domingo, 5 de setembro de 2010

DEIXADOS PARA TRÁS IIIA

DEIXADOS PARA TRÁS III

PRÓLOGO
O Que Aconteceu Antes...
Os desaparecimentos em massa ocorreram há quase dois anos. Em apenas um momento, milhões de pessoas de todas as partes do mundo desapareceram, deixando para trás roupas e tudo o que era material.
O capitão Rayford Steele, piloto de avião, estava conduzindo um jumbo de volta a Chicago, tendo a bordo 300 passageiros mais a tripulação, todos cheios de temor. No momento da decolagem a aeronave estava lotada, mas, de repente, mais de 100 lugares ficaram vazios, sobrando ali apenas roupas, jóias, óculos, sapatos e meias.
Steele perdeu a esposa e um filho de 12 anos durante os desaparecimentos. Ele e sua filha Chloe, que frequentava a faculdade, foram deixados para trás.
Cameron "Buck" Williams, articulista sénior de uma revista semanal, estava entre os passageiros do avião pilotado por Rayford. Assim como o piloto, ele também empreendeu uma luta frenética em busca da verdade.
Rayford, Chloe e Buck, mais o seu mentor — o jovem pastor Bruce Barnes — tornaram-se crentes em Cristo e formaram um grupo ao qual deram o nome de Comando Tribulação. Eles estavam determinados a lutar contra o novo líder mundial, Nicolae Carpathia, da Roménia, que se tornou chefe da Organização das Nações Unidas quase que do dia para a noite. Enquanto Carpathia fascina o mundo com seu charme, o Comando Tribulação passa a acreditar que ele é o anticristo.
No decorrer de uma série de circunstâncias estranhas, Rayford e Buck tornam-se funcionários de Carpathia — Rayford como seu piloto; Buck como editor do Semanário Comunidade Global. Carpathia sabe que Rayford e sua nova esposa, Amanda, são crentes, mas desconhece a nova fé de Buck e seu relacionamento com o casal.
O Comando Tribulação programa uma reunião em Chicago. Rayford conduz o potentado da Comunidade Global.Nicolae Carpathia, de avião desde a Nova Babilónia até Washington D.C. (com Amanda a bordo). Ao tomar conhecimento de uma conspiração, Carpathia divulga um itinerário complicado e conflitante para dificultar sua localização. Nesse ínterim, Rayford levou Amanda a bordo do Comunidade Global Um até Chicago para o encontro que teriam com Buck, Chloe e Bruce.
Eles ficam sabendo que Bruce está internado em um hospital, mas, enquanto se dirigem para lá a fim de visitá-lo, irrompe uma guerra mundial. As facções da milícia norte-americana, sob a liderança clandestina do presidente Gerald Fitzhugh, cujo poder Carpathia enfraquecera, juntam forças com a União das Nações Britânicas e com o antigo Estado soberano do Egito, agora parte do recém-organizado Estado Democrático do Oriente Médio. As forças da milícia da costa leste dos Estados Unidos haviam atacado Washington, agora transformada em ruínas.
O hotel em que Carpathia se hospedaria desabou, e ele é resgatado ileso. Em represália, as forças aéreas da Comunidade Global atacam a antiga base Nike na região suburbana de Chicago, onde se localiza o hospital em que Barnes se encontra por ter sido atacado por um vírus mortal. Um ataque à Nova Babilónia é rapidamente debelado, e Londres é bombardeada pelas forças da Comunidade Global em retaliação ao conluio entre a Inglaterra e a milícia norte-americana.
Durante todos esses acontecimentos, Rayford pede a seu ex-chefe, Earl Halliday, que pilote o Comunidade Global Um até Nova York, onde Rayford supostamente se encontraria com Carpathia. Mas, quando as forças da Comunidade Global se reúnem em Nova York, Rayford teme ter enviado seu velho amigo para a morte.
Rayford, Amanda, Buck e Chloe tentam freneticamente visitar Bruce, o amigo enfermo, no Hospital da Comunidade Noroeste, localizado em Arlington Heights, Illinois, quando ouvem pelo rádio um pronunciamento ao vivo do potentado da Comunidade Global:
"Leais cidadãos da Comunidade Global, dirijo-me a vocês neste dia com o coração quebrantado, sem ao menos poder dizer-lhes de onde estou falando. Temos trabalhado há mais de um ano para congregar esta Comunidade Global sob a bandeira da paz e da harmonia. Hoje, lamentavelmente, soubemos outra vez que ainda existem pessoas entre nós que desejam a nossa desunião.
"Não é segredo que sou, tenho sido e sempre serei um pacifista. Não acredito em guerra. Não acredito em armamento s. Não acredito em derramamento de sangue. Por outro lado, sinto-me responsável por você, meu irmão ou minha irmã desta aldeia global.
"As forças pacificadoras da Comunidade Global já subjugaram a resistência. Lamento muito a morte de civis inocentes, mas prometo solenemente que todos os inimigos da paz terão julgamento imediato. A bela capital dos Estados Unidos da América do Norte foi devastada, e vocês ouvirão mais notícias de destruição e morte. Nosso objetivo continua sendo a paz e a reconstrução. Estarei de volta aos escritórios da Nova Babilónia no devido tempo e me comunicarei com vocês com frequência.
"Acima de tudo, não tenham medo. Confiem que nenhuma ameaça à tranquilidade mundial será tolerada. Nenhum inimigo da paz sobreviverá."
Enquanto Rayford procurava um caminho que o levasse próximo ao Hospital da Comunidade Noroeste, o correspondente da CNN/Rede Comunidade Global voltou a falar. "E uma notícia de última hora: as forças militares da Comunidade anti-Global ameaçaram dar início a uma guerra nuclear sobre Nova York, principalmente sobre o Aeroporto Internacional Kennedy. Os civis estão fugindo daquela área e causando um dos piores congestionamentos de tráfego e de pedestres da história de Nova York. As forças pacificadoras da Comunidade Global dizem que têm condições e tecnologia para interceptar mísseis, mas estão preocupadas com os danos que serão causados às áreas mais afastadas.
"E agora uma notícia de Londres: Uma bomba de cem megatons destruiu o aeroporto de Heathrow, e a precipitação radioativa ameaça a população que vive a quilómetros de distância. Aparentemente a bomba foi atirada pelas forças pacificadoras após a descoberta de um contrabando de bombardeiros egípcios e ingleses que estavam agrupados numa pista aérea militar perto de Heathrow. As notícias dão conta de que os navios de guerra, que foram abatidos pelo ar, estavam equipados com armamentos nucleares e a caminho de Bagdá e da Nova Babilónia."
— É o fim do mundo — murmurou Chloe. — Que Deus os ajude.
Rayford continuava tentando desesperadamente encontrar o hospital onde estava Bruce. Uma transeunte lhe disse que o Hospital da Comunidade Noroeste ficava "logo depois daquele campo, naquela elevação. Mas não sei se vocês vão conseguir chegar perto do que restou dele".
— O hospital foi atingido?
— Se foi atingido? Senhor, ele fica perto da estrada e do outro lado da rua da antiga base Nike. Quase todos acham que ele foi atingido em primeiro lugar.
O coração de Rayford angustiou-se quando ele chegou à elevação e viu o hospital. Estava quase em ruínas.
— Alto lá! — gritou um guarda de segurança. — Esta é uma área restrita!
— Tenho autorização para passar! — gritou Rayford, exibindo sua carteira com a credencial.
Ao chegar perto de Rayford, o guarda pegou a carteira e analisou a credencial, comparando a foto com o rosto de Rayford.
— Puxa! Autorização nível 2-A. Você trabalha diretamente para Carpathia?
Rayford assentiu e caminhou em direção ao que havia sido a frente do hospital. Os corpos estavam colocados um ao lado do outro e cobertos.
— Há sobreviventes? — perguntou Rayford a um atendente do pronto-socorro.
— Ouvimos vozes — respondeu o atendente. — Mas ainda não conseguimos resgatar ninguém.
— Ajude ou saia do caminho — disse asperamente uma mulher corpulenta ao passar esbarrando em Rayford.
— Estou à procura de Bruce Barnes — disse Rayíord.
A mulher consultou uma prancha contendo uma lista de nomes.
— Dê uma olhada ali — ela disse, apontando para seis corpos. — Parente seu?
— Mais que um irmão.
— O senhor quer que eu verifique?
O rosto de Rayford contorceu-se e ele mal conseguiu falar.
— Ficaria muito agradecido.
Ela ajoelhou-se ao lado de cada corpo para verificar, enquanto um soluço brotava na garganta de Rayford. Quando se aproximou do quarto corpo e começou a levantar o lençol, ela hesitou e verificou o nome escrito no bracelete. Olhou para Rayford, e ele entendeu. As lágrimas começaram a rolar por seu rosto. A mulher afastou lentamente o lençol, mostrando Bruce, de olhos abertos, sem vida. Rayford tentou manter a calma, sentindo um aperto no peito. Estendeu a mão para fechar os olhos de Bruce, mas a mulher disse:
— Não posso permitir que o senhor faça isto.
— Você poderia verificar a pulsação? perguntou Rayford.
— Oh, senhor — ela disse com voz comovida — eles só trazem aqui para fora os que estão mortos.
— Por favor — murmurou Rayford, agora em prantos. — Faça isso por mim.
Enquanto Rayford permanecia em pé e com as mãos no rosto, no burburinho do início de tarde daquela região suburbana de Chicago, a mulher desconhecida colocou o polegar e o indicador sob a mandíbula do pastor. Sem olhar para Rayford, ela tirou a mão, cobriu novamente a cabeça de Bruce Barnes com o lençol e voltou ao seu trabalho. Rayford abaixou-se e ajoelhou-se no chão enlameado. O som das sirenes ecoava ao longe, luzes de emergência piscavam à volta dele, e sua família o aguardava a menos de um quilómetro de distância. Agora só haviam sobrado ele e os outros três. Não havia mais o mestre. Não havia mais o mentor. Só eles quatro.
Enquanto se levantava e descia penosamente a elevação para dar a terrível notícia, Rayford ouviu o Sistema Transmissor de Emergência ligado em todos os carros pelos quais passava. Washington fora arrasada. Heathrow não mais existia. Houve mortes no deserto egípcio e nos céus de Londres. Nova York estava em estado de alerta.
O Cavalo Vermelho do Apocalipse estava entrando em ação.


