domingo, 5 de setembro de 2010

DEIXADOS PARA TRÁS XB

Vazio.
- Muito bem - ele disse respirando fundo e saltando por cima do encosto
do banco para assumir o controle da aeronave. Colocou os fones de ouvido.
- Por que Deus não permite que esses sujeitos pilotem o avião?
- Eu também posso fazer isso - disse uma voz.
George deu um salto e viu o reflexo do homem no pára-brisa. Mas, quando
olhou para sua direita, o banco do co-piloto continuava vazio.
- Pare com isso! - disse George, com o pulso acelerado.
- Sinto muito.
- Seu nome é Miguel, eu suponho.
- Roger [N.T.: Linguagem usada em comunicações via rádio, que significa
"Positivo" ou "Entendido".]
George avistou Mac dirigindo a viatura da CG, que, apesar do péssimo
estado em que se encontrava, corria pela pista, indo de encontro ao jato. Ele
pensou em perguntar se Miguel não seria mais útil se estivesse sentado ao lado
de Mac.
- Acenda as luzes de pouso - ele ouviu a voz dizer.
- Para decolagem?
- Roger.
Sebastian não quis contestar. Acendeu as luzes de pouso, que incidiram
no vidro traseiro da viatura conduzida por Mac.
- Devo começar a taxiar fazendo a decolagem em ângulo para desviar de
Mac, conforme ele disse?
- Aguarde.
- Não?
- Espere um pouco.
Por um instante, Mac pensou que o jato da CG não conseguira vê-lo. Ele
freou com força e ficou alinhado entre as duas aeronaves. Quando o jato
finalmente parou, cerca de 15 metros de Mac, ele percebeu que poderia
contorná-lo facilmente. Por que Sebastian continuava parado? Com uma
decolagem no ângulo certo, ele poderia passar por Mac e pela CG e ganhar
altitude em questão de segundos.
Não querendo dar à CG a chance de interceptar George, Mac acelerou e
parou a cerca de três metros do jato. Ele imaginou que alguém poderia abrir a
porta e alvejá-lo com um tiro, mas pelo menos a CG não teria condição de prejudicar
seu avião, caso ele interceptasse o jato. Sem dar tempo para a CG pensar,
Mac pisou fundo no acelerador e arremessou a viatura em direção ao bico do
jato, colidindo de frente com o trem de pouso. O jato levantou um pouco do chão,
mas Mac não ficou sabendo se havia provocado algum dano mais grave.
Mac abriu o vidro, colocou o tronco para fora o mais que pôde e atirou com
a Uzi nos pneus do jato. Ele surpreendeu-se diante da resistência dos pneus e
ouviu balas ricocheteando e batendo na fuselagem do jato, atingindo a viatura.
Avançando um pouco mais para tentar um novo ângulo, ele finalmente
conseguiu acertar um dos pneus. Mas onde estava George? Por que ele não
fazia nada? Haveria alguma coisa errada com seu avião? Ele continuava parado
na extremidade da pista, com as luzes acesas.
Mac esperava que a CG revidasse a qualquer momento disparando suas
armas. Será que eles não perceberam que ele estava sozinho na viatura? Do
que estavam com medo? Ele era um ser indefeso, alojado embaixo do jato deles.
Ao tentar abrir a porta, Mac percebeu que ela estava totalmente emperrada e
tentou descer pelo outro lado. Aquela porta também não abriu, mas ele sentiu
que cedeu um pouco. Deitou-se no banco da frente e forçou a porta do lado do
motorista com as mãos e a do passageiro com os pés. Finalmente, conseguiu
desemperrá-la e saiu do carro.
Agachado debaixo do jato e com a Uzi apontada para a porta, ele tinha
condições de atirar em quem descesse do jato, se é que alguém se atreveria a
fazer isso. Talvez estivessem aguardando que ele corresse até seu avião ou que
Sebastian viesse apanhá-lo. Mas George perderia tempo se tivesse de abrir a
porta, e todos eles estariam em perigo.
Enquanto aguardava em uma estranha posição de ataque, Mac não sabia
o que fazer. Deveria tentar atirar na fuselagem do jato para atraí-los para fora?
Se ela fosse blindada, o que seria muito provável, ele gastaria munição à toa. Por
que a CG não atirava nele? E por que George continuava parado?
Os motores do jato da CG foram desligados. E agora? Nada. Nenhum
movimento, nem dentro nem fora.
Frustrado, Mac pegou seu walkie-talkie.
- Chloe ou Hannah - ele sussurrou, desesperado -, alguém responda, por
favor.
- Aqui é Chloe, Mac.
- O que está acontecendo?
- Não me pergunte. George está no comando.
- Fazendo o quê?
- Quer falar com ele? Pode falar.
- Estou ocupado, Mac. Qual é o problema?
- Você está vendo qual é o problema! O que você está fazendo?
- Aguardando autorização para decolar.
- Você tem autorização! Vá! Vá imediatamente! Desvie para sua direita!
Esses sujeitos estão vacilando, e eu estourei um dos pneus do jato. Eles
desligaram os motores.
- Estou aguardando por você, companheiro.
- Não seja tolo. Se eu sair daqui, vou ficar na linha de tiro deles. Vá para a
outra extremidade da pista. Eu me encontro com você lá. Mas, se eles vierem
atrás de mim, não pare.
- Ah, sim, eu sei, e você me verá no céu.
- Exatamente. Agora, deixe de ser idiota e vá!
- Eu não estou sendo idiota, Mac. Estou obedecendo ordens.
- Você deve me obedecer, portanto faça o que estou dizendo.
- Sinto muito. Você foi destituído do cargo.
- O quê?
- Você precisa colocar a arma no chão e caminhar até aqui.
- Você acertou o pessoal da CG dentro do jato !?
- Negativo. Venha desarmado e estará seguro.
- Você perdeu o juízo?
- Deus está dizendo que você deve vir.
Mac sacudiu a cabeça.
- Ah, espere um pouco.
- Venha imediatamente.
Mac suspirou fundo, com um olho na porta do jato e o outro em seu avião.
Ele apertou o botão de transmissão:
- Senhor, se fores tu, ordena que eu me dirija para lá.
- Vem.
A voz não era a de George.
- Desarmado?
- Vem.
Mac aguardou um instante. Em seguida, desvencilhou-se da Uzi e deitou-a
no chão. Ele desligou o walkie-talkie e colocou-o no bolso. Passou pela viatura e
ficou diretamente embaixo da cabina de comando. Ele se sentia exposto, vulnerável,
indefeso. Se a porta do jato se abrisse, ele seria um homem morto.
Sem ouvir nenhum som vindo de cima e sem ver nada a seu lado, Mac
saiu de debaixo do jato e seguiu em frente. Ele continuava a imaginar que estava
ouvindo movimentos atrás de si - motores voltando a funcionar, passos da cabina
até a porta, a porta se abrindo, armas disparando.
Enquanto caminhava, ele orava: - Senhor, salva-me!
Imediatamente, Mac teve a sensação de que as mãos de Deus estavam
sobre ele, e mal ouvia seus passos no chão.
- Ó homem de pequena fé, por que duvidas?
A voz era clara como cristal, mas o walkie-talkie estava desligado e
George já havia ligado os motores. Mac começou a andar apressado; em
seguida, correu. Cada passo parecia soar como um estampido. Quando Mac
chegou, Hannah já estava descendo a escada. Ele saltou para dentro do avião.
- Você vai pilotar ou ficar sentado aí? - perguntou George desatando o
cinto e pronto para acomodar-se no banco do co-piloto.
- Aqui está ótimo - respondeu Mac. - No momento, eu não conseguiria
pilotar nem mesmo uma bicicleta.
Chang ficou aliviado ao ouvir a boa notícia dada por Rayford e estava
ansioso por conhecer Naomi, mesmo que fosse on-line. Ele se sentiu tentado a
repreendê-la pelo susto que levou, mas decidiu aguardar até o dia seguinte para
fazer contato. Nesse ínterim, ligou para Mac e seu grupo, temendo o pior, a
despeito de todas as suas orações.
Mac atendeu o telefone parecendo exausto.
- Eu preciso conhecer Miguel um dia - disse Chang depois de ouvir a
história. - A parte melhor fica sempre com vocês.
- Francamente, eu não sei se há parte melhor nesta história - disse Mac. -
E fique sabendo que Sebastian já não o chama mais de Miguel. Ele o chama de
Roger.
- Roger?
- Quando Sebastian perguntou se ele era Miguel, o sujeito disse: "Roger".
- Quer dizer que Stefanich e seu bando estão parados na pista com um
avião danificado?
- É isso mesmo, e eles vão precisar de alguém para consertá-lo antes de
decolar novamente.
- Por que eles não atiraram em você?
- Pensei que você soubesse. O que aconteceu naquela cabina de
comando enquanto eu saía de lá, desarmado, caminhando na frente deles?
- Eu vou lhe contar.
Em questão de meia hora, todo o pessoal do Comando Tribulação já havia
recebido as boas notícias da Grécia. Chang providenciou para que George
pousasse ao sul de Roma, para reabastecer. Eles estavam a caminho da casa
secreta, sem passar por Kankakee, em Illinois, e sem levantar mais suspeitas.
Aquela seria a parte mais fácil de toda a aventura.
Quando, finalmente, Chang conseguiu entrar no sistema da CG em
Ptolemaïs e descobrir as transmissões entre o jato e a torre de Kozani, tudo o
que ele fez foi sacudir a cabeça. O piloto disse ter visto o avião parado na
extremidade da pista e uma viatura se aproximando. Mas, ao mesmo tempo,
Chang imaginou que Miguel havia instruído George a acender as luzes de pouso,
porque o piloto relatou ter visto uma luz tão forte que "perdemos o contato visual
com o avião e com a viatura".
Alguns minutos depois, o piloto relatou que ficou estarrecido - diante do
que, ele não sabia. O jato foi abalroado, e a frente dele levantou-se, mas
ninguém a bordo pôde tirar as mãos dos olhos, por causa de uma luz intensa
diante deles. Eles ouviram tiros e temeram morrer, perceberam o estouro de um
dos pneus e desligaram os motores. Em resumo, ficaram sentados, apavorados,
incapazes de olhar para fora por alguns minutos, até que ouviram o avião passar
zunindo por eles e levantar vôo.
Chang estava na escuta no momento em que eles, finalmente, resolveram
sair, com rádios a tiracolo ligados e armas preparadas. Mas tudo o que viram foi
o jato danificado, o trem de pouso sem condições de funcionamento, o pneu
furado, a viatura em péssimo estado e uma Uzi na pista. Só agora eles estavam
sendo resgatados por uma frota de carros da CG. No caminho, eles pegaram os
dois oficiais feridos, deitados na beira da estrada. Eles estavam recebendo tratamento
em razão de graves queimaduras que, conforme disseram foram
provocadas por uma arma que disparava raios.
Faltavam ainda duas horas para que Ming partisse de San Diego rumo ao
Extremo Oriente. Depois de ter terminado seu trabalho noturno, Chang desabou
na cama, exausto. Que estranho, ele pensou, sentir-se a peça principal e indispensável
de toda uma operação e, depois, descobrir que o sucesso da missão
tinha ficado completamente fora de suas mãos. Na verdade, ele nem estava em
seu posto quando Deus operou os milagres.
Havia vítimas cujas mortes ele lamentava, mártires para serem exaltados e
muito trabalho pela frente. Chang não sabia até quando conseguiria evitar ser
descoberto. Dispôs-se a trabalhar no escritório durante o dia e fazer seu
verdadeiro trabalho à noite, pelo tempo que Deus quisesse protegê-lo.
Rayford acordou quando os primeiros raios de sol despontaram no
horizonte, surpreso por ter conseguido dormir tanto. Petra já estava em atividade,
com as famílias recolhendo o maná da manhã e enchendo todas as vasilhas que
encontravam com a água pura da fonte proporcionada por Deus.
Milhares de pessoas trabalhavam nas cavernas, outras milhares
levantavam mais barracas. Nos lábios de cada uma havia histórias sobre o
milagre do dia anterior e a promessa de vida que o Dr. Tsion Ben-Judá havia
explicado, pouco depois, naquele mesmo dia.
Da boca dos anciãos e dos organizadores partiu a notícia de que os
materiais de construção estavam a caminho, e pediram ao povo para orar pela
segurança dos pilotos e motoristas que começariam a entregá-los. Havia
necessidade de voluntários com especialidade em várias profissões. Rayford
sabia que o atual clima de euforia não duraria para sempre. Inevitavelmente, a
lembrança do milagre passaria para segundo plano, embora ele não pudesse
imaginar tal coisa. E o povo, independentemente da fé que compartilhava, em
breve não suportaria viver acotovelado daquela maneira. Mas, por ora, ele se
deliciava com isso.
Rayford teria de retornar ao Comando Tribulação a qualquer momento,
mas o pessoal de Carpathia atiraria em qualquer um que entrasse ou saísse de
Petra. Se os materiais de construção conseguissem entrar, talvez isso fosse um
sinal de que valeria a pena tentar sair dali.
Naomi e seu grupo de gurus da informática haviam comunicado que Buck
Williams lhes transmitira a revista virtual A Verdade, contando histórias ocorridas
no mundo inteiro. O episódio completo do que acontecera na Grécia no dia
anterior foi descrito em detalhes, da mesma forma que o milagre ocorrido em
Petra.
Um grupo de Israel, especializado em informática, disse que conhecia a
tecnologia para projetar A Verdade em um telão, desde que fosse possível
montar um. Em meio aos vários suprimentos que já estavam no acampamento,
havia lona branca suficiente para ser esticada a uma altura correspondente a
vários andares. Milhares de pessoas se reuniram para ler os artigos da revista.
Rayford ficou feliz ao saber que não eram apenas os crentes e os
chamados judaístas que liam A Verdade. Muitos indecisos e até mesmo alguns
que receberam a marca do anticristo arriscavam a vida para fazer um download
da revista de Buck publicada no site do Comando Tribulação. Os crentes que
moravam em esconderijos e o pessoal da cooperativa do mundo inteiro
traduziam, imprimiam e distribuíam a revista. Carpathia não podia fazer nada
quanto a isso.
Rayford sabia que, infelizmente, havia centenas - talvez milhares - de
pessoas indecisas ali mesmo em Petra. Tsion prometera dirigir-se
particularmente a elas, chegando a dizer que muitas continuariam a ser
enganadas e, com o tempo, cairiam na lábia de mentirosos e de charlatães. Era
difícil compreender ou acreditar que isso ainda pudesse acontecer. Como uma
pessoa que passou pela mesma experiência de Rayford poderia duvidar da
existência do único e verdadeiro Deus do universo? A explicação estava além de
seus limites de compreensão.
No fim da manhã, quase 24 horas após o lançamento das bombas, o povo
começou a reunir-se. Espalhou-se a notícia de que o Dr. Ben-Judá iniciaria seus
ensinamentos sobre a misericórdia de Deus. E continuavam a ser divulgadas
histórias, vindas do mundo inteiro, de que a perseguição se intensificara contra
os crentes e, principalmente, contra os judeus.
Chang havia gravado as conversas nos escritórios de Akbar, Fortunato e
Carpathia e instalara um dispositivo para enviar ao computador de Buck Williams
os relatórios dos subpotentados do mundo inteiro. À medida que o sol
despontava em vários países, as notícias de violência e de derramamento de
sangue cometidos na noite anterior, bem como as implacáveis invasões diurnas,
eram transmitidas não apenas para Nova Babilônia, mas também do computador
de Chang para o de Buck, e do computador de Buck para o mundo, por meio de
A Verdade.
Quando as multidões se reuniram para ouvir o Dr. Ben-Judá, foram
atraídas para uma tela gigantesca, instalada em um muro afastado da luz do sol,
para melhor visualização. Buck havia transmitido as cenas dos acontecimentos
nos Estados Unidos Sul-americanos, enviadas por Chang, e o povo assobiou e
vaiou quando o homem tímido e medroso aceitou receber a marca de lealdade.
O povo aplaudiu, chorou, cantou e louvou a Deus pelo testemunho dos valentes
mártires que enfrentaram a guilhotina com tanta paz e coragem.
Os remanescentes em Petra ficaram indignados diante das notícias vindas
da Grécia sobre uma invasão no meio da noite, que havia destruído o que restara
do pequeno contingente de crentes que viviam naquele esconderijo. Buck havia
incluído som ao relatório em vídeo, relembrando a seus leitores, ouvintes e
espectadores que os gregos foram os primeiros que preferiram morrer a aceitar a
marca da besta.
Agora, parecia que os Monitores de Moral e os homens das Forças
Pacificadoras de todos os continentes haviam sido revitalizados, financiados,
equipados e motivados para atacar sem piedade. De todos os lugares do mundo,
chegavam notícias de que a Comunidade Global não seria mais condescendente
com os dissidentes e indecisos. Ou eles aceitavam a marca imediatamente ou
enfrentariam as conseqüências. Até mesmo aqueles que já haviam recebido a
marca de Carpathia estavam sendo punidos por não se curvarem diante de sua
imagem três vezes por dia para adorá-la.
Leon Fortunato apareceu em cena - com seus trajes pomposos e sendo
apresentado com todos os títulos e honrarias a que tinha direito - para advertir
que "os descendentes de judeus, tão teimosos quanto os judaístas e que
insistem em adorar um Deus que não seja nosso pai e senhor ressurreto, Nicolae
Carpathia, receberão uma justa recompensa. Sim, a morte é boa demais para
eles. Oh, eles certamente morrerão, mas estou emitindo um decreto neste
momento de que nenhum judeu receberá a misericórdia de uma morte rápida
pela lâmina da guilhotina. Por mais visível que seja esse castigo, e por mais que
condene comportamento reprovável, não causa dor alguma. Não, essas pessoas
sofrerão dia e noite em seus covis de iniqüidade e, no momento em que
expirarem em razão de causas naturais - ocasionadas pela rejeição ao Carpathianismo
-, elas estarão orando, clamando por uma morte tão rápida como no
instrumento de imposição à lealdade".
Para Rayford, o povo de Petra estava chocado diante do avanço das
maldades cometidas por Nova Babilônia, vingando-se daquela maneira de seus
inimigos e humilhando os judeus. Mas a ira e o escárnio daquele povo foram
amenizados pelas notícias fornecidas pela CNNCG sobre o que acontecera na
véspera, ali mesmo na cidade de pedras vermelhas.
Um âncora proferia palavras repetitivas, dizendo que o ataque a Petra -
duas bombas incendiárias e um míssil lançado por terra - errou o alvo e que o
inimigo acampado ali havia revidado prontamente, abatendo os dois caçasbombardeiros
e matando os pilotos. A notícia provocou gargalhadas entre o
povo, e todos levantaram as mãos fechadas, vaiando e assobiando, quando
Carpathia apareceu para lamentar a morte dos pilotos mártires.
- Embora não se possa negar que foi um erro do piloto, toda a
Comunidade Global, creio eu, une-se a mim para apresentar nossas mais
sinceras condolências às famílias enlutadas. Decidimos não tentar destruir essa
fortaleza do inimigo, para não pôr em risco a vida de mais pessoas, mas esse
povo vai morrer de fome, porque vamos cortar suas linhas de suprimento. Daqui
a alguns dias, esse será o maior campo de concentração de judeus da História, e
sua obstinação idiota lhes dará o destino que eles merecem.
- Companheiros cidadãos da nova ordem mundial, meus compatriotas da
Comunidade Global, devemos responsabilizar esse povo e seus líderes pela
tragédia que atingiu nossos mares e oceanos. Tenho insistido com meus
conselheiros diretos a negociar com esses terroristas internacionais, esses
mestres de magia negra que têm usado suas manobras perversas para causar
uma devastação dessa magnitude.
- Tenho certeza de que vocês concordam comigo em que não existe
diplomacia em casos como esse. Não tenho nada a oferecer em troca da perda
de milhões de vidas humanas, sem mencionar a beleza e a riqueza da flora e da
fauna.
- Eu lhes garanto que meu pessoal da alta cúpula está trabalhando para
descobrir uma solução para essa tragédia, mas ela não incluirá acordos,
concessões nem qualquer reconhecimento de que essas pessoas têm o direito
de impingir ao mundo um castigo tão indescritível.
No meio daquela transmissão de Chang por intermédio de Buck, apareceu
a reprodução da conversa entre Suhail Akbar e os dois pilotos que atiraram as
bombas em Petra. Embora a CG tentasse falar mais alto para abafar as palavras,
dizendo que se tratava de uma mentira, de um embuste, todos ouviram os pilotos
se defendendo perante Akbar e sua ordem para que fossem executados.
Rayford não podia imaginar como Carpathia ainda teria o apoio do mundo
depois de tudo aquilo, mas a Bíblia afirmava que era justamente o que
aconteceria. Em Petra, a multidão começou a ficar inquieta e a conversar entre si
sobre aquela exposição das mentiras e das verdades que eles tinham acabado
de presenciar. Então, começou a correr a notícia de que Miquéias, o homem que
os conduzira de Israel a esse lugar seguro, estava prestes a aparecer e a
apresentar o Dr. Ben-Judá.
Espontaneamente, toda a multidão mergulhou em profundo silêncio.
TREZE
Chaim Rosenweig levantou as duas mãos e dirigiu-se à multidão com voz
tão forte que podia ser ouvido em todos os lugares.
- Tenho o imenso prazer e a satisfação pessoal de, mais uma vez,
apresentar a vocês meu ex-aluno, meu amigo pessoal e agora meu mentor, o Dr.
Tsion Ben-Judá, rabino, pastor e mestre de todos vocês!
Rayford só não aplaudiu com entusiasmo porque sabia que Tsion
detestava adulações. Mesmo assim, Rayford esperava que o rabino entendesse
que aquele povo estava simplesmente expressando seu amor por ele.
Quando, finalmente, conseguiu acalmar a multidão, o Dr. Ben-Judá disse:
- Obrigado pela calorosa recepção, mas peço que, no futuro, quando eu for
apresentado, vocês me homenageiem em silêncio, manifestando agradecimentos
a Deus por seu amor e misericórdia. É principalmente sobre isso que vou falar. A
adoração de vocês estará sendo corretamente dirigida, quer vocês orem, quer
levantem as mãos ou apontem para o céu em gratidão a Ele.
- No capítulo 14 do Evangelho de João, nosso Senhor Jesus, o Messias,
faz uma promessa que podemos guardar por toda a eternidade. Ele diz: "Não se
turbe o vosso coração; credes em Deus, crede também em mim. Na casa de
meu Pai há muitas moradas. Se assim não fora, eu vo-lo teria dito. Pois vou
preparar-vos lugar. E quando eu for, e vos preparar lugar, voltarei e vos receberei
para mim mesmo, para que onde eu estou estejais vós também" [v.1-3].
- Observem a urgência. Essa foi a garantia de Jesus de que, embora
estivesse deixando seus discípulos, Ele voltaria um dia. O mundo não viu o
último retorno de Jesus Cristo e, conforme sabemos continua insistindo em não
ver.
- Agora, reflitam comigo sobre os cinco eventos mais importantes e
fundamentais da História. Desde o Éden até o presente momento, Deus nos
apresenta, por intermédio da Bíblia, a história correta do mundo, e grande parte
dela foi escrita por antecipação. Essa é a única história verdadeira que já foi
escrita.
- O primeiro evento fundamental foi a criação do mundo por meio de um
ato direto de Deus.
- A seguir, vem o dilúvio universal. Esse dilúvio teve um efeito catastrófico
sobre o mundo e ainda confunde a mente dos cientistas que encontram
esqueletos de peixes em altitudes de até 4.500 metros.
- O terceiro evento fundamental da História foi a primeira vinda de Jesus, o
Messias. Esse evento possibilitou a redenção de nossos pecados. Jesus teve
uma vida perfeita e morreu para redimir os nossos pecados. Ele morreu pelos
pecados do mundo, por todos aqueles que invocassem o seu nome.
- Mas sabemos que esse não foi o fim da história, porque todos nós aqui
invocamos seu nome para perdoar nossos pecados somente depois do quarto
evento fundamental da História, ou seja, a volta de Jesus.
- Muitos de nós corrigimos o erro de não tê-lo aceitado antes, e isso é
bom. Tanto o Antigo como o Novo Testamento da Bíblia mencionam que Ele
retornará pela última vez: o quinto evento fundamental da história do mundo.
Esse glorioso aparecimento sinalizará o início do reino milenar, a verdadeira
utopia.
- Imaginem o paraíso na Terra com o Messias no controle de tudo. Muitos
acreditam que durante esse reino de mil anos, que começará daqui a menos de
três anos e meio, a população será maior que o número de todas as pessoas que
já viveram e já morreram. Como pode ser? Porque haverá um mundo sem
guerra. Imaginem este planeta com um governo que não seja responsável pela
matança de quase 200 milhões de pessoas, como registrado até hoje.
- A humanidade nunca serviu a Deus por opção, mas, quando o Messias
retornar, Ele estabelecerá seu reino e o povo viverá em paz. Viveremos em
justiça. Teremos abundância de justiça. É difícil descrever essa época incrível.
Cada um terá o suficiente.
- Deus deseja esse tipo de mundo, e Ele o deseja para nós por uma única
razão: Ele é bom. Na Bíblia, Joel 2.13 diz que Ele é misericordioso, tardio em
irar-se e grande em benignidade. Ele não deseja nos prejudicar. Jonas, 125 anos
depois de Joel ter nascido, descreveu Deus com as mesmas palavras. E Moisés,
que viveu 1.500 anos antes desses homens, disse que o Senhor é misericordioso
e compassivo, longânimo e grande em misericórdia e fidelidade.
- Essas são as opiniões dos profetas acerca de Deus. E qual é a opinião
de vocês acerca de Deus? Que melhor prova poderíamos ter além daquela que
vivemos ontem? Quando vocês se ajoelharem para orar, lembrem-se daquele
evento e do que os profetas disseram. Sim, temos um Deus majestoso, o único
potentado supremo e onipotente. E a Bíblia nos ensina uma coisa a respeito de
Deus: que Ele é por nós. Ele não é contra nós. Ele deseja abençoar nossa vida,
e a chave para abrir a porta da bênção é entregar sua vida a Ele e pedir que Ele
a use à sua maneira. Como alguém pode deixar de amar o Deus que os profetas
descrevem? Como alguém pode deixar de amar o Deus ao qual Jesus, o
Messias, se refere como nosso Pai que está no céu?
- Quão maravilhoso é saber que, como filhos, podemos nos aproximar da
presença de Deus, o Criador de tudo, e chamá-lo de Pai.
- Estamos atravessando o período mais terrível da história da humanidade.
Dezesseis dos julgamentos profetizados por Deus já foram derramados sobre a
Terra, um pior que o outro, e ainda faltam cinco. O anticristo foi revelado, da
mesma forma que o falso profeta. É por isso que o Messias deu a este período o
nome de Tribulação, e à segunda metade, na qual nos encontramos, de Grande
Tribulação.
- Como eu posso dizer que esse Deus julgador e vingativo é um Deus
amoroso e misericordioso? Lembrem-se de que, durante este período, Ele está
trabalhando para que o povo tome uma decisão. Por quê? O milênio está
próximo. Quando Jesus fizer sua derradeira aparição gloriosa, Ele virá em poder
e grande glória. Ele estabelecerá seu reino exclusivamente para aqueles que
tomaram a decisão certa. Que decisão? Invocar o nome do Senhor.
- Isso lhes parece exclusivismo? Compreendam uma coisa: A Bíblia deixa
claro que a vontade de Deus é que todos os homens sejam salvos. Em 2 Pedro
3.9, lemos: "Não retarda o Senhor a sua promessa [...] pelo contrário, ele é
longânimo para convosco, não querendo que nenhum pereça, senão que todos
cheguem ao arrependimento."
- Deus prometeu, em Joel 2, que faria "prodígios no céu e na terra;
sangue, fogo e colunas de fumo. O sol se converterá em trevas, e a lua em
sangue, antes que venha o grande e terrível dia do Senhor. E acontecerá que
todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo; porque no monte Sião e
em Jerusalém estarão os que forem salvos, assim como o Senhor prometeu, e
entre os sobreviventes aqueles que o Senhor chamar" [v.30-32].
- Meus queridos, vocês são os sobreviventes! Vocês entendem o que
Deus está dizendo? Ele continua a chamar os homens para que sigam a Cristo.
Ele levantou 144.000 evangelistas, das 12 tribos, para suplicarem aos homens e
às mulheres do mundo inteiro que decidam aceitar a Cristo. Quem, a não ser um
Deus amoroso, compassivo, misericordioso e longânimo, poderia planejar com
tanta antecedência que, durante esse período de caos, Ele enviaria tantos
homens com poder para pregar sua mensagem?
- Vocês se lembram das duas testemunhas, com poderes sobrenaturais,
que pregaram a Palavra de Deus em Jerusalém e ao planeta inteiro por meio da
TV? Após três anos e meio, elas foram assassinadas diante dos olhos do mundo.
Depois que seus corpos permaneceram na rua por três dias, Deus os chamou
para o céu. Por quê? Porque, por ser um Deus amoroso e misericordioso, Ele
desejava manifestar seu poder e glória para que a humanidade pudesse
compreender e tomar a decisão certa.
- Aqui temos o Deus sobrenatural do céu cumprindo suas promessas de
eras passadas, preservando os filhos de Israel enquanto o anticristo tenta
persegui-los.
- A quem vocês servirão? Vocês obedecerão ao rei deste mundo ou
invocarão o nome do Senhor?
- Deus tem feito todas essas coisas grandiosas e poderosas porque deseja
salvar a humanidade. Muitos continuarão rebeldes, até mesmo aqui, depois de
tudo o que viram e experimentaram. Não queira estar entre essas pessoas, meu
amigo e minha amiga. O nosso Deus é misericordioso. O nosso Deus é
compassivo. Ele é longânimo e deseja que todos sejam salvos.
- Se vocês concordam que Deus está usando este período em que
vivemos para preparar o povo para o reino milenar e para a eternidade, o que
vão fazer com sua vida? Dediquem-na ao Messias. Adorem a Jesus, o Cristo.
Recebam-no como o único Cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo.
Recebam-no em sua vida e vivam em obediência a Ele. Ele quer recebê-los. E
um Deus que não se detém diante de nenhum obstáculo para salvar qualquer
pessoa que invoque seu nome é um Deus digno de toda a nossa confiança. Você
confia em um Deus assim? Pode amar um Deus assim?
- O Messias veio ao mundo em forma humana. E Ele voltou. E virá mais
uma vez. Quero que vocês estejam preparados. Fomos deixados para trás no
Arrebatamento. Agora, devemos estar preparados para o Glorioso Aparecimento.
O Santo Espírito de Deus está tocando nas pessoas do mundo inteiro. Jesus
está edificando sua igreja durante este período negro da História, porque Ele é
compassivo, amoroso, longânimo e misericordioso.
Todo o povo ao redor de Rayford curvou a cabeça, e muitos começaram a
orar. Eles oravam pelos amigos e familiares em Petra e em outros lugares do
mundo. Deviam ter ouvido, como Rayford ouviu, a emoção na voz de Tsion
quando ele fez um novo apelo para que todos tomassem a decisão de seguir a
Cristo.
- O tempo é curto - gritou Tsion -, e a salvação é uma decisão pessoal.
Reconheça perante Deus que você é um pecador. Admita que não pode ser
salvo sem Ele. Entregue-se à misericórdia de Deus e receba a dádiva de seu
Filho, que morreu na cruz pelo pecado que você cometeu. Receba-o e agradeça
a Ele a dádiva da salvação.
- Problema grave, problema grave - disse Aurélio Figueroa, recostado em
sua cadeira, com os dedos da mão esquerda apoiados nos da direita e
apontados para cima. Sentado à sua frente, do outro lado da mesa, Chang orava
silenciosamente, enquanto Figueroa prosseguia:
- Houve acessos ilegais ao banco de dados do palácio, pessoas com
identidades falsas de funcionários e intromissões no sistema que permitiram aos
inimigos da CG enganar líderes locais. Agora temos provas de que existem
"grampos" nos escritórios do palácio, até mesmo no do diretor de Segurança e
Inteligência. Você sabia que hoje de manhã, quando o potentado estava tentando
lamentar a morte de nossos pilotos, alguém se intrometeu na transmissão e
colocou no ar uma conversa fictícia entre o diretor Akbar e os pilotos?
- Ainda bem que a conversa era fictícia. O senhor deve estar satisfeito com
isso.
- Não estou entendendo, Wong.
- Se fosse verdadeira, teria sido uma catástrofe. Todos nós ouvimos essa
conversa, senhor. Akbar passou um sermão nos pilotos, os dois não
concordaram e o diretor mandou executá-los.
O mexicano alto e ossudo analisava Chang.
- Onde alguém pode ter conseguido esse tipo de gravação?
- O senhor está perguntando a mim?
- Não há mais ninguém aqui.
- Sinto muito. Eu deveria ter dito: "Por que o senhor está perguntando a
mim?"
Aquele era o momento mais crítico. Se Figueroa o acusasse, Chang teria
de sair de Nova Babilônia dentro de poucas horas, para não ser executado.
- Estou fazendo essa pergunta a todos, é claro. Não leve para o lado
pessoal. Você não faz idéia do que está sendo implantado no principal banco de
dados.
- Eu gostaria de saber.
Figueroa levantou-se.
- Não estou revelando isso a mais ninguém, mas o próprio Akbar começou
a suspeitar de que existe alguma coisa estranha em Chicago. Você sabe que o
local foi atingido mais de uma vez durante a guerra. A cidade foi evacuada e
interditada, e ninguém se lembrou dela durante meses. Anos.
Chang assentiu com a cabeça.
- Não fizemos sobrevôos de reconhecimento, não tiramos fotos, não
verificamos os sensores de calor, nada.
- E por quê?
- Porque alguém incluiu uma informação no computador dizendo que o
local estava contaminado e que a radioatividade duraria anos. Akbar não se
recorda disso. Ele achava que a cidade havia sido completamente destruída,
mas não por elementos radioativos. Todas as vezes que ele mandava fazer uma
investigação, o pessoal acessava o banco de dados, checava os níveis de
radioatividade e dizia: "Tudo certo. Continua radioativo". Mas, recentemente,
alguém verificou os arquivos oficiais para saber se as informações estavam
corretas. É claro que não estavam. O local está em perfeitas condições.
- O quê?!
- É isso mesmo. Você sabe tanto quanto eu que existe Um só motivo para
alguém ter incluído esse tipo de informação: tomar posse da cidade.
Conseguimos passar por cima das informações falsas e tentamos descobrir o
que está acontecendo lá. Não encontramos muita coisa, porque todos estavam
recebendo as mesmas informações que nós. Mas existe atividade no local.
Consumo de água e de energia elétrica. Aviões e helicópteros chegando e
saindo. Jatos decolando de uma pista no lago. Deve ser o lago Michigan.
- Sério?
- Sim. Há evidências de trânsito de veículos e de pedestres. Poucas, é
claro, mas deve haver perto de 40 pessoas morando lá.
- Pouca gente para causar tanta preocupação - disse Chang.
- Pelo contrário - disse Figueroa. - Essa gente vai preferir não ter nascido.
Chang estava morrendo de curiosidade para perguntar e, ao mesmo
tempo, desesperado para demonstrar indiferença. Ele aguardou que Figueroa
prosseguisse.
- Você deve estar pensando que mandamos um pelotão de homens das
Forças Pacificadoras para fazer uma ronda lá, não?
Chang encolheu os ombros.
- Mais ou menos isso.
- Akbar tem uma idéia melhor. Ele diz que, se alguém deseja que o lugar
pareça radioativo, vamos fazer isso.
- O senhor não está falando sério.
- Claro que estou.
- Gastar tanto dinheiro em tecnologia numa época como esta?
- É uma idéia brilhante, Chang.
- É uma solução, eu acho. Mas ele pensou na água doce que corre por lá?
