mesmo? Estamos falando com tanta confiança que vamos chegar ao Sinai, sem termos nenhuma ideia de como Deus vai fazer isso.
Michael passou a direção do barco para um de seus amigos e sentou-se perto de Buck e Tsion.
— Tsion leva consigo um pouco de dinheiro, alguns cartões de crédito e documentos pessoais. Se ele for encontrado portando tudo isso, será detido e provavelmente morto. Não seria melhor ficarmos com eles?
Tsion pegou sua carteira e abriu-a sob o clarão do luar. Retirou o dinheiro, dobrou-o, e colocou-o no bolso. Os cartões de crédito foram atirados, um a um, no rio Jordão. Foi a primeira vez que Buck notou um ar de alegria no rosto de Ben-Judá, desde que o vira no esconderijo. Quase tudo foi atirado dentro da água — documentos de identidade e outros que ele juntara ao longo dos anos. Ben-Judá retirou algumas fotografias de dentro da carteira, virou-as em direção à lua e chorou amargamente.
— Michael, gostaria muito que você guardasse estas fotografias e as enviasse para mim um dia.
— Farei isso.
Tsion atirou a carteira no rio.
— Agora — disse Michael — acho que você deve devolver o documento do Sr. Williams para ele.
Tsion fez um gesto para pegá-lo.
— Um momento! — disse Buck. — Se ele não for usar o meu documento, não seria melhor conseguirmos uma identidade falsa para ele?
— De certa maneira — disse Tsion — o que Michael está dizendo faz sentido. Sou um homem que foi despojado de tudo, até mesmo de sua identidade.
Buck pegou seu documento de identidade verdadeiro e tentou encontrar um lugar na mochila para escondê-lo.
— Não vai adiantar — disse Michael. — Eles vão vasculhar você e sua mochila até encontrarem esse documento.
— Bem — disse Buck — eu não posso jogá-lo no Jordão. Michael levantou a mão.
— Vou enviá-lo a você com as fotografias de Tsion — ele disse. — É mais seguro.
Buck hesitou.
— Você também não pode ser encontrado portando as fotografias e meu documento — ele disse.
Michael entendeu.
— De qualquer maneira, minha vida vai ser curta, meu irmão — ele disse. — Sinto-me honrado e abençoado por ser uma das testemunhas profetizadas na Bíblia. Mas minha missão é pregar em Israel, onde o verdadeiro Messias é odiado. Meus dias estão contados, e vou ser preso quer eu esteja portando as fotografias e o documento ou não.
Buck agradeceu-lhe e balançou a cabeça.
— Ainda não sei como vamos fazer para que Tsion cruze a fronteira sem documentos, sejam eles verdadeiros ou falsos.
— Já oramos — disse Tsion. — Também não sei como Deus vai fazer isso. Sei apenas que Ele vai.
Os recursos e a natureza prática de Buck conflitavam com sua fé.
— Mas não precisamos fazer a nossa parte?
— E qual vai ser nosso papel, Cameron? — perguntou o rabino. — Quando não temos mais ideia nem opção nem ação, passamos a depender unicamente de Deus.
Buck cerrou os lábios e virou o rosto para o outro lado. Gostaria de ter a mesma fé de Tsion. De certa forma, ele sabia que tinha. Mas ainda não fazia sentido tomar atitudes precipitadas, arriscando-se a despertar a curiosidade dos guardas da fronteira quanto à identidade de Tsion.

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— Desculpe-me por ligar a esta hora, papai — disse Chloe — mas não estou conseguindo falar com Buck em seu telefone celular.
— Não fique preocupada com Buck, querida. Você sabe que ele sempre encontra uma maneira de se proteger.
— Oh, papai! Buck sempre encontra uma maneira de quase ser morto. Sei que ele estava hospedado no Rei Davi sob um nome falso, e estou querendo ligar para lá, mas ele me prometeu que não dormiria no hotel esta noite.
— Então aguarde a ligação dele, Chloe. Você sabe que Buck não dá muita importância a horários. Se a história ou a reportagem que ele tem em mãos durar a noite inteira, ele não vai sossegar enquanto não terminar.
— Você está me ajudando muito.
— Estou tentando.
— Só não entendo por que ele não leva consigo o telefone celular todas as vezes que sai. Você leva o seu no bolso, não?
— Normalmente, sim. Mas talvez o telefone esteja na mochila dele.
— E se a mochila estiver no hotel e ele estiver andando a esmo, não vou conseguir nada, não é mesmo?
— Acho que sim, querida.
— Eu gostaria que ele sempre levasse o telefone consigo, mesmo que estivesse sem a mochila.
— Procure não se preocupar, Chloe. Buck sempre surge em algum lugar.

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Quando aportou na foz do Jordão, Michael e seus companheiros esquadrinharam o horizonte, caminharam discretamente até seu pequeno carro e entraram dentro dele. Michael tomou o rumo de sua casa, cujo pequeno alpendre servia como garagem. O local era muito pequeno para acomodar o ônibus que ocupava toda a viela atrás da casa. As luzes acenderam-se. Um bebé chorava. A esposa de Michael apareceu vestida com um roupão e abraçou-o aflita, proferindo algumas palavras em hebraico. Michael virou-se para Buck com olhar de desculpa.
— Preciso manter mais contato com minha família — ele disse, encolhendo os ombros.
Buck pôs a mão no bolso à procura de seu telefone. Não estava lá. Vasculhou a mochila e o encontrou. Devia também manter contato com Chloe com mais frequência, mas no momento era mais importante falar com Ken Ritz. Enquanto falava ao telefone, Buck observava tudo o que ocorria ao seu redor. Michael e seus amigos trabalhavam em silêncio. Estavam colocando água no radiador e óleo no motor do velho ônibus escolar. Um dos homens enchia o tanque com as latas de gasolina que estavam guardadas na lateral da casa. A esposa de Michael entregou-lhe uma pilha de cobertores e um cesto de roupas para Tsion.
Depois de conversar com Ritz, que concordara em encontrar-se com eles em El Arish, no Sinai, Buck dirigiu-se para o ônibus, passando pela esposa de Michael. Ela lançou-lhe um olhar tímido. Ele diminuiu o ritmo dos passos. Sabia que ela não falava inglês, mas queria demonstrar-lhe gratidão.
— Inglês? — Buck perguntou. Ela fechou os olhos por um instante e balançou negativamente a cabeça. — Eu, hã, só queria agradecer-lhe — ele disse. — Muito obrigado. — Cruzou as mãos e colocou-as debaixo do queixo, esperando que ela entendesse seu gesto. Ela era uma mulher pequenina e frágil, de olhos escuros. Tristeza e terror estampavam-se em seu rosto e em seus olhos. Parecia que ela sabia que estava do lado certo, mas que seu tempo era limitado. Não demoraria muito para seu marido ser encontrado. Além de ter-se convertido ao verdadeiro Messias, ele também defendia um inimigo do país. Buck sabia que a esposa de Michael devia estar se perguntando quanto tempo levaria para que ela e seus filhos tivessem a mesma sorte da família de Tsion Ben-Judá. E, além disso, quanto tempo levaria para que seu marido morresse pela causa, por mais que digna que fosse.
A tradição do país não permitia que ela tocasse em Buck, portanto ele se assustou ao vê-la aproximar-se. Ela parou a pouco mais de meio metro de distância dele e olhou-o com firmeza. Disse alguma coisa em hebraico, e ele só conseguiu identificar as duas últimas palavras: Y'shua Hamashiach.
Depois de atravessar um caminho escuro e chegar ao ônibus, Buck viu que Tsion já estava deitado debaixo dos bancos traseiros. Dentro do ônibus havia alimento, água, óleo e gasolina.
Michael aproximou-se, seguido por seus três amigos. Ele abraçou Buck e beijou-lhe as duas faces.
— Vão com Deus — ele disse, entregando-lhe os documentos do ônibus.
Buck estendeu a mão para despedir-se dos outros três, que não disseram nada, talvez por saberem que ele não compreendia sua língua.
Buck subiu no ônibus e fechou a porta, ajustando o banco barulhento atrás do volante. Michael fez um gesto para ele abrir a janela do seu lado.

— Não se esqueça de pisar fundo — disse Michael.
— Pisar fundo? — perguntou Buck.
— No acelerador.
Buck pisou fundo no pedal do acelerador e soltou-o, girando a chave. O motor começou a funcionar ruidosamente. Michael levantou as duas mãos pedindo-lhe que não fizesse muito barulho. Buck soltou lentamente o pé da embreagem e o carro velho estremeceu, deu um tranco e balançou. Para sair da viela e chegar à rua, Buck pensou que teria de dirigir com o pé na embreagem o tempo todo. Mudando a marcha, com o pé na embreagem e pisando fundo no acelerador, ele finalmente cruzou as ruas da vizinhança e chegou à estrada. Agora, se ele conseguisse seguir as instruções e orientações de Michael e chegasse à fronteira, o resto estaria a cargo de Deus. Sentiu uma liberdade inusitada por dirigir um veículo de sua propriedade, apesar do estado precário em que se encontrava. Estava partindo para uma jornada que o levaria a algum lugar. O amanhecer era uma incógnita para ele. Poderia estar detido, preso, no deserto, no ar ou no céu.


DOZE




Não demorou muito para Buck entender o que Michael queria dizer com "pisar fundo" no acelerador. Todas as vezes em que ele pisava na embreagem para mudar a marcha, o motor quase desligava. Quando a situação piorou, ele precisou manter o pé esquerdo no pedal da embreagem, firmar o calcanhar direito no pedal do freio e acelerar com a ponta do pé direito.
Além dos documentos daquele ônibus em estado precário, Michael entregara a Buck um mapa rudimentar.
"Há quatro lugares diferentes onde você poderá atravessar de carro a fronteira de Israel com o Egito", Michael lhe dissera. Os dois mais próximos ficavam em Rafa, na Faixa de Gaza. "Mas essas duas fronteiras costumam ser muito patrulhadas. É melhor você seguir em direção ao sul, passando por Jerusalém, Hebrom e Berseba. Depois, você deve pegar uma estrada a sudeste de Berseba, apesar de precisar desviar um pouco de seu caminho. Depois de percorrer cerca de dois terços do trecho entre Berseba e Yeroham você encontrará um atalho a oeste que o levará até o extremo norte de Negev. Ali, você estará a menos de 50 quilómetros da fronteira. Quando estiver a menos de 10 quilómetros da fronteira, poderá seguir para o norte e depois para o oeste ou continuar sempre em direção a oeste. Não sei dizer qual fronteira será mais fácil para você atravessar. Recomendo a que fica no sul, porque de lá você poderá dirigir-se para uma rota a noroeste que o levará até El Arish. Se você pegar a estrada secundária do norte, terá de voltar para a estrada principal entre Rafa e El Arish, que tem mais trânsito e é mais vigiada."
Isso foi tudo o que Buck precisava saber. Dentre as quatro fronteiras, ele escolheu a que ficava mais ao sul e oraria para que ninguém o parasse até chegar lá.
Tsion Ben-Judá continuou deitado debaixo dos bancos do ônibus até Buck ter-se distanciado bastante de Jerusalém. Ambos sentiam-se mais seguros. Tsion arrastou-se no chão do ônibus, aproximando-se de Buck.
— Você está cansado? — ele perguntou. — Quer que eu dirija um pouco?
— Você está brincando.
— Faz muitos meses que não encontro motivos para brincadeiras — disse Tsion.
— Mas você não estava falando sério sobre dirigir este ônibus, estava? O que você faria se um guarda nos parasse? Trocaria de lugar comigo?
— Eu apenas me coloquei à disposição.
— Agradeço muito, mas isso está fora de cogitação. Estou bem, descansado. Mas também estou morrendo de medo. Isso me faz ficar alerta.
Buck reduziu a marcha para fazer uma curva e Tsion foi arremessado para a frente pela força cinética. Ele segurou firme na barra de metal perto do banco do motorista, rodopiou e foi de encontro a Buck, empurrando-o para a esquerda.
— Eu não lhe disse, Tsion, que estava alerta? Você não precisa ter a preocupação de me despertar a todo momento.
Buck olhou para Tsion procurando ver se conseguira extrair um sorriso dele. Parecia que Tsion estava tentando ser educado. Desculpou-se profusamente e acomodou-se no banco atrás de Buck. Abaixou a cabeça e apoiou o queixo sobre as mãos, que seguravam a barra de metal de separação entre o motorista e o primeiro banco.
— Avise-me quando eu precisar me esconder — ele disse.
— A esta altura, você já deve ter sido visto por alguém.
— Não estou conseguindo ficar muito tempo deitado no chão — disse Ben-Judá. — É melhor nós dois ficarmos atentos.
Buck não tinha condições de fazer o ônibus andar a mais de 70 quilómetros por hora. Receava ter de levar a noite inteira para chegar à fronteira. Talvez isso fosse o certo. Quanto mais escuro e quanto mais tarde, melhor. Enquanto o ônibus se arrastava pela estrada, Buck vigiava os marcadores do painel e dirigia com o máximo cuidado para não fazer qualquer coisa que pudesse chamar a atenção sobre eles. Viu, pelo espelho retrovisor, que Tsion havia se deitado de lado no banco, tentando descansar um pouco. Buck ouviu o rabino proferir algumas palavras.
— O que você disse?
— Desculpe-me, Cameron. Eu estava orando.
Mais tarde, Buck percebeu que ele estava cantando. Mais tarde ainda, que estava chorando. Bem depois da meia-noite, Buck consultou o mapa e viu que estavam atravessando Haiheul, uma cidadezinha um pouco ao norte de Hebrom.
— Será que os turistas de Hebrom ainda estão acordados a esta hora da noite? — Buck perguntou.
Tsion inclinou-se para a frente.
— Não, mas esta é uma região muito habitada. Vou prestar atenção. Cameron, há uma coisa que eu gostaria de lhe dizer.
— Diga.
— Quero que saiba que estou muito agradecido por você ter sacrificado seu tempo e arriscado a vida para vir me buscar.
— Qualquer amigo faria isso, Tsion. Senti um profundo vínculo com você desde a primeira vez que me levou ao Muro das Lamentações. E também quando precisamos fugir juntos após sua apresentação na TV.
— Passamos por experiências incríveis, é verdade — disse Tsion. — Foi por isso que eu sabia que bastava fazer o Dr. Rosenzweig encaminhá-lo para cá, na direção das testemunhas, para você me encontrar. Não me atrevi a dizer a ele onde eu estava. Meu motorista me levou até Michaei e os outros irmãos em Jericó, mas, depois disso, não soube mais nada sobre meu paradeiro. Ele ficou tão perturbado com o que aconteceu à minha família que chegou a chorar. Ele trabalha comigo há muitos anos. Michaei me prometeu mantê-lo informado, mas eu gostaria de ligar para ele. Talvez eu possa usar o seu telefone sigiloso depois de atravessarmos a fronteira.
Buck não sabia o que dizer. Tinha mais segurança que Michaei a ponto de achar que Tsion ainda aguentaria mais uma dose de sofrimento, mas por que teria de ser ele o portador dessa notícia? O intuitivo rabino imediatamente suspeitou de que Buck estava escondendo alguma coisa.
— Qual é o problema? — ele perguntou. — Você acha que é muito tarde para eu ligar para ele?
— É muito tarde — disse Buck.
— Mas se a situação fosse inversa, eu ficaria muito feliz se ele me ligasse a qualquer hora do dia ou da noite.
— Estou certo de que ele sentia... sente o mesmo — disse Buck, de modo inseguro.
Buck olhou de relance no espelho retrovisor. Tsion olhava firme para ele, com aspecto de estar pressentindo alguma coisa.
— Talvez seja melhor eu ligar para ele agora — ele sugeriu. — Posso usar seu telefone?
— Tsion, você não precisa pedir permissão para usar minhas coisas, e sabe disso. Mas eu não ligaria para ele agora.
Quando Tsion falou, Buck percebeu que ele já havia compreendido. Com voz arrasada, repleta da dor que o atormentaria pelo resto de seus dias, ele disse:
— Cameron, o nome dele era Jaime. Ele trabalhou comigo desde que comecei a lecionar na universidade. Não era um homem culto; no entanto, era sábio por ter experiência de vida. Conversávamos muito sobre minhas descobertas. Além de meus alunos, ele e minha esposa eram os únicos que sabiam o que eu ia dizer diante das câmeras de TV. Ele era muito chegado a mim, Cameron. Muito chegado. Mas agora não está mais conosco, não é verdade?
Buck pensou em menear a cabeça simplesmente, mas não pôde fazer isso. Tratou de procurar as placas na estrada que sinalizavam a direção de Hebrom, mas o rabino, evidentemente, não deixou por menos.
— Cameron, somos muito amigos e atravessamos juntos muitas situações difíceis para você me esconder alguma coisa. Alguém lhe contou o que aconteceu com Jaime. Você precisa entender que o sofrimento que as más notícias têm me acarretado não vai piorar se eu ouvir mais uma, nem melhorar se eu deixar de ouvi-la. Mais que qualquer outra pessoa, nós, os crentes em Cristo, nunca devemos temer a verdade, por mais cruel que ela seja.
— Jaime está morto — disse Buck. Tsion abaixou a cabeça.
— Ele me ouviu pregar muitas vezes. Conhecia o evangelho. Cheguei a pressioná-lo de vez em quando. Ele não se ofendeu. Sabia que eu me preocupava com ele. Só posso esperar e orar para que ele tenha tido tempo de voltar para sua família depois de ter-me entregue a Michael. Conte-me como aconteceu.
— Uma bomba no carro.
— Então, foi morte instantânea — disse Tsion. — Talvez ele não tenha tido tempo de saber o que estava acontecendo. Talvez não tenha sofrido.
— Lamento muito, Tsion. Michael achou que você não suportaria ouvir esta notícia.
— Ele me subestima, mas sou grato por sua preocupação. Eu me preocupo com todas as pessoas de meu relacionamento. Qualquer um que conheça alguma coisa sobre meu paradeiro pode vir a sofrer. Isso inclui muitas pessoas. Nunca vou me perdoar se alguém tiver de pagar um preço alto por simplesmente ter-me conhecido. Francamente, eu me preocupo muito com Chaim Rosenzweig.
— Eu não me preocuparia com Chaim, por enquanto — disse Buck. — Ele ainda está muito ligado a Carpathia. Ironicamente, no momento ele está sob a proteção de Carpathia.
Depois de passarem cautelosamente por Hebrom, Buck e Tsion permaneceram em silêncio o tempo todo até Berseba. Nas primeiras horas da madrugada, a cerca de dez quilómetros ao sul de Berseba, Buck percebeu que o marcador de temperatura estava subindo. O marcador de óleo não apresentava alteração, mas Buck temia mais pelo aquecimento do motor.
— Vou ter de completar a água do radiador, Tsion — ele disse. O rabino parecia estar cochilando.
Buck afastou-se da estrada e estacionou no acostamento coberto de pedregulhos. Pegou um pedaço de pano que encontrou dentro do ônibus e desceu. Levantou o capo e abriu com cuidado a tampa do radiador, de onde saía fumaça, mas ele conseguiu despejar uns dois litros de água para resfriá-lo. Enquanto estava fazendo isso, ele avistou uma viatura das forças pacificadoras da Comunidade Global passando lentamente na estrada.
Buck tentou demonstrar naturalidade e deu um suspiro profundo. Limpou as mãos no pano e atirou-o dentro da lata de água, percebendo que a viatura havia avançado cerca de trinta metros de distância do ônibus e estava dando marcha à ré. Tentando não agir de modo suspeito, Buck atirou a lata dentro do ônibus e voltou para fechar o capo. Antes que tivesse tempo de fechá-lo, a viatura deu marcha à ré até a estrada e ficou de frente para ele. Com os faróis ofuscando seus olhos, Buck ouviu um dos ocupantes dizer-lhe alguma coisa em hebraico pelo alto-falante.
Buck ergueu os braços e gritou:
— Inglês!
O oficial disse, com sotaque acentuado:
— Faça o favor de permanecer fora do veículo. Buck virou-se para fechar o capo, mas o oficial gritou novamente:
— Fique onde está!
Buck deu de ombros e parou desajeitadamente, com os braços ao longo do corpo. O oficial falava pelo rádio. Finalmente, o outro, com ar de mais jovem, saiu da viatura.
— Desejo-lhe uma boa noite, senhor — ele disse.
— Obrigado — disse Buck. — Tive apenas um pequeno problema de aquecimento, só isso.
O oficial era bronzeado e esguio, e usava o uniforme espalhafatoso da Comunidade Global. Buck gostaria de estar portando seu passaporte e identidade verdadeiros. Não havia nada melhor para acalmar um funcionário da CG do que a autorização nível 2-A de Buck.
— Você está sozinho? — perguntou o oficial.
— Meu nome é Herb Katz — disse Buck.
— Perguntei se você está sozinho.
— Sou um empresário norte-americano, estou aqui a passeio.
— Seus documentos, por favor.
Buck entregou-lhe seu passaporte e a carteira de documentos. O mais jovem examinou-os sob a luz de uma lanterna e, em seguida, apontou-a para o rosto de Buck. Buck achou que não havia necessidade da lanterna, uma vez que os faróis da viatura estavam-lhe cegando os olhos, mas não disse nada.
— Sr. Katz, o senhor pode me dizer onde comprou esteveículo?
— Comprei-o esta noite. Pouco antes da meia-noite.
— De quem?
— Tenho os documentos. Não sei pronunciar o nome da pessoa. Sou americano.
— Senhor, as placas deste veículo indicam que o proprietário mora em Jericó.
Buck, ainda se fazendo de bobo, disse:
— Você acertou! Foi lá que comprei o veículo, em Jericó.
— E o senhor está dizendo que o comprou antes da meia-noite?
— Sim.
— O senhor está sabendo que estamos perseguindo um fugitivo deste país?
— Não, mas eu gostaria de saber.
— Acontece que o proprietário deste veículo foi detido pouco mais de uma hora atrás por ter ajudado e protegido um suspeito de assassinato.
— Não diga! — exclamou Buck. — Acabei de pagar uma viagem de barco a esse homem. Ele tem um barco de turismo. Eu lhe disse que precisava de um veículo para ir de Israel ao Egito, e dali pegar um avião para os Estados Unidos. Ele me disse que tinha este calhambeque, só isso.
O oficial aproximou-se do ônibus.
— Preciso ver os documentos — ele disse.
— Vou pegá-los — disse Buck, passando pela frente do oficial e entrando no ônibus. Pegou os documentos e agitou-os na mão enquanto descia. O oficial afastou-se e analisou os documentos sob a luz dos faróis da viatura.
— Os documentos parecem estar em ordem, mas é muita coincidência o senhor ter comprado este veículo poucas horas antes de aquele homem ser preso.
— Não sei o que a compra do ônibus tem a ver com a encrenca em que o homem se meteu — disse Buck.
— Temos motivos para acreditar que o homem que lhe vendeu este veículo estava protegendo um assassino. Ele foi encontrado com alguns pertences do suspeito e os documentos de um cidadão americano. Não vai demorar muito para conseguirmos convencê-lo a nos dizer que protegeu o suspeito. — O oficial examinou suas próprias anotações. — O senhor conhece um tal de Cameron Williams, um americano?
— Não me lembro de ter um amigo com esse nome. Sou de Chicago.
— E está partindo esta noite, do Egito?
— Correto.
— Por quê?
— Por quê? — repetiu Buck.
— Por que o senhor precisa partir pelo Egito? Por que não parte de Jerusalém ou de Tel Aviv?
— Não há voos esta noite. Quero voltar para casa. Fretei um avião.
— E por que o senhor simplesmente não alugou um carro?
— Se você examinar atentamente os documentos e a nota de venda do veículo, vai ver que paguei menos pelo ônibus do que pagaria pelo aluguel de um carro.
— Um momento, senhor. — O oficial voltou para a viatura, sentou-se e conversou pelo rádio durante alguns minutos.
Buck orou para que Deus o ajudasse a pensar em alguma coisa que pudesse impedir o oficial de revistar o ônibus. O oficial mais jovem voltou a falar.
— O senhor diz que não conhece nenhum Cameron Williams. Estamos verificando se o homem que lhe vendeu este veículo vai envolver o senhor no esquema dele.
— Esquema dele? — estranhou Buck.
— Não vai demorar muito para descobrirmos onde ele escondeu o suspeito. Será melhor para ele nos dizer toda a verdade. Afinal de contas, ele tem esposa e filhos.
Pela primeira vez na vida, Buck sentiu vontade de matar um homem. Ele sabia que o oficial não passava de um peão de um jogo cósmico, da guerra entre o bem e o mal. Mas ele representava o mal. Será que ele, Buck, se sentiria justificado, da maneira que Michael se sentira ao matar aqueles que poderiam acabar com a vida de Tsion? O oficial ouviu um ruído no rádio e correu até a viatura. Retornou instantes depois.
— Nossa tentativa deu certo — ele disse. — Conseguimos
saber o local do esconderijo. Fica entre Jericó e o Lago Tiberius, um pouco distante do rio Jordão. Mas, mesmo sendo ameaçado de tortura e até de morte, ele jura que o senhor é um turista a quem ele vendeu este veículo.
Buck suspirou. Outras pessoas poderiam considerar uma coincidência o fato de Michael e ele terem contado a mesma história. Para Buck, era um milagre igual ao que ele presenciara no Muro das Lamentações.
— Porém, apenas por questão de segurança — disse o oficial — pediram-me que revistasse seu veículo para ver se encontramos algum indício do fugitivo.
— Mas você disse...
— Não tenha medo. O senhor está livre. Talvez tenha sido usado para transportar alguma coisa para fora do país, sem saber. Precisamos simplesmente revistar o veículo à procura de algo que nos possa levar até o suspeito. Eu agradeceria se o senhor ficasse aqui enquanto faço uma busca em seu veículo.
— Você não precisa de procuração, permissão ou algo parecido?
O oficial virou-se para Buck com ar ameaçador.
— Até agora, o senhor foi amável e colaborou conosco. Mas não cometa o erro de pensar que está falando com um policial qualquer daqui. Pela minha viatura e pelo meu uniforme, o senhor pode ver que represento as forças pacificadoras da Comunidade Global. Não estamos limitados a convenções ou regras. Posso confiscar este veículo, até mesmo sem a sua assinatura. Agora, aguarde aqui.
Pensamentos desenfreados passavam pela mente de Buck. Pensou em tentar desarmar o oficial e fugir na viatura com Tsion. Seria ridículo, mas ele detestava inércia. Será que Tsion agarraria o oficial? Seria capaz de matá-lo? Buck ouviu os passos lentos do oficial em direção ao fundo do ônibus, indo e voltando. A luz da lanterna varria todo o interior do ônibus.
O oficial desceu e aproximou-se de Buck.
— O que o senhor pensou que íamos fazer? Pensou que íamos dar um sumiço no veículo? Pensou que eu ia permitir que o senhor atravessasse a fronteira do Egito e simplesmente o abandonasse lá? O senhor pretendia levá-lo a um aeroporto qualquer para que as autoridades locais dessem um jeito nele?
Buck estava aturdido. Era com isso que o oficial estava preocupado? Será que ele não vira Tsion Ben-Judá no ônibus? Será que Deus o teria cegado de maneira sobrenatural?
— Hã, eu, hã, cheguei a pensar nisso. Sim, achei que algumas pessoas de lá que tentam ganhar um dinheiro extra carregando nossas bagagens ou coisa parecida, hã, adorariam ter um veículo como este.
— O senhor deve ser um americano muito rico. Imagino que este ônibus não tenha muito valor, mas com certeza seria uma enorme gorjeta para um carregador de malas, o senhor não concorda?
— Pode me chamar de fútil.
— Obrigado por sua colaboração, Sr. Katz.
— De nada. Eu é que lhe agradeço.
O oficial entrou na viatura e retornou à estrada, usando a pista norte rumo a Berseba. Buck, com os joelhos tremendo e os dedos contraídos, fechou com força o capo e entrou no ônibus.
— Como você conseguiu essa façanha, Tsion? Tsion! Sou eu! Pode sair de onde você está. Sei que você não cabe no bagageiro. Tsion?
Buck subiu em um banco e examinou o bagageiro. Nada. Deitou-se no chão e olhou por baixo dos bancos. Nada, a não ser sua mochila, a pilha de roupas, os alimentos, a água, o óleo e a gasolina. Se Buck não conhecesse tão bem a verdade, pensaria que Tsion Ben-Judá tinha sido arrebatado.
E agora? Não houve trânsito na estrada enquanto Buck esteve entretido com o oficial. Seria conveniente gritar na escuridão? Quando Tsion saíra do ônibus? Decidindo não chamar a atenção de alguém que porventura estivesse passando por ali, Buck entrou no ônibus, ligou o motor e seguiu pelo acostamento da estrada. Depois de percorrer quase 200 metros, tentou fazer o retorno e, para isso, teve de manobrar o ônibus. Passou, então, para o acostamento do outro lado da estrada, deixando para trás de si uma nuvem de poeira, iluminada pelos faróis traseiros. Vamos, Tsion! Diga-me que você não está indo a pé para o Egito!
Buck pensou em buzinar, mas resolveu percorrer mais uns cem metros na direção norte e fazer o retorno mais uma vez. Desta vez os faróis do ônibus detectaram um aceno furtivo de seu amigo, vindo de um arvoredo distante. Buck dirigiu o ônibus para lá e abriu a porta. Tsion Ben-Judá entrou apressado e deitou-se no chão, perto de Buck. Estava ofegante.
— Se você já parou para pensar o que significa a frase "o Senhor trabalha de maneiras misteriosas" — disse Tsion — já tem a resposta.
— Mas, o que aconteceu? — perguntou Buck. — Pensei que estávamos fritos.
— Eu também! — disse Tsion. — Eu estava cochilando e mal compreendi que você estava descendo do ônibus para cuidar de alguma coisa no motor. Quando você levantou o capo, percebi que precisava esvaziar a bexiga. Quando desci, você estava despejando água no radiador. Eu tinha me afastado quase cinco metros da estrada quando avistei a viatura aproximando-se. Não sabia o que fazer, mas sabia que não podia estar dentro daquele ônibus. Comecei a andar nesta direção, orando para que você encontrasse argumentos para sair daquela situação.
— Então você ouviu nossa conversa?
— Não. O que aconteceu?
— Você não vai acreditar, Tsion. — E Buck contou-lhe a história inteira enquanto seguiam rumo à fronteira.
Enquanto o velho ônibus rodava na escuridão, Tsion pareceu encher-se de coragem. Sentou-se no primeiro banco, logo atrás de Buck, sem curvar o corpo para se esconder. Inclinou-se para a frente e fez um desabafo ao ouvido de Buck.
— Cameron — ele disse, com voz fraca e trémula — chego quase a enlouquecer quando fico imaginando quem vai cuidar do enterro de minha família.
Buck hesitou.
— Não sei muito bem como lhe fazer esta pergunta, Tsion, mas o que geralmente acontece em casos semelhantes? Quero dizer, quando facções pseudo-oficiais fazem coisas desse tipo.
— É isso que me preocupa. Nunca se sabe o que eles fazem com os corpos. São enterrados? Queimados? Não sei. Sinto uma enorme preocupação só em pensar nisso.
— Tsion, quem sou eu para aconselhá-lo espiritualmente? Você é um homem estudioso da Palavra e sua fé é profunda.
Tsion o interrompeu.
— Não seja tolo, meu jovem amigo. O fato de você não ser um estudioso não significa que é menos firme na fé. Você se converteu antes de mim.
— Mesmo assim, meu discernimento chegou ao extremo e eu não saberia como lidar com uma tragédia semelhante à sua. Eu jamais conseguiria ter a mesma força que você está tendo para enfrentar tudo isto.
— Não se esqueça, Cameron, de que ainda estou vivendo sob a emoção, em estado de choque. Meu sofrimento maior ainda está por vir.
— Francamente, Tsion, eu temia que isso acontecesse com você. Pelo menos, você conseguiu chorar. As lágrimas ajudam a desabafar. Em pior situação estão aqueles que passam por traumas semelhantes e não conseguem derramar uma lágrima sequer.
Tsion endireitou o corpo e permaneceu calado. Buck orou silenciosamente por ele. Por fim, Tsion inclinou de novo o corpo para a frente.
— Venho de gerações que derramaram muitas lágrimas — ele disse. — Séculos de lágrimas.
— Eu gostaria de poder fazer alguma coisa tangível por você, Tsion.
— Tangível? O que pode ser mais tangível do que isto? Você tem demonstrado uma coragem tão grande que nem sei como explicar. Que outra pessoa faria o que você está fazendo por mim, um homem que mal conhece?
— Para mim, parece que sempre o conheci.
— E Deus lhe deu recursos que nem mesmo meus amigos mais íntimos possuem. — Tsion parecia estar refletindo profundamente. Finalmente, ele prosseguiu. — Cameron, há uma coisa que você poderia fazer que me daria um certo conforto.
— Diga.
— Fale-me sobre o pequeno grupo de crentes ao qual você pertence lá nos Estados Unidos. Como vocês se chamam? Círculo fechado, é isto?
— Comando Tribulação.
— Sim! Eu adoro ouvir essas histórias. Em todos os lugares do mundo por onde tenho andado para pregar e ser um instrumento na conversão dos 144 mil judeus que estão se tornando as testemunhas profetizadas na Bíblia, tenho ouvido histórias maravilhosas de suas reuniões secretas. Conte-me tudo sobre o Comando Tribulação.
Buck contou a história desde o início, quando estava no avião como mero passageiro, tendo Hattie Durham como comissária de bordo e Rayford Steele como piloto. Enquanto falava, ele olhava no espelho retrovisor para ver se Tsion estava prestando atenção ou simplesmente tolerando uma história longa. Buck sempre se surpreendeu por ser capaz de ter a mente em dois lugares de uma só vez. Podia contar uma história e pensar em outra ao mesmo tempo. Enquanto contava a Tsion sobre o desabafo de Rayford a respeito de suas questões espirituais, sobre o encontro com Chloe e a viagem que fizeram juntos de Nova York para Chicago no mesmo dia em que ela orou com o pai aceitando a Cristo e sobre o momento em que conheceu Bruce Barnes, que foi seu conselheiro e mestre, Buck tentava controlar seu medo de enfrentar a travessia da fronteira. Ao mesmo tempo, ele perguntava a si mesmo se devia terminar a história. Tsion ainda não sabia da morte de Bruce Barnes, um homem que ele não conhecera, mas com quem se havia correspondido e ao lado de quem esperava vir a exercer seu ministério.
Buck contou a história até o ponto da reunião do Comando Tribulação em Chicago, poucos dias antes de irromper a guerra. Ele percebeu que Tsion estava ficando cada vez mais nervoso à medida que se aproximavam da fronteira. Começou a inquietar-se, interrompendo mais vezes, falando cada vez mais rápido e fazendo mais perguntas.
— Quer dizer que o pastor Bruce fez parte da direção da igreja durante muitos anos sem ser um crente verdadeiro?
— Sim. Trata-se de uma história triste, difícil até mesmo para ele contar.
— Não vejo a hora de conhecê-lo — disse Tsion. — Vou sofrer muito com a perda de minha família, vou sentir saudade de meu país como sentiria de meu pai. Mas orar na companhia dos integrantes do Comando Tribulação e abrir a Bíblia com eles será um bálsamo para minha dor, um lenitivo para minhas feridas.
Buck deu um suspiro profundo. Queria parar de falar, concentrar-se na estrada, na fronteira à frente. No entanto, ele tinha de ser honesto com Tsion.
— Você vai encontrar-se com Bruce Barnes por ocasião do Glorioso Aparecimento — ele disse, olhando no retrovisor. Tsion tinha ouvido e compreendido. Abaixou a cabeça.
— Quando aconteceu? — ele perguntou. Buck contou-lhe.
— E como ele morreu? Buck contou-lhe o que sabia.