UM




Era o pior de todos os tempos; era o pior de todos os tempos.
Os joelhos de Rayford Steele estavam doloridos quando ele se sentou ao volante do Lincoln alugado. Ele caíra ao solo diante da cruel constatação da morte de seu pastor. A dor física, que o acompanharia por alguns dias, era insignificante quando comparada à angústia de ter perdido outra das pessoas mais queridas de sua vida.
Rayford sentiu o olhar de Amanda fixo nele. Ela colocou a mão sobre a perna dele, em sinal de solidariedade. No assento traseiro estavam sua filha Chloe e o marido Buck, ambos com as mãos sobre o ombro de Rayford.
E agora? perguntou Rayford a si mesmo. O que faremos sem Bruce? Para onde iremos?
O Sistema Transmissor de Emergência voltou a transmitir as notícias sobre o caos, a devastação, o terror e a destruição pelo mundo inteiro. Sentindo um nó na garganta e sem conseguir falar, Rayford tratou de abrir caminho por entre o trânsito congestionado. Por que o povo estava nas ruas? O que queriam ver? Será que não estavam com medo de mais bombas ou de precipitação radioativa?
— Preciso ir até a sucursal de Chicago — disse Buck.
— Você pode usar o carro depois que chegarmos à igreja — disse Rayford. — Preciso dar a notícia sobre Bruce.
As forças pacificadoras da Comunidade Global supervisionavam a polícia local e o pessoal da emergência, dirigindo o tráfego e tentando forçar o povo a voltar para casa. Pelo fato de viver há muitos anos na região de Chicago, Rayford sabia fazer uso de vias marginais e secundárias para desviar das ruas principais, que estavam totalmente congestionadas.
Rayford perguntou a si mesmo se não deveria ter aceitado a oferta de Buck para dirigir o carro. Mas ele não queria demonstrar fraqueza. Balançou a cabeça. Não há limites para o ego de um piloto! Ele tinha vontade de encolher-se por inteiro e chorar até dormir de exaustão.
Após quase dois anos do desaparecimento de sua mulher e filho, com milhões de outras pessoas, Rayford não mais nutria ilusões sobre sua vida no apagar das luzes da História. Ele se sentia arrasado. Convivia com o sofrimento e o sentimento de culpa. Era difícil demais...
Rayford sabia que sua vida podia ter sido pior. E se ele não tivesse se tornado um crente em Cristo e estivesse perdido para sempre? E se não tivesse encontrado um novo amor e estivesse sozinho? E se Chloe tivesse desaparecido? E se ele não tivesse conhecido Buck? Havia muitos motivos de gratidão. Se não fosse o apoio dos outros três no carro, Rayford talvez não tivesse reunido forças para prosseguir.
Para ele, era difícil imaginar como teria sido sua vida se não tivesse conhecido e amado Bruce Barnes. De todas as pessoas que conhecera, Bruce havia sido quem mais lhe havia ensinado, esclarecido e inspirado. E não foram apenas o conhecimento e as aulas de Bruce que fizeram a diferença.
Era o amor que ele dedicava às pessoas. Ele foi um homem que percebeu rápida e nitidamente que não fizera caso da maior de todas as verdades comunicadas à humanidade, e que não estava disposto a repetir o erro.
— Papai, aqueles dois guardas perto da passarela parecem estar acenando para você — disse Chloe.
— Estou tentando não dar atenção a eles — disse Rayford. — Todos esses "joões-ninguém tentando ser alguém" pensam que conhecem mais a direção em que o tráfego deve fluir.
Se eu lhes der atenção, ficaremos aqui durante horas. Quero chegar à igreja.
— Ele está chamando você pelo megafone — disse Amanda, abaixando alguns centímetros o vidro de sua porta.
— Ei, você que está no Lincoln branco! — soou a voz ribombante. Rayford desligou o rádio imediatamente. — Você é Rayford Steele?
— Como é que eles sabem? — perguntou Buck.
— Será que não há limites para o serviço de inteligência da Comunidade Global? — perguntou Rayford enojado.
— Se você for Rayford Steele — soou a voz novamente — por favor encoste seu veículo ao lado da faixa de bloqueio do trânsito!
Rayford achou que não devia fazer caso da ordem, mas pensou melhor. Não havia jeito de fugir daqueles guardas uma vez que eles o conheciam. Mas como?
Ele encostou o carro ao lado da faixa.
Buck Williams retirou a mão do ombro de Rayford e esticou o pescoço para enxergar melhor os dois soldados uniformizados que estavam descendo o aterro. Ele não fazia idéia de como a força militar da Comunidade Global conseguira seguir a pista de Rayford, mas uma coisa era certa: não seria nada bom Buck ser visto na companhia do piloto de Carpathia.
— Ray — ele disse rapidamente — trago comigo uma credencial falsa com o nome de Herb Katz. Diga-lhes que sou um piloto amigo seu ou coisa parecida.
— Está bem — disse Rayford — mas ao que tudo indica eles me darão um tratamento diferenciado. Evidentemente, Nicolae está tentando entrar em contato comigo.
Buck esperava que Rayford estivesse certo. Fazia sentido Carpathia querer ter a certeza de que seu piloto estava bem e que podia levá-lo de volta à Nova Babilónia. Os dois guardas uniformizados já estavam atrás do Lincoln, um falando por walkie-talkie, o outro por telefone celular. Buck resolveu partir para ofensiva e abriu a porta.