- Estamos armazenando a água do lago Michigan desde o norte de
Wisconsin. Não temos de nos preocupar com o rio Chicago.
- O povo que mora às margens do rio se preocupa.
- Bem, de qualquer forma, dizem que o chefão está adorando a idéia.
- Será?
- Você está brincando? Carpat... hã, o potentado adora coisas desse tipo.
- E temos uma bomba atômica sobrando para jogar lá?
- Ora, vamos, Wong! Quem mora lá não deve ser boa coisa. Se fossem
cidadãos leais, por que não disseram: "Ei, não sabíamos que este lugar estava
interditado e nos instalamos aqui, mas, já que isso aconteceu, podemos ficar?"
Chang encolheu os ombros. Ele queria saber quanto tempo isso levaria
para acontecer, assim teria como avisar o Comando Tribulação, mas não se
atreveu a perguntar.
- Acho que está certo.
- Você acha? Não há registro de centro de aplicação da marca de lealdade
lá. E não há ninguém registrado aqui que moraria lá sem nos avisar.
- O senhor está certo.
- Claro que estou. Ei, Chang, você não está com uma aparência muito boa.
Chang havia prendido a respiração de propósito, ficando com os olhos
arregalados, sem piscar. Seu rosto estava vermelho e seus olhos lacrimejavam.
- É o cansaço - ele disse, exalando o ar. - Estou sentindo um mal-estar.
- Você está bem?
Chang tossiu, fingindo que não podia parar. Ele levantou a mão para
desculpar-se e dar a entender que estava bem.
- Dormi mal a noite passada - ele conseguiu dizer. - Vou melhorar.
Pretendo dormir cedo esta noite.
- Quer tirar um cochilo?
- Não. Tenho muito serviço para fazer.
- Não há problema. Descanse um pouco.
- Não posso.
- Por quê?
- Quero fazer a minha parte, esforçar-me ao máximo, só isso.
Em seguida, simulou outro acesso de tosse.
- Vá para casa mais cedo. Você não usou todo o tempo a que tinha direito
para tratamento de saúde, não é mesmo?
- Usei só uma parte, o senhor sabe, durante a época da praga.
- Das úlceras? Ah, sim, todos nós fomos atacados. Descanse o restante do
dia. Se você não aparecer aqui amanhã, vou entender.
- Não, por favor, Sr. Figueroa. Eu estou bem. O senhor não vê? Já estou
me sentindo melhor.
- O que está havendo com você, Wong? Bem, eu não quero assustá-lo,
mas...
- Eu não quero parecer um fracote.
- Você pode ser tudo, menos isso.
- Obrigado - disse Chang cobrindo a boca com a mão e tossindo mais que
antes.
- Passe no Departamento Médico e tome algum remédio. Chang fez um
gesto de negação e disse com voz ofegante.
- Vou voltar ao meu trabalho.
- Não, não vai. Isso é uma ordem.
- O senhor está me obrigando a sair mais cedo?
- Ora, vamos! Você acha que estou pensando só em você? É melhor sarar
logo. Não quero um departamento cheio de gente tossindo, e acho que você já
contaminou minha sala. Agora vá.
-Eu...
- Chang! Vá!
O dia começava a amanhecer no Colorado, e Steve Plank, conhecido pelo
nome de Pinkerton Stephens, estava dormindo em seus aposentos. Ele ficara
acordado até a meia-noite enviando e-mails a seus amigos do Comando
Tribulação, advertindo-os de que alguma coisa grave estava prestes a acontecer
em Chicago e que, se eles achassem conveniente, deveriam fugir dali, e rápido.
Ele também tinha conversado, por telefone, com Rayford Steele, em Petra, e
insistido para que continuasse lá e não permitisse que Abdullah Smith ou
qualquer outra pessoa voltasse para Chicago.
Batidas insistentes na porta o despertaram, e seu primeiro pensamento foi
que, na pressa, não havia usado o telefone seguro ou que seu computador
estava "grampeado". Se ele tivesse sido descoberto, paciência. Avisar o
Comando Tribulação foi a ação mais produtiva que ele fez desde sua conversão
ou pelo menos desde que ajudou Hattie Durham a sair de debaixo de sua
custódia para ir ao lugar onde ela se converteu.
Plank tentou gritar para saber quem estava ali e o que desejava, mas sua
prótese facial estava ao lado da cama e, sem ela, ninguém poderia ouvi-lo. O
melhor que conseguiu foi resmungar, enquanto tateava no escuro à procura da
peça de plástico.
- Sr. Stephens, não há necessidade de abrir a porta. - A voz era de Vasily
Medvedev, o subordinado imediato de Steve. - Eu só queria lhe dar um recado.
Nova Babilônia está fechando o cerco ao redor dos funcionários do mundo inteiro
que ainda não receberam a marca de lealdade. O senhor vai receber a sua ao
meio-dia. No Aeroporto da Ressurreição Carpathia. Eu só preciso que o senhor
confirme que ouviu o recado.
Steve escorregou o corpo para sentar-se em sua cadeira de rodas
motorizada, rodou-a até a porta e deu dois toques nela.
- Obrigado, senhor. Estou constrangido por ter de fazer isso, mas recebi
ordens para acompanhá-lo e comprovar que o senhor recebeu a marca.
Steve voltou para perto da cama e pegou a prótese na mesinha de
cabeceira.
- Espere um instante, Vasily!
Depois de colocá-la no lugar, ele abriu a porta e fez um gesto para que o
homem entrasse.
- Sinto muito, senhor - disse o russo. - O que devo fazer ou dizer?
- Diga a eles que já tenho a marca.
- Não existe registro disso.
- Você sabe que ela não pode ser aplicada em material sintético. Quer
ver? - perguntou Steve, começando a arrancar a parte da testa.
- Não! Por favor! Sinto muito, senhor, mas tentei ver uma vez e foi mais
que suficiente. Perdoe-me.
- Bem, vamos ver se a pessoa que aplica a marca vai querer dar uma
olhada - disse Steve.
- Ora, vamos, senhor, deveria haver um registro, não?
- Eu deveria estar isento. Você pode imaginar a dor de ter uma marca
aplicada à membrana...
- Por favor! Eu só recebi ordens de informar ao senhor e de...
- Comprovar se recebi a marca, eu sei.
- Por que o senhor não pede que ela seja aplicada em sua mão?
- Minha mão? Você está dizendo minha mão? Esqueceu que minha mão
também foi doada à causa?
Steve levantou o coto, e Vasily estremeceu.
- Eu sou um idiota - ele disse. - Como pude esquecer...
Steve fez um gesto de pouco caso.
- Não se preocupe com isso.
- Quando o senhor pretende sair? Eles abrem às 8 horas e estamos a
cerca de uma hora de distância.
- Eu sei disso, Vasily,
- Claro.
- Eu o informo mais tarde.
Quando Medvedev saiu, Steve curvou a cabeça e chorou.
Senhor, o que devo fazer? Enganá-los? Pôr o meu cargo à disposição? É
isso? Está tudo terminado? Será que não sirvo mais para ajudar os crentes ao
redor do mundo?
Steve passou a manhã comunicando-se com Chang em Nova Babilônia,
onde a tarde já estava terminando. Eles trabalharam freneticamente a fim de
encontrar um local para abrigar a sede do Comando Tribulação. Ninguém, em
qualquer lugar do mundo, poderia acolhê-los. O Edifício Strong havia sido
perfeito, só que por pouco tempo.
Nem Chang nem Steve sabiam ao certo quando o bombardeio sobre
Chicago teria início, mas ficou claro que seria o mais rápido possível. Somente
depois que eles avisaram a todos e fizeram as recomendações necessárias foi
que Steve contou a Chang o problema que o atormentava.
- Eu sabia que eles estavam fechando o cerco - disse Chang -, mas não
tinha idéia de que seria tão já. Vou incluir uma informação no banco de dados
mencionando que você já tem a marca. Posso tirar uma cópia para você.
- Não posso permitir que você faça isso, irmão.
- Por quê? Um dia desses, eu fiz a mesma coisa com um piloto da
cooperativa. Ele só ficou sabendo depois que providenciei tudo.
- Com toda essa vigilância aí no palácio? Eu não tenho nenhuma
documentação e, de um dia para o outro, passo a ter?
- Não é necessário dizer que ela foi expedida no Aeroporto da
Ressurreição. Posso fazer registros mencionando que veio de outro lugar.
Steve fez uma pausa. A coisa era intrigante, até mesmo instigante. Mas não tinha
consistência.
- Eu até concordaria - ele disse. - Se tivéssemos pensado nisso antes,
poderíamos ter dado um jeito, como se a documentação tivesse aparecido por
acaso, conforme você fez com o outro sujeito. Mas, agora, seria uma prova de
que concordei em receber a marca. Não posso fazer isso.
- Então, você vai sair daí, certo? Para onde vai e como vai chegar a esse
lugar? Devo enviar alguém para ajudá-lo? Algum meio de transporte?
- Não vai funcionar, Chang. Isso vai deixar você vulnerável. E você sabe
que eles estão me vigiando.
- Ninguém está me vigiando ainda - disse Chang. - Acho que eles não
desconfiam de mim.
- Você precisa continuar firme aí.
- Você quer ir para Petra? Há um vôo da cooperativa partindo de Montana
hoje. Posso falar com o piloto...
- Ligo para você depois, Chang. Agradeço muito, mas acho que chegou a
minha hora de tomar uma atitude.
- O que você está dizendo?
- Você sabe.
- Ora, Steve, pelo menos obrigue esse pessoal a correr atrás de você.
Precisamos de você, cara!
- Vivendo como um fugitivo? Que utilidade eu teria?
- Precisamos de todo mundo que puder nos ajudar.
Buck considerou a hipótese de acordar o contingente vindo da Grécia, mas
decidiu que não faria isso, embora houvesse muito trabalho pela frente. Chloe,
Mac, Hannah e Sebastian haviam chegado de madrugada.
Kenny estava fascinado com toda aquela atividade. As pessoas corriam de
um lado para o outro, tomando decisões importantes e empacotando caixas
pequenas, deixando de lado impressos, anotações ou qualquer coisa que já
estivesse no computador. A única pessoa com permissão para levar mais
bagagem que os outros era Zeke. Havia coisas das quais ele não podia abrir
mão: arquivos, roupas para disfarces, ferramentas de trabalho.
Leah passou a maior parte do tempo falando, por meio de um telefone
seguro, com o pessoal da cooperativa do mundo inteiro. Ela disse a Buck:
- Todos se conformaram que terão de acolher algumas pessoas e
disseram que seria uma honra, mas ninguém está eufórico com a idéia. O
espaço que cada um tem é muito limitado para atender a todas as necessidades.
- Não temos escolha, Leah. É tempo de cada um fazer sua parte. Detesto
dizer isso, mas muitas dessas pessoas nos devem favores. Daqui, nós dirigimos
a cooperativa e providenciamos gêneros de primeira necessidade para que elas
sobrevivessem.
Albie parecia taciturno. E por que não estaria? Buck ficou pensando na
situação dele: o único lugar para onde ele poderia ir - para onde queria ir - era Al
Basrah.
- Mas eu não quero usar um avião só para mim - ele disse. - Há muita
gente que precisa ser deslocada para vários lugares.
- Faça o que tem de ser feito, Albie - disse Buck. - Veja se Leah pode lhe
conseguir uma carona com alguém que esteja levando materiais para Petra.
Vamos precisar de você com freqüência.
- Espero mesmo que me chamem.
O pessoal de Enoque estava no subsolo do edifício verificando os veículos
para saber quantos tinham condições de rodar. Ele negociara o privilégio de
escolher os carros e os veículos utilitários como compensação por não poder
colocar as 30 pessoas pertencentes a O Lugar num só avião para partirem
juntas. Leah já havia encontrado vários esconderijos para abrigá-los a uma
distância que poderia ser percorrida de carro. Enoque ficaria em Palos Hills,
Illinois.
- Vocês sabem o risco que vão correr saindo daqui em caravana em plena
luz do dia - disse Buck.
- Claro que sabemos. Mas o risco será maior se estivermos aqui quando a
CG bombardear o local.
Steve Plank avisou Vasily de que queria sair da sede da CG às 11 horas.
Ele passou o restante da manhã trancado em seu quarto, orando em desespero.
Finalmente, ligou para Buck. Que reviravolta!, ele pensou. Buscar conforto
e conselho com um jovem que um dia foi seu melhor - e mais polêmico -
funcionário. Os dias de glória do Semanário Global haviam se perdido no tempo.
A história de Steve foi ouvida em silêncio. Em seguida, Buck disse, com
voz branda:
- Steve, não faça isso. Por favor.
- Você acha que eu quero? Ora, vamos, homem! Não precisa ficar
emocionado agora, Buck. Eu só queria dizer adeus.
- Mas eu não quero, está bem? Já disse adeus demais em minha vida. E
tem mais. Nós precisamos de você. Este não é o momento de desistir.
- Você está me ofendendo.
- Vou fazer o que puder, Steve, para impedir que você cometa essa
loucura.
- Eu esperava ouvir alguma coisa a mais de você.
- Eu também digo o mesmo.
- Você acha que estou tentando a saída mais fácil? Não pense isso de
mim.
- O que você está dizendo, Steve? Que devo apoiar sua idéia, desejar-lhe
felicidades e ver você lá no céu?
- Até que ajudaria. Diga que confia em meu julgamento.
- Como posso confiar, se acho que você ficou maluco? Steve deu um
longo suspiro.
- Buck, eu não tenho ninguém mais para ligar. Se eu disser que você não
vai conseguir tirar essa idéia de minha cabeça e que é por isso que estou
ligando, você vai ficar do meu lado?
- É claro que sempre estarei a seu lado, mas...
- Eu não sou covarde, Buck. Você me conhece. Sabe que eu devia ter
morrido. Fiquei enterrado sob escombros por quase uma semana. Sinto dores o
tempo todo, mas tenho enganado, tenho conspirado, tenho trapaceado, tenho
iludido o inimigo de todas as maneiras que sei. Bem, existe uma coisa que não
vou fazer. Não vou fugir como uma criança e não vou negar a Cristo.
- Eu sei disso.
- Bem, já é alguma coisa. Não foi tão difícil de entender, não é?
- Não venha me dizer que tenho de concordar com você, Steve.
- Você vai orar por mim?
- Claro, mas vou orar para que você recupere o juízo normal.
- Vou ter de passar por isso, Buck. E não vou fingir que não estou
morrendo de medo. A CG considera que ainda não recebi a marca por um
descuido, por questão de tempo, alguma coisa relacionada com minhas
limitações. Mas quando a coisa se tornar oficial, quando eles me obrigarem a
tomar uma decisão, não vou desapontar Deus.
- Eu sei que não vai. Ele promete misericórdia infinita e uma paz que
excede todo entendimento.
- Eu preciso lhe contar uma coisa, Buck. Não estou sentindo nada disso.
- Deus - Buck começou a dizer, e Steve percebeu que ele teve de respirar
fundo para prosseguir -, fica ao lado desse teu filho. Dá-lhe a tua graça, a tua
paz. Confesso que não quero que ele faça isso. Detesto essa idéia. Estou
cansado de perder pessoas que amo. Mas, se esta for a tua vontade, dá-lhe
coragem, dá-lhe as palavras certas, dá-lhe poder sobre o inimigo. Oro para que
as pessoas que presenciarem isso se comovam a ponto de tomarem a mesma
decisão.
Buck estava tão comovido que seus companheiros se reuniram à sua volta
espontaneamente. Quando ficaram sabendo o que estava se passando, eles se
ajoelharam e oraram por Steve. Buck ligou para Chang.
- Ele está indo para o centro de aplicação no Aeroporto da Ressurreição,
ao sul de Springs - disse Buck. - Existe alguma possibilidade de serem
transmitidas imagens da cena?
- Eles costumam fazer isso.
- E ela pode ser retransmitida para cá?
- Posso dar um jeito.
- Não sei por que quero assistir, mas vou me sentir como se estivesse ao
lado dele.
Steve estava ciente do olhar crítico de Vasily quando ele apareceu no
estacionamento, de cadeira de rodas, trajando roupas informais. Na verdade,
roupas muito informais. Ele usava sapatos sem cadarços, calça cáqui e camiseta
branca.
- Você está preocupado com o protocolo - disse Steve enquanto Vasily o
colocava no carro.
Vasily assentiu com a cabeça.
- Aprendi a não fazer perguntas, chefe.
- Você está armado, meu amigo?
- Claro.
- Eu não.
- Estou vendo.
Steve estendeu o braço a Vasily, que olhou assustado.
- Aperte minha mão - ele disse. - Lamento que ela não esteja mais aqui.
Vasily tocou o local rapidamente.
- Meu nome é Steve Plank.
- Como, senhor?
- Você ouviu.
- Steve Plank?
- Então, você estava ouvindo, como sempre. Conhece o Semanário
Global?
Vasily parecia estar com problemas para concentrar-se.
- O quê? A revista? Claro. Nós a recebemos de Nova Babilônia.
- Você se lembra de quando ela era independente, antes dos
desaparecimentos?
- Claro.
- Meu nome aparecia nos créditos.
- Nos...?
- Créditos. A lista dos diretores e redatores. Eu era o chefe, ou melhor, o
editor-chefe.
E Steve contou sua história a Vasily, terminando quando eles estavam a
15 minutos do destino. Medvedev sacudiu a cabeça.
- O que devo fazer agora?
- Bem, você não precisa me prender. Já me tem em custódia e está
cumprindo ordens. Está me levando ao centro.
- E o senhor vai receber a marca, continuar a viver como inimigo secreto
da Comunidade Global, e eu devo fingir que não sei de nada, só porque somos
amigos?
- Somos, Vasily?
- Eu achava que sim, mas o senhor demorou até agora para me contar a
verdade.
- Se somos amigos, você poderia me fazer um favor.
- Deixá-lo ir embora? Permitir que fuja? Para onde o senhor vai?
- Não é nada disso. Eu estava pensando que você poderia atirar em mim.
- O senhor está brincando.
- Não estou. Seria bom para sua carreira. Conte a história que quiser.
Você descobriu quem eu era, preocupou-se imaginando que eu poderia fugir,
essas coisas.
- Não posso fazer isso.
- Eu também não poderia. Quero dizer, não poderia me matar, embora já
tenha pensado um pouco nesse assunto.
- O que o senhor está querendo que eu faça, desde que não seja matá-lo?
Que eu assista à sua morte?
- Você foi encarregado de "comprovar", não é verdade? Não é essa a sua
obrigação?
Vasily deu um suspiro entrecortado e assentiu com a
- O senhor não vai levar essa história até o fim, vai?
- Vou. Fugir serviria apenas para protelar o inevitável. E você tem de
admitir que é mais ou menos fácil de as pessoas me reconhecerem.
- Não achei graça.
- Nem eu. Vasily, eu só lamento que já fosse tarde demais quando você
passou a trabalhar comigo. Você já havia recebido a marca, com muito orgulho.
- Já não sinto tanto orgulho assim.
- Essa é a grande tragédia em que nos encontramos.
- Eu sei.
- Sabe?
- O senhor acha que eu não dou uma espiada no site do Dr. Ben-Judá de
vez em quando? Eu sei que minha decisão é irreversível.
- Você gostaria que não fosse?
- Não sei. Não sou cego, nem surdo. Vejo o que está acontecendo. Neste
momento, eu diria que sinto inveja do senhor.
QUATORZE
Finalmente, era chegada a hora de acordar Chloe. E assim que ela se
levantou, os outros fizeram o mesmo.
Chang havia ligado. O Comando Tribulação necessitava fazer as malas e
preparar-se para mudar dali a qualquer momento.
Chloe trabalhava rapidamente, apesar de estar com os olhos turvos de
sono, com Kenny dependurado em seu pescoço quase o tempo todo. George e
Mac pegaram grandes quantidades de alimentos acondicionados em caixas e
latas, e começaram a levá-los para os carros. Hannah, que ajudou Leah a
atualizar os dados da cooperativa, tinha a aparência de quem precisava de mais
algumas horas de sono.
George contou a Buck que conseguira que alguém viesse buscá-lo em
Chicago, mas ele aconselhou a pessoa a modificar a rota, possivelmente
passando por Long Grove, onde foi marcado um local de encontro.
- Temos acomodações para você, Chloe e o bebê lá em casa, em San
Diego, e eu adoraria ser seu piloto.
Buck precisava pensar um pouco antes de tomar uma decisão. O cenário
podia ser pior. Leah conseguira que ele e sua família se mudassem para a casa
de Lionel Whalum e sua esposa. Buck não conhecia aquele homem, mas
também não conhecia pessoalmente nenhuma outra pessoa que pudesse abrigálos.
Whalum concordara com a idéia, contando a Leah que possuía uma casa
grande em um bairro afastado da cidade, mas estava planejando fazer várias viagens
de ida e volta a Petra.
- Leah - disse Buck -, quem sabe você e Hannah poderiam morar na casa
dos Whalum. Eu e minha família aceitaríamos a oportunidade que George está
nos oferecendo. Assim, vocês teriam um piloto, e nós também.
- Por que você não toma conta desta minha tarefa, Buck, já que está
pondo todo o meu trabalho a perder?
- Chloe está pronta para reassumir o posto, Leah. Seria melhor você
começar a arrumar suas coisas.
Ela parecia abalada e levantou-se rapidamente para sair dali. Buck a
interceptou.
- Ouça, vamos perdoar um ao outro. As circunstâncias exigem. Pense um
pouco: Whalum está transportando materiais para Petra o tempo todo.
- Eu sei, Buck. Chloe e eu coordenamos tudo isso.
- Você está raciocinando bem?
- Você está me insultando? - ela perguntou.
- Você não está raciocinando.
- O quê?!
- Pegue uma carona com ele um dia desses, Leah. Não há alguém em
Petra que você gostaria de ver?
Aquela pergunta a fez parar por alguns instantes.
- Ora, Buck, você não está falando sério. Não posso negar que estou
encantada com Tsion. Quem não está? Mas ele não vai ter tempo para uma
amiga. Há muita coisa que ele precisa fazer lá.
- Será, então, que você está com medo de morar em Long Grove, porque
o local fica muito perto de Chicago, onde as bombas vão cair? É bem provável.
- Não. Eu...
- Você quer ir com George para San Diego? Eles vão precisar de serviço
médico lá. E têm quartos individuais. Ninguém vai ficar morando junto. Eles estão
em abrigos subterrâneos, uma espécie de casas pré-fabricadas.
- Não, esse lugar parece perfeito para você e sua família. Vou conversar
com Hannah a respeito de Long Grove.
- Eu ouvi meu nome? - disse Hannah. - Prefiro a região sudoeste.
- Você conseguiu falar com alguém? - perguntou Leah.
- Precisa de companhia?
Poucos minutos depois, Hannah já havia concordado em ir com Leah.
Zeke e Mac eram os únicos que ainda não tinham onde ficar.
- Eu preciso ir para um lugar onde as pessoas necessitem de meus
serviços - disse Zeke. - Algum lugar seguro, mas central.
- Estou verificando - gritou Chloe, de longe.
- Eu quero ficar num lugar onde possa fazer viagens de ida e volta a Petra
- disse Mac à procura de mais caixas.
- Talvez eu consiga tirar Rayford de lá.
- Rayford precisa ficar lá - disse Buck. - Ele vai ficar irritado por uns
tempos, mas tem tudo o que precisa para manter um controle seguro do pessoal.
Depois que todos estavam prontos, apenas aguardando a ordem de partir, Albie
convidou Mac para acompanhá-lo a Al Basrah. Zeke ficaria instalado em uma
unidade clandestina na região oeste de Wisconsin, na cidade de Avery, perto do
limite com o Estado de Minnesota. Buck ligou para Chang.
- Vamos chamar a atenção quando sairmos daqui, mas acho que não
temos escolha.
- Saiam de madrugada - disse Chang -, poucas pessoas por vez nos
próximos dias. Vou ter condições de avisar se existe alguém atrás de vocês. É
um risco, mas você sabe o que vai acontecer se esperar mais tempo.
O grupo inteiro - 40 pessoas, incluindo as 31 de O Lugar - reuniu-se,
formando um grande círculo. Cada um passou os braços ao redor do
companheiro ao lado, oraram uns pelos outros e choraram. Todos. Até George e
Mac. Ao ver tantas lágrimas, Kenny começou a chorar, o que provocou risos no
pessoal.
- Parece que acabamos de chegar aqui - comentou Buck.
- E agora não sabemos quando nos veremos novamente. Tenho uma lista
da ordem em que vamos sair daqui. Minha família e eu seremos os últimos.
O Edifício Strong já não era mais seguro. E agora aquelas pessoas seriam
despejadas, um pouco por vez, num mundo hostil, que pertencia ao anticristo, ao
falso profeta, à Comunidade Global e a milhões de olhos inquisidores que
exigiam o sinal de lealdade que nenhuma delas possuía.
- Eu posso dizer a eles que perdi o senhor de vista - disse Vasily. - Que
negligenciei. O que mais posso dizer? O senhor fugiu.
Steve estava sentado ao lado dele no estacionamento do Aeroporto da
Ressurreição.
- O quê? Dizer que eu fugi numa cadeira de rodas e que você não me
alcançou? Tarde demais. Vamos.
Não era fácil, e Steve não ia fingir que não estava apreensivo. Quando lia
um livro ou assistia a um filme sobre um homem condenado, ele se perguntava
qual seria a sensação de dar uma longa e última caminhada antes da morte.
Essa não seria suficientemente longa, ele imaginava, principalmente em uma
cadeira de rodas.
Quando eles se aproximavam do centro de aplicação da marca de
lealdade na asa norte do aeroporto, Steve notou que a fila era a mais longa que
ele já vira. O cerco, o rigor - ou qualquer outro nome que Nova Babilônia desse -
estava dando certo. Centenas de pessoas passavam pela estátua de Carpathia,
curvando-se, orando, cantando, adorando. Por enquanto, a guilhotina estava
silenciosa. Na verdade, Steve não sabia se ela havia sido usada naquela região
do Estado. Alguns foram mortos como mártires perto de Denver. Outros em
Boulder. Talvez ele fosse o primeiro a ser morto ali. Talvez não houvesse gente
treinada para manipular o instrumento de imposição à lealdade - a guilhotina.
Mas lá estava ela, reluzente e ameaçadora. As pessoas na fila para receber a
marca riam com nervosismo, sem tirar os olhos dela.
Steve ainda estava na parte da fila que caminhava em direção ao ponto da
tomada de decisão. Não se esperava que ninguém tomasse a decisão "errada", é
claro. A mulher diante do teclado do computador - ruiva, robusta e aparentando
60 anos -, que tomava conta dos documentos e arquivos, mal erguia a cabeça
enquanto as pessoas se identificavam e escolhiam o tipo de marca e onde seria
aplicada.
Assim que a recebiam, elas levantavam as mãos fechadas ou gritavam
com entusiasmo. Em seguida, caminhavam em direção à imagem, para adorá-la.
Steve continuava vivo graças aos ensinamentos e incentivos diários de
Tsion Ben-Judá. Essa tinha sido a única igreja que ele conheceu. Conversava às
vezes com Rayford, com Chang e, de vez em quando, com Buck ou outra pessoa
do Comando Tribulação, mas estava ansioso por um contato pessoal com outros
crentes. Aquele problema seria rapidamente solucionado. Steve se questionava
se deveria usar seu nome verdadeiro e, finalmente, contar à CG que se manteve
na clandestinidade por todo esse tempo, mas seu nome seria facilmente ligado
ao de Buck Williams, em razão da época em que trabalharam juntos no
Semanário. E quanto tempo levaria para que descobrissem uma relação com
Rayford, com Chloe, com a cooperativa e - quem sabe? - com Chang?
Ele não poderia correr esse tipo de risco, principalmente expondo pessoas
que nem sabiam o que iria acontecer com ele ali. Quando, finalmente, chegou a
vez de Steve, a mulher avistou Vasily trajando uniforme e disse com voz
animada:
- Estávamos aguardando a chegada de vocês dois. Esse deve ser
Pinkerton Stephens.
- Em carne e osso, Ginger - disse Steve após ter lido o nome dela no
crachá.
- Que tal um belo -6 e uma charmosa imagem do supremo potentado? -
ela perguntou olhando-o de cima a baixo, visivelmente perplexa diante de seus
trajes.
- E onde você a aplicaria? - perguntou Steve.
- A escolha é sua.
- Bem, na mão não vai dar - ele disse mostrando o coto. O sorriso de
Ginger gelou, e ela o encarou. Não havia achado graça e demonstrou isso com o
olhar. Ele a colocara em uma situação desconfortável, e ela não gostou. - E acho
que não vai pegar no plástico.
- É verdade - disse Ginger um pouco mais aliviada.
- Também não podemos aplicá-la aqui, certo? - ele perguntou batendo na
prótese da testa.
Puxa daqui, puxa de lá. Ele arrancou a prótese do nariz e da testa,
deixando à mostra os globos oculares e a cavidade do cérebro.
- Acho que a única opção é aqui, Ginger - ele disse, com voz nasalada por
ter tirado a prótese do nariz.
- Oh! Oh, meu...! Sr. Stephens, eu...
- Quem vai querer aplicar a marca aqui? - perguntou Steve. - Quem se
apresenta como voluntário para fazer essa tarefa? E, quando eu quiser mostrála,
deverei arrancar a prótese do rosto?
A mulher virou-se para o outro lado.
- Estou certa de que vai funcionar. É totalmente higiênica e não vai causar
nenhum problema.
- Posso tirar também a prótese da boca, Ginger, se você desejar um efeito
total.
- Não, por favor.
- Bem, de qualquer forma, eu estou na fila errada.
- Como assim?
- Não aceito receber a marca de lealdade.
- Não aceita? Bem, não existe opção.
- Ah, claro que existe, Ginger. A outra fila é bem menor. Na verdade, serei
o único. Mas trata-se definitivamente de uma opção, não?
- Você está optando pelo... hã... instrumento de aplica...
- Estou optando pela guilhotina, Ginger. Estou preferindo morrer a fingir
que Nicolae Carpathia é divino ou rei de qualquer coisa.
Ela olhou para Vasily.
- Ele está brincando comigo?
- Infelizmente não, senhora.
Ginger analisou o rosto de Steve. Em seguida, pegou seu walkie-talkie.
- Ferdinand, precisamos de alguém para acionar o instrumento.
- Acionar o quê?
- Você sabe! - ela cochichou. - O instrumento.
- A guilhotina? Você está falando sério?
- Sim, senhor.
- Já estou indo. - Um homem calvo, alto e de bochechas vermelhas
chegou correndo. - Você não vai receber a marca?
- Vou - disse Steve -, mas antes quero tentar a guilhotina. Por favor, não
podemos andar logo com isso? Será que vou ter de passar por outra penitência?
- Isso aqui não é brincadeira.
- Também totalmente desnecessário, portanto faça o que deve ser feito.
Apronte a papelada.
- Não há papelada. Você simplesmente assina confirmando que fez a
escolha por livre e espontânea vontade, e nós... ah... você...
- Morre.
- Sim.
- Tenho o direito de dizer minhas últimas palavras?
- Você é quem sabe.
O homem entregou-lhe um formulário, no qual Steve assinou "Pinkerton
Stephens".
- Você deve saber que esta é sua última chance de mudar de idéia - disse
o homem.
- Sobre Carpathia ser o anticristo, o demônio personificado? Sobre Leon
Fortunato ser o falso profeta? Sim, eu sei. Não vou mudar de idéia.
- Esta é sua decisão final?
- Digamos que pensei muito no assunto.
- Claro.
Steve olhou de relance para Vasily, que estava pálido e com a mão na
boca. As outras pessoas na fila murmuravam e apontavam, agora com os olhos
fixos naquele homem de aparência estranha, usando camiseta.
Ferdinand passou por entre duas cadeiras e foi inspecionar a guilhotina.
- Dizem que pode ser acionada por uma só pessoa - ele mencionou. Em
seguida, levantou a cabeça. - Por aqui, Sr. Stephens.
Steve rodou a cadeira até uma marca no chão a 1,20m da guilhotina. Seu
ventre começou a contrair-se e a respiração ficou ofegante.
Deus fica comigo, ele orou silenciosamente. Dá-me tua graça. Dá-me
coragem.
A graça veio. A coragem, ele não tinha certeza. Gostaria de ter mais
experiência para estar diante daquele instrumento. Ferdinand havia levantado
completamente a lâmina, mas, enquanto manipulava os elementos na
extremidade da haste, ele continuava olhando para cima e examinando o
aparelho, afastando os dedos da lâmina.
- Acho que se a alavanca de segurança estiver no lugar, está tudo pronto -
disse Steve.
- Ah, claro. Obrigado.
- De nada. Pode ficar me devendo esta.
Ferdinand demorou um instante antes de dar um sorriso contorcido. Ele
colocou a barra de retenção no lugar, com um pouco de dificuldade. Em seguida,
segurou a corda de liberação e inspecionou a coisa toda mais uma vez.
Kenny estava dormindo, e Buck sentado com os ombros caídos diante da
TV, à qual ele havia conectado seu telefone. Chang engendrara uma maravilha
digital para transmitir as imagens do Colorado. Uma câmera de TV instalada em
um canto mostrava a área inteira, e Chloe apontou.
- É ele, Buck. Ele está ali.
O peito de Buck arfava pesadamente, e ele respirava com dificuldade.
Steve era a única pessoa diante da guilhotina, e havia um homem que parecia
tentar acioná-la.
- Você tem um cesto ou coisa parecida? - perguntou Steve.
- Não entendi - disse Ferdinand.
- Uma vasilha? A não ser que queira correr atrás de minha...
- Sim! Obrigado. Um momento. Steve gostaria de dizer.
- Estou feliz por poder ajudar.
Ferdinand encontrou uma caixa de papelão amassada que, por algum
motivo, havia sido forrada com papel laminado. Steve não queria saber por quê.
- Agora - disse o homem, olhando para cima -, aproxime-se daqui.
Steve rodou a cadeira para perto da guilhotina.
- Você consegue abaixar-se ou...
- Eu posso fazer isso sozinho - disse Steve -, mas o serviço de assistência
ao cliente está sendo precário se eu tiver de...
- Vou buscar ajuda.
- Não! Eu me posiciono sozinho, assim que disser minhas últimas
palavras.
- Ah, sim, suas últimas palavras. Chegou a hora. À vontade.
- Elas serão gravadas?
O homem assentiu com a cabeça.
- Bem, então...
Steve virou um pouco o corpo para encarar os que estavam na fila para
receber a marca de lealdade. Todos desviaram os olhos, mas ele notou um ar de
expectativa em seus rostos, como se estivessem aguardando o privilégio de
presenciar a cena.
- Eu não espero que vocês acreditem em mim, que concordem comigo
nem que mudem de idéia - ele começou a dizer. - Mas quero que minhas
palavras fiquem gravadas. Escolhi a morte na guilhotina para poder estar com
Deus. Acredito em Jesus Cristo, o Filho de Deus, o Criador do céu e da Terra.
Repudio Nicolae Carpathia, o demônio, o Satanás encarnado. Hoje, quando
vocês receberem a marca, perderão para sempre a chance de uma vida eterna
no céu. O destino de vocês será o inferno e, mesmo que queiram mudar de idéia,
não poderão.
- Eu gostaria que minha vida tivesse sido mais dedicada àquele que deu a
sua por mim, e eu me entrego em suas mãos, para a glória de Deus.
Steve virou-se para a frente, saltou da cadeira de rodas e posicionou-se
debaixo da lâmina.
- Por favor, seja rápido, Ferdinand - ele disse.
Buck não conseguia desgrudar os olhos da tela. Chloe, sentada ao lado
dele, cobriu o rosto com as mãos. A cena desapareceu, mas Buck continuou
sentado ali por quase uma hora. Finalmente, seu celular vibrou. Era Chang, que
também parecia abalado demais.