— É provável que nunca venhamos a saber se sua morte foi causada pelo vírus que ele contraiu em outro país ou pelo impacto da explosão no hospital. Rayford disse que aparentemente não havia marcas no corpo dele.
— Talvez o Senhor o tenha levado antes, poupando-o do bombardeio.
Buck pensou na possibilidade de Deus estar preparando o rabino Ben-Judá para ser o novo mentor bíblico e espiritual do Comando Tribulação, mas não se atreveu a mencionar isso. Não havia possibilidade de um fugitivo internacional tornar-se o novo pastor da Igreja Nova Esperança, principalmente se ele estivesse na mira de Nicolae Carpathia. Além do mais, Tsion poderia considerar a ideia de Buck uma maluquice. Não haveria um meio mais fácil de Deus colocar Tsion em posição de ajudar o Comando Tribulação, sem que isso custasse a vida de sua mulher e filhos?
Apesar de seu nervosismo, apesar de seu medo, apesar da angústia de dirigir um veículo em estado lastimável dentro de um território desconhecido e perigoso, de repente Buck viu que a resposta estava diante de seus olhos. Não podia dar a isso o nome de visão. Ele simplesmente se deu conta das possibilidades. Enxergou a primeira utilidade para o abrigo secreto debaixo da igreja. Visualizou Tsion lá, abastecido de tudo o que precisava, inclusive de um daqueles excelentes computadores que Donny Moore estava montando.
Buck sentiu-se eufórico só em pensar nisso. Proporcionaria ao rabino todos os programas de computador necessários ao seu trabalho: a Bíblia em todas as suas versões, em todos os idiomas, acompanhada de notas, comentários, dicionários, enciclopédias e tudo o mais que fosse necessário. Tsion nunca mais teria a preocupação de perder seus livros. Estariam todos em um único lugar e dentro de um imenso drive de computador.
E que tal Donny Moore instalar um componente que permitisse a Tsion navegar secretamente pela Internet? Será que ele poderia evangelizar de uma forma mais dramática e mais ampla? Poderia pregar e dar aulas de estudos bíblicos pela Internet, alcançando milhões de computadores e aparelhos de TV do mundo inteiro? Com certeza deveria haver alguma tecnologia que lhe permitisse fazer isso sem ser rastreado. Se os fabricantes de telefones celulares eram capazes de incluir chips que permitiam ao usuário passar por mais de trinta frequências diferentes em questão de segundos para evitar estática e intercepção, certamente haveria um meio de transmitir mensagens pela Internet sem que o remetente fosse identificado.
À distância, Buck avistou viaturas e caminhões da CG perto de dois edifícios de um só pavimento, um de cada lado da estrada. Ali devia ser a saída de Israel. Mais adiante na estrada, deveria haver a entrada para o Sinai. Buck reduziu a marcha e verificou as marcações no painel. O ponteiro de temperatura estava começando a subir, e Buck sabia que se dirigisse devagar e desligasse o veículo enquanto estivesse sendo investigado na fronteira, a temperatura voltaria ao normal. Os marcadores de combustível e óleo estavam em ordem.
Buck sentia-se irritado. Sua mente estava concentrada nas possibilidades de um trabalho de evangelização para Tsion Ben-Judá que sobrepujasse tudo o que o rabino já havia feito. Mas sua mente também o fazia lembrar-se de que ele próprio podia proclamar a verdade, via Internet, sobre o que estava acontecendo no mundo. Por quanto tempo ele ainda fingiria ser um funcionário prestativo de Nicolae Carpathia, mesmo sem ser leal a ele? Seu jornalismo deixara de ser objetivo. Agora limitava-se a ser uma propagação de ideias. Transformara-se naquilo que George Orwell chamou de "novidadeira" em seu famoso romance 1984.
Buck não queria ter de enfrentar a travessia da fronteira. Queria sentar-se sobre a almofada do comodismo e ruminar suas ideias. Queria empolgar o rabino com as possibilidades que vislumbrara. Mas não podia. Aparentemente, sua missão era concentrar-se nos guardas da fronteira enquanto dirigia o velho ônibus com sua carga vulnerável. Todos os veículos que estavam à sua frente já haviam desaparecido, e ele não viu nenhum pelo espelho retrovisor.
Tsion deitou-se no chão do ônibus embaixo dos bancos. Buck parou diante de uma cancela onde havia dois guardas uniformizados. O que estava do lado esquerdo do ônibus sinalizou para que Buck abaixasse o vidro e proferiu algumas palavras em hebraico.
— Inglês — disse Buck.
— Passe pela janela seu passaporte, visto de entrada, documento de identidade, documentos do veículo, mercadorias a serem declaradas e qualquer outra coisa que o senhor queira nos mostrar antes de efetuarmos uma busca e antes de abrirmos a cancela.
Buck levantou-se e pegou todos os documentos relacionados ao veículo e seu passaporte, visto de entrada e identidade falsos. Voltou a sentar-se no banco do motorista e entregou tudo ao guarda.
— Também estou transportando alimentos, gasolina, óleo e água.
— Alguma coisa mais?
— Alguma coisa mais? — repetiu Buck.
— Alguma coisa mais que eu precise ver! O senhor será interrogado ali dentro e seu veículo será revistado lá. — O guarda apontou para o edifício do lado direito da estrada.
— Sim, tenho algumas roupas e alguns cobertores.
— Só isso?
— Essas são as outras coisas que estou transportando.
— Ótimo, senhor. Quando a cancela for levantada, por favor dirija seu veículo para a direita e vá ao meu encontro no edifício da esquerda.
Buck passou lentamente sob a cancela semilevantada, mantendo o ônibus na primeira marcha, a mais barulhenta de todas. Tsion estendeu o corpo e agarrou o calcanhar de Buck. Buck entendeu esse gesto como um sinal de encorajamento, de agradecimento e, se necessário, de adeus.
— Tsion — ele disse entre os dentes — sua única esperança é ficar bem no fundo do ônibus. Você é capaz de arrastar-se rapidamente até lá?
— Vou tentar.
— Tsion, a esposa de Michael me disse algo quando partimos. Não entendi. Ela falou em hebraico. As últimas palavras soaram como Y'shua Hama-não-sei-o-quê.
— Y'shua Hamashiach significa "Jesus, o Messias" — disse Tsion com a voz trémula. — Ela estava lhe desejando que Deus o abençoasse em sua viagem, em nome de Y'shua Hamashiach.
— Desejo o mesmo para você, meu irmão.
— Cameron, meu amigo, vou vê-lo brevemente. Se não for nesta vida, será no reino eterno.
Os guardas estavam se aproximando, obviamente interessados em querer saber o motivo da demora de Buck. Assim que o guarda mais jovem chegou perto do ônibus, Buck desligou o motor e abriu a porta. Pegou uma lata d'água e passou pelo guarda.
— Um pequeno problema com o radiador — ele disse. — Você entende de radiadores?
Confuso, o guarda arregalou os olhos e acompanhou Buck até a frente do ônibus. Buck levantou o capo e ambos despejaram água no radiador. O guarda mais velho, o que conversara com Buck na cancela, disse:
— Vamos, rápido, rápido!
— Só um minuto — disse Buck, sentindo cada nervo de seu corpo e fechando o capo com força. O guarda mais novo caminhou em direção à porta, mas Buck passou por ele desculpando-se, subiu no primeiro degrau e atirou a lata dentro do ônibus. Pensou em "ajudar" o guarda a revistar o ônibus. Podia colaborar com ele indicando-lhe onde estavam os cobertores e as latas de gasolina, óleo e água. Mas ele já havia se exposto ao perigo e não queria levantar mais suspeitas. Desceu do ônibus e encarou o guarda mais jovem.
— Muito obrigado por sua ajuda. Não entendo muito de mecânica. Sou empresário. Americano, você sabe.
O guarda olhou firme para ele e fez um movimento afirmativo com a cabeça. Buck orou para que ele simplesmente o seguisse até o edifício do outro lado. O guarda mais velho aguardava com os olhos fixos nele, chamando-o com um aceno. Buck não tinha escolha. Deixou o rabino Ben-Judá, o fugitivo mais reconhecido e famoso de Israel, nas mãos dos guardas da fronteira.
Buck entrou apressado no edifício. Estava mais aflito do que nunca, mas não podia deixar transparecer. Queria olhar para trás e ver se Tsion estava sendo arrancado do ônibus. Não haveria meios de ele fugir a pé pela estrada como fizera da última vez. Ali não havia lugar para onde ir nem para se esconder. O local era isolado por cercas de arame farpado. Depois de passar pela cancela, só se podia ir para a direita ou para a esquerda. Não havia condições de retornar.
O guarda estava com os documentos de Buck espalhados diante de si.
— Por onde o senhor entrou em Israel? — ele perguntou.
— Por Tel-Aviv — Buck respondeu. — Está tudo aí...
— Eu sei. Estava apenas conferindo. Seus documentos parecem estar em ordem, Sr. Katz — ele complementou, carimbando o passaporte e o visto de entrada de Buck. — E o senhor representa a...?
— International Harvesters — disse Buck, proferindo propositadamente o nome no plural.
— E quando o senhor pretende partir?
— Esta noite. Meu piloto deve encontrar-se comigo em El Arish.
— E como o senhor vai se dispor do veículo?
— Espero vendê-lo a um preço acessível a alguém no aeroporto.
— Dependendo do preço, não deve haver nenhum problema.
Buck parecia ter-se congelado no lugar. O guarda olhou por cima de seus ombros em direção à estrada. O que ele estaria vendo? Buck imaginou Tsion sendo detido, algemado e conduzido até o outro lado da estrada. Que tolo ele havia sido em não providenciar algum compartimento secreto para Tsion. Aquilo era uma loucura. Teria ele conduzido o rabino para a morte? Buck não podia suportar o pensamento de perder outro integrante de sua nova família em Cristo.
O guarda estava diante do computador.
— Aqui mostra que o senhor foi detido esta madrugada perto de Berseba.
— Detido não é a palavra correta. Eu estava completando a água do radiador e fui interrogado brevemente por um oficial das forças pacificadoras da CG.
— Ele lhe disse que o proprietário anterior deste veículo foi preso por estar comprometido na fuga de Tsion Ben-Judá?
— Disse.
— Então, o senhor deve estar interessado nisto. — O guarda virou-se e apontou o controle remoto em direção a um aparelho de TV em um dos cantos do recinto. A CNN Global estava noticiando que um tal de Michael Shorosh tinha sido preso por ter abrigado um fugitivo da justiça. "O porta-voz da Comunidade Global diz que Ben-Judá, um ex-estudioso e sacerdote de grande respeitabilidade, aparentemente passou a ser um fundamentalista radical e fanático, e destaca este sermão que ele proferiu há uma semana como prova de reação emocional exagerada quanto a uma passagem do Novo Testamento. Posteriormente, esse homem foi visto por vários vizinhos no momento em que ele trucidava sua própria família."
Buck assistia horrorizado às notícias gravadas em videoteipe que mostravam Tsion pregando a uma enorme multidão dentro de um estádio lotado em Larnaca, na ilha de Chipre. "Prestem atenção", prosseguiu o jornalista quando a fita parou. "O homem que está na plataforma atrás do Dr. Ben-Judá foi identificado como Michael Shorosh. Em uma incursão à sua casa em Jericó, logo após a meia-noite, as forças pacificadoras encontraram fotografias pessoais da família de Ben-Judá e documentos de identidade de Ben-Judá e de um jornalista norte-americano, Cameron Williams. A ligação de Williams com este caso ainda não foi comprovada."
Buck orava para que eles não mostrassem seu rosto na televisão. Levou um susto quando o guarda com quem falava olhou por cima de seus ombros em direção à porta, e sentiu-se perdido quando viu o guarda mais jovem entrar e fixar os olhos nele. O jovem esperou que a porta se fechasse, encostou-se nela com os braços cruzados no peito e passou a assistir ao noticiário. A fita mostrava Ben-Judá lendo o livro de Mateus. Buck já ouvira Tsion pregar essa mensagem. Os versículos, evidentemente, haviam sido extraídos do contexto. "Aquele que me negar diante dos homens, também eu o negarei diante de meu Pai, que está nos céus. Não penseis que vim trazer paz à terra; não vim trazer paz, mas espada. Pois vim causar divisão entre o homem e seu pai; entre a filha e sua mãe e entre a nora e sua sogra. Assim, os inimigos do homem serão os da sua própria casa. Quem ama seu pai ou sua mãe mais do que a mim não é digno de mim; quem ama seu filho ou sua filha mais do que a mim não é digno de mim; e quem não toma a sua cruz e vem após mim não é digno de mim."
O jornalista disse em tom de voz solene: "Isto sucedeu poucos dias antes de o rabino assassinar sua mulher e filhos à luz do dia."
— Isso é importante, não? — disse o guarda mais velho.
— Isso é muito importante — disse Buck, temendo que seu tom de voz o traísse.
O guarda sentado à mesa estava empilhando os documentos. Ele olhou para Buck e depois para o guarda mais jovem.
— Está tudo em ordem com o veículo, Anis?
Buck precisava raciocinar rápido. Que atitude pareceria mais suspeita? Não se mexer nem olhar para o guarda mais jovem ou virar-se e olhar para ele? Decidiu olhar para ele. Ainda em pé diante da porta fechada, com os braços cruzados no peito, o jovem assentiu com um movimento de cabeça.
— Tudo em ordem. Cobertores e suprimentos.
Buck estava prendendo a respiração. O guarda sentado à mesa entregou-lhe os documentos.
— Boa viagem — ele disse.
— Obrigado — respondeu Buck, quase chorando ao soltar a respiração.
Ele virou-se em direção à porta, mas o guarda mais velho ainda não terminara.
— Obrigado por sua visita a Israel — ele complementou. Buck queria gritar. Deu meia-volta e movimentou a cabeça afirmativamente.
— Ah, sim, hã, sim. De nada.
Buck teve de esforçar-se para caminhar. Anis permanecia no mesmo lugar. Buck aproximou-se da porta, ficou frente a frente com o jovem e parou. Percebeu que o guarda mais velho estava prestando atenção.
— Com licença — disse Buck.
— Meu nome é Anis.
— Sim, Anis. Obrigado. Com licença, por favor. Por fim, Anis afastou-se e Buck saiu dali. Suas mãos tremiam quando ele dobrou seus documentos e os colocou no bolso. Entrou no velho ônibus e deu partida. Se Tsion tivesse encontrado algum lugar para esconder-se, onde o encontraria? Buck fez a costumeira dança dos pés entre a embreagem e o acelerador e o ônibus começou a rodar. Ao ganhar velocidade, ele mudou para a terceira marcha, e o barulho do motor tornou-se mais suave.
— Se você estiver aqui dentro, meu amigo — Buck gritou — não se mexa até que as luzes da fronteira desapareçam de vista. Depois disso, quero saber de tudo.


TREZE




RAYFORD já estava cansado de ser despertado pela campainha do telefone. No entanto, poucas pessoas da Nova Babilónia, com exceção de Carpathia e Fortunato, costumavam telefonar para ele. E os dois normalmente tinham o bom senso de não incomodá-lo no meio da noite. Portanto, ele imaginou, o telefonema poderia trazer boas ou más notícias. Uma chance em duas, em tempos como aqueles, até que era razoável. Pegando o fone, ele disse:
—Steele.
Era Amanda.
— Oh, Rayford, sei que o horário é impróprio e lamento acordá-lo. É que tivemos alguns momentos emocionantes aqui e gostaríamos de saber se você está a par de tudo.
— A par de quê?
— Chloe e eu estávamos analisando todas aquelas páginas impressas do computador de Bruce. Nós já lhe contamos isto?
— Já.
— Recebemos um telefonema estranho de Loretta, de lá da igreja. Ela disse que estava trabalhando sozinha, atendendo alguns telefonemas quando sentiu, de repente, uma necessidade urgente de orar por Buck.
— Por Buck?
— Sim. Ela disse que sentiu uma emoção tão grande a ponto de levantar-se imediatamente da cadeira. Achou que estava com tontura, mas algo a fez cair de joelhos no chão. Assim que se ajoelhou, Loretta percebeu que não estava com tontura. Ela estava orando fervorosamente por Buck.
— Tudo o que sei, meu bem, é que Buck está em Israel. Acho que ele está tentando encontrar Tsion Ben-Judá, e vocês sabem o que aconteceu com a família dele.
— Sabemos — disse Amanda. — O fato é que Buck tem um jeito todo especial de meter-se em confusão.
— Ele também tem um jeito todo especial de sair dela — disse Rayford.
— Então, o que você acha dessa premonição, ou sei lá o que, de Loretta?
— Eu não chamaria isso de premonição. Na época atual todos nós podemos fazer uso da oração, não é mesmo?
Amanda pareceu irritar-se.
— Rayford, isto não aconteceu por acaso. Você sabe que Loretta é uma mulher sensata. Ela ficou tão confusa que fechou o escritório e voltou para casa.
— Voltou para casa antes das nove horas da noite? Ela está ficando preguiçosa?
— Ora, Rayford. Hoje ela chegou lá por volta do meio-dia. Você sabe que ela costuma ficar até às nove. O pessoal da igreja telefona a qualquer hora.
— Eu sei. Desculpe-me.
— Ela quer conversar com você.
— Comigo?

— Sim. Você falaria com ela?
— Claro, ponha-a na linha. — Rayford não tinha ideia do que dizer a ela. Bruce teria uma resposta para um assunto como este.
Loretta parecia muito abalada.
— Capitão Steele, lamento muito incomodá-lo a esta hora da noite. Que horas são aí, mais ou menos três horas da madrugada?
— Sim, mas está tudo bem.
— Não, não está tudo bem. Não há motivos para eu acordá-lo de um sono profundo, mas Deus me disse para orar por aquele rapaz, tenho certeza disso.
— Estou satisfeito por você ter orado por ele.
— Você acha que estou maluca?
— Sempre achei você um pouco maluca, Loretta. É por isso que amamos tanto você.
— Sei que está brincando comigo, capitão Steele, mas falando sério, será que enlouqueci?
— Não, Loretta. Deus parece estar trabalhando de maneiras mais diretas e dramáticas o tempo todo. Se você sentiu vontade de orar por Buck naquele instante, não se esqueça de perguntar-lhe o que aconteceu, depois que ele voltar.
— Aí é que está o problema, capitão Steele. Tive um pressentimento de que Buck estava correndo perigo. Só espero que ele saia vivo de lá. Estamos esperando que ele volte para cá a tempo de assistir ao culto de domingo. Você vai estar presente, não?
— Se for da vontade de Deus — disse Rayford, espantado por ouvir de sua própria boca uma frase que ele sempre considerou tola quando proferida pela amigas de Irene.
— Queremos estar todos reunidos no domingo — disse Loretta.

— Essa é a minha prioridade. Loretta, você me faria um favor?
— Depois de acordá-lo no meio da noite? Peça.
— Se o Senhor a impelir a orar por mim, você faria isso com toda devoção?
— Claro que sim. Você sabe disso. Espero que agora você não esteja brincando.
— Nunca falei tão sério em minha vida.

_________________

Quando as luzes da fronteira desapareceram, Buck saiu da estrada, deixou a marcha no ponto morto, puxou o freio de mão, virou-se de lado e deu um suspiro profundo. Quase não conseguia falar.
— Tsion, você está aqui no ônibus? Pode sair agora de onde estiver.
Do fundo do ônibus ecoou uma voz embargada pela emoção.
— Estou aqui, Cameron. Louvado seja o Senhor Deus Todo-Poderoso, Criador do céu e da terra.
O rabino precisou arrastar-se para sair debaixo dos bancos. Buck foi ao seu encontro no corredor e o abraçou.
— Fale comigo — disse Buck.
— Eu lhe disse que o Senhor daria um jeito — disse Tsion. — Não sei se o jovem Anis era um anjo ou um homem, mas ele foi enviado por Deus.
— Anis?
— Anis. Ele andou várias vezes pelo corredor do ônibus, iluminando tudo com sua lanterna. De repente, ele ajoelhou-se, iluminou a parte inferior dos bancos e me focalizou. Eu estava orando para que Deus o cegasse. Mas Deus não o cegou. Anis apoiou os cotovelos no chão, mantendo o foco da lanterna em meu rosto com uma das mãos. Com a outra, ele agarrou-me pela camisa, puxando-me para perto de si. Pensei que meu coração fosse explodir. Imaginei-me sendo arrastado até o edifício, sendo apresentado como um trofeu para o oficial. Anis sussurrou, com os dentes cerrados, algumas palavras roucas em hebraico: "É melhor o senhor ser quem eu estou pensando, ou será um homem morto." O que eu podia fazer? Não podia fugir. Não podia fingir que não estava ali. Eu lhe disse simplesmente: "Jovem, meu nome é Tsion Ben-Judá." Ainda segurando-me pela camisa e com a lanterna cegando-me os olhos, ele disse: "Rabino Ben-Judá, meu nome é Anis. Ore como nunca orou antes para que eles acreditem no que eu vou dizer-lhes. 'O Senhor te abençoe e te guarde. O Senhor faça resplandecer o seu rosto sobre ti e te dê a paz.'" Cameron, Deus é testemunha do que estou dizendo. O jovem levantou-se e desceu do ônibus. Permaneci deitado aqui, orando a Deus e chorando o tempo todo.
Não havia nada mais a dizer. Tsion afundou em um dos bancos no meio do ônibus. Buck voltou ao seu lugar e tomou o rumo da fronteira do Egito.
Meia hora depois, Buck e Tsion chegaram à entrada do Sinai. Desta vez, Deus simplesmente usou a fragilidade do sistema de segurança para permitir a travessia de Ben-Judá. A única cancela existente ficava do outro lado da fronteira do Sinai. Quando Buck foi parado, um guarda imediatamente subiu no ônibus e começou a gritar ordens em sua própria língua.
— Inglês? — disse Buck.
— Está bem, inglês, cavalheiros. — Ele olhou para Tsion. — Você vai poder voltar a dormir aí em poucos minutos, velhote. Antes, vocês precisam ir até lá para que seus documentos sejam examinados. Vou revistar o ônibus enquanto estiverem fora, e depois vocês poderão seguir seu caminho.
Buck, animado após o recente milagre, olhou para Tsion e deu de ombros. Buck aguardou enquanto o rabino abria caminho para o guarda começar a revista, mas Tsion fez um gesto para ele sair dali. Buck desceu do ônibus e dirigiu-se para o edifício. Enquanto os documentos estavam sendo examinados, o guarda perguntou:
— Nenhum problema na fronteira de Israel?
Buck quase sorriu. Nenhum problema? Não há problemas quando Deus está ao nosso lado.
— Não, senhor.
Buck não conseguia conter-se. Continuava a olhar por cima dos ombros à procura de Tsion. Onde ele estaria agora? Será que Deus o tornara invisível?
A burocracia ali era muito mais simples e mais rápida. Aparentemente, os egípcios estavam acostumados a simplesmente carimbar tudo o que os israelenses haviam aprovado. Não era possível chegar até ali sem ter passado pelos procedimentos anteriores e, a menos que os israelenses estivessem tentando livrar-se de seus elementos indesejáveis, a travessia era tranquila. Os documentos de Buck foram carimbados e entregues a ele depois de algumas perguntas de rotina.
— Menos de cem quilómetros até El Arish — disse o guarda. — Não há voos comerciais programados para sair de lá a esta hora da noite, é claro.
— Eu sei — disse Buck. — Já tomei minhas providências.
— Então, tudo bem, Sr. Katz. Tudo de bom para o senhor. Está tudo muito bom mesmo! pensou Buck. Virando-se, ele caminhou apressado para o ônibus. Não havia sinal de Tsion. O guarda que os deteve ainda estava dentro do ônibus. Assim que Buck pisou no degrau, Tsion surgiu detrás do ônibus e parou na frente dele. Ambos subiram juntos. O guarda estava examinando a mochila de Buck.
— Equipamento impressionante, Sr. Katz.
— Obrigado.
Tsion passou pelo guarda e voltou para o mesmo banco, deitando-se nele.
— Para quem você trabalha? — perguntou o guarda.
— International Harvesters — disse Buck. Tsion ergueu um pouco o corpo e Buck quase sorriu. Com certeza, Tsion havia gostado daquilo.
O guarda fechou a mochila.
— Os documentos de ambos já foram examinados e vocês estão prontos para partir?
— Está tudo em ordem — respondeu Buck.
O guarda olhou para trás. Tsion estava roncando. O guarda virou-se para Buck e disse em voz baixa:
— Vá em frente.
Buck tentou não demonstrar ansiedade para partir, mas pisou na embreagem e acelerou assim que o guarda passou pela frente do ônibus. Alguns minutos depois ele já estava na estrada novamente.
— Muito bem, Tsion, onde você se escondeu desta vez? Tsion sentou-se no banco.
— Você gostou do meu ronco? Buck riu.

— Impressionante. Onde você se escondeu enquanto o guarda revistava o ônibus, imaginando que havíamos saído juntos para mostrar os documentos?
— Simplesmente fiquei atrás do ônibus. Você desceu e dirigiu-se para o edifício. Eu também desci e fui para trás do ônibus.
— Você está brincando.
— Eu não sabia o que fazer, Cameron. Ele foi muito gentil e me viu fora do ônibus. Eu não quis ir até o edifício sem ter nenhum documento na mão. Quando você voltou, achei que eu tinha feito o certo.
— A pergunta agora — disse Buck — é quanto tempo vai levar para que o guarda mencione que viu dois homens no ônibus.
Tsion caminhou até o banco atrás de Buck.
— Sim — ele disse. — Em primeiro lugar o guarda vai ter de convencer o pessoal de que ele não estava vendo coisas. Talvez o assunto não venha à baila. Mas, se isso acontecer,eles virão atrás de nós.
— Confio que o Senhor nos livrará, porque Ele prometeu — disse Buck. — Mas penso também que devemos estar preparados. — Ele parou no acostamento, completou a água do radiador e despejou quase dois litros de óleo no motor. Aproveitou para encher o tanque de gasolina.
— Parece que estamos vivendo na época do Novo Testamento — disse Tsion.
Pisando na embreagem e engatando a marcha, Buck disse:
— Talvez eles tenham condição de nos alcançar, mas se conseguirmos chegar a El Arish, estaremos a bordo do Learjet e sobrevoando o Mediterrâneo antes que eles percebam que fugimos.
Durante as duas horas seguintes, a condição da estrada piorou. A temperatura estava subindo. Buck olhava constantemente no espelho retrovisor e percebeu que Tsion também olhava para trás. De vez em quando, um veículo menor e mais rápido aparecia no horizonte e passava por eles.
— Com o que você está preocupado, Cameron? Deus não nos traria até aqui para sermos capturados, não é verdade?
— Você está me perguntando? Nunca vi nada disto acontecer antes de conhecer você!
Ambos permaneceram em silêncio por meia hora. Finalmente, Tsion falou e Buck percebeu um tom de firmeza em sua voz.
— Cameron, você sabe que tenho de me esforçar para comer alguma coisa, e até agora não tive muito êxito.
— Pois então coma alguma coisa! Há muita comida aqui!
— E o que vou fazer. O sofrimento em meu coração é tão grande que sinto que jamais vou voltar a fazer alguma coisa que me dê satisfação. Eu adorava um bom prato. Mesmo antes de conhecer a Cristo, eu sabia que o alimento era uma dádiva de Deus para nós. Ele queria que apreciássemos a comida. Estou com fome, mas vou comer apenas o suficiente para me sustentar e manter as forças.
— Você não me deve explicações, Tsion. Apenas peço a Deus que você encontre algum conforto até o Glorioso Aparecimento.
— Você quer comer alguma coisa?
Buck acenou a cabeça negativamente, mas resolveu pensar melhor.
— Existe alguma coisa aí que tenha muitas fibras e açúcar natural? — Ele não sabia o que teria pela frente, e não queria estar fraco fisicamente.
Tsion deu um suspiro profundo.
— Muitas fibras e açúcar natural? É a comida típica de Israel, Cameron. Você disse exatamente o que costumamos comer.
O rabino entregou a Buck várias barras de figo seco que pareciam ser feitas com granola e frutas. Buck não se dera conta do quanto estava com fome até começar a comer. De repente, sentiu-se saciado e esperava que Tsion também sentisse o mesmo, principalmente depois de avistar luzes amarelas piscando atrás deles, a uma certa distância.
A pergunta agora era se deveriam aumentar a velocidade ou fingir inocência e deixar o veículo passar. Talvez não estivesse no encalço deles. Buck meneou a cabeça. Evidentemente essa era a sua batalha de Waterloo. Ele estava confiante de que Deus os livraria, mas também não queria ser tão tolo a ponto de pensar que um veículo de emergência vindo da fronteira não estaria no encalço deles.
— Tsion, é melhor você colocar tudo no lugar e esconder-se.
Tsion inclinou o corpo e olhou para trás.
— Mais aventura — ele murmurou. — Senhor, será que já não passamos por tudo o que tínhamos de passar em um único dia? Cameron, vou guardar tudo, mas vou levar alguns petiscos para meu esconderijo.
— Como você preferir. Pelo que vimos na fronteira, os carros deles são pequenos e não são muito possantes. Se eu pisar fundo no acelerador, eles vão demorar para nos alcançar.
— E quando eles nos alcançarem? — perguntou Tsion, já escondido debaixo dos bancos no fundo do ônibus.
— Estou tentando imaginar uma estratégia.
— Vou continuar orando — disse Tsion. Buck quase chegou a rir.
— Suas orações não surtiram muito efeito esta noite — ele disse.
Não houve nenhuma reação da parte de Tsion. Buck acelerou o ônibus o mais que pôde. O ponteiro marcava mais de 80 quilómetros por hora e, segundo seus cálculos, uma velocidade equivalente a 50 milhas por hora. O ônibus rodava ruidosamente, balançando e dando trancos. As várias peças de metal rangiam como se estivessem protestando. Era evidente que se Buck podia enxergar a viatura da fronteira, seu motorista também podia ver o ônibus. Não fazia sentido desligar os faróis e esperar que eles imaginassem que o ônibus saíra da estrada.
Buck achava que conseguiria distanciar-se da viatura. Ele não podia calcular a distância por causa da escuridão, mas aparentemente o carro não estava em alta velocidade. As luzes estavam piscando, e Buck convenceu-se de que estava sendo perseguido, mas continuou acelerando.
De trás do ônibus, veio a voz de Tsion:
— Cameron, acho que tenho o direito de saber. Qual é o seu plano? O que você vai fazer quando eles nos alcançarem?
— Vou lhe dizer uma coisa. Não quero voltar para aquela fronteira. Também não tenho certeza se vou permitir que eles me façam parar no acostamento.
— Como você vai saber o que eles querem?
— Se o motorista for o guarda que revistou o ônibus, saberemos o que eles querem, certo?
— Suponho que sim.
— Vou gritar pela janela e pedir que nos acompanhe até o aeroporto. Não faz sentido percorrer todo o caminho de volta para a fronteira.
— Mas a decisão não deve ser dele?
— Neste caso, vou ter de apelar para a desobediência civil — disse Buck.
— E se ele forçar você a sair da estrada? Parar você?
— Vou evitar colidir com a viatura dele a qualquer custo, mas não pretendo parar, e se for obrigado, não farei o retorno.
— Gostei de sua determinação, Cameron. Vou orar. Siga a orientação de Deus.
— Vou seguir.
Buck calculou que eles estavam a 30 quilómetros do aeroporto de El Arish. Se ele conseguisse manter a velocidade do ônibus a mais ou menos 60 quilómetros por hora, chegaria lá em meia hora. O carro da patrulha com certeza o alcançaria antes disso. Mas como eles estavam bem mais perto do aeroporto que da fronteira, Buck tinha certeza de que o guarda seria sensato e os acompanharia até o aeroporto em vez de forçá-los a voltar para a fronteira.
— Tsion, preciso de sua ajuda.
— Diga.
— Continue abaixado e fora de visão, mas pegue meu telefone que está em minha mochila e traga-o até aqui.
Quando Tsion aproximou-se rastejando e com o telefone na mão, Buck perguntou-lhe:
— Quantos anos você tem?
— Em minha cultura, essa é uma pergunta deselegante — disse Tsion.
— Ah, sim, mas agora isso pouco importa.

— Tenho 46 anos, Cameron. Por que você quer saber? Você parece estar em boa forma.
— Obrigado. Pratico exercícios físicos.
— Pratica? Sério?

— Isso o surpreende? Você se surpreenderia mais ainda com o número de intelectuais que praticam exercícios físicos. Claro que há muitos que não fazem isso, mas ...
— Só quero saber se você é capaz de correr, se for necessário.
— Espero não ter de chegar a esse ponto, mas sim, sou capaz. Não corro tão rápido como no tempo em que era jovem, mas tenho uma resistência surpreendente para um homem de minha idade.
— Isso é tudo o que eu queria saber.
— Lembre-me de fazer-lhe algumas perguntas pessoais um dia — disse Tsion.
— Estou falando sério, Tsion. Eu não o ofendi, não? Buck estava estranhamente entusiasmado. O rabino deu uma risada.
— Oh, meu amigo, pense um pouco. O que poderia me ofender agora?

— Tsion, é melhor você voltar para o seu lugar, mas antes diga-me quanta gasolina ainda temos.
— O marcador está na sua frente, Cameron. Você é quem deve me dizer.
— Não. Estou falando das latas extras.
— Vou verificar, mas com certeza não teremos tempo de abastecer o tanque enquanto estivermos sendo perseguidos. O que você tem em mente?
— Por que você faz tantas perguntas?
— Porque sou um aluno. Sempre serei um aluno. De qualquer forma, estamos juntos nisto, não estamos?
— Bem, deixe-me dar-lhe uma pista. Enquanto você verifica as latas de gasolina, eu verifico o acendedor de cigarros no painel.
— Cameron, os acendedores de cigarros são os primeiros a
deixar de funcionar em veículos velhos, não é verdade?
— Pelo bem de nós dois, espero que não.
O telefone de Buck tocou. Assustado, ele o abriu.
— Buck falando.
— Buck! É Chloe!
— Chloe! Não posso falar com você agora. Confie em mim. Não me faça nenhuma pergunta. Neste instante estou bem, mas, por favor, peça a todos que orem, e que orem agora.
E veja se você consegue encontrar na Internet ou em outro lugar qualquer o número do telefone do aeroporto de El Arish, localizado no sul da Faixa de Gaza, às margens do Mediterrâneo, no Sinai. Entre em contato com Ken Ritz, que deve estar me esperando lá. Peça que ele ligue para mim neste número.
— Mas Buck...
— Chloe, é assunto de vida ou morte!
— Então me ligue assim que estiver a salvo!
— Prometo!
Buck fechou o telefone e ouviu Tsion dizer, do fundo do ônibus:
— Cameron, você está pensando em explodir este ônibus?
— Você é um homem realmente culto, não? — disse Buck.
— Só espero que você aguarde até chegarmos ao aeroporto. Quero dizer, um ônibus em chamas pode nos fazer chegar lá mais depressa, mas seu amigo piloto talvez tenha de transportar nossos restos mortais para os Estados Unidos.

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— Está tudo bem, Chloe — disse Rayford. — Faz tempo que desisti de tentar dormir. Estou acordado, lendo.
Chloe contou-lhe a respeito de sua estranha conversa com Buck.
— Não perca tempo na Internet — disse Rayford. — Tenho um guia com todos os números de telefone dos aeroportos. Espere um pouco na linha.
— Papai — ela disse — você está mais perto que eu de lá. Telefone para Ken Ritz e peça-lhe que ligue para Buck.
— Se eu tivesse um avião, por menor que fosse, iria até lá.
— Papai, não é necessário que você e Buck ponham a vida em risco ao mesmo tempo.
— Chloe, fazemos isso todos os dias.
— É melhor você se apressar, papai.

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Buck calculou que a viatura que os seguia estava a menos de 800 metros de distância. Ele pisou fundo no acelerador. O ônibus sacolejava pela estrada e o volante trepidava em suas mãos. Os marcadores do painel estavam dentro da normalidade, mas Buck sabia que não demoraria muito para a água do radiador ferver.
— Calculo que ainda temos oito litros de gasolina — disse Tsion.
— É o suficiente.
— Concordo, Cameron. É mais do que suficiente para que nos tornemos mártires.
Buck tirou um pouco o pé do acelerador para suavizar os solavancos. Suavizar não era a palavra correta. Suas costas e quadril sofreram com o impacto. Agora a viatura estava a menos de 500 metros de distância.
Tsion gritou do fundo do ônibus:
— Cameron, está claro que não vamos conseguir chegar ao aeroporto sem que eles nos alcancem, você concorda?
— Sim! E daí?
— Então não faz sentido exigir tanto deste veículo. Seria mais prudente economizar água, óleo e gasolina até chegarmos ao aeroporto. Se o ônibus parar de funcionar, de nada valerá toda a sua determinação.
Buck não podia contra-argumentar. Reduziu imediatamente a velocidade para 50 quilómetros por hora e percebeu que, com isso, o ônibus teria condições de chegar ao destino. No entanto, a velocidade reduzida permitiu que o carro da patrulha o alcançasse.
Buck ouviu o som da sirene e viu, pelo espelho retrovisor externo, a luz de um holofote, a poucos metros de distância do ônibus. Ele limitou-se a fazer um aceno e seguiu em frente. Agora, o motorista da viatura fazia uso de todos os seus equipamentos: luzes pisca-pisca, holofote, sirene e buzina.
Finalmente o carro da patrulha emparelhou com o ônibus. Buck olhou dentro e avistou o mesmo guarda que revistara o ônibus.
— Prenda o cinto de segurança, Tsion! — Buck gritou. — A caçada começou!
— Eu gostaria de ter um cinto de segurança! Buck prosseguiu na mesma velocidade. A viatura continuava a seu lado e o guarda apontava para o acostamento. Buck acenou para ele e seguiu em frente. A viatura ultrapassou o ônibus, e o guarda reduziu a velocidade, continuando a apontar para o acostamento. Ao perceber que não teria êxito, o guarda reduziu ainda mais a velocidade, forçando Buck a passar para a outra pista. Sem pisar fundo no acelerador, ele viu que a viatura estava do lado direito do ônibus, rodando em alta velocidade para não permitir a ultrapassagem. Buck reduziu a velocidade e voltou para a pista anterior, passando a seguir a viatura. Quando ela parou, ele parou atrás.
Assim que o guarda desceu da viatura, Buck deu marcha à ré e passou por ele, distanciando-se cerca de cem metros. O guarda voltou a sentar-se ao volante e o alcançou rapidamente. Emparelhou com o ônibus e mostrou-lhe uma arma. Buck abriu a janela e gritou:
— Se eu parar, o ônibus vai enguiçar! Acompanhe-me até El Arish!
— Não! — foi a resposta. — Acompanhe-me de volta à fronteira!
— Estamos muito mais perto do aeroporto! Este ônibus não tem condições de voltar para a fronteira!
— Então saia daí! Volte para a fronteira comigo!
— Siga-me até o aeroporto!
— Não!
Buck fechou o vidro da janela. Quando o guarda apontou a arma na direção de Buck, ele abaixou-se mas continuou seguindo em frente.
O telefone de Buck estava tocando. Ele abriu-o.