— Por favor, permaneça dentro do veículo — disse o guarda que segurava o walkie-talkie.
Buck voltou a sentar-se no carro e trocou o documento verdadeiro pelo falso. Chloe parecia aterrorizada. Buck passou o braço ao redor dos ombros dela e puxou-a para perto de si.
— Carpathia deve ter enviado um boletim a todos os setores de trânsito. Ele sabia que seu pai teria de alugar um carro, e não demorou muito para encontrá-lo.
Buck não fazia ideia do que os dois homens da CG estavam fazendo atrás do carro. Ele só sabia que todas as perspectivas a respeito dos próximos cinco anos haviam mudado em um piscar de olhos. Quando a guerra mundial irrompeu uma hora atrás, Buck perguntou a si mesmo se ele e Chloe sobreviveriam ao período restante da Tribulação. Agora, com a notícia da morte de Bruce, Buck perguntou a si mesmo se eles queriam sobreviver. A expectativa de ir para o céu e estar com Cristo parecia melhor que viver no que restara deste mundo, mesmo que fosse necessário morrer para chegar lá.
O guarda com o walkie-talkie aproximou-se da porta do motorista. Rayford abaixou o vidro.
— O senhor é Rayford Steele?
— Depende de quem está perguntando — disse Rayford.
— Este carro, com esta placa, foi alugado em O'Hare por alguém que se identificou como Rayford Steele. Se este não for o seu nome, o senhor está numa grande encrenca.
— O senhor não concorda comigo — disse Rayford — que estamos todos numa grande encrenca, seja eu quem for?
Buck achou graça na reação mal-humorada de Rayford, diante da situação.
— Cavalheiro, preciso saber se o senhor é Rayford Steele.
— Sou.
— E o senhor pode provar isso?
Buck nunca havia visto Rayford tão agitado assim.
— O senhor me faz sinal para parar, me chama pelo megafone e me diz que estou dirigindo um carro alugado em nome de Rayford Steele, e agora quer que eu lhe prove que sou quem acho que sou?
— Cavalheiro, o senhor precisa entender a minha posição. O potentado Carpathia, da Comunidade Global, está conectado àquele telefone celular ali. Nem sei de onde ele está falando. Se eu colocar alguém na linha e disser ao potentado que é Rayford Steele, é melhor que seja Rayford Steele.
Buck sentiu-se agradecido pela brincadeira de gato e rato engendrada por Rayford, por ela ter desviado a atenção dos guardas sobre os outros no carro, mas isso não durou muito. Rayford tirou do bolso a carteira com a credencial. Enquanto examinava o documento, o guarda perguntou displicentemente:
— E os outros?
— Familiares e amigos — respondeu Rayford. — É melhor, não fazer o potentado esperar.

— Vou ter de pedir que o senhor saia do carro para falar ao telefone. Questão de segurança.
Rayford deu um suspiro profundo e saiu do carro. Buck desejava que o guarda com o walkie-talkie fosse embora dali, mas ele interceptou os passos de Rayford e apontou em direção a seu colega, o que estava com o telefone celular. Em seguida, ele debruçou-se para falar com Buck.
— Cavalheiro, caso tenhamos de levar o capitão Steele para um encontro, o senhor poderia ficar responsável por este veículo?
Será que todo o pessoal uniformizado fala desta maneira? imaginou Buck. — Claro. Amanda curvou o corpo.
— Sou a Sra. Steele — ela disse. — Aonde quer que o Sr.Steele for, irei com ele.
— Isto será decidido pelo potentado — disse o guarda — e desde que haja lugar no helicóptero.
— Sim, senhor — disse Rayford ao telefone. — Vou me encontrar brevemente com o senhor. Rayford entregou o telefone celular ao segundo guarda.
— Como chegaremos a esse tal lugar?
— Um helicóptero deverá chegar a qualquer momento. Rayford fez um sinal para Amanda pedindo que ela pegasse as malas e saísse do carro. Enquanto carregava as malas de ambos, ele abaixou-se perto da porta do passageiro e cochichou:
— Amanda e eu temos um encontro com Carpathia, mas ele nem sequer disse onde estava ou onde nos encontraremos. Aquele telefone ali não pode ser interceptado. Tenho a impressão de que não é muito longe daqui, a não ser que estejam nos levando de helicóptero até um campo de pouso, de onde partiremos para um lugar qualquer. Buck, é melhor você devolver logo o carro para a empresa locadora. Caso contrário, vai ser fácil eles estabelecerem uma relação entre mim e você. Cinco minutos depois, Rayford e Amanda estavam voando.
— Você tem ideia para onde estamos indo? — gritou Rayford para um dos guardas da Comunidade Global.
O guarda deu um tapinha no ombro do piloto do helicóptero e perguntou:
— Temos permissão para dizer aonde estamos indo?
— Glenview! — gritou o piloto.
— O Posto Aéreo Naval de Glenview está fechado há anos — disse Rayford.
O piloto virou-se e olhou para ele.
— A pista principal de decolagem ainda está aberta! O homem está lá neste momento!
Amanda curvou-se em direção a Rayford.
— Carpathia já está em Illinois?
— Ele deve ter saído de Washington antes do ataque. Achei que o levariam para um dos abrigos antiaéreos do Pentágono ou da Administração de Segurança Nacional, mas seu serviço secreto deve ter imaginado que esses seriam os primeiros lugares que a milícia atacaria.