- Foi acrescentada uma nota confidencial ao relatório emitido pelo pessoal
do centro de lealdade - ele disse. - A nota é dirigida a Suhail Akbar: "Você
receberá um comunicado formal do centro de comando da Comunidade Global,
no Colorado, dizendo que haverá necessidade de um substituto para o falecido
Pinkerton Stephens e também para seu segundo homem no comando, Vasily
Medvedev. Este último foi encontrado no automóvel da CG que estava sob sua
responsabilidade. Medvedev suicidou-se com um tiro na cabeça."
Evidentemente, nenhuma das mortes foi divulgada pela CNNCG.
Ming Toy estava exausta quando desembarcou em Xangai depois de um
vôo que durou a noite inteira. Ela havia feito aquele vôo, aparentemente
interminável, várias vezes antes, mas nesse último não conseguiu dormir por ter
ficado conversando com o piloto. Ele era conhecido, ou melhor, amigo de George
Sebastian. E, embora ela não conhecesse George pessoalmente, agora eles
tinham muitos amigos em comum. O piloto do avião, um sul-coreano chamado
Ree Woo, já era um cidadão naturalizado norte-americano na ocasião do
Arrebatamento e estava aquartelado na mesma base de Sebastian.
- Todos conheciam George - disse Woo. - Ele era o homem mais
grandalhão que já tínhamos visto, o maior daquela base. Não havia nada que
George não pudesse fazer.
Woo era um piloto especializado em aeronaves pequenas, rápidas e de
fácil mobilidade, com capacidade para armazenar grande quantidade de
combustível e, por conseqüência, com autonomia de vôo para longas distâncias.
- Eu era um coreano-americano diferente, Sr. Chow, porque agia mais
como americano do que como asiático, apesar de ter mudado para a América já
adolescente. Eu não tinha religião. Teria sido um bom chinês. Aposto que você
cresceu em uma família atéia.
- É verdade - disse Ming -, mas a Coréia, principalmente a Coréia do Sul, é
metade cristã, metade budista, certo?
- Sim! Mas eu não era nem uma coisa nem outra. Também não era ateu.
Eu não era nada. Não pensava em religião. Eu sabia que devia existir um Deus,
mas não me importava. Caso existisse mesmo, Ele me deixou sozinho. Eu
adorava a mim mesmo, você entende o que quero dizer?
- Claro. Não era assim que todos nós fazíamos?
- Meus amigos e eu adorávamos a nós mesmos. Gostávamos de farra, de
garotas, de carros, de bens materiais, de dinheiro. Você também?
- Quero ouvir o resto de sua história, Ree - disse Ming - mas chegou a
hora de usar minha voz verdadeira e de contar-lhe a verdade.
Ele inclinou o corpo para a frente e olhou-a de esguelha no escuro, diante
da mudança do tom de voz de Ming.
- Não - ela disse. - Jamais gostei de garotas. Eu gostava era de garotos.
Ele teve um sobressalto e sorriu.
- Verdade?
- Não é o que você está pensando - ela disse. - Sou uma garota. Na
verdade, sou uma mulher adulta. Fui casada. Sou viúva.
- Você está brincando comigo!
- Estou lhe dizendo a verdade.
E ela contou sua história durante mais ou menos uma hora.
- Você acredita que já ouvi falar de seu irmão? - disse Woo.
- Não!
- É verdade! Ninguém menciona o nome dele, mas muita gente de nosso
grupo clandestino de San Diego sabe que ele está lá, dentro do palácio.
Em seguida, Woo terminou de contar sua história, falando sobre como
ficou apavorado depois dos desaparecimentos.
- Eu não sabia o que era medo. Antes, nada me incomodava. Eu era um
valentão. Foi por isso que eu quis ser piloto, mas não de jatos grandes
comerciais, nem de helicópteros. Eu queria pilotar aviões mais rápidos, mais
perigosos. Em várias ocasiões, escapei por um triz da morte, mas isso me
deixava mais entusiasmado ainda e nunca me fez ficar mais cauteloso nem mais
cuidadoso. Eu não via a hora de arriscar a vida outra vez.
- Mas depois que tanta gente desapareceu, fiquei tão assustado que não
conseguia dormir. Ficava deitado na cama com a luz acesa. Não ria! Era isso
mesmo! Eu sabia que alguma coisa terrível e sobrenatural havia acontecido. Só
um acontecimento tão grande como aquele foi capaz de me fazer parar e pensar.
Por que aquelas pessoas desapareceram? Para onde foram? Eu seria o
próximo?
- Perguntei a todo mundo que eu conhecia. Até mesmo pessoas que eram
como eu e que nunca haviam entrado numa igreja diziam que se tratava de
algum ato de Deus. Se fosse verdade, eu queria saber. Comecei a perguntar a
outras pessoas, a ler, a procurar livros na sala do capelão. Encontrei uma Bíblia,
mas não entendia nada do que lia. Foi, então, que alguém me deu um exemplar
numa linguagem mais simples. Eu não tinha certeza da existência de um Deus,
mas orei assim mesmo. Essa Bíblia era chamada de Palavra de Deus, portanto
eu disse: Deus, se estás em algum lugar, ajuda-me a entender isso e a
encontrar-te.
- Ming, esse é o seu nome verdadeiro, certo? Chega de surpresas?
Ela concordou com a cabeça.
- Chega de surpresas.
- Ming, eu li aquela Bíblia da mesma maneira que um homem faminto
come pão. Eu a devorei! Eu não parava de ler. Li a Bíblia inteira várias vezes e,
quando encontrava livros e capítulos complicados demais, eu pulava e encontrava
outros mais fáceis. Quando descobri os Evangelhos e as cartas de Paulo, li
e reli até desabar de exaustão.
- No final da Bíblia, havia uma lista de versículos que mostravam como
tornar-se cristão, um seguidor de Cristo, e receber o perdão dos pecados. Ali
dizia que a gente podia ter certeza de estar salvo dos pecados e de ir para o céu
ao morrer ou ao ser levado com Cristo no Arrebatamento. Aquilo partiu meu
coração! Era tarde demais! Acreditei de todo o coração que os desaparecimentos
tinham a ver com o Arrebatamento, e chorei sem parar, arrependido de ter
perdido a chance.
- Mas li todos os versículos que falam da salvação e orei implorando a
Deus que me perdoasse. Eu disse que acreditava que Jesus morreu por mim e
que me receberia em seus braços. Tive uma enorme sensação de pureza, de
liberdade e de refrigério, como se eu não tivesse sido deixado para trás. Isto é,
eu gostaria de ter sido arrebatado, mas não tenho dúvida de que estou salvo e
de que, um dia, vou morar no céu.
Horas depois, Ming tinha a impressão de que ela e Ree tinham sido
amigos durante a vida toda. Apesar de exausta, ela preferiu conversar com ele a
ficar dormindo. Quando o sol despontou sobre o mar Amarelo, Ming sentiu-se
enojada ao ver a imensa quantidade de sangue que se estendia até os portos.
Quanto mais baixo eles voavam, mais ela via a devastação, animais em estado
de putrefação. Quando pousaram, receberam máscaras, que pouca utilidade
tiveram para filtrar o odor fétido.
Ree estava transportando mercadorias para a cooperativa de Xangai, mas
concordou em levá-la a Nanjing, que ficava a mais de 300 quilômetros a oeste.
Chang contara a seus pais que havia uma igreja clandestina lá e, apesar de ser
uma cidade grande, Ming orou suplicando a Deus que a conduzisse até eles.
Ree lhe fez companhia enquanto ela procurava, com a máxima cautela,
algum crente secreto. Não era fácil. Eles ficavam sentados em restaurantes
pequenos, e, de vez em quando, ela levantava cuidadosamente seu quepe para
que um companheiro crente pudesse ver o selo em sua testa. Quando Ree fez
isso em uma pequena mercearia, uma senhora idosa se aproximou e exibiu seu
selo. Os três se encontraram em uma viela e contaram suas histórias
rapidamente. Ming entendia o dialeto da senhora e o traduziu para Ree.
A senhora contou que a igreja clandestina de Nanjing praticamente
desaparecera, e que grande parte dos crentes foi deslocada para Zhengzhou,
localizada a uma distância de cerca de 500 quilômetros a noroeste dali.
Finalmente, Ming conseguiu dormir na última parte da viagem, mas, mesmo
inconsciente, ela se preocupava com Ree, que poderia cochilar nos controles.
Nos tempos dos regulamentos rígidos da aviação, ele jamais receberia
permissão para voar sem um bom período de descanso.
A CG parecia alvoroçada em Zhengzhou, arrastando os cidadãos sem a
marca de lealdade para os centros de aplicação, caçando os judeus para levá-los
aos campos de concentração e gritando por meio de megafones todas as vezes
que era chegada a hora de adorar a imagem de Carpathia. Até mesmo os
milhares de pessoas que ostentavam a marca pareciam cansadas diante das
constantes exigências e do tratamento recebido pelos indecisos.
Ming e Ree encontraram uma hospedaria barata, que não fazia perguntas,
e alugaram dois quartos minúsculos, do tamanho de um cubículo, onde pagaram
muito para dormir tão pouco. Mas o sono levou embora o cansaço, e, quando
eles se encontraram novamente, partiram em busca dos crentes clandestinos.
Finalmente, Ming conheceu um pequeno grupo de cristãos escondidos no
porão de uma escola abandonada. Ree precisava retornar a San Diego, e a
perspectiva de separar-se dele causava grande sofrimento a Ming, embora eles
tivessem acabado de se conhecer. Ele prometeu voltar e fazer o possível para
que a pequenina igreja de Zhengzhou fosse incorporada à lista da cooperativa,
embora seus crentes tivessem pouca mercadoria para ser barganhada.
Ming conseguira falar com Chang em Nova Babilônia e tomou
conhecimento da dispersão gradual do Comando Tribulação e da mudança da
família Williams para San Diego.
- Você precisa conhecê-los, Ree - ela disse -, e ficar mais amigo de
Sebastian. Meu sonho é encontrar meus pais e, um dia, levá-los comigo para lá.
Demorou mais de uma semana para Ming encontrar alguém que tivesse
ouvido falar da família Wong, apesar da popularidade do nome naquela região.
Foi uma senhora idosa, com ar de cansaço e olhos úmidos, que lhe contou:
- Nós conhecer os Wongs. Um casal de meia-idade. Ele muito leal ao
potentado, mas não aceitar a marca.
- É ele! - disse Ming.
- Sinto muito, moça. Ele ser descoberto.
- Ele morrer com honra!
- Por favor, não!
- Ele ser crente. Sua mãe chorando mas estar bem. Ela morar com um
pequeno grupo a 80 quilômetros a oeste, nas montanhas.
- E ela também se converteu? - perguntou Ming em meio às lágrimas.
- Ah, sim. Sim. Eu levar você até ela no tempo certo.
QUINZE
Chang nunca se sentiu tão isolado, tão sozinho, como nos cinco meses
seguintes. Chorou a morte de seu pai, mas regozijou-se porque ele estava no
céu. Orou por sua mãe e sua irmã, insistindo para que Ming continuasse na
China e não tentasse tirar a mãe de lá. Ele sabia que aquele país estava
atravessando um momento terrível, porém fugir seria mais perigoso.
Chang estava curioso acerca de Ree Woo e ajudou Chloe a encontrar
vôos e conexões de vôos da cooperativa para ele. Porém, na maior parte do
tempo, Chang agia com discrição, principalmente diante dos computadores.
Suhail Akbar havia assumido para si a responsabilidade de descobrir o espião no
palácio. Todos os funcionários foram interrogados repetidas vezes, mas Chang
tinha certeza de que não levantou mais suspeitas do que seus colegas. Ele
sonhava com o dia em que voltaria a ter liberdade para acompanhar os passos
do Comando Tribulação, conforme havia feito anteriormente.
O dia estava quase terminando quando ele conseguiu abrir caminho para
seus companheiros por meio de credenciais falsas. E foi forçado a pedir a Buck
que tomasse cuidado com o que escreveria em A Verdade a respeito das
informações que recebera do palácio. Uma coisa era Buck escrever sobre o que
conhecia, e outra coisa bem diferente era provar com gravações, em áudio e
vídeo, que somente poderiam ter sido feitas a partir de escutas clandestinas no
palácio de Nova Babilônia.
Chang ficou emocionado ao saber que a mudança do pessoal do
Comando Tribulação na calada da noite transcorreu sem problemas. Até aquele
momento, a única perda tinha sido a de Steve Plank, que, oficialmente, não fazia
parte do Comando Tribulação, mas cuja morte foi muito lamentada.
Leah e Hannah estavam escondidas na nova casa em Long Grove. Suas
cartas esporádicas a respeito de Lionel Whalum e sua esposa comprovavam que
aquele era o tipo de casal de que o Comando Tribulação e a cooperativa necessitavam.
Albie e Mac voavam temerariamente pelo mundo inteiro em uma aeronave
que Albie conseguiu no mercado negro. Chang preocupava-se com eles, porque
ambos não podiam mais ter credenciais falsas, porém Mac, pelo menos, parecia
sentir-se invencível após o triunfo na Grécia.
Zeke, pelo que Chang sabia, estava tendo sucesso em uma região
campestre que a CG parecia ter esquecido. Muitos crentes secretos viajavam
quilômetros para ter sua aparência transformada pelo toque de mestre do jovem.
As notícias recebidas de Enoque e de seus companheiros de O Lugar
eram menos alentadoras. O grupo havia se dividido, e seus componentes
passaram a morar em esconderijos, sozinhos ou em companhia de outras
famílias. A maioria continuava trabalhando ativamente na troca de mercadorias
da cooperativa, mas muitos sentiam falta dos tempos de camaradagem que
viveram em Chicago.
A cidade havia sido devastada novamente, desta vez por uma bomba
nuclear verdadeira lançada três dias após Buck, Chloe e Kenny terem ido ao
encontro de Sebastian e voado para San Diego. A CNNCG relatou mil mortes,
todas de judaístas, mas os inspetores perceberam que a confirmação do número
de mortos teria comprometido as próprias pessoas que diziam ter feito a
contagem.
O mais emocionante para Chang era manter contato com Buck, Chloe e
Kenny, que agora moravam literalmente em um abrigo subterrâneo perto de San
Diego. Sebastian e sua família haviam amenizado o período de transição, e a
igreja secreta de lá era a mais vibrante que Chang conhecera. Ali, Kenny era
apenas um dos vários bebês nascidos após o Arrebatamento.
Pelo fato de grande parte da tecnologia militar continuar intacta, Buck foi
capaz de recriar a aparelhagem que possuía em Chicago, e, dali, transmitia sua
revista virtual alguns dias por semana. Ele tomava o cuidado de permanecer
escondido em casa e invejava a vida que Rayford levava em Petra.
Quatro anos na Tribulação
Seis meses na Grande Tribulação
Embora a atmosfera continuasse festiva e as mensagens diárias de Tsion
e Chaim fossem inspiradoras, Rayford diria que Petra não estava completamente
isolada do mundo real. Um milhão de pessoas eram lembradas diariamente da
devastação provocada por Carpathia em todo o planeta. De todas as partes,
chegavam notícias de milagres feitos por milhares de divindades que pareciam
carinhosas, bondosas, inspiradoras e dinâmicas. Era comum vê-las ao vivo na
Internet, recolocando braços e pernas amputados, ressuscitando mortos,
retirando sangue do mar e transformando-o em água tão pura e cristalina que
muitas pessoas se apresentavam para bebê-la sem correr risco algum.
- Falsos! - pregava Ben-Judá todos os dias. - Charlatães. Impostores.
Trapaceiros. Sim, trata-se de um poder verdadeiro, mas não é o poder de Deus!
É o poder do inimigo, do demônio. Não se deixem enganar!
Muitas pessoas, porém, eram enganadas.
Os judeus estavam sendo maltratados, perseguidos, torturados e mortos
em todos os continentes. Eram obrigados a desfilar diante das câmeras da
CNNCG e acusados falsamente. Eram traidores, diziam os comentaristas,
inimigos do potentado ressurreto, pretensos usurpadores do trono do deus vivo.
No decorrer dos meses, a política de Nova Babilônia referente aos que
ainda não possuíam a marca sofreu uma mudança radical. Não se permitia mais
que os transgressores da lei tivessem uma última chance. O grau de tolerância
passou a ser zero. Não havia mais desculpas. Para Rayford, a maior barbárie era
a lei de vigilância, que permitia a um cidadão leal, possuidor da marca, matar
qualquer pessoa que fosse encontrada sem ela. Esse ato não era considerado
crime, mas sim enaltecido e recompensado, exigindo-se apenas que o cidadão
levasse a um dos centros da CG o corpo da vítima encontrado sem a marca na
testa ou na mão.
Mas ai daquele que matasse um cidadão leal por engano. O assassinato
de um carpathianista leal era punido com a morte, sem direito a julgamento. Se a
pessoa não conseguisse apresentar um álibi por ter assassinado um cidadão
leal, era morta em 24 horas.
Rayford sentia muita falta de sua família e dos outros membros do
Comando Tribulação, mas o que era bom para um era bom para todos. Eles
haviam se dispersado e mantinham-se escondidos por uns tempos. Rayford
sabia que não seria, nem poderia ser, sempre assim. Ele queria tanto ir a San
Diego que chegava a sonhar com isso.
O ponto alto de seus dias, além de assistir às aulas de doutrina bíblica e
de manter contato com o pessoal do Comando Tribulação, era a mensagem
evangelística proferida diariamente por um dos dois pregadores. Se, algum
tempo atrás, alguém lhe tivesse perguntado se gostaria de receber uma dose
diária de pregação do plano de salvação e desse aos indecisos a chance de
aceitar a Cristo, ele teria dito que isso se tornaria muito cansativo.
Mas todos os dias, Tsion e Chaim, um de cada vez, insistiam em pregar
essa mensagem seguida de uma aula normal para a maioria das pessoas já
convertidas. E, todos os dias, Rayford se emocionava ao ouvi-la.
E essa emoção não era apenas causada porque alguém era salvo todos
os dias - às vezes, mais de um -, mas também porque os rebeldes ou indecisos
quase sempre se sentiam angustiados, lutando contra Deus. Rayford
maravilhava-se ao ver a batalha espiritual que se travava, na qual homens e
mulheres egoístas e pecadores não podiam deixar de ouvir a pregação e, mesmo
assim, não cediam, embora soubessem que seriam beneficiados.
Todas as noites, Chaim pedia que os novos crentes se identificassem e
falassem sobre a vida que levaram antes de se converter. Essa reunião sempre
culminava com cânticos, orações e celebrações.
Certa noite, ainda entusiasmado após ter participado de uma dessas
reuniões, Rayford resolveu assistir a uma aula dada por Naomi, a jovem
especialista em informática. Ela se dispôs a dar aulas a qualquer pessoa que
desejasse aprender como acessar os vários bancos de dados para receber notícias
do mundo inteiro.
Enquanto estava ali tentando aprender alguma coisa, Rayford foi chamado
por Chaim, que queria apresentar-lhe uma nova amiga.
Rayford acompanhou Chaim por uns 200 metros. Por todo o caminho, o
povo estendia a mão para tocar em "Miquéias", para abençoá-lo, agradecer-lhe,
dizer que estava orando por ele e gostando de sua liderança.
- Obrigado, obrigado, obrigado - Chaim dizia, apertando as mãos e
tocando no ombro das pessoas enquanto passava. - Louvado seja Deus.
Louvado seja o Senhor. Que Ele os abençoe.
Finalmente, chegaram a uma área descoberta, onde vários jovens de
nacionalidades e de culturas diferentes conversavam. Eles aparentavam ter mais
ou menos 30 anos.
- Sra. Rice? - Chaim chamou em voz baixa.
Quando a mulher negra e baixa pediu licença para afastar-se, os outros
olharam, curiosos, ao vê-la aproximar-se de Chaim e Rayford.
- Eu a conheço, não? - disse Rayford, curvando-se para apertar a mão
dela. - Deixe-me ver se adivinho. Você é amiga de... não, eu a vi na televisão.
- Bernadette Rice - ela disse com acentuado sotaque britânico e um sorriso
radiante. - Trabalho como repórter em Petra, mas não pertenço mais à CNNCG.
Rayford não sabia o que dizer. Então, ela estava ali a serviço - ou não? -
ou para quê? Ele sorriu para ela e olhou de relance para Chaim.
- Ela própria vai lhe contar - disse Chaim.
Os três sentaram-se nas pedras.
- Eu estava no Monte do Templo trabalhando para a CNNCG no dia em
que Miquéias, isto é, o Dr. Rosenzweig apareceu. Eu não o reconheci. Nenhum
de nós o reconheceu. Não sei o que eu teria pensado se soubesse quem ele era.
Muitas pessoas sabiam, é claro, que ele era o assassino de Carpathia.
- Mas eu não estava sequer pensando nisso quando entrei em cena. Uma
mulher chamada Riehl, que ocupava a função de cabo nas Forças Pacificadoras
da CG... perdoe-me, mas eu me lembro de todos os detalhes e falo dessa
maneira para poder organizar meus pensamentos... bem, ela interrompeu a
reportagem que eu estava fazendo sobre as famílias que visitavam o Monte do
Templo naquele dia. Para dizer a verdade, não fiquei nem um pouco satisfeita
quando ela insistiu em que Rashid, meu operador de câmera, e eu pegássemos
nossas coisas e a acompanhássemos. Eu exigi saber o que estava acontecendo.
- Enquanto me arrastava pela praça, ela disse que Rashid e eu teríamos
um raro privilégio dali a alguns instantes. Um Monitor de Moral do alto escalão
estava prestes a executar uma ordem direta do potentado. Quando chegamos lá,
um jovem alto, vestido de acordo com os MM, isto é, com roupas comuns, estava
diante de um senhor idoso, frágil e pequenino. Perdoe-me, Dr. Rosenzweig, mas
é essa a lembrança que tenho do senhor.
- Bem, às vezes as pessoas que não são jornalistas têm idéias diferentes
sobre uma reportagem de grande impacto. Eu não sabia se a cena seria exibida
ao vivo ou depois de gravada. O tal MM queria levar adiante sua missão,
portanto perguntei ao controle central, que estava produzindo a transmissão, o
que eu deveria fazer. Eles queriam saber quem era o MM e, enquanto eu
procurava obter a informação, o homem insistia para que rodássemos a cena.
- Ele disse que seu nome era Loren Hut, o novo chefe dos Monitores de
Moral, e que recebera ordem de Carpathia para executar o tal Miquéias por ele
ter se recusado a receber a marca e resistido à prisão. Fiz uma rápida
introdução, Rashid focalizou os dois, e a imagem foi transmitida ao vivo pela
CNNCG.
- Você deve lembrar-se de que, naquela época, a praga das úlceras tinha
começado a atormentar todo mundo, e Hut estava sofrendo muito. Ele se
contorcia e se coçava, e eu também comecei a fazer o mesmo. Você chegou a
ver aquela cena, capitão Steele?
- Não, mas ouvi falar...
- Então você sabe o que aconteceu. Hut atirou em Miquéias várias vezes à
queima-roupa e, com exceção do estrondo ensurdecedor do estampido, as balas
não surtiram nenhum efeito. A multidão começou a rir e a acusar Hut de estar
usando balas de festim. Ele matou um homem com um tiro no coração para
provar que os projéteis eram verdadeiros. O povo correu à procura de abrigo, e
eu me atirei no chão, morrendo de medo. Em seguida, Carpathia apareceu em
cena. Quando consegui me recompor, saí rastejando dali em direção às filas de
aplicação da marca, só para despistar caso alguém estivesse me vigiando.
- Mas segui direto para meu hotel. Eu estava muito feliz por não ter
decidido aceitar a marca até aquele instante. Aquele homem era um inimigo de
Carpathia e tinha uma espécie da proteção sobrenatural que eu queria ter. Meus
chefes pensaram que eu estivesse sofrendo com as úlceras, mas nada me
impediria de seguir Miquéias. Assisti a tudo do meu quarto no hotel, tomei
conhecimento da reunião em Masada, coloquei um disfarce, dirigi-me para lá e
cheguei aqui num dos helicópteros. Só recentemente é que orei para ser salva.
- Louvado seja Deus - disse Rayford. - Posso saber por que você demorou
tanto tempo? Você estava aqui quando as bombas foram atiradas. Foi protegida
pelo próprio Deus...
- Com o corpo em chamas!
- Sim! Estou realmente curioso. Qual foi o motivo da demora? Com
certeza, você não estava mais duvidando de Deus.
- Não, de jeito nenhum. Eu não sei como explicar, capitão Steele. Tudo o
que posso dizer é que o inimigo tem um controle muito forte sobre a mente da
pessoa enquanto ela não se entrega a Deus. Eu era uma jornalista, pragmática e
orgulhosa. Queria ter o controle sobre o meu destino. Tudo para mim precisava
ser provado.
- Mas que prova maior...?
- Eu sei. Isso ainda me confunde. Acho que a explicação mais próxima
está no versículo que o Dr. Rosenzweig e o Dr. Ben-Judá citam freqüentemente.
Como é mesmo, doutor? Alguma coisa parecida com luta contra a carne?
Chaim assentiu com a cabeça.
- "Porque a nossa luta não é contra o sangue e a carne, e, sim, contra os
Principados e Potestades, contra os dominadores deste mundo tenebroso, contra
as forças espirituais do mal, nas regiões celestes" [Efésios 6.12].
- É isso mesmo! E é por isso que temos de usar a armadura de Deus,
certo?
- "... para que possais resistir no dia mau, e, depois de terdes vencido tudo,
permanecer inabaláveis" [v. 13]. Amém.
- Gostei muito de ouvir sua história, Sra. Rice - disse Rayford. - A senhora
sabe que meu genro era...
- Sim, sei. O Dr. Rosenzweig me contou. Foi por isso que ele achou que
você gostaria de ouvir minha história.
Rayford olhou para Chaim e, depois, para Bernadette.
- Não me digam que Buck ainda não sabe disso.
- Não por mim - disse Chaim.
Ela fez um movimento negativo com a cabeça.
- Então, se vocês me dão licença... Rayford passou apressado pelo local
onde Naomi estava terminando sua aula de informática; em seguida, atravessou
a área das barracas, onde a maioria dos jovens preferia dormir, e, depois, por um
pequeno acampamento de casas modulares pré-fabricadas.
Elas eram pequenas, mas muito bem construídas. Haviam sido trazidas
por Lionel Whalum, o novo membro da cooperativa, e montadas por um grupo de
voluntários que pareciam ter remodelado a paisagem de Petra quase que do dia
para a noite.
Esperando que sua estada na cidade de pedra fosse apenas temporária,
Rayford havia escolhido uma das menores unidades - mais que suficiente para
ele - perto do local onde Abdullah estava alojado. Smitty gostava de fogueiras ao
ar livre e optara por uma barraca, mais ou menos do tamanho da "casa" de
Rayford, perto de um dos acampamentos.
Antes de entrar em sua moradia temporária, com espaço suficiente apenas
para sua cama, seu computador e o equipamento de transmissão, Rayford olhou
para ver se Abdullah ainda estava acordado. O jordaniano, cujo vulto era visto
através da densa fumaça produzida pela fogueira, acenou para ele e o chamou
com um gesto.
- Vou lhe fazer companhia daqui a uma hora ou pouco mais, meu amigo! -
gritou Rayford.
Ele sentou-se diante de seu computador levando consigo dois frascos de
vidro, uma contendo água e outro maná. Não havia necessidade de aditivos
químicos nem de armazenamento apropriado para conservar o maná. Ele se
estragava da noite para o dia, mas todas as manhãs havia sempre um
suprimento novo e fresco; portanto, economizá-lo era considerado falta de fé e
proibido.
Rayford digitou seu código de acesso, teclou as coordenadas que lhe
permitiam entrar em contato em segurança com San Diego, onde o relógio
marcava dez horas a menos por causa dos fusos horários, e escreveu: "Louvado
seja o Senhor pela vida de Davi Hassid e de Chang Wong".
Ele aguardou. O computador de Buck e Chloe emitiria um sinal para avisar
que ele estava tentando estabelecer contato. Assim que um deles teclasse o
código secreto, as unidades poderiam comunicar-se. Além disso, também tinham
um dispositivo que permitia ver as imagens. Sensores nas bordas das
respectivas telas armazenavam e interpretavam imagens digitais e as
transmitiam de um computador ao outro, portanto eles podiam ver-se na tela, a
menos que a pessoa que chamou tivesse desligado o dispositivo.
Um minuto depois, Chloe apareceu na tela com Kenny, de 20 meses,
pulando em seu colo. Ela teve de segurar a mão do menino para que ele não
mexesse nas teclas. Quando viu os dois, Rayford sentiu uma vontade imensa de
ir para San Diego.
- Oi, papai - disse Chloe. - Diga oi para o vovô, meu amor.
- Vovô! - disse Kenny olhando para a tela.
Rayford tentou posicionar-se melhor sob a luz e acenou para o menino.
Kenny sorriu e abriu e fechou a mãozinha diante da tela.
- Estou com saudade de você, Kenny!
- Saudade! Kenny meninão! - Kenny ergueu as mãos acima da cabeça e
curvou o corpo para trás, forçando Chloe a segurá-lo com força para impedir que
ele caísse de seu colo.
- Você é um meninão? - perguntou Rayford.
Mas Kenny já havia perdido o interesse. Contorceu-se até que Chloe o
soltou do colo.
- Você precisa ver Kenny pessoalmente - disse Chloe.
- Tomara que seja logo - disse Rayford. - Sinto falta de todos vocês.
Cada um contou suas novidades. Pelo fato de Buck estar ausente, em
companhia de Sebastian e Ree Woo, Rayford contou a Chloe a história de
Bernadette Rice.
- Buck vai ficar emocionado - ela disse. - Ree está voltando para a China.
Ming ainda não levantou nenhuma suspeita. Ela anda por todos os lugares, mas
quer sair de lá e trazer a mãe com ela. Talvez desta vez ela consiga.
- Eles vão ficar em San Diego?
- Sim. Acho que Ming está apaixonada por Ree.
- Isso não me surpreende. Cheguei a conhecê-lo numa de suas viagens
para cá.
- Ninguém me contou isso!
- Ele fala muito dela. Parece preocupado com ela. Eu pensei que tivesse
contado a você.
- Não. Deve ser porque eu fico cuidando aqui dos assuntos da cooperativa
a maior parte do dia. Está ficando cada vez mais difícil, papai. Tsion disse
alguma coisa sobre a suspensão da praga? Ou elas vão ser permanentes?
- As anteriores não foram. Mas a de agora é a que está durando mais.
Tsion acha que o Julgamento das Taças sobre os lagos e rios está próximo.
Esse, com certeza, não é permanente.
- Não? Como ele sabe disso?
- Ele diz que haverá um julgamento posterior, um daqueles que precederá
a Batalha de Armagedom e o Glorioso Aparecimento. É sobre o rio Eufrates. A
profecia diz claramente que suas águas secarão.
- Isso é um alívio, mas, se os rios e os lagos em breve se transformarem
em sangue e não retornarem ao normal até o Armagedom, não sei o que vamos
fazer. Será que os mares vão voltar ao normal antes que os rios e lagos se transformem
em sangue?
- Ninguém sabe, Chloe. E o que vai acontecer se os mares voltarem a ter
água salgada? Quanto tempo levaria para reabastecê-los?
- E o que vamos fazer com toda essa mortandade? Só a limpeza levaria
cem anos. Pelo menos, poderíamos ter condições de tratar a água salgada e de
transformá-la em potável. Se os lagos e os rios se transformarem em sangue e
os mares continuarem na mesma, não sei como alguém terá condições de
sobreviver.
- Tsion diz que Deus vai tirar de nosso meio muitas pessoas que têm a
marca da besta, para que elas não possam continuar a evangelizar em prol do
demônio. Acho que Ele deseja nivelar as desigualdades um pouco antes da
última batalha.
- Até parece que Ele precisa fazer isso, papai.
- Como você está se sentindo, querida?
- Exausta, só isso. Mas nós gostamos muito da família de Sebastian e dos
crentes daqui. Já que temos de passar por isso tudo, o melhor lugar para estar é
aqui.
Já passava bastante da meia-noite em Zhengzhou, e Ming estava com
saudades de casa. De que casa, ela não sabia. Não tinha mais casa. Queria
estar com Ree Woo, embora até aquele momento eles só tivessem ficado de
mãos dadas. Ele veio visitá-la - mais de uma vez - conforme prometera, e ambos
se tornaram bons amigos, irmãos em Cristo.
Ming não sabia se fazia sentido pensar nele em termos românticos, já que
faltavam apenas três anos e meio para o Glorioso Aparecimento. Além disso,
Ree tinha um emprego terrivelmente perigoso, e quem gostaria de arriscar-se a
enviuvar duas vezes em questão de poucos anos? Por outro lado, como seria se
ambos sobrevivessem? Ela teria de estudar o que o Dr. Ben-Judá dizia sobre as
pessoas casadas que viveriam no reino milenar.
Embora estivesse ao lado da mãe, Ming não se sentia em casa. Ela
compreendia o idioma, até mesmo os dialetos mais complicados, por ter sido
criada na China. Mas os crentes viviam em constante temor, dormiam em
quartos coletivos, tinham pouca privacidade e nunca sabiam quem bateria à
porta na calada da noite.
Sua mãe parecia em paz, apesar da perda recente do marido, mas contou
a Ming que gostaria de ter morrido com ele. Embora fosse uma crente novata, a
Sra. Wong sempre foi uma mulher preocupada por natureza e começou a ter
idéias fatalistas no decorrer das últimas semanas. Ming tentou persuadi-la a sair
furtivamente da China e a ir morar em San Diego com ela, mas a mulher não
queria ouvi-la. Fosse como fosse, aquele era seu lar, e a palavra Califórnia
soava-lhe como o nome de um planeta diferente. Ela se preocupava com Chang,
com Ming, ambos fingindo trabalhar para a Comunidade Global.
Ming, ainda disfarçada de Chang Chow e vivendo como homem quando
estava fora do abrigo subterrâneo, estava constantemente à beira do perigo. Seu
irmão se oferecera para incluí-la como funcionária de alto nível, com direito a
fazer parte da folha de pagamento e a receber os benefícios legais. Ela recusouse,
para proteger o irmão, sabendo que a vigilância em Nova Babilônia estava
cerrada. Um pouco de dinheiro lhe permitiria completar o disfarce e viver com
recursos próprios, mas não valeria a pena, porque Chang ficaria vulnerável no
palácio. Portanto, ela resolveu viver da parca ajuda proporcionada pelos crentes.
Ming tentava manter distância dos outros homens das Forças
Pacificadoras, embora alguns quisessem aproximar-se dela convidando-a para ir
a vários lugares com eles. Ming sempre inventava alguma desculpa. O mais
difícil de tudo era receber tarefas de pessoas superiores na hierarquia da CG. Ela
ocupara a posição de chefia no Presídio de Reabilitação Feminina da Bélgica,
uma penitenciária feminina conhecida pela CG como PRFB. Mas agora, com
uma farda masculina das Forças Pacificadoras, Ming era apenas um peixe
pequeno, recebendo ordens de muita gente.
Isso, pelo menos, lhe permitia ter acesso a informações, e ela conseguia
avisar os crentes sobre invasões e investigações de surpresa.
A CG local havia planejado uma invasão às 2 horas de determinada
madrugada, mas dessa vez não seria para atacar os crentes, e sim um pequeno
contingente de muçulmanos que vivia em cavernas no extremo nordeste da
cidade, por onde o metrô trafegava antes. Ming surpreendeu-se ao ouvir falar
desse grupo, pelo fato de desconhecer que havia outros focos de resistência
contra o Carpathianismo além dos chamados judaístas e de grande parte dos
judeus ortodoxos. Em uma reunião das tropas da CG para planejar o ataque aos
dissidentes, Ming ficou sabendo que aqueles "zelotes" continuavam a ler o
Alcorão, usavam turbantes, escondiam grande parte de sua população feminina
e praticavam os Cinco Pilares do Islamismo.