— Fale rápido!
— É Ritz! Qual é o problema?
— Ken, você já passou pela alfândega daí?
— Sim! Estou pronto.
— Pronto para divertir-se um pouco?
— Pensei que você nunca ia me pedir isso! Faz séculos que não me divirto de verdade.
— Você vai arriscar a vida e infringir a lei — disse Buck.
— Só isso? Já estou acostumado.
— Diga-me exatamente onde você está, Ken.
— Parece que sou o único avião que vai partir daqui esta noite. Estou do lado de fora de um hangar no final da pista. Quero dizer, o meu avião, e não eu. Estou conversando com você de um pequeno terminal.
— Você já está com a documentação em ordem, pronto para partir do Egito?
— Sim, sem problemas.
— O que você disse ao pessoal daí quanto a outros passageiros e carga?
— Imaginei que você não queria que eu falasse disso com ninguém.
— Perfeito, Ken! Obrigado! E quem eles acham que eu sou?
— Exatamente quem você é, Sr. Katz.
— Ótimo, Ken. Aguarde um pouco na linha.
Agora, a viatura estava na frente do ônibus e o guarda pisou com toda força no freio. Buck teve de dar uma guinada para não bater no carro da patrulha e quase saiu da pista. O ônibus derrapou e, por pouco, não tombou.
— Estou rolando de um lado para o outro! — gritou Tsion.
— Aguente firme! — disse Buck. — Não vou parar nem fazer o retorno.
O guarda havia apagado as luzes pisca-pisca e o holofote, e desligado a sirene. Ele encostou a viatura na traseira do ônibus e forçou uma colisão. Bateu uma vez. Mais uma. E mais outra.
— Ele está com medo de amassar a viatura, não é mesmo? disse Buck.
— Não tenha tanta certeza assim — disse Tsion.
—Tenho sim. — Buck pisou com força no freio. Tsion escorregou para a frente e deu um grito. Buck ouviu o ruído estridente de pneus e viu a viatura dar uma guinada e sair para o lado direito da pista, indo parar no acostamento de pedregulhos. Buck acelerou com toda a força. O motor do ônibus parou. Enquanto tentava dar a partida, ele avistou a viatura, rodando pelo acostamento. O motor deu um tranco, e Buck pressionou a embreagem, voltando a falar ao telefone.
— Ken, você ainda está na linha?
— Sim, mas, céus, o que está acontecendo?
— Você não vai acreditar!
— Você está sendo perseguido ou coisa parecida?

— Perseguido é muito pouco para tudo o que estou passando, Ritz! Acho que não vamos ter tempo de passar pela alfândega. Preciso saber como chegar até seu avião. Você precisa estar com tudo em ordem, motores funcionando, porta aberta e escada na posição.
— Isso é que é divertimento! — disse Ritz.
— Você não faz ideia — disse Buck. O piloto explicou rapidamente a Buck o local da pista e o terminal onde ele se encontrava. — Chegaremos aí dentro de dez minutos —prosseguiu Buck. — Se eu conseguir manter esta coisa rodando, vou chegar o mais perto que puder da pista e de seu avião. O que vou encontrar por aí?
A viatura voltou para a pista, deu um rodopio e ficou de frente para o ônibus. Buck desviou para a esquerda, mas foi fechado pela viatura, e não pôde evitar uma colisão. Com o impacto, a viatura deu um giro na estrada e o capo foi atirado longe. Buck percebeu que o ônibus quase não sofreu com o impacto da batida, mas o ponteiro da temperatura estava subindo.
— Afinal de contas, quem está perseguindo você? — perguntou Ritz.
— A patrulha da fronteira egípcia — respondeu Buck.
— Então pode apostar que eles vão se comunicar pelo rádio com o pessoal mais à frente. Você vai enfrentar uma espécie de bloqueio.
— Acabei de colidir com a viatura. Será que vou conseguir furar o bloqueio?
— Isso você vai ter de decidir na hora. Se você estiver tão perto daqui como diz, é melhor eu me dirigir para o avião.
— O acendedor de cigarros está funcionando! — gritou Buck para Tsion.
— Não quero ouvir falar nisso!
A viatura amassada recomeçou a perseguição. Buck avistou as luzes da pista à distância.
— Tsion, venha até aqui. Precisamos planejar uma estratégia.
— Planejar uma estratégia? Isso é uma loucura!
— E que outro nome você daria a tudo isto que estamos passando?
— A loucura de Deus! Farei tudo o que você me pedir, Cameron. Hoje, nada será capaz de nos deter.
Aparentemente o guarda da viatura já havia se comunicado pelo rádio para pedir não só um bloqueio, mas também ajuda. No sentido contrário, Buck avistou dois pares de faróis, lado a lado, ocupando as duas pistas.
— Você conhece a expressão "brincar com fogo"? — perguntou Buck.
— Não — respondeu Tsion — mas estou começando a conhecer. Você vai desafiá-los?
— Você não acha que eles têm muito mais a perder que nós?
— Acho. Estou aguentando firme. Faça o que tiver de fazer!
Buck pisou fundo no acelerador. O ponteiro da temperatura chegou rapidamente ao máximo. Saía fumaça do motor.
— Vou lhe dizer o que vamos fazer, Tsion! Preste muita atenção!
— Concentre-se na direção, Cameron! Diga-me depois!
— Não haverá depois! Se estas viaturas não saírem da frente, vai haver uma tremenda batida. Acho que conseguiremos prosseguir. Quando chegarmos ao tal bloqueio preparado para nós no aeroporto, teremos de tomar uma decisão rápida. Quero que você despeje a gasolina de todos aqueles recipientes dentro de um tambor maior de água, aquele que tem uma abertura grande na parte superior. Vou acionar o acendedor de cigarros e deixá-lo pronto. Se eu achar que temos condição de furar o bloqueio, vou continuar rodando até chegar o mais perto possível da pista. O Learjet vai estar à nossa direita e a cerca de cem metros do terminal. Se o bloqueio for intransponível, vou tentar passar por fora. Se isso for impossível, vou virar todo o volante para a esquerda e pisar com toda força no freio. Isso vai fazer com que o ônibus dê um cavalo-de-pau. Tudo o que estiver solto dentro do ônibus vai escorregar pela porta traseira. Você vai precisar colocar aquele tambor de gasolina no corredor a dois ou três metros da porta traseira. Quando eu der um sinal, atire o acendedor de cigarros dentro dele. Isso precisa ser feito com alguns momentos de antecedência para que a gasolina se incendeie antes da colisão.
— Não estou entendendo! Como vamos escapar?
— Se o bloqueio for intransponível, essa será a nossa única esperança! Quando a porta traseira se abrir com a explosão e a gasolina pegar fogo, teremos de nos segurar com toda a força para não sermos arremessados para o fundo do ônibus. Enquanto eles estiverem concentrados no fogo, vamos saltar pela porta da frente e correr na direção do jato. Entendeu?
— Entendi, Cameron, mas não estou otimista!
— Segure firme! — gritou Buck quando os dois carros do aeroporto aproximaram-se dele. Tsion colocou um braço na barra de metal atrás de Buck e passou o outro ao redor do peito, agarrando o encosto do banco como se fosse um cinto de segurança humano.
Buck não fez menção de reduzir a marcha nem de desviar e foi de encontro aos dois pares de faróis. No último instante, ele fechou os olhos à espera de uma violenta colisão. Quando abriu os olhos, não havia nenhum carro na estrada. Virou-se para trás e olhou para a esquerda e para a direita. Os dois carros estavam fora da estrada, e um deles rodava. A viatura que o perseguia continuava atrás do ônibus, e Buck ouviu um estampido.
A pouco mais de um quilómetro à frente surgiu o pequeno aeroporto. Cercas enormes de arame farpado isolavam a entrada, e atrás dela havia um bloqueio de meia dúzia de veículos e vários soldados armados. Buck viu que não seria capaz de furar o bloqueio nem de desviar dele.
Pressionou o acendedor de cigarros enquanto Tsion arrastava o tambor de gasolina para o fundo do ônibus.
— O líquido está balançando dentro do tambor! — gritou Tsion.
— Faça o melhor que puder!
Quando Buck acelerou em direção ao portão aberto e ao enorme bloqueio, com o carro da patrulha ainda o perseguindo, o acendedor de cigarros funcionou. Buck agarrou-o e atirou-o na direção de Tsion. O acendedor bateu em alguma coisa e rolou debaixo de um banco.
— Oh, não! — gritou Buck.
— Consegui pegá-lo! — disse Tsion. Buck olhou no espelho retrovisor e viu Tsion sair debaixo do banco, atirar o acendedor de cigarros dentro do tambor e correr para a frente do ônibus.
A traseira do ônibus irrompeu em chamas.
— Segure firme! — gritou Buck, virando todo o volante para a esquerda e pisando com toda força no freio. O ônibus rodopiou tão rápido que quase tombou. A traseira colidiu com os carros do bloqueio e a porta do fundo abriu-se, espalhando a gasolina em chamas por toda parte.
Buck e Tsion saltaram do ônibus, abaixaram-se e correram, passando pelo lado esquerdo do bloqueio. Os guardas miraram suas armas para dentro do ônibus e começaram a atirar enquanto outras pessoas gritavam e fugiam das chamas. Tsion estava sem forças. Buck agarrou-o e arrastou-o para o lado escuro do terminal perto da pista.
Lá estava o Learjet, pronto para decolar. Nunca um avião se parecera tanto com um oásis de segurança. Buck olhou para trás duas vezes, mas aparentemente ninguém notara a fuga deles. Era bom demais para ser verdade, mas encaixava-se com tudo o que lhes acontecera naquela noite.
A uns quinze metros do avião, Buck ouviu tiros e virou-se. Meia dúzia de guardas corriam em sua direção, atirando com armas possantes. Quando eles chegaram à escada, Buck agarrou Tsion pela parte de trás da cinta e empurrou-o para dentro do avião. Enquanto Buck atirava-se para dentro do avião, um projétil atingiu a parte inferior do salto da bota de seu pé direito. Seu pé começou a doer enquanto ele fechava a porta com força e Ritz fazia as manobras para a decolagem.
Buck e Tsion rastejaram até a cabina de comando.
Ritz murmurou:
—Aqueles mal-educados atiraram em meu avião. Estou louco da vida com eles.
O avião decolou como um foguete e elevou-se rapidamente.
— Próxima parada — anunciou Ritz — aeroporto de Palwaukee, Estado de Illinois, nos Estados Unidos da América do Norte.
Deitado no chão, Buck não conseguia mover-se. Queria olhar pela janela, mas não se atrevia. Tsion escondeu o rosto nas mãos. Chorava e parecia orar também.
Ritz voltou a falar.
— Williams, você criou uma confusão terrível lá embaixo. Conte-me tudo o que aconteceu.
— Eu demoraria uma semana para contar tudo — disse Buck ofegante.
— Bem — disse Ritz — qualquer que tenha sido a história, com certeza foi muito divertida.
Uma hora mais tarde, Buck e Tsion estavam sentados nas poltronas reclináveis, examinando os ferimentos.
— Sofri apenas uma torção — disse Tsion. — Quando batemos pela primeira vez, meu pé ficou preso sob um dos suportes do banco. Eu estava com receio de ter fraturado o pé. Vai sarar rapidamente.
Buck tirou lentamente a bota do pé direito e levantou-o para que Tsion pudesse ver a trajetória do projétil. Havia um buraco que ia da sola do pé até o tornozelo. Buck tirou a meia ensanguentada.
— Você quer olhar? — perguntou Buck, sorrindo. — Não haverá necessidade de sutura. Apenas um pequeno corte.
Tsion utilizou o estojo de primeiros socorros de Ken Ritz para cuidar do pé de Buck e encontrou uma bandagem para seu tornozelo.
Finalmente, recostados nas poltronas e com os pés levados para abrandar a dor dos ferimentos, Tsion e Buck entreolharam-se.
— Você está tão exausto quanto eu? — perguntou Buck.
— Estou pronto para dormir — disse Tsion — mas seríamos negligentes se não agradecêssemos.
Buck inclinou-se para a frente e curvou a cabeça. A última coisa que ouviu antes de mergulhar num doce sono de alívio foi a linda cadência da oração do rabino Tsion Ben-Judá, agradecendo a Deus porque "a glória do Senhor foi a nossa retaguarda".


QUATORZE



BUCK despertou quase dez horas depois, satisfeito por ver que Tsion ainda dormia. Examinou o tornozelo enfaixado do amigo. Estava inchado, mas não aparentava gravidade. Buck ainda não podia calçar a bota por causa do ferimento no pé. Mancando, ele dirigiu-se até a cabina de comando.
— Como vão indo as coisas, capitão?
— Muito melhor agora que estamos sobrevoando o espaço aéreo dos Estados Unidos. Eu não tinha ideia da encrenca em que vocês se meteram nem que tipo de pilotos de caça estavam atrás de mim.
— Acho que não valíamos todo aquele estardalhaço, com a Terceira Guerra Mundial em pleno andamento — disse Buck.
— Onde você deixou seus pertences?
Buck virou-se e olhou ao redor. O que ele estava procurando? Não havia trazido nada. Tudo o que era seu ficara naquela mochila de couro, que agora devia ter-se transformado em cinzas, e seu conteúdo, derretido.
— Prometi ligar para minha esposa! — ele disse.
— Você vai gostar de saber que eu já conversei com seus familiares — disse Ritz. — Eles ficaram aliviados quando lhes contei que você estava a caminho de casa.
— Você não contou nada a respeito de meu ferimento nem do outro passageiro, contou?
— Você precisa confiar mais em mim, Williams. Nós dois sabemos que seu ferimento não foi grave, portanto não havia necessidade de sua esposa tomar conhecimento antes de ver o que aconteceu. E quanto ao outro passageiro, não tenho ideia de quem ele é nem se sua família sabe que você o está levando para sua casa. Não, eu também não disse nada a respeito dele.
— Você é um cara legal, Ritz — disse Buck, dando-lhe um tapinha no ombro.
— Gosto de elogios como qualquer outra pessoa, mas espero que você saiba que me deve uma gratificação pela minha parte na fuga.
— Isso poderá ser providenciado.
Por ter saído poucos dias antes dos Estados Unidos com a documentação em ordem, tanto do avião como de seu passageiro, Ritz não teve problemas e passou facilmente pela rede de radares norte-americanos. Não comunicou a presença de um passageiro extra, mas como o pessoal do Aeroporto de Palwaukee não tinha o hábito de fiscalizar viajantes internacionais, ninguém prestou atenção quando um piloto norte-americano na casa dos cinquenta anos, um rabino israelense com mais de quarenta e um escritor norte-americano na casa dos trinta anos desceram do avião. Ritz era o único que não mancava.
Buck havia ligado para Chloe do avião. Imaginou que ela poderia estar furiosa por ter ficado acordada a noite inteira, preocupada e orando por ele, mas ela parecera aliviada ao ouvir sua voz.
"Acredite em mim, meu bem," ele dissera. "Você vai compreender depois de ouvir a história inteira."
Buck a convencera de que apenas o Comando Tribulação e Loretta poderiam saber a respeito de Tsion.
"Não conte nada a Verna. Você pode ir sozinha até Palwaukee?"
"Ainda não estou dirigindo, Buck", ela respondera. "Amanda poderá levar-me. Verna não está mais morando aqui. Mudou-se para a casa de amigas."
"Ela pode vir a ser um problema para nós", dissera Buck. "Talvez eu tenha me tornado vulnerável diante da pior pessoa relacionada à minha profissão."
"Falaremos sobre isso depois, Buck."
Parecia que Tsion Ben-Judá estava sob um programa nacional de proteção a testemunhas. Foi levado à casa de Loretta na calada da noite. Amanda e Chloe, que já haviam sido informadas por Rayford sobre a tragédia com a família de Tsion, cumprimentaram-no com cordialidade e pesar pelo acontecido, mas não sabiam muito o que dizer. Loretta os aguardava com uma refeição leve.
— Sou uma velha e não sei bem o que está acontecendo — ela disse — mas já entendi tudo. Quanto menos eu souber sobre seu amigo, melhor, estou certa?
Tsion respondeu com ar circunspecto.
— Estou muito grato por sua hospitalidade. Logo depois, Loretta dirigiu-se para seu quarto, demonstrando satisfação por poder oferecer hospitalidade a serviço do Senhor.
Buck, Chloe e Tsion caminharam mancando até a sala de estar, seguidos por Amanda que mal podia conter o riso.
— Eu gostaria que Rayford estivesse aqui — ela disse.— Pareço a única abstêmia dentro de um carro cheio de bêbados. Todas as tarefas que exijam dois pés vão recair sobre mim.
Chloe, em seu modo direto de ser, inclinou-se para a frente e segurou a mão de Tsion entre as suas.
— Dr. Ben-Judá, temos ouvido falar muito sobre o senhor. Sentimo-nos abençoados por Deus por tê-lo aqui conosco. Não podemos sequer imaginar seu sofrimento.
O rabino inspirou profundamente e soltou o ar devagar, com os lábios trémulos.
— Não tenho palavras para dizer o quanto sou grato a Deus por ter-me conduzido até aqui, e a vocês por me receberem. Confesso que meu coração está despedaçado. O Senhor tem colocado a mão sobre mim de maneira tão clara desde a morte de minha família que não posso negar sua presença. Mesmo assim, há momentos em que me pergunto se serei capaz de prosseguir. Não quero me deter nos pormenores de como meus queridos perderam a vida. Não devo querer saber quem fez isso e como foi feito. Sei que agora minha esposa e meus filhos estão felizes, mas para mim é muito difícil imaginar o horror e o sofrimento que eles sentiram antes de Deus os receber. Devo orar para me libertar de sentimentos de amargura e ódio. Acima de tudo,sinto-me terrivelmente culpado pelo que lhes aconteceu. Não sei o que e.u poderia ter feito, a não ser tentar proporcionar-lhes mais segurança. Eu não podia esquivar-me de servir a Deus, tendo em vista a maneira como fui chamado.
Amanda e Buck aproximaram-se de Tsion e colocaram a mão em seus ombros. Com os três formando um círculo ao redor de Tsion, todos oraram juntos enquanto ele chorava.
A conversa avançou noite a dentro. Buck explicou que Tsion passaria a ser objeto de perseguição internacional, muito provavelmente com a aprovação de Carpathia.

— Quantas pessoas sabem do abrigo'subterrâneo na igreja? — perguntou Buck.
— Quer você acredite ou não — respondeu Chloe — até Loretta acha que se trata de uma despensa ou coisa parecida, a não ser que ela tenha lido o material impresso extraído do computador de Bruce.
— Como ele conseguiu esconder isso dela? Loretta esteve presente ali o tempo todo que durou a escavação.
— Você precisa ler os escritos de Bruce, Buck. Da mesma forma que todos os membros da igreja, era sua impressão que a obra tinha a ver com o novo tanque de água e com a melhoria do terreno do estacionamento.
Duas horas mais tarde, já deitados na cama, Buck e Chloe não conseguiam dormir.
— Eu sabia que ia ser difícil — ela disse. — Só que eu não sabia o quanto.
— Você preferiria não estar envolvida com um sujeito como eu?
— Digamos que nossa vida não tem sido maçante. — Chloe contou-lhe sobre Vema Zee. — Ela pensa que somos malucos.
— E não somos? A questão agora é o quanto ela pode me prejudicar. Ela já conhece minha posição e, se isso chegar aos ouvidos do pessoal do Semanário, Carpathia tomará conhecimento num piscar de olhos. E então?
Chloe contou que ela, Amanda e Loretta haviam persuadido Verna a manter o segredo de Buck, pelo menos por enquanto.
— Mas por que ela faria isso? — perguntou Buck. — Nunca nos demos bem. Cada um cuida de sua vida. Só houve uma trégua entre nós porque nossas desavenças pareciam ser insignificantes diante da Terceira Guerra Mundial.
— As desavenças entre vocês eram insignificantes — disse Chloe. — Ela admitiu que se sentia intimidada na sua presença e o invejava. Você sempre foi aquilo que ela gostaria de ser. Verna chegou a confessar que, diante de você, ela não era nenhuma jornalista.
— Isso não significa que ela vai guardar meu segredo.
— Você deveria estar orgulhoso de nós, Buck. Loretta contou a história inteira dela para Verna. Contou por que todas as pessoas de sua numerosa família foram arrebatadas, menos ela. Então, entrei no assunto e contei-lhe como você e eu nos conhecemos, onde você estava no momento do Arrebatamento, e como você, eu e papai nos tornamos crentes.
— Verna deve ter pensado que viemos de um outro planeta — disse Buck. — Foi por isso que ela se mudou daqui?
— Não. Ela deve ter achado que estava atrapalhando.
— Ela foi compreensiva?
— Foi. Certa vez, chamei-a de lado e contei-lhe que a coisa mais importante era ela tomar uma decisão quanto a aceitar ou não a Cristo. Mas eu também lhe disse que nossas vidas dependiam do segredo que ela teria de guardar a respeito de você em relação a seus colegas e superiores. Ela disse: "Superiores? O único superior a Cameron é Carpathia." Mas ela também me contou algo muito interessante, Buck. Disse que apesar de admirar Carpathia e tudo o que esse homem tem feito pelos Estados Unidos e pelo mundo — que piada! — ela detesta o modo como ele controla e manipula as notícias.
— A questão, Chloe, é saber se você conseguiu dela alguma promessa de que vai me proteger.
— Ela queria uma troca de favores. Provavelmente, uma espécie de promoção ou aumento de salário. Eu lhe disse que você nunca agiu dessa maneira. Ela já imaginava isso.
Pedi que ela me prometesse não dizer nada a ninguém, pelo menos antes de conversar com você. E então, você está preparado para isso? Eu a fiz prometer que compareceria ao culto em memória de Bruce no domingo.
— E ela vai comparecer?
— Disse que sim. Pedi a ela que chegasse bem cedo. A igreja vai lotar.
— Com certeza. Tudo isso vai ser muito estranho para ela, não?
— Ela diz que entrou na igreja apenas uma dúzia de vezes na vida, para assistir a casamentos e funerais. O pai dela era ateu. A mãe aparentemente foi criada dentro de uma espécie de denominação muito severa e a abandonou depois de adulta. Verna diz que a ideia de frequentar igreja nunca foi discutida em sua casa.
— E ela nunca sentiu curiosidade? Nunca procurou um significado mais profundo para sua vida?
— Não. Na verdade, ela admitiu que tem sido uma pessoa descrente e infeliz há anos. Achava que isso a tornaria a jornalista perfeita.
— Ela sempre me deu essa impressão — disse Buck. — Eu também era descrente e negativo, mas felizmente havia um equilíbrio entre meu humor e minha personalidade.
— Ah, sim, nisso você tem razão — disse Chloe, em tom de galhofa. — É por isso que ainda estou com vontade de ter um filho com você, mesmo nos tempos atuais.
Buck não sabia o que pensar e o que dizer. Eles já haviam discutido esse assunto antes. A ideia de pôr um filho no mundo no período da Tribulação era, em princípio, inconcebível, e eles tinham concordado que pensariam no assunto, orariam e veriam o que a Bíblia dizia sobre isso.
— Você quer falar sobre esse assunto agora? Ela meneou negativamente a cabeça.
— Não. Estou cansada. Mas não vamos esquecê-lo.
— Eu não vou esquecer, Chio'.— ele disse. — Mas você precisa saber que estou em um fuso horário diferente. Dormi durante todo o percurso de volta.
— Oh, Buck! Senti muito a sua falta. Será que você não pode pelo menos ficar a meu lado até eu pegar no sono?
— Claro. Em seguida, irei sorrateiramente até a igreja para ver como está o abrigo de Bruce.
— O que você deveria fazer — disse Chloe — é terminar de ler os escritos de Bruce. Marcamos as passagens que gostaríamos que você e papai lessem no culto de domingo. Não sei como ele vai conseguir ler tudo se não tiver um dia inteiro para fazer isso, mas trata-se de um material extraordinário. Espere para ver.
— Mal posso esperar.

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Rayford Steele estava tendo uma crise de consciência. De malas prontas para partir e, enquanto aguardava a chegada do motorista de Hattie Durham para buscá-lo, ele lia o Global Community International Daily .
Rayford sentia falta de Amanda. Ainda pareciam dois estranhos, e ele sabia que o período de pouco mais de cinco anos que teriam pela frente até o Glorioso Aparecimento seria insuficiente para que ambos se conhecessem melhor e estabelecessem o mesmo vínculo que ele tivera com Irene. Nesse aspecto, Irene ainda lhe fazia falta. Por outro lado, Rayford sentia-se culpado por estar muito mais apegado a Amanda do que a Irene durante todos aqueles anos de convivência. O erro havia sido dele. Rayford só compreendeu e aceitou a fé de Irene quando já era tarde demais. Ela era uma pessoa muito doce, muito prestativa. Apesar de saber da existência de vários casamentos piores que o seu e de homens mais infiéis que ele, Rayford culpava-se por não ter sido o marido ideal para Irene. Ela merecia coisa melhor.
Para Rayford, Amanda foi uma dádiva de Deus. Ele se lembrava de que, no início, não gostara dela. Amanda, uma mulher bonita, saudável e um pouco mais velha que ele, demonstrou tanto nervosismo no dia em que ambos se conheceram que Rayford a considerou uma tagarela. Ela não permitiu que ele ou Chloe abrissem a boca. Passou o tempo todo apontando seus próprios erros, respondendo a suas próprias perguntas, falando sem parar.
Rayford e Chloe acharam-na divertida, mas a ideia de um futuro relacionamento amoroso nunca passara pela cabeça dele. Amanda os deixou impressionados ao falar de seu breve encontro com Irene. Ela parecia ter compreendido a essência do coração e da alma de Irene. Pela maneira com que a descreveu, Rayford e Chloe poderiam ter pensado que ela conhecia Irene havia anos.
Logo no início, Chloe desconfiou que Amanda estava de olho em Rayford. Por ter perdido sua família no Arrebatamento, ela passou a sentir-se solitária e carente. Rayford não havia percebido nada. Só estava interessado em saber o que sua ex-esposa representara na vida de Amanda. Porém a suspeita de Chloe deixou-o alerta. Ele não tentou cortejá-la, mas passou a observar se havia algum indício da parte dela. Não havia.
Esse fato despertou a curiosidade de Rayford. Ele percebeu que Amanda se entrosou rapidamente na Igreja Nova Esperança. Ela foi cordial com ele, mas nunca se comportou de maneira inconveniente e nunca — na mente dele — ousou alguma coisa. Até mesmo Chloe teve de admitir que Amanda não estava interessada em coisas desse tipo. Em pouco tempo, ela passou a ser conhecida na Igreja Nova Esperança como uma serva do Senhor. Esse era o seu dom espiritual. Ela ocupava-se com os trabalhos da igreja. Cozinhava, limpava, transportava pessoas em seu carro, ensinava, dava as boas-vindas aos visitantes e colaborava em tudo o que fosse necessário. Apesar de trabalhar fora o tempo todo, ela passava os momentos de folga cuidando das tarefas da igreja. "Comigo é tudo ou nada", ela dizia. "Depois que me converti, minha vida passou a pertencer à igreja."
À distância e apesar das poucas vezes que conversou com Amanda após seu primeiro encontro quando ela simplesmente queria falar sobre Irene, Rayford passou a admirá-la. Ela era uma mulher tranquila, meiga e muito atraente. Quando ele desejou passar alguns momentos ao lado de Amanda, não estava pensando em romance. Simplesmente gostava dela. Gostava de seu sorriso. Gostava de sua aparência. Gostava de seu modo de ser. Assistiu a uma aula de Escola Dominical na qual ela lecionava. Ela era uma professora comprometida com seu trabalho. Na semana seguinte, ela assistiu a uma aula dele e o elogiou como professor. Ambos disseram em tom de brincadeira que algum dia formariam uma equipe de professores. Mas nada aconteceu até o dia em que eles saíram para jantar com Buck e Chloe. Logo em seguida, ele se apaixonou perdidamente por Amanda. A cerimónia do casamento de Rayford e Amanda e de Buck e Chloe foi realizada em conjunto, pouco tempo depois. Agora, durante o pior período da história da humanidade, Buck e Chloe representavam uma ilha de felicidade na vida de Rayford.
Rayford estava ansioso por voltar aos Estados Unidos para ver Amanda. Também aguardava com satisfação o momento de passar algumas horas ao lado de Hattie no avião. Rayford sabia que a obra de atraí-la para Cristo pertencia ao Espírito Santo e não a ele, mas, mesmo assim, achava que deveria aproveitar qualquer oportunidade legítima para persuadi-la. O problema de Rayford naquela manhã de sábado era que cada célula de seu corpo lutava contra o fato de ele trabalhar como piloto de Carpathia. Tudo o que ele lera, estudara e aprendera nas aulas de Bruce o haviam convencido — e convencido também todos os integrantes do Comando Tribulação e a congregação da Igreja Nova Esperança — de que Carpathia era o anticristo. Os crentes beneficiavam-se do fato de Rayford ocupar essa função, e Carpathia conhecia muito bem a posição de seu piloto. Evidentemente, Carpathia só não sabia que um de seus empregados, Cameron Williams, em quem ele mais confiava, era agora genro de Rayford e se convertera na mesma época em que seu sogro.
Quanto tempo isso duraria? perguntou Rayford a si mesmo. Estaria ele colocando em risco a vida de Buck e Chloe? De Amanda? A sua própria? Rayford aprendera que chegaria o dia em que os "santos da tribulação", conforme Bruce se referia a eles, passariam a ser inimigos mortais do anticristo. Rayford teria de administrar seu tempo com muito cuidado.
De acordo com os ensinamentos de Bruce, chegaria o dia em que para ter o simples direito de comprar ou vender, os cidadãos da Comunidade Global precisariam ter a "marca da besta". Até agora ninguém sabia ao certo de que forma isso sucederia, mas a Bíblia indicava que a marca seria na testa ou na mão. Não haveria truques. De alguma maneira, a marca seria especificamente detectável. Aqueles que estampassem a marca jamais poderiam arrepender-se e voltar atrás. Estariam perdidos para sempre. Aqueles que não estampassem a marca teriam de viver escondidos, e suas vidas não teriam nenhum valor para a Comunidade Global.
Por ora, Carpathia parecia estar meramente se divertindo e impressionado com Rayford. Talvez Carpathia imaginasse que, se mantivesse Rayford por perto, poderia encontrar
alguma coisa que o fizesse mudar de ideia. Mas o que aconteceria quando Carpathia descobrisse que Buck não lhe era leal e que Rayford sempre soube disso? E, pior ainda, por quanto tempo Rayford conseguiria justificar sua própria consciência, imaginando que as vantagens de ouvir às escondidas e espionar Carpathia sobrepujariam seu sentimento de culpa por estar colaborando com o trabalho daquele ser maligno?
Rayford consultou seu relógio e acelerou a leitura do jornal. Hattie e seu motorista chegariam a qualquer momento. Rayford sentia-se como se estivesse suportando uma carga pesada demais. Qualquer um dos sofrimentos que ele testemunhara desde o dia em que a guerra irrompera teria causado um efeito devastador em um homem normal, durante uma época normal. Agora, Rayford sentia-se na obrigação de enfrentar tudo com naturalidade. As atrocidades mais infames e mais horripilantes passaram a fazer parte da vida diária. A Terceira Guerra Mundial eclodira. Rayford perdera um de seus amigos mais queridos e ouvira Nicolae Carpathia dar ordens para destruir as principais cidades e, em seguida, falar de sua dor e desapontamento em uma transmissão internacional, via TV.
Rayford meneou a cabeça. Tinha feito seu trabalho. Pilotou o novo avião, aterrissou três vezes com Carpathia a bordo, jantou com uma velha amiga, foi dormir, conversou com várias pessoas por telefone, acordou, leu o jornal e agora estava pronto para voar feliz para casa e reencontrar sua família. Em que tipo de maluquice o mundo se transformara? Como seria possível haver vestígios de normalidade em um mundo que se precipitava para o inferno?
O jornal estampava notícias de Israel, explicando que o rabino que chocara seu próprio país, sua religião e seu povo e para não dizer o restante do mundo — com sua afirmação de que Jesus era o Messias, enlouquecera repentinamente. Rayford conhecia a verdade e aguardava com satisfação o momento de conhecer aquele corajoso homem de Deus.
Rayford sabia que Buck conseguira tirá-lo do país, mas não sabia como. Estava ansioso para conhecer os detalhes. Será que todos eles teriam de enfrentar o mesmo sofrimento do rabino? O martírio de suas famílias? A morte? Rayford sabia que sim. Tentou afastar esses pensamentos. A justaposição entre a rotina fácil e cómoda de ser o piloto de um jumbo — o Rayford limitado que ele havia sido dois anos atrás — e a sensação atual de sentir-se como um joguete político internacional era algo que sua mente não conseguia assimilar.
O telefone tocou. Hattie e o motorista haviam chegado.