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'— Estou me lembrando de nossos tempos de recém-casados — disse Buck, enquanto Chloe se aconchegava a ele.
— Como assim? Nós ainda somos recém-casados!
— Espere um pouco! — disse Buck rapidamente. — O que eles estão falando sobre Nova York?
Chloe aumentou o volume do rádio. "... verdadeira carnificina por toda a parte aqui no centro de Manhattan. Edifícios bombardeados, veículos de emergência abrindo caminho por entre os escombros, pessoal da Defesa Civil pedindo ao povo, por meio de alto-falantes, que permaneçam nos abrigos subterrâneos."
Buck percebeu um tom de pânico na voz do repórter, enquanto ele prosseguia. "Eu também estou procurando abrigo, mas acho que é tarde demais para evitar os efeitos da radiação. Ninguém sabe ao certo se as ogivas eram nucleares, mas todos estão sendo alertados para não se arriscarem. Estima-se um prejuízo de bilhões de dólares. A vida aqui nunca mais será a mesma. Há devastação por toda parte, até aonde a vista consegue alcançar.
"Todos os principais centros de transporte estão fechados ou foram destruídos. Enormes engarrafamentos de trânsito tomaram conta do Túnel Lincoln, da Ponte Triborough e das principais vias de saída de Nova York. Aquela que foi conhecida como a capital do mundo parece cenário de filme de catástrofe. Agora voltamos à CNN/Rede Comunidade Global em Atlanta."
—Buck — disse Chloe — nossa casa. Onde vamos morar? Buck não respondeu. Ele olhava fixamente para o trânsito, vendo as enormes nuvens de fumaça preta e as bolas intermitentes de fogo de cor alaranjada que pareciam pairar sobre Monte Prospect. Era normal que Chloe estivesse preocupada com sua casa. Buck estava menos preocupado com isso. Poderia morar em qualquer lugar e talvez tivesse vivido em todos os lugares. Se ele tivesse Chloe e um lugar para morar, tudo estaria bem. Mas ela transformara em lar aquela cobertura ridiculamente cara na Quinta Avenida. Finalmente Buck resolveu falar.
— Eles não vão permitir que ninguém volte a Nova York durante dias, talvez mais tempo ainda. Até nossos carros, se ainda estiverem inteiros, não poderão ser usados.
— O que vamos fazer, Buck?
Buck gostaria de saber o que responder. Normalmente, ele teria uma resposta. O desembaraço tinha sido a marca registrada de sua carreira. Fosse qual fosse o obstáculo, ele sempre conseguia vencer qualquer situação, em qualquer lugar do mundo, em qualquer época. Agora, com sua jovem esposa ao lado, sem saber onde morariam ou o que fariam, ele estava completamente perdido. Ele só queria ter a certeza de que seu sogro e Amanda estavam em lugar seguro, apesar do perigoso trabalho de Rayford. Queria também chegar a Monte Prospect para saber o que estava sucedendo com os crentes da Igreja Nova Esperança e informar-lhe sobre a tragédia que acontecera a seu amado pastor.
Buck nunca teve paciência para aturar congestionamentos de trânsito, mas aquele era um absurdo. Com as mãos apertando firme o volante, ele mantinha as mandíbulas cerradas e o pescoço rijo. O carro de último modelo rodava com suavidade, mas naquela velocidade lenta, quase parando, seu motor possante mais parecia um cavalo de corrida impedido de dar a largada.
De repente, uma explosão fez balançar o carro e quase o soltou das rodas. Buck pensou que os vidros do carro estilhaçariam em cima deles. Chloe deu um grito agudo e escondeu a cabeça no peito do marido. Buck esquadrinhou o horizonte procurando ver o que poderia ter causado a explosão. Vários carros próximos a eles saíram imediatamente da pista. Pelo espelho retrovisor, Buck viu uma nuvem no formato de um cogumelo levantando-se lentamente, e entendeu que aquilo estava acontecendo perto do Aeroporto Internacional O'Hare, a alguns quilómetros de distância.
A emissora CNN/RCG informou quase que imediatamente. "Esta notícia vem de Chicago: Nossa retransmissora de lá foi atingida por uma violenta explosão. Não sabemos ainda se foi um ataque das forças militares ou uma retaliação desferida pela Comunidade Global. Temos tantas notícias de guerras, derramamento de sangue, devastação e morte nas principais cidades do mundo que é impossível sabermos tudo o que está acontecendo..."
Buck olhou para trás e para os lados. Assim que o carro da frente andou um pouco, ele deu uma guinada para a esquerda e pisou fundo no acelerador. Chloe prendeu a respiração quando o carro subiu no meio-fio, atravessou um bueiro e saiu do outro lado. Buck seguiu por uma avenida e passou na frente de uma longa fila de carros que se arrastavam lentamente no trânsito.
— O que você está fazendo, Buck? — perguntou Chloe, segurando-se no painel.
— Não sei o que estou fazendo, querida, mas sei o que não quero fazer: não quero ficar no meio de um congestionamento de trânsito enquanto o mundo está indo para o inferno.
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O guarda que acenara para Rayford, da passarela, estava agora retirando as bagagens do helicóptero. Ele foi encarregado de conduzir os Steeles. Passaram por baixo das lâminas da hélice, atravessando uma pista curta de macadame até chegarem a um edifício de tijolos de um só pavimento localizado à beira da pista principal. Ervas daninhas cresciam entre as fendas da pista. Um Learjet estava no final da pista, perto do helicóptero, mas Rayford não avistou ninguém na cabina nem viu ouviu barulho de motor funcionando.
— Espero que eles não queiram que eu pilote esta coisa! — ele gritou para Amanda enquanto entravam no edifício.
— Não se preocupe — disse o guarda acompanhante. — O sujeito que trouxe este jato até aqui vai levar vocês até Dálias onde está a grande aeronave que você vai pilotar.
Rayford e Amanda foram conduzidos até um pequeno e desgastado escritório militar da Força Aérea, decorado com cadeiras de plástico de cor berrante. Rayford sentou-se, massageando os joelhos com força. Amanda andava de um lado para o outro, e só parou quando o acompanhante fez um gesto para que ela se sentasse.
— Tenho liberdade para permanecer em pé, não? — ela disse.
— Sinta-se à vontade. Por favor, esperem aqui alguns instantes. O potentado já deve estar chegando.