Ela não vira ninguém curvando-se em direção a Meca cinco vezes por dia,
mas o Serviço de Inteligência concluiu que esse grupo ainda seguia aquele ritual
reservadamente. Também faziam donativos - uma contribuição pública com a
conseqüente divisão de recursos, muito necessários, de qualquer modo, em
razão do atual clima político.
Não se sabia ao certo se esses seguidores do islamismo - mais
predominantemente no oeste da China - ainda jejuavam durante o ramadã.
Aparentemente, todos estavam jejuando, de uma forma ou outra, desde que as
águas dos mares se transformaram em sangue. Também não havia mais
condições de ir a Meca pelo menos uma vez na vida, depois que a Comunidade
Global e o Carpathianismo arrasaram a cidade sagrada dos muçulmanos.
O pilar da fé dos muçulmanos, que tanto indignava o potentado e, por
conseqüência, os homens das Forças Pacificadoras e os Monitores de Moral da
Comunidade Global, era o primeiro e o mais importante dogma da religião
islâmica. Sua profissão de fé declarava um Deus monoteísta - "Existe um só
Deus, Alá..." - e exaltava o fundador da religião - "... e Maomé é seu profeta".
Evidentemente, aquilo representava um tapa na cara do Carpathianismo,
que também era monoteísta. Os muçulmanos não adoravam ídolos. Em sua
prática de fé, não havia imagens, mas eles também eram obrigados a adorar a
imagem de Carpathia.
- Essa escolha deles vai acabar dentro de meia hora - disse às tropas o
líder local, um homem corpulento chamado Tung. - Vamos destruir aquele
pequeno encrave com armas pesadas e preparem-se para atirar imediatamente
em qualquer pessoa que não tenha a marca. Mas desejamos e esperamos que
eles não resistam. Recebi ordens da chefia do palácio da Comunidade Global
dizendo que certa pessoa do mais alto escalão deseja usar essa gente como
exemplos vivos.
- Nós os conduziremos ao centro de aplicação da marca de lealdade, que
fica a cerca de seis quarteirões do esconderijo deles, e lá eles passarão a noite
decidindo o que farão de manhã. Assim que o sol lançar seus raios na linda
estátua de jade do Supremo Potentado Carpathia, esses infiéis se ajoelharão
perante ela, prontos para receber a marca de lealdade, ou serão executados
diante do público. Porém, eles não sabem que serão executados de qualquer
maneira, independentemente de sua decisão. A CNNCG planeja transmitir a
cena ao vivo.
Todo o pessoal da CG perto de Ming irrompeu em gritos e aplausos. Em
seguida, formaram fila para receber as armas; a de Ming era um lançador de
granadas, que ela não usaria de maneira alguma. Se aquilo significasse o fim de
sua vida, paciência.
Rayford encontrou Abdullah aquecendo-se perto da fogueira. Smitty, que
se tornara mais expressivo e sentimental ao longo dos últimos meses, levantouse
rapidamente e abraçou Rayford.
- Parece que já estou no céu, meu amigo - ele disse.
- Sinto falta dos vôos, mas adoro todos esses ensinamentos. E a comida!
Quem diria que a mesma refeição servida três vezes ao dia me deixaria ansioso
por receber a próxima?
Rayford não entendia como Abdullah conseguia sentar-se, tão
confortavelmente, em cima das pernas cruzadas. Parecia normal e fácil, mas as
juntas de Rayford estalavam, e ele gemia quando se abaixava e sentia cãibras
enquanto permanecia sentado. Preferia sentar-se no chão, apoiado em uma das
mãos e com as pernas esticadas para o outro lado. Abdullah se divertia com
aquilo.
- Vocês, ocidentais, orgulham-se tanto de praticar exercícios, mas você
tem as juntas duras.
- Acho que você está acostumado a sentar-se em tapetes mágicos - disse
Rayford.
Abdullah riu.
- Eu gostaria que Mac estivesse aqui. Ele me inspira a pensar em coisas
como... não sei bem como se diz. Resposta na ponta da língua? É esse o nome
que ele dá?
- Acho que sim. Mac é imprevisível. Você o viu hoje?
- Claro. Ele e Albie sempre me olham de cima a baixo quando chegam
aqui e dizem que estou engordando de tanto comer maná. Eles querem que eu
passe a fazer parte de seu pequeno grupo de pilotos. Logo esse dia vai chegar,
assim espero. Por enquanto, os anciãos acham que é muito perigoso, mas meu
palpite é que você está ansioso por ir embora daqui.
- Mais do que imagina - disse Rayford. - Embora eu esteja satisfeito em
submeter-me à autoridade daqui, ainda tenho muitas perguntas a fazer.
- Eu também! Deus está protegendo de maneira sobrenatural aqueles que
entram e saem daqui de avião, apesar de todos os esforços do inimigo. Acho que
isso deveria ser suficiente para que a CG parasse de gastar balas e mísseis.
Eles acertaram alguém ou alguma coisa?
Rayford sacudiu a cabeça.
- Até agora, não. E as histórias? Você ouviu as histórias? Abdullah jogou a
cabeça para trás e contemplou as estrelas.
- Tenho ouvido, capitão. Quero fazer parte de uma. Quero que o Senhor
me proteja mais uma vez do perigo e da morte enviando um de seus visitantes
especiais. Você se lembra do vôo para cá, quando a CG estava atirando diretamente
em nossa aeronave? Parecia que estávamos vivendo nos tempos bíblicos.
Eu me senti como Daniel na cova dos leões. Vi os mísseis chegando e sabia que
estávamos bem na mira, mas eles simplesmente passaram por nós. Capitão, o
que a CG deve pensar quando vê isso acontecer em plena luz do sol quase
todos os dias?
DEZESSEIS
Ming marchava pelas ruas em companhia de outros soldados da CG rumo
ao extremo nordeste de Zhengzhou. Havia poucos cidadãos fora de casa, mas
sabia-se que a adoração e os períodos de preleção dos muçulmanos eram
realizados a essa hora da manhã.
Tung, o líder da CG, dividiu o grupo armado de 30 soldados das Forças
Pacificadoras e enviou-os às quatro entradas do antigo metrô, que limitavam a
área ocupada pelos muçulmanos. Aparentemente, eles nunca haviam sido
incomodados após a meia-noite, porque o local estava guardado apenas por um
vigia em cada entrada, no fim das escadas. Os vigias foram dominados com
rapidez e em silêncio, e nenhum tinha a marca de lealdade para exibir à CG. Eles
foram levados para cima por dois homens da CG, que os conduziram ao centro
de aplicação da marca.
O restante dos soldados invadiu silenciosamente a reunião de cerca de
quatro dúzias de homens e mulheres. Os muçulmanos imediatamente
perceberam que a segurança havia sido dominada e que não seria possível
oferecer resistência.
Eles simplesmente permaneceram no mesmo lugar, ouvindo as palavras
de um orador do próprio grupo. Tung havia previsto essa possibilidade e instruíra
seu pessoal para aguardar em silêncio, a fim de reunir provas de traição e de
deslealdade ao Carpathianismo.
O orador tomou conhecimento rapidamente da situação e começou a
encerrar seu discurso. Mas ele não se intimidou e foi até o fim, olhando de vez
em quando para seus captores.
- Portanto - ele disse -, consideramos Deus mais que o criador de todas as
coisas. Ele é onisciente, um Deus de justiça, de amor e de perdão, todopoderoso.
Acreditamos que ele revelou o Alcorão a nosso profeta para nos guiar
à justiça e à verdade. Nós somos a obra-prima de sua criação, mas também
somos fracos e egoístas e, às vezes, facilmente tentados por Satanás a
esquecer nosso propósito nesta vida.
Ele fez uma pausa e olhou para o pessoal da CG mais uma vez.
- Sabemos que a palavra Islã significa submissão. E todos nós que nos
submetermos a Deus e que nos arrependermos de nossos pecados ganharemos
o paraíso no final. Aqueles que não fizerem isso sofrerão no inferno.
A seguir, os muçulmanos curvaram-se em direção a Meca e começaram a
orar - todos menos três. Eles se sentaram nos fundos do recinto e, quando Tung
deu um passo à frente para exigir que a cerimônia fosse interrompida, um dos
três levantou-se, apontou para ele e levou o dedo indicador aos lábios.
- Espere - ele disse em voz baixa, mas com tanta firmeza de caráter e,
pelo que Ming pôde notar, com tanta convicção que Tung parou.
Seus comandados olharam para ele e para o homem em pé.
Os muçulmanos levantaram a cabeça e voltaram a sentar-se. Os três
homens atravessaram o recinto e caminharam em direção ao local onde o orador
havia falado.
- Esta reunião ainda não terminou - disse um deles. Ming estava perplexa.
Os três não portavam armas.
Apesar de usarem trajes semelhantes aos dos muçulmanos, não se
vestiam exatamente como eles. Usavam sandálias e mantos, sem turbantes.
Tinham barba e cabelo relativamente curtos. Não pareciam asiáticos nem
orientais. Ming não foi capaz de adivinhar a nacionalidade deles, nem pela
aparência, nem pelo sotaque do orador. Ele falava alto o suficiente para ser
ouvido, mas com tom de voz tão firme que atraiu a atenção de todos.
- Meu nome é Cristóvão. Meus companheiros são Naum e Calebe.
Estamos visitando vocês em nome do único e verdadeiro Deus de Abraão, de
Isaque e de Jacó, o Santo de Israel e Pai de nosso Senhor e Salvador Jesus, o
Messias. Não viemos para discutir religião, mas para pregar o Cristo que foi
crucificado, morto e sepultado, que ressuscitou após três dias e agora está
assentado à destra de Deus, o Pai.
De repente, Cristóvão falou com voz tão alta que muitas pessoas taparam
os ouvidos. Mesmo assim, Ming achou que eles conseguiam ouvir cada sílaba.
- Temei a Deus e dai glória a Ele, porque a hora de seu julgamento
chegou! Adorai aquele que fez o céu e a terra, o mar e as fontes de água!
Cristóvão parecia estar aguardando que suas palavras se fixassem na
mente de todos. Em seguida, prosseguiu em voz mais baixa:
- Cristo morreu por nossos pecados, de acordo com as Escrituras
Sagradas; Ele foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, de acordo com as
Escrituras Sagradas. Se pregamos que Cristo ressuscitou, como alguém entre
vós pode dizer que não existe ressurreição? - Se não existe ressurreição, então
Cristo não ressuscitou. E, se Cristo não ressuscitou, nossa pregação é vã, e a fé
em Cristo também é vã. Testemunhamos que Deus ressuscitou Cristo. Se Cristo
não ressuscitou, os homens e as mulheres continuam mortos em seus pecados.
Ming procurou ver o rosto dos muçulmanos. Ela esperava que eles se
levantassem para protestar, mas eles não fizeram nenhuma objeção, talvez por
estarem diante de seus captores ou por terem entendido que essa pregação
também desafiava o Carpathianismo. Todos pareciam hipnotizados diante da
audácia de um estranho que desconsiderava as crenças deles e pregava a sua.
Cristóvão deu um passo para trás, e Naum apresentou-se.
- Babilônia cairá - ele disse. - A grande cidade certamente cairá, porque
ela obrigou todas as nações a beberem do furor de sua prostituição. Ela
estabeleceu um sistema de falsa esperança, não apenas em termos de
religiosidade, mas também econômicos e governamentais.
- O Senhor é Deus zeloso e vingador. Ele executará vingança contra seus
adversários e reserva indignação para seus inimigos.
- O Senhor é tardio em irar-se e grande em poder. Ele terá seu caminho na
tormenta e na tempestade. As nuvens são o pó dos seus pés.
O pessoal da CG parecia apavorado. Ming olhou para Tung, cujos lábios
tremiam. Ele segurou sua arma com mais força, mas não saiu do lugar.
Naum prosseguiu:
- Deus repreende o mar e o transforma em sangue. Ele pode secar todos
os rios. Os montes tremem perante Ele, e as colinas se derretem, e a terra
queima em sua presença; sim, o mundo e todos os que nele habitam.
- Quem poderá suportar a sua indignação? Quem resistirá ao furor de sua
ira? A sua cólera será derramada como fogo, e as rochas serão demolidas por
Ele.
- O Senhor é bom, uma fortaleza no dia da angústia. O Senhor conhece os
que nele confiam. Mas com inundação transbordante acabará de vez com o lugar
que se opõe a Ele, e com trevas perseguirá os seus inimigos.
Todos os que estavam no esconderijo permaneceram imóveis, sentados
ou em pé, com os braços para baixo, encostados junto ao corpo. Parecia que
estavam recolhidos dentro de si mesmos, assustados diante do pronunciamento
de Naum. Quando ele deu um passo para trás, Calebe apresentou-se, mas, em
vez de dirigir-se aos muçulmanos, virou-se e encarou Tung.
- Se alguém adorar a besta e sua imagem e receber sua marca na testa ou
na mão, essa pessoa beberá do vinho da ira de Deus, que é derramada no cálice
de sua indignação. Aquele que receber a marca será atormentado com fogo e
enxofre na presença dos santos anjos e na presença do Cordeiro, que é Cristo, o
Messias.
- A fumaça de seu tormento subirá pelos séculos dos séculos, e não terá
descanso, nem de dia nem de noite, aquele que adorar a besta e sua imagem e
receber a marca de seu nome.
A princípio, ninguém se movimentou. Em seguida, um homem da CG,
depois outro e mais outro saíram correndo do esconderijo, subindo as escadas
de dois em dois degraus. Tung gritou com eles, chamou-os pelo nome, ameaçouos.
Mas outros dois, depois mais três os seguiram.
Os muçulmanos continuavam imóveis. Finalmente, alguns se levantaram,
e os homens da CG olharam para Tung, sem saber o que fazer. Ele levantou sua
arma na direção dos três desconhecidos, mas, aparentemente, estava
impossibilitado de falar. Quando recobrou a voz, ele disse:
- Para o centro!
A CG começou a cercar os muçulmanos, que, com exceção de meia dúzia,
deixaram-se ser conduzidos escada acima. Tung fez um movimento com a
cabeça para dois de seus homens indicando que eles deveriam ajudá-lo a
agrupar os últimos seis. Mas, assim que os homens se aproximaram, Cristóvão
inclinou-se na direção da CG e disse:
- Ainda não é chegada a hora deles.
Ming protelou um pouco e deu um jeito para que fosse a última a sair. Ela
andaria vagarosamente atrás do grupo principal. Era evidente que Cristóvão,
Naum e Calebe estavam conversando e orando com os seis que restaram.
Cristóvão disse a Tung:
- Estes aqui comparecerão quando chegar a hora deles.
E, para total espanto de Ming, o líder da CG fez um sinal para que os
últimos dois guardas o acompanhassem e todos saíram.
Ming havia-se comovido a tal ponto que não notou se os três
desconhecidos tinham o selo dos crentes na testa. Deveriam ter, não? Ela
gostaria de saber, mas não esperava vê-los novamente.
Enquanto o grupo assustado de muçulmanos era conduzido pelas ruas
rumo ao centro de aplicação da marca de lealdade, Ming retardou seus passos.
Apesar de sua pequena estatura, ela podia vê-los a alguns quarteirões de
distância. Enormes holofotes iluminavam o centro, mas ninguém tomara
conhecimento da invasão, e havia poucos espectadores ali - apenas os homens
da CG que dominaram os quatro vigias muçulmanos. Porém, a menos que seus
olhos a tivessem enganado, Ming avistou outros três desconhecidos, de cabelos
e de barba aparados, trajando mantos, mas sem turbantes. Eles se pareciam
muito com os outros três que tinham encontrado havia pouco.
Porém, assim que a CG e os muçulmanos se aproximaram deles,
começaram a apontá-los e a conversar entre si. Eram os três de antes! Eles se
postaram no início da fila, sem fazer caso dos gritos dos funcionários da CG que
lhes diziam para afastar-se dali.
Quando os muçulmanos foram conduzidos para a fila, Ming conseguiu ver
os três mais de perto. Eles não tinham o selo dos crentes na testa! Ela não sabia
o que pensar. Seriam rebeldes, impostores ou o quê?
Tung aproximou-se deles empunhando seu rifle.
- Onde estão os outros? Vamos persegui-los e vocês serão responsáveis...
- Eles comparecerão quando chegar a hora deles - disse Cristóvão
novamente.
Por um motivo ou outro, Tung se calou.
Os muçulmanos foram instruídos a posicionar-se. Quando Tung perguntou
quantos receberiam a marca de lealdade a Carpathia, cerca da metade levantou
a mão. Os outros resmungaram e argumentaram com os homens da CG.
Tung riu.
- Não faz diferença nenhuma! Vocês vêem? Demoraram demais. Foram
descobertos só hoje cedo, depois de meses após o vencimento do prazo para
receber a marca. Vocês morrerão com os demais, quando o dia começar a
clarear.
Ele virou-se para os outros.
- E quantos de vocês vão optar pela guilhotina, como se houvesse
escolha?
O restante dos muçulmanos levantou a mão. Ming notou que nenhum
deles tinha o selo dos crentes na testa. Cristóvão dirigiu-se a eles.
- Resistam à tentação de optar pela guilhotina sem aceitar a Cristo, o
Messias. Vocês morrerão em vão.
- Morreremos por Alá! -. gritou um deles, e os outros levantaram as mãos
fechadas em sinal de rebeldia.
- Vocês morrerão da mesma forma - disse Tung.
A atenção dele foi desviada para a rua, e todos se viraram para ver os
últimos seis muçulmanos caminhando, com passos firmes, em direção ao centro.
Ming notou que Tung não esperava vê-los novamente. Quando chegaram,
examinaram o local e seguiram diretamente para a área que levava às
guilhotinas.
- Ainda bem que vocês são tão decididos - disse Tung. - Mas só abriremos
o local quando o dia clarear. Aí, então, vocês serão estrelas da TV, e o público
verá o show, ao vivo.
Cristóvão, Naum e Calebe sentaram-se diante dos indecisos, cada um
conversando com um grupo pequeno, suplicando, explicando, insistindo que
aceitassem a Cristo antes que fosse tarde demais. Finalmente, Tung resolveu
cumprir seu dever.
- Basta! - ele gritou. - Saiam daqui! Essa gente fez sua escolha há muito
tempo, e o castigo será aplicado de manhã. Fora daqui, já!
Os três não lhe deram atenção, mas Tung não se intimidou.
- Dentro de cinco minutos, vou abrir fogo contra vocês e instruir meus
homens a fazerem o mesmo.
Ming entrou em pânico. Ela não atiraria naqueles homens de Deus! Será
que poderia fingir, esconder-se, passar despercebida?
Tung aguardou alguns instantes e levantou sua arma. Ele estava a pouco
menos de dois metros da cabeça de Cristóvão quando destravou o dispositivo de
segurança e apertou o gatilho, gritando:
- Soldados das Forças Pacificadoras, atirem!
Ming posicionou-se e fingiu estar preparando seu lançador de granada.
Certamente Tung não esperava que ela colocasse um explosivo no meio do
povo, dos muçulmanos, da CG. Mas ela se deu conta de que era a única que
estava tomando uma atitude. Os demais pareciam paralisados. O rosto de Tung
estava contorcido em uma expressão de raiva, como se ele estivesse prestes a
explodir a cabeça de alguém.
Ming tentou parar, mas desequilibrou-se e tropeçou no pé de um homem a
seu lado, quase caindo em cima do que estava ao seu lado. Ela temia ter se
evidenciado demais; era a única que não estava sob o poder dos homens santos.
Mas Cristóvão dirigiu-se a ela.
- Não temas, querida irmã.
Pronto! Ela havia sido descoberta! Agora todos saberiam que ela não era
um homem!
- Deus está contigo - disse Cristóvão. - Ninguém pode nos ouvir e ninguém
se lembrará do que aconteceu aqui. Eles só se lembrarão de que a ofensa
cometida contra os porta-vozes de Deus foi em vão. Sê corajosa e anima-te. Teu
Pai celestial cuida de ti, e não verás a morte antes que seu Filho retorne mais
uma vez.
Ming sentiu-se resplandecer da cabeça aos pés. Uma onda de calor
passou por seu corpo dando-lhe ânimo, força e coragem. Ela estava curiosa. Se
Cristóvão conhecia os planos de Deus, será que ele poderia contar-lhe mais
alguma coisa? Ming não conseguia abrir a boca, apesar de ter muitas perguntas
a fazer.
Cristóvão respondeu, mesmo sem ter sido perguntado.
- Tua mãe também não verá a morte antes do glorioso aparecimento do
Rei dos reis. Mas tu te separarás dela brevemente. Retornarás a teus amigos, e
nem todos permanecerão aqui na terra até o fim.
Ming queria perguntar quem, mas continuava impossibilitada de falar. Seus
braços e pernas estavam pesados e imóveis. Ela só conseguia ficar olhando para
Cristóvão. Parecia que ela estava sorrindo. Na verdade, todo o seu corpo sorria.
Cristóvão levantou-se, e Naum e Calebe aproximaram-se dele. Ela notou
que eles foram ficando cada vez maiores até se elevarem acima de todos os que
estavam ali. Cristóvão estendeu a mão aberta para Ming, mas ela não conseguiu
pegá-la e temeu que todo o seu corpo fosse envolvido por aquela mão.
- "Ora" - ele disse -, "o Deus da paz, que tornou a trazer dentre os mortos a
Jesus nosso Senhor, o grande Pastor das ovelhas, pelo sangue da eterna
aliança, vos aperfeiçoe em todo bem, para cumprirdes a sua vontade, operando
em vós o que é agradável diante dele, por Jesus Cristo, a quem seja a glória
para todo o sempre" [Hebreus 13.20].
Os três desapareceram e, de repente, o dia amanheceu. O sol estava
brilhante e quente. Tung e seus homens, com semblantes sérios, agiam como se
soubessem que estavam sendo filmados. Eles atravessaram a aglomeração de
curiosos e de muçulmanos.
Todas as vítimas da invasão estavam na fila da guilhotina. Para surpresa e
grande alegria de Ming, pelo menos 25 estampavam o selo dos crentes na testa.
No rosto de cada um havia uma expressão de certeza e uma paz tão grande que
todos disseram que aceitariam as conseqüências de sua decisão.
Somente quase seis meses depois foi que Chang começou a sentir que a
pressão diminuíra no palácio, pelo menos um pouco. Ele tentava alguma coisa
nova todos os dias, bisbilhotando aqui e ali, verificando o disco de memória que
David Hassid implantara ocultamente no sistema. Tudo o que acontecera no
palácio desde que Chang começou a trabalhar disfarçado encontrava-se nos
registros do computador. Ele não ficava mais ouvindo nenhuma conversa ao
vivo, mas podia verificar o calendário em dias que ocorreram eventos específicos
e, então, buscar o que havia ficado gravado pela escuta clandestina e saber o
que se passara atrás das portas.
Finalmente, sua irmã havia fugido da China. Sua mãe insistira para que
Ming retornasse aos Estados Unidos Norte-americanos com seu jovem amigo.
Ela preferia continuar na China. Ming disse a Chang que não contou à mãe
a promessa de Cristóvão de que nenhuma delas veria a morte antes do Glorioso
Aparecimento, mas "a mamãe parece estar vivendo como se quisesse que isso
acontecesse - chegar ao fim".
Ming contou a Chang como tinha sido maravilhoso subir a bordo com Ree,
voar o dia inteiro, passar com facilidade pelos bloqueios da CG e chegar a San
Diego. Finalmente, ela se livrou da farda masculina das Forças Pacificadoras da
CG e deixou seus cabelos crescerem... voltou a ser mulher.
- Por causa de Ree? - Chang lhe perguntou falando em um telefone
seguro.
- Por minha causa! - ela respondeu. - Bem, talvez um pouco por causa
dele.
- Como vocês estão indo?
- Não é da sua conta.
- Claro que é.
- Posso dizer que estamos iniciando uma espécie de relacionamento - ela
disse -, mas é difícil concentrar-se nisso, porque ele viaja quase que o tempo
todo. O pessoal daqui brinca comigo, até o capitão Steele. Mas Ree e eu não
estamos namorando.
- Ele ainda não beijou você?
- Eu não disse isso.
- Isso está me parecendo namoro.
- Foi um beijo de despedida antes da última viagem dele e um beijo
quando ele voltou. O beijo foi dado na frente do pessoal, portanto não foi nada
romântico.
Chang quis saber como Rayford estava se sentindo depois de ter-se
mudado mais uma vez.
- Tem sido difícil para ele, Chang. Ele está emocionado por voltar a viver
com a família, é claro, e você deveria vê-lo brincando com o neto! Mas ele ainda
se sente isolado do restante do Comando Tribulação, mesmo depois que
Sebastian instalou equipamentos aqui que permitem a ele, e a todos nós,
continuar trabalhando como antes. Mas é deprimente viver debaixo da terra. E
sei que ele sente falta das muitas vantagens que tinha em Petra.
Para Chang, a única pessoa que mais se beneficiava com o que havia em
Petra era Abdullah Smith. Ele voltara a voar e fazia viagens de ida e volta ao
local, muitas delas em companhia de seus velhos amigos Mac e Albie. Mas
preferiu, e eles concordaram, continuar a morar em Petra.
Ele se tornou especialista em informática e, freqüentemente, divertia o
restante do Comando Tribulação com as histórias de suas últimas travessuras,
muitas ocorridas ali mesmo em Petra. Ele havia acabado de enviar um longo
relatório a Rayford, com cópia para os companheiros. Escreveu em inglês para
que todos pudessem entender, mas ainda estava aprendendo o idioma. O
relatório dizia o seguinte:
Ontem de tarde, depois do meio-dia, tivemos alguns momentos especiais
aqui quando o Dr. Ben-Judá nos ensinou a viver no Espírito. Esse Espírito é o
Espírito Santo, que eu conhecia das aulas anteriores dele, mas não conhecia
muito bem.
Capitão Steele, você deve se lembrar de que, pouco antes de você partir,
estava havendo alguns problemas aqui. Nada muito importante, mas as pessoas
estavam ficando nervosas uma com a outra e reclamando aos anciãos sobre isto
e sobre aquilo. Você sabe quem resolveu tudo e fez o povo voltar a viver em
paz? Não, não foi o Dr. Ben-Judá. Foi Chaim. Sim, é verdade. Ele se tornou um
líder sábio e muito queridinho por todos daqui. Meu corretor ortográfico sublinhou
a palavra queridinho em vermelho, mas é isso que ele é, com certeza.
Hoje, o Dr. Ben-Judá falou a respeito de Chaim, que muitas pessoas aqui
ainda gostam de chamar de Miquéias. A passagem bíblica que ele escolheu foi
Efésios 5.18-21. Ela fala que devemos nos encher do Espírito, ter um cântico no
coração (gosto muito disso), dar graças por tudo e nos sujeitarmos uns aos
outros. Ele disse que essas são as características de Chaim, e, pela reação das
pessoas, acho que eles concordaram com muito entusiasmo.
Ele também se referiu a Gálatas 5.22-23, que relaciona o fruto do Espírito.
Sei que você conhece esse texto, capitão Steele, mas, como minhas mensagens
a você também vão para meu diário pessoal, quero mencionar suas partes, uma
a uma: amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade,
mansidão, domínio próprio.
Não sei quanto a você, mas muitas dessas coisas não faziam parte da
minha natureza, da minha cultura, da minha educação. Mas elas fazem parte da
personalidade de Chaim, transformando-o no grande líder daqui.
Mas a palestra foi ótima, capitão Steele. Fiz muitas anotações. O Dr. Ben-
Judá disse que, se formos capazes de aprender a andar no Espírito, será mais
fácil atravessar os dois anos e meio que temos pela frente. Ele disse que, além
das nove características que devemos ter, e do coração alegre, agradecido e
submisso, só vamos saber que temos o Espírito quando recebermos o poder de
falar de Cristo a outras pessoas. Ele extraiu esse ensinamento de Atos 1.8,
quando Jesus disse aos seus discípulos que eles teriam poder depois que o
Espírito Santo descesse sobre eles e que seriam suas testemunhas até os
confins da terra.
Acredite ou não, temos de ser testemunhas até mesmo aqui. Ainda
existem alguns entre nós que não aceitaram Cristo. O problema agora é que
existem boatos de operadores de milagres no Neguev, que fica perto daqui.
Muitas pessoas contaram que ficaram sabendo disso pelos amigos de fora.
Algumas disseram que leram uma reportagem na revista A Verdade, do Sr.
Williams. Sei que elas podem ter lido, porque está escrito na revista, mas ele
deixou muito claro que essa gente não passa de impostores, charlatães. Mesmo
que consigam fazer algumas mágicas, foram contratados por Carpathia e não
merecem confiança.
Mas você pode acreditar? Há grupos aqui que planejam sair para ouvir
essa gente! Eu devo ter o Espírito, capitão Steele, porque eu - e você sabe que
sou muito tímido - estou pregando contra isso, pedindo ao povo que não saia
daqui.
Você já ouviu falar que o chefe do Carpathianismo, aquele que
conhecemos como falso profeta, está desafiando o Dr. Ben-Judá para um debate
na TV? Não posso acreditar que ele seja tão idiota! Será que ele não se lembra
de que o Dr. Ben-Judá atraiu a atenção do mundo quando falou pela primeira vez
na TV que Jesus era o Messias? Será que ele não sabe por que o Dr. Ben-Judá
tem tantos seguidores?
Nenhuma pessoa que saiba raciocinar permitiria que Leon Fortunato
entrasse em Petra, é claro, e nenhum de nós aconselharia o Dr. Ben-Judá a ir a
algum lugar aprovado pela Comunidade Global. Se isso acontecer, Tsion deve
ser filmado aqui, e Leon quem sabe onde? Francamente, espero que a CG seja
idiota o suficiente para levar essa história adiante e que eles tenham a coragem
de transmitir ao vivo, sem censura.
Eu continuo emocionado por poder servir a Deus sob sua divina proteção.
E, embora isso aconteça quase todas as vezes que chego ou saio daqui, nunca
me canso de ver a CG ameaçar, advertir e até mesmo atirar para cima tentando
nos atingir. Eles perdem seus mísseis e balas e não nos acertam nem à queimaroupa.
Muitos deles podem ter mudado de idéia sobre Deus e sobre Nicolae
Carpathia, só que agora é tarde demais.
Rayford sempre gostava de receber notícias de Smitty. Havia um ar de
juventude e de inocência nele que não tinha nada a ver com sua idade. Smitty
tinha 30 e poucos anos, mas Rayford o amava como a um filho.
Ele estava desligando seu computador, quando Chloe bateu na porta. Ela
estava sozinha.
- Você tem um minuto? - ela perguntou.
- Para você? Está brincando? Onde estão seu marido e seu filho?
- Fazendo o que Kenny mais gosta.
- Lutando no chão - disse Rayford.
- Exatamente. Vou lhe contar uma coisa, papai. Desde antes de Kenny
nascer, estou tentando descobrir o que significa lidar com uma criança de dois
anos. Dizem que é uma idade muito difícil.
- Não deve ser tão complicada assim, é? Ele vai ficar um pouco
indisciplinado por ter de brincar o tempo todo dentro de casa.
- Nós vamos superar isso. A brincadeira de luta com o pai ameniza um
pouco a agitação dele. Kenny é um menino, é assim mesmo. Mas, espere aí, vim
até aqui para termos uma conversa profissional.
- Sério?
- Preciso de um favor. Você está me devendo alguma coisa?
- Vamos fazer de conta que lhe devo muitas coisas. Você vai me dar uma
tarefa. Na cooperativa, acho.
- Ah, sim. Dentro de três meses, vai haver uma de nossas maiores trocas
de mercadorias, mas tem de ser feita por via aérea, e precisamos de uma
tripulação extra. Eu gostaria que você tomasse conta do lado ocidental. Mac vai
cuidar do lado oriental.
- É tão grande assim? Sou todo ouvidos.
- Estou trabalhando nisso, pechinchando daqui e dali, mas as duas partes
têm estoque demais. Eles não necessitam de tudo o que têm, e estão prontos
para fazer uma permuta. Você sabia que a água se tornou tão valiosa quanto o
trigo?
- Claro.
- Nossos amigos argentinos estão dispostos a provar isso. Conseguimos
um contingente, dirigido por um tal de Luís Arturo, em Gobernador Gregores, no
rio Chico. Eles colheram milhares de alqueires de trigo, mas estão preocupados
com o pouco tempo que nos resta e com o tamanho da operação. E precisam
muito de água. O rio Chico está cada vez mais poluído, e eles desconfiam que a
CG está por trás disso.
- Eles têm trigo e precisam de água. Quem tem água?
- O lugar mais improvável do mundo. Bem, talvez não seja tão improvável
quanto o meio do deserto, mas não é um local onde a gente imagina encontrar
água engarrafada. É, provavelmente, a maior igreja clandestina fora da América.
O grupo de Bihari, em Rihand Dam.
- Você não está dizendo que...
- Estou.
- Índia?
- Exatamente. Eles têm um volume de água igual à quantidade de trigo dos
argentinos e estão dispostos a permutar.
- Você vai precisar mais do que uma tripulação extra, querida.
- Como assim? Precisamos de aviões grandes. Albie conseguiu um na
Turquia, veja só, e está fazendo uma adaptação na parte traseira da aeronave
para acomodar o carregamento de água.
- Deve funcionar também para o trigo.
- O problema, papai, é que não podemos esperar. Temos de fazer isso
quase que simultaneamente. O trigo vai ter de ser enviado à Índia enquanto a
água estiver a caminho. Albie e Mac vão pegar Abdullah e trazer Bihari com eles.
Eu gostaria que você escolhesse outras três pessoas dos Estados...
- Bem, Buck e George...
- Não estou incluindo Buck desta vez, se você não se importar. Não me
olhe desse jeito. É apenas uma intuição.
- Trata-se de uma missão de grande perigo? Obrigado por me convidar!
- De nada. Eu só acho que Kenny precisa do pai neste momento, e
francamente... talvez eu esteja sendo egoísta, prejudicando alguém, qualquer
coisa... mas acho que ele não tem tempo para afastar-se de A Verdade.
Rayford recostou-se na cadeira e olhou para o teto.
- George e Ree, se você puder dispor deles.
- Vamos ter de encontrar tempo para cuidar dos roteiros deles, claro.
- Antes de tudo, eu conversaria com Whalum. E, se ele conseguir um avião
tão grande assim, vai ter de trazê-lo até aqui para nos pegar e atuar como nosso
quarto piloto.
- Gostei da idéia - disse Chloe. - Isso vai tirar Leah das minhas costas.
- Ela ainda quer uma carona para Petra?
- Sim, o que não é tão mau assim. É que ainda não tivemos tempo de
resolver o caso, e acho que ela está cuidando do assunto pessoalmente.
- Que surpresa, não?
- Bem, nós dois sabemos o que ela é capaz de fazer, e eu gostaria de
obter a permissão de Tsion antes de mandá-la para lá. Ela pode começar a
querer aparecer, ou melhor, fazer sombra para ele.
Quando chegou o momento de pôr em prática o projeto, Lionel Whalum
pôs-se a caminho de San Diego sem Leah, que não ficou nem um pouco feliz.
DEZESSETE
- Se os seus mágicos podem realizar todos esses truques, Leon, por que
eles não fazem com que todo o sangue dos mares volte a ser água salgada?
Chang escutava a conversa por meio de fones de ouvido.
- Excelência, isso seria exigir demais deles. O senhor deve admitir que
eles têm feito maravilhas em prol da Comunidade Global.
- O número das maravilhas que eles fazem é igual ao número de maldades
praticadas pelos judaístas, e esse é o único placar que conta!
- Divindade, não quero contrariá-lo, mas o senhor está ciente de que os
discípulos Carpathianos do mundo inteiro têm ressuscitado mortos, não é
verdade?
- Eu me ressuscitei, Leon. Esses truquezinhos de levantar corpos
malcheirosos dos túmulos, só para impressionar o povo e emocionar os
parentes, não se comparam com os dos judaístas, certo?