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Buck espantou-se com o que viu na igreja. Bruce fizera um trabalho tão perfeito para camuflar o abrigo que Buck quase não conseguiu encontrá-lo.
Sozinho ali naquele lugar isolado, Buck caminhou em direção ao pavimento inferior. Atravessou o salão de confraternização e desceu a escada que dava para um corredor estreito. Passou pelos banheiros e pela sala de calefação. Estava agora no fim de um corredor sem nenhuma iluminação — um local que deveria ser escuro até mesmo em plena luz do dia. Onde seria a entrada do abrigo? Buck apalpou a parede. Nada. Voltou a entrar na sala de calefação e apertou a tomada de luz. Em cima do aquecedor havia uma lanterna, que ele utilizou para encontrar uma reentrância, em um dos blocos de concreto da parede. Aprumando o corpo e sentindo uma fisgada no calcanhar direito por causa do ferimento recente, ele empurrou a reentrância com
toda a força. Uma parte do bloco abriu-se ligeiramente. Ele entrou e fechou-a atrás de si. A lanterna iluminou um aviso diante dele e de uma escada de seis degraus: "Perigo! Alta voltagem! Entrada permitida somente a pessoas autorizadas."
Buck sorriu. O aviso o teria assustado se ele não o conhecesse de antemão. Desceu a escada e virou para a esquerda. Depois de descer mais quatro degraus, ele deparou com uma enorme porta de aço, onde havia o mesmo aviso que estava no início da escada, desta vez em tamanho duplicado. Bruce havia-lhe mostrado, no dia da cerimónia dos dois casamentos, como abrir aquela porta.
Buck segurou a maçaneta e virou-a para a direita e depois para a esquerda. Empurrou-a, afundando-a pouco mais de meio centímetro e puxou-a de volta cerca de um centímetro. Ela pareceu mover-se um pouco, mas ainda não girava nem para a direita nem para a esquerda. Seguindo uma sequência secreta de movimentos engendrada por Bruce, ele empurrou a maçaneta e, ao mesmo tempo, girou-a levemente para a direita e depois para a esquerda. A porta abriu-se e Buck deparou com uma caixa de disjuntores do tamanho de um homem. Nem mesmo uma igreja do tamanho da Nova Esperança teria necessidade de tantos disjuntores. Mas todos aqueles botões expostos não estavam ligados a nenhum disjuntor. A armação daquela caixa não passava de uma outra porta, que se abriu facilmente, deixando à mostra o abrigo oculto. Bruce havia feito um trabalho grandioso desde a última vez que Buck esteve ali, poucos meses antes.
Buck não entendia como Bruce tinha encontrado tempo para fazer todo aquele trabalho após o expediente. Ninguém mais tinha conhecimento do esconderijo, nem mesmo Loretta, portanto a habilidade de Bruce havia sido muito útil. O local era ventilado e bem iluminado, possuía
ar-condicionado, painéis de revestimento, forro, piso e continha todos os materiais de primeira necessidade. Bruce dividira a área de 24 metros quadrados em três cómodos: um banheiro completo com chuveiro, um quarto com quatro beliches e um cómodo maior com uma pequena cozinha de um lado e uma sala de estar/estúdio conjugados do outro lado. Buck surpreendeu-se por não sentir claustrofobia, porém, se mais de duas pessoas passassem a morar ali — tendo consciência de que estavam bem abaixo do nível do solo — o local ficaria muito apertado.
Bruce não poupara dinheiro na construção do abrigo. Tudo era novo. Havia um freezer, uma geladeira, um microondas e um fogão convencional com forno. Parecia que cada centímetro havia sido transformado em espaço útil. Mas, perguntou Buck a si mesmo, onde Bruce teria instalado a fiação?
Buck arrastou-se pelo carpete e olhou por baixo de um sofá-cama. Lá estava uma fileira de tomadas de telefones. Acompanhando com a mão o caminho percorrido pelos fios embutidos em direção ao teto, ele tentou localizar em que lugar eles sairiam no corredor acima. Apagou as luzes, fechou a porta da caixa de disjuntores, fechou a porta de metal, subiu a escada correndo e fechou a passagem no bloco de concreto. Ao iluminar um canto escuro do corredor com a lanterna, ele avistou um conduíte que vinha do chão e subia até o teto. Voltou ao salão de confraternização e olhou pela janela. Pelas luzes do estacionamento, ele pôde concluir que o conduíte passava por fora na altura do teto e subia, embutido, na direção da torre da igreja.
Bruce contara a Buck que a torre restaurada tinha sido a única coisa que sobrara do antigo templo. O edifício original havia sido derrubado trinta anos antes. Nos velhos tempos, a torre tinha sinos que tocavam chamando o povo para
comparecer à igreja. Os sinos ainda estavam lá, mas as cordas, que se estendiam desde um alçapão até o vestíbulo da igreja, de onde um diácono podia manipulá-las, tinham sido cortadas. A torre agora não passava de um elemento decorativo. Será?
Buck pegou uma escada dobrável que estava no quarto de despejo da igreja, levou-a até o vestíbulo, abriu o alçapão e passou por ele. Em cima do forro da igreja, ele avistou uma escada de ferro que terminava no campanário. Subiu por ela até avistar os sinos, que estavam cobertos de teias de aranha, poeira e fuligem. Quando ele chegou perto da abertura da torre onde estavam os sinos, sua cabeça esbarrou em uma teia, e ele sentiu uma aranha prendendo-se em seus cabelos. Buck quase perdeu o equilíbrio ao tentar tirá-la dali, tendo ao mesmo tempo de segurar a lanterna com uma das mãos e firmar-se na escada com a outra. No dia anterior, ele tinha sido perseguido no deserto, batido com o ônibus na viatura, recebido um tiro no pé e fugido no meio das chamas para a liberdade. Depois de um longo suspiro, ele imaginou que preferia passar por tudo aquilo novamente a ter uma aranha presa nos seus cabelos.
Buck olhou pela abertura e avistou o conduíte, que subia até a parte cónica da torre. Foi até o último degrau da escada e debruçou-se na abertura. Agora, ele estava do lado da torre que não recebia iluminação do solo. A madeira antiga parecia frágil. Seu pé machucado começou a dar agulhadas. Que coisa fantástica! ele pensou. Despencar da torre de sua própria igreja e morrer no meio da noite.
Examinando cuidadosamente a área para ver se não havia nenhum carro por perto, Buck iluminou o topo da torre com a lanterna para ver o trajeto do conduíte. Lá estava uma espécie de antena parabólica em miniatura, com pouco mais de seis centímetros de diâmetro. Buck não conseguiu ler o
que estava escrito na minúscula etiqueta colada na frente da antena. Ficou na ponta dos pés, descolou-a e guardou-a no bolso. Só a leu depois de percorrer todo o caminho de volta até o vestíbulo da igreja. Dizia o seguinte: "Tecnologia Donny Moore: Doutor em Computadores."
Buck levou a escada ao seu lugar e começou a apagar as luzes. Pegou uma Concordância Bíblica da estante do escritório de Bruce e procurou a palavra eirado. Aquela mini-antena parabólica instalada por Bruce fê-lo lembrar-se de um trecho de Mateus 10.27-28, que um dia ele ouviu ou leu e que falava de proclamar as boas-novas do eirado: "O que vos digo às escuras, dizei-o a plena luz; e o que se vos diz ao ouvido, proclamai-o dos eirados. Não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma; temei, antes, aquele que pode fazer perecer no inferno tanto a alma como o corpo."
Será que Bruce havia levado a Bíblia ao pé da letra?
Buck retornou para a casa de Loretta, onde leria até às seis horas da manhã o material escrito por Bruce. Depois, dormiria até o meio-dia e estaria em pé quando Amanda voltasse de Mitchell Field, em Milwaukee, trazendo Rayford.
Será que ele nunca pararia de espantar-se com o que estava acontecendo? Depois de percorrer de carro alguns quarteirões, espantou-se com a diferença entre os dois veículos que dirigira nas últimas 24 horas: este Range-Rover, que custara uma quantia de seis dígitos, equipado com tudo o que se podia imaginar, e aquele ônibus em chamas "comprado" de um homem que, em breve, talvez se tornaria um mártir.
No entanto, o mais espantoso de tudo era aquilo que Bruce planejara e preparara tão bem antes de sua partida. Com um pouco de tecnologia, o Comando Tribulação e seu mais recente integrante, Tsion Ben-Judá, brevemente estariam proclamando o evangelho a partir de um local oculto e propagando-o via satélite e Internet para qualquer pessoa no mundo que desejasse ouvir, e para muitas outras que não desejassem.
O relógio marcava 2h30 da manhã, horário de Chicago, quando Buck retornou da igreja e sentou-se diante dos papéis de Bruce depositados sobre a mesa de jantar da casa de Loretta. Pareciam ter sido redigidos em formato de romance. Buck leu com atenção os estudos e comentários bíblicos de Bruce, e encontrou o esboço de sermão que ele preparara para aquele domingo. Buck não podia falar em público naquela igreja. Já se havia exposto o suficiente, mas poderia ajudar Rayford a organizar algumas anotações.

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Apesar de trabalhar anos como piloto, Rayford sempre se ressentia da diferença de fusos horários, principalmente quando voava do leste para o oeste. Seu organismo dizia que ele estava no meio da noite e, após um dia de viagem, já se sentia pronto para dormir. Porém, enquanto o DC-10 taxiava em direção ao portão, em Milwaukee, o relógio marcava meio-dia, horário da região central dos Estados Unidos. Do outro lado do corredor, a bela e elegante Hattie Durham dormia. Seus longos cabelos loiros estavam presos, formando um coque, e seu rímel estava manchado por ela ter limpado as lágrimas com as mãos.
Hattie chorou quase durante o vôo inteiro. Em meio a duas refeições, um filme e um lanche, ela desabafara com Rayford. Queria desvencilhar-se de Nicolae Carpathia. Não o compreendia. Não o amava mais. Apesar de não afirmar que Carpathia era o anticristo, os momentos que passaram a sós contribuíram para que ela não mais se impressionasse com ele como fazia a maior parte das pessoas.
Rayford evitara manifestar suas opiniões sobre Carpathia. Deixou claro que não era seu admirador nem rigorosamente leal a ele, mas achou prudente não declarar com todas as letras que concordava com a maioria dos cristãos que Carpathia possuía todas as características do anticristo. Evidentemente, Rayford não tinha nenhuma dúvida quanto a isso. Mas como já vira muitos romances desfeitos serem reatados, a última coisa que ele desejava era dar a Hattie uma munição que pudesse vir a ser usada contra ele por Carpathia. Em breve, ele não mais se importaria em saber quem o delataria a Nicolae. De uma forma ou outra, eles seriam inimigos mortais.
O que causava mais preocupação a Rayford era a confusão em que Hattie se encontrava a respeito de sua gravidez. Ele gostaria que ela se referisse à criatura que carregava em seu ventre como uma criança. Mas era uma gravidez indesejada. Talvez não tivesse sido no início, mas agora, em razão de sua confusão mental, ela não queria dar à luz um filho de Nicolae Carpathia. Não queria chamá-lo de filho nem mesmo de bebé.
Rayford teve uma missão difícil ao tentar argumentar sem ser óbvio demais.
— Hattie, quais as alternativas que você tem? — ele lhe perguntara.
— Só conheço três, Rayford. Toda mulher deve pensar nessas três alternativas quando engravida.
Nem todas as mulheres, pensou Rayford. Hattie prosseguira:
— Posso levar a gravidez até o fim, o que eu não quero fazer. Posso entregar esta criatura para adoção, mas não sei se suportarei atravessar a gravidez inteira e o parto. E, evidentemente, posso interromper a gravidez.
— O que isso significa exatamente?
— O que isso significa? — dissera Hattie. — Interromper a gravidez significa interromper a gravidez.
— Você está se referindo a um aborto?
Hattie lançara-lhe um olhar como se ele fosse um idiota.
— Sim! Do que você acha que estou falando?
— Bem, pelo que estou entendendo, parece que esta é a alternativa mais fácil.
— É a alternativa mais fácil, Rayford. Pense um pouco. A pior situação seria levar a gravidez até o fim, passar por todo aquele desconforto e depois sofrer as dores do parto. E se eu for acometida daquele instinto maternal que todo mundo fala? Além de padecer durante nove meses, eu teria de dar à luz um filho de alguém. Depois, o entregaria para adoção, o que só pioraria as coisas.
— Você acabou de dizer a palavra filho — dissera Rayford.
— O quê?
— Você está se referindo a isto como sua gravidez. Mas depois de nascer, não será uma criança?
— Será o filho de alguém. Não meu, espero. Rayford preferira deixar o assunto de lado enquanto a refeição estava sendo servida. Orou silenciosamente para que pudesse falar a ela a respeito da verdade. A sutileza não era seu forte. Ela não era uma mulher ignorante. Talvez fosse melhor ir direto ao assunto. Mais tarde durante o vôo, Hattie voltara a falar do assunto.
— Por que você quer me fazer sentir culpada por pensarem aborto?
— Hattie — ele lhe dissera, — não quero fazê-la sentir-se culpada. A decisão é sua. O que eu penso sobre isso significa muito pouco, não é verdade?
— Bem, eu levo em conta o que você pensa. Respeito você como alguém que tem estado a meu lado. Só não quero que você pense que eu considero o aborto uma decisão fácil de ser tomada, apesar de ser a melhor solução e a mais simples.
— Melhor e mais simples para quem?
— Para mim, eu sei. Às vezes, as pessoas precisam pensar em si mesmas. Quando deixei meu emprego e parti para Nova York a fim de ficar com Nicolae, pensei que finalmente estava fazendo alguma coisa por Hattie. Agora, não gosto do que fiz por Hattie, portanto preciso fazer alguma coisa mais por Hattie. Entendeu?
Rayford assentira. Tinha entendido tudo muito bem. Lembrou-se de que Hattie não era crente. Ela não estava pensando no bem de qualquer outra pessoa, a não ser de si mesma. E por que deveria?
— Hattie — ele dissera — faça a minha vontade por alguns instantes e suponha que essa gravidez, que essa "coisa" que você está carregando, já seja uma criança. É seu filho. Talvez você não goste do pai dele. Talvez você deteste saber que tipo de gente o pai dessa criança poderia gerar. Mas o bebé também tem o seu sangue. Você já nutre sentimentos maternais ou então não estaria tão confusa assim. Minha pergunta é: quem está cuidando dos interesses dessa criança? Digamos que foi cometido um erro. Digamos que foi imoral você passar a viver com Carpathia sem casar-se com ele. Digamos que esta gravidez, esta criança, foi gerada por uma união imoral. Vamos mais além. Digamos que as pessoas que consideram Nicolae Carpathia o anticristo estejam certas. Sou até capaz de entender que talvez você se arrependa da ideia de ter um filho e não se considere a melhor mãe para ele.Não creio que você possa esquivar-se da responsabilidade como faria uma vítima de estupro ou incesto. Mas mesmo nestes casos, a solução não é matar um inocente, você concorda comigo? Alguma coisa está errada, realmente errada. Há os que defendem o direito de escolha. O que eles escolhem não é apenas a interrupção da gravidez, nem apenas um aborto, porém a morte de alguém. Mas a morte de quem? De quem cometeu um erro? De quem cometeu um estupro ou incesto? Ou de quem engravidou fora do casamento? Não, a solução é sempre matar a parte mais inocente de todas.
Rayford tinha ido longe demais e sabia disso. Olhara de relance para Hattie que tampava os ouvidos com as mãos enquanto lágrimas escorriam por seu rosto. Ele tocara o braço dela, mas foi repelido. Aproximando-se mais, ele tocara seu cotovelo.
— Hattie, por favor não se afaste de mim. Não pense que tive a intenção de magoá-la. Apenas dê um pouco de crédito a uma pessoa que está defendendo os direitos de alguém que não tem condições de defender-se. Se você não quiser defender seu filho, alguém vai ter de defendê-lo.
Depois disso, ela lhe virou as costas, cobriu o rosto com as mãos e chorou. Rayford irritou-se consigo mesmo. Por que não tinha aprendido a lição? Por que falara tudo aquilo? Acreditava no que havia dito e estava convencido de que expressara a opinião de Deus. Fazia sentido. Mas Rayford também sabia que ela poderia rejeitá-lo simplesmente por ele ser um homem. Como ele podia entender? Ninguém estava sugerindo o que ele podia ou não podia fazer com seu corpo. Ele queria dizer a Hattie que compreendia tudo isso, mas, e se aquele ser em gestação fosse uma mulher? Quem defenderia os direitos do corpo daquela mulher?
Hattie não lhe dirigira a palavra durante horas. Ele sabia que merecia. Mas, pensou, quanto tempo ainda me resta para ser diplomático? Não tinha ideia quanto aos planos de Hattie. Mas deveria conversar com ela enquanto tivesse oportunidade.
— Hattie — ele dissera. Ela não olhara para ele. — Hattie, por favor, deixe-me explicar mais uma coisa para você.
Ela virara-se ligeiramente, sem olhar para ele, mas dando a entender que pelo menos ouviria.
— Quero que me perdoe se você se sentiu magoada ou ofendida pelo que eu disse. Espero que você me conheça o suficiente para saber que não tive essa intenção. E mais importante ainda, quero que você saiba que sou um de seus poucos amigos da região de Chicago que a ama e quer o melhor para você. Eu gostaria que, na volta, você descesse em Monte Prospect para nos visitar. Mesmo que eu não esteja lá, mesmo que eu tenha partido para a Nova Babilónia antes de você, pare em Monte Prospect para visitar Chloe e Buck. Converse com Amanda. Você faria isso?
Hattie voltara a olhar para ele. Com os lábios cerrados e meneando negativamente a cabeça, ela respondera:
— Provavelmente não. Agradeço seus sentimentos e aceito suas desculpas. Mas não, provavelmente não.
E foi assim que a conversa encerrara. Rayford estava irritado consigo mesmo. Seus motivos eram puros, e ele acreditava que sua lógica estava certa. Mas talvez tivesse confiado muito em sua personalidade e estilo e não em Deus para que ele tocasse o coração de Hattie. Agora, só podia orar por ela.
Quando finalmente o avião parou perto do portão, Rayford ajudou Hattie a pegar sua sacola do bagageiro. Ela agradeceu-lhe. Ele não se sentiu confiante para dizer mais nada. Já se desculpara. Hattie limpou as lágrimas mais uma vez e disse:
— Rayford, sei que você quer o meu bem. Mas, às vezes, você me deixa totalmente confusa. Eu deveria estar feliz por nunca termos tido um caso amoroso.
— Muito obrigado — disse Rayford, fingindo-se ofendido.
— Estou falando sério — ela disse. — Você sabe do que estou falando. Somos muito diferentes na questão de idade ou de outra coisa, acho.
— Também acho — disse Rayford. Então era assim que ela resumia tudo? Ótimo. A questão não era essa, é claro. Talvez ele pudesse ter conduzido a conversa de maneira melhor, mas uma explicação neste momento não levaria a nada.
Quando eles passaram pelo portão, Rayford avistou Amanda, com um sorriso de boas-vindas. Correu em sua direção e ela o abraçou. Depois de um beijo apaixonado, ela afastou-se um pouco.
— Não tive a intenção de ignorar sua presença, Hattie, mas francamente estava mais ansiosa por ver Rayford.
— Eu compreendo — disse Hattie secamente, cumprimentando-a e desviando o olhar.
— Podemos deixá-la em algum lugar? — perguntou Amanda.
Hattie riu.
— Minha bagagem vai ser examinada em Denver. Vocês podem me levar até lá?
— Oh, eu sabia disto! — exclamou Amanda. — Podemos acompanhá-la até o portão?
— Não, está tudo bem. Conheço este aeroporto. A decolagem ainda vai demorar. Vou tentar relaxar um pouco.
Rayford e Amanda despediram-se de Hattie, que foi cordial. Mas enquanto eles se afastavam, ela cruzou o olhar com Rayford, apertou os lábios e meneou a cabeça. Ele sentiu-se arrasado.
Rayford e Amanda caminharam de mãos dadas, depois de braços dados, e depois com os braços na cintura um do outro, até as escadas rolantes que levavam à alfândega. De repente, Amanda parou e puxou Rayford antes que ele colocasse o pé no degrau da escada. Algo na TV chamara-lhe a atenção.
— Ray — ela disse — veja isto. Eles passaram a assistir a um noticiário da CNN/GNN que relatava a extensão dos prejuízos causados pela guerra no mundo inteiro. O jornalista dizia: "Os especialistas do setor de saúde do mundo inteiro predizem que o índice de mortalidade aumentará em mais de 20% em âmbito internacional. O Potentado da Comunidade Global Nicolae Carpathia anunciou a formação de uma organização mundial de saúde que terá prioridade sobre todas as organizações locais e regionais já existentes. Ele e seus dez embaixadores globais tornaram pública uma decisão tomada durante suas reuniões particulares e de alto nível realizadas na Nova Babilónia, que apresenta em linhas gerais uma proposta para a rigorosa regulamentação da saúde e do bem-estar de toda a comunidade global. Agora ouviremos comentários a esse respeito de um famoso cirurgião cardiovascular, o Dr. Samuel Kline, da Noruega." Rayford sussurrou:
— Esse sujeito está nas mãos de Carpathia. Eu o vi por lá. Ele diz tudo o que o Santo Nick quer que ele diga.
O médico estava dizendo: "A Cruz Vermelha Internacional e a Organização Mundial de Saúde, por mais notáveis e eficientes que tenham sido no passado, não estão equipadas para cuidar da devastação, doenças e mortes em tais proporções. O plano visionário do potentado Carpathia, além de ser a nossa única esperança de sobrevivência diante da fome e da praga que estão por vir, também me parece — à primeira vista — ser o maior e o mais agressivo projeto em relação à saúde internacional visto até hoje. Se o índice de mortalidade alcançar 25% em razão da contaminação da água e do ar, escassez de alimentos e outras coisas do gênero, conforme alguns têm vaticinado, as novas regras que governam a vida desde o útero até o túmulo poderão tirar este planeta das ruínas da morte para uma condição utópica em relação à saúde física." Rayford e Amanda voltaram-se para a escada rolante.
— Em outras palavras — disse Rayford, meneando a cabeça — Carpathia tira da frente os corpos que ele explodiu em pedacinhos, matou de fome ou permitiu que fossem contaminados pelas pragas causadas por esta guerra, e o restante de nós, os sortudos, seremos mais saudáveis e mais prósperos do que nunca.
Amanda olhou para ele.
— Palavras de um empregado sincero e leal — ela disse. Ele abraçou-a e beijou-a. Ambos tropeçaram e quase caíram quando chegaram ao fim da escada rolante.

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Buck abraçou seu novo sogro e velho amigo como um irmão. Considerou uma honra tremenda apresentar Tsion Ben-Judá a Rayford e vê-los tornarem-se amigos. O Comando Tribulação estava reunido uma vez mais, contando as novidades e traçando planos para um futuro que nunca parecera tão incerto.