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Os guardas de trânsito acenavam, apontavam e gritavam para Buck. Os outros motoristas buzinavam e faziam gestos obscenos para ele. Mas nada o detinha.
— Para onde você está indo? — insistiu Chloe.
— Estou precisando de um outro carro — ele disse. — Alguma coisa me diz que esta vai ser a nossa única chance de sobrevivência.
— Do que você está falando?
— Você não está enxergando, Chio'? — ele perguntou. —Esta guerra acabou de irromper. E não vai terminar logo. Vai ser impossível dirigir um veículo comum em qualquer lugar que seja.
— E o que você pretende fazer? Comprar um tanque de guerra?
— Se não chamasse tanta atenção, até que eu compraria. Buck cruzou um imenso terreno gramado, atravessou um, estacionamento e passou ao lado de uma ampla escola suburbana de segundo grau. Atravessou uma quadra de ténis e um campo de futebol. O carro ziguezagueava, atirando lama e pedaços de grama para todos os lados. O rádio continuava a dar notícias do mundo inteiro sobre acidentes e destruições enquanto Buck e sua mulher eram jogados de um lado para o outro do carro, que corria em alta velocidade passando por sinais de trânsito e derrapando nas curvas. Buck esperava estar na direção certa. Queria chegar à Northwest Highway, onde um grupo de revendedores de automóveis comercializavam suas mercadorias.
Na última curva acentuada, já entrando na zona urbana, Buck se viu no meio de um trânsito "pesado, lento, anda-e-pára" — conforme costumava dizer o repórter de trânsito de sua preferência — que se estendia por toda a Northwest Highway. Buck estava disposto a enfrentar a situação, e até ali tudo havia dado certo, portanto resolveu prosseguir. Cortando a frente de motoristas irados, ele seguiu acompanhando a faixa lateral de bloqueio de trânsito por quase dois quilómetros até dar de frente com os revendedores de carro.
— Acertei! — ele disse,

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Rayford estava perplexo e sabia que Amanda sentia o mesmo, diante do comportamento de Nicolae Carpathia. O jovem elegante, agora na casa dos trinta anos, parecia ter atingido o posto de líder mundial do dia para a noite, talvez contra a sua vontade. Passara de um indivíduo desconhecido pertencente à Câmara dos Deputados da Roménia a presidente daquele país. Em seguida, quase que imediatamente, tomara o lugar do secretário-geral da Organização das Nações Unidas. Após quase dois anos de paz e de uma campanha maciça bem-sucedida para cativar o povo depois do caos e do terror que se instalaram no mundo em seguida aos desaparecimentos, Carpathia estava enfrentando pela primeira vez uma oposição significativa.
Rayford não sabia o que esperar de seu patrão. Estaria ele magoado, ofendido, irado? Não demonstrava nada disso. Conduzido por Leon Fortunato, um funcionário bajulador do escritório da Nova Babilónia, até o escritório administrativo do Posto Aéreo Naval de Glenview, que estava desativado há muito tempo, Carpathia parecia eufórico, animado.
— Capitão Steele! — Ele cumprimentou com entusiasmo. — Al —Ah!, Ahn!, ahn!, Sra. Steele, que bom ver vocês dois e saber que estão bem!
— Pode me chamar de Amanda — ela disse.
— Perdoe-me, Amanda — disse Carpathia, segurando a mão dela entre as suas. Rayford percebeu que a reação dela estava lenta. Carpathia prosseguiu: — Depois de toda essa agitação, você há de compreender...
Agitação, pensou Rayford. De uma forma ou outra, a Terceira Guerra Mundial parecia ser mais que agitação.
Os olhos de Carpathia brilhavam de entusiasmo, e ele esfregou as mãos, como se estivesse emocionado com o que se passava.
— Bem, pessoal — ele disse — precisamos voltar para casa.
Rayford sabia que, para Carpathia, voltar para casa significava voltar para a Nova Babilónia, para Hattie Durham, para a suíte 216, para o andar inteiro destinado ao potentado, com seus luxuosos escritórios na esplêndida e extravagante sede da Comunidade Global. Apesar de Rayford e Amanda morarem em um espaçoso apartamento de dois pavimentos dentro do mesmo complexo que abrigava as instalações da Comunidade Global, não passava pela cabeça de nenhum dos dois considerar a Nova Babilónia como um lar.

Ainda esfregando as mãos, parecendo não conseguir conter-se, Carpathia virou-se para o guarda com o walkie-talkie na mão.
— Quais são as novidades?
O guarda uniformizado da CG estava com os fones de ouvido ligados e levou um susto por Carpathia ter-lhe dirigido diretamente a palavra. Ele arrancou o aparelho do ouvido e gaguejou:
— O quê? Isto é, desculpe, Sr. potentado.Carpathia fixou o olhar no homem.
— Quais são as novidades? O que está acontecendo?
—Ah!, nada de muito diferente, senhor. Muita agitação e muito destruição na maioria das grandes cidades.
Para Rayford, Carpathia estava tendo dificuldade em demonstrar tristeza.
—Essa agitação está concentrada no centro-oeste e na costa leste? — perguntou o potentado.
O guarda balançou a cabeça afirmativamente.
— E um pouco no sul — complementou.
— Então até agora não aconteceu nada na costa oeste — disse Carpathia, mais em tom de afirmação que de pergunta. O guarda assentiu. Rayford gostaria de saber se qualquer outra pessoa que desconhecesse que Carpathia era o anticristo teria notado um ar de satisfação, quase que de divertimento no olhar daquele homem.
— E quanto a Dallas/Fort Worth? — perguntou Carpathia.
— Foi atingido — respondeu o guarda. — Apenas a pista principal permanece aberta. Ninguém chega, mas há muitas aeronaves partindo de lá.
Carpathia olhou de relance para Rayford.
— E quanto à pista militar perto de lá, onde meu piloto fez o teste para o 757?