- Transformar bastões de madeira em serpentes? Acho impressionante.
Transformar a água em sangue e vice-versa, depois transformar água em vinho?
Pensei que o senhor gostasse desses truques.
- Quero pessoas convertidas, homem! Quero mentes modificadas! Quando
vai ser o seu debate com Ben-Judá na TV?
- Na próxima semana.
- E você está preparado?
- Mais do que nunca, Majestade.
- Esse homem é muito esperto, Leon.
- Mais do que o senhor, meu Rei Ressurreto?
- É claro que não. Mas você precisa ser habilidoso. Precisa levar a melhor!
E, enquanto estiver fazendo isso, quero que diga àqueles covardes de Petra que
estamos planejando uma tarde de milagres naquele mesmo dia, bem perto dali.
- Senhor, eu gostaria de testar a área antes.
- Testar a área? Testar a área?
- Perdoe-me, Excelência, mas o lugar que o senhor me designou como
palco, para produzir o espetáculo, fica muito perto do local onde perdemos
nossas armas e tropas terrestres, e não fomos capazes de abater as aeronaves
deles. E tem mais, meu senhor: atiramos duas bombas e um...
- Tudo bem, eu sei o que aconteceu lá, Leon! Quem não sabe?! Pode
testar o lugar, mas quero que essa gente goste dele. Quero vê-las saindo pela
Siq [via principal de entrada e saída de Petra] e reunindo-se para assistir ao
nosso evento, só para variar um pouco. E, quando elas virem o que minha
criatura pode fazer, começaremos a presenciar mudanças em massa, de um
campo para o outro. Você sabe quem eu quero para esse show, não?
- O melhor? Quero dizer, um de seus...
- Exatamente. Nosso objetivo é transformar Petra em uma cidade
fantasma!
- Oh, senhor, eu...
- Desde quando você passou a ser pessimista, Leon? Nós 0 chamamos de
Reverendíssimo Pai do Carpathianismo, e eu tenho me apresentado como um
deus vivo, ressurreto, com poderes recebidos do alto. Os seus poderes não
passam de artifícios de vendedor, Leon. Lembre ao povo o que o potentado
deles tem a oferecer e logo todos estarão fazendo fila para ganhar. E temos algo
especial para eles, você sabe.
- Algo especial, senhor?
- Sim! Estamos preparando algo especial! Somente esta semana, qualquer
pessoa de Petra poderá receber a marca de lealdade sem ser punida por não ter
se apresentado dentro do prazo, que expirou há muito tempo. Pense na
influência que elas poderão exercer sobre outros que estiverem nessa situação.
- O fator medo tem funcionado razoavelmente bem, potentado.
- Bem, temos de admitir que a época da campanha do Sr. Simpatia já
passou. Acabou o tempo de preocupações com minha imagem. Se até agora o
povo não sabe quem sou e do que sou capaz, é tarde demais para eles; mas, se
dermos um golpe do outro lado, se tivermos sucesso sobre a maldição do
sangue que tomou conta dos mares, isso só poderá ajudar. E quero que você se
saia bem perante Ben-Judá, Leon. Você é culto e piedoso e está pedindo que
eles adorem um deus vivo, um deus que respira, que está aqui e que não é
mudo. Não é necessário ter fé para acreditar na divindade de alguém que é visto
na TV todos os dias. A escolha deveria ser fácil, conveniente, lógica.
- Claro, Majestade, e eu o retratarei dessa maneira.
Lionel Whalum era um homem negro, de estrutura compacta. Tinha pouco
menos de l,80m de altura e pesava cerca de 90 quilos. Usava óculos e tinha
cabelos levemente grisalhos, e era um piloto habilitado a manejar aviões de
qualquer tamanho. Ele deixou uma carga de madeira na pista clandestina de San
Diego e, dentro de uma hora, já estava voando novamente, com George e Ree
no banco traseiro e Rayford no banco do co-piloto.
- Chloe me falou muito sobre você - disse Rayford -, mas apenas
profissionalmente. Acho que já conheço um pouco de sua história, mas como
você se converteu?
- Eu adoro quando me fazem essa pergunta - disse Whalum. - Um dos
grandes motivos para eu ter sido deixado para trás teve muito a ver com o modo
como eu vivia.
Sei que não há nada errado em ter sucesso e em ganhar dinheiro, mas, no
meu caso, e estou falando exclusivamente de mim, isso me deixou cego e surdo
a tudo e a todos. Eu não olhava para os lados. Não me interprete mal. Eu era um
bom sujeito. Minha esposa também era uma boa pessoa. Ainda é. Vivíamos
dentro de um círculo fechado, tínhamos coisas bonitas, uma casa linda. A vida
era boa.
- Costumávamos freqüentar igreja. Cresci na igreja, mas, para ser franco,
ela me deixava um pouco constrangido.
Eu achava que minha mãe e minhas tias eram um pouco sentimentais e
exageradas. E, quando chegou a época de entender qual era o significado da
igreja, eu já tinha idade suficiente para não querer que os outros soubessem que
eu era freqüentador assíduo. Depois que Felicia e eu nos casamos, íamos à
igreja de Chicago apenas de vez em quando. E, quando íamos, a coisa era muito
superficial, se é que você entende o que quero dizer. Tudo muito certinho,
discreto, frio. Se minha família visitasse aquela igreja, diria que ela estava morta
e que Jesus nunca estivera ali. Eu diria que ela era requintada e respeitável.
- A igreja que Felicia e eu passamos a freqüentar no bairro de classe
média em que moramos era do mesmo jeito. Encaixava-se perfeitamente em
nosso estilo de vida. Nós nos vestíamos para os cultos do mesmo modo que
para o trabalho ou para eventos sociais. Víamos ali pessoas que conhecíamos e
de quem gostávamos. Nunca houve um pastor que tivesse gritado nem nos
ofendido enquanto falava no púlpito. Ninguém nos chamava de pecadores nem
dizia que precisávamos ter uma vida mais regrada.
- Por outro lado, nossos filhos seguiram em outra direção. Tínhamos uma
garota, um menino e uma menina mais nova. Eles foram para a faculdade e
todos passaram a freqüentar uma igreja mais ou menos igual à dos meus tempos
de infância. Eles nos escreviam. Imploravam para que fôssemos salvos.
Perguntavam por que nós não os levávamos à igreja quando eles eram crianças.
Tenho de admitir que aquilo me deixava atordoado.
- Você pode querer saber se aquilo me tocou, se mudou minha vida. De
jeito nenhum. Um dia, um vizinho nosso nos convidou para um estudo bíblico. Se
ele não fosse quem era, jamais teríamos aceitado. Mas ele era um cara legal, o
tipo de homem que conseguiu fazer grande sucesso no ramo imobiliário. A
reunião em sua casa era informal, como se estivéssemos num campo de golfe.
Sem pressões. Sem discussões. Eles apenas liam a Bíblia e comentavam o
texto. Os estudos bíblicos eram feitos, alternadamente, em seis lares diferentes.
Incluímos nossa casa na lista, é claro, e nunca faltamos às reuniões.
- Eu ficava um pouco confuso nessas reuniões. Depois de algum tempo,
eles começaram a incluir orações nos estudos bíblicos. Ninguém era convidado
nem forçado a orar, portanto Felicia e eu não orávamos. Mas as pessoas
começaram a fazer pedidos de oração, por suas famílias ou por si mesmas, por
enfermidades e até mesmo por negócios. De vez em quando, eu mencionava um
ou outro pedido de oração, mas continuava em meu propósito de não orar.
- Um dia, o sujeito que nos convidou pela primeira vez perguntou se
poderia conversar conosco após a reunião. Quando ficamos a sós, ele se abriu
conosco. A esposa dele estava presente, mas não abriu a boca. Ele quis saber
como era a nossa vida espiritual. Achei que ele estivesse interessado em saber
que igreja nós freqüentávamos, e eu lhe disse qual era. Mas não se tratava
disso. Ele nos explicou o que significava nascer de novo. Eu já tinha ouvido falar
disso. Já sabia. Aquilo me soava como um pouco de exagero, só isso. Eu disse a
ele que agradecia seu interesse e pedi que orasse por nós. Sabia, por
experiência própria, que um pedido de oração era o que bastava. Mas ele achou
que eu queria uma oração naquele momento e orou por nós.
- Ele não foi insistente. Apenas um pouco indiscreto. Eu o perdoei. Entendi
os sentimentos dele. Quando a gente se sente tão forte e tão emocionado a
respeito de alguma coisa, é normal querer repartir isso com os amigos e vizinhos.
Foi o que eu pensei, e fim de papo. Nada tão importante.
- Dois dias depois, milhões de pessoas do mundo inteiro desapareceram.
Você está preparado para o que eu vou dizer? Inclusive todas as pessoas
daquele estudo bíblico, menos nós. E nossos três filhos também desapareceram.
- Se fomos salvos? Fomos salvos em, digamos, dez minutos.
Abdullah estava tão eufórico a respeito da operação que realizaria com
seus velhos amigos que se aprontou vários dias antes para a viagem. Ele não
sabia até que ponto seu trabalho como piloto seria necessário nessa missão,
mas não se importava com isso. Bastava estar na companhia de Mac e Albie.
Para ele, o fato de a Cooperativa Internacional de Mercadorias ter conseguido
uma permuta tão grande, apesar da crescente perseguição aos crentes no
mundo inteiro, era apenas mais uma prova da soberania de Deus.
Quando soube que Rayford e os outros três de San Diego já haviam
levantado vôo, ele mal conseguiu conter-se. Eles voariam direto à Argentina para
pegar uma carga de trigo, o que significava que Mac e Albie em breve estariam a
caminho para apanhá-lo. Os dois estavam sendo constantemente observados e
seguidos, portanto o plano era levar alguns suprimentos a Petra e passar a noite
ali, só partindo para a Índia no dia seguinte. E, se tudo funcionasse de acordo
com o plano, os três, mais o quarto componente indiano, Bihari, estariam voando
para a Argentina ao mesmo tempo em que os americanos estivessem vindo de lá
para a Índia.
Abdullah sentia-se entusiasmado desde que passara a morar em Petra.
Ele cantava mais alto, acompanhando a imensa congregação, e tentava ouvir
com atenção quando Tsion e Chaim falavam da Bíblia. Aquele era o dia em que
o centro de tecnologia de informática e TV da cidade emitiria um sinal de Tsion à
sede da Comunidade Global no palácio de Nova Babilônia. Um enorme monitor
em Petra receberia a transmissão da CG exibindo a imagem de Leon Fortunato.
Abdullah acreditava que Leon não tinha idéia da dificuldade que teria ao
enfrentar um homem tão erudito quanto Tsion - especialmente considerando-se
que Tsion era um homem honrado e íntegro.
No início da tarde, Abdullah escalou as montanhas de pedra e avistou, de
um dos lugares altos, a pista aérea que havia sido construída apenas para pouso
e decolagem das aeronaves em Petra. Quando Mac e Albie chegassem, Abdullah
levaria um helicóptero até a extremidade da pista e os transportaria para
dentro da cidade.
Enquanto descia lentamente procurando alguma coisa para distrair-se até
a hora do grande debate, ele foi surpreendido ao ver mais uma concentração de
milhares de pessoas. Chaim e Tsion tentavam acalmá-las. Estariam ali para ver a
transmissão ou haveria algum problema? Quando se aproximou, percebeu que
várias centenas não tinham o selo dos crentes na testa. Acotovelando-se,
tentavam ocupar os lugares da frente para assistir ao debate, porque, conforme
uma delas gritou, assim que terminasse, sairiam de Petra durante algumas horas
para ouvir outro orador.
- Ele estará aqui perto, e muita gente acredita que ele é o Cristo. Jesus
voltou à terra para realizar milagres e explicar o futuro!
- Por favor! - Chaim gritava. - Vocês não podem fazer isso! Não sabem que
estão sendo enganados? Quem espalhou essa notícia foi o rei maligno deste
mundo e seu falso profeta. Permaneçam aqui para sua segurança. Confiem no
Senhor!
- Você ocupa o segundo lugar no comando! - interpelou alguém. - Se o
líder não pedir para ficarmos, por que não poderemos ir?
- Eu estou lhes pedindo - Tsion começou a dizer, mas Chaim o
interrompeu.
- Por que vocês perturbam a mente deste homem de Deus no dia em que
ele foi ungido e chamado a debater com o falso profeta? Vocês estão sendo
usados pelo demônio para provocar destruição aqui.
Para grande tristeza de Abdullah, ele notou que alguns dissidentes
insurgiram-se contra Tsion e agruparam-se ao redor dele e de Chaim, dizendo:
- Vocês se acham importantes demais. Por que se colocam acima da
congregação?
Tsion cobriu lentamente o rosto com as mãos, ajoelhou-se e abaixou o
corpo em direção ao chão. Em seguida, levantou a cabeça e disse:
- O Senhor conhece quem pertence a Ele e quem é santo. Por que vocês
todos se reuniram aqui para falar contra o Senhor? E por que murmuram contra
Chaim?
Tsion chamou dois rebeldes e dirigiu-se a eles:
- Por favor, voltem ao juízo normal e ajudem-me a lutar contra essa
insensatez!
Mas eles disseram:
- Não vamos ficar a seu lado. Por que você nos tirou de nossa terra, de
nossos lares, onde havia abundância, e nos trouxe para este lugar rochoso, onde
só temos pão para comer e água para beber, e por que se considera príncipe
sobre nós?
Abdullah nunca tinha visto Tsion tão abalado. Tsion clamou a Deus:
- Senhor, perdoa-lhes, porque eles não sabem o que fazem. Eu nunca me
considerei superior a eles nem exigi nada, a não ser que eles te respeitassem.
Depois, prosseguiu:
- Deus está dizendo a mim e a Chaim que nos afastemos de vocês para
nos livrarmos da ira dele.
Muitos deles se prostraram e clamaram:
- Ó Deus, Deus de todos os povos, devemos morrer por causa do pecado
de alguns? Imputarás essa culpa sobre nós?
Tsion dirigiu-se a toda a congregação:
- Se vocês não concordam com esses homens perversos, melhor se
afastarem deles, para que não sejam consumidos pelos seus pecados. De agora
em diante, quero que todos saibam que o Senhor me enviou para realizar todas
essas obras; eu não as realizo por interesse próprio. Se esses homens fizerem o
que bem entenderem e Deus os castigar com a morte, então todos entenderão
que eles provocaram o Senhor.
Assim que terminou de falar, a terra sob os pés dos rebeldes abriu-se e os
engoliu. Eles caíram no buraco gritando e gemendo, enquanto a terra os cobria,
e todos pereceram.
Milhares de pessoas ao redor dali fugiram ao ouvir os clamores vindos de
baixo da terra.
- Vamos correr! - elas diziam. - Vamos correr, se não a terra também vai
nos engolir!
Abdullah, porém, ouviu muita gente resmungando e dizendo:
- Tsion e Miquéias mataram essas pessoas. Vamos continuar com nosso
plano de sair deste lugar para ouvir o homem que diz ser Cristo.
Abdullah tentou aproximar-se de Tsion e Chaim para consolá-los, mas
ouviu Tsion dizer:
- Senhor, nós oramos pela redenção dos que ficaram. Poupa-os de tua ira
para que possamos convencê-los de tuas verdades.
Nesse meio tempo, Chang ficou mais ousado. Além de entrar
clandestinamente no sistema da CG para monitorar o grande debate entre Tsion
e Leon, ele também estava preparado para passar por cima do controle de Nova
Babilônia. Chang se cansara tanto de ouvir as propagandas dos mensageiros
especiais de Leon e de suas "Feiras de Milagres" que, quando viu que Tsion
estava falando ao povo de Petra pouco antes do início do debate, ele deu um
jeito de levá-lo ao ar antes da hora.
Tsion estava se dirigindo a várias centenas de pessoas dizendo que
deveriam abandonar seus planos de sair de Petra e ir ao deserto para ouvir o
charlatão que se dizia ser o Cristo. Assim que pôs Tsion no ar, Chang mudou a
escuta clandestina para o escritório de Carpathia, a fim de ouvir sua reação
indignada.
Tsion estava dizendo:
- Eu peço a todos que orem durante a transmissão, para que o Senhor me
dê sua sabedoria e suas palavras. E quanto aos que ainda planejam sair deste
lugar seguro, quero renovar meu apelo para que não façam isso e que não se
exponham ficando vulneráveis diante do demônio. Deixem que a Comunidade
Global, o anticristo e seu falso profeta façam afirmações ridículas sobre os falsos
operadores de milagres. Não caiam na armadilha deles.
Carpathia deu um grito:
- O que está havendo? Queremos que essa gente compareça, ouça e seja
persuadida! Tirem esse homem do ar!
Tsion prosseguia:
- O Messias advertiu seus discípulos sobre isso. Ele lhes disse: "Levantarse-
ão muitos falsos profetas e enganarão a muitos. E, por se multiplicar a
iniqüidade, o amor se esfriará de quase todos. Aquele, porém, que perseverar
até o fim, esse será salvo. E será pregado este evangelho do reino por todo o
mundo, para testemunho a todas as nações" [Mateus 24.11-14]. "Então se
alguém vos disser: Eis aqui o Cristo! ou: Ei-lo ali! não acrediteis; porque surgirão
falsos cristos e falsos profetas operando grandes sinais e prodígios para
enganar, se possível, os próprios eleitos" [vv. 23-24]. "Portanto, se vos disserem:
Eis que ele está no deserto!, não saiais: Ou: Ei-lo no interior da casa!, não
acrediteis" [v. 26].
Em pé, no meio de mais ou menos um milhão de pessoas em Petra,
Abdullah emocionou-se ao ver que Tsion já estava no ar falando contra os
milhares de falsos cristos que surgiam em todos os lugares. Eles diziam ter
recebido poderes de Carpathia e do líder do Carpathianismo, o reverendo
Fortunato. Pregavam heresias e, mesmo assim, multidões eram arrebanhadas
por eles.
A voz de uma mulher de Nova Babilônia, do centro de controle da CNNCG,
ressoou nos muros de pedra.
- Dr. Ben-Judá, por favor, aguarde um momento enquanto transferimos a
transmissão para nossos estúdios, onde o reverendíssimo Pai Fortunato o
espera para dar início a um debate respeitoso.
- Obrigado, senhora - disse Tsion -, mas, em vez de aguardar enquanto
vocês tomam as providências para levar ao ar o debate, quero dizer que não
reconheço o Sr. Fortunato como reverendo e muito menos como reverendíssimo
ou pai.
Fortunato aparecia na metade da tela paramentado com manto e chapéu,
ambos de veludo, e franjas como ornamento. Ele estava atrás de um requintado
púlpito de madeira entalhada, mas ficou claro que estava sentado. Seu sorriso
parecia totalmente sincero.
- Saudações, Dr. Ben-Judá, meu estimado oponente. Ouvi suas palavras e
lamento o senhor ter preferido, como sempre, iniciar um debate, supostamente
cordial, com um ataque muito agressivo. Não vou rebaixar-me e gostaria apenas
de dar-lhe as boas-vindas e desejar-lhe felicidades.
Ele fez uma pausa, e Tsion não esboçou reação alguma. Depois de alguns
segundos de silêncio, Tsion disse:
- Chegou a minha vez de falar? Devo iniciar apresentando provas de que
Jesus é o Cristo, o Messias, o Filho do Deus vivo...
- Não! - Era a voz da mediadora, a mulher da central de transmissões. -
Aquilo foi apenas uma saudação, e, se o senhor preferir desconsiderá-la,
poderemos começar.
- Posso, então, fazer uma pergunta - disse Tsion -, já que estamos sendo
tão formais? Existe alguma regra dizendo que é permitido ao mediador emitir
uma opinião pessoal a respeito das declarações de um dos debatedores, como,
por exemplo, concluir que minha desconsideração à saudação de um inimigo foi
um ato de grosseria?
- Podemos iniciar, senhor? - ela perguntou. - O reverendo Fortunato tem a
palavra.
- Minha premissa é simples - Leon começou a dizer, olhando diretamente
para a lente da câmera.
Abdullah estava atônito. Ele sempre considerou Fortunato uma espécie de
fanfarrão. Mas o homem cuja imagem aparecia na tela, apesar de não enganar
Abdullah, parecia tão bondoso e amoroso que aquilo lhe dava credibilidade entre
os menos avisados.
- Eu proclamo Nicolae Carpathia, que ressuscitou dos mortos, como o
único e verdadeiro deus, digno de adoração e salvador da humanidade -
prosseguiu Leon. - Foi ele quem se levantou por ocasião da maior calamidade da
história do mundo e quem uniu a comunidade global em paz, harmonia e amor. O
senhor afirma que Jesus de Nazaré é o Filho de Deus e que também é Deus, o
que não faz sentido e não pode ser provado. Com base nessa afirmação, o
senhor e seus seguidores adoram um homem que foi, sem dúvida, muito
espiritual, muito brilhante, talvez iluminado, mas que agora está morto. Se ele
está vivo e é todo-poderoso, conforme vocês dizem, eu o desafio a me matar
aqui mesmo onde estou.
- Faze isso, Senhor, - orou Abdullah. - Oh, Deus, revela-te neste instante.
- Salve, Carpathia - disse Leon, ainda sorrindo -, nosso rei e senhor
ressurreto!
Aparentemente, Leon pretendia continuar, mas Tsion assumiu a palavra.
- Espero que o senhor nos poupe do resto dessa cantilena escrita por um
ególatra que mata aqueles que discordam dele. Eu enalteço Jesus, o Cristo, o
Messias, totalmente Deus e totalmente homem, nascido de uma virgem, o
perfeito cordeiro que se dispôs a ser sacrificado pelos pecados do mundo inteiro.
Se Ele fosse apenas um homem, sua morte sacrificai teria sido humana, e nós,
que cremos nele, estaríamos perdidos. Porém, as Escrituras Sagradas provam
que Ele foi tudo o que disse ser. Seu nascimento foi profetizado centenas, ou
melhor, milhares de anos antes, e tudo foi cumprido nos mínimos detalhes. Ele
próprio cumpriu, pelo menos, 109 profecias isoladas e distintas que provam que
é o Messias.
- A singularidade e a genialidade do cristianismo estão no fato de que o
parto virginal permitiu ao filho unigênito de Deus identificar-se com os seres
humanos, sem abrir mão de sua natureza divina e santa. Assim, Ele pôde morrer
pelos pecados do mundo inteiro. O Pai o ressuscitou após três dias, e isso prova
que Deus ficou satisfeito com seu sacrifício por nossos pecados.
- Além disso, descobri, em meus exaustivos estudos das Sagradas
Escrituras, mais de 170 profecias feitas por Jesus apenas nos quatro
Evangelhos. Muitas já foram cumpridas, garantindo que aquelas relacionadas a
eventos futuros também serão cumpridas. Somente o próprio Deus poderia
escrever a história por antecipação, uma prova extraordinária da divindade de
Jesus Cristo e da natureza sobrenatural de Deus.
Fortunato contra-atacou:
- Mas nós sabemos que nosso rei e potentado ressuscitou, porque vimos o
evento com nossos próprios olhos. Se existe alguém em qualquer lugar deste
mundo que viu Jesus ressuscitar, que fale agora ou cale-se para sempre. Onde
Ele está? Onde está esse tal Filho de Deus, esse homem dos milagres, esse rei,
esse Salvador da humanidade? Se o seu Jesus é quem diz ser, por que o senhor
está escondido no deserto e vivendo de pão e água? O deus deste mundo vive
num palácio e concede boas dádivas a todos os que o adoram.
Tsion desafiou Leon a admitir o número de mortes por guilhotina, a admitir
que as tropas terrestres e armas de guerra foram engolidas pela terra do lado de
fora de Petra, que duas bombas incendiárias e um míssil mortal se abateram
sobre Petra com força total, mas que ninguém foi ferido e nenhuma estrutura foi
danificada. Tsion prosseguiu:
- O senhor também não vai admitir que o Serviço de Segurança e as
Forças Pacificadoras da Comunidade Global gastaram milhões de nicks para
atacar todo o trânsito para fora e para dentro deste lugar, e que nenhuma
aeronave, nenhum piloto, nenhum voluntário sofreu um arranhão sequer?
Leon enalteceu Carpathia pelas reconstruções que fez ao redor do mundo
e complementou:
- Aqueles que morrem na guilhotina optaram por esse tipo de morte.
Nicolae não deseja que ninguém pereça, mas que todos lhe sejam leais e
comprometidos com ele.
- Mas, senhor, a população mundial foi reduzida à metade, os mares estão
mortos por causa da praga do sangue profetizada na Bíblia e enviada por Deus.
Apesar disso, os crentes, os filhos de Deus, pelo menos aqueles que sobreviveram
à criminosa perseguição feita pelo homem que o senhor entronizou
como deus, recebem água e alimento do céu, não apenas aqui, mas em muitos
lugares do mundo.
Leon continuou calmo e persuasivo, determinado a elogiar Carpathia. Em
determinado momento, ele afrontou os "judeus desleais, dos quais o senhor faz
parte, Dr. Ben-Judá".
- O senhor diz isso de maneira pejorativa, Sr. Fortunato, mas, mesmo
assim, eu aceito o título com muita honra. Aceito, com a mais profunda
humildade, fazer parte do povo escolhido de Deus. De fato, a Bíblia inteira é o
testamento de seu plano para nós ao longo dos tempos, e está provando isso,
para que o mundo inteiro veja enquanto nós dois dialogamos.
- Mas você não faz parte daqueles que mataram Jesus? - inquiriu
Fortunato, sorrindo, como se estivesse em posição de igualdade com o agressor.
- Ao contrário - respondeu Tsion -, Jesus também era judeu, como o
senhor bem sabe. E a verdade é que a morte de Cristo foi de responsabilidade
dos gentios. Ele apresentou-se diante de um juiz gentio, e soldados gentios o
crucificaram.
- Ah, houve uma ofensa contra Ele da parte de Israel, uma ofensa com a
qual a nação e seu povo devem arcar. No livro do Antigo Testamento chamado
Zacarias, capítulo 12, versículo 10, há a seguinte profecia: "E sobre a casa de
Davi, e sobre os habitantes de Jerusalém, derramarei o espírito de graça e de
súplicas; olharão para mim, a quem traspassaram; pranteá-lo-ão como quem
pranteia por um unigênito."
- Israel deve confessar um pecado específico cometido por toda a nação
contra o Messias antes de recebermos a bênção. Em Oséias 5.15, Deus diz: "Irei
e voltarei para o meu lugar, até que se reconheçam culpados e busquem a minha
face; estando eles angustiados, cedo me buscarão."
- Qual foi a culpa? Rejeitar que Jesus é o Messias. Nós nos arrependemos
disso e imploramos por sua volta. Ele voltará novamente e estabelecerá seu
reino aqui na terra, e não apenas eu, mas também a própria Palavra de Deus
prediz a ruína do dono maligno deste mundo quando aquele reino for
estabelecido.
- Bem - disse Leon -, obrigado pela fascinante lição de história. Mas eu me
alegro porque o meu senhor e rei está vivo e bem, e eu o vejo e converso com
ele todos os dias. Obrigado por ter sido um adversário rápido e digno.
- O senhor diz que sou um adversário rápido e digno, mas não respondeu
às afirmações e acusações que fiz – disse Tsion.
- E - prosseguiu Leon - eu gostaria de saudar os inúmeros cidadãos da
Comunidade Global que residem com o senhor temporariamente e os convido a
desfrutar os benefícios e privilégios do mundo aqui fora. Acredito que muitos irão
ao encontro de um de nossos profetas, mestres e operadores de milagres
quando ele ministrar em sua área daqui a menos de uma hora. Ele...
Tsion interrompeu:
- A Bíblia nos diz que muitos farsantes se apresentarão neste mundo, que
eles não confessam que Jesus Cristo veio ao mundo em forma humana. Quem
faz isso é um enganador e um anticristo.
- Se o senhor permitir que eu conclua...
- "Todo aquele que ultrapassa a doutrina de Cristo e nela não permanece,
não tem Deus; o que permanece na doutrina, esse tem assim o Pai, como o
Filho. Se alguém vem ter convosco e não traz esta doutrina, não o recebais em
casa, nem lhe deis as boas-vindas. Porquanto aquele que lhe dá boas-vindas
faz-se cúmplice das suas obras más" [2 João 9, 10, 11].
- Muito bem, o senhor já mencionou todos esses cansativos versículos da
Bíblia. Eu me contento em agradecer-lhe e...
- Já que o senhor me fez aparecer em um programa de TV de âmbito
internacional, Sr. Fortunato, sinto-me na obrigação de pregar o evangelho de
Cristo e de dizer palavras das Escrituras Sagradas. A Bíblia diz que a Palavra
não voltará vazia, portanto eu gostaria de citar...
Mas Tsion foi tirado do ar, e grande parte da multidão em Petra aplaudiu
sua apresentação. Contudo, a insistente facção rebelde, mesmo depois de ter
ouvido tudo o que o Dr. Ben-Judá disse, começou a sair dali.
- Nós vamos embora - gritaram muitos deles quando foram confrontados
pela maioria, que implorava para que não saíssem.
Tsion gritou:
- "Sede sóbrios e vigilantes. O diabo, vosso adversário, anda em derredor,
como leão que ruge procurando alguém para devorar" [1 Pedro 5.8].
- Temos anistia! - gritou um deles. - Ninguém vai ser punido por não ter
recebido a marca da lealdade depois do prazo, que terminou há muito tempo!
Abdullah não conseguia compreender. Certamente aquelas pessoas
deveriam estar entre as que demoraram demais para considerar as afirmações
de Cristo. O coração delas devia estar endurecido, porque não havia lógica
nesse tipo de comportamento.
Ele foi correndo buscar os binóculos que recebeu no último embarque da
cooperativa. Subiu novamente a um lugar alto para observar a saída daquelas
pessoas através do Siq e sua caminhada de mais de três quilômetros em direção
ao local onde a Comunidade Global já instalara uma plataforma.
DEZOITO
Mac aprendera a não tomar conhecimento dos avisos da CG quando
sobrevoava, o restrito espaço aéreo acima do Neguev. Os avisos eram emitidos
por rádio, e a CG enviava aviões de reconhecimento, chegando a tentar impedilo
de voar. Muitas vezes, os aviões ameaçadores da CG voavam perto demais, a
ponto de deixar entrever o rosto dos pilotos. Mac se lembrava de que, nas
primeiras vezes, eles demonstraram determinação no semblante.
Posteriormente, quando seus rifles erraram os alvos sem explicação, eles
pareceram aterrorizados. Quando seus mísseis, com poder de perseguir fontes
de calor, encontraram os alvos mas não os atingiram, a CG teve de recuar para
que eles próprios não fossem os alvos.
Hoje, eles já tinham feito todas as típicas tramóias de costume: aviso pelo
rádio, vôos lado a lado, disparos, mísseis. Quando Mac pôde ver o rosto dos
pilotos inimigos, eles tinham uma expressão de tédio ou, na melhor das
hipóteses, de resignação. Pareciam tão perplexos quanto os co-pilotos,
imaginando por que a CG continuava a gastar equipamentos, munições e ogivas
tão valiosos.
Mac olhou para Albie, e ambos sacudiram a cabeça.
- Mais um dia, mais uma entrega - disse Albie.
- Eu nunca vou achar que vai durar para sempre - disse Mac. - Estou feliz
porque esses milagres não dependem de uma vida pura.
- Você tem uma vida pura.
- Não por mérito próprio, meu amigo.
Enquanto eles sobrevoavam o deserto em direção à pista de pouso em
Petra, Mac olhou para a imensa aeronave de Nova Babilônia de que Chang se
apropriara. Ela estava parada na extremidade da pista, enorme, totalmente
exposta.
- Como você explica isso? - Mac perguntou.
- Deus deve estar cegando esses caras. A gente pode vê-la a mais de um
quilômetro de distância, talvez mais.
- Veja ali - disse Albie.
Quase que diretamente abaixo deles, uma fila de centenas de pessoas
serpenteava pelo Siq, o caminho de um quilômetro e meio de acesso a Petra.
Elas seguiam em direção a uma espécie de palco instalado no meio do deserto.
Quando focalizou a pista e começou a descer, Mac avistou o helicóptero
saindo de Petra indo ao encontro deles. Dali, Abdullah os levaria para dentro da
cidade.
- Você acha que Smitty vai querer ver essa coisa de perto? - Albie
perguntou.
- Por quê? Você gostaria?
- Claro.
- Estou disposto a arriscar. Será que estamos protegidos até aquela
distância?
- No ar, estamos. Pode ser perigoso ir a pé.
- Vamos de helicóptero.
- Isso é que é uma resposta à oração! - disse Abdullah alguns minutos
depois. - Eu queria muito ver o que está acontecendo lá.
- É muito arriscado, Smitty - disse Mac. - Você tem uma boa cobertura, faz
parte do pessoal daqui. Albie e eu não temos mais cobertura, não temos
disfarces, nomes falsos, marcas falsas, nada. E melhor você decidir se vale a
pena ser visto conosco.
Abdullah não pôde conter um sorriso.
- Seu malandro - disse Mac, sorrindo. - Eu me arrisquei a levar um tiro,
não? E você quase levou um.
- Eu não ia atirar em você, Mac.
- Com palavras, sim. Claro que ia.
- Decidi que é melhor eu não ser visto com vocês quando voltarmos a
Petra.
- Ótimo. Mas falando sério...
- Acho que Deus nos protegerá. Devemos ficar juntos, dar a entender que
estamos em missão oficial, mas não deixar muito evidente que não temos a
marca.
- Você tem um turbante para cobrir a testa, nós temos quepes. Você acha
que é suficiente? Devemos portar armas?
- Não tenho idéia de quantos homens da CG estarão lá - disse Albie -, mas
imagino que, assim que chegarmos, vamos ficar vulneráveis. As armas não vão
servir para nada, é o que eu acho.
Abdullah coçou a testa.
- Devemos ficar dentro do helicóptero. Se pudermos ver e ouvir de lá.
- E se formos abordados?
- Você fala com eles com sotaque texano; vão ficar tão surpresos que eu
vou ter tempo de decolar.
- Você está demais hoje, Smitty.
- Quem vai querer aproximar-se de um helicóptero com as pás da hélice
girando?
Abdullah analisou seus amigos. Eles estavam tão curiosos quanto ele.
- Devemos perguntar a alguém? - disse Mac.
- A quem? - disse Abdullah. - Sua mãe?
Mac fez um movimento com a cabeça, concordando que Abdullah estava
aperfeiçoando seu senso de humor, mas só isso.
- Rayford está voando por aí - disse Mac. - A decisão é nossa. O que
vamos fazer?
- Eu topo - disse Albie. Abdullah concordou com a cabeça.
Mac subiu no helicóptero e sentou-se atrás. Abdullah sentou-se diante dos
controles, tendo Albie a seu lado. Após a decolagem, Abdullah teve de gritar para
ser ouvido acima do barulho do motor.
- Poderíamos falar com Chang. Pedir a ele que inclua alguma coisa no
computador.
Nenhum dos dois disse nada, portanto Abdullah abandonou a idéia. Ele
gostaria de saber se estavam cometendo uma tolice. No fundo, sabia que sim,
mas não conseguia voltar atrás.
Para Mac, ficou claro que o show foi programado exclusivamente para os
rebeldes de Petra. Ele tentou extrair de Abdullah por que alguém haveria de
querer afastar-se da segurança daquela cidade, mas tratava-se de uma pergunta
retórica e irrespondível.
Abdullah estava decidido a fazer hora, mas o helicóptero passou
rapidamente pelo povo que caminhava e pousou a cerca de 30 metros do palco,
levantando uma nuvem de poeira que a brisa leve incumbiu-se de carregar até às
pessoas que se encontravam na plataforma. Elas olharam para o helicóptero.