OUINZE




Rayford esforçou-se para permanecer acordado no sábado até o horário normal de dormir. Ele, Buck e Tsion leram o material de Bruce horas a fio. Diversas vezes Rayford comoveu-se e seus olhos ficaram marejados de lágrimas.
— Não sei se estou à altura disto — ele disse.
— Você está — disse Tsion, em tom de voz suave.
— O que vocês fariam se eu não tivesse conseguido voltar?
— Não sei — disse Buck — mas não posso arriscar-me a falar em público. E muito menos Tsion.
Rayford perguntou qual era o plano em relação a Tsion.
— Ele não pode permanecer aqui por muito tempo, pode?
— Não — respondeu Buck. — Não vai demorar muito para que o pessoal da alta cúpula da Comunidade Global saiba que estive envolvido na fuga dele. Na verdade, acredito que Carpathia já saiba, o que não me causaria nenhuma surpresa.
Eles decidiram por unanimidade que Tsion poderia comparecer ao culto de domingo na Igreja Nova Esperança, possivelmente ao lado de Loretta, como um velho amigo convidado. Pela diferença de idade entre eles, e com exceção da aparência de origem judaica de Tsion, ele poderia passar por filho ou sobrinho dela.
— Mas eu não arriscaria uma outra aparição de Tsion em público — disse Rayford. — Já que o abrigo está pronto, precisamos dar um jeito de levá-lo escondido até lá amanhã,
antes do final do dia.
Ainda naquela mesma noite, Rayford, com os olhos ardendo de sono, convocou uma reunião do Comando Tribulação, pedindo a Tsion Ben-Judá que aguardasse em outro cómodo da casa. Rayford, Amanda, Buck e Chloe sentaram-se ao redor da mesa de jantar, sobre a qual havia uma pilha de páginas impressas do material de Bruce.
— Como integrante mais velho deste pequeno grupo de guerreiros da libertação — disse Rayford — suponho que seja minha a tarefa de convocar a primeira reunião após a morte de nosso líder.
Amanda levantou timidamente a mão.
— Com licença, mas creio que sou a integrante mais velha quanto à idade.
Rayford sorriu. Ainda havia momentos para um pouco de humor, e ele achou válida a modesta tentativa de Amanda.
— Sei que você é a mais velha do grupo, meu bem — ele disse — mas sou crente há mais tempo, no mínimo uma semana antes de você.
— Concordo — ela disse.
— Hoje, a única ordem do dia é votar a inclusão de um novo membro. Acho que está claro para todos nós que Deus nos enviou um novo líder e mentor na pessoa do Dr. Ben- Judá.
Chloe resolveu falar.
— Será que não estamos exigindo muito dele? Como sabemos se ele deseja morar neste país? Nesta cidade?
— E para onde mais ele iria? — perguntou Buck. — Talvez seja justo perguntar a ele antes de decidirmos alguma coisa, mas suas alternativas são limitadas.
Buck falou sobre os telefones, os computadores que chegariam em breve, como Bruce preparara o abrigo para transmissões por telefone e computador, e como Donny Moore estava elaborando um sistema à prova de interceptação e rastreamento.
Rayford achou que todos pareciam animados. Finalizou os preparativos para o culto em memória de Bruce na manhã seguinte e disse que planejava ser um evangelista destemido. Eles oraram agradecendo a confiança, a paz e as bênçãos de Deus na decisão que haviam tomado de incluir Tsion no Comando Tribulação. Em seguida, Rayford convidou-o para participar da reunião.
— Tsion, meu irmão, gostaríamos que você passasse a fazer parte de nosso pequeno grupo de crentes. Sabemos de seu profundo sofrimento que talvez ainda dure um longo tempo. Não estamos pedindo que você tome uma decisão imediata. Precisamos de você não apenas para ser mais um entre nós, mas também para ser nosso líder, nosso pastor. Sabemos que chegará o dia em que todos nós passaremos a morar com você no abrigo secreto. Nesse meio-tempo, procuraremos levar uma vida normal, a mais normal possível, tentando sobreviver e divulgar as boas-novas de Cristo a outras pessoas até o seu Glorioso Aparecimento.
Tsion levantou-se e colocou as mãos na cabeceira da mesa. Buck, que até pouco tempo antes achava que Tsion aparentava ter menos de 46 anos, via agora o sofrimento estampado em seu semblante abatido e desgastado. As palavras saíram-lhe lentamente da boca, cujos lábios tremiam.
— Meus queridos irmãos e irmãs em Cristo — ele disse com seu acentuado sotaque israelense — estou muito honrado e comovido. Sou grato a Deus por sua providência divina e por ter-me abençoado ao enviar o jovem Cameron para encontrar-me e salvar minha vida. Devemos orar por nossos irmãos, Michael e seus três amigos, que acredito façam parte das 144 mil testemunhas que Deus está levantando das tribos de Israel ao redor do mundo. Devemos também orar por nosso irmão Anis, de quem Cameron já lhes falou. Ele foi usado por Deus para nos libertar. Não sei nada sobre a vida daquele moço, a não ser que talvez se torne um mártir, caso alguém venha a saber que ele podia ter-me detido. Por mais aniquilado que eu esteja por causa da perda de minha família, vejo claramente a mão do Deus Todo-poderoso guiando meus passos. Parece que minha abençoada terra natal se transformou em um saleiro de mesa nas mãos de Deus. Ele o levantou e me espalhou pelo deserto e pelo ar. Caí onde ele queria. Para onde mais posso ir?
— Necessito de tempo para pensar. Já orei neste sentido. Estou no lugar que Deus preparou para mim e ficarei aqui pelo tempo que Ele desejar. Não gostaria de morar em esconderijo, pois não sou um homem acomodado. Mas aceito com gratidão o abrigo e as provisões que vocês me ofereceram, e aguardo com ansiedade todos os programas sobre a Bíblia que Cameron prometeu instalar no novo computador. Ficarei muito grato se vocês e o consultor técnico, o jovem Sr. Moore, puderem encontrar um meio de multiplicar meu ministério. Evidentemente, a época de minhas viagens e palestras já não existe mais. Espero poder sentar-me ao lado de meus irmãos na igreja amanhã cedo e ouvir mais sobre seu maravilhoso mentor, meu antecessor, Bruce Barnes.
— Não posso e não vou prometer substituí-lo no coração de vocês. Quem é capaz de substituir o pai espiritual de alguém? Porém, uma vez que Deus me abençoou com o dom de entender vários idiomas, com um coração que o tem buscado incessantemente, e com a verdade que Ele me transmitiu — a qual descobri, aceitei e recebi um pouco tarde demais — dedicarei o resto de minha vida para partilhar com vocês, bem como com qualquer outra pessoa que queira ouvir, as boas-novas do evangelho de Jesus Cristo, o Messias, o Salvador, meu Messias, meu Salvador.
Depois disso, Tsion pareceu desabar sobre a cadeira. Rayford e o restante do Comando Tribulação ajoelharam-se, todos ao mesmo tempo, diante de suas cadeiras.
Buck sentiu a presença de Deus da mesma maneira que sentira durante sua fuga de Israel e do Egito. Ele entendeu que o seu Deus não era limitado a espaço e tempo.
Mais tarde, depois de se recolherem para dormir, deixando Rayford a sós na sala de jantar para dar os toques finais à sua mensagem para o culto do dia seguinte, Buck e Chloe oraram para que Verna Zee cumprisse sua promessa de estar presente.
— Ela é a chave — disse Buck. — Chloe, se ela sair por aí contando tudo sobre mim, nossa vida nunca mais será a mesma.
— Buck, faz quase dois anos que nossa vida não tem sido igual nem um dia sequer.
Buck puxou-a para perto de si e ela aconchegou-se em seu peito. Minutos depois, ele percebeu que os músculos de Chloe estavam se descontraindo e ouviu a respiração profunda e cadenciada de alguém vencida pelo sono. Ele permaneceu acordado por mais uma hora, olhando para o teto.
Quando Buck despertou às oito horas da manhã, Chloe não estava mais ali. Sentiu o aroma do desjejum. Loretta já devia estar na igreja. Ele sabia que Chloe e Amanda haviam se entrosado e quase sempre trabalhavam juntas nos afazeres domésticos, mas ficou surpreso ao encontrar Tsion andando pela cozinha.
— Será que podemos adicionar um pouco do sabor típico do Oriente Médio ao nosso café da manhã? — ele perguntou.
— Por mim tudo bem, irmão — disse Buck. — Loretta voltará para buscá-lo por volta das nove horas. Amanda, Chloe e eu iremos para a igreja assim que terminarmos o desjejum.
Buck sabia por antecipação que a igreja lotaria naquela manhã, mas não esperava ver os estacionamentos repletos e uma fileira de carros nas ruas próximas. Se Loretta não tivesse reservado uma vaga, seria melhor deixar o carro em casa e caminhar a pé até a igreja com Tsion. Mais tarde, ela contou que, quando chegou com ele, teve de pedir que alguém saísse de sua vaga.
Não fazia sentido Tsion ser visto ao lado de Buck na igreja. Buck sentou-se perto de Chloe e Amanda. Loretta sentou-se nos fundos da igreja ao lado de Tsion. Loretta, Buck, Chloe e Amanda prestavam atenção para ver se Verna compareceria.
Rayford não saberia quem era Verna, mesmo que ela estivesse em pé na frente dele. Estava entretido com seus pensamentos e responsabilidades daquela manhã. Cinquenta minutos antes do culto ele fez um sinal para que o diretor da funerária transportasse o caixão para dentro do templo e o abrisse.
Rayford estava no escritório de Bruce quando o diretor da funerária caminhou apressado até ele.
— O senhor tem certeza de que devo fazer isso? O templo já está superlotado.
Mesmo sem duvidar, Rayford o acompanhou e deu uma espiada pela fresta da porta da plataforma para constatar. Não seria apropriado abrir o caixão na frente de todas aquelas pessoas. Se o corpo de Bruce já estivesse exposto, aguardando a chegada do pessoal, a cena seria menos chocante.
— Então coloque o caixão sobre um carrinho e empurre-o até ali — disse Rayford. — Trataremos de abrir o caixão depois.
Enquanto Rayford voltava para o escritório, ele e o diretor da funerária avistaram o caixão em um corredor vazio que dava para a plataforma. Rayford sentiu uma vontade repentina de ver o corpo de Bruce.
— Você poderia abrir o caixão para mim, só por alguns instantes?
— Claro, mas só se o senhor desviar os olhos. Rayford virou-se de costas e ouviu a tampa sendo aberta.
— Tudo bem, senhor — disse o diretor.
Para Rayford, Bruce parecia mais desfigurado do que no dia em que ele o viu sob o lençol nos arredores do hospital que desabara. Rayford não sabia se o motivo disso era a iluminação do local, o tempo decorrido ou seu próprio sofrimento e fadiga. Aquele corpo representava simplesmente a morada terrena de seu querido amigo. Bruce partira. O que havia ali era apenas uma imagem do homem que ele foi um dia. Rayford agradeceu ao diretor da funerária e voltou para o escritório.
Ele sentiu-se satisfeito por ter visto o corpo de Bruce. Não fez aquilo por curiosidade, como as pessoas costumavam dizer. Simplesmente temia que a visão do corpo sem vida de Bruce exposto diante da congregação pudesse deixá-lo sem fala. Mas agora sabia que isso não aconteceria. Ele estava nervoso, mas, mesmo assim, sentia-se confiante por estar representando Bruce e representando Deus perante aquelas pessoas.
Buck começou a sentir um nó na garganta no momento em que entrou no templo e avistou a multidão. Não se surpreendeu com o número de pessoas presentes, mas com a antecedência com que chegaram. Não havia também o costumeiro burburinho de um culto matinal de domingo. Ninguém parecia sequer cochichar. O silêncio era lúgubre, e todos estavam ali para prestar uma homenagem a Bruce. As pessoas choravam, sem soluçar alto. Pelo menos por ora. Permaneciam sentadas, com a cabeça baixa. Algumas liam o programa do culto que incluía os dados de Bruce. Buck ficou surpreso ao ler o seguinte versículo que alguém, provavelmente Loretta, incluíra no rodapé do verso do programa: "Eu sei que o meu Redentor vive."
Buck sentiu Chloe estremecer e sabia que ela estava prestes a romper em pranto. Passou o braço ao redor dos ombros dela e sua mão esbarrou em Amanda que estava sentada ao lado de Chloe. Amanda virou-se. Seu rosto estava banhado em lágrimas. Ele estendeu o braço e tocou no ombro dela, e os três permaneceram em silêncio.
Precisamente às 10 horas, pontual como um piloto deve ser (Buck pensou), Rayford e um presbítero apareceram na porta lateral da plataforma. Rayford sentou-se. O presbítero subiu ao púlpito e fez um gesto para que os presentes se levantassem, levando a congregação a cantar dois hinos em ritmo lento e baixo, cujas palavras eram tão expressivas que Buck mal conseguia pronunciá-las. Quando os hinos terminaram, o presbítero disse:
— Isto faz parte da introdução de nossos cultos. Hoje não haverá levantamento de ofertas. Não será feita nenhuma comunicação. Todas as nossas atividades serão retomadas no próximo domingo, conforme programado. Este culto está sendo realizado em memória de nosso querido pastor Bruce Barnes, que não está mais entre nós.
O presbítero prosseguiu contando quando e onde Bruce nasceu e quando e onde morreu.
— Ele foi precedido por sua esposa, uma filha e dois filhos, que foram arrebatados. Nosso orador desta manhã é o presbítero Rayford Steele, que se tornou membro desta congregação logo após o Arrebatamento. Ele foi amigo e confidente de Bruce, a quem vai prestar uma homenagem e nos apresentar uma breve mensagem. Aqueles que desejarem ver o corpo de Bruce, poderão voltar às 16 horas.
Rayford sentia-se como se estivesse flutuando em outra dimensão. Ouvira alguém pronunciar seu nome e sabia por que estava ali naquela manhã. Seria isso um mecanismo de defesa mental? Estaria Deus permitindo que ele deixasse de lado sua dor e emoções para poder falar com clareza? Isso era tudo o que ele podia imaginar. Se fosse tomado pelas emoções, não conseguiria falar.
Ele agradeceu ao outro presbítero e abriu suas anotações.
— Membros e amigos da Igreja Nova Esperança — começou dizendo — e parentes e amigos de Bruce Barnes, eu cumprimento todos os presentes no nome incomparável de Jesus Cristo, nosso Senhor e Salvador. Se existe uma coisa que aprendi neste mundo, é que o orador nunca deve desculpar-se. Permitam-me quebrar esta regra para poder prosseguir, porque sei que, apesar de minha estreita amizade com Bruce, esta mensagem não é minha. Bruce também diria que não era dele. É de Jesus. Preciso dizer-lhes que estou aqui nesta manhã não como presbítero, não como frequentador desta igreja e, certamente, não como pregador.
Não tenho o dom da oratória. Ninguém chegou sequer a sugerir que eu pudesse substituir Bruce. Estou aqui porque o amava e porque me sinto um pouco capacitado para falar por ele, principalmente por causa de um tesouro de anotações que ele nos deixou.
Buck manteve Chloe perto de si, mais para ser confortado do que confortá-la. Sentia pena de Rayford, cuja missão era muito difícil. Estava impressionado com a habilidade de Rayford para articular as palavras em uma situação como aquela. No lugar de Rayford, ele teria se desmanchado em lágrimas, com certeza.
Rayford prosseguia:
— Antes de tudo, quero contar-lhes como conheci Bruce, porque sei que quase todos os senhores o conheceram da mesma maneira. Estávamos vivendo o período mais difícil de nossa vida, e Bruce entendeu o significado de tudo aquilo poucas horas antes de nós.
Buck ouviu a história tão repisada de como Rayford foi advertido por sua esposa de que o Arrebatamento estava próximo. Quando ele e Chloe foram deixados para trás após Irene e Raymie terem sido arrebatados, Rayford, no auge do desespero, procurou a igreja onde sua esposa ouvira a mensagem. Bruce Barnes foi o único membro da liderança da igreja a ser deixado para trás, e ele sabia exatamente por quê. Converteu-se imediatamente e tornou-se um evangelista destemido. Bruce suplicara a Rayford e Chloe que ouvissem seu próprio testemunho sobre a perda de sua esposa e de três filhos pequenos no meio da noite. Rayford aceitou. Chloe foi cética. Demorou um pouco para aceitar.
Bruce lhes apresentara uma cópia de uma fita em vídeo que o pastor titular deixara exatamente para essa finalidade.
Rayford surpreendera-se com o fato de o pastor saber com antecedência o que ia acontecer. De acordo com a Bíblia, tudo tinha sido profetizado e ele teve o cuidado de explicar o meio para a salvação.
Agora, Rayford estava aproveitando o tempo, como fazia nas aulas da Escola Dominical e nas reuniões em que testemunhava, para discorrer sobre isso.
Buck sempre se comovia ao ouvir a "velha, velha história", conforme Bruce se referia a ela.
Rayford estava dizendo:
"Esta tem sido a mensagem mais mal interpretada de todos os tempos. Se alguém tivesse perguntado ao povo na rua, cinco minutos antes do Arrebatamento, o que os cristãos ensinavam acerca de Deus e do céu, nove entre dez pessoas teriam respondido que a igreja esperava que eles tivessem uma vida boa, fizessem o bem, pensassem nos outros, fossem bondosos e vivessem em paz. Que ideia boa, se não fosse tão errada e tão afastada da verdade!"
"A Bíblia diz claramente que todas as nossas justiças são como trapos da imundícia. Não há nenhum justo, nenhum. Todos nos desviamos do caminho. Todos nós pecamos e carecemos da glória de Deus. Aos olhos de Deus, somos todos passíveis do castigo da morte.
"Eu seria omisso e deixaria de cumprir minha missão perante esta congregação, se terminasse este culto em memória de um homem cujo coração foi inteiramente dedicado ao trabalho evangelístico, se não levasse ao conhecimento dos presentes o que ele contou sobre sua vida aqui na terra, não só a mim mas a todos aqueles com quem manteve contato durante quase dois anos. Jesus já pagou o preço. A obra está feita. Devemos ter uma vida boa? Devemos fazer o bem? Devemos pensar nos outros e viver em paz? Claro! Mas com isso ganharíamos a salvação? A Bíblia diz claramente que somos salvos pela graça mediante a fé e que isto não vem de nós nem de obras, para que ninguém se glorie. Devemos viver da maneira mais justa que pudermos, agradecidos a Deus pelo dom inestimável que Ele nos concedeu, ou seja, a nossa salvação, cujo preço Cristo pagou na cruz.
"Isto é o que Bruce Barnes lhes diria nesta manhã se seu corpo não estivesse inerte neste caixão diante de nós todos. Qualquer pessoa que o tenha conhecido sabe que esta mensagem passou a ser a razão de sua vida. Bruce ficou aniquilado pela perda de sua família, pelo sofrimento causado por seus pecados e por ter fracassado na missão que Deus lhe tinha reservado e que era necessária para assegurar-lhe a vida eterna.
"Mas ele não se entregou à autopiedade. Tornou-se um estudioso da Bíblia e passou a divulgar as boas-novas. Este púlpito não lhe foi suficiente. Ele começou a organizar igrejas domésticas por todo este país e a pregar ao redor do mundo. Sim, normalmente ele estava aqui aos domingos, porque acreditava que seu rebanho era sua responsabilidade primordial. Mas todos nós permitimos que ele viajasse porque sabíamos que aqui estava um homem de quem o mundo não era digno."
Buck estava atento quando Rayford parou de falar, afastou-se do púlpito e fez um gesto em direção ao caixão.
"E agora", prosseguiu Rayford, "se eu conseguir ir até o fim, gostaria de dizer algumas palavras diretamente a Bruce. Todos nós sabemos que seu corpo está morto. Não pode ouvir." — Levantando os olhos, ele prosseguiu: "Bruce, agradecemos tudo o que você fez. Invejamos você. Sabemos que você está com Cristo, o que é 'muito melhor', segundo as palavras do apóstolo Paulo. Confessamos que não gostamos disto. Estamos sofrendo. Estamos sentindo sua falta. Mas, em sua memória, nos comprometemos a prosseguir, a continuar nossa missão, lutar contra todas as adversidades. Estudaremos os materiais que você nos deixou e continuaremos a fazer desta igreja o farol que você construiu para a glória de Deus."
Rayford retornou ao púlpito, sentindo-se exaurido. Mas ainda não terminara.
"Eu também seria omisso se não tentasse compartilhar com os presentes pelo menos os tópicos principais do sermão que Bruce tinha preparado para este domingo. Trata-se de um sermão muito importante, e nenhum dos líderes desta igreja gostaria que os senhores o perdessem. Posso dizer-lhes que o li várias vezes e, a cada leitura, senti-me abençoado. Mas antes disso, eu gostaria de dar a palavra a qualquer pessoa que queira dizer alguma coisa em memória de nosso querido irmão."
Rayford afastou-se do microfone e aguardou. Por alguns segundos, ele pensou que havia apanhado todos desprevenidos. Ninguém se moveu, Finalmente, Loretta levantou-se.
"Todos os senhores me conhecem", ela disse. "Passei a ser secretária de Bruce desde o dia do Arrebatamento. Preciso de suas orações para poder prosseguir. Tenho apenas algumas coisas a dizer sobre o pastor Barnes."
Loretta contou sua história de como foi a única de uma família de mais de cem pessoas a ser deixada para trás após o Arrebatamento.
"Há apenas uma dúzia ou pouco mais de pessoas aqui que eram membros desta igreja antes daquele dia", ela disse. "Todos nós sabemos quem somos e, por mais agradecidos que estejamos por termos finalmente descoberto a verdade, estamos arrependidos por todos esses anos perdidos."
Buck, Chloe e Amanda viraram-se no banco para ouvir melhor o que Loretta dizia. Buck notou que quase toda a congregação ali reunida tinha lenços na mão. Loretta terminou dizendo o seguinte:
"O irmão Barnes foi um homem brilhante que cometeu um grande erro. Mas assim que aceitou o Senhor e comprometeu-se a servi-lo pelo resto da vida, tornou-se pastor de todos nós. Não sei dizer quantas pessoas ele conduziu a Cristo. Mas de uma coisa eu sei: nunca tratou ninguém com superioridade, nunca julgou nem irritou-se com ninguém. Foi um homem sincero e compassivo e gostava muito de atrair o povo para o reino de Deus. Mas quando se tratava de dizer a verdade às pessoas, ele não poupava palavras. Há muita gente aqui que pode comprovar o que estou dizendo. Porém, seu único e principal objetivo era ganhar almas para Cristo. Se houver alguém aqui que ainda esteja em dúvida ou protelando, peço a Deus que essa pessoa compreenda que talvez ela seja a razão para continuarmos a dizer que Bruce não morreu em vão. Seu amor pelas almas perdidas nunca morrerá."
Loretta rompeu em prantos e sentou-se. O estrangeiro sentado a seu lado, aquele homem de tez morena que só ela e o Comando Tribulação conheciam, colocou carinhosamente o braço em seus ombros.
Em pé, Rayford via as pessoas se levantarem e testemunharem o impacto que Bruce Barnes causara em suas vidas. Os testemunhos foram tantos que duraram mais de uma hora. Finalmente, quando parecia que não havia mais ninguém que quisesse fazer uso da palavra, Rayford disse:
"Eu não gostaria de encerrar esta parte do culto arbitrariamente, porém, se houver alguém mais que tenha algo a dizer, peço que seja breve. Após este último testemunho, aqueles que necessitarem deixar este recinto poderão fazê-lo. Os que aqui permanecerem ouvirão o resumo que fiz do sermão de Bruce preparado para esta manhã."
Tsion Ben-Judá levantou-se:
"Os senhores não me conhecem", ele disse. "Represento a comunidade internacional à qual o pastor desta igreja se dedicou com tanto empenho e eficiência. Muitos, muitos líderes cristãos do mundo inteiro o conheceram, ouviram seus ensinamentos e aceitaram a Cristo por intermédio dele. Oro para que os senhores continuem o ministério de seu pastor e que todos aqui presentes 'não se cansem de fazer o bem', conforme está escrito na Bíblia."
Rayford voltou a falar:
"Aqueles que desejarem, levantem-se e abracem um amigo, cumprimentem alguém."
Todos levantaram-se, cumprimentaram-se e abraçaram-se, mas poucos murmuraram algumas palavras. Rayford prosseguiu:
"Aproveitando que todos estão em pé, aqueles que quiserem retirar-se em razão de cansaço, fome ou outro motivo qualquer poderão fazê-lo. Já passamos da hora normal do encerramento. O restante deste culto será gravado em vídeo para os que não puderem permanecer aqui. Farei um resumo da mensagem de Bruce para esta manhã, desculpando-me antecipadamente por ter de ler alguns trechos para os senhores. Não sou o pregador que ele era, portanto peço a compreensão de todos. Faremos um breve intervalo enquanto parte da congregação estiver deixando este recinto."
Rayford deu as costas para o púlpito e sentou-se. A congregação inteira sentou-se e olhou com ar de expectativa para ele. Quando ficou claro que ninguém sairia, alguém deu uma risadinha, depois outro e mais outro. Rayford sorriu, encolheu os ombros e retomou ao púlpito.
"Acho que existem coisas mais importantes na vida que o conforto pessoal, não é mesmo?", ele disse.
Alguns améns ecoaram no templo. Rayford abriu sua Bíblia e as anotações de Bruce.
Buck sabia o que ouviria a seguir. Já estudara o material quase tantas vezes quanto Rayford e o ajudara a resumi-lo. Mesmo assim, estava empolgado. O povo ficaria entusiasmado com o que Bruce acreditava ter acontecido, com o que ele disse que aconteceria e com o que ainda estava por acontecer.
Rayford começou explicando:
"Temos quase certeza de que estas anotações foram escritas a bordo de uma aeronave enquanto Bruce retornava da Indonésia na semana passada. O nome do arquivo é 'Sermão' com data de hoje, e o que tenho em mãos é um esboço rudimentar e muitos comentários. Em um ou outro trecho, ele incluiu anotações pessoais. Achei que posso ler algumas para os senhores, mas há outras que não me sinto autorizado para divulgar por ele não estar mais entre nós. Por exemplo, logo após fazer um resumo dos pontos principais desta mensagem, ele escreveu: "Passei muito mal esta noite e não me sinto melhor hoje de manhã. Fui alertado quanto a vírus, apesar de todas as vacinas que tomei. Não posso queixar-me. Tenho viajado exaustivamente sem nenhum problema. Deus tem estado comigo. Evidentemente, Ele também está comigo agora, mas receio ficar desidratado. Se eu não melhorar depois que voltar, precisarei consultar um médico."
"Portanto", complementou Rayford, "podemos ter uma ideia da enfermidade que se abateu sobre ele e que o levou a passar mal na igreja após seu retorno. Como quase todos os senhores sabem, ele foi conduzido às pressas para o hospital, onde acreditamos que morreu por causa da enfermidade e não da explosão.
"Bruce resumiu uma mensagem que ele acreditava ser muito urgente. Observem o que ele escreveu. 'Tenho quase certeza de que estamos no final do período de 18 meses de paz, que se segue ao acordo firmado entre o anticristo e Israel. Se eu estiver certo, e se o início da Tribulação for estabelecido a partir da assinatura do tratado entre a nação de Israel e o que foi na época conhecido como Organização das Nações Unidas, estamos muito próximos do final desse período e devemos nos preparar para a próxima terrível e medonha profecia que ocorrerá durante a Tribulação: o cavalo vermelho do Apocalipse. Em Apocalipse 6. 3-4 lemos que ao seu cavaleiro foi dado tirar a paz da terra para que os homens se matem uns aos outros; também lhe foi dada uma grande espada. Em minha opinião, essa é a profecia de uma guerra, que será conhecida como Terceira Guerra Mundial. Ela será instigada pelo anticristo e, apesar disso, ele, o grande mentiroso e enganador, se proclamará o grande solucionador, o grande pacificador. A seguir, virão os dois próximos cavalos do Apocalipse, o preto, que representa pragas e fome, e, o amarelo, que representa a morte. Eles virão quase que simultaneamente e nenhum de nós deve ficar surpreso se esta guerra mundial trouxer fome, pragas e morte.'
"Será que os irmãos acham isto tão aterrador como eu achei quando li pela primeira vez?" perguntou Rayford. Todos os presentes movimentaram a cabeça afirmativamente. "Devo lembrar-lhes que estas anotações foram escritas por um homem que morreu pouco antes ou pouco depois da explosão da bomba que deu início a esta guerra. Ele não sabia exatamente quando isso aconteceria, mas não queria deixar passar mais um domingo sem compartilhar esta mensagem conosco. Não sei se todos concordam comigo, mas estou inclinado a acreditar nas palavras de um homem que interpretou as profecias bíblicas com tanta precisão. Aqui está o que Bruce diz a respeito do que virá:
"'O tempo passou a ser curto para todos nós. Em Apocalipse 6. 7-8 lemos que o cavaleiro do cavalo amarelo é a Morte e que o Inferno vem logo a seguir. Ao cavalo amarelo e a seu cavaleiro foi-lhes dada autoridade sobre a quarta parte da terra para matar à espada, pela fome, com a mortandade e por meio das feras da terra. Confesso que não sei o que significam as feras da terra às quais a Bíblia se refere, mas talvez sejam os animais que destruirão o povo quando ele for deixado desprotegido por causa da guerra. Talvez a grande fera da terra seja uma linguagem metafórica para as armas usadas pelo anticristo e seus inimigos. De qualquer forma, em breve um quarto da população mundial será exterminado da face da terra.'
"Bruce prossegue: 'Contei isto a três companheiros pouco tempo atrás, e pedi-lhes que considerassem que havia quatro pessoas naquela sala. Será que um de nós partiria no devido tempo? Claro que sim. Será que eu perderia um quarto de minha congregação? Oro para que minha igreja seja poupada, mas tenho agora tantas congregações ao redor do mundo que é impossível imaginar que todas sejam poupadas. Nesse um quarto da população que será exterminada, com certeza haverá muitos, muitos santos da tribulação.
'"Em razão da moderna tecnologia, a guerra mundial levará pouco tempo para causar devastação e mortandade. Os três últimos cavaleiros do Apocalipse virão um atrás do outro. Se o povo já está horrorizado pelo sofrimento, derramamento de sangue e desaparecimentos dos santos por ocasião do Arrebatamento que resultaram em caos por causa das colisões, incêndios e suicídios, imaginem o desespero de um mundo despedaçado pela guerra mundial, fome, pragas e morte."'
Rayford levantou os olhos das anotações e prosseguiu: "Minha esposa e eu vimos as notícias de ontem no aeroporto e acho que quase todos os presentes também as viram. Vimos estas coisas acontecendo no mundo inteiro. Só o maior dos céticos nos acusaria de termos escrito este material após o acontecimento dos fatos. Mas digamos que os ouvintes aqui sejam céticos. Digamos que acreditem que somos charlatões. Então, quem escreveu a Bíblia? E quando foi escrita? Esqueçam Bruce Barnes e suas previsões feitas uma semana antes dos fatos. Considerem que estas profecias foram feitas há milhares de anos. Podem imaginar o sofrimento de Bruce quando teve de preparar este sermão. Em uma nota marginal ele escreve: 'Detesto fazer sermões sobre más notícias. Meu problema é que no passado sempre detestei ouvir más notícias. Eu me fazia de surdo. Não ouvia. Se eu quisesse ouvir, bastava prestar atenção. Preciso incluir outras más notícias nesta mensagem e, apesar de sofrer com isto, não posso me esquivar da responsabilidade.'
"Observem o dilema de Bruce", disse Rayford. "Como sou o responsável de transmitir esta mensagem, concordo plenamente com ele. A próxima parte do esboço diz que os Quatro Cavaleiros do Apocalipse, que vêm infligir sofrimento à terra, representam os quatro primeiros dos sete Julgamentos Selados, os quais, conforme indicado em Apocalipse 6. 1-16, ocorrerão durante os primeiros 21 meses da Tribulação. De acordo com os cálculos de Bruce, se usarmos como ponto de referência o tratado assinado entre Israel e a Organização das Nações Unidas, hoje conhecida como Comunidade Global, estamos nos aproximando do final desse período de 21 meses. Assim, é importante entendermos claramente o quinto, o sexto e o sétimo Julgamentos Selados, profetizados em Apocalipse. Os irmãos já aprenderam com Bruce que ainda temos mais dois julgamentos de sete partes que se seguirão até o final dos sete anos de Tribulação e o glorioso aparecimento de Cristo. Os próximos sete serão os Julgamentos das Trombetas e os sete seguintes, os Julgamentos das Taças. Tenho certeza de que o nosso futuro pastor, seja ele quem for, advertirá os senhores quando esse tempo se aproximar. Nesse ínterim, permitam-me contar-lhes o que teremos pela frente nas próximas semanas, de acordo com as anotações e comentários de Bruce."
Rayford estava exausto e, pior ainda, tinha pensado muito no que falaria a seguir. Não eram boas notícias. Ele se sentia fraco. Estava faminto e seu organismo necessitava de açúcar.
"Peço licença para fazer um intervalo de cinco minutos", ele disse. "Sei que muitos de vocês estão querendo isso. Preciso tomar alguma coisa. Voltaremos a nos reunir exatamente às 13 horas."
Ele saiu da plataforma e Amanda cortou caminho pela porta lateral e foi ao seu encontro no corredor.
— Do que você está precisando? — ela perguntou.
— Além de orações?
— Orei por você a manhã inteira — ela disse. — Você sabe disso. O que você quer? Suco de laranja?
— Você age como se eu fosse um diabético.
— Só sei do que eu necessitaria se tivesse permanecido em pé ali por tanto tempo sem comer nada.
— Um suco parece ótimo — ele disse. Enquanto ela saía apressada, Buck foi ao encontro de Rayford no corredor.
— Você acha que eles estão preparados para ouvir o que você ainda tem a lhes dizer? — perguntou Buck.
— Francamente, acho que Bruce tentou dizer-lhes isso durante meses. Não há nada como as notícias de hoje para convencer esse povo de que seu pastor estava certo.
Buck assegurou a Rayford que continuaria orando por ele. Quando voltou a sentar-se, notou que, mais uma vez, aparentemente ninguém havia saído do templo. Não se surpreendeu por Rayford estar de volta ao púlpito exatamente no horário que prometera.
"Não vou me alongar muito mais", disse Rayford. "Mas estou certo de que todos os presentes concordam que estamos tratando de um assunto de vida ou morte. Pelas anotações e ensinamentos de Bruce e de acordo com Apocalipse 6. 9-11 entendemos que o quinto dos sete Julgamentos Selados refere-se aos mártires da tribulação. A Bíblia diz: '... (vi), debaixo do altar, as almas daqueles que tinham sido mortos por causa da palavra de Deus e por causa do testemunho que sustentavam. Clamaram em grande voz, dizendo: Até quando, ó Soberano Senhor, santo e verdadeiro, não julgas nem vingas o nosso sangue dos que habitam sobre a terra? Então, a cada um deles foi dada uma vestidura branca, e lhes disseram que repousassem ainda por pouco tempo, até que também se completasse o número dos seus conservos e seus irmãos que iam ser mortos como igualmente eles foram.'
"Em outras palavras", prosseguiu Rayford, "muitos daqueles que morreram nesta guerra mundial, e os que ainda morrerão até que um quarto da população deste planeta desapareça, são considerados mártires da tribulação. Incluo Bruce nessa categoria. Embora ele não tenha morrido especificamente por pregar o evangelho ou enquanto estava pregando o evangelho, ficou claro que esse era o trabalho de sua vida e que ele morreu em decorrência disto. Posso visualizar Bruce debaixo do altar em companhia das almas daqueles que morreram por causa da palavra de Deus e por causa do testemunho que sustentaram. A ele será dada uma vestidura branca e lhe dirão para repousar por pouco tempo, até que outros mártires completem o número total. Devo perguntar-lhes hoje, os senhores estão preparados? Estão dispostos? Estão prontos para entregar sua vida pelo amor do evangelho?"
Rayford fez uma pausa para respirar e surpreendeu-se ao ouvir alguém gritar:
— Eu estou!
Rayford não sabia o que dizer. De repente, de outra parte do templo ouviu-se outro grito:
— Eu também!
Mais três ou quatro gritaram ao mesmo tempo. Rayford sentiu-se sufocado pelas lágrimas. A pergunta havia sido retórica. Ele não esperava uma resposta. Que coisa comovente! Que sopro divino! Ele achou que não devia aguardar que outras pessoas respondessem baseadas apenas na emoção, e prosseguiu com voz rouca:
"Obrigado, irmãos e irmãs. Acho que todos nós estamos sentindo vontade de manifestar nossa disposição para morrer pela causa. Louvado seja Deus por isso. As anotações de Bruce indicam que ele acreditava que esses julgamentos são cronológicos. Se os Quatro Cavaleiros do Apocalipse precedem os mártires da tribulação com vestiduras brancas debaixo do altar no céu, isso poderia estar acontecendo neste momento. E se estiver, precisamos saber qual é o sexto selo. Bruce sentiu uma emoção tão grande a respeito deste Julgamento Selado que transcreveu de seu computador para estas anotações várias traduções e versões diferentes de Apocalipse 6. 12-17. Permitam-me ler uma que ele marcou como a mais rigorosa e mais facilmente compreensível: 'Vi quando o Cordeiro' observem que a palavra Cordeiro, também mencionada no versículo 13 do capítulo anterior, se refere, evidentemente, a Jesus Cristo — 'abriu o sexto selo, e sobreveio grande terremoto. O sol se tornou negro como saco de crina, a lua toda, como sangue, as estrelas do céu caíram pela terra, como a figueira, quando abalada por vento forte, deixa cair os seus figos verdes, e o céu recolheu-se como um pergaminho quando se enrola. Então, todos os montes e ilhas foram movidos dos seus lugares. Os reis da terra, os grandes, os comandantes, os ricos, os poderosos e todo escravo e todo livre se esconderam nas cavernas e nos penhascos dos montes e disseram aos montes e aos rochedos: Caí sobre nós e escondei-nos da face daquele que se assenta no trono e da ira do Cordeiro, porque chegou o Grande Dia da ira deles; e quem é que pode suster-se?'"
Rayford ergueu os olhos e esquadrinhou o templo. Alguns olhavam fixamente para ele com o semblante pálido. Outros examinavam atentamente suas Bíblias.
"Não sou nenhum teólogo. Não sou nenhum erudito. Tenho tido dificuldade em ler e entender a Bíblia durante minha vida inteira, como qualquer um dos irmãos, principalmente nestes quase dois anos após o Arrebatamento. Mas faço-lhes uma pergunta. Existe alguma dificuldade em entender uma passagem que diz 'sobreveio grande terremoto'? Bruce elaborou uma tabela acerca desses eventos e acreditava que os primeiros sete selos abrangem os primeiros 21 meses dos sete anos de tribulação, que começaram por ocasião do pacto entre Israel e o anticristo. Se alguém aqui ainda não acredita que o anticristo já entrou em cena, então também não deve acreditar que existe um acordo entre Israel e aquela pessoa. E se isso for verdade, todos os acontecimentos ainda estão por vir. A Tribulação não se iniciou com o Arrebatamento. Inicia-se com a assinatura do tratado. Bruce nos ensinou que os primeiros quatro Julgamentos Selados foram representados pelos Quatro Cavaleiros do Apocalipse. Eu digo aos senhores que esses cavaleiros estão em pleno galope. O quinto selo — os mártires da tribulação que foram mortos por causa da palavra de Deus e pelo testemunho que sustentaram, e cujas almas estão debaixo do altar — já começou.
"O comentário de Bruce indica que agora o número de mártires aumentará cada vez mais. O anticristo se voltará contra os santos da tribulação e contra as 144 mil testemunhas das tribos de Israel que surgirão de todas as partes do mundo.
"Ouçam o que estou dizendo, de um ponto de vista prático. Se Bruce estava certo — e até agora ele esteve — o término dos 21 meses está próximo. Acredito em Deus. Acredito em Cristo. Acredito que a Bíblia é a Palavra de Deus. Acredito que nosso querido e saudoso irmão 'classificou corretamente a palavra da verdade', portanto estou me preparando para sofrer o que esta passagem chama de 'a ira do Cordeiro'. Um terremoto se aproxima e ele não é simbólico. Esta passagem indica que todos, grandes ou pequenos, preferirão ser esmagados até a morte a ter de enfrentar a face daquele que está assentado no trono."
Buck anotava freneticamente tudo o que ouvia. O assunto não era novidade para ele, mas sentia-se comovido pelas palavras inflamadas de Rayford e comovido também porque o terremoto teria de ser divulgado ao mundo como a ira do Cordeiro.
Talvez essa notícia viesse a ser o seu canto do cisne, a sua morte sinistra, mas ele ia mencionar no Semanário Comunidade Global que os cristãos estavam falando da "ira do Cordeiro". Prever um terremoto era um fato corriqueiro. Os cientistas de gabinete e os clarividentes faziam isso havia anos. Porém os cidadãos do mundo moderno nutriam uma paixão especial por expressões lançadas pela propaganda. Será que haveria uma expressão melhor que aquela extraída da Palavra de Deus?
Rayford estava concluindo sua mensagem.
"No final deste período de 21 meses, o sétimo e misterioso Julgamento Selado nos levará ao período seguinte de 21 meses, durante o qual receberemos os sete Julgamentos das Trombetas. Digo que o sétimo Julgamento Selado é misterioso porque a Bíblia não menciona claramente que forma ele assumirá. A Bíblia só diz que ele será tão dramático que haverá silêncio no céu por cerca de meia hora. Então, os sete anjos, cada um com uma trombeta, se prepararão para tocá-las. Estudaremos esses julgamentos e falaremos sobre eles à medida que nos aproximarmos daquele período. No entanto, acredito por ora que Bruce nos deixou muitas coisas para pensarmos e orarmos a respeito.
"Todos nós amamos este homem, aprendemos com ele e agora estamos lhe prestando uma homenagem. Apesar de sabermos que ele está com Cristo, devemos chorar e lamentar sua morte. A Bíblia diz que não devemos chorar a morte de alguém como fazem os idólatras, mas não diz que não devemos derramar uma lágrima sequer. Chorem a sua dor o mais que puderem. Mas não permitam que ela os mantenha afastados da missão que lhe foi imposta. O maior desejo de Bruce era o de permanecermos firmes na tarefa de levar o maior número possível de pessoas ao reino de Deus antes que seja tarde demais."
Rayford estava exausto. Depois de encerrar o culto com uma oração, ele não saiu da plataforma. Permaneceu sentado e de cabeça baixa. A congregação também não teve pressa de sair, como fazia rotineiramente. Quase todas as pessoas continuaram sentadas enquanto algumas levantavam-se devagar e em silêncio, caminhando em direção à porta de saída.



DEZESSEIS




Buck ajudou Chloe a entrar no Range Rover, mas antes que ele pudesse dar a volta no carro para sentar-se ao volante, foi abordado por Verna Zee.
— Verna! Eu não a vi na igreja! Estou satisfeito por você ter vindo.
— Pois eu vim, Cameron. E também reconheci Tsion Ben-Judá!
Buck conteve-se para não tapar a boca de Verna com a mão.
— Como?
— Ele vai ter muitos problemas quando as forças pacificadoras da Comunidade Global descobrirem seu paradeiro. Você não sabe que ele está sendo procurado no mundo inteiro? E que o seu passaporte e documento de identidade foram encontrados com um dos cúmplices dele? Buck, você está tão encrencado quanto ele. Steve Plank está tentando falar com você, e não aguento mais fingir que não faço ideia de onde você está.
— Verna, vamos ter de nos encontrar em algum lugar para conversarmos sobre isso.
— Não posso guardar seu segredo eternamente, Buck. Não vou afundar com você. Achei esta reunião muito interessante e é óbvio que todos amavam esse tal de Barnes. Mas será que todas essas pessoas acreditam que Nicolae é o anticristo?
— Não posso responder por elas.
— E quanto a você, Buck? Você se reporta diretamente ao homem. Será que vai escrever um artigo em uma das revistas dele dizendo isso?
— Já escrevi, Verna.
— Ah, sim, mas seus artigos sempre foram neutros, relatando o que algumas pessoas acreditam. Você frequenta esta igreja! Convive com este pessoal! Passou a acreditar nesta história!
— Podemos ir a algum lugar para conversar? — perguntou Buck.
— Acho bom. De qualquer forma, quero entrevistar Tsion Ben-Judá. Você não pode me censurar por um furo de reportagem que tanto sonhei na vida.
Buck mordeu a língua para não dizer que ela não era uma jornalista à altura de escrever um artigo sobre Ben-Judá.
— Voltarei a falar com você amanhã — ele disse. — E aí poderemos...
— Amanhã? Hoje, Buck. É melhor nos encontrarmos no escritório hoje à tarde.
— Hoje à tarde não é conveniente. Vou voltar para cá às quatro horas para ver o corpo de Bruce.
— Então, que tal às seis e meia?
— Por que precisa ser hoje? — perguntou Buck.
— Não precisa ser hoje. No entanto, posso contar a Steve Plank ou ao próprio Carpathia ou a quem eu quiser tudo o que vi hoje, com todos os detalhes.

— Verna, assumi um risco enorme quando a ajudei naquela noite e arrumei um lugar para você ficar na casa de Loretta.
— Claro. E talvez você se arrependa pelo resto da vida.
— Então, quer dizer que tudo o que você ouviu aqui não lhe causou nenhum impacto?
— Ah, sim, causou. Comecei a me perguntar por que passei a ser dócil com você de repente. Vocês são todos malucos, Buck. Vou precisar de um motivo muito forte para não contar tudo o que sei sobre você.
Aquilo parecia uma extorsão, mas Buck entendeu que Verna aparentemente assistira ao culto inteiro daquela manhã. Ela devia ter assimilado alguma coisa. Buck queria saber como Verna podia considerar uma simples coincidência as profecias do Apocalipse e o que acontecera no mundo nos últimos 21 meses.
— Está bem — ele disse. — Seis e meia no escritório.

Rayford e os outros presbíteros concordaram que não deveria haver nenhuma outra formalidade enquanto o corpo de Bruce estivesse exposto no templo. Nenhuma oração, nenhuma mensagem, nenhum discurso, nada. Apenas uma fila de pessoas passando diante do caixão para prestar as últimas homenagens a Bruce. Alguém sugeriu que o salão de confraternização fosse aberto para que o local ficasse mais ventilado, mas Rayford, alertado por Buck, não aprovou a ideia. A escada foi isolada por uma faixa estendida de lado a lado para que ninguém descesse por ela. Uma tabuleta indicava que o corpo ficaria exposto das quatro às seis horas da tarde.
Por volta das cinco horas, enquanto centenas de pessoas desfilavam lentamente diante do caixão, formando uma fila que se estendia até a rua, passando pela porta da frente e por dentro do estacionamento, Buck entrou com o Range Rover lotado na vaga reservada a Ldretta.
— Chloe, prometi que esta é a última vez que vou me aproveitar de seus ferimentos e usar você como chamariz.
— Chamariz para quê? Será que Carpathia está aqui e vai agarrar você ou Tsion?
Buck deu uma risadinha. Rayford tinha chegado ao templo pouco antes das quatro horas. Agora, Buck, Chloe, Amanda, Tsion e Loretta estavam descendo do Range Rover. Amanda e Loretta seguraram Chloe, uma de cada lado, para ajudá-la a descer do carro enquanto Buck abria a porta. Ele deu uma espiada nas pessoas que estavam aguardando na fila para entrar na igreja. A maioria não estava prestando atenção ao pequeno grupo que acabara de chegar. As que olharam pareciam estar concentradas na bela jovem recém-casada, com o tornozelo machucado, braço na tipóia e segurando uma bengala.
Enquanto as três mulheres se dirigiam para o escritório da igreja, planejando ver o corpo de Bruce depois que a multidão se dispersasse, Buck e Tsion sumiram. Quando Buck entrou no escritório cerca de vinte minutos depois, Chloe perguntou:
— Onde está Tsion?
— Está por aí — respondeu Buck.
Rayford permaneceu ao lado do caixão de Bruce, cumprimentando os passantes. Donny Moore aproximou-se.
— Sinto muito aborrecê-lo com uma pergunta neste momento — disse Donny — mas o senhor sabe onde posso encontrar o Sr. Williams? Ele me fez algumas encomendas e já estão prontas.
Rayford indicou o escritório da igreja.