— Creio que ainda está funcionando, senhor — disse o guarda.
— Então, tudo bem, ótimo — disse Carpathia, virando-se para Fortunato. — Estou certo de que ninguém conhece nosso paradeiro, mas, por via das dúvidas, o que você trouxe para mim?
O homem abriu uma sacola de lona que parecia imprópria para o momento. Aparentemente o homem conseguira juntar alguns disfarces da Força Aérea para Carpathia. Tirou de dentro um quepe que não combinava com um imenso sobretudo. Carpathia rapidamente vestiu o traje e fez um sinal para que os quatro da sala se reunissem em volta dele.
—Onde está o piloto do jato? — ele perguntou.
— Aguardando lá fora, de acordo com suas instruções, senhor — respondeu Fortunato.
Carpathia dirigiu-se para o guarda armado.
— Obrigado por seus serviços. Você pode retornar de helicóptero para seu posto. O Sr. Fortunato, os Steeles e eu voaremos até um outro avião, no qual o capitão Steele me levará de volta à Nova Babilónia.
Rayford disse em voz alta. — E aquilo que está na ...? Carpathia levantou a mão para que ele não prosseguisse.
— É melhor não passarmos ao nosso jovem amigo nenhuma informação sobre a qual ele tenha de ser responsável — ele disse, sorrindo para o guarda uniformizado. - Você pode ir. — Enquanto o homem se afastava rapidamente dali, Carpathia disse em voz baixa a Rayford. — O Condor 216 está à nossa espera perto de Dallas. Vamos voar em direção a oeste para chegarmos ao leste, se é que você está me entendendo.
— Nunca ouvi falar em Condor 216 — disse Rayford. — Não sei se estou habilitado para ...
— Já estou sabendo — interrompeu Carpathia — que você está mais que habilitado para pilotá-lo.
— Mas o que é um Condor 2 ...
— Um híbrido que projetei e dei um nome — disse Carpathia. — Com certeza você não está pensando que o que aconteceu aqui hoje foi surpresa para mim.
— Estou aprendendo — disse Rayford, lançando um olhar furtivo para Amanda que parecia estar confusa.
— Você está aprendendo — repetiu Carpathia, com um largo sorriso. — Gosto disso. Venha, durante a viagem vou lhe contar o quanto é espetacular a minha nova aeronave.
Fortunato levantou o dedo indicador.
— Recomendo que o senhor e eu sigamos juntos até o final da pista e entremos no jato. Os Steeles devem sair daqui depois que estivermos a bordo.
Carpathia ajeitou o quepe grande por cima de seus cabelos bem aparados e acompanhou Fortunato, o qual abriu a porta e fez um sinal com a cabeça para o piloto. O piloto imediatamente correu em direção ao Learjet. Carpathia e Fortunato seguiram-no a passos rápidos alguns metros atrás. Rayford passou o braço ao redor de Amanda e puxou-a para perto de si.
— Rayford — disse Amanda — alguma vez na vida você já ouviu Carpathia pronunciar uma palavra incorretamente?
— Pronunciar uma palavra incorretamente?
— Gaguejar, balbuciar, precisar repetir uma palavra, esquecer o nome de alguém?
Rayford conteve um sorriso, surpreso por achar graça num momento que poderia ser seu último dia na terra.
— Esquecer outros nomes além do seu, é isto que você quer dizer?
— Ele age assim de propósito, e você sabe disso — respondeu Amanda.
Rayford deu de ombros.
— Talvez você tenha razão. Mas qual seria o motivo?
— Não faço a menor ideia.
— Querida, você não está enxergando a ironia de ter sido ofendida pelo homem que com certeza é o anticristo? Amanda olhou espantada para Rayford. — Pense um pouco — ele prosseguiu. — Você espera cortesia e decência do homem mais maligno da história do universo?
Amanda balançou a cabeça e desviou o olhar.
— Vendo por esse ângulo — ela murmurou — acho que estou sendo sensível demais.

_________________

Buck estava sentado no escritório do gerente de vendas de uma concessionária Land Rover.
— Você nunca pára de me surpreender — sussurrou Chloe.
— Não tenho sido muito convencional, tenho?
— É raro, e agora acho que qualquer esperança de normalidade que porventura houvesse acabou de voar pela janela.
— Não preciso apresentar desculpas por ser uma pessoa singular — ele disse — mas todos, em qualquer lugar do mundo, brevemente vão passar a agir por impulso.
O gerente de vendas, que estava atarefado com a papelada e calculando o preço, virou os documentos e os colocou sobre a mesa diante de Buck.
— Você não está trocando o Lincoln, está?
— Não, ele foi alugado — respondeu Buck. — Mas vou pedir que você me faça o favor de mandá-lo de volta para O'Hare. — Buck olhou para o gerente sem examinar os documentos.
— Trata-se de um fato inusitado — disse o gerente. — Eu teria de mandar dois funcionários e um carro extra para queeles possam voltar.
Buck levantou-se.
— Acho que estou pedindo demais. Tenho certeza de que qualquer outro revendedor estará disposto a fazer muito mais que isto para me vender um carro, principalmente quando ninguém sabe o que acontecerá amanhã.
— Sente-se, Sr. Williams. Não vou ter nenhum problema em destacar meu gerente de distrito para lhe fazer aquele pequeno favor. Como o senhor pode ver, será possível sair daqui com seu Range Rover totalmente equipado dentro de uma hora, pagando um preço abaixo de 100 mil dólares.
— Consiga tudo isso em meia hora — disse Buck — e negócio fechado.
O gerente de vendas levantou-se e apertou a mão de Buck.
—Negócio fechado!