Mac avistou vários homens da CG armados, tomando conta do local e
conversando entre si. Um deles aproximou-se. Era um jovem de ombros largos,
que demonstrava ser robusto, mesmo sem o colete à prova de balas que se
tornou visível assim que ele chegou mais perto. Abdullah havia desligado o
motor, e as pás da hélice pararam de girar.
- Vamos ficar sentados aqui olhando para ele - disse Mac. - A iniciativa
deve partir dele.
O soldado do colete à prova de balas, com a arma dependurada ao lado
do corpo, parecia totalmente inofensivo. Ele olhou com ar de indagação para
Albie, sentado no segundo banco perto da porta.
- Vocês vão abrir a porta? - perguntou o soldado.
- Só se for preciso - respondeu Albie. - O ar condicionado mantém a
temperatura agradável aqui dentro.
- Vocês precisam abrir a porta - disse o soldado.
Albie olhou para Mac. Mac assentiu com a cabeça. Albie abriu a porta.
Mac inclinou-se para a frente e disse com voz autoritária:
- Não fique muito perto deste aparelho, filho! O motor ainda está quente e
vai espirrar um pouco de óleo. E talvez a gente queira ligá-lo de novo, só para
receber um pouco mais de ar.
- O que vocês estão fazendo aqui?
- O mesmo que você. Segurança. Monitorando. Agora, vou ter de pedir
que você se afaste do avião.
Tratava-se de um ato de muita coragem, mas, depois do que Mac
enfrentara no ano anterior, aquilo lhe parecia um passeio no parque. Se o
soldado quisesse partir para o bate-boca, Mac protelaria um pouco até Smitty
religar o motor, e eles sairiam rapidamente dali. Evidentemente, até mesmo um
disparo com uma arma pequena poderia abater um helicóptero a curta distância,
mas talvez a idéia de receber um jato de óleo quente no rosto o fizesse desistir.
A farsa de Mac funcionou. O homem limitou-se a fazer um movimento
afirmativo com a cabeça e afastou-se.
- Ligue o motor, Smitty - disse Mac. - Precisamos dar um motivo para ele
reconhecer que perdeu a parada.
O helicóptero levantou outra nuvem de poeira. Abdullah desligou a
aeronave rapidamente. O homem da CG retornou. Mac assumiu a
responsabilidade. Inclinou o corpo por cima de Albie e abriu a porta.
- Não se preocupe - ele disse. - Esta é a última vez que vamos levantar
poeira e impedir que o povo ouça o que vai ser dito, está bem?
- Era exatamente isso o que eu ia dizer, senhor. Mac fez uma continência
com o dedo indicador. O povo estava começando a chegar, parecendo exausto
da caminhada.
Foram necessários apenas alguns minutos para a multidão reunir-se. Um
sujeito de aparência normal, que, para Mac, era uma versão mais jovem de Leon
Fortunato, pegou o microfone. Ele estava de sapatos brancos, calça branca e
camisa branca, e tinha a aparência de um orador vibrante, entusiasmado e
resoluto. Disse que faria o show sozinho - seria o apresentador, o executor, tudo.
- Não sou uma pessoa comum. Não, minha gente. As pessoas dizem que
sou uma espécie de Cristo. Bem, vocês serão os juizes. Tudo o que posso dizer
é que não sou daqui. Não se trata de uma brincadeira. Não sou deste mundo.
Hoje, não há música, não há bailarinas, apenas eu, um operador de
milagres. Estou aqui sob a autoridade do senhor ressurreto, Nicolae Carpathia, e
recebi poder dele.
- Se vocês não acreditam, olhem para o céu. Sei que o sol está a pino,
quente e brilhante, mas vocês concordam comigo que não existem nuvens no
céu? Nenhuma. Alguém está vendo alguma nuvem? Bem distante no horizonte?
Formando-se bem longe daqui? Vocês estão cobrindo os olhos, e devem
fazer isso. Mas quem estiver usando óculos de sol, faça o favor de tirá-los. Vocês
estão com os olhos semicerrados, e isso está correto. Alguns estão com as
sobrancelhas franzidas, mas daqui a alguns instantes não estarão mais.
- Vocês gostariam de ver uma nuvem bonita? Uma nuvem que bloqueasse
o sol apenas por um instante? Eu posso providenciar uma. Vocês não estão
acreditando, eu sei disso. Não olhem para mim. Se olharem, não verão a nuvem.
Vocês podem pensar que se trata de um truque. Mas que nome dão a isso?
Uma sombra cobriu o povo. Até mesmo os homens da CG olharam para o
céu, curiosos. Abdullah inclinou o corpo de lado. Albie inclinou-se para a frente.
Mac posicionou-se entre eles e olhou para cima. Uma nuvem espessa e branca
bloqueava a luz do sol. Do meio do povo vinham os gritos de oh! e ah!.
- Como ele consegue fazer isso? - perguntou Abdullah.
- Ele já disse - respondeu Mac. - Recebeu poder de Nicolae.
- Foi rápido demais? - perguntou o homem dos milagres.
- A mudança de temperatura provocou frio em vocês, mesmo aqui no
deserto? Acho que basta de sombra, não? A nuvem desapareceu. Não se
movimentou, não esmaeceu, não se dissipou. Simplesmente sumiu.
- E, agora, que tal meia sombra, suficiente apenas para permitir que o sol
aqueça vocês?
Ela apareceu instantaneamente.
Uma mulher, perto do palco, ajoelhou-se e começou a adorar o homem.
- Ah, senhora, muito obrigado por sua gentileza. Mas e daí? Vocês ainda
não viram nada. Que tal este pedestal do microfone? Ele tem uma base sólida de
aço, duas hastes compridas, microfone e fio separados, presos na parte superior.
Alguém deseja vir até aqui para comprovar o que estou dizendo?
Um homem idoso subiu os degraus até a plataforma, com passos
trôpegos. Apalpou o microfone e o pedestal, o que provocou ruídos no sistema
de som. - Epa, vejam só! - disse o milagreiro. O microfone e o pedestal
transformaram-se em uma cobra que escapou das mãos dele e correu até a
caixa de som.
O povo teve um sobressalto, e algumas pessoas gritaram. Mas, tão rápido
quanto apareceu, a cobra sumiu, e o microfone e o pedestal retornaram ao
normal.
- Truques de mágica? Vocês são pessoas inteligentes. Têm tido problemas
em conseguir água ultimamente? Ou devemos acreditar nas histórias que vêm
de Petra? Pensam que a nascente de lá foi um ato de Deus? Então, que tal esta
aqui?
Ele apontou para o meio do povo, e uma fonte de água jorrou do chão,
espirrando por cima da cabeça deles.
- Água fria, cristalina, refrescante, não? - ele disse. - Aproveitem! Vamos!
E o povo obedeceu.
- Vocês estão com fome? Cansados da comida na nova casa? Que tal um
cesto contendo pão verdadeiro, quentinho, macio e mais que suficiente para
todos?
Ele esticou o braço para trás e fez aparecer um cesto de vime forrado com
um guardanapo de linho. Cinco pedaços de pão, quentes e dourados, estavam
empilhados dentro do cesto.
- Comecem a passar o cesto entre vocês. Vamos. Claro, peguem um
pedaço. Não, um pedaço inteiro! Peguem dois, se quiserem. Posso providenciar
mais.
O cesto foi passado de mão em mão, e todos pegaram pelo menos um
pedaço. Alguns pegaram dois e, mesmo assim, o cesto nunca esvaziou.
- Quem eu sou? Quem vocês acham que eu sou? Sou um discípulo do
deus vivo, o potentado Carpathia. Será que convenci a todos de que ele é todopoderoso?
No entanto, ele perdeu a paciência com vocês. Ele gostaria que eu
aplicasse a marca de lealdade em vocês, e posso fazer isso sem usar nenhuma
tecnologia. Vocês não duvidam mais de mim, certo? O povo sacudiu a cabeça.
- Quem será o primeiro? Vou aplicar quatro simultaneamente. Em você,
você, você e você. Perguntem a seus amigos o que eles estão vendo.
Até Mac viu que eles tinham a marca de Carpathia na testa.
- Mais alguém? Sim, levantem a mão. Todos os que estão com as mãos
levantadas, prestem atenção. Não, os outros não levantem a mão. Só aqueles
que já estavam com a mão levantada quando eu falei. Por que esperaram tanto
tempo? Qual foi o motivo? Aquele a quem eu sirvo deseja que eu os mate;
portanto, vocês estão mortos.
Mais de cem pessoas caíram no solo do deserto, provocando gritos das
que restaram.
- Silêncio! Vocês acham que eu não posso reverter a situação? Se fui
capaz de matá-los, por que não posso ressuscitá-los? Aqueles seis, levantem-se
imediatamente!
Os seis levantaram-se, como se tivessem acabado de despertar. Pareciam
constrangidos, sem saber por que haviam caído no chão.
- Vocês pensam que eles estavam dormindo? em transe? Muito bem, eles
estão mortos novamente. - Os seis caíram no chão. - Agora, vocês que os
conhecem, podem verificar os sinais vitais deles.
O homem aguardou.
- Não há respiração, não há pulsação, correto? Que isso sirva de lição
para os que restaram. Vocês estão vendo aquilo, lá longe? Sim, lá. A pequena
nuvem de poeira, que parece estar rolando como um arbusto seco nesta
direção? São víboras da espécie mais venenosa que existe. Estão vindo para
atacar vocês.
Algumas pessoas viraram-se e começaram a correr, mas foram
paralisadas.
- Não, não. Certamente, vocês não estão pensando que é possível fugir
daquele que criou uma nuvem para cobrir o sol. Se quiserem ter a marca de
lealdade, levantem a mão agora para recebê-la.
Assustadas, as pessoas restantes levantaram a mão.
- Mais gente deve morrer antes que as víboras cheguem até aqui.
Cerca de três dúzias de pessoas caíram desfalecidas no chão.
- Por que as víboras continuam vindo para cá? - gritou uma mulher. -
Todos nós obedecemos! Todos nós recebemos a marca!
- As víboras são sábias, só isso - ele disse. - Elas conhecem quem era
sério e leal e quem concordou apenas por medo de perder a vida.
A fonte de água transformou-se em sangue, e o povo que estava perto
afastou-se rapidamente.
- Idiotas! - ele gritou. - Vocês são todos idiotas! Pensam que um deus
como Nicolae Carpathia quer que vocês sejam seus súditos? Não! Ele quer ver
vocês mortos e longe das garras dos inimigos dele. Vocês estão livres para fugir
agora, e eu vou me divertir vendo vocês correndo como loucos, o mais rápido
que puderem. Mas tenho um aviso a lhes dar. Vocês não correrão mais rápido do
que as víboras. Não chegarão a Petra a tempo de se salvarem. O corpo de vocês
ficará inchado, assando sob o sol, até que os pássaros venham comer sua carne.
Quanto a mim, vou sair daqui e levar comigo a sombra que providenciei.
O povo começou a correr em direção a Petra, gritando e cambaleando
desvairadamente. Os soldados da CG pareciam paralisados e olhavam fixamente
para as víboras, que mudaram de direção e agora corriam atrás do povo. A fonte
secou, a nuvem desapareceu, e havia dezenas de pedaços de pão espalhados
sobre a areia.
Mac olhou para Albie e Smitty, e os três sacudiram a cabeça, tremendo.
De repente, o operador de milagres posicionou-se em frente ao helicóptero.
Embora ele não tivesse aberto a boca, Mac o ouviu perfeitamente, como se o
homem estivesse dentro do avião.
- Eu sei quem você é. Sei qual é o seu nome. O seu deus é fraco, sua fé é
fingida e seu tempo é limitado. Você certamente morrerá.
Mac teve dificuldade para falar.
- Vamos - ele disse, com voz rouca.
Abdullah ligou o motor levantando uma nuvem de poeira, que logo se
dissipou. Enquanto Smitty decolava, Mac olhou para baixo e viu uma longa faixa
de areia intacta, pontilhada apenas pelos corpos das pessoas que tombaram no
lugar. Ninguém da CG. Nenhum homem milagroso. Nenhuma plataforma.
Nenhum pão. Nenhum veículo.
E quanto às serpentes? Ele também não as viu. Mas no percurso de uns
500 metros havia outros corpos estatelados, de maneira grotesca, na areia do
deserto.
Tsion estava com o espírito atormentado por um terrível mau
pressentimento. Ele sabia que não seria capaz de conduzir, até o dia do Glorioso
Aparecimento, o rebanho inteiro que chegara a Petra. Mesmo assim, ele
acreditava que, quando eles vissem a mão poderosa e milagrosa de Deus,
muitos indecisos se converteriam.
Não restava dúvida de que muitos já haviam se convertido. Era o que
Chaim e os outros anciãos estavam dizendo, enquanto Tsion se desesperava, no
fundo de uma das cavernas. Parecia que o Senhor lhe havia mostrado que os
rebeldes não voltariam - nenhum deles. Mas Tsion não sabia se Deus os mataria,
conforme fez na rebelião de Coré nos tempos de Moisés, ou se o anticristo os
destruiria depois de tê-los atraído enganosamente para o deserto.
Ele levantou a cabeça quando Naomi entrou correndo, vindo do centro de
tecnologia e comunicações, e dirigiu-se a seu pai. Ela olhou de relance para
Tsion, enquanto cochichava ao ouvido do pai. Quando viu o homem curvar os
ombros e sacudir a cabeça, Tsion entendeu tudo.
A jovem saiu, e seu pai caminhou em direção a Chaim. Tsion o
interceptou.
- Conte a nós dois. Eu preciso saber.
- Mas - disse o pai de Naomi - o senhor não poderia ser poupado desta
notícia um dia após seu triunfo sobre o falso profeta? Por que estragar sua
alegria?
- Eu não estou alegre, meu amigo. Fui incapaz de impedir que o falso
profeta convencesse os rebeldes a seguir o caminho que escolheram. Não
adiantou nada o que eu fiz ou o que eu disse. Conte-me tudo. Não me poupe de
nada.
- Três amigos nossos do Comando Tribulação testemunharam o fato e
estão retornando. Eles querem trocar algumas palavras com o senhor.
Tsion levantou-se.
- Claro! Onde eles estão?
- Desceram do heliporto e estão a caminho daqui. Quando Tsion e Chaim
dirigiram-se à entrada da caverna,
Mac, Albie e Abdullah já estavam chegando. Todos se abraçaram. Os
anciãos mantiveram uma distância respeitosa, enquanto os cinco se
aglomeravam a um canto e Mac relatava os fatos.
- Vocês não deviam ter presenciado aquilo - disse Tsion, com ar de
tristeza.
- Se soubéssemos o que íamos ver, não teríamos ido - disse Mac. - Mas o
senhor sabe que nós, pilotos, somos curiosos como crianças. Já matamos nossa
curiosidade.
- Aquele homem não era um ser humano - disse Tsion.
- Certamente foi uma aparição demoníaca. Apocalipse 12 diz que quando
Satanás, que enganará o mundo inteiro, foi atirado para a terra, seus anjos
também vieram com ele. E, evidentemente, não é de admirar que aquelas
pessoas não tenham sido recrutadas pela Comunidade Global. João 10.10 diz
que Satanás virá somente para roubar, matar e destruir.
- Eu tenho uma pergunta, Dr. Ben-Judá - disse Albie. - É certo não gostar
disso? Quero dizer, todo mundo está indignado com o que aconteceu, mas,
quando eu penso que entendi o que Deus poderia fazer, Ele permite que uma
coisa dessas aconteça. Não estou entendendo mais nada.
- Não se sinta aborrecido com isso, meu irmão, a menos que seu
questionamento o leve a duvidar de Deus. Ele está no controle. Os caminhos
dele não são os nossos caminhos, e Ele vê tudo de uma maneira grandiosa. Nós,
que vivemos deste lado do céu, não podemos sequer imaginar o que Ele vê. Eu
também estou desolado. Eu queria tanto que algumas daquelas pessoas
voltassem correndo para cá, suplicando para que intercedêssemos por elas
perante Deus, da maneira como os filhos desobedientes de Israel fizeram nos
tempos do Antigo Testamento. Eu adoraria ter orado pela redenção delas ou ter
levantado a imagem de uma serpente de bronze, para que as pessoas que foram
picadas por esses seres peçonhentos pudessem olhar para ela e ser curadas.
Deus, porém, está fazendo seu trabalho de seleção. Ele está purificando a terra
de seus inimigos e permitindo que os indecisos enfrentem as conseqüências de
sua procrastinação. Você sabe tão bem quanto eu que ninguém, em sã
consciência, escolheria ficar contra Deus, que pode nos proteger das armas de
destruição em massa. Mas os tolos que estavam aqui se aventuraram a ir ao
deserto. Eles ficaram fora da proteção de Deus e não retornaram. O apóstolo
Paulo disse: "Ó profundidade da riqueza, tanto da sabedoria, como do
conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos e quão
inescrutáveis os seus caminhos! Quem, pois, conheceu a mente do Senhor? ou
quem foi o seu conselheiro? [...] Porque dele e por meio dele e para ele são
todas as coisas. A ele, pois, a glória eternamente" [Romanos 11.33, 34, 36].
Mac levantou-se antes do amanhecer, ansioso por partir. Enquanto
aguardava Albie e Abdullah, ouviu um burburinho por toda a cidade de Petra.
Corria a notícia, espalhada por um excelente sistema de comunicação boca a
boca, que Tsion e Chaim estavam convocando o povo para reunir-se logo depois
do maná da manhã.
Abdullah e Albie comeram rapidamente, arrumaram suas coisas e foram
ao encontro de Mac, que estava no meio do povo.
Chaim foi o primeiro a dirigir-se à multidão.
- Tsion acredita ter ouvido a palavra do Senhor de que não existem mais
indecisos aqui. Vocês poderão confirmar isso, se olharem ao redor. Existe
alguém neste lugar sem o selo dos crentes? Alguém em algum lugar aqui? Não
vamos pressioná-los nem condená-los. Precisamos apenas saber.
Mac deu uma olhada panorâmica na direção do povo, mas concentrou-se
nos semblantes de Tsion e Chaim, que aguardaram mais de dez minutos.
Em seguida, Tsion deu um passo à frente.
- O profeta Isaías - ele disse - fez a seguinte profecia: "Acontecerá,
naquele dia, que os restantes de Israel, e os da casa de Jacó que se tiverem
salvado, nunca mais se estribarão naquele que os feriu, mas, com efeito, se
estribarão no Senhor, o Santo de Israel" [Isaías 10.20].
- "Os restantes se converterão ao Deus forte, sim, os restantes de Jacó.
Porque ainda que o teu povo, ó Israel, seja como a areia do mar, o restante se
converterá" [vv. 21-22].
E a respeito do rei deste mundo que tem atormentado vocês, Isaías diz,
mais adiante: "Acontecerá, naquele dia, que o peso [dele] será tirado do teu
ombro, e o seu jugo do teu pescoço, jugo que será despedaçado por causa da
gordura" [v. 27]. Louvado seja o Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó.
- O profeta Zacarias cita as palavras do Senhor Deus falando da terra de
Israel: "Dois terços dela serão eliminados e perecerão; mas a terceira parte
restará nela. Farei passar a terceira parte pelo fogo, e a purificarei como se
purifica a prata, e a provarei como se prova o ouro; ela invocará o meu nome, e
eu a ouvirei; direi: é meu povo, e ela dirá: O SENHOR é meu Deus" [Zacarias
13.8-9].
- Meus caros amigos, remanescentes de Israel, isso está de acordo com o
ensinamento claro de Ezequiel, capítulo 37, que diz que nossa nação estéril será
vista, nos últimos dias, como um vale de ossos secos, aos quais o próprio Deus
chamou de "toda a casa de Israel". Eles próprios dizem: "Os nossos ossos se
secaram, e pereceu a nossa esperança; estamos de todo exterminados" [v. 11].
- Mas, em seguida, meus caros irmãos, Deus disse a Ezequiel: "Portanto
profetiza e dize-lhes: Assim diz o Senhor Deus: Eis que abrirei a vossa sepultura,
e vos farei sair dela, ó povo meu, e vos trarei à terra de Israel [...] Porei em vós o
meu Espírito, e vivereis, e vos estabelecerei na vossa própria terra. Então
sabereis que eu, o Senhor, disse isto, e o fiz" [vv. 12, 14].
Fazia muito tempo que Rayford não se envolvia com um trabalho físico tão
pesado. A pista de pouso e de decolagem em Mizpe Ramon, destinada à
Operação Águia, tinha sido construída sob sua supervisão, mas por outras
pessoas que usaram equipamentos pesados. Agora, ele também era o
responsável pela operação, mas todos sabiam que cada par de mãos passara a
ser de suma importância.
Lionel Whalum aterrissara sem incidentes em Gobernador Gregores. O
único problema foi que a pista principal, destruída durante a guerra, precisou ser
reconstruída pela cooperativa, que a duplicou com outra pista de cerca de 30
metros de largura. A CG não tomou conhecimento da reconstrução nem do
imenso acampamento de crentes clandestinos, que haviam colhido trigo e que
faziam a permuta desse produto por intermédio da cooperativa.
O principal contato de Rayford lá, chamado Luís Arturo, contou mais tarde
que a pista levou semanas para ser ampliada. Quando foi destruída, dela havia
restado apenas uma depressão lisa e escura no chão. Do alto, parecia que a
pista continuava ali como antes.
Luís cursara o ginásio e a faculdade nos Estados Unidos e falava inglês
fluentemente, embora com sotaque acentuado. Ele teve muitos contatos com
grupos de pastores no compus. Em razão disso, quando retornou à Argentina e
sofreu perdas em razão dos desaparecimentos, ele sabia exatamente o que
acontecera. Em companhia de alguns amigos de infância, ele correu até a
pequenina igreja católica, da qual restaram alguns poucos paroquianos. O padre
e o professor de catecismo de quem eles mais gostavam também haviam
desaparecido. Ao ler alguns livros encontrados na biblioteca, aprenderam a crer
em Cristo. Logo a seguir, formaram o núcleo de novos crentes naquela área.
Luís era um homem sincero, de fala rápida. Ele gostou de Ree Woo e foi
amistoso com todos, mas sua prioridade número um era carregar o avião e
despachar aqueles homens rapidamente.
- Nós ouvimos rumores de que a CG está poluindo o rio Chico e querendo
nos pegar - ele disse. - Tenho vários motivos para acreditar que isso não passa
de conversa de paranóicos, mas não podemos nos arriscar. O tempo está cada
vez mais curto, portanto é melhor agir rápido.
Luís gostou particularmente de Ree porque, apesar de o sul-coreano ser o
membro mais jovem da tripulação de Rayford e o de menor estatura, provou
estar em melhor forma que todos os norte-americanos e argentinos juntos, com
exceção de George Sebastian.
A reputação do Grande George já era conhecida antes de sua chegada.
Enquanto ele trabalhava levando sozinho pesados sacos de trigo para dentro do
avião, muitos sul-americanos pediam-lhe que falasse sobre sua prisão na Grécia
e sua fuga.
Rayford notou que George tentava levar a história na brincadeira.
- Eu dominei uma mulher que tinha a metade do meu tamanho.
- Mas ela estava armada, não? Ela matou alguém?
- Bem, nós não podíamos permitir que ela fizesse isso, certo?
Rayford trabalhava a maior parte do tempo ao lado de Lionel. Cada um
deles era capaz de carregar um saco de trigo por vez. Ree também ajudava, mas
era jovem e rápido, e na manhã seguinte não se sentia com o corpo tão dolorido
quanto Ray e Lionel.
Depois de dois dias de trabalho contínuo - e graças a macacos hidráulicos
e seis pallets de alumínio que sustentavam até 15 toneladas cada -, quando o
avião já estava parcialmente carregado, Rayford viu Luís correndo em sua
direção.
- Senõr Steele, vamos até a torre, rápido. Eu tenho binóculos.
Rayford acompanhou Luís até uma torre nova de madeira, de dois
andares, projetada para confundir-se com a paisagem. Os pilotos que a
conheciam precisavam ficar atentos para enxergá-la, mas ela passava
despercebida dos espiões.
Ao chegar ao topo da escada, Rayford teve de recuperar o fôlego. Assim
que descansou um pouco, Luís passou-lhe os binóculos e apontou para um
ponto a distância. Rayford levou alguns instantes para ajustar as lentes, mas o
que ele viu o fez questionar se já não seria tarde demais e se todo o trabalho não
estaria perdido.
DEZENOVE
Embora o vôo de Petra para a Índia não tivesse sido longo, Mac dormia
profundamente quando Albie pousou o avião de carga em Babatpur. Por causa
da demora em Petra, das diferenças de fusos horários e do peso da aeronave,
acabaram chegando lá no meio da noite.
Mac demorou alguns instantes para entender onde estava, mas, em
seguida, ele, Abdullah e Albie foram tirados apressadamente do avião por um
homem conhecido apenas por Bihari.
- Rápido, por favor. Estamos a uns 150 quilômetros ao norte da represa de
Rihand.
- Cento e cinqüenta quilômetros? - disse Mac. - Como vamos trazer a água
até o avião?
- De caminhão!
- A CG daqui está dormindo ou fazendo o quê?
- A CG, meu amigo, gosta da água potável.
No percurso até o local, Bihari atingiu a velocidade média de 110
quilômetros por hora, dirigindo uma minivan que não tinha condições de rodar tão
rápido em uma estrada como aquela - principalmente na calada da noite.
Noventa minutos depois, ele fez uma curva, levantando uma nuvem de
poeira, e chegou a uma área livre perto de uma pequena instalação industrial. Ali,
mostrou a Mac e a seus companheiros as enormes pilhas de engradados
contendo garrafões de água, que, pela quantidade, lotariam dois caminhões
grandes.
- Onde está o resto? - perguntou Mac. - Conseguimos um avião muito
grande.
- Pensei que você tivesse notado - disse Bihari. - Você não ouviu quando
buzinei para os pedestres na estrada?
- Ouvi algumas vezes.
- Dois caminhões já estão seguindo em direção ao avião. Quando ouvimos
vocês chegando, começamos a trabalhar. A idéia de ter trigo de verdade para
comer deixou todos nós animados. Com a ajuda de vocês e das empilhadeiras,
vamos terminar de carregar os dois últimos caminhões antes do alvorecer e
transportar a carga até o avião.
Alguns minutos depois, enquanto manobrava uma empilhadeira em
direção aos engradados, Mac passou por Albie.
- Essa gente daqui me faz sentir um velho tolo e preguiçoso - ele disse. -
Comparado ao trabalho deles, o nosso é uma moleza.
- Eles não se preocupam com mísseis e balas - disse Albie. - Será que
estão "comprando" a CG com um pouco de água?
Bihari interrompeu o último carregamento e acenou para Mac.
- Será que seus companheiros vão desanimar se eu disser que
precisamos resolver uma coisa antes de continuar? – ele perguntou.
- Depende - disse Mac. - Ainda vai dar tempo de a gente levantar vôo e
sair daqui?
- Sim, mas acho que estamos todos perdidos.
- Essa é uma péssima notícia. Qual é o problema?
- Vamos passar pela represa a caminho do aeroporto. Fica um pouco fora
de mão, mas quero que você a veja.
- Já vi muitas represas antes. Há alguma coisa errada com a sua?
- Meu pessoal está dizendo que o Senhor enviou mais um julgamento.
- Oh, não.
- Nem posso imaginar como é um grande volume de sangue forçando
passagem através das comportas de uma represa.
- Eu também não - disse Mac. - Qual é a quantidade de água que vocês
têm, menos a que estamos levando?
- Deve ser suficiente para seis meses. Mas a CG virá atrás de nós quando
descobrir que a nossa fonte secou.
- Eles sabem onde vocês estão?
- Devem saber. E não vai demorar muito para eles chegarem.
- A primeira coisa que você precisa fazer é esconder este lugar.
O sol estava prestes a se pôr, mas o calor continuava a castigar as
planícies da Argentina. Rayford tentava manter os binóculos no lugar para
entender o significado de toda aquela movimentação. Talvez não fosse nada,
mas as possibilidades não pareciam muito animadoras. Havia um número
enorme de pessoas, disso ele tinha certeza, mas Rayford não sabia dizer se
eram militares, soldados da CG, Monitores de Moral, mendigos ou habitantes da
cidade.
Ele devolveu os binóculos a Luís.
- Devemos levantar vôo? Ou é melhor ver o que está acontecendo?
- Você sabe o que eu penso.
- Devemos ir até lá armados? Quantas pessoas irão conosco?
Luís sacudiu a cabeça, sem saber.
- Que tal isso: eu providencio o veículo, e você entra com o plano.
- Muito justo - disse Rayford. - Irei com Sebastian. Levaremos armas, mas
não quero partir para o ataque. Vamos ver o que está acontecendo e deixar você
e seus companheiros fora disso.
Enquanto eles desciam da torre, Luís orou: Oh, meu Senhor, espero que
ainda não tenha acontecido.
- O que é isso?
- Você também sentiu o cheiro, capitão Steele? Rayford cheirou o ar.
Sangue.
Mac estava preocupado durante o percurso da instalação industrial até a
represa. Será que o enorme carregamento de trigo também teria de ser trazido
até ali de caminhão? Teriam eles caminhões suficientes? E onde armazenariam
todo aquele trigo?
Se, por um lado, ele estava preocupado, por outro sentia-se feliz, porque
isso não era problema seu. Pessoas mais capazes de encontrar soluções
inteligentes do que ele haviam planejado tudo. A preocupação ficaria a cargo
delas.
Quando Bihari parou perto da represa, outro caminhão carregado
estacionou atrás dele. A princípio, ninguém desceu. Em seguida, os quatro
saíram.
Eles observaram a represa por alguns instantes. Duas comportas estavam
abertas, ambas despejando uma quantidade imensa de líquido, que batia em
uma ribanceira e espirrava neles. O sangue, muito mais espesso que a água,
tinha um ruído diferente. O odor era terrível, e Mac assustou-se. Aquilo parecia
um pesadelo, e ele sentiu um arrepio percorrer-lhe o corpo.
Havia um homem, em pé, a algumas centenas de metros da represa, por
onde corria o sangue. Seu rosto parecia familiar.
- Quem é ele? - perguntou Mac, apontando.
- Ele quem? - disse Albie.
Mac virou-o na direção certa e apontou novamente.
- Eu não enxergo muito bem a esta hora da manhã, Mac. Quem você está
vendo?
- Ninguém está vendo aquele homem ao lado da pedra, lá embaixo? Ele
está perto do rio.
Nenhum deles respondeu.
- Vou ver quem é. Ele está olhando para cá! Acenando para irmos até lá!
- Eu não estou vendo ninguém, Mac. Talvez seja uma de suas "miradas de
cowboy".
Mac levantou a cabeça e encarou Abdullah.
- Uma de minhas o quê!
- Uma daquelas coisas que vocês, os cowboys, vêem no deserto quando
estão com sede. Parece água, mas é apenas um cacto ou coisa parecida. Uma
"mirada".
Albie jogou a cabeça para trás e caiu na gargalhada.
- Eu fui criado a mais de 15 mil quilômetros do Texas, mas sei o que é
isso! Chama-se miragem, Smitty. Miragem.
- Bem, não é uma mirada nem uma miragem - disse Mac. - Eu já volto.
Ele caminhou até a uns cem metros do homem, que o observava o tempo
todo.
- Já que você veio até aqui - disse o homem -, por que não trouxe uma
garrafa vazia?
- Por que eu haveria de querer uma garrafa cheia de sangue? De qualquer
forma, eu não tenho nenhuma garrafa vazia.
- Esvazie uma e traga-a aqui.
Mac obedeceu, como se aquele fosse um pedido natural e ele não tivesse
escolha.
Assim que ele retornou, Abdullah disse:
- E aí, companheiro? Era uma "mirada"?
- Muito engraçado, seu jóquei de camelo.
Mac pegou uma garrafa de um dos engradados, bebeu metade da água no
caminho de volta e despejou o resto no chão.
- Ei! - gritou Bihari - essa coisa é tão valiosa quanto o trigo.
Mac olhava para suas pegadas enquanto se aproximava da correnteza
vermelha.
- Tu estás sempre por perto, não, Miguel? - ele disse. - És onipresente?
- Você sabe muito bem, Cleburn - disse Miguel. - Assim como você, estou
incumbido de uma missão.
- E, por coincidência, na mesma parte do mundo que eu. Nunca consegui
agradecer a tua...
Miguel levantou a mão para fazê-lo calar-se e pegou a garrafa. Em
seguida, suspirou e olhou para o céu. Ele falou em voz suave, mas com grande
fervor:
- "Grandes e admiráveis são as tuas obras, Senhor Deus, Todo-poderoso!
Justos e verdadeiros são os teus caminhos, ó Rei das nações! Quem não temerá
e não glorificará o teu nome, ó Senhor? pois só tu és santo; por isso todas as
nações virão e adorarão diante de ti, porque os teus atos de justiça se fizeram
manifestos" [Apocalipse 15.3, 4].
Miguel caminhou cuidadosamente por entre as rochas e desceu até à beira
do rio. A correnteza de sangue fazia tanto barulho que Mac pensou que não seria
capaz de ouvir Miguel, caso ele falasse novamente. Mas, como se conhecesse
os temores de Mac, Miguel virou-se e chamou-o com um gesto. Mac hesitou. O
corpo de Miguel estava respingado de sangue. Seu manto marrom, a barba, o
rosto e o cabelo também tinham manchas de sangue.
- Vem - ele disse. E Mac obedeceu.
Miguel firmou um pé sobre a rocha e o outro a alguns centímetros do rio.
Ele disse:
- "Tu és justo, tu que és e que eras, o Santo, pois julgaste estas coisas;
porquanto derramaram sangue de santos e de profetas, também sangue lhes
tens dado a beber; são dignos disso" [Apocalipse 16.5-6].
Em seguida, Mac ouviu outra voz que ele não sabia de onde vinha:
- "Certamente, ó Senhor Deus, Todo-poderoso, verdadeiros e justos são
os teus juízos" [v. 7].
Miguel curvou o corpo para baixo e afundou a garrafa no rio. A correnteza
de sangue pressionava seu braço e molhou a manga de sua roupa, enquanto ele
enchia a garrafa. E, quando ele a tirou do rio e virou-se para Mac, não havia mais
respingos de sangue em seu corpo. Seu manto estava seco; seu rosto, limpo;
seu braço, sem mancha alguma. A garrafa estava repleta de água pura e
cristalina.
Miguel a entregou a Mac.
- Bebe - ele disse.
Mac levou a garrafa aos lábios. Enquanto sorvia o conteúdo de olhos
fechados, Miguel prosseguiu:
- Jesus disse: "Aquele, porém, que beber da água que eu lhe der, nunca
mais terá sede, para sempre; pelo contrário, a água que eu lhe der será nele uma
fonte a jorrar para a vida eterna" [João 4.14].
Mac abriu os olhos e respirou fundo. Miguel havia desaparecido.
- Sem querer faltar com o respeito, Rayford - disse George -, mas você já
parou para pensar que estamos apenas em dois e que só temos duas armas e
um pouco de munição? E não sabemos o que vamos encontrar pela frente
quando chegarmos lá dentro deste veículo.
- Eu achei que você fosse me proteger. Não estou muito familiarizado com
armas militares.
- Nós não vamos enfrentar essa gente, não é?
- Espero que não, George. Estamos em tremenda desvantagem numérica.
- É o que eu estava pensando, Rayford.
- Vamos dar uma espiada para ver o que podemos descobrir.
- Ah, um momento. Você poderia parar um pouco?
- Você está falando sério?
- Estou.
Rayford parou o veículo, deixando-o em ponto morto.
- Você chegou a ler algum livro de estratégia militar?
- Sobre qual?
- Sobre a técnica do jogo de xadrez, que consiste em sacrificar um peão
para obter vantagem de posição?
- Ouça, George. Nada mais é como antes. Nós improvisamos todos os
dias. Você é um exemplo vivo disso. No momento, não temos escolha.