Enquanto Donny e outras pessoas passavam diante do caixão, Rayford perguntava a si mesmo quanto tempo Hattie Durham ficaria com a mãe em Denver. Carpathia programara uma reunião com o Pontifex Maximus Peter Mathews, que recentemente havia sido nomeado Supremo Pontífice da Fé Mundial Enigma Babilónia, uma aglutinação de todas as religiões do mundo. Carpathia queria Rayford de volta a Nova Babilónia o mais tardar na quinta-feira da semana seguinte para levar o Condor 216 a Roma. Lá, ele pegaria Mathews e o conduziria à Nova Babilónia. Carpathia já havia noticiado com grande alarde a transferência de Mathews e da Fé Mundial Enigma Babilónia para a Nova Babilónia como fizera com quase todas as demais organizações internacionais.
Sentindo-se entorpecido, Rayford cumprimentava todos os que passavam diante do caixão, tentando não olhar para o corpo de Bruce. Ocupou sua mente pensando nas palavras que ouvira de Carpathia por meio daquele engenhoso aparelho de escuta instalado no Condor pelo falecido Earl Halliday. Para Rayford, o mais interessante de tudo era a insistência de Carpathia em assumir a liderança de vários grupos e comités que tinham sido dirigidos por seu velho amigo e anjo protetor financeiro Jonathan Stonagal. Buck contara a Rayford e aos demais integrantes do Comando Tribulação que estava presente na sala quando Carpathia assassinou Stonagal e, em seguida, fez uma lavagem cerebral em todos os participantes da reunião para que acreditassem que tinham acabado de presenciar um suicídio. Os motivos para aquele assassinato evidenciaram-se pelo fato de Carpathia estar tentando ardilosamente assumir a liderança dos comités de relações internacionais, das comissões que tratam da harmonia internacional e, acima de tudo, das cooperativas financeiras secretas.
A mente de Rayford divagava ao lembrar-se dos velhos bons tempos quando sua única preocupação era chegar no horário ao aeroporto O'Hare, pilotar o avião nas rotas programadas e voltar para casa. Evidentemente, naquela época ele não era crente. Nem o marido e o pai que deveria ter sido. Na verdade, os velhos bons tempos não tinham sido tão bons assim.
Ele não podia reclamar da vida agitada que levava agora. Desprezava Carpathia e detestava estar sob as ordens dele, mas decidira ser obediente a Deus. Se esse era o lugar que Deus lhe preparara, seria ali que ele o serviria. Só esperava que Hattie Durham passasse por Chicago antes de ele partir. De uma maneira ou outra, ele, Amanda, Chloe e Buck tinham de afastá-la de Nicolae Carpathia. Sentia um entusiasmo perverso por ela ter decidido distanciar-se de Nicolae por conta própria. Mas Carpathia não aceitaria ser rejeitado com tanta facilidade, principalmente por Hattie estar grávida de um filho seu e por ele ser tão cuidadoso com sua imagem pública.
Buck estava ocupado com Donny Moore, aprendendo a lidar com as incríveis novidades dos novos computadores, quando ouviu Loretta falando ao telefone.
— Sim, Verna — ela estava dizendo — neste momento Buck está ocupado conversando com uma pessoa, mas vou dizer-lhe que Steve Plank quer falar com ele.
Buck pediu licença a Donny e gritou para Loretta:
— Se ela estiver no escritório, pergunte se meus cheques estão lá.
Buck tinha estado ausente dos escritórios de Nova e York e Chicago nos dias de pagamento durante várias semanas e ficou satisfeito ao ver Loretta fazendo um movimento afirmativo com a cabeça depois de perguntar a Verna sobre os cheques. Após ler o material escrito por Bruce, ele concluiu que deveria começar a investir em ouro, uma ideia corroborada por Tsion. Em breve, o dinheiro não teria mais valor. Seria necessário começar a amealhar alguma espécie de recurso financeiro porque, mesmo na melhor das hipóteses, mesmo que Verna viesse a se converter e o protegesse de Carpathia, ele não poderia fazer uso desse artifício por muito tempo. Seu relacionamento com Carpathia terminaria. Sua fonte de renda secaria. Ele não poderia mais vender nem comprar sem ter estampada a marca da besta e a nova ordem mundial da qual Carpathia tanto se orgulhava poderia matá-lo de fome.
Quando faltavam quinze minutos para às seis, o templo já estava quase vazio. Rayford dirigiu-se para o escritório da igreja e fechou a porta atrás de si.
— Daqui a pouco poderemos passar alguns momentos a sós com o corpo de Bruce — ele disse.
Loretta e os integrantes do Comando Tribulação, com exceção de Tsion, estavam sentados com o semblante triste.
— Então, foi isso o que Donny Moore lhe trouxe? — Rayford perguntou a Buck, apontando com a cabeça para os laptops.
— Sim. Um para cada um de nós. Perguntei a Loretta se ela também queria um.
Loretta fez um gesto desanimado para ele, sorrindo.
— Eu não saberia o que fazer com ele. Acho que nem sei desempacotá-lo.
— Onde está Tsion? — perguntou Rayford. — Por enquanto, é muito importante que ele fique ao nosso lado e...
— Tsion está em lugar seguro — disse Buck lançando um olhar cauteloso para Rayford.
— Hã, hã.
— Do que vocês estão falando? — perguntou Loretta. — Onde ele está?
Rayford sentou em uma cadeira de rodinhas e aproximou-se de Loretta.
— Há algumas coisas que não devemos lhe contar para seu próprio bem.
— E o que você acharia — ela disse — se eu lhe dissesse que não estou gostando nada disto?
— Eu entendo, Loretta...
— Não tenho tanta certeza assim, capitão Steele. Guardei segredos durante toda a minha vida porque sou uma senhora educada, criada no sul.
— Eu diria uma bela senhora criada no sul — disse Rayford.
— Agora você está querendo me bajular e também não gosto disto.
Rayford foi tomado de surpresa.
— Lamento muito, Loretta, eu não quis ofendê-la.
— Sinto-me ofendida quando alguém não quer me contar um segredo.
Rayford inclinou-se para a frente.
— Estou falando sério quando digo que é para o seu próprio bem. A verdade é que um dia, ou melhor, muito em breve, alguns oficiais da alta patente poderão forçá-la a dizer onde Tsion está.
— E você acha que se eu souber onde ele está, vou fraquejar.
— Se você não souber onde ele está, não vai fraquejar nem ter de se preocupar com esse assunto.
Loretta cerrou os lábios e balançou a cabeça.
— Sei que todos vocês estão vivendo perigosamente. Acho que me arrisquei muito quando lhes dei abrigo. Agora sou apenas a senhoria de vocês, não é mesmo?
— Loretta, você é uma das pessoas que mais amamos neste mundo, é isso o que você é. Não faríamos nada para prejudicá-la. E é por isso que não vou me obrigar a dizer-lhe onde Tsion está, apesar de saber que você está ofendida e de não ser esta a minha intenção. Você poderá conversar com Tsion por telefone e nós nos comunicaremos com ele por computador. Um dia você vai nos agradecer por não lhe termos revelado este segredo.
Amanda interrompeu.
— Rayford, você e Buck estão dizendo que Tsion está onde penso que ele está?
Rayford meneou a cabeça afirmativamente.
— Seria necessário desde já? — perguntou Chloe.
— Receio que sim. Eu gostaria de saber quanto tempo ainda nos resta antes de irmos para lá também.
Loretta, demonstrando irritação, levantou-se e começou a andar de um lado para o outro, com os braços cruzados diante do peito.
— Capitão Steele, você poderia me dizer uma coisa? Poderia me dizer que não vai revelar este segredo para mim por achar que eu vou contar para todo mundo?
Rayford levantou-se.
— Loretta, venha até aqui. Ela parou e encarou-o.
— Vamos — ele disse. — Venha até aqui e deixe-me abraçá-la. Tenho idade para ser seu filho, portanto não me leve a mal.
Loretta parecia estar se recusando a sorrir, mas resolveu ceder e aproximou-se lentamente de Rayford. Ele a abraçou.
— Loretta, eu a conheço há muito tempo para saber que você não costuma revelar segredos. Mas as pessoas que poderão querer saber do paradeiro de Tsion Ben-Judá não hesitarão em usar um detector de mentiras ou até mesmo o soro da verdade se acharem que você sabe de alguma coisa. Se eles a forçarem a entregar Tsion, mesmo contra vontade, isso poderá comprometer a causa de Cristo.
Loretta o abraçou.
— Tudo bem — ela disse. — Continuo a achar que sou muito mais forte do que vocês pensam, mas tudo bem. Se eu achar que vocês não estão fazendo isso para o meu próprio bem, vou expulsá-los de minha casa.
Todos sorriram. Todos, exceto Loretta. Alguém bateu à porta.
— Com licença, senhor — disse o diretor da funerária para Rayford. — O templo já está vazio.
Buck foi o último da fila de cinco pessoas a entrar no templo. Ficou em pé ao lado do caixão de Bruce. A princípio, Buck teve um sentimento de culpa. Estava estranhamente insensível. Talvez tivesse extravasado todas as suas emoções durante o culto. Sabia muito bem que Bruce não estava mais ali e não sentia nada ao ver o corpo de seu amigo morto.
Mesmo assim, em pé ali ao lado das pessoas que lhe eram mais próximas no mundo, ele foi capaz de aproveitar aqueles momentos para refletir sobre as maneiras tão dramáticas e específicas que Deus utilizara por meio dele naquelas últimas horas. Uma das coisas que aprendera com Bruce foi que a vida do cristão era uma série de novos começos. O que Deus tinha feito por ele ultimamente? O que Deus não tinha feito por ele? Buck gostaria muito de sentir a mesma compulsão para renovar seu compromisso de estar a serviço de Cristo quando Deus aparentemente não estivesse tão próximo.
Vinte minutos depois, Buck e Chloe entraram no estacionamento do Semanário Comunidade Global. Só o carro de Verna estava ali.
Buck achou que Verna ficou surpresa e ao mesmo tempo desapontada ao ver Chloe caminhando com dificuldade ao lado dele. Chloe também devia ter percebido isso.
— Não sou bem-vinda aqui? — ela perguntou.
— Claro que é — respondeu Verna. — Talvez Buck precise de alguém para segurar a mão dele.
— Por que eu precisaria de alguém para segurar minha mão? Eles se dirigiram a uma pequena sala de reuniões com uma mesa e sentaram-se. Verna sentou-se à cabeceira. Ela escostou-se no espaldar da cadeira e levantou os dedos.
— Buck, nós dois sabemos que agora quem dá as cartas sou eu, certo?
— O que aconteceu com a nova Verna? — Buck perguntou.
— Nunca houve uma nova Verna — ela disse. — Apenas uma versão mais suave da antiga Verna.
Chloe inclinou-se para a frente e perguntou:
— Então quer dizer que nada do que dissemos, nada do que eu e você conversamos, nada do que você viu, ouviu ou experimentou na casa de Loretta ou na igreja teve algum significado?
— Tenho de admitir que gostei do novo carro. É bem melhor do que aquele que eu tinha. Claro que foi uma coisa justa, a última coisa que Buck poderia ter feito por mim depois de arruinar minha vida.
— Então — disse Chloe — seus momentos de vulnerabilidade, seu reconhecimento que sentia inveja de Buck e que não estava à altura dele, tudo isso foi fingimento?
Verna levantou-se. Colocou as mãos nos quadris e olhou com firmeza para Buck e Chloe.
— Estou realmente surpresa com esta conversa tão insignificante. O assunto aqui não tem nada a ver com política administrativa. Nem com conflitos de personalidade. A verdade, Buck, é que você não está sendo leal a seu patrão. Não é apenas uma questão de preocupação, porque não se trata de jornalismo propriamente dito. Só que arrumei um problema para mim. Já contei isso a Chloe, não contei, Chloe?
— Contou.
— Carpathia comprou toda a imprensa, eu sei disso — prosseguiu Verna. — Nós, os jornalistas à moda antiga, não gostamos da ideia de divulgar as notícias que nosso patrão está produzindo. Não gostamos que ele meta o dedo em tudo. Mas, Buck, você é um lobo vestido de cordeiro. É um espião. É inimigo dele. Além de não gostar do homem, você também acha que ele é o anticristo.
— Por que você não se senta, Verna? — perguntou Chloe.— Todos nós conhecemos as pequenas sugestões contidas em livros que nos ensinam como saber quem é mais importante. Não posso falar por Buck, mas sua tentativa de ser superior a mim não me intimida nem um pouco.
— Vou-me sentar, mas só porque quero.
— Então, qual é o seu jogo? — perguntou Chloe. — Pretende fazer uma extorsão?
— Por falar nisso — disse Buck — sou grato por você ter guardado meus cheques das últimas semanas.
— Não toquei neles. Estão na primeira gaveta de sua mesa. E não, não sou chantagista. Só me parece que sua vida depende de quem sabe ou de quem não sabe que você está acobertando Tsion Ben-Judá.
— E você acha que sabe?
— Eu o vi na igreja hoje de manhã.
— Acho que você imaginou que o viu — disse Chloe. Buck hesitou e olhou para ela. Verna também. Pela primeira vez, Buck viu um leve ar de dúvida no rosto de Verna.
— Você está me dizendo que não vi Tsion Ben-Judá na igreja hoje de manhã?
— É muito improvável — disse Chloe. — Você não concorda?
— É certo que não. Sei que Buck esteve em Israel e que seus documentos foram encontrados com um simpatizante de Ben-Judá.
— E você viu Buck na igreja com Ben-Judá?
— Eu não disse isso. Disse que vi Ben-Judá. Ele estava sentado ao lado daquela mulher que me hospedou, Loretta.
— Então Loretta está namorando Tsion Ben-Judá, é isso o que você está dizendo?
— Você sabe o que estou dizendo, Chloe. Ben-Judá chegou a falar naquele culto. Se não era ele, também não sou jornalista.
— Sem comentários — disse Buck.
— Você está me ofendendo! Chloe continuou a pressioná-la.
— Você estava sentada em algum lugar onde não podíamos vê-la...
— Eu estava na galeria, se você quer saber.
— E da galeria você conseguiu ver um homem sentado nos fundos da igreja ao lado de Loretta?
— Eu não disse isso. Deduzi que ele estava sentado ao lado dela. Ambos falaram e o som de suas vozes parece ter vindo do mesmo lugar.
— Então Ben-Judá foge de Israel, aparentemente com a ajuda de Buck. Buck é tão esperto a ponto de deixar seus documentos com um inimigo do Estado. Quando Buck leva Ben-Judá a salvo para os Estados Unidos, permite que ele apareça em público em sua própria igreja e depois Ben-Judá se levanta e fala diante de centenas de pessoas. É isso o que você acha? Verna estava espumando de raiva.
— Bem, ele, bem, se não era Ben-Judá, então quem era?
— A história é sua, Verna.
— Loretta vai me contar a verdade. Acho que ela gostou de mim. Tenho certeza de que o vi saindo da igreja com ela. Ele não é um israelense de pequena estatura e robusto?
— Como você pode saber disso se ele estava nos fundos da igreja?
— Vou ligar para Loretta neste instante. — Ela estendeu o braço para pegar o telefone. — Acho que vocês não vão me fornecer o número dela.
Buck perguntou a si mesmo se essa seria uma boa ideia. Eles não tinham combinado nada com Loretta. Porém, após o incidente no escritório da igreja com Rayford, ele acreditava que Loretta saberia como lidar com Verna.
— Claro que sim — ele disse, rabiscando o número. Verna pegou o fone e discou.
— Casa de Loretta, Rayford Steele falando. Aparentemente, Verna não esperava por isso.
— Oh, hã, sim. Loretta por favor.
— Posso saber quem...
— Verna Zee.
Loretta pegou o telefone e disse em sua maneira típica e charmosa.
— Verna, querida! Como vai? Ouvi dizer que você assistiu ao culto hoje, mas não a vi. Você não achou tudo muito comovente?
— Conversaremos sobre isso outra hora, Loretta. Eu só queria ...
— Acho que o momento mais propício é agora, querida. Você não gostaria de encontrar-se comigo em algum lugar ou vir até aqui?
Verna parecia irritada.
— Não, agora não. Um outro dia, talvez. Eu só queria fazer-lhe uma pergunta. Quem era aquele homem que estava com você na igreja hoje de manhã?
— Aquele homem?
— Sim! Você estava ao lado de um homem com traços de uma pessoa do Oriente Médio. Ele proferiu algumas palavras. Quem era ele?
— Isso é importante?
— Não! Só estou perguntando.
— Essa é uma pergunta pessoal, indelicada.
— Então você não vai me responder?
— Acho que não é da sua conta.
— E se eu disser que Buck e Chloe afirmaram que você me responderia?
— Em primeiro lugar, eu diria que você é uma mentirosa. Mas isso seria mais indelicado que sua pergunta.
— Só me diga se era o rabino Tsion Ben-Judá, de Israel!
— Você já sabe até o nome dele. O que mais você quer de mim?
— Então, era ele?
— Foi você que disse. Não eu.
— Mas era?
— Você quer mesmo saber a verdade, Verna? Aquele homem é meu amante secreto. Eu o escondo debaixo da cama.
— O quê? O quê? Então...
— Verna, se você quiser falar sobre o quanto ficou emocionada por causa do culto desta manhã, eu adoraria conversar um pouco mais. Você quer falar sobre o culto?
Verna desligou o telefone.
— Tudo bem, quer dizer que vocês todos se uniram e decidiram não contar a verdade. Acho que não terei muitos problemas em convencer Steve Plank ou até mesmo Nicolae Carpathia que aparentemente você está acobertando Tsion Ben-Judá.
Chloe olhou para Buck e dirigiu-se a Verna.
— Então, você acha que Buck faria algo tão escancaradamente estúpido que poderia causar sua demissão ou até sua morte? E você vai usar a ameaça de divulgar esta notícia à alta cúpula da Comunidade Global em troca do quê?
Verna saiu da sala com arrogância. Buck olhou para Chloe, piscou e balançou a cabeça.
— Você é demais! — ele disse.
Verna voltou apressada e atirou os cheques de Buck sobre a mesa.
— Você sabe que seu tempo está curto, Buck.
— Para lhe dizer a verdade — disse Buck — acho que o tempo de todos nós está curto.
Verna sentou-se com ar de resignação.
— Vocês acreditam de verdade nessa história, não? Buck tentou mudar o tom de voz e falou com simpatia.
— Verna, você conversou com Loretta, com Amanda, com Chloe e comigo. Já lhe contamos nossas histórias. Hoje de manhã, você ouviu a história de Rayford. Se é verdade que somos todos malucos, então somos todos malucos. Mas será que você não ficou nem um pouco impressionada com as coisas que Bruce Barnes compilou da Bíblia? Coisas que agora estão se tornando realidade?
Verna permaneceu em silêncio por alguns instantes. Finalmente, resolveu falar.
— Foi mais ou menos estranho. Mais ou menos impressionante. Mas não é igual a Nostradamus? Será que essas profecias não podem ser interpretadas aleatoriamente? Será que não podem significar algo que alguém queira que signifique?
— Não entendo como você pode acreditar nisso — disse Chloe. — Você é muito inteligente. Bruce disse que se o tratado entre a Organização das Nações Unidas e Israel fosse o pacto a que a Bíblia se refere, ele daria início ao período dos sete anos de tribulação. Primeiro haveria os sete Julgamentos Selados. Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse seriam o cavalo da paz e por um período de 18 meses e, o cavalo da guerra, o cavalo das pragas e fome e o cavalo da morte.
— Isso tudo é simbólico, não? — perguntou Verna.
— Claro que é — respondeu Chloe. — Não vi nenhum cavaleiro. Mas vi um ano e meio de paz. Vi a Terceira Guerra Mundial estourar. Por causa dela, vi pragas e fome e sabemos que haverá mais. Vi muitas pessoas morrerem e muitas outras morrerão. O que mais é necessário para convencê-la? Você não pode ver o quinto Julgamento Selado, os santos martirizados debaixo do altar no céu. Mas você ouviu Rayford dizer o que virá proximamente, de acordo com Bruce?
— Um terremoto, sim, eu sei.
— Isso servirá para convencê-la?
Verna virou-se na cadeira e olhou através da janela.
— Suponho que seria muito difícil argumentar contra isso.
— Preciso dar-lhe um conselho — disse Chloe. — Se esse terremoto for tão devastador quanto a Bíblia menciona, talvez você não tenha tempo de mudar de ideia sobre tudo isso antes que seu tempo se esgote.
Verna levantou-se e caminhou lentamente até a porta. Abriu-a e disse suavemente:
— Continuo a não gostar da ideia de Buck fingir ser alguém que ele não é para Carpathia.
Buck e Chloe acompanharam-na até a porta da frente.
— Nossa vida particular, nossas crenças não têm nada a ver com os negócios do patrão — disse Buck. — Por exemplo, se eu soubesse que você é homossexual, não acharia necessário contar a seus superiores.
Verna virou-se para encará-lo.
— Quem lhe disse? O que você tem a ver com isto? Se você começar a espalhar eu ...
Buck levantou as duas mãos.
— Verna, sua vida pessoal é confidencial para mim. Não se preocupe porque não vou contar nada a ninguém.
— Não há nada para contar!
— Também acho.
Buck segurou a porta para Chloe passar. No -estacionamento, Verna disse:
— Então, estamos de acordo?
— De acordo? — Buck perguntou.
— Que nenhum de nós vai contar nada sobre a vida pessoal do outro?
Buck deu de ombros.
— Por mim, tudo bem.

_________________

O diretor da funerária estava falando ao telefone com Rayford.
— Em razão do grande número de mortes, da escassez de sepulturas, etc. etc, estamos calculando que o enterro só será daqui a três semanas ou até mesmo cinco semanas.Temos um local para guardar os corpos sem nenhuma despesa, uma vez que se trata de calamidade pública.
— Entendo. Gostaríamos muito que você nos avisasse assim que o corpo for enterrado. Não haverá mais nenhum culto e ninguém estará presente.
Loretta estava sentada diante da mesa na sala de jantar, ao lado de Rayford.
— Isso é triste demais — ela disse. — Você tem certeza de que nenhum de nós deve estar presente?
— Nunca fui partidário de cultos à beira da sepultura — disse Rayford. — E acho que não há mais nada a dizer diante do corpo de Bruce.
— É verdade — ela disse. — Aquele corpo nem parecia ser o dele. Bruce não vai se sentir abandonado ou desprezado.
Rayford assentiu e pegou uma folha da pilha do material escrito por Bruce.
— Loretta, acho que Bruce gostaria que você lesse isto.
— O que é?
— Faz parte do diário dele. Algumas opiniões pessoais sobre você.
— Você tem certeza?
— Claro.
— Quero dizer, você tem certeza de que ele gostaria que eu lesse?
— De acordo com minha sensibilidade, sim — ele disse. — Se eu tivesse escrito algo semelhante, gostaria que você lesse, principalmente após a minha morte.
Com os dedos trémulos, Loretta ajeitou a folha de modo que pudesse lê-la com seus óculos bifocais.
— Obrigada, Rayford — ela disse, com a voz embargada pelas lágrimas. — Obrigada por permitir que eu lesse isto.

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Buck! Eu não fazia ideia de que Verna era homossexual! disse Chloe.

— Você não fazia ideia? Nem eu!
— Você está brincando!
— Não estou. Você não acha que aquela pequena revelação também foi obra de Deus?
— Penso que foi uma terrível coincidência, mas nunca se sabe. Aquele boato pode ter salvado sua vida.
— Você salvou minha vida, Chloe. Você foi brilhante.
— Apenas defendi o meu homem. Ela não sabia com quem estava se metendo.


DEZESSETE




Uma semana e meia depois, enquanto se preparava para voltar para a Nova Babilónia a fim de retomar seu trabalho, Rayford recebeu um telefonema de Leon Fortunato.
— Você tem alguma notícia da mulher do potentado?
— Mulher do potentado? — repetiu Rayford, tentando dar um tom de desagrado à voz.
— Você sabe de quem estou falando. Ela viajou no mesmo vôo que você. Onde ela está?
— Pensei que eu não fosse responsável por ela.
— Steele, é melhor você não reter informações sobre alguém que Carpathia está procurando saber onde está.
— Oh, ele quer saber onde ela está. Quer dizer então que ele não tem notícias dela?
— Você sabe que foi só por isso que eu liguei para você.
— Onde Carpathia acha que ela está?
— Não brinque comigo, Steele. Conte-me o que você sabe.
— Não sei exatamente onde ela está. E não tenho o direito de falar sobre seu paradeiro nem mesmo onde acho que ela está, sem autorização.
— É melhor você não esquecer quem é seu patrão, cara.
— Como posso esquecer?
— Então, você quer que eu dê a entender a Carpathia que você está protegendo a noiva dele?
— Se é com isso que você está preocupado, fique tranquilo. A última vez que vi Hattie Durham foi quando cheguei a Mitchell Field, em Milwaukee.
— E para onde ela foi?
— Na verdade, não sei se devo revelar o itinerário de Hattie a você. Pode ser que ela não queira.
— Você vai-se arrepender disto, Steele.
— Sabe de uma coisa, Leon? Não estou nem um pouco preocupado.
— Estamos supondo que ela viajou para visitar a família em Denver, onde a guerra não causou nenhum estrago. Não entendemos por que não estamos conseguindo completar as ligações para lá.
— Tenho certeza de que vocês possuem muitos meios para localizá-la. Prefiro não me intrometer nisso.
— Espero que sua situação financeira seja boa, capitão Steele.
Rayford não disse nada. Não queria prolongar uma discussão com Leon Fortunato.
— A propósito — prosseguiu Fortunato — houve uma pequena mudança de planos e você vai buscar o Supremo Pontífice Mathews em Roma.
— Estou ouvindo.
— Carpathia irá com você. Ele quer acompanhar Mathews na viagem a Nova Babilónia.
— E o que eu tenho a ver com isso?
— Eu só quero ter a certeza de que você não vai partir sem ele.

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Buck já havia recebido uma reprimenda de Steve Plank por telefone por ter permitido que seu documento de identidade e passaporte tivessem caído nas mãos erradas de alguém em Israel.
— Eles torturaram o tal de Shorosh o mais que puderam, e mesmo assim ele continuou jurando que você foi apenas um passageiro de seu barco.
— Era um barco de madeira enorme — disse Buck.
— Bem, o barco não existe mais.
— Qual foi o objetivo para destruir o barco de um homem e torturá-lo?
— E isso é importante para nós?
— Não sei, Steve. Estamos conversando como jornalistas, como amigos ou estou recebendo um alerta de um colega?
Steve mudou de assunto.
— Carpathia continua gostando dos artigos que você está enviando de Chicago. Ele acha que o Semanário Comunidade Global é o que há de melhor no mundo em matéria de revistas. Claro, sempre foi.
— Sim, sim. Se esquecermos a objetividade e a credibilidade jornalística ...
— Já esquecemos disto há muitos anos — disse Plank. — Mesmo antes de termos Carpathia como patrão tínhamos de proceder conforme nos mandavam.

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Buck ensinou Amanda, Chloe, Rayford e Tsion como aproveitar a velocidade de seus novos computadores laptop. Tsion estava usando seu telefone secreto para conversar com todos da casa de Loretta, que passou a ser conhecida como "casa secreta". Loretta chegou a dizer mais de uma vez:
— Parece que aquele homem mora na casa ao lado.
— Você está usando a tecnologia do celular — disse Buck.
Tsion necessitava receber visitas diárias de seus companheiros do Comando Tribulação para não perder o ânimo. Ele estava fascinado com a nova tecnologia e passava a maior parte do tempo acompanhando os noticiários. Sentia vontade de comunicar-se por e-mail com seus filhos espirituais ao redor do mundo; no entanto, temia que alguém os torturasse para saber de seu paradeiro. Pediu que Buck perguntasse a Donny como poderia comunicar-se com essas pessoas sem que elas sofressem por isso. A solução era simples. Ele poderia enviar suas mensagens para uma central de recados. Assim, ninguém saberia quem estava pegando os recados.
Tsion passava a maior parte do dia estudando o material de Bruce e formatando-o para ser publicado. Tinha sido fácil para Buck gravar o material em disquete para Tsion. Frequentemente Tsion carregava algumas partes em seu computador, fazia um resumo e o enviava a determinados membros do Comando Tribulação. Ele ficou muito impressionado com o que Bruce escrevera a respeito de Chloe e Amanda. Em seu diário, Bruce mencionou várias vezes seu sonho de que elas trabalhassem juntas, pesquisando, escrevendo e lecionando para grupos pequenos e congregações domésticas.
Todos haviam concordado que Amanda só retornaria a Nova Babilónia depois que Rayford voltasse de seu vôo a Roma. Com isso, ela teria mais alguns dias para passar com Chloe, planejando juntas um ministério de evangelização semelhante ao que Bruce idealizara. Elas não sabiam o que aconteceria nem que oportunidades teriam, mas gostavam de trabalhar juntas, porque assim podiam aprender mais.
Buck estava satisfeito por Verna Zee manter-se afastada.
Grande parte dos funcionários do escritório de Chicago estava agora trabalhando em várias cidades atingidas pelos bombardeios para noticiar a situação caótica em que elas se encontravam. Para Buck, não havia nenhuma dúvida de que o cavalo preto das pragas e fome e o cavalo amarelo da morte já estavam galopando logo atrás do cavalo vermelho da guerra.
Na noite de quarta-feira, Amanda levou Rayford de carro a Milwaukee para sua viagem de volta ao Iraque.
— Por que Mathews não usa seu próprio avião para visitar Carpathia? — ela perguntou.
— Você conhece Carpathia. Ele gosta de prevalecer e destacar-se por sua cortesia e generosidade. Além de mandar um avião para buscar a pessoa, ele também vai junto para acompanhá-la na viagem.
— O que ele deseja de Mathews?
— Quem sabe? Ele pode não querer nada. O número cada vez maior de convertidos deve estar sendo um problema para Mathews. Nós somos uma parte daqueles que não aceitam a ideia de uma religião mundial.

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Às seis horas da manhã de quinta-feira, a campainha do telefone despertou o pessoal da casa de Loretta. Chloe pegou a extensão. Colocando a mão no bocal, ela disse a Buck:
— Loretta atendeu. É Hattie.
Buck aproximou-se de Chloe para ouvir a conversa.
"Sim", Loretta estava dizendo, "você me acordou, querida, mas está tudo bem. O capitão Steele disse que você ligaria."
"Vou passar por Milwaukee na viagem de volta para Nova Babilónia e programei uma parada de seis horas lá. Diga ao pessoal daí que estarei em Mitchell Field, caso alguém queira conversar comigo. Não quero que eles se sintam obrigados a ir até lá e não ficarei ofendida se ninguém aparecer."
"Oh, eles irão, meu bem. Não se preocupe."

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O relógio marcava quinze horas em Bagdá (seis horas da manhã em Chicago) quando o avião comercial em que Rayford viajava pousou. Ele planejara permanecer a bordo por um pouco mais de meia hora à espera da curta viagem que o levaria até Nova Babilónia, mas ouviu o telefone celular tocando em seu bolso. Poderia ser uma ligação de Buck ou de Carpathia falando sobre Buck, o que poria um fim às dúvidas e suspeitas sobre o Comando Tribulação. Todos eles sabiam que em breve a posição ocupada por Buck estaria seriamente comprometida.
Rayford também teve um ligeiro pensamento de que a ligação poderia ser de Hattie Durham. Ele havia protelado ao máximo a viagem de volta na esperança de poder conversar com ela antes. Da mesma forma que Carpathia e Fortunato, ele também não conseguira completar a ligação para Denver.
Porém, o telefonema era de seu co-piloto, Mac McCullum.
— Desça desse avião, Steele, e estenda as pernas. Sua condução já chegou.
— Ei, Mac! Do que você está falando?
— Estou falando que o chefão não gosta de esperar. Encontre-se comigo no heliporto do outro lado do terminal. Vou levá-lo de helicóptero até o escritório central.
Rayford queria postergar ao máximo seu retomo a Nova Babilónia, mas pelo menos seria divertido viajar de helicóptero. Ele invejava a habilidade de McCullum em pilotar alternadamente um jumbo e um helicóptero. Rayford não pilotava um helicóptero desde seus tempos de militar, mais de vinte anos atrás.

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O Semanário Comunidade Global saía todas as quintas-feiras, estampando na capa a data da segunda-feira seguinte. Buck aguardava com ansiedade a publicação da edição daquele dia.
Durante uma reunião na casa de Loretta ficou decidido que Amanda e Chloe iriam de carro até Milwaukee buscar Hattie. Loretta retornaria do escritório da igreja mais cedo, com tempo de preparar um lanche para ela. Buck iria para o escritório do Semanário a fim de ver os primeiros exemplares da revista e voltaria para casa de Loretta assim que recebesse um telefonema de Chloe avisando que ela, Amanda e Hattie já haviam retornado do aeroporto.
Buck estava apreensivo quanto à sua reportagem de capa. No intuito costumeiro de manter um ponto de vista neutro, objetivo e jornalístico, ele iniciara a reportagem incluindo grande parte do material de Bruce que fora lido em seu funeral na manhã de domingo. A reportagem foi escrita por Buck, mas ele incumbiu os repórteres dos escritórios do Semanário Comunidade Global de vários países do mundo de entrevistarem os religiosos locais sobre as profecias do livro de Apocalipse.
Por um motivo ou outro, os repórteres — céticos em sua maioria —assumiram essa tarefa com satisfação. Buck recebeu informações do mundo inteiro por fax, e-mail, telefone, encomenda postal e correio. A pergunta que ele pediu que seus repórteres fizessem aos líderes religiosos do mundo inteiro e que também serviu como título de sua reportagem era: "Seremos atingidos pela 'ira do Cordeiro'?"
Buck gostara muito dessa tarefa que ele atribuíra a si mesmo, mais do que de todas as outras que já havia escrito, inclusive várias reportagens sobre o "Homem do Ano" e a de Chaim Rosenzweig.
Passara cerca de três dias e três noites quase sem dormir confrontando os materiais e comparando-os com várias outras reportagens. Evidentemente, Buck tinha condições de identificar seus colegas crentes com base em alguns comentários escritos por eles. Apesar do ceticismo e descrença da maioria dos repórteres, os pastores considerados santos da tribulação e alguns poucos judeus convertidos haviam citado que a "ira do Cordeiro" profetizada em Apocalipse 6 era certa e iminente. A grande maioria das citações partiu de religiosos que antes representavam diversas religiões e denominações, mas que agora trabalhavam para a Fé Mundial Enigma Babilónia. Todos os homens e mulheres chamados de "guias da fé" (ninguém mais tinha o título de reverendo, pastor ou padre) eram liderados pelo pontifex Maximus Peter Mathews. Em sua opinião, que havia sido repetida dezenas de vezes, o Livro de Apocalipse era uma "literatura bela, admirável e arcaica, devendo ser entendida como uma linguagem simbólica, figurada e metafórica".
Mathews dissera a Buck por telefone, com um leve sorriso na voz:
"Esse terremoto pode referir-se a qualquer coisa. Pode já ter acontecido. Talvez se refira a alguma coisa que alguém imaginou que estava se passando no céu. Quem sabe? Pode ser alguma história relacionada à antiga teoria de um homem eterno do céu que criou o mundo. Não conheço sua opinião, mas não vi nenhum cavaleiro apocalíptico. Não vi ninguém morrer por causa da religião que professava. Não vi ninguém ser 'morto por causa da palavra de Deus', conforme mencionam os versículos anteriores. Não vi ninguém com vestidura branca. E espero não ter de enfrentar nenhum terremoto. Independentemente de sua opinião sobre a pessoa ou o conceito de Deus, ou de um deus, hoje em dia seria muito difícil alguém imaginar que um ser espiritual supremo, cheio de bondade e de luz, submetesse o mundo inteiro e já tão sofrido em razão desta guerra devastadora e a uma calamidade como um terremoto."
"Mas", retrucara Buck, "o senhor não sabe que essa ideia de temer a 'ira do Cordeiro' é uma doutrina que continua sendo pregada em muitas igrejas?"
"Claro", respondera Mathews. "Mas essas são as igrejas remanescentes das facções da ala direita, as fanáticas e fundamentalistas, que sempre leram a Bíblia no sentido literal. Esses mesmos pregadores, e até muitos de seus seguidores, são aqueles que aceitam a história da criação — o mito de Adão e Eva, por exemplo — em seu sentido literal. Essa gente acredita que o mundo inteiro ficou debaixo d'água nos tempos de Noé e que apenas ele, seus três filhos, genros e noras sobreviveram para dar início à raça humana da qual fazemos parte."
"Mas o senhor, como católico, como ex-papa..."
"Além de ex-papa, Sr. Williams, também sou ex-católico. Como líder da fé da Comunidade Global, sinto a enorme responsabilidade de pôr de lado todas as armadilhas do provincianismo. No espírito da união, da conciliação e do ecumenismo, devo estar preparado para admitir que grande parte do pensamento e da mentalidade do catolicismo era tão rígida e tão bitolada quanto o que estou criticando aqui."
"Por exemplo?"
"Não me importo de ser muito específico, correndo o risco de ofender aqueles poucos que ainda se dizem católicos, mas a ideia de uma virgem dar à luz deve ser vista como uma incrível falta de lógica. A ideia de considerar a Santa Igreja Católica Romana como a única e verdadeira Igreja era tão perniciosa quanto a opinião dos protestantes evangélicos de que Jesus era o único caminho até Deus. Evidentemente, isso dá a entender que Jesus foi 'o único Filho do Pai', conforme muitos dos meus amigos admiradores da Bíblia gostam de dizer. Agora, estou certo de que a maioria das pessoas que sabem raciocinar entendem que Deus é, no máximo, um espírito, uma idéia. Se elas desejam atribuir a esse ser algumas características de pureza e bondade, a conclusão é que somos todos filhos e filhas de Deus."
Buck tentara conduzir a conversa.
"Então quer dizer que o céu e o inferno...?"
"Céu é um estado de espírito. Céu é o que podemos fazer de nossa vida aqui na terra. Acredito que estamos caminhando rumo a um estado utópico. Inferno? As mentes sensíveis estão sendo cada vez mais prejudicadas pela ideia totalmente mítica de que — bem, é melhor eu explicar de outra maneira: Digamos que aqueles fundamentalistas, aquela gente que acredita que estamos prestes a ser castigados com a 'ira do Cordeiro', estejam certos quando dizem que existe um Deus de amor que se preocupa com cada um de nós. O que isto vem a ser? Teria ele criado algo para depois destruir? Não faz nenhum sentido."
"Mas os cristãos convertidos, aqueles que o senhor está tentando qualificar, dizem que Deus não quer que ninguém pereça, não é mesmo? Em outras palavras, Deus não quer mandar ninguém para o inferno. O inferno é destinado àqueles que não crêem, mas a oportunidade de não perecer foi concedida a todos."
"O senhor resumiu bem a posição deles, Sr. Williams. Porém, como o senhor pode ver, isso não tem nenhum fundamento."
Naquela manhã, bem cedo, antes que o escritório fosse aberto, Buck pegou uma pilha de exemplares ainda amarrados da revista Semanário Comunidade Global que estavam na soleira da porta e levou-a para dentro. As secretárias distribuiriam a revista de mesa em mesa, mas ele rasgou o plástico de uma delas e colocou-a diante de si. A capa, que tinha sido ardilosamente desenhada no escritório central internacional, estava melhor do que Buck esperava. Abaixo do logotipo havia uma ilustração estilizada de uma imensa cadeia de montanhas partindo-se ao meio. Acima, via-se uma lua vermelha e a frase: "Você será Atingido pela Ira do Cordeiro?"
Buck folheou a revista até encontrar a extensa reportagem que estampava seu nome. Fiel como sempre ao seu modo característico de escrever, ele abrangera todos os pontos, incluindo citações de todos os tipos de líderes, desde Carpathia e Mathews até "guias da fé" do local. Havia também algumas citações esparsas de pessoas nas ruas.
Para Buck, a jogada de mestre estava em um texto em destaque na lateral de uma das páginas que continha um breve, porém convincente, estudo muito bem elaborado por nada mais nada menos que o rabino Tsion Ben-Judá. Ali, ele explicava quem era o Cordeiro sacrificado ao qual a Bíblia se referia e como essa figura retórica mencionada no Antigo Testamento havia sido consumada por Jesus Cristo no Novo Testamento.
Buck estava desconfiado por não ter sido repreendido por ninguém mais, a não ser seu velho amigo Steve Plank, a respeito de seu envolvimento, ainda não comprovado, na fuga de Tsion Ben-Judá. Com a inclusão do estudo de Tsion em destaque naquela reportagem, parecia que Buck estava esfregando no rosto de seus superiores que conhecia o paradeiro de Ben-Judá. Mas Buck contornara a situação.
Quando a reportagem foi enviada via satélite para as diversas gráficas que cuidavam da impressão da revista, ele incluiu uma nota dizendo que "o Dr. Ben-Judá tomou conhecimento desta reportagem pela Internet e submeteu suas opiniões por computador a partir de um local ignorado".
Buck também achou engraçado — se é que poderia haver alguma coisa engraçada neste assunto relativo ao universo — o fato de um de seus jovens e corajosos repórteres da África decidir entrevistar por conta própria os catedráticos de geologia de uma universidade de Zimbábue. A conclusão a que chegaram? "A ideia de um terremoto mundial é, aparentemente, ilógica. Os terremotos ocorrem pela fricção interna das placas da crosta terrestre. Trata-se de um fenómeno de causa e efeito. Pela lógica, os terremotos ocorrem em determinadas regiões e em determinadas épocas porque não estão acontecendo em outros lugares ao mesmo tempo. Essas placas movimentam-se e chocam-se umas contra as outras porque não têm mais espaço para se deslocar. Nunca se ouviu falar de terremotos simultâneos. Não é possível haver um na América do Norte e outro na América do Sul exatamente ao mesmo tempo. As probabilidades de ocorrer um fenómeno geológico abrangendo a terra inteira, o que significaria terremotos simultâneos ao redor de todo o globo terrestre, são ínfimas."