DOIS




O Learjet era um jatinho de seis lugares. Carpathia e Fortunato conversavam sem parar e não deram atenção quando Rayford e Amanda passaram por eles. Os Steeles acomodaram-se nas duas poltronas do fundo, de mãos dadas. Rayford sabia que o terror que tomava conta do mundo era um fato inteiramente novo para Amanda. Também era um fato novo para ele. Na situação atual, era um fato novo para todos. Amanda segurou a mão do marido com tanta força que os dedos dele ficaram brancos. Ela estava tremendo.
Carpathia virou-se no assento e olhou para o casal. Ele parecia estar lutando para conter o riso, o que Rayford considerou uma insanidade diante da situação.
— Sei que você não foi preparado para pilotar jatos tão pequenos como este — disse Carpathia — mas vai precisar aprender alguma coisa na poltrona do co-piloto.
Rayford estava muito mais preocupado com a aeronave que ele pilotaria a partir de Dallas, da qual ele nunca ouvira falar. Olhou para Amanda, na esperança de que ela lhe pediria para não sair dali, mas ela soltou a mão dele e assentiu.
Rayford caminhou em direção à cabina, que estava separada das outras poltronas por um painel bem fino. Sentou-se, amarrou o cinto e olhou com ar de desculpa para o piloto, que lhe estendeu a mão e disse:
— Chico Hernandez, capitão Steele. Não se preocupe, já fiz a verificação antes da decolagem, e não estou precisando de ajuda.
— De qualquer forma, eu não lhe seria muito útil — disse Rayford. — Faz anos que não piloto aeronaves menores que um 707.
— Comparado às aeronaves que você costuma pilotar — disse Hernandez — isto aqui deve parecer uma motocicleta.
Era exatamente o que Rayford estava pensando. O Learjet emitiu um som estridente e gemeu enquanto Hernandez aprumava-o em linha reta com a pista. Em segundos, a aeronave ganhou velocidade e decolou, derivando para a direita e seguindo a rota em direção a Dálias.
— Com que torre você vai manter comunicação? — perguntou Rayford.
— Não há ninguém na torre de Glenview — disse Hernandez.
— Eu percebi.
— Vou informar a algumas torres que estou a caminho. O pessoal da meteorologia vai nos dizer se podemos prosseguir. O serviço secreto da Comunidade Global não localizou nenhuma aeronave inimiga no percurso daqui até a aterrissagem.
Aeronave inimiga, pensou Rayford. Que maneira interessante de referir-se às forças militares norte-americanas! Ele se lembrou de que não gostava dos militares, não os compreendia, achando que eram criminosos. Mas isso foi no tempo em que o governo dos Estados Unidos também era inimigo deles. Agora eram aliados do incompetente presidente dos Estados Unidos Gerald Fitzhugh, e o inimigo deles era inimigo de Rayford — principalmente o seu patrão. Rayford não tinha ideia de onde surgira Hernandez, qual era sua formação profissional, se concordava com as ideias de Carpathia e era leal a ele ou se havia sido forçado a aceitar o emprego da mesma forma que Rayford.
Rayford colocou os fones de ouvido e descobriu onde se localizava o mostrador de discagem para comunicar-se com o piloto sem que ninguém ouvisse.
— Aqui fala seu pretenso primeiro piloto — ele disse brandamente. — Você está me ouvindo?
— Em alto e bom som, "co-piloto" — disse Hernandez. E, parecendo ler os pensamentos de Rayford, complementou: — Este canal é seguro.
Esse comentário fez Rayford ter a certeza de que ninguém, dentro ou fora da aeronave, podia ouvir a conversa entre eles. Fazia sentido. Mas por que Hernandez dissera aquilo? Teria ele percebido que Rayford queria conversar? E seria confortável conversar com um estranho? O fato de ambos serem pilotos não significava que ele poderia conversar francamente com aquele homem.
— Estou curioso a respeito do Comunidade Global Um — disse Rayford.
— Você não ouviu nenhum comentário? — perguntou Hernandez.
— Negativo.
Hernandez deu uma olhada para trás, onde Carpathia e Fortunato estavam sentados. Rayford preferiu permanecer imóvel para não levantar suspeitas. Hernandez resolveu contar o que sabia a respeito do antigo avião pilotado por Rayford, porque Carpathia e Fortunato prosseguiam conversando animadamente.
— Acho que o potentado teria contado a você se tivesse tido uma oportunidade — disse Hernandez. — As notícias procedentes de Nova York não são nada boas.

— Eu já soube — disse Rayford. — Mas não sei qual foi a extensão do estrago nos principais aeroportos.
— Quase total destruição, acho. Sabemos com certeza que o hangar onde a aeronave estava pousada foi pelos ares.
— E o piloto?
— Earl Halliday? Ele já estava longe quando ocorreu o ataque.
— Então ele está salvo? — disse Rayford. — Que alívio! Você o conhece?
— Pessoalmente, não — respondeu Hernandez. — Mas tenho ouvido falar muito dele nas últimas semanas.
— Partindo de Carpathia?
— Não. Partindo da delegação norte-americana para a Comunidade Global.
Rayford estava completamente perdido, mas não queria admitir. Por que a delegação norte-americana teria conversado sobre Earl Halliday? Carpathia pedira a Rayford que encontrasse alguém para pilotar o Comunidade Global Um 757 até Nova York durante o curto período de férias dele e de Amanda em Chicago. O plano de Carpathia era passar alguns dias confundindo a imprensa e os rebeldes (o presidente Fitzhugh e vários grupos do Exército norte-americano) quanto ao seu itinerário e fazendo-os se deslocarem de um lugar para outro. Quando o exército atacou e a Comunidade Global revidou, Rayford assumira que pelo menos a hora em que isso aconteceu foi uma surpresa. Ele também assumira que a escolha de seu velho amigo e chefe nas Linhas Aéreas Pan-Continental para conduzir o 757 vazio até Nova York não causara grandes consequências a Carpathia. Mas, aparentemente, Carpathia e a delegação norte-americana sabiam exatamente quem ele escolheria. Qual teria sido o objetivo? E como Halliday conseguiu sair de Nova York a tempo para não ser morto?

— Onde está Halliday agora? — perguntou Rayford.
— Você vai vê-lo em Dálias.
Rayford olhou de esguelha, tentando ordenar os pensamentos.
— Eu?
— Quem você pensa que vai ensinar-lhe os passos para pilotar a nova aeronave?
Quando Carpathia dissera a Rayford que ele poderia aprender algumas coisas sentando-se na poltrona do co-piloto, Rayford não tinha ideia de que isso compreendia mais do que algumas dicas interessantes sobre esse pequeno e rápido Lear j et.
— Vamos conversar francamente — ele disse. — Earl Halli day sabia sobre essa nova aeronave e está tão familiarizado com ela a ponto de ensinar-me a pilotá-la?
Hernandez sorriu enquanto esquadrinhava o horizonte e manobrava o Learjet.
— Earl Halliday construiu praticamente sozinho o Condor 216. Ajudou no projeto. Deixou claro que qualquer um que estivesse habilitado a pilotar um 757 seria capaz de pilotar o Condor 216, mesmo sendo muito maior e mais sofisticado que o Comunidade Global Um.
Rayford sentiu uma emoção sarcástica crescendo dentro de si. Odiava Carpathia e sabia exatamente quem ele era. Porém, por mais estranho que fosse o fato de sua mulher ofender-se com a insistência de Carpathia em errar seu nome, Rayford achou que estava mal informado.
— Eu gostaria de saber por que não fui comunicado sobre a nova aeronave, principalmente se desejam que eu seja seu piloto — ele disse.
— Não tenho informações sobre isso — disse Hernandez — mas você sabe que o potentado tem a tendência de ser muito precavido, muito cauteloso e muito calculista.
E eu não sei disso? pensou Rayford. Isso não passa de conspiração e maquinação.
— Então, aparentemente ele não confia em mim.
— Não tenho certeza se ele confia em alguém — disse Hernandez. — No lugar dele, eu também não confiaria. E você?
— Eu o quê?
— Você confiaria em alguém se estivesse no lugar de Carpathia? — perguntou Hernandez.
Rayford não respondeu.

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— Você não se sente como se estivesse gastando dinheiro do demónio? — perguntou Chloe a Buck enquanto ele saía da loja com seu novo e lindo Range Rover, cor de terra.
— Estou consciente do que fiz — disse Buck. — E o anticristo nunca fez investimento melhor que este para a causa de Deus.
— Você considera que gastar quase cem mil dólares em um brinquedo como este é um investimento para a nossa causa?
— Chloe — disse Buck, escolhendo as palavras com cuidado — olhe para esta maravilha. Ela tem tudo. Vai a qualquer lugar. É indestrutível. Vem equipada com rádio faixa cidadão, extintor de incêndio, kit de sobrevivência, luzes de sinalização e outras coisas mais. Tem tração nas quatro rodas, tração em todas as rodas, suspensão independente, um CD player supermoderno, saídas elétricas no painel que permitem ligar para quem você quiser, diretamente da bateria.
— Mas Buck, você usou o cartão de crédito do Semanário Comunidade Global como se fosse de sua propriedade. Que limite você tem para gastar?