Encontramos um grupo de irmãos e irmãs tentando sobreviver aqui, e agora eles
podem estar sendo ameaçados. Se voltarmos para pegar todos eles e dermos
uma arma para cada um, eles não vão ter condições de enfrentar o pessoal da
CG, caso essa gente apareça por aqui. Vamos sondar primeiro para ver o que
está acontecendo. Não devemos entrar no meio dessa gente sem antes saber se
poderemos sair de lá. Use os binóculos. Se você avistar um grupo armado da
CG, me diga, e nós voltamos. Concorda comigo?
George parecia estar avaliando bem a situação.
- Pense no que eu vou dizer. Você está vendo lá adiante? Do outro lado.
Há um grupo enorme de gente dirigindo-se para um ponto central. Vamos dar a
volta por trás e nos misturar ao grupo. Não são militares e não parecem
ameaçadores.
- Faz sentido.
- Sempre faz. Use seus recursos.
- Como sua cabeça, por exemplo? - perguntou Rayford.
- Bem, não foi isso que eu quis dizer.
Mac olhou ao redor, com. o coração aos pulos, como se tivesse escalado
uma montanha. Ele correu até a beira do rio de sangue e mergulhou a garrafa na
correnteza. O sangue espirrou por todo o seu corpo, mas quando ele retirou a
garrafa, o conteúdo era de água pura e fresca.
Ele riu, gritou e foi ao encontro de Albie, Abdullah e Bíhari. Aparentemente,
nenhum dos três tinha visto Miguel, porque logo se cansaram do comportamento
estranho de Mac.
- Vocês não o viram, não é verdade?
Os três olharam bem sérios para ele, de dentro dos caminhões.
- Vocês viram quando despejei a água no chão? Viram? Bihari, você viu,
porque me disse que ela era tão valiosa quanto o trigo. Lembra-se? Bem, então
me diga onde consegui isto aqui?
Bihari desceu do caminhão.
- Onde você conseguiu?
- No rio, bem ali! E você está vendo algum respingo de sangue em mim?
- Eu não!
- Você ainda acha que estão perdidos? A CG vai deixar vocês em paz
quando descobrir o que aconteceu com esta sua fonte de água. Mas você e seu
pessoal poderão continuar se abastecendo aqui como sempre! Deus toma conta
daqueles que têm o selo na testa, amém?
A esta altura, Albie e Abdullah já haviam se aproximado para ver.
- Experimentem isto, cavalheiros. Vocês vão querer beber tudo, mas
vamos dividir, está bem?
Rayford e George infiltraram-se no meio de um grupo de peregrinos.
Quase todos estavam a pé. Pelos trajes que usavam, poderiam ser tanto da
cidade como do campo. Havia também alguns mendigos.
- Inglês, alguém fala inglês? - perguntou George.
Após ele ter perguntado mais duas vezes, um homem que parecia estar
acompanhado da esposa e de dois parentes - aproximou-se do veículo.
- Inglês? Sim - ele disse.
- Para onde vocês estão indo? - perguntou George.
- Estamos indo para onde fomos convidados – respondeu o homem.
- Todos vocês? Convidados?
- Não sei se os outros foram convidados. Nós fomos.
- Quem os convidou?
- Três homens. Eles bateram em nossa porta e disseram que devíamos vir
para cá, porque eles tinham boas notícias para nos dar.
- Mas vocês não são leais a Carpathia - disse George.
- Não estou vendo nenhuma marca.
- O senhor também não tem - disse o homem. - Mas parece que, assim
como nós, não está assustado.
- Vocês nem parecem preocupados.
- Os homens disseram que não devíamos ter medo.
- Por que vocês acreditaram neles? Qual o motivo de tanta confiança?
- Eles foram sinceros. O que mais posso dizer?
- Pergunte aos outros por que eles estão aqui.
O homem dirigiu-se a um grupo falando em espanhol. Depois dirigiu-se a
outro grupo.
- Todos nós fomos convidados pelos mesmos homens - ele disse.
- E quem são eles?
- Ninguém sabe.
- Apesar disso, vocês arriscaram a vida para estar aqui.
- É como se a gente não tivesse escolha, senhor. Rayford parou e o povo
passou por ele.
- O que você acha disso, George?
- A mesma coisa que você: a história que Ming contou.
- Exatamente. E só vamos ter certeza quando eles proferirem as primeiras
palavras. Se o tal... Cristóvão...
- Correto.
-.. começar a falar do evangelho, e o segundo fizer profecias sobre o que
vai acontecer em Babilônia...
- Naum.
- Correto. E Calebe fizer advertências a respeito de receber a marca, bem,
é só isso que precisamos saber.
- E onde está a CG, Rayford? Aqueles três salvaram algumas pessoas na
China, mas elas foram mortas pelos homens das Forças Pacificadoras.
Ambos viraram-se para trás para ver se o inimigo estava chegando.
- Talvez Deus e esses homens trabalhem de maneira diferente em
diferentes partes do mundo.
Leah Rose estava bem atarefada no porão da mansão de Lionel Whalum,
em Long Grove, Illinois. Ela e Hannah faziam um inventário dos suprimentos
médicos e uma lista do que seria necessário nas cooperativas de diversas
localidades. As duas trabalhavam com informações fornecidas por Chloe
Williams.
- Sinceramente, gostaria de achar um lugar que necessite de outras coisas
além de suprimentos - disse Leah.
- É mesmo. Nada mais cansativo do que ficar parada aqui... Não sei se
quero voltar a ficar no meio do combate, mas preciso ir a algum lugar onde eu
seja necessária.
- O problema - disse Leah - é que Petra não necessita de remédios nem
de enfermeiras. Mas eu gostaria de, pelo menos, passar por lá quando estiver a
caminho de minha próxima missão.
- Hummm, sério? Para quê? Ou melhor, para ver quem?
- Ora, não me amole, Hannah.
De repente, os joelhos de Leah dobraram-se e ela quase caiu.
- O que foi? - Hannah perguntou. - Você está bem?
- Acho que sim. Não sei. Senti uma fraqueza repentina, mas já passou.
Porém, assim que disse isto, ela caiu de joelhos no chão.
- Leah!
- Eu estou bem. Só que... só que... oh, Deus, sim. Farei isso, Senhor.
Claro.
- O quê? O que é?
- Ore comigo, Hannah. Devemos orar pelo Sr. Whalum.
- Devo chamar a esposa dele?
- Precisamos orar agora.
Senhor, ela orou, não sei o que estás incutindo em mim. Só sei que o Sr.
Whalum necessita de oração neste momento. Nós confiamos em ti, nós te
amamos, acreditamos em ti e sabemos que tu és soberano. Suplicamos-te que
protejas o Sr. Whalum e todos os que estão com ele. Rayford, George, Ree e ele
devem estar saindo de lá, por isso te pedimos que lhes concedas o que eles
necessitam, que os protejas quando necessitarem de proteção e que os
acompanhes na viagem à Índia.
- Aí vem eles - disse Rayford a George apontando para o lado esquerdo da
multidão.
A CG, composta de cerca de cem homens fardados e armados, estava
chegando em jipes e vans. Eles tinham megafones.
Enquanto Rayford estacionava o veículo do outro lado do povo, de onde
podia ter uma visão privilegiada, um oficial da CG anunciou:
- É proibido fazer reuniões desse tipo. Vocês estão transgredindo a lei.
Não existe aqui um centro para aplicação da marca de lealdade, e faz meses que
o prazo expirou. Vocês não podem mais reparar essa falha. Aparecer em público
sem a marca de lealdade é uma transgressão punível com a morte pelas mãos
de qualquer cidadão cumpridor da lei, mas se vocês se dispersarem agora e
voltarem para suas casas, estenderemos um pouco mais o prazo, para permitir
que recebam a marca dentro de 24 horas. Há centros de aplicação em Tamel
Aike e Laguna Grande, ambos a cerca de cem quilômetros daqui.
O povo não parou, não olhou, não se perturbou. O oficial da CG voltou a
falar:
- Este é o último aviso...
- Silêncio!
A voz cheia de autoridade veio da frente, de um dos três homens, que se
comunicava sem a ajuda de alto-falantes.
- Meu nome é Cristóvão, e eu falo sob a autoridade de Jesus Cristo, o
Messias, o Filho do Deus vivo. Ele determinou que as pessoas deste grupo que
receberem hoje o seu evangelho eterno entrarão no reino milenar no dia de seu
glorioso aparecimento, daqui a dois anos.
O povo começou a murmurar, e os homens da CG voltaram a falar pelos
megafones, mas como eles não funcionaram, ninguém ouviu o que eles
disseram.
- Meus colaboradores, Naum e Calebe, estão aqui comigo somente para
proclamar aquilo que o Senhor determinou que proclamássemos. E, a seguir, a
mensagem de salvação concedida por Deus por meio de seu Filho unigênito será
apresentada por uma das 144.000 testemunhas que Ele levantou das tribos dos
filhos de Israel.
- E, agora, afastai-vos daqui, vós que praticais a iniqüidade, servos do rei
maligno deste mundo. Jamais chegareis perto deste povo e deste lugar
novamente. Afastai-vos antes que o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo
vos aniquile aqui mesmo.
Amedrontados, os homens da CG correram para seus veículos, temendo
morrer. Cristóvão disse:
- "Temei a Deus e dai-lhe glória, pois é chegada a hora do seu juízo; e
adorai aquele que fez o céu, e a terra, e o mar, e as fontes das águas"
[Apocalipse 14.7].
Naum falou a seguir amaldiçoando Babilônia, e Calebe alertou para as
conseqüências de aceitar a marca da besta. Em seguida, um evangelista
trajando manto branco caminhou até à frente do povo e disse:
- "Haverá sinais no sol, na lua e nas estrelas; sobre a terra, angústia entre
as nações em perplexidade por causa do bramido do mar e das ondas; haverá
homens que desmaiarão de terror e pela expectativa das coisas que sobrevirão
ao mundo; pois os poderes dos céus serão abalados" [Lucas 21.25-26].
- "Então se verá o Filho do homem vindo numa nuvem, com poder e
grande glória. Ora, ao começarem estas coisas a suceder, exultai e erguei as
vossas cabeças; porque a vossa redenção se aproxima" [v. 27, 28].
- O trigo está chegando e vocês têm água em abundância, Bihari. Com
licença, vou dar um telefonema. - Mac teclou o número de Rayford. - Ray? Onde
você está, homem? Quando seu pessoal pretende vir para cá? Ótimo. Ei, você
viu os rios? Ah, é verdade, você está no Rio Chico. Sabe de uma coisa? A praga
não atinge os crentes. Pelos menos não os crentes daqui. - Mac contou-lhe sobre
o encontro que teve com Miguel e o que aconteceu com o sangue. - Falta uma
hora para decolarmos, portanto diga a esses irmãos e irmãs daí que a água está
a caminho! Bem, é verdade que eles não precisam mais tanto de água agora,
certo? Bihari olha para mim como se eu é que fosse o culpado por estragar a
coisa toda... Mas diga ao pessoal daí que trato é trato.
- Posso contar a ele, capitão Steele? - perguntou George.
- A ele quem?
- A Luís. Contar a ele que a CG teve de abandonar esta área. E contar
também a respeito da água.
- Você gosta de dar boas notícias, não?
- Claro!
- Vá em frente.
Quando eles voltaram, Luís aproximou-se correndo do carro.
- E então? - ele perguntou.
- George quer ter o privilégio de lhe contar - disse Rayford. - Vamos
decolar em dez minutos.
Lionel assumiria o controle da aeronave nas primeiras quatro horas; em
seguida, passaria a tarefa para Ree. Rayford faria a aterrissagem. Ray estava
sentado na poltrona do co-piloto, atando o cinto de segurança, quando Lionel
ligou os motores. Mas assim que ele colocou os fones de ouvido, Rayford notou
que havia algo errado.
- Está tudo bem? - Rayford perguntou. Lionel mordeu os lábios.
- Fiz todos os procedimentos preliminares.
- Eu também. E daí?
- Há alguma coisa errada.
- Vôo longo, avião grande, carga pesada demais, meu amigo. Só vamos
decolar depois que você se der por satisfeito, entendeu?
- Eu agradeço, mas não estou conseguindo descobrir o que é.
- Você quer fazer novamente todos os procedimentos preliminares,
verificar tudo, de cima a baixo, só para ter certeza?
- Não, deixe-me pensar um pouco. Rayford virou-se para trás.
- Tudo certo aí, Ree?
Ree levantou o polegar e recostou-se na poltrona, como se estivesse
pronto para dormir.
- O último membro de sua tripulação está chegando, Sr. Piloto. Ele deve
fechar a porta ou vamos aguardar um pouco?
- Deve ser alguma coisa insignificante! Aguarde um pouco. Vou dar uma
olhada na carga.
- Precisa de ajuda?
- Não, eu vou sozinho.
- Está frio lá fora!
- Como se eu não soubesse!
Rayford aguardou dez minutos. Ree e George já estavam cochilando. Ray
desatou o cinto de segurança e dirigiu-se ao compartimento de carga. Lionel
estava vindo a seu encontro.
- Tudo certo? - perguntou Rayford. Lionel olhou firme para ele.
- Diga à torre que estamos prontos.
Assim que eles ataram os cintos, Lionel olhou para Rayford novamente.
- Louvado seja Deus, é tudo o que eu tenho a dizer.
- Não, não é. - disse Rayford. - Quero que me conte.
- Um pallet inteiro estava solto. Ele ia tombar na primeira inclinação da
aeronave.
- E nós íamos despencar.
- Claro.
- Tenho certeza de que você verificou a carga durante os procedimentos
preliminares.
- Verifiquei. Eu sempre verifico. Não há nada mais importante do que
manter a carga centralizada e bem amarrada.
- O que você está achando disso?
- Não faço idéia. Verifiquei as trancas duas vezes. Estava tudo em ordem.
Apenas tive a intuição de que deveria fazer nova verificação.
- Bem, companheiro - disse Rayford -, graças a essa intuição é que vamos
conseguir aterrissar na Índia.
VINTE
Cinco anos dentro da Tribulação
Chang passava horas monitorando o palácio, prestando maior atenção
todas as vezes que escutava a voz de Carpathia.
- Existe alguma coisa na atmosfera daquela antiga região de Edom que
está interferindo em nossos mísseis, em nossos vôos, em nossa artilharia - disse
Carpathia uma noite. - A área inteira transformou-se em um Triângulo das
Bermudas. Garanta a paz, mas não gaste nem mais um Nick em armamentos
inúteis. Vamos substituí-los pela diplomacia.
Chang sabia que falar em diplomacia da Comunidade Global era um
paradoxo. O procedimento de operação padrão não tinha mais nenhum vestígio
dos tempos em que era necessário preservar a boa imagem do potentado.
Alguém sempre tentava protegê-lo, mas por todo o mundo existiam provas de
que até mesmo os milhões de cidadãos que possuíam a marca de lealdade a ele
sabiam, agora, que o deus ressurreto tornara-se um rei déspota. Centenas de
milhares de pessoas morriam por toda a parte em razão da falta de água potável.
Um noticiário da Região 7, os Estados Unidos Africanos, mostrava uma
mulher vociferando em público diante de uma pequena multidão temerosa:
- Justiça, imparcialidade, até mesmo tribunais de júri são relíquias de
tempos passados! Obedecemos à CG e nos curvamos diante da imagem do
supremo rei só porque todos nós conhecemos alguém que foi condenado à
morte por ter deixado de cumprir a ordem!
Ela foi alvejada com um tiro mortal, no lugar em que estava, e o povo
dispersou para não morrer também.
Da mesma área veio a imagem da gravação de uma cena enganosa,
representando um desfile programado para exaltar a CNNCG. O povo marchava
indolentemente, com o rosto pálido, carregando cartazes e cantando "Salve,
Carpathia", em tom monótono.
Chang sofria com o caos existente no palácio e, ao mesmo tempo, tirava
proveito dele. Nova Babilônia transformara-se em uma cidade fantasma. Os
cidadãos não suportavam mais fazer peregrinações aos edifícios reluzentes.
Com base em estatísticas reais - e não em números adulterados dos
resultados anunciados à população -, Chang sabia que metade da população
mundial existente na época do Arrebatamento havia morrido.
A capital do mundo não era mais a mesma. Facções e minirreinados
brotavam em toda parte, até mesmo nos círculos de Carpathia - gente do alto
escalão ameaçando, adulando, cercando-se de bajuladores. Havia uma desconfiança
geral entre eles, embora todos fossem subservientes e melosos diante do
chefão. Revolta era uma palavra fora de cogitação. O rei deles provara ser imune
à morte. Que vantagem haveria em matá-lo novamente? Ele ficaria sem poderes
durante três dias, mas o assassino teria de pegar seus pertences e estar bem
longe dali quando ele ressuscitasse.
O estado precário dos serviços públicos em Nova Babilônia era
comparável ao de todos os lugares do mundo, com exceção de Petra. Os pilotos
do Comando Tribulação e da cooperativa contavam que, em todos lugares aonde
iam, eles constatavam que tudo o que se desgastava com o uso não era
substituído. A redução imensa da população custou à sociedade a perda de
metade das pessoas que trabalhavam no serviço público. Havia pouca gente
para transportar combustível, consertar carros, manter as lâmpadas da rua e dos
semáforos em funcionamento, preservar a ordem, proteger o comércio. Buck
relatou em A Verdade que a CG, principalmente os guardas municipais, usavam
suas fardas, suas insígnias e suas armas para obter vantagens pessoais. "Ai
daquele comerciante que não 'molhar a mão' de seu bom vizinho encarregado de
manter a segurança."
Chang observava tudo isso de seu local de trabalho como técnico de
informática no departamento de Aurélio Figueroa, cujo sistema havia sido
projetado e instalado com muita competência por seu antecessor, David Hassid.
"Que ironia!", Chang pensava. Essa era a única coisa que ainda funcionava
perfeitamente...
Carpathia tornara-se uma criatura ensandecida, e todos os que
gravitavam a seu redor demonstravam o mesmo comportamento - menos diante
dele. Todos pareciam servir de instrumento à sua loucura, competindo entre si
para ver quem seria o primeiro a agradá-lo, obedecendo a sua mais recente
diretriz - que geralmente vinha em forma de um acesso de fúria.
- Insubordinação! - ele berrou altas horas da noite, enquanto Chang ouvia
os exaustos subordinados do potentado tentando permanecer acordados com
ele.
- Meu subpotentado da Região 7 vai acordar amanhã cedo e ficar sabendo
que os chefes da Líbia e da Etiópia e todos os seus assessores diretos foram
assassinados!
Suhail Akbar disse:
- Eu vou falar com ele, Excelência. Tenho certeza de que ele perceberá
que...
- Você não entendeu que isso é uma ordem, Suhail?
- Como, senhor?
- Você não entendeu minha ordem?
- O senhor quer que aqueles líderes e seus assessores diretos estejam
mortos amanhã cedo?
- Se você não puder fazer isso, vou encontrar...
- Posso fazer, senhor, mas não haverá tempo suficiente para mandar
nossos homens daqui...
- Você é diretor do Serviço de Segurança e Inteligência! Não tem nenhum
contato na África que possa...?
- Vou cuidar disso, senhor.
- Espero que sim!
A ação foi realizada por um contingente do Serviço de Segurança e
Inteligência das Forças Pacificadoras e dos Monitores de Moral da África. Akbar
foi elogiado no dia seguinte, mas sofreu nas mãos de Carpathia por mais de três
semanas, porque o chefe estava tendo problemas em "obter informações úteis
da Região 7".
Rayford morava em um abrigo subterrâneo, como todos os outros pilotos
que decolavam partindo da antiga base militar de San Diego. E, da mesma forma
que Mac e Albie partiam de Al Basrah, Rayford fazia vôos diretos entre San
Diego e outros centros da Cooperativa Internacional de Mercadorias. Os lugares
eram tão distantes e tão escondidos que, se os pilotos conseguissem enganar o
radar da CG - outra tecnologia que também se encontrava em péssimo estado
em razão da perda de pessoal no mundo inteiro -, não encontrariam nenhum
outro tipo de problema no caminho. O chefe do Comando Tribulação temia que
ele e seu grupo baixassem a guarda e pusessem a perder toda a rede que
haviam montado. Na verdade, ele se sentia muito mais firme e cauteloso nos
tempos em que a CG estava no auge, trabalhando com força total. O mundo
tornara-se um caldeirão de sistemas de livre comércio individual.
Quando estava "em casa", em San Diego, Rayford estudava os relatórios
que Chloe recebia do pessoal da cooperativa do mundo inteiro. Pouquíssimos
lugares haviam escapado da influência maligna dos impostores patrocinados
pela CG. Mágicos, feiticeiros, prestidigitadores, aparições demoníacas e
representantes de Leon Fortunato pregavam um evangelho falso. Eles se
apresentavam como figuras de Cristo, messias, adivinhadores. Enalteciam a
divindade de Carpathia. Realizavam prodígios e milagres e enganavam um semnúmero
de pessoas. Essa gente era levada a desconsiderar as afirmações de
Cristo, geralmente pela promessa de água potável. Mas assim que elas tomavam
a decisão em prol do maligno, ele as destruía, como fez no Neguev, ou Deus as
matava. Tsion Ben-Judá continuava a dizer que Deus estava trabalhando
continuamente para igualar o número de crentes e de não-crentes, retirando da
Terra aqueles que portavam o sinal da besta, porque uma grande batalha estava
se aproximando.
- Não estou dizendo que o Deus de todos os deuses não é capaz de
derrotar o inimigo que Ele desejar - ensinava Tsion -, mas o odor fétido que vem
do outro lado da evangelização em prol do mal tem ofendido o Senhor e
inflamado sua ira.
Mesmo assim, a ira de Deus permanece equilibrada por causa de sua
grande misericórdia e amor. Não houve notícia de nenhuma morte ou ferimento
ter atingido um dos 144.000 evangelistas que Deus levantou para divulgar a
verdade a respeito de seu Filho.
Apesar de estar exausto de tanto lutar e aguardando com ansiedade o dia
em que iria para o céu ou o dia do Glorioso Aparecimento - para Rayford não
fazia diferença qual viria primeiro -, ele ainda se emocionava com as notícias
recebidas do mundo inteiro. O Comando Tribulação via muitos daqueles 144.000
homens corajosos aparecerem em público, convidando os indecisos para saírem
de casa a fim de incutir neles as verdades acerca de Cristo. Esses homens eram
excelentes pregadores, ungidos por Deus com o dom da evangelização.
Geralmente, apareciam acompanhados de anjos para protegê-los e para
resguardar seus ouvintes. Os exércitos da CG eram incapazes de detê-los.
- Os arcanjos Gabriel e Miguel têm sido vistos em diversas partes do
planeta fazendo pronunciamentos em favor de Deus e defendendo seu povo -
Tsion e Chaim diziam ao pessoal de Petra e ao mundo via Internet.
Rayford agradecia a Deus silenciosamente, enquanto lia que Cristóvão, o
anjo do evangelho eterno, geralmente aparecia em regiões remotas onde Cristo
nunca havia sido pregado. Naum continuava a alertar o povo a respeito da queda
de Babilônia, às vezes acompanhado de Cristóvão, às vezes sozinho. E as
notícias davam conta de que Calebe aparecia em algum lugar todos os dias,
alertando para as conseqüências de aceitar a marca da besta e de adorar sua
imagem.
Além disso, era comum o Comando Tribulação ver ou sentir a presença de
anjos protegendo-os aonde quer que fossem. Geralmente, mesmo fora das rotas
a Petra, os aviões da CG interceptavam os deles, os advertiam, tentavam forçálos
a pousar para atirar neles. Sem saber quando e onde eles seriam protegidos
fora do Neguev, os pilotos do Comando Tribulação agiam de maneira evasiva.
Mas, até aquele momento, Deus optara por guardá-los, deixando a CG frustrada
e perplexa.
Faltando menos de dois anos para o Glorioso Aparecimento, Rayford
encontrou-se com Buck e Chloe para avaliar as condições atuais do Comando
Tribulação.
- Onde estamos - ele perguntou - e onde precisamos estar para ajudar ao
máximo todos os crentes ao redor do mundo?
Chloe contou que Lionel Whalum e sua esposa conseguiram manter a
casa em Illinois.
- Leah e Hannah estão extremamente irritadas por terem de viver
trancadas durante tanto tempo - disse Chloe -, mas acho que elas se sentem
incentivadas por tudo o que Deus tem feito em suas vidas. Lionel ficou
emocionado ao saber que Leah foi movida por Deus a orar por ele antes de sua
partida da Argentina. Sabe, papai, atualmente ele é um dos pilotos mais
atarefados. Entrega suprimentos no mundo inteiro.
- Como está sendo a convivência entre Leah e Hannah? - disse Buck. - Eu
não conheço as duas muito bem, mas Leah deixa qualquer um nervoso. Ela
ainda está caidinha por Tsion?
- As duas não aparecem em público - explicou Chloe - e dizem que se
sentem vivas apenas à noite. Elas não se atrevem a sair durante o dia. A CG
atua somente de vez em quando naquela área, mas basta um cidadão dizer que
viu alguém sem a marca para pôr nosso trabalho todo a perder.
- Não tenho mais ouvido falar de Z - disse Rayford.
Chloe sacudiu a cabeça.
- De todo o nosso grupo, Zeke foi, provavelmente, quem mais mudou. Lá
no oeste de Wisconsin ninguém precisa de seus serviços. Não há necessidade
de confeccionar fardas, criar disfarces, transformar uma pessoa em agente da
CG.
- Será que não poderíamos aproveitar melhor os serviços dele aqui? -
perguntou Rayford.
- Não, depois do que eu vou lhe contar - disse Chloe.
- Zeke transformou-se numa nova pessoa. Ele se interessou tanto por
estudar a Bíblia que passou a ser o assistente do líder espiritual da igreja
clandestina de lá.
- Zeke, um assistente de pastor? - estranhou Rayford.
- Que coisa incrível!
- Chloe tem mantido contato com Enoque e com algumas pessoas do
grupo dele - disse Buck.
- É verdade. Eu me desculpei por ter me intrometido na vida e na
comunidade deles, porque me senti responsável pela separação que houve na
congregação de O Lugar. Mas Enoque me disse que, se eu não tivesse ido até
lá, eles nunca saberiam que Chicago seria destruída. Por outro lado, papai, sei
que se eu não tivesse perambulado por Chicago no meio da noite, talvez aquela
segunda destruição não tivesse acontecido.
Certa manhã, em Petra, o povo tomou conhecimento de que o sangue de
todos os mares do mundo voltara a transformar-se em água salgada.
- Deus não me revelou nada sobre isso - disse Tsion. - Mas pressinto que
deve estar vindo alguma coisa pior. E logo.
A situação pouco mudou, a não ser pelo fato de Carpathia tentar assumir
para si o crédito de ter purificado os mares. Ele anunciou:
- Meu pessoal inventou uma fórmula que purifica as águas. A vida animal e
vegetal dos oceanos retomará seu curso normal em breve. E, agora que os
oceanos voltaram ao normal, todas as águas dos rios e dos lagos também serão
restauradas.
Ele estava errado, é claro, e a estupidez de sua fanfarrice custou-lhe um
pouco mais de credibilidade. Deus havia decidido, em seu devido tempo,
suspender a praga dos mares, mas os rios e os lagos continuaram repletos de
sangue.
Pouco antes de ser executado, um rebelde sueco anunciou:
- Quando exultou ao ver que os mares voltaram ao normal, esse nosso
suposto potentado não mencionou que o mundo continua mergulhado no mais
completo caos. Peixes mortos, podres, fétidos ainda cobrem as praias de todo o
planeta e continuam a provocar doenças que atingiram grande parte das
populações litorâneas. E onde estão as estações de tratamento para transformar
as águas do mar em água potável? Nós estamos morrendo de sede, enquanto o
rei esbanja os recursos que ainda existem.
Sessenta e oito meses dentro da Tribulação
Chang ficou intrigado ao ouvir falar de uma reunião inesperada na sala de
conferências de Carpathia. Para grande frustração de Carpathia, foi Leon quem
convocou a reunião, mas Suhail Akbar, Viv Ivins e Krystall, a secretária de
Nicolae, rapidamente saíram em apoio a Leon.
- Convoquei a reunião para falar da água, Excelência
- Leon começou a dizer. - O senhor não necessita mais de alimento,
inclusive de água, e talvez seja por isso que não entende...
- Ouça, Leon. Existe água nos alimentos. Vocês não estão se alimentando
o suficiente?
- Potentado, a situação está medonha. Tentamos pegar água do mar e
transformá-la em água potável. Mas está sendo muito difícil transportar navios
novos até lá.
- Infelizmente, isso é verdade - disse Akbar. - Nossas tropas de todos os
lugares estão sofrendo.
- Eu estou sofrendo - disse Viv. - Sofrendo na pele. Há ocasiões em que
penso que vou morrer se não tomar um pouco de água.
- Sra. Ivins - disse Carpathia -, não vamos permitir que a administração da
Comunidade Global pare o que está fazendo por causa de sua sede. Você
compreende?
- Sim, majestade. Perdoe meu egoísmo. Não sei o que eu...
- Você tem um mínimo de experiência nessa área?
- Como, senhor?
- No assunto que estamos discutindo! Você tem alguma idéia para nos
ajudar a encontrar uma solução? Você é uma especialista? Uma cientista? Uma
hidróloga? Não há necessidade de sacudir a cabeça. Eu conheço as respostas.
Se você não tem serviço urgente para fazer em seu escritório, por que não fica
calada, só ouvindo, agradecida por receber um salário aqui?
- O senhor prefere que eu me retire?
- Claro!
Chang ouviu o barulho de uma cadeira sendo empurrada para trás.
- Só porque tem uma pequena ligação com minha família - disse Nicolae -,
você acha que tem as rédeas na mão! Não me dê as costas quando falo com
você!
- Pensei que o senhor quisesse me ver longe daqui - ela choramingou.
- Eu não sirvo a criados, empregados, amigos ou a quem quer que seja
que desrespeite seu soberano. Essa mesma atitude a fez pensar que poderia
sentar-se em MEU TRONO em MEU TEMPLO!
- Divindade, eu já me desculpei infinitas vezes por aquela imprudência! Já
me humilhei, me arrependi e...
- Excelência - disse Leon, com voz suave -, isso aconteceu há mais de
dois anos...
- Você! - esbravejou Carpathia. - Você convocou esta reunião e agora
também me afronta?
- Não, senhor. Eu lhe peço desculpas se o afron...
- Que outro nome você dá a isso? Você quer fazer companhia à tia Viv e
retornar a seu escritório para fazer o seu trabalho? Você é o chefe da igreja,
homem! O que está acontecendo com o Carpathianismo enquanto você se
preocupa com a água? Onde estão os cientistas, os técnicos que têm alguma
coisa a me apresentar?
Leon não respondeu.
- Sra. Ivins, por que você ainda está aqui?
- Eu... eu pensei que...
- Fora! Pelo amor de tudo...
- Senhor - Suhail começou a dizer, como se fosse a voz da razão -, eu
consultei os especialistas antes de vir para cá e...
- Finalmente! Finalmente vejo alguém que usa o cérebro que lhe dei! O
que você tem a me dizer?
- Se o senhor observar aqui, majestade...
Chang ouviu barulho de papel, como se Akbar estivesse estendendo um
documento sobre a mesa.
- A fotografia via satélite detectou uma fonte no meio de Petra que,
aparentemente, produz água fresca desde o dia dos bombardeios.
- Quer dizer que voltamos a falar de Petra, não, diretor Akbar? O lugar
onde foram despejados bilhões de Nicks nas areias do deserto?
- Foi um trabalho perdido, senhor, mas observe o que a fotografia aérea
mostra. Aparentemente, o míssil atingiu um aqüífero que fornece milhares de
litros de água pura todos os dias. Isso nos leva a crer que essa fonte se estende
até os arredores da cidade de Petra, e nosso pessoal acha que também
podemos ter acesso a ela.
- Para que lado eles acham que ela se estende?
- Para o leste.
- E qual é a profundidade?
- Eles não sabem informar com base nesse tipo de tecnologia, mas se um
míssil foi capaz de penetrar nesse aqüífero, certamente poderíamos perfurar, ou
até mesmo lançar outros mísseis, a leste de Petra.
- Usar um míssil para perfurar uma fonte? Suhail, você já ouviu falar de
alguém que usou um equipamento de tanta potência para realizar esse trabalho?
- Com todo o respeito que lhe devo, senhor, mas duas bombas da mais
alta tecnologia e um míssil Lance produziram água potável para um milhão de
nossos inimigos.
Mac havia ligado para Abdullah a fim de contar-lhe sobre o término de uma
nova pista de pouso para a cooperativa, "lindamente escondida" a leste de Ta'izz,
ao norte do Golfo de Áden, na região sul do lêmen.
- Albie conseguiu um embarque de mercadorias que ele gostaria que fosse
entregue em Petra, se você pudesse buscá-las e transportá-las para Petra no dia
seguinte ou dois dias depois.
- Eu? - disse Abdullah. - Sozinho?
- Quer que eu fique segurando sua mãozinha, Smitty?
- Não. Não se trata disso. É que esses serviços são muito mais divertidos
quando temos companhia.
- Ah, sim, eu sou o cara mais divertido do mundo, mas trata-se de um
serviço rápido e simples que você pode fazer com uma das aeronaves mais
leves.
- Um dos homens do Sr. Whalum deixou um Lear aqui. A pista nova
comporta um Lear?
- Claro. Um 30 ou menor. De qualquer forma, aguarde nossa chegada por
volta do meio-dia. Quando você acha que pode fazer isso?
- Talvez hoje. Se der tempo de fazer as unhas e arrumar o cabelo. Eu
também pretendia fazer uma maquiagem, mas...
- Que loucura é essa, cara? Abdullah riu.
- Finalmente consegui pegar você, Sr. Mac! Eu estava brincando com
você!
- Estou morrendo de rir, Smitty.
- Eu peguei você, não peguei, cowboy?
Abdullah estava verificando as condições atmosféricas no centro de
comunicações quando Naomi o chamou.
- Sr. Smith, o que o senhor acha disto? Ele correu até lá.
- O que lhe parece? - ela insistiu.
Abdullah sentiu um frio no estômago. Deveria dizer? Não deveria?
- Está me parecendo um aviso.
- Foi o que pensei! O que devo fazer?
- Chame Tsion e Chaim. Código vermelho.
- Posso contar a eles que foi o senhor quem disse?
- Diga o que quiser, mas rápido.
Ela apertou um botão e falou ao microfone.
- Central de comunicações para setor de liderança.
- Aqui é o setor de liderança. Bom dia, Naomi.
- Fui autorizada pelo Sr. Smith a chamar o Dr. Ben-Judá e o Dr.
Rosenzweig aqui o mais rápido possível. É sobre um código vermelho.
- Não vou pedir que você repita. Só confirme se entendi bem o que disse.
- Positivo, liderança. Código vermelho.
Abdullah foi ao encontro de Tsion e de Chaim na entrada. Eles estavam
acompanhados de vários anciãos, todos com ar de preocupação no semblante.
- Abdullah - disse Chaim -, os códigos vermelhos são reservados para
ameaças ao bem-estar de todos.
- Acompanhem-me.
Abdullah os levou até Naomi. Eles formaram um semicírculo atrás dela,
com os olhos fixos na tela.
- Um míssil?
- É o que parece - disse Abdullah.
- Lançado em direção à cidade?
- Não, mas perto.
- De onde?
- Provavelmente de Amã.
- Tempo?
- Minutos.
- Alvo?
- Talvez a leste.
- No mesmo lugar que eles andaram perfurando? Abdullah assentiu com a
cabeça e Tsion disse:
- Eles estão perfurando o local há semanas, e não vimos nada. Nem óleo,
nem água, nem sangue. Agora vão bombardear o lugar? Não acredito que
Carpathia vá usar armas contra os próprios exércitos, já reduzidos demais.