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McCullum pousou o helicóptero no teto do edifício da sede internacional da Comunidade Global em Nova Babilónia. Ajudou a colocar as malas de Rayford dentro do elevador que passava pela Suíte 216 de Carpathia, um andar inteiro de escritórios e salas de reuniões. Rayford nunca entendeu por que a suíte que levava o número 216 não ficava no segundo andar. Carpathia e seus assessores ocupavam o último andar do edifício de 18 andares.
Rayford esperava que Carpathia não soubesse a hora exata da chegada deles. Teria de ver o homem quando o levasse a Roma para buscar Mathews, mas naquele momento Rayford queria desfazer as malas, refrescar-se um pouco em seu apartamento antes de subir outra vez a bordo de um avião. Sentiu-se satisfeito por não terem encontrado ninguém no caminho. Faltavam cerca de duas horas para a partida.
— Vamos nos encontrar no 216, Mac — ele disse.

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Os telefones começaram a tocar no escritório do Semanário Global antes mesmo que alguém mais tivesse chegado. Buck manteve a secretária eletrônica ligada. Pouco depois, ele arrastou sua cadeira até a mesa da recepcionista para ouvir os comentários. Uma mulher disse: "Então, quer dizer que o Semanário Comunidade Global desceu ao nível dos tablóides, fazendo reportagens sobre os últimos contos de fada que surgem dessa tal igreja. Deixem esse lixo para a imprensa sensacionalista."
Outra disse: "Nunca imaginei que o povo ainda acreditasse nessas baboseiras. O fato de vocês reunirem tantas pessoas excêntricas em uma só reportagem é um tributo ao jornalismo investigativo. Obrigado por revelarem quem elas são e mostrarem o quanto são tolas."
Apenas algumas poucas ligações refletiram o mesmo pensamento de uma mulher da Flórida: "Por que ninguém me contou isso antes? Estou lendo o livro de Apocalipse desde o momento em que esta revista foi entregue em minha casa e estou muito assustada. E agora, o que devo fazer?"
Buck esperava que ela lesse a reportagem a fundo para descobrir qual era a única proteção contra um terremoto iminente, de acordo com as palavras de um judeu convertido da Noruega: "Ninguém deve supor que haverá abrigos. Se você crê, como eu, que Jesus Cristo é a única esperança de salvação, arrependa-se de seus pecados e aceite-o antes que a morte bata à sua porta." O telefone particular de Buck tocou. Era Verna.
— Buck, estou guardando seu segredo e espero que você também esteja cumprindo sua parte no acordo.
— Estou, mas o que deixou você tão agitada esta manhã?
— Sua reportagem, é claro. Eu sabia que ela seria publicada, mas não esperava que fosse tão evidente. Você acha que conseguiu se esconder por trás de sua objetividade? Não acha que a reportagem o expõe como alguém que está sugerindo alguma coisa?
— Não sei. Espero que não. Mesmo que Carpathia não fosse o dono desta revista, eu gostaria de ter a mesma objetividade.
— Você está se iludindo.
Buck procurou pensar em uma resposta. Por um lado, gostou do aviso. Por outro, isso não era novidade. Talvez Verna estivesse tentando encontrar um motivo de aproximação, um pretexto para reiniciar um diálogo.
— Verna, continuo insistindo para que você pense no que Loretta, Chloe e Amanda disseram.
— E você também. Não fique fora disso. — O tom de voz de Verna era de zombaria e sarcasmo.
— Estou falando sério, Verna. Se você quiser conversar sobre este assunto, estou às ordens.
— Você está brincando? Sei o que sua religião fala a respeito de homossexuais.
— Minha Bíblia não estabelece diferenças entre homossexuais e heterossexuais — disse Buck. — Ela chama os homossexuais de pecadores, mas também considera pecado a união heterossexual fora do casamento.
— Isso é apenas uma questão de semântica, Buck. Semântica.
— Peço que você se lembre do que eu disse, Verna. Não quero que nossos conflitos de personalidade interfiram naquilo que é real e verdadeiro. Você tinha razão quando disse que a eclosão da guerra fez com que nossas desavenças se tornassem insignificantes. Estou disposto a esquecer tudo isso.
Verna permaneceu em silêncio por alguns momentos. Em seguida, pareceu demonstrar interesse.
— Obrigada, Buck. Vou reter na memória o que você me falou.

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Enquanto a manhã terminava em Chicago, já estava anoitecendo no Iraque. Rayford e McCullum estavam levando Carpathia, Fortunato e o Dr. Kline de avião para Roma a fim de buscarem o Supremo Pontífice da Fé Mundial, Peter Mathews. Rayford sabia que Carpathia desejava abrir caminho para a união apóstata das religiões e transferi-las para Nova Babilónia, mas não tinha certeza do papel do Dr. Kline naquela reunião. Em sua escuta pelo intercomunicador clandestino, ele logo descobriu o motivo.
Como procedia rotineiramente, Rayford fez a decolagem, alcançou rapidamente a altitude de cruzeiro, ligou a aeronave no piloto automático e passou o comando para Mac McCullum.
— Parece que passei o dia inteiro dentro de um avião — ele disse. Em seguida, recostou-se em sua poltrona, cobriu os olhos com a aba do quepe e colocou os fones de ouvido, dando a entender que estava cochilando. Durante as quase duas horas que durou o vôo desde Nova Babilónia até Roma, Rayford assistiu a uma aula de diplomacia da nova ordem mundial. Antes de entrar no assunto da reunião, Carpathia perguntou a Fortunato quais eram os planos de vôo de Hattie Durham.
— Ela está fazendo uma viagem de várias etapas com uma parada longa em Milwaukee, seguindo depois para Boston. De lá, ela vai pegar um vôo sem escalas para Bagdá. A viagem por essa rota será mais demorada, mas acho que ela vai chegar amanhã cedo.
Carpathia parecia irritado.
— Quanto tempo ainda vai levar para aquele terminal da Nova Babilónia ficar pronto? Estou cansado de precisar passar todas as vezes por Bagdá.
— Disseram que ficará pronto daqui a dois meses.
— E quem está cuidando disso são os mesmos engenheiros que dizem que tudo em Nova Babilónia é supermodemo?
— Sim. O senhor notou algum problema?
— Não, mas chego quase a desejar que essa 'ira do Cordeiro' seja mais que um mito. Eu gostaria de pôr em prática o verdadeiro teste à prova de terremotos, dos quais essa gente tanto fala.
— Li a matéria hoje, disse o Dr. Kline. — Uma ficção bem interessante. Aquele Williams consegue escrever uma reportagem interessante sobre qualquer assunto, não?
— Sim — respondeu Carpathia em tom de voz sério. — Desconfio que ele escreveu uma história interessante de sua própria experiência.
— Não estou entendendo.
— Nem eu — disse Carpathia. — Nosso serviço secreto estabeleceu uma ligação dele com o desaparecimento do rabino Ben-Judá.
Rayford endireitou o corpo e passou a ouvir com mais atenção. Não queria que McCullum percebesse que ele estava ouvindo em uma frequência diferente, mas também não queria perder nenhuma palavra da conversa.
— A cada dia, estamos aprendendo coisas novas a respeito do nosso jovem e brilhante jornalista — disse Carpathia. — Ele nunca falou de sua ligação com meu piloto e o meu piloto também não. Não me importo que eles estejam me rodeando. Talvez eles pensem que têm uma proximidade estratégica comigo, mas também posso saber de muitas coisas sobre meus opositores por meio deles.
Então é isto, pensou Rayford. O desafio está lançado.
— Leon, quais são as últimas novidades a respeito daqueles dois malucos de Jerusalém?
Fortunato respondeu em tom de desagrado:
— Eles puseram a nação inteira de Israel em pé de guerra novamente. O senhor sabe que não chove lá desde que eles começaram a fazer toda aquela pregação. E estão novamente lançando mão daquele truque que fizeram com o fornecimento de água durante as cerimónias do templo — transformando a água em sangue.
— Desta vez, qual foi o motivo deles?
— Pensei que o senhor soubesse.
—Já lhe pedi para não usar meias palavras comigo, Leon. Quando lhe faço uma pergunta, quero...
— Perdoe-me, potentado. Eles estão chamando a atenção para a prisão e tortura das pessoas relacionadas com o Dr. Ben-Judá. Dizem que, enquanto aqueles suspeitos não forem libertados e a perseguição não for encerrada, todos os reservatórios de água serão poluídos com sangue.
— Como eles fazem isso?
— Ninguém sabe, mas é tudo verdadeiro, não, Dr. Kline?
— Oh, sim — ele respondeu. — Recebi algumas amostras. Existe um alto teor de água, mas a maior parte é composta de sangue.
— Sangue humano?
—Tem todas as características de sangue humano, embora seja difícil determinar o tipo. Parece uma mistura de sangue humano com sangue animal.
— Como está o ânimo do povo de Israel? — perguntou Carpathia.
— O povo está zangado com os dois pregadores. Quer matá-los.
— A ideia até que é boa — disse Carpathia. — Não podemos fazer isso?
— Ninguém se atreve. Já chega a mais de uma dúzia o número de pessoas que morreram por tentar atacá-los. Todo mundo já aprendeu a lição.
— Vamos descobrir um jeito — disse Carpathia. — Enquanto isso, libertem os suspeitos. Ben-Judá não tem con dições de ir muito longe. De qualquer forma, sem poder aparecer em público, ele não pode nos prejudicar. Se aqueles dois patifes não purificarem o fornecimento de água imediatamente, vamos ver se eles conseguirão resistir a uma explosão atómica.
— O senhor está falando sério? — perguntou o Dr. Kline.
— E por que não estaria?
— O senhor faria uma bomba atómica cair sobre o local sagrado da Cidade Santa?
— Francamente, não me preocupo com o Muro das Lamentações nem com a Colina do Templo nem com o novo templo. Aqueles dois estão me causando muitos problemas, portanto gravem estas minhas palavras: Chegará o dia em que eles vão me fazer passar dos limites.
— Seria conveniente conhecermos a opinião do pontífice Mathews a respeito disto.
— Já temos muita coisa na agenda para tratar com ele — disse Carpathia. — Na verdade, acho que ele também tem alguma coisa para tratar comigo, talvez algum assunto sigiloso.
Mais tarde, depois que alguém ligou a TV e os três passaram a assistir ao noticiário internacional sobre o trabalho para eliminar os efeitos da guerra, Carpathia voltou a atenção para o Dr. Kline.
— Conforme você sabe, os dez embaixadores votaram unanimemente a favor de um fundo para realizar abortos em mulheres dos países pobres. Tomei uma decisão para que isso seja unilateral. Todos os continentes sofreram com a guerra, portanto todos podem ser considerados pobres. Tenho a impressão de que Mathews não criará problemas quanto a isso, não da maneira como protestava no tempo em que era papa. No entanto, se ele for contra, você está preparado para discutir os benefícios a longo prazo?
— Claro.
— E em que ponto estamos quanto a tecnologia para determinar antecipadamente a saúde e a viabilidade de um feto?
— A amniocentese pode nos revelar tudo o que queremos saber. Seus benefícios são tão amplos que vale a pena qualquer risco que o procedimento possa causar.
— Leon — disse Carpathia — será que já podemos anunciar sanções exigindo amniocentese em todas as mulheres grávidas, acompanhada de um pedido de aborto para qualquer tecido fetal que possa resultar em um feto deformado ou deficiente?
— Já está tudo em ordem — disse Fortunato. — No entanto, acho que o senhor vai querer contar com uma boa base de apoio, a mais ampla possível, antes de tornar público este assunto.
— Claro. Este é um dos tópicos da reunião com Mathews.
— O senhor está otimista? — perguntou Fortunato.
— E não deveria estar? Será que Mathews não sabe que fui eu quem o colocou no lugar onde ele está hoje?
— Esta é uma pergunta que faço a mim mesmo o tempo todo, potentado. Com certeza, o senhor observou sua falta de consideração e respeito. Não gosto da maneira como ele o trata, como se fosse igual ao senhor.
— Por enquanto, ele pode me provocar o quanto quiser. Mathews vai ser muito importante em razão do que ele ainda vai enfrentar. Sei que ele está tendo dificuldades financeiras por não conseguir vender as igrejas excedentes. São construções que não servem para outra finalidade, portanto com certeza ele vai pedir mais dinheiro à Comunidade Global. Os embaixadores já estão aborrecidos com isso. Mesmo assim, por enquanto não me importo de ajudá-lo financeiramente. Talvez possamos fazer um acordo.


DEZOITO




Buck divertia-se com o fato de sua reportagem ser o assunto mais quente do dia. Foi comentada em todos os programas de entrevista, noticiários e até mesmo em shows de variedades. Um programa humorístico produziu um desenho animado de um cordeirinho fazendo desordem, cujo título era "Nossa Visão da 'Ira do Cordeiro'".
Olhando de relance a revista à sua frente, ocorreu-lhe de repente que, quando sua situação fosse conhecida, quando tivesse de se afastar do cargo, quando provavelmente se tornasse um fugitivo, seria impossível editar uma revista com a mesma tiragem daquela tão conceituada no mundo inteiro. Ele poderia ter uma grande audiência na TV e na Internet, mas duvidava que tivesse o mesmo prestígio.
Buck consultou seu relógio. Estava quase na hora de dirigir-se à casa secreta e almoçar com Hattie.

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Rayford e Mac McCullum tiveram um intervalo de uma hora entre a aterrissagem em Roma e a decolagem de volta para Nova Babilónia. Cruzaram com Peter Mathews e um de seus assessores que estavam subindo a bordo do avião. Rayford sentia-se aborrecido com a subserviência de Carpathia a Mathews. Ouviu o potentado dizer:
"Quanta gentileza de sua parte por permitir que viéssemos até aqui para buscá-lo, pontífice. Espero que possamos ter uma conversa significativa e útil para o bem da Comunidade Global."
Antes de distanciar-se, Rayford ouviu Mathews dizer a Carpathia:
"Se a conversa for útil para a Fé Mundial, não me importo se ela vai ser útil ou não para você."
Rayford encontrou uma desculpa para despistar McCullum e voltou apressado para o avião e entrou na cabina de comando. Desculpou-se com Fortunato dizendo que precisava "verificar algumas coisas" e voltou a sentar-se em sua poltrona. A porta estava trancada. O botão secreto estava ligado e Rayford estava escutando.

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Desde a noite do Arrebatamento Buck nunca vira Hattie Durham tão angustiada como naquele momento. Como a maioria dos homens, costumava vê-la apenas como uma mulher deslumbrante. Agora, a palavra mais gentil para retratá-la era desleixada. Ela portava uma bolsa enorme cheia de lenços de papel, e parecia ter usado todos. Loretta indicou-lhe a cadeira à cabeceira da mesa e, quando o almoço foi servido, todos sentiram um certo desconforto, tentando evitar o assunto do momento. Buck pediu:
— Amanda, você oraria por nós?
Hattie cruzou os dedos sob o queixo, como se fosse uma menina ajoelhada ao lado da cama. Amanda orou:
— Pai, em situações como esta, às vezes é difícil saber o que dizer. Às vezes nos sentimos infelizes. Às vezes estamos confusos. Às vezes não sabemos para onde ir. O mundo parece estar uma desordem total. No entanto, sabemos que podemos agradecer-te, pois és Deus. Somos gratos a ti, porque és um Deus bondoso. Porque cuidas de nós e nos amas. Somos-te gratos porque és soberano e porque o mundo está em tuas mãos. Somos-te gratos pelos amigos, principalmente por uma boa amiga como Hattie. Coloca palavras em nossa boca para que possamos ajudá-la na decisão que ela deve tomar, e obrigada por este alimento que nos proporcionas. Em nome de Jesus. Amém.
Comeram em silêncio. Buck percebeu que os olhos de Hattie estavam marejados de lágrimas. Apesar disso, ela comeu rapidamente e terminou antes de todos. Pegou outro lenço de papel e assoou o nariz.
— Bem — ela disse — Rayford insistiu que eu os visitasse no caminho de volta. Lamento muito não tê-lo encontrado aqui, mas acho que ele queria realmente que eu conversasse com vocês. Ou talvez quisesse que vocês conversassem comigo.
As mulheres pareciam tão atónitas quanto Buck. Então era isso? Eram eles que estavam com a palavra? O que deveriam fazer? Seria difícil ajudar aquela mulher se ela não abrisse o coração.
Loretta foi a primeira a falar.
— Hattie, o que a está atormentando mais neste momento? Essas palavras ou o modo como Loretta as proferiu fizeram Hattie romper em prantos.
— A verdade é que quero fazer um aborto — ela disse. — Minha família está me apoiando. Não sei o que Nicolae vai dizer, mas, se o nosso relacionamento não mudar quando eu voltar para lá, com certeza vou decidir pelo aborto.
Penso que estou aqui porque sei que vocês vão tentar me fazer desistir desta ideia e acho que preciso ouvir os prós e contras. Rayford já se manifestou contra o aborto. Não preciso ouvir isso novamente.
— O que você precisa ouvir? — perguntou Buck, adotando uma postura machista e insensível.
Chloe lançou-lhe um olhar dando a entender que ele não devia pressioná-la.
— Hattie — ela disse — você conhece nossa posição, e não é por isso que está aqui. Se você quiser que a gente a faça desistir da ideia do aborto, podemos tentar. Se você não quiser, nada do que dissermos vai adiantar.
Hattie parecia frustrada.
— Então, vocês acham que estou aqui para ouvir um sermão.
— Não vamos lhe fazer nenhum sermão — disse Amanda.
— Pelo que entendo, você já conhece a nossa posição sobre os assuntos de Deus.
— Sim, conheço — disse Hattie. — Lamento muito ter tomado o tempo de vocês. Acho que tenho de tomar uma decisão sobre esta gravidez e foi uma tolice de minha parte envolver vocês neste assunto.
— Não se sinta obrigada a sair daqui, querida — disse Loretta. — Esta casa é minha. Você é minha convidada e me ofenderia se partisse tão depressa.
Hattie olhou para Loretta para constatar se ela a estava provocando. Ficou claro que sim.
— Posso muito bem aguardar no aeroporto — disse Hattie.
— Sinto muito ter trazido este problema para vocês. Buck queria dizer alguma coisa mas sabia que não teria condições de interferir no assunto. Olhou para as mulheres, que tinham os olhos fixos na convidada. Finalmente, Chloe levantou-se, postou-se atrás da cadeira de Hattie, colocando-lhe as mãos nos ombros.
— Sempre gostei de você e a admirei — disse. — Penso que poderíamos ter sido amigas em outra situação. Mas acho que sei por que você veio aqui hoje. Sei por que você seguiu o conselho de meu pai, apesar de não ser essa a sua vontade. Alguma coisa me diz que sua visita a seus familiares não teve sucesso. Talvez eles tenham sido práticos demais. Talvez o conselho que lhe deram não foi acompanhado do carinho de que você necessitava. Talvez o conselho para interromper a gravidez não tenha sido aquele que você queria ouvir. Deixe-me dizer-lhe uma coisa, Hattie. Se você está precisando de amor, veio ao lugar certo. Sim, temos as nossas crenças. Acreditamos em coisas que você deveria conhecer. Coisas com as quais você deveria concordar. Decisões que talvez você devesse tomar. Temos idéias do que você deveria fazer quanto ao seu bebé e idéias do que você deveria fazer quanto à sua alma. Mas são decisões pessoais que só você pode tomar. E como são decisões que tratam de vida ou morte, de céu ou inferno, tudo o que podemos oferecer-lhe é apoio, incentivo, conselho e se você nos pedir amor.
— Ah, sim — disse Hattie — amor, desde que eu aceite as ideias de vocês.
— Não. Vamos amar a você em qualquer condição. Vamos amá-la da maneira como Deus a ama. Vamos amá-la de maneira tão intensa que você não vai ser capaz de fazer segredo desse amor. Não a amaremos menos, mesmo que sua decisão vá contra tudo o que acreditamos ser a verdade, e mesmo que venhamos a sofrer por causa da morte de um inocente, caso você decida abortar.
Hattie começou a chorar convulsivamente enquanto Chloe afagava-lhe as costas.
— Isso é impossível! Seja qual for a atitude que eu tomar, vocês não vão me amar, principalmente se eu desprezar seus conselhos!
— Você tem razão — disse Chloe. — Não somos capazes de amar incondicionalmente. É por isso que temos de fazer o amor de Deus chegar até você por nosso intermédio. Ele é o único que nos ama, sem se importar com o que fazemos. A Bíblia diz que ele enviou seu Filho para morrer por nós porque somos pecadores. Esse é o amor incondicional. É isso que podemos lhe oferecer, Hattie, porque é tudo o que temos.
Hattie levantou-se desajeitadamente, arrastando a cadeira para abraçar Chloe. Permaneceram abraçadas por um bom tempo, e, em seguida, o grupo inteiro passou para a outra sala. Hattie tentava sorrir.
— Pareço uma tola — ela disse — chorando como uma colegial.
As outras mulheres não protestaram. Não disseram que ela estava com uma ótima aparência. Simplesmente lançaram-lhe um olhar carinhoso. Por uns momentos, Buck desejou estar no lugar de Hattie para poder responder. Não sabia o que se passava no íntimo dela, mas com certeza a conversa o teria persuadido.

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— Permita-me ir direto ao assunto — disse Peter Mathews a Carpathia. — Se houver um jeito de nos ajudarmos mutuamente, quero saber o que você quer de mim, porque há algumas coisas que eu preciso de você.
— Por exemplo? — perguntou Carpathia.
— Sinceramente, preciso de anistia para a dívida que a Fé Mundial tem com sua administração. Talvez possamos resgatar parte dessa dívida algum dia, mas no momento não temos condições.

— Problemas para vender alguns templos excedentes? — indagou Carpathia.
— Oh, isso é apenas parte do problema, mas uma parte muito pequena. Nosso verdadeiro problema está relacionado com dois grupos religiosos que, além de se recusarem a passar para o nosso lado, são antagonistas e intolerantes. Você sabe de quem estou falando. O problema com um dos grupos foi o acordo que você firmou entre a Comunidade Global e Israel. Os judeus não precisam de nós, não têm motivos para juntar-se a nós. Eles ainda acreditam no único e verdadeiro Deus e no Messias que deve aparecer no céu brevemente. Não sei o que você pretende fazer quando o contrato se encerrar, mas com certeza eu poderia usar alguma munição contra eles.
— O outro é esse bando de cristãos que se dizem santos da tribulação. São aqueles que pensam que o Messias já veio e arrebatou sua Igreja e eles foram deixados para trás. Imagino que se tiverem razão, estão zombando deles mesmos por pensarem que terão uma nova oportunidade, mas você sabe tanto quanto eu que eles estão crescendo em número assustador. O mais estranho de tudo é que uma grande parte dos convertidos é composta de judeus. Eles deram ouvidos àqueles dois malucos do Muro das Lamentações que andam dizendo a todo mundo que os judeus estão quase salvos porque acreditam no único e verdadeiro Deus, mas que Jesus é seu Filho, que ele voltou e que está voltando novamente.
— Peter, meu amigo, essa doutrina não devia ser estranha para você, um ex-católico.
— Eu não disse que era estranha para mim. Só que nunca me dei conta da profunda intolerância que os católicos tinham e que esses tais santos da tribulação têm agora.
— Você também notou intolerância?
— E quem não notou? Essa gente entende a Bíblia no sentido literal. Você já viu o alarde que eles fazem e ouviu seus pregadores falando em grandes concentrações. Há dezenas de milhares de judeus acatando essa ideia. A intolerância deles me faz mal.
— Como assim?
— Você sabe. O segredo de nosso sucesso, o enigma da Fé Mundial, é que simplesmente derrubamos as barreiras que antigamente nos dividiam. Qualquer religião que acredita existir um único caminho até Deus é, por definição, intolerante. Seus adeptos tornam-se inimigos da Fé Mundial e, por consequência, da Comunidade Global como um todo. Nossos inimigos são seus inimigos. Temos de fazer alguma coisa.
— O que sugere?
— Eu pretendia fazer esta mesma pergunta a você, Nicolae. Rayford imaginou Nicolae estremecendo ao ouvir Mathews chamá-lo pelo primeiro nome.
— Quer você acredite ou não, meu amigo, tenho pensado muito nesse assunto.
— Tem pensado?
— Tenho. Como você diz, seus inimigos são meus inimigos. Aqueles dois do Muro das Lamentações, aqueles que os tais santos chamam de testemunhas, não param de criar problemas para mim e para minha administração. Não sei de onde vieram ou o que pretendem, mas eles têm aterrorizado o povo de Jerusalém e mais de uma vez já me fizeram passar por uma pessoa má. Esse grupo de fundamentalistas, aqueles que estão convertendo tantos judeus, acham que os dois são heróis.
— E então, a que conclusão você chegou?
— Francamente, tenho pensado em criar mais leis. A sabedoria convencional diz que não podemos legislar sobre o ânimo do povo. Não acredito nisso. Admito que meus sonhos e objetivos são grandiosos, mas não vou intimidar-me. Antevejo uma comunidade global gozando verdadeira paz e harmonia, uma utopia na qual o povo vive unido para o bem de todos. Quando houve aquela ameaça de rebelião da parte de três de nossas dez regiões, eu revidei imediatamente. Apesar de minha franca posição contra a guerra, tomei uma decisão estratégica. Agora estou legislando sobre o ânimo. As pessoas que quiserem viver unidas e em paz me considerarão generoso e conciliatório. Aquelas que quiserem causar problemas, desaparecerão. Só isso.
— O que você está dizendo, Nicolae? Vai declarar guerra aos fundamentalistas?
— Em certo sentido, vou. Não faremos isso com tanques e bombas. Mas acredito que é chegada a hora de estabelecer regras para a nova Comunidade Global. Como isso parece que vai trazer benefícios tanto a você como a mim, eu gostaria de obter sua cooperação para formar e dirigir uma organização de legisladores de elite — composta só de gente de ideais puros.
— Como você define "ideais puros"?
— Antevejo um grupo de homens e mulheres — jovens, fortes e saudáveis — tão devotados à causa da Comunidade Global que estarão dispostos a receber treinamento e esforçar-se até chegarem ao ponto de ter a certeza de que todos concordam com nossos objetivos.
Rayford ouviu alguém levantar-se e andar de um lado para o outro. Imaginou que poderia ser Mathews, ruminando a ideia.
— Essas pessoas não usariam fardas, imagino eu.
— Não. Elas fariam parte do povo, mas seriam escolhidas com base em seu discernimento e experiência em psicologia. Elas nos manteriam informados sobre elementos subversivos que se opõem aos nossos pontos de vista. Com certeza você concorda que já passamos do tempo de tolerar que o subproduto extremamente negativo da liberdade de expressão corra solto por aí.
— Não só concordo, disse Mathews rapidamente — como também me coloco à disposição para ajudá-lo no que for possível. A Fé Mundial pode fazer a seleção dos candidatos? Treiná-los? Alojá-los? Fornecer-lhes roupas?
— Pensei que sua verba estivesse curta — disse Carpathia, rindo.
— Isso servirá para aumentar nossa verba. Quando eliminamos a oposição, todos se beneficiam.
Rayford ouviu Carpathia suspirar.
— Podemos chamá-los de MMCG, os Monitores do Moral da Comunidade Global.
— Esse título tem uma conotação muito branda, Nicolae.
— A ideia é exatamente esta. Não queremos chamá-los de polícia secreta, polícia de elite, polícia violenta ou de outra polícia qualquer. Grave o que estou dizendo. Eles serão um grupo secreto. Terão poderes. Serão capazes de anular uma causa justa se for para o bem da Comunidade Global.
— Até que limite?
— Não haverá limites.
— Eles portarão armas?
— Claro.
— E em que circunstâncias poderão usá-las?
— É aí que vem o melhor de tudo, pontífice Mathews. Se selecionarmos os jovens certos, se forem bem treinados tendo como ideal uma utopia pacífica e se lhes delegarmos poderes básicos para aplicarem a justiça como acharem conveniente, conseguiremos rapidamente subjugar o inimigo e eliminá-lo. A MMCG passará a ser desnecessária dentro de alguns anos.
— Nicolae, você é um génio.

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Buck estava desapontado. Quando chegou a hora de levar Hattie de volta para Milwaukee, ele achou que ainda faltavam algumas coisas para serem ditas. Ela estava com muitas dúvidas sobre o que aquelas mulheres faziam para preencher o tempo. Estava intrigada com a idéia dos estudos bíblicos. E mencionara ter sentido inveja de presenciar uma amizade sincera entre pessoas do mesmo sexo que pareciam preocupar-se de verdade umas com as outras.
Mas Buck esperava que a conversa tivesse sido proveitosa. Talvez Hattie prometesse não fazer o aborto, não se desesperar e converter-se. Tentou afastar da mente a idéia de que Chloe pudesse estar imaginando que eles dois teriam condições de criar o bebé indesejado de Hattie. Ele e Chloe estavam perto de tomar uma decisão se deveriam ou não trazer um bebé ao mundo nesse período crítico da história da humanidade, mas não lhe passava pela cabeça criar o filho do anticristo.
Hattie agradeceu a cada um e subiu no Range Rover com as mulheres. Buck deu a entender que pegaria um dos outros carros para voltar ao escritório do Semanário Comunidade Global, mas dirigiu-se à igreja. Parou no caminho a fim de comprar um lanche para seu amigo, e, após alguns minutos, já tinha atravessado o labirinto até o local secreto, o estúdio particular do rabino Tsion Ben-Judá.
Todas as vezes que entrava sorrateiramente naquele lugar, Buck pensava na sensação de claustrofobia, solidão, medo e sofrimento que devia estar tomando conta de seu amigo. No entanto, era Buck quem mais se beneficiava dessas visitas, sem sombra de dúvida. Tsion dificilmente mostrava-se alegre. Quase não ria e não recebia o amigo com um largo sorriso de satisfação. Tinha os olhos vermelhos e o rosto marcado pela perda recente de sua família. Mas ele também estava cuidando da forma física. Praticava exercícios, corria sem sair do lugar, pulava obstáculos, fazia alongamentos, etc. etc. Contou a Buck que fazia isso durante, no mínimo, uma hora por dia. A cada visita de Buck, o ânimo de Tsion parecia melhorar e ele nunca se queixava de nada. Naquela tarde, Tsion pareceu estar sinceramente satisfeito por receber uma visita.
— Cameron — ele disse — se eu não estivesse sentindo uma tristeza tão grande, certas partes deste esconderijo, até mesmo sua localização, seriam semelhantes a um paraíso. Posso ler, estudar, orar, escrever, comunicar-me por telefone e por computador. Este é o sonho de todo intelectual. Sinto falta do convívio de meus colegas, principalmente de meus jovens alunos que tanto me ajudaram. Mas Amanda e Chloe têm sido alunas maravilhosas.
Depois de comer seu lanche com voracidade, disse:
— Preciso falar um pouco sobre minha família. Espero que você não se importe.
— Tsion, você pode falar sobre sua família comigo sempre que desejar. Peço perdão por minha negligência em lhe fazer esse tipo de pergunta.
— Sei que você, como tantas outras pessoas, fica em dúvida se deve trazer à tona um assunto tão doloroso. Desde que a conversa não gire em torno da maneira como eles morreram, gosto muito de falar de minhas lembranças. Você sabe que criei os filhos do primeiro casamento de minha esposa como se fossem meus durante dois anos, o menino dos oito aos dez anos e a menina dos quatorze aos dezesseis. O marido dela morreu em um acidente na construção em que trabalhava. No início, as crianças não me aceitaram, mas eu as conquistei por causa de meu amor por ela. Não tentei tomar o lugar do pai das crianças nem tencionei controlá-las.
Chegou o dia em que elas começaram a me chamar de pai e esse foi um dos dias em que mais senti orgulho na vida.
— Parece que sua esposa era uma mulher maravilhosa.
— Ela era. As crianças também eram maravilhosas, apesar de minha família ser composta de seres humanos como qualquer outra. Eu não construía ideais para eles. Todos eram muito inteligentes. E isso era uma alegria para mim. Eu conversava com eles sobre assuntos profundos, complicados. Minha esposa foi professora de nível universitário antes de ter filhos. As crianças estudavam em escolas particulares e eram excelentes alunos. E o mais importante de tudo foi que, quando lhes contei o que estava aprendendo em minhas pesquisas, eles nunca me acusaram uma vez sequer de heresia ou de estar dando as costas para minha cultura, minha religião ou meu país. Eles eram inteligentes o suficiente para ver que eu estava descobrindo a verdade. Não preguei para eles, não tentei influenciá-los. Eu simplesmente lia as passagens em voz alta para eles e dizia: "O que vocês deduzem disto? O que o Tora está dizendo aqui sobre as qualificações do Messias?" Eu era tão adepto do método socrático que às vezes acredito que eles chegaram à minha conclusão antes de mim. Quando aconteceu o Arrebatamento, entendi imediatamente seu significado. De certa maneira, fiquei desapontado ao constatar que falhei com minha família, porque fomos todos deixados para trás. Se os três tivessem sido arrebatados, eu teria sofrido, mas também teria sido uma bênção para mim se um deles tivesse conhecido a verdade e tomado uma atitude antes que fosse tarde demais.
— Você me disse que todos se converteram pouco depois de você.
Tsion levantou-se e começou a andar de um lado para o outro.
— Cameron, não consigo entender como uma pessoa que conheça um pouco a Bíblia possa duvidar do significado dos desaparecimentos em massa. Rayford Steele, com seu conhecimento limitado, entendeu por causa do testemunho de sua esposa. Eu, acima de todas as outras pessoas, deveria ter entendido. E, mesmo assim, estamos ouvindo todas essas histórias sem sentido. O povo ainda está tentando encontrar uma explicação. Isso corta o meu coração.
Tsion mostrou a Buck o material no qual estava trabalhando. Já havia quase completado um livrete que ele esperava ser o primeiro de uma série baseada nos escritos de Bruce.
— Apesar de jovem, ele era um estudioso excepcionalmente conhecedor do assunto — disse Tsion. — Não falava tantas línguas como eu, portanto estou adicionando um pouco de meu conhecimento ao seu trabalho. Penso que isso dará um toque especial à obra acabada.
— Tenho certeza de que Bruce concordaria — disse Buck. Buck desejava tocar no assunto do novo pastor da igreja, pedir a ajuda de Tsion para encontrar um, mesmo que fosse uma possibilidade remota. Que maravilha ter Tsion como seu pastor! Mas isso estava fora de cogitação. De qualquer forma, Buck não queria interromper o importante trabalho de Tsion.
— Você sabe, Tsion, que talvez eu seja o primeiro a lhe fazer companhia aqui de forma permanente.
— Cameron, acho que você não conseguiria viver satisfeito dentro de um esconderijo.
— Eu enlouqueceria, não há dúvida quanto a isso. Mas estou ficando um pouco descuidado. Arriscando-me mais. Com certeza alguém vai me pegar.
— Você será capaz de fazer o que eu faço na Internet — disse Tsion. — Depois de aprender alguns truques, já estou me comunicando com centenas de pessoas. Imagine o que você poderia fazer com a verdade. Teria condições de escrever da maneira como está acostumado, com total objetividade e seriedade, sem sofrer influência do proprietário da revista.
— O que você quis dizer com "verdade"?
— Escrever a verdade, somente isto.
Buck sentou-se e começou a rabiscar um papel. Desenhou a capa de uma revista e deu-lhe o nome de "Verdade". Ele estava eufórico.
— Veja isto. Eu poderia elaborar o material gráfico, escrever o artigo e divulgá-lo pela Internet. De acordo com Donny Moore, ninguém descobriria de onde isso partiu.
Não quero forçá-lo a permanecer preso por livre e espontânea vontade — disse Ben-Judá — mas confesso que gostaria muito de ter companhia.