— A maioria dos cartões como este, emitidos por Carpathia, tem um limite de 250 mil dólares — disse Buck. — Mas aqueles entregues aos funcionários mais antigos, como é o meu caso, têm um código especial embutido. Eles não têm limites.
— Nenhum limite?
— Você não percebeu o olhar daquele gerente de vendas quando ele telefonou para confirmar os dados do cartão?
— Tudo o que vi — respondeu Chloe — foi um sorriso e um negócio fechado.
— Lá vem você.
— Alguém não teria de aprovar uma compra como esta?
— Eu me reporto diretamente a Carpathia. Talvez ele queira saber por que comprei um Range Rover. Isso será fácil explicar, ainda mais com a perda de nosso apartamento, nossos carros e a necessidade de nos locomovermos.
De novo, Buck começou a ficar impaciente com o trânsito. Desta vez, ele saiu da estrada e passou por valas, bueiros, amplas avenidas, becos e terrenos vazios, fazendo esse trajeto de propósito, que não foi nada suave. Aquele carro tinha sido feito para ele dirigir.
— Veja o que esta beleza tem a mais — disse Buck. —
É possível passar da transmissão automática para a manual e vice-versa. Chloe abaixou os olhos para o chão do carro.
— O que você faz com a embreagem quando o carro está no automático?
— Eu me esqueço dela — disse Buck. — Você já dirigiu carro com sistema de câmbio manual?
— Uma amiga minha do tempo da faculdade tinha um pequeno carro esporte com sistema de câmbio manual — ela respondeu. — Eu adorava dirigi-lo.
— Quer dirigir este?
— — De jeito nenhum. Pelo menos por enquanto. É melhor irmos para a igreja.

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— Existe mais alguma coisa que eu deva saber sobre o que vamos encontrar em Dálias? — Rayford perguntou a Hernandez.
— Você vai transportar um bocado de gente importante de volta para o Iraque — disse Hernandez. — Mas isto não é novidade para você, ou é?
— Não. Receio que tudo isso tenha perdido o encanto para mim.
— Bem, de qualquer forma, invejo você.
Rayford calou-se, atordoado. Lá estava ele, a quem Bruce referira como um santo da tribulação, um crente em Cristo durante o período mais horroroso da história da humanidade, trabalhando para o anticristo contra a vontade e, certamente, pondo em risco a vida de sua esposa, sua filha, seu genro e a sua própria. E, mesmo assim, era invejado.
— Não sinta inveja de mim, capitão Hernandez. Qualquer que seja o seu trabalho, não sinta inveja de mim.

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Ao aproximar-se da igreja, Buck notou que havia muita gente nos jardins das casas. As pessoas olhavam para o céu e ouviam as notícias pelo rádio e TV. Buck surpreendeu-se ao ver um único carro no estacionamento da Igreja Nova Esperança. Pertencia a Loretta, a assistente de Bruce.
— Eu não esperava por esta — disse Chloe.
— Nem eu — disse Buck.
Eles avistaram a mulher, uma senhora beirando os setenta anos, sentada com o corpo rijo do lado de fora do escritório, olhando fixamente para o aparelho de TV. Em seu colo havia dois lenços de papel amassados em formato de bola, e ela segurava um terceiro entre os dedos ossudos. Seus óculos de leitura estavam pendurados na ponta do nariz, e ela olhava por cima deles em direção à TV. Aparentemente a senhora não percebeu a chegada de Buck e Chloe, mas logo ficou claro que ela sabia que o casal estava ali. Buck ouviu o som de uma impressora de computador, que vinha do interior do escritório, produzindo páginas e mais páginas.
Na juventude, Loretta foi uma bela moça do sul. Agora estava sentada ali, com os olhos vermelhos, fungando e manuseando o lenço de papel como se estivesse criando uma obra de arte. Buck olhou para a TV e viu uma cena tomada de helicóptero do Hospital da Comunidade Noroeste após o bombardeio.
— As pessoas estão telefonando — disse Loretta. — Não sei o que dizer. Ele não pode ter sobrevivido, não é mesmo? Estou falando do pastor Bruce. Ele não deve estar vivo, não? Vocês viram o pastor?
— Nós não o vimos — disse Chloe, escolhendo as palavras com cuidado e ajoelhando-se ao lado da senhora. — Mas meu pai conseguiu vê-lo.
Loretta virou-se rapidamente e encarou Chloe.
— O Sr. Steele viu o pastor? Ele está bem? Chloe balançou negativamente a cabeça.
— Lamento muito, senhora, ele não está. Bruce morreu. Loretta abaixou a cabeça até encostá-la no peito. As lágrimas inundavam seus óculos. Ela disse com voz rouca:
— Vocês poderiam desligar a televisão, por favor? Eu estava orando e, de repente, olhei para lá para ver se via o pastor Bruce. Mas se ele está debaixo de um lençol, não quero ver a cena.
Buck desligou a TV enquanto Chloe abraçava a senhora. Loretta desatou a chorar. — Aquele jovem pastor era como uma pessoa de minha família, vocês sabem disso.
— abemos — disse Chloe, também em prantos. — Ele ambém era como uma pessoa da família para nós.
Loretta afastou o corpo e olhou para Chloe.
— Mas ele era a minha única família. Você conhece minha istória, não?
— Sim, senhora.
— Você sabe que perdi todos.
— Sim, senhora.
— Estou dizendo que perdi minha família inteira. Perdi todos os parentes. Mais de cem. Fui criada numa família das mais devotadas espiritualmente. Eu era considerada um dos pilares desta igreja. Trabalhei ativamente em tudo, fui uma mulher da igreja. Só que não conhecia verdadeiramente o Senhor.
Chloe abraçou-a e chorou com ela.
— Aquele jovem pastor ensinou-me tudo — prosseguiu Loretta. — Aprendi mais com ele em dois anos do que em mais de 60 anos frequentando a Escola Dominical e a igreja. Não estou culpando ninguém, a não ser eu mesma. Fui surda e cega espiritualmente falando. Meu pai morreu antes, mas perdi minha mãe, todos os meus seis irmãos e irmãs, todos os seus filhos, inclusive seus genros e noras. Perdi meus filhos e netos. Todos. Se alguém fizesse uma lista dos membros desta igreja que provavelmente iriam para o céu após a morte, eu estaria no primeiro lugar, bem ali com o pastor.
Aquilo era tão doloroso para Buck quanto estava sendo para Chloe e Loretta. Mas ele resolveu deixar o sofrimento para depois e chorar à sua maneira, no momento apropriado. Por ora, ele não queria continuar a falar sobre a tragédia.
— Que serviço a senhora está fazendo no escritório? — perguntou Buck