Temos tempo para assistir isso? Seria aconselhável?
Abdullah analisava a tela.
- Eu estive na mira de duas bombas e de um míssil dois anos atrás. Não
tenho medo de outro míssil que vai cair a pelo menos um quilômetro e meio
daqui. Temos binóculos apoiados em tripés, no lugar alto, ao norte do Siq.
- Devo avisar o povo? - perguntou Naomi. Tsion refletiu por alguns
instantes.
- Diga apenas para não se alarmarem quando ouvirem uma explosão
daqui a... quanto tempo você calcula, Abdullah?
- Quinze minutos.
- Isso não é surpresa para a equipe de perfuração - disse Abdullah alguns
minutos depois, com o corpo curvado para enxergar através dos binóculos
possantes.
- Eles mudaram de lugar- disse Tsion.
- É verdade. Mais de um quilômetro e meio. Talvez três. E a máquina de
perfuração foi desmontada. Para mim, significa que eles não querem que a
máquina seja destruída pelo míssil. Ela deve ter sido programada para alguma
coordenada específica.
Chaim sentou-se sobre uma pedra respirando com dificuldade.
- Será que estou muito velho ou o dia está quente demais?
- Estou transpirando mais que o normal, meu amigo - disse Tsion.
Abdullah afastou-se dos binóculos e protegeu os olhos com a mão.
- Já que o senhor mencionou isso, olhe para o Sol.
O Sol parecia maior, mais brilhante, mais alto do que deveria estar.
- Que horas são? - Tsion perguntou.
- Quase dez.
- Que estranho! Parece sol do meio-dia. Será que... Abdullah ouviu um
zunido ao longe. Ele olhou para o norte. Um rastro de fumaça branca apareceu
no horizonte.
- Míssil - ele disse. - Vai ser difícil acompanhá-lo com os binóculos, mas o
senhor pode tentar.
- Eu posso vê-lo a olho nu - disse Tsion.
- Estou sentindo muito calor - disse Chaim.
Eles viram quando o míssil riscou o céu e começou a descer. Parecia
apontado para o local original da perfuração. Passou pela máquina desmontada
no solo do deserto e caiu a uns cem metros ao sul, levantando uma imensa
nuvem de areia e de terra e abrindo uma cratera larga e profunda.
O estrondo da explosão chegou aos ouvidos deles em questão de
segundos, e a nuvem dissipou-se lentamente. Abdullah reajustou os binóculos
pára analisar a cratera.
- Não posso acreditar que o míssil abriu uma cratera com profundidade
quase igual à do buraco que eles andaram perfurando - ele disse. - Apesar disso,
até agora nada foi encontrado.
- Estou achando engraçado - disse Tsion -, mas eu gostaria de saber o
que eles tinham em mente. Se estavam esperando encontrar água, não
imaginaram que poderiam produzir um jato de sangue?
VINTE E UM
Chang correu um sério risco ao acompanhar, furtivamente, de sua mesa, o
lançamento do míssil destinado a encontrar água. Ele estava com os fones de
ouvido e, ao mesmo tempo, atento para ver se havia alguém se aproximando.
Nicolae praguejou.
- Quanto custou esse pequeno projeto, Suhail?
- Não foi barato, Excelência, mas ainda não podemos considerar um
fracasso.
- Considerar? O Lance que enviamos a Petra produziu imediatamente uma
fonte de água que jorra até hoje! Esse outro foi um completo desastre!
- Talvez o senhor esteja certo.
- Eu sempre estou certo! Enfrente a realidade. Você vai ter de conseguir
água de outra maneira.
Chang ouviu uma batida na porta e a voz de Krystall.
- Com licença, senhor, mas estamos recebendo notícias estranhas.
- Que tipo de notícias?
- Uma espécie de onda de calor. As linhas telefônicas estão
congestionadas. O povo está...
Chang ouviu um grito e percebeu que veio de sua sala, não do setor de
vigilância. Ele saiu do programa rapidamente, retirou os fones de ouvido e
acompanhou seus colegas até as janelas, onde se amontoaram para enxergar o
que se passava lá fora.
- Voltem ao trabalho! - gritou o Sr. Figueroa saindo abruptamente de sua
sala. - Saiam dessas janelas!
Mas, agindo como se fossem crianças, eles não obedeceram, porque a
curiosidade falava mais alto. O que estaria causando todas aquelas explosões?
Felizmente, a janela de onde Chang e alguns colegas seus espiavam não foi a
primeira a ser atingida, mas dois outros colegas - o arrogante e soberbo Lars e
uma moça - foram atingidos por cacos de vidro quando a vidraça diante deles se
espatifou.
Enquanto os dois se contorciam no chão, pálidos e apavorados, a sala foi
invadida pelo ar quente do deserto. A mulher que se ajoelhou para ajudar os
feridos imediatamente ficou vermelha pelo calor. Enquanto ela tentava fugir dali,
seu cabelo enrolou-se, produziu faíscas e irrompeu em chamas.
Os outros tentaram arrastar os dois feridos para um lugar seguro, mas
também tiveram de fugir do calor.
- O que é isso? - berrou alguém. - O que está acontecendo?
Os que estavam na frente de Chang afastaram-se rapidamente da janela,
e ele viu o que estava acontecendo lá embaixo. Os pneus dos carros explodiam.
As pessoas saltavam dos carros, depois tentavam entrar novamente,
queimando as mãos nas maçanetas. Os pára-brisas derretiam-se, as folhagens
tornavam-se marrons, murchavam e pegavam fogo. Um cão, que se soltou da
coleira, correu em círculos e caiu ofegante no chão, minutos antes de ser
incinerado.
- Para o porão! - gritou Figueroa aos que não queriam abandonar seus
colegas feridos. - É tarde demais para ajudá-los!
Os funcionários corriam, olhando para trás por cima dos ombros, enquanto
fugiam. Quando alcançaram a porta, eles avistaram Lars e a moça tentando
livrar-se das chamas, que, em seguida, os consumiram.
Chang foi um dos últimos a sair da sala, porque estava apenas simulando
os efeitos do calor. Ele viu os resultados, mas apesar de saber que a
temperatura externa parecia mais alta que o normal, ele não foi atingido pela
força exterminadora.
Quando chegou perto do elevador, as portas estavam se fechando, o que
o deixou feliz.
- Vou pegar o outro - ele disse e, imediatamente, correu para seu
apartamento.
À meia-noite, em San Diego, Rayford foi despertado por sons insistentes
vindos de seu computador. Ele arrastou-se da cama e ligou o monitor. Tsion
estava informando a seu público virtual ao redor do mundo que o quarto terrível
Julgamento das Taças havia chegado, conforme profetizado na Bíblia, e que
esse flagelo afetaria cada fuso horário da Terra, assim que o sol despontasse.
"Aqui em Petra", ele escreveu, "por volta das dez horas da manhã, as
pessoas sem o selo de Deus que estavam sob o sol foram queimadas vivas. Esta
parece ser uma oportunidade sem paralelos para suplicar mais uma vez pelas
almas de homens e mulheres, porque milhões de pessoas perderão entes
queridos. Mas a Bíblia também menciona que a mensagem poderá chegar tão
tarde aos indecisos que seus corações já estarão endurecidos.
"Apocalipse 16.8-9 diz: 'O quarto anjo derramou a sua taça sobre o sol, e
foi-lhe dado queimar os homens com fogo. Com efeito, os homens se queimaram
com o intenso calor, e blasfemaram o nome de Deus que tem a autoridade sobre
estes flagelos, e nem se arrependeram para lhe darem glória.'"
Rayford digitou um código para ter uma conversa particular com Tsion ou
Chaim, qualquer um dos dois. "Sei que ambos estão muito atarefados neste
momento, mas eu gostaria que um de vocês reservasse alguns minutos em prol
do Comando Tribulação."
A três casas dali, Ming Toy foi despertada por um telefonema de Ree Woo.
Ree prometera cuidar da mãe dela e devia estar ligando para contar-lhe as
novidades, mas Ming assustou-se ao ver a hora. Mesmo após ter se
tranqüilizado ao ouvir a promessa de Cristóvão de que ela e a mãe viveriam até o
Glorioso Aparecimento, Ming sabia que, apesar daquela garantia, sua mãe
poderia passar o resto de seus dias em uma prisão.
- Está tudo bem? - ela perguntou.
- Está tudo ótimo - respondeu Ree -, embora eu não tivesse tanta certeza
quando cheguei aqui. Fui avisado para ficar longe do abrigo subterrâneo, porque
corria um boato de que a CG o localizara e planejava invadi-lo. Os crentes
estavam atarefados, arrumando seus pertences para fugir à noite. Eles estavam
torcendo para que a CG invadisse o local mais tarde, como era praxe, no horário
em que eles costumavam estar dormindo. Mas assim que o sol nasceu,
perceberam que havia pouco ruído na rua. Alguns se arriscaram a sair e viram o
estrago causado pelo Sol. Tudo estava queimado, seco, derretido, estragado.
Não havia ninguém na rua, apenas corpos carbonizados espalhados pelo chão.
Os crentes estão protegidos, mas a CG e os leais a Carpathia não podem
enfrentar o Sol. O pessoal do abrigo subterrâneo mudou-se à luz do dia, e se os
homens da CG forem atrás deles à noite, vão se decepcionar. Os crentes não se
mudaram para muito longe, mas é um esconderijo melhor que o anterior.
- Eles viram uma cena ao longo do caminho que teria sido divertida, se não
fosse trágica. Um pequeno contingente da CG tentou usar roupas à prova de
fogo, botas e capacetes para proteger-se do calor intenso. Os homens
conseguiram andar uns cem metros; em seguida, se separaram quando suas
roupas começaram a pegar fogo. Espalhadas nas ruas, há pilhas e mais pilhas
de materiais em chamas.
- Você vai voltar logo, Ree? Sinto muito sua falta.
- Eu também sinto sua falta, Ming. Eu amo você. Agora vou poder sair
durante o dia, e em breve devo estar de volta.
- Tome cuidado, meu amor - ela disse.
Rayford estava sentado na beira da cama, com as mãos na cabeça, na
mais completa escuridão de um abrigo subterrâneo. Sentia-se cansado e
precisava dormir um pouco mais. Mas não dormiria. Esse flagelo, talvez diferente
dos anteriores, poderia proporcionar oportunidades singulares para ele e seu
grupo.
Finalmente, ele ouviu o sinal. Tsion estava do outro lado do sistema
particular de mensagens.
- Perdoe-me por não ligar o vídeo - disse Rayford -, mas estamos no meio
da noite.
- Tudo bem, capitão. Antes, quero saber se esta conversa precisa ser
particular. Estou no centro de tecnologia e há outras pessoas por aqui.
- Não há problema, Tsion. Todos estão bem aí?
- Estamos muito bem. Sentimos um pouco mais de calor, e algumas
pessoas apresentam sinais de cansaço, mas, aparentemente, estamos
protegidos dos efeitos deste flagelo.
- Sei que você está ocupado, mas preciso de uma confirmação. Você
acredita que todos nós, que temos o selo de Deus, estamos imunes ao calor?
- Sim.
- Você entende o que isso significa para o Comando Tribulação, Tsion?
Poderemos fazer o que quisermos durante o dia. Os homens da CG não
conseguirão interferir em nada até o dia em que o calor diminuir e eles puderem
sair às ruas novamente.
- Entendo. Eu só acho que Deus nunca é previsível quanto a essas coisas.
Nós sabemos qual é a seqüência das pragas e que uma praga termina quando
outra começa, mas o flagelo sobre os oceanos não terminou quando o mesmo
flagelo atingiu os lagos e os rios. E os oceanos voltaram ao normal pouco tempo
antes da chegada desse flagelo. Eu não gostaria que você estivesse andando
por aí, em plena luz do dia, quando ele chegasse ao fim. Você ficaria vulnerável
demais.
- Concordo. Acho que esse último vai durar o suficiente para nos dar um
pouco de liberdade. Nunca vi o mundo em estado tão lastimável, nem tantas
pessoas necessitando de ajuda.
- Oh, Rayford, o mundo é como um cartucho descartável vazio. Mesmo
antes de Deus ter derramado esse flagelo, o planeta já estava na pior condição
imaginável. Isso me leva a pensar como o Senhor vai conseguir esperar até o fim
dos sete anos. O que restará até lá? A pobreza está cada vez maior. A lei e a
ordem são coisas do passado. Até mesmo os leais à Comunidade Global
perderam a fé em seu governo e em suas Forças Pacificadoras. Os Monitores de
Moral estão aceitando subornos, ao que parece. As pessoas não se atrevem a
sair às ruas sem estar armadas.
- Cameron me disse que não conhece um único cidadão que não tenha ou
que não porte uma arma. De quase todos os países, surgem notícias de
pilhagens por bandos de ladrões e estupradores, sem mencionar os vândalos e
os terroristas. O melhor que temos lá fora são os 144.000 evangelistas e o
aumento da atividade dos anjos que o Senhor misericordioso nos tem enviado.
- Lembre-se, Rayford, agora temos três tipos de pessoas: as que possuem
o selo de Deus, as que possuem a marca do anticristo e as indecisas. Há cada
vez menos indecisos, mas são esses que devemos alcançar. Eles estão sofrendo
agora, mas, oh, sofrerão ainda mais, todos os dias, quando o sol nascer. Imagine
o tumulto, a devastação. Falta de energia elétrica, sobrecarga nos aparelhos de
ar condicionado, acidentes. E tudo isso chegando quando metade da população
já se foi.
- Não estamos longe da anarquia, meu amigo. A CG não se importa com o
caos, porque se beneficia dele. Estou surpreso ao ver que ainda existem
pessoas leais a Carpathia. Veja a devastação que ele provocou.
- Dr. Ben-Judá, de que forma isso se encaixa em seu argumento de que
esses julgamentos revelam a bondade e misericórdia de Deus na mesma
proporção de sua ira? O anjo que anunciou que os rios e lagos se transformariam
em sangue disse que isso seria uma vingança contra o sangue derramado dos
profetas.
- Deus é justo e Deus é santo, Rayford, mas eu não creio que Ele enviaria
outros julgamentos ao mundo agora, se não desejasse que mais almas se
arrependessem. Não há dúvida de que alguns se arrependerão. Sei que a
maioria não se arrependerá, porque a Bíblia diz que eles blasfemam o nome de
Deus. Evidentemente, a esta altura, todos sabem que esses julgamentos
procedem de Deus. Apesar disso, muitos se recusam a arrepender-se de seus
pecados.
- Eu concordo com você, Tsion. Ninguém pode argumentar que Deus não
existe. Há provas contundentes de sua presença e poder... e, mesmo assim,
muitos ainda o rejeitarão. Por quê?
- Capitão Steele, essa é uma pergunta que tem sido feita ao longo dos
séculos. Você se lembra da história do Antigo Testamento, depois que Moisés
cresceu e se recusou a ser chamado de filho da filha de Faraó, mesmo tendo
esse direito? A Bíblia diz que ele preferiu "ser maltratado junto com o povo de
Deus, a usufruir prazeres transitórios do pecado" [Hebreus 11.25].
- Bem, essas pessoas certamente não são iguais a Moisés. Elas sofrerão
tormentos e perderão a alma, tudo isso para usufruir os prazeres do pecado...
prazeres transitórios. Eu aplaudo seu modo de pensar. Você me disse que talvez
este seja o momento para o Comando Tribulação empreender seus esforços
para ajudar os crentes que estão lutando a encontrar os indecisos e apoiar os
evangelistas e os anjos a fim de arrebanhá-los antes que seja tarde demais.
Desejo-lhe que Deus o abençoe, seja qual for a sua decisão.
Buck dirigiu-se apressado aos aposentos clandestinos de George
Sebastian, onde a esposa de George estava brincando no chão com o filho do
casal.
- Preciso sair para ver o que está acontecendo - disse Buck.
- Temos de tomar cuidado com o radar - disse Sebastian. - A CG ficaria
assustada se visse alguém voando por aí durante o dia.
- O que você recomenda?
- Helicóptero.
- Você topa, George?
- Não precisa me perguntar duas vezes.
Buck já tinha visto neblina pairando acima dos braços de mar em manhãs
frias, mas nunca vira o Pacífico emitir vapor a uma distância tão grande.
- Você acredita no que estamos vendo? - ele perguntou.
- Eu não duvido de mais nada - respondeu George. Buck permaneceu
calado, enquanto o fogo irrompia por tudo o que restara de San Diego. Quanto
mais se aproximava o meio-dia, mais brilhante o céu ficava. As casas e os
edifícios pararam de emitir fumaça e de pegar fogo. Agora, tremiam e sacudiam.
Os vidros estilhaçavam, os telhados se enrolavam e estruturas inteiras explodiam
lançando labaredas e faíscas para o alto.
Depois que George sobrevoou o oceano, Buck avistou a areia mudar de
cor várias vezes até transformar-se em carpetes crepitantes, cujas labaredas
pareciam executar uma espécie de dança. A água assobiava e fervia quando
tocava a praia, e era levada, borbulhando, para dentro do mar. Sem nenhum
aviso, o oceano inteiro atingiu o ponto de ebulição e transformou-se em uma
cisterna de gigantescas bolhas revoltas, que produziram uma nuvem de vapor,
impedindo que Buck enxergasse o céu e o Sol. O helicóptero foi envolvido por
uma fumaça branca, tão pura e tão densa que Buck achou que Sebastian
perderia o controle da aeronave.
- Estamos completamente à mercê dos instrumentos, amigo - disse
George.
O helicóptero sacudia e balançava no meio da fumaça, enquanto eles
seguiam em direção à praia. Quando Sebastian já estava a uns 800 metros da
costa e longe da nuvem de vapor, eles olharam para baixo e viram a relva e as
casas em chamas.
- A que temperatura o sangue entra em ebulição? - Buck perguntou.
- Não faço idéia - respondeu George dirigindo-se imediatamente ao Rio
San Diego.
- Seja lá qual for - disse Buck -, isso já aconteceu.
- Ele olhou para as gigantescas bolhas vermelhas que se formavam e
estouravam, produzindo finos borrifos que subiam com o vapor. - Que nojo! - ele
disse, fazendo uma careta e tapando o nariz. - Vamos embora daqui.
O Comando Tribulação estava livre para ir e vir, desde que seus membros
tomassem cuidado para planejar suas saídas nos horários em que pudessem
aproveitar ao máximo a luz do dia. O único alívio para os exércitos e os cidadãos
da Comunidade Global que possuíam a marca de lealdade era permanecer em
porões e inventar maneiras de livrar-se do calor sufocante. Apesar disso,
centenas de milhares de pessoas morriam quando suas moradias se
incendiavam e desabavam sobre elas. As casas e os edifícios eram consumidos
rapidamente pelo fogo, porque os bombeiros só se atreviam a sair às ruas horas
depois que escurecia.
Os jardins, as plantações e os gramados morreram. As calotas polares
derreteram mais rápido do que em qualquer outra época da história, ameaçando
todas as cidades portuárias. As praias e as regiões costeiras desapareceram sob
a inundação, e o odor fétido dos animais marinhos mortos era sentido a
quilômetros de distância. Se as pessoas não tivessem mudado para as regiões
afastadas da costa, na tentativa de fugir do mau cheiro e das bactérias, mais
gente teria morrido.
Em meio a tanta confusão e sofrimento, Rayford e Chloe trabalhavam cada
vez mais para pôr em ordem os estoques de produtos permutados por intermédio
da Cooperativa Internacional de Mercadorias. Sabendo que o tempo era limitado,
eles tiravam vantagem da obsessão do povo de encontrar abrigo e alívio para o
calor do sol. Eles montaram uma estratégia com Chang para transferir
equipamentos e aeronaves de lugar e criaram novos depósitos e centros de
distribuição, preparando-se para o último ano de existência em um planeta
agonizante.
Em Nova Babilônia, Carpathia insistia em dizer que o calor não o
incomodava. Em suas escutas clandestinas, Chang ouviu o pessoal da
manutenção perguntar reiteradas vezes, se ele não gostaria de instalar cortinas
grossas em seu escritório, no segundo andar da cobertura do edifício, onde até o
teto era transparente. O calor do sol intensificava-se ao atravessar o vidro e
torrava o lugar durante horas a fio, todos os dias, tornando o restante do andar
totalmente inabitável.
Krystall foi transferida para os porões do Edifício D e comunicava-se com
ele, diariamente, via interfone. Não havia possibilidade de serem realizadas
reuniões na sala de conferências nem no escritório de Carpathia, mas ele
passava a maior parte do dia ali expedindo ordens ao pessoal, via telefone ou
interfone.
Os executivos que trabalhavam nos andares inferiores tiveram de trocar as
janelas das salas, que foram vedadas com fitas adesivas e pintadas com tinta
preta. A maioria dos funcionários do setor administrativo mudou-se para os
porões do imenso complexo. O departamento de Chang trabalhava apenas à
noite, portanto, enquanto permanecia em seu apartamento durante o dia, ele
podia ouvir quando Nicolae resmungava ou cantava em voz baixa.
- Vou tomar banho de sol no pátio, enquanto os mortais almoçam - ele
disse à Krystall às 12 horas de um determinado dia.
Chang dirigiu-se, às escondidas, até uma janela de canto, onde ele havia
raspado uma pequena parte da pintura, e ficou abismado ao ver o potentado
deitado em um banco de concreto, de calça e camiseta, e com as mãos atrás da
cabeça, banhando-se sob os raios aniquiladores do sol.
Depois de uma hora, enquanto as chamas lambiam o concreto, Carpathia
pareceu lembrar-se de alguma coisa e tirou seu celular do bolso. Chang correu
até seu apartamento e ouviu Nicolae dizendo a Leon que estava se dirigindo ao
abrigo temporário de Fortunato, no subsolo.
Mais tarde, Chang gravou a conversa telefônica entre Leon e Suhail.
- É o que estou dizendo, o homem não é humano! Ele ficou lá fora,
tomando banho de sol!
- Leon...
- É verdade! Ele estava tão quente que não suportei o calor de seu corpo a
seis metros de distância! Saía fumaça das solas dos sapatos dele! Eu vi faíscas
em seus cabelos. Eles perderam a cor, ficaram completamente brancos. As
sobrancelhas também. O colarinho, os punhos da camisa e a gravata estavam
chamuscados, como se tivessem sido passados com ferro quente demais, e os
botões do terno e da camisa derreteram. O homem é um deus, imune à dor.
Imagine que ele prefere ficar ao ar livre em tempos como este!
Um dia, Chang ouviu Carpathia ligar para o Serviço Técnico.
- Eu gostaria de ter um telescópio aqui apontado diretamente para o sol do
meio-dia.
- Eu posso fazer isso, Excelência - disse um funcionário. - Mas só depois
que o dia escurecer.
- E esse telescópio tem condições de fazer gravações?
- Claro. O que o senhor gostaria de gravar?
- Duas coisas. Se o Sol aumentou de tamanho e se as labaredas em sua
superfície são visíveis.
O instrumento foi instalado e calibrado naquela mesma noite, e Chang viu,
no dia seguinte, quando Carpathia saiu apressado ao meio-dia. Ele ficou olhando
para o Sol através da lente durante vários minutos. Uma hora depois, a lente
derreteu, e o telescópio inteiro entortou-se e despencou com o calor.
O técnico ligou para Carpathia, naquela noite, para informar que o disco de
gravação também havia derretido.
- Está tudo bem. Eu vi o que queria ver.
- Como, senhor?
- O equipamento era muito bom. Proporcionou-me uma imagem cristalina
do sol do meio-dia, e cheguei a ver as labaredas dançando em sua superfície.
O técnico riu.
- Você está achando graça? - inquiriu Carpathia.
- Bem, acho que o senhor está brincando, é claro.
- Não, não estou.
- Senhor, perdoe-me, mas seus globos oculares teriam sumido. Seu
cérebro teria fritado.
- Você sabe com quem está falando?
Chang sentiu o sangue gelar nas veias diante do tom de voz de Carpathia.
- Sim, potentado - respondeu o técnico com voz trêmula.
- O Sol, a Lua e as estrelas curvam-se diante de mim.
- Sim, senhor.
- Você entendeu?
- Sim, senhor.
- Ainda duvida do que eu disse?
- Não, senhor. Perdoe-me.
Dezessete semanas depois
Certa noite, Chang estava sentado diante de sua mesa monitorando os
registros dos vários níveis de temperatura, quando se deu conta de que o
terceiro Julgamento das Taças havia chegado ao fim. Ele ligou para Figueroa.
- O senhor vai gostar de ver isso - disse Chang. Aurélio saiu apressado de
seu escritório e postou-se atrás de Chang.
- Leia estas informações - disse Chang.
- "Água em ponto de ebulição transbordando do Rio Chicago" - o chefe leu
em voz baixa. - "Super-aquecida e contaminada por radiação." Isso não é
novidade, é?
- O senhor não notou uma coisa, chefe.
- Não notei o quê?
- O relatório não fala em sangue. Fala em água. Figueroa estava tremendo
quando usou o telefone de Chang para ligar para Akbar.
- Adivinhe o que eu acabei de descobrir! - ele disse.
- Com o tempo, os cursos d'água vão voltar ao normal -Chang ouviu Suhail
Akbar dizer a Carpathia no dia seguinte.
Talvez, Chang pensou, se ainda tivéssemos décadas pela frente.
Para Chang, Carpathia não estava tão preocupado com a água e o calor,
porque nenhum flagelo o atingira pessoalmente. O que mais ocupava sua mente
era o fracasso, principalmente em Israel, de seu plano-mestre de tomar conta do
"problema" dos judeus. Em vários outros países, as perseguições haviam obtido
um sucesso relativo. Mas o grupo que fazia parte dos 144.000 evangelistas,
incumbido da missão de trabalhar na Terra Santa, obteve um êxito tremendo na
conversão dos indecisos. E, por um motivo ou outro, a presença desses homens
não foi detectada.
No momento em que Carpathia e Akbar imaginaram ter encontrado um
meio de livrar a área dos judeus messiânicos, o flagelo do Sol abateu-se sobre a
Terra, e os homens da CG ficaram incapacitados de atacá-los.
Agora, apesar de Carpathia raramente ter condição de ver Suhail face a
face durante o dia, eles mantinham contato permanente. Chang ficou abismado
ao constatar o grande poder de fogo que os exércitos da Comunidade Global
ainda tinham depois de tudo o que perderam e de tudo o que foi gasto na
tentativa de atacar os judaístas.
Os Estados Unidos Africanos ameaçaram romper com Carpathia depois do
que ele fez com seus líderes principais, enquanto um grupo de rebeldes de lá
tramava secretamente, em conjunto com o palácio, apossar-se do governo
destituído.
Um dia, Chang gravou uma conversa telefônica entre Carpathia e Suhail.
- Suhail, essas pragas sempre tiveram um tempo de duração. Um dia, esta
também vai terminar. E quando isso acontecer, talvez seja o momento de
lançarmos mão de metade das munições e equipamentos que temos em reserva.
Você acha que aquele estoque continua mantido em segredo?
- Até agora, tudo me diz que sim, Excelência.
- Quando a praga do Sol for suspensa, diretor, quando você puder sair à
luz do dia novamente, vamos nos preparar para montar a maior ofensiva da
história da humanidade. Eu ainda não desisti de Petra, mas quero que os judeus
fiquem onde estão. Quero pegar os judeus de Israel, particularmente de
Jerusalém. E não vou desviar a atenção nem ser dissuadido por causa da
choradeira de nossos amigos do norte da África. Suhail, se você quiser de fato
agradar-me, impressionar-me, ou tornar-se indispensável para mim, dedique-se
de corpo e alma a essa tarefa. O planejamento, a estratégia e os meios devem
fazer qualquer outro estrategista de guerra da história abaixar a cabeça de
vergonha. Quero que você me deixe boquiaberto, Suhail, e estou dizendo que os
recursos, tanto monetários quanto militares, são ilimitados.
- Obrigado, senhor. Eu não vou decepcioná-lo.
- Você entendeu bem, Suhail? I-li-mi-ta-dos.
Seis anos dentro da Tribulação
Chang levantou-se, como de costume, quando o dia começava a clarear,
mas percebeu imediatamente que alguma coisa mudara. Ele não tinha sido
atingido pelo calor intenso, mas notou a diferença de temperatura e de umidade.
Nessa manhã, o ar estava diferente.
Ele correu até seu computador e verificou as condições do tempo. O quê!?
O flagelo acabou. A temperatura em Nova Babilônia retornara ao normal.
Chang alimentou-se, tomou uma ducha, vestiu-se e saiu apressado. Havia
um vozerio por todo o palácio. As janelas estavam abertas. O pessoal entrava e
saía. Ele chegou a ver um ar de sorriso no rosto de algumas pessoas. Porém, em
razão do número reduzido de pessoal, a maioria dos funcionários estava
sobrecarregada de trabalho, mal nutrida, com o semblante pálido e abatido.
A chefia anunciou que a refeição do meio-dia seria servida ao ar livre,
como se fosse um piquenique. O trabalho naquela manhã pouco rendeu, porque
todos aguardavam com ansiedade a hora do almoço, que transcorreu em clima
festivo e com fartura de comida. Carpathia atraía os olhares para si, enquanto
andava de um lado para o outro propositadamente, como se estivesse antevendo
uma vida melhor e mais longa.
No final do expediente daquele dia, Chang dirigiu-se apressado a seu
apartamento, ansioso por ver o que se passava no restante do mundo. O
Comando Tribulação havia reduzido suas atividades e recuado um pouco.
Voltaram a viver em esconderijos, avançando com cuidado, formulando
estratégias para retomar o trabalho feito à noite.
Carpathia continuava incansável e esperava o mesmo dos outros.
Convocou outra reunião de alto nível com os diretores, que passaram grande
parte do dia levando seus pertences de volta ao andar ocupado por Nicolae. Até
Viv Ivins foi convidada, e, pelo que Chang ouviu, ela havia sido perdoada.
- Pela primeira vez depois de tanto tempo - disse Carpathia -, estamos
jogando de igual para igual. Os rios e lagos estão retornando ao normal, e
precisamos reconstruir toda a infra-estrutura. Vamos nos esforçar para convocar
todos os nossos cidadãos leais a cerrar fileiras conosco. O diretor Akbar e eu
reservamos algumas surpresas especiais para os dissidentes de vários níveis.
Estamos de volta ao trabalho, pessoal. É chegada a hora de recuperar nossas
perdas e partir para o ataque.
O clima festivo durou três dias. A seguir, as luzes se apagaram.
Literalmente. Tudo ficou às escuras - o Sol, a Lua, as estrelas, as lâmpadas das
ruas, as luzes elétricas, os faróis dos carros. Tudo o que antes emitia luz estava
apagado - teclas luminosas de telefones, lanternas, materiais iridescentes ou
fosforescentes. Luzes de emergência, placas indicando saída, perigo de
incêndio, alarmes - tudo. Escuro como breu.
A expressão popular de não enxergar um palmo adiante do nariz tornou-se
verdadeira. Fosse qual fosse a hora do dia, ninguém enxergava nada. Nem
relógios, nem fogo, nem fósforo, nem grelhas de gás, nem grelhas elétricas. A
impressão era a de que a luz desaparecera completamente; qualquer vestígio
parecia ter sido engolido pelo universo.
As pessoas gritavam de terror. Tratava-se do maior pesadelo da
humanidade, e elas já haviam enfrentado muitos outros. Estavam completamente
às cegas - totalmente incapazes de enxergar alguma coisa, a não ser a negritude
24 horas por dia.
Os habitantes do palácio tateavam no escuro, querendo sair. Apertavam
todos os interruptores dos quais se lembravam. Gritavam entre si para saber se o
problema era apenas delas ou se era geral. Encontrar uma vela! Esfregar um
pedaço de maneira no outro! Friccionar o carpete para criar eletricidade estática!
Fazer alguma coisa! Qualquer coisa que proporcionasse algum vestígio de
sombra ou de claridade, por menor que fosse.
Tudo em vão.
Chang sentia vontade de rir. Ele queria gritar o que pensava. Queria dizer
a todos que, mais uma vez, Deus enviara um flagelo, um julgamento sobre a
Terra que atingiu apenas aqueles que possuíam a marca da besta. Chang
conseguia enxergar, mas de maneira diferente. Ele também não via as luzes.
Simplesmente via tudo em tonalidade sépia, como se alguém tivesse reduzido a
luminosidade de um candelabro aceso.
Ele enxergava o que necessitava, inclusive seu computador, a tela, o
relógio e o apartamento. Seus alimentos, sua pia, seu fogão - tudo. E, melhor
ainda, podia andar nas pontas dos pés pelo palácio usando sapatos de sola de
borracha, desviando-se dos colegas que tateavam para encontrar o caminho.
Depois de algumas horas, entretanto, uma coisa mais estranha ainda
aconteceu. As pessoas não estavam morrendo de fome nem de sede. Elas eram
capazes de encontrar comida e água. Mas não podiam trabalhar. Não havia nada
a discutir, nada a ser tratado, a não ser falar da praga da escuridão. E, por algum
motivo desconhecido, elas também começaram a sentir dor.
Elas se coçavam, chegando a arranhar-se. O local ficava dolorido e era
esfregado com força, o que provocava gritos e mais coceira ainda. Para muitas
pessoas, o sofrimento chegava a ser tão intenso que elas se curvavam e
apalpavam o chão para saber se não havia nenhum buraco, nenhum vão de
escada em que pudessem cair e ficar amontoadas ali, Contorcendo-se,
gemendo, coçando-se, procurando alívio.
Quanto mais o tempo passava, mais a situação piorava, e agora as
pessoas blasfemavam, amaldiçoavam Deus e mordiam a língua. Arrastavam-se
pelos corredores à procura de armas, implorando aos amigos, e até mesmo a
estranhos, que as matassem. Muitas se suicidaram. O palácio inteiro
transformou-se em um hospício de gritos, lamentos e gemidos guturais, como se
o povo estivesse convencido de que aquilo era o que todos imaginavam - o fim
do mundo.
Mas não era. Quem não tinha força nem coragem para se matar
simplesmente sofria. E o sofrimento aumentava com o passar das horas. Piorava
a cada dia. Não dava trégua. E, no meio de tudo isso, Chang teve a idéia mais
brilhante de sua vida.
Aquele era o momento perfeito para uma fuga. Ele entraria em contato
com Rayford ou Mac, qualquer um que estivesse disposto e disponível para
buscá-lo. Todos os membros do Comando Tribulação, ou melhor, todos os
crentes que possuíam o selo de Deus na testa desfrutavam as mesmas vantagens
que ele.
Alguém poderia vir buscá-lo com um jato e pousar bem ali, em Nova
Babilônia. O pessoal da CG teria de correr para esconder-se, imaginando quem
teria condições de fazer tal coisa na mais completa escuridão. Se Chang e o
piloto não conversassem entre si, nenhum deles seria identificado. O Comando
Tribulação poderia apossar-se de aeronaves, de armas e de tudo o que
desejasse.
Se alguém se aproximasse para inquiri-los, os membros do Comando
Tribulação teriam a enorme vantagem de poder enxergar. Eles estariam em
posição de superioridade perante todos os demais. E agora que faltava apenas
um ano para o Glorioso Aparecimento, Chang pensava, as pessoas de bem
finalmente estavam em melhores condições que antes, uma vez que as horas à
luz do dia pertenciam somente a elas.
Enquanto durasse aquele flagelo, enquanto Deus julgasse necessário
manter o mundo debaixo de sombras e as luzes apagadas, tudo estaria
favorecendo os crentes.
Deus,orou Chang, só preciso de mais dois dias de escuridão para sair
daqui.
EPÍLOGO
Derramou o quinto a sua taça sobre o trono da besta, cujo reino
se tornou em trevas, e os homens remordiam a língua por causa da dor
que sentiam e blasfemaram o Deus do céu por causa das angústias e das
úlceras que sofriam; e não se arrependeram de suas obras.
Apocalipse 16.10-

Nenhum comentário:

Postar um comentário