DEZENOVE




Rayford estava orgulhoso de Hattie Durham. Pelo que ele conseguira captar na Nova Babilónia, ela ludibriara novamente Nicolae Carpathia e seu capanga Leon Fortunato. Aparentemente, Hattie teria voado de Milwaukee a Boston, mas, em vez de pegar o vôo de conexão para Bagdá, fez uma parada em algum lugar.
Evidentemente, Rayford não tinha mais condições de ouvir a conversa durante as reuniões com Peter Mathews, que continuaram na sede dos escritórios da Nova Babilónia. Ele só sabia que o pessoal de lá, especialmente Nicolae e Leon, estava muito aborrecido por Hattie ter escapado outra vez de seu controle. Embora Nicolae tivesse demonstrado indiferença em relação a Hattie, a ausência de notícias sobre, seu paradeiro poderia criar uma situação realmente embaraçosa para ele.
Quando finalmente ficou sabendo que ela havia alterado o itinerário, Carpathia convocou Rayford para uma conversa particular. A nova equipe de secretárias estava a postos e trabalhando quando Rayford entrou na Suíte 216 e recebeu autorização para conversar com o potentado.
— É muito bom vê-lo novamente, capitão Steele. Não tenho tido a oportunidade de agradecer seus serviços como costumava fazer no tempo em que não havia tanta agitação por aqui.
— Permita-me ir direto ao assunto. Sei que a Srta. Durham já trabalhou para você. Na verdade, você chegou até nós por recomendação dela. Sei também que às vezes ela lhe fez confidências. Portanto, você não vai se surpreender se eu lhe contar que não estamos vivendo num mar de rosas, como costumam dizer por aí. Vou usar de franqueza. Acredito que a Srta. Durham sempre superestimou a importância de nosso relacionamento pessoal.
Rayford lembrou-se do dia em que Nicolae demonstrara orgulho ao anunciar que Hattie estava grávida e usando o anel que ele lhe dera. Porém, Rayford sabia muito bem que seria melhor não tentar pegar o mais mentiroso dos mentirosos em uma mentira.
Carpathia prosseguiu:
— A Srta. Durham devia ter entendido que na posição que ocupo não há espaço para uma situação particular que envolva um compromisso relacionado a casamento e família. Ela parecia estar satisfeita com a ideia de ter um filho, um filho meu. Portanto, não desencorajei essa ideia nem incentivei uma outra opção. Se ela decidir levar a gravidez até o fim, é claro que eu assumirei a responsabilidade que a lei determina. No entanto, não é justo que ela espere que eu dedique meu tempo a essa criança como faria um pai normal. Aconselhei-a a interromper a gravidez. Porém, como o nosso relacionamento chegou a este ponto por responsabilidade dela, vou deixar a decisão a cargo dela.
Rayford não conseguia esconder sua perplexidade. Por que Carpathia estava lhe contando isso? Qual a incumbência que recairia sobre ele?
Rayford não demorou muito para saber.
— Tenho necessidades como um homem qualquer, capitão Steele. Você entende. Eu nunca me dedicaria inteiramente a uma só mulher e com certeza não me dedicaria à Srta. Durham.
A verdade é que existe outra pessoa com quem tenho um relacionamento. Portanto, você pode entender meu dilema.
— Não tenho certeza se posso — disse Rayford.
— Bem, já substituí a Srta. Durham como minha assistente pessoal. Penso que ela está amargurada por isso e por ter deduzido que o nosso relacionamento se deteriorou. Eu não vejo por esse ângulo; vejo nós dois progredindo. Mas, conforme estou dizendo, ela deu mais importância ao nosso relacionamento do que eu, portanto deve estar mais aborrecida e desapontada com o desfecho.
— Eu preciso perguntar-lhe sobre o anel que o senhor deu a ela — disse Rayford.
— Oh, isso não é problema. Não vou querê-lo de volta. Na verdade, sempre achei que a pedra era muito grande para ser usada em um anel de noivado. É uma pedra decorativa. Ela não precisa preocupar-se em devolvê-lo.
Rayford estava começando a entender. Carpathia ia recorrer a ele, como velho amigo e chefe de Hattie, para dar-lhe a notícia. Por que outro motivo ele precisava de toda essa informação?
— Vou agir corretamente com a Srta. Durham, capitão Steele. Fique tranquilo. Não quero deixá-la desamparada. Sei que ela tem condições de conseguir um novo emprego, talvez não em função burocrática, mas com certeza no ramo da aviação.
— Que foi devastada pela guerra, conforme o senhor sabe — disse Rayford.
— Sim, mas com a experiência que ela tem e talvez com um pouco de pressão de minha parte...
—O senhor está querendo dizer uma espécie de indenização, remuneração temporária ou acordo?
O semblante de Carpathia iluminou-se.
— Sim, se isso facilitar a vida dela, ficarei contente em poder ajudá-la.
Eu devia imaginar que você ficaria, pensou Rayford.
— Capitão Steele, tenho uma incumbência para você...
— Eu estava imaginando isso.
— Claro que sim. Você é um homem inteligente. Soubemos que a Srta. Durham está retornando e deve chegar a Bagdá na segunda-feira em um vôo procedente de Boston.
Finalmente Rayford percebeu o motivo da demora de Hattie para retornar. Talvez ela soubesse quais eram os planos de Amanda. Talvez Amanda tivesse programado encontrar-se com ela em algum lugar e acompanhá-la na viagem de volta. Amanda teria um motivo oculto, é claro: manter Hattie afastada de uma clínica de abortos. Talvez desejasse continuar a demonstrar amor por ela. Rayford decidiu não dizer a Carpathia que iria de qualquer maneira ao aeroporto de Bagdá na segunda-feira para buscar sua esposa.
— Assumindo que você estará livre de qualquer compromisso, capitão Steele, e eu vou garantir que estará, gostaria que fosse buscar a Srta. Durham. Como seu velho amigo, você é a pessoa certa para dar-lhe a notícia. Os pertences dela foram deixados em um dos apartamentos do prédio em que você mora. Ela poderá ficar lá durante um mês antes de decidir para onde vai se mudar.
Rayford interrompeu.
— Desculpe-me, mas o senhor não está me pedindo para fazer algo que o senhor devia fazer?
— Oh, não me entenda mal, capitão Steele. Não estou com medo desse encontro. Seria muito desagradável para mim, confesso, mas reconheço minha responsabilidade. O problema é que estou com uma agenda tomada de reuniões importantes. Acabamos de estabelecer muitas normas e circulares legislativas por causa da recente rebelião e simplesmente não posso me afastar do escritório.
Rayford pensou que o encontro de Carpathia com Hattie Durham levaria menos tempo do que a conversa com ele naquele momento. Mas de que adiantaria discutir com um homem como aquele?
— Alguma pergunta, capitão Steele?
— Não. Está tudo muito claro para mim.
— Você fará isso então?
— Acho que não tenho escolha. Carpathia sorriu.
— Você tem senso de humor, capitão Steele. Eu não diria que seu emprego depende disso, mas gosto de saber que você foi um militar bem treinado para entender que, quando uma ordem é dada, é para ser cumprida. Quero que você saiba que gosto disso.
Rayford o encarou. Resolveu não responder com o obrigatório "às ordens". Assentiu com a cabeça e levantou-se.
— Capitão Steele, peço que permaneça sentado por mais alguns momentos.
Rayford voltou a sentar-se. E agora? Seria o início do fim?
— Eu gostaria de saber sobre seu relacionamento com Cameron Williams. — Rayford não disse nada. Carpathia prosseguiu. — Também conhecido como Buck Williams. Ele foi articulista sénior do Semanário Global, hoje Semanário Comunidade Global, onde trabalha como meu editor.
— Ele é meu genro — disse Rayford.
— E você imagina por que ele não contou essa notícia agradável para mim?
— Acho que o senhor deve fazer esta pergunta a ele.
— Bem, talvez eu deva perguntar a você. Por que você não me contou a novidade?
— Trata-se de um assunto de família — disse Rayford, tentando manter a calma. — De qualquer forma, uma vez que ele é um empregado seu de alto nível, pensei que em breve o senhor tomaria conhecimento do assunto.
— Ele professa a mesma religião que você?
— Prefiro não falar por Buck.
— Entendo essa resposta como um sim. — Rayford olhou firme para ele. Carpathia prosseguiu. — Não estou dizendo que isso seja necessariamente um problema, você compreende. — Compreendo muito bem, pensou Rayford. — Perguntei apenas por curiosidade — prosseguiu Carpathia, sorrindo para Rayford, que viu imediatamente naquele sorriso o que o anticristo queria dizer. — Ficarei aguardando um relatório sobre sua reunião com a Srta. Durham e tenho plena certeza de que você será bem-sucedido.

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Buck estava no escritório de Chicago do Semanário da Comunidade Global quando recebeu uma ligação de Amanda em seu telefone particular.
— Recebi um telefonema muito estranho de Rayford — ela disse. — Ele me perguntou se eu tinha combinado com Hattie viajar com ela de Boston a Bagdá. Respondi que não. Pensei que ela já havia chegado lá. Ele imaginou que ela tivesse reprogramado seu itinerário e que chegaríamos mais ou menos no mesmo horário. Perguntei a Rayford o que estava acontecendo, mas ele parecia estar com pressa e sem condições de prolongar a conversa. Você sabe o que está havendo?

— Isso tudo é novidade para mim, Amanda. O seu avião também parou em Boston para reabastecer?
— Sim. Você sabe que Nova York está completamente destruída. E Washington também. Não sei se esses aviões têm condições de fazer um vôo direto de Milwaukee até Bagdá.
— O que teria feito Hattie demorar tanto para chegar lá?
— Não faço ideia. Se eu soubesse que ela ia retardar seu retorno, teria oferecido para viajarmos juntas. Precisamos manter contato com aquela moça.
Buck concordou.
— Chloe já está com saudade de você — ele disse. — Ela e Tsion estão trabalhando muito em alguns estudos do Novo Testamento. Apesar de estarem separados por uma distância de cerca de 500 metros, parece que trabalham na mesma sala.
— Sei que ela está gostando disso — disse Amanda. — Eu gostaria de convencer Rayford a me deixar retornar. Nós nos veríamos com menos frequência, mas eu também o vejo muito pouco em Nova Babilónia.
— Não se esqueça de que em qualquer lugar que você esteja, poderá estar naquela "mesma sala" com Tsion e Chloe.
— Ah, sim — ela disse — só que estamos nove horas atrás de vocês.
— Basta vocês coordenarem seus horários. Onde você está neste momento?
— Estamos sobrevoando o continente. Deveremos aterrissar dentro de uma hora ou pouco mais. Imagino que seu relógio esteja marcando um pouco mais de oito horas da manhã, é isso?
— Correto. O Comando Tribulação está prestes a estender seu trabalho e não vai demorar muito. Tsion parece estar produzindo bastante e satisfeito, até feliz mesmo. Chloe está na casa de Loretta e empolgada com seu estudo e com as oportunidades de transmitir os ensinos bíblicos, embora saiba que talvez não vá ter permissão legal para fazer isso. Eu estou aqui. Você está aí e se encontrará com Rayford mais cedo do que imagina. Acho que estamos todos presentes e cumprindo nossos deveres.
— Espero que Rayford esteja certo quanto a Hattie — disse Amanda. — Será mais cómodo para ele buscar nós duas no mesmo horário.

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Já havia chegado a hora de Rayford seguir para Bagdá. Ele estava confuso. Por que Hattie permanecera incomunicável em Denver por tanto tempo e por que confundira Fortunato sobre seu retorno se havia restabelecido contato? Se seu plano não era o de viajar na companhia de Amanda, então qual seria? O que teria prendido seu interesse em Boston?
Rayford estava ansioso por ver Amanda. Estavam afastados havia poucos dias, mas, afinal de contas, eles ainda eram recém-casados. Ele não estava satisfeito com a incumbência de buscar Hattie, principalmente se Amanda chegasse no mesmo horário. No entanto, havia uma justificativa baseada no que ele soubera do encontro de Hattie com Loretta, Chloe e Amanda na casa secreta. Hattie se sentiria confortada com a presença de Amanda.
A dúvida de Rayford era a seguinte: será que a notícia que ele daria a Hattie seria desagradável para ela? Depois disso, talvez ela aceitasse o futuro com mais facilidade. Ela sabia que tudo estava terminado. Temia que Carpathia não a deixasse ir embora. Evidentemente, ela se sentiria ofendida, insultada. Talvez ela não quisesse ficar com o anel, o dinheiro e o apartamento que lhe dera. Mas, pelo menos, saberia a verdade. Rayford, como homem, considerava isso uma solução prática. Contudo, ao longo dos anos de convivência com Irene e Amanda, ele aprendera que, apesar da atração de Hattie por Carpathia ter diminuído de intensidade, ela se sentiria magoada e rejeitada. Rayford ligou para o motorista de Hattie.
— Você poderia me conduzir ou emprestar seu carro? Vou pegar a Srta. Durham em Bagdá e também minha...
— Oh, sinto muito, senhor. Não sou mais motorista da Srta. Durham. Agora sou motorista de uma pessoa da suíte executiva.
— Você saberia me informar onde posso encontrar um carro?
— O senhor poderá tentar o setor de veículos, mas isso é um pouco demorado. Muita papelada, o senhor sabe.
— Não tenho tempo para isso. Você tem uma outra sugestão? — Rayford estava zangado consigo mesmo por não ter planejado melhor.
— Se o potentado ligar para o setor de veículos motorizados, o senhor conseguirá um carro rapidamente.
Rayford ligou para o escritório de Carpathia. A secretária disse que ele estava ocupado.
— Ele está aí? — perguntou Rayford.
— Sim, senhor, mas como eu lhe disse, está ocupado.
— Trata-se de uma emergência. Mesmo que ele esteja incomunicável, gostaria que você me permitisse conversar com ele só por um minuto.
Ao entrar na linha novamente, a secretária disse:
— O potentado pede que o senhor passe pelo escritório dele por alguns momentos antes de realizar a tarefa que ele lhe designou.
— Estou com pouco tempo, mas...
— Vou dizer a ele que o senhor virá para cá.
Rayford estava a três quarteirões do edifício de Carpathia. Desceu apressado pelo elevador e correu em direção ao escritório central. De repente, ocorreu-lhe um pensamento e ele pegou seu telefone. Enquanto corria, ligou para McCullum.
— Mac? Você está livre neste momento? Ótimo! Preciso que você me leve de helicóptero até Bagdá. Minha esposa está chegando, e também fui incumbido de buscar Hattie Durham. Notícias dela? Não tenho autorização para dizer nada, Mac. Estarei no escritório de Carpathia em poucos minutos. Devo encontrar você no heliporto? Ótimo! Obrigado!

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Buck estava trabalhando em seu laptop com a porta da sala fechada quando a máquina assinalou a chegada de um e-mail de resposta simultânea. Ele gostava desse sistema, que era semelhante a um bate-papo com apenas uma pessoa. A mensagem era de Tsion. Ele perguntava: "Será que podemos tentar conversar por meio do monitor?"
Buck digitou: "Claro." Em seguida, digitou o código. Passaram-se alguns minutos até o programa ser processado, e, de repente, a imagem de Tsion apareceu trémula na tela. Buck digitou: "É você ou estou olhando no espelho?"
Tsion respondeu: "Sou eu. Podemos usar o áudio e conversar, se você estiver em local seguro."
"É melhor não", digitou Buck. "Você precisa de alguma coisa específica?"
"Eu gostaria de ter companhia para o desjejum", digitou Tsion. "Estou muito melhor hoje, mas também estou sentindo um pouco de claustrofobia aqui. Sei que você não pode me tirar daqui, mas será que teria condições de vir sem que Loretta desconfie?"
"Vou tentar. O que você gostaria de comer no desjejum?"
"Preparei alguma coisa parecida com comida americana para você, Buck. Vou virar a tela para que ela possa captar a imagem."
A máquina não estava programada para captar uma imagem panorâmica no escuro, dentro de um abrigo subterrâneo. Buck digitou: "Não consigo enxergar nada, mas confio em você. Estarei aí assim que puder."
Buck avisou a recepcionista que se ausentaria do escritório por cerca de duas horas. Enquanto caminhava em direção ao Range Rover, foi abordado por Verna Zee.
— Aonde você vai? — ela perguntou.
— Como assim?
— Quero saber aonde você vai.
— Não sei ao certo aonde vou — ele disse. — A recepcionista sabe que estarei ausente do escritório por cerca de duas horas. Não me sinto na obrigação de fornecer detalhes.
Verna meneou a cabeça.

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Ao chegar na entrada principal do escritório central da Comunidade Global, Rayford diminuiu o ritmo dos passos. O conjunto de edifícios tinha sido construído em uma região estranha, cercada de residências. Alguma coisa chamou a atenção de Rayford. Ruídos produzidos por animais. Latidos. Ele sabia da existência de cães na área. Muitos funcionários possuíam cães de raça e gostavam de levá-los para passear presos por correntes. Essa gente era o exemplo da prosperidade. De vez em quando, Rayford ouvia um ou dois latidos de cães. Mas agora todos estavam latindo. O barulho era tão grande que ele se virou para ver se conseguia descobrir o que os deixava agitados. Avistou dois cães soltarem-se de seus donos e correrem uivando. Ele deu de ombros e entrou no edifício.

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Buck pensou em passar pela casa de Loretta e pegar Chloe. Teria de inventar uma história para contar a Loretta, que estava no escritório da igreja. Ele não conseguiria estacionar nem entrar na igreja sem ser visto por ela. Talvez fosse conveniente ele e Chloe passarem um pouco de tempo com ela e depois fingirem que estavam saindo da igreja pelos fundos. Se ninguém estivesse observando, poderiam entrar furtivamente no abrigo e ver Tsion. Parecia um plano. Buck estava a meio caminho de Monte Prospect quando percebeu algo estranho. Animais na pista. Em grande quantidade. E outros tantos tentando atravessar as ruas. Esquilos, coelhos, serpentes. Serpentes? Ele vira algumas serpentes no meio-oeste, principalmente no extremo norte. Serpentes não-venenosas. Então era isso, mas por que tantas assim? Guaxinins, gambás, patos, gansos, cães, gatos, animais por toda parte. Buck abaixou o vidro do Range Rover e prestou atenção. Bandos enormes de pássaros voavam de uma árvore para outra. Mas o céu estava brilhante. Sem nuvens. Parecia não haver nenhuma brisa. Nenhuma folha balançava nas árvores. Buck parou no semáforo e percebeu que, apesar de não ventar, as luzes da rua estavam balançando. As placas de sinalização moviam-se para a frente e para trás. Buck passou pelo semáforo e acelerou rumo a Monte Prospect.

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Rayford foi conduzido ao escritório de Carpathia. O potentado estava reunido com várias personalidades importantes ao redor de uma mesa. Imediatamente ele chamou Rayford de lado.
— Obrigado por ter vindo até aqui, capitão Steele. Eu só queria reiterar meu desejo de não ter de ficar frente a frente com a Srta. Durham. Talvez ela queira conversar comigo. Isso está fora de cogitação. Eu...
— Com licença, senhor, potentado — interrompeu Leon Fortunato — nossos medidores de energia elétrica estão apresentando números estranhos.
— Seus medidores de energia elétrica? — perguntou Carpathia, incrédulo. — Eu deixei a manutenção a cargo de você e de seu pessoal, Leon...
— Senhor! — disse a secretária. — Uma chamada de emergência do Instituto Sismográfico Internacional para o senhor ou para o Sr. Fortunato.
Carpathia parecia irritado, virou-se para Fortunato.
— Tome conta disso, por favor, Leon. Estou muito ocupado.
Fortunato atendeu a ligação, aparentemente não querendo dizer nada, mas de repente deixou escapar:
— O quê? O quê?!
Agora Carpathia estava zangado.
— Leon!
Rayford afastou-se de Carpathia e olhou pela janela. Lá embaixo, os cães corriam em círculos, com seus donos atrás deles. Rayford enfiou a mão no bolso para pegar seu telefone celular e ligou rapidamente para McCullum. Carpathia olhou firme para ele.
— Capitão Steele! Eu estava falando com você aqui...
— Mac! Onde você está! Dê partida. Já estou indo para aí! De repente, as luzes apagaram-se. Somente as lâmpadas perto do teto, operadas por baterias, continuaram acesas e a luz forte do sol atravessou as vidraças. A secretária deu um grito. Fortunato virou-se para Carpathia tentando contar-lhe o que acabara de ouvir. Carpathia gritou na penumbra:
—Mantenham a ordem aqui, por favor!
Em seguida, como se alguém tivesse apertado um botão, o dia tornou-se negro. Agora, até mesmo os homens adultos gemiam e gritavam. As lâmpadas operadas por baterias iluminavam fracamente o edifício, que começou a tremer. Rayford correu em direção à porta. Ele percebeu que alguém corria atrás dele. Apertou o botão do elevador, mas em seguida constatou que não havia energia eletrica. Subiu correndo as escadas até o teto, onde McCullum já estava com as hélices do helicóptero funcionando.
O edifício movimentava-se debaixo dos pés de Rayford como se fosse uma onda. O helicóptero, pousado sobre sua base em formato de esquis, inclinou-se para a esquerda e depois para a direita. Rayford alcançou a porta do helicóptero e viu Mac com os olhos arregalados. Enquanto tentava subir, Rayford foi empurrado por trás, indo parar perto de Mac. Nicolae Carpathia estava subindo no helicóptero.
— Levante vôo! — ele gritou. — Levante vôo! McCullum elevou o helicóptero cerca de trinta centímetros.
— Há mais gente chegando! — ele gritou.
— Não cabe mais ninguém! — Carpathia berrou. — Levante vôo!
Enquanto duas jovens e vários homens de meia-idade agarravam-se ao helicóptero, Mac afastou-se do edifício. Quando o helicóptero derivou para a esquerda, suas luzes iluminaram o teto do edifício, onde havia outras pessoas gritando e chorando na porta de acesso ao heliporto. Rayford observou horrorizado quando o prédio inteiro de 18 andares, com centenas de funcionários dentro, desabou no solo fazendo um ruído ensurdecedor e uma nuvem de poeira. As pessoas que gritavam dependuradas no helicóptero despencaram, uma após outra.
Rayford encarou Carpathia. Pela luz fraca do painel, ele não viu nenhuma expressão. Carpathia simplesmente parecia ocupado amarrando o cinto de segurança. Rayford estava revoltado. Acabara de ver as pessoas morrendo. Carpathia ordenara a Mac que se livrasse das pessoas que poderiam ter sido salvas. Rayford sentiu vontade de esganar aquele homem.
Perguntando a si mesmo se não seria melhor ter morrido naquele edifício, Rayford meneou a cabeça e amarrou o cinto de segurança resolutamente.
— Bagdá! — ele gritou. — Aeroporto de Bagdá!

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Buck entendeu exatamente o que estava acontecendo e atravessou rapidamente os semáforos e os sinais de parada de trânsito, subindo em cima de calçadas, cortando carros e caminhões. Antes de tudo, queria pegar Chloe na casa de Loretta. Agarrou seu telefone, mas ainda não registrará os números para discagem automática, e não havia condição de dirigir tão rápido e discar um número inteiro ao mesmo tempo. Atirou o telefone no banco e continuou acelerando. Quando ele estava cruzando uma rua, o sol desapareceu. O dia tornou-se noite em um piscar de olhos e não havia energia eletrica na área toda. Todos os motoristas estavam acendendo os faróis, mas Buck avistou a fenda tarde demais. Ele estava acelerando o carro em direção a uma rachadura na estrada que acabara de abrir-se na sua frente. Parecia ter três metros de largura e três metros de profundidade. Ele imaginou que morreria se caísse ali dentro, mas não conseguiu parar em razão da velocidade. Deu uma guinada para a esquerda e o Range Rover rolou antes de mergulhar na cratera. O airbag do lado do passageiro desenrolou e murchou silenciosamente. Era chegada a hora de constatar a segurança daquele carro.
Acima dele, a rachadura estreitava-se. Não havia outra condição de sair dali a não ser tentando subir. Ele acionou os botões de tração em todas as rodas, engatou a primeira marcha, virou as rodas da frente ligeiramente para a esquerda e pisou fundo no acelerador. O pneu dianteiro esquerdo afundou na escarpa acentuada da fenda. Buck acelerou e o carro saiu da cratera quase na vertical. Um carro pequeno que vinha atrás dele caiu de frente na cratera e incendiou-se.
O chão começou a mover-se e abrir em vários lugares. Um imenso bloco da calçada levantou-se do solo a uma altura de mais de três metros e amontoou-se na rua.
O barulho era ensurdecedor. Buck não subira o vidro depois de ter avistado os animais e agora estava envolvido pelos estrondos provocados por colisões de carros. Os caminhões capotavam. Os postes, telefones públicos e casas desabavam.
Buck resolveu não acelerar muito. A velocidade o mataria. Ele precisava enxergar o que encontraria pela frente e descobrir um meio de prosseguir. O Range Rover dava solavancos e derrapava. Chegou a rodar em círculo. As pessoas que tinham sobrevivido até aquele momento estavam dirigindo freneticamente e os carros batiam uns nos outros.
Quanto tempo isso duraria? Buck estava desorientado. Olhou para a bússola no painel e tentou seguir para o oeste. Parecia que a rua estava ondulada por igual. O Range Rover subia e descia como se estivesse em uma montanha-russa, mas o grande tremor tinha apenas começado. Aquilo que a princípio parecia acentuadas ondulações sobre as quais o Range Rover poderia passar transformou-se rapidamente em um redemoinho de lama e asfalto, que engolia os carros.

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Horror não era uma palavra suficiente para descrever a cena. Rayford não conseguia falar com Carpathia nem com Mac. Eles estavam seguindo para o Aeroporto de Bagdá e Rayford não conseguia desviar os olhos da devastação lá embaixo. Incêndios irromperam por toda parte. O fogo iluminava as colisões de carros, os edifícios desabados, a terra se remexendo e rolando como se fosse um mar bravio. Seu olhar captou alguma coisa semelhante a uma gigantesca bola de fogo provocada por gasolina. Lá, dependurada no céu e tão próxima que parecia poder ser tocada, estava a lua. A lua vermelha como sangue.

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Buck não estava pensando em si mesmo. Estava pensando em Chloe. Estava pensando em Loretta. Estava pensando em Tsion. Será que Deus os fizera passar por tudo aquilo só para deixá-los perecer no grande terremoto, o sexto Julgamento Selado? Se todos eles fossem para o céu, tanto melhor. Seria muito pedir que seus entes queridos não sofressem? Se eles tivessem de partir, "Senhor, leva-os rapidamente", orou.
O terremoto prosseguia com seus estrondos, como se fosse um monstro devorando tudo o que havia pela frente. Buck encolheu-se horrorizado quando os faróis do Range Rover iluminaram uma casa enorme desaparecendo completamente embaixo da terra. A que distância ele estaria da casa de Loretta e de Chloe? Seria melhor tentar buscar Loretta e Tsion na igreja? Em breve, Buck não avistou mais nenhum veículo, nenhuma iluminação de rua, nenhum semáforo, nenhuma placa de trânsito. As casas estavam se esfarelando. Acima da estrada ele ouviu gritos, avistou pessoas correndo, tropeçando, caindo, rolando.
O Range Rover dava solavancos e balançava. Buck já não sabia contar quantas vezes batera com a cabeça no teto do carro. Uma tira de calçada enrolou-se e empurrou o Range Rover de lado. Buck pensou que o fim estava próximo, mas não queria esmorecer. Lá estava ele, espremido contra a lateral do veículo e preso com o cinto de segurança. Estendeu o braço tentando soltar o cinto para poder sair pela janela do passageiro. Antes de conseguir fazer isso, o Range Rover bateu em um monte de terra e quase ficou na posição vertical, mas conseguiu atravessá-lo. Vidros quebravam por toda parte. Paredes ruíam. Restaurantes desapareciam. Lojas de carro eram engolidas. Os prédios comerciais se inclinavam e desabavam lentamente. Buck avistou outra fenda na estrada que ele não podia evitar. Fechou os olhos e preparou-se para a queda, sentindo os pneus do Range Rover rolando sobre uma superfície acidentada, quebrando vidros e esmagando metais. Quando o Rover virou para a esquerda, Buck abriu rapidamente os olhos e viu que tinha passado por cima do teto de um outro carro. Ele mal sabia onde estava. Continuou a seguir para o oeste. Se ao menos pudesse chegar à igreja ou à casa de Loretta. Será que ele reconheceria esses locais? Será que alguma pessoa que ele conhecera ao redor do mundo ainda estaria viva para que ele pudesse orar por ela?

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Mac olhou de relance para a lua. Rayford percebeu que ele estava aterrorizado. Mac manobrou o helicóptero para que Nicolae pudesse vê-la também. Carpathia olhava para ela admirado. Seu rosto foi iluminado com um medonho brilho vermelho, e aquele homem nunca se pareceu tanto com o demónio.
Enormes soluços subiam da garganta e do peito de Rayford. Enquanto ele olhava a destruição e o caos lá embaixo, sabia que seria muito improvável encontrar Amanda. Senhor, recebe-a em teus braços sem que ela sofra, por favor!
E Hattie! Será que ela aceitou a Cristo antes disso? Teria havido alguém em Boston ou no avião que pudesse tê-la ajudado?
De repente, houve uma chuva de meteoros, como se o céu estivesse desabando. Rochas gigantescas em chamas riscavam o céu. Rayford vira o dia transformar-se em noite. Agora o dia clareara novamente por causa das chamas.

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Buck estava ofegante quando finalmente o Range Rover bateu em algo que o fez parar. A parte traseira caíra dentro de um pequeno buraco e os faróis apontavam para o alto. Segurando o volante com as duas mãos, Buck ficou reclinado no carro, olhando para cima. De repente, o céu se abriu. Monstruosas nuvens negras e roxas rolavam umas sobre as outras parecendo recobrir a própria escuridão da noite. Houve uma chuva de meteoros, que esmagavam tudo o que não tinha sido engolido pela terra. Um deles caiu perto da porta de Buck e era tão quente que derreteu o pára-brisa. Enquanto Buck tentava desatar o cinto de segurança e arrastar-se até a outra porta do carro, uma outra rocha de fogo explodiu atrás do Range Rover e o fez saltar para fora da vala. Buck foi atirado no banco traseiro e bateu a cabeça no teto. Estava atordoado, mas sabia que morreria se não saísse dali. Passou por cima de seu banco e sentou-se novamente ao volante. Prendeu o cinto de segurança, pensando na fragilidade daquela precaução diante do mais violento terremoto da história da humanidade.
A movimentação da terra parecia ter diminuído. Mas o terremoto não ia parar. Buck dirigia lentamente. Os faróis do Range Rover balançavam e pulavam. As lanternas laterais caíram e voaram pelos ares. Buck pensou ter reconhecido um local: um restaurante meio inclinado em uma esquina a três quarteirões da igreja. Buck sentia que precisava ir em frente. Dirigindo cuidadosamente, ele passou pelo meio da destruição e do caos. A terra continuava a mover-se e rolar, mas ele prosseguia. Através do pára-brisa destruído, ele conseguiu ver pessoas correndo e gritando, com feridas abertas no corpo que sangravam. Elas tentavam esconder-se debaixo das pedras que tinham sido expelidas pela terra. Usavam pedaços do asfalto e das calçadas para se proteger, mas assim mesmo eram esmagadas. Um homem de meia-idade, sem camisa, sem sapatos e sangrando, olhou para o céu através das lentes quebradas dos óculos e escancarou os braços. Ele gritava:
— Deus, me mata! Me mata!
Enquanto Buck passava sacolejando dentro do Range Rover, o homem foi engolido pela terra.

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Rayford perdera as esperanças. Uma parte dele desejava que o helicóptero caísse e se despedaçasse. A ironia de tudo era que ele sabia que Nicolae Carpathia só morreria dali a 21 meses. Depois, ele reviveria por mais três anos e meio.
Nenhum meteoro abateria o helicóptero. E em qualquer lugar que ele pousasse, seus passageiros estariam a salvo. Tudo porque Rayford se dispusera a fazer um favor para o anticristo.

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O coração de Buck comoveu-se quando ele avistou a torre da Igreja Nova Esperança. Faltavam menos de 600 metros para chegar lá, mas a terra ainda tremia, provocando colisões por todos os lados. Árvores imensas caíam e arrastavam os fios elétricos pela rua. Buck levou vários minutos passando por escombros e pilhas enormes de madeira, terra e cimento. Quanto mais ele se aproximava da igreja, mais aumentava a sensação de vazio em seu coração. A torre da igreja era a única coisa que estava em pé, com a base assentada no solo. Os faróis do Range Rover iluminaram os bancos da igreja, dispostos em fileiras tortas. Alguns deles estavam intactos. O restante do templo, as vigas em arco, os vitrais coloridos, tudo havia desaparecido. O prédio da administração, as salas de aula e os escritórios estavam no chão, formando um amontoado de tijolos, vidros e argamassa.
Via-se apenas um carro na cratera que se abrira no terreno do estacionamento. O fundo do carro estava assentado no chão, com os quatro pneus furados e os eixos das rodas quebrados. Projetando-se de baixo do carro havia duas pernas humanas desnudas. Buck parou o Range Rover a cerca de trinta metros do terreno do estacionamento. Deixou o câmbio no ponto morto e desligou o motor. A porta de seu lado não abria. Ele soltou o cinto de segurança e desceu pelo lado do passageiro. De repente, o terremoto cessou. O sol reapareceu na manhã clara e luminosa de uma segunda-feira em Monte Prospect, Illinois. Buck sentia cada osso de seu corpo. Cambaleando sobre o solo irregular, ele caminhou na direção do carro no terreno do estacionamento. Ao se aproximar, ele avistou um corpo esmagado sem um dos pés. O outro pé confirmou o que ele temia. Loretta tinha sido esmagada por seu próprio carro.
Buck tropeçou e caiu com o rosto na terra, sentindo alguma coisa cortar sua bochecha. Sem fazer caso disso, ele rastejou até o carro de Loretta e empurrou o carro com toda força, tentando tirar o corpo debaixo do carro. O veículo não se movia. Buck não queria de jeito nenhum deixar o corpo de Loretta ali. Mas para onde ele o levaria? Chorando, ele arrastou-se no meio dos escombros à procura de uma entrada para o abrigo subterrâneo. Após reconhecer algumas pequenas áreas do salão de confraternização, ele arrastou-se ao redor do que restara do templo desabado. O conduíte que ia até a torre estava rompido. Abrindo caminho sobre tijolos e pedaços de madeira, ele finalmente encontrou a abertura de ventilação. Com as mãos em formato de concha ao redor da boca, ele gritou dentro da abertura:
— Tsion! Tsion! Você está aí?
Em seguida, ele encostou a orelha na abertura, sentindo o ar fresco que vinha do abrigo.
— Estou aqui, Buck! Você está me ouvindo?
— Sim, Tsion! Você está bem?
— Estou bem! Não consigo abrir a porta!
— É melhor assim. Você não vai querer ver o que aconteceu aqui, Tsion! — gritou Buck, com a voz cada vez mais fraca.
— Como está Loretta?
— Ela morreu!
— Aconteceu o grande terremoto?
— Aconteceu!
— Você pode vir até aqui?

— Vou chegar até aí mesmo que seja a última coisa que eu vá fazer, Tsion! Preciso de sua ajuda para procurar Chloe!
— Eu estou bem por enquanto, Buck! Vou esperar por você!
Buck virou-se e olhou na direção da casa secreta. As pessoas andavam com passos trôpegos, roupas esfarrapadas, sangrando. Algumas caíam no chão e pareciam estar morrendo diante dos olhos de Buck. Ele não sabia quanto tempo ainda levaria para chegar até Chloe. Não queria ver outra cena igual àquela que estava presenciando, mas não desistiria até encontrá-la. Se houvesse uma chance em um milhão de chegar até onde ela estava, de salvá-la, ele iria até o fim.

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O sol voltara a brilhar sobre Nova Babilónia. Rayford pediu insistentemente a Mac McCullum que prosseguisse na direção de Bagdá. Por toda a parte que os três olhavam só havia destruição. Crateras produzidas por meteoros. Incêndios. Edifícios desabados. Estradas devastadas.
Ao avistar o aeroporto de Bagdá, Rayford abaixou a cabeça e chorou. Os jumbos estavam contorcidos, alguns com partes projetando-se das enormes cavidades no solo. O terminal desabara. A torre não mais existia. Havia corpos espalhados por toda parte.
Rayford fez um sinal para que Mac voasse mais baixo. Assim que examinou a área, Rayford entendeu tudo. Agora ele só podia orar para que Amanda ou Hattie estivessem voando quando ocorreu o terremoto.
Quando as hélices pararam de girar, Carpathia virou-se para os dois:
— Algum de vocês tem um telefone que esteja funcionando?
Rayford estava tão revoltado que passou por Carpathia e abriu a porta com força. Contornou rapidamente a poltrona de Carpathia e pulou no solo. Em seguida, ele colocou o braço dentro do helicóptero, soltou o cinto de segurança de Carpathia, agarrou-o pelas lapelas e gritou para que ele saísse dali. Carpathia caiu no chão e levantou-se rapidamente, como se estivesse pronto para lutar. Rayford empurrou-o contra o helicóptero.
— Capitão Steele, sei que você está aborrecido, mas...
— Nicolae — disse Rayford, com os dentes cerrados — você pode explicar o que aconteceu da maneira que quiser, mas antes deixe-me dizer-lhe uma coisa: Você acabou de presenciar a ira do Cordeiro!
Carpathia deu de ombros. Rayford empurrou-o pela última vez contra o helicóptero e afastou-se dali cambaleando. Virou o rosto em direção ao terminal do aeroporto, a uma distância de pouco menos de meio quilómetro. Orou para que essa fosse a última vez que ele teria de procurar o corpo de uma pessoa querida no meio de entulhos.


EPÍLOGO

"QUANDO O CORDEIRO abriu o sétimo selo, houve silêncio no céu cerca de meia hora. Então, vi os sete anjos que se acham em pé diante de Deus, e lhes foram dadas sete trombetas. Veio outro anjo e ficou em pé junto ao altar, com um incensário de ouro, e foi-lhe dado muito incenso para oferecê-lo com as orações de todos os santos sobre o altar de ouro que se acha diante do trono; e da mão do anjo subiu à presença de Deus a fumaça do incenso, com as orações dos santos. E o anjo tomou o incensário, encheu-o do fogo do altar e o atirou à terra. E houve trovões, vozes, relâmpagos e terremotos.
Então, os sete anjos que tinham as sete trombetas prepararam-se para tocar."
Apocalipse 8.1-6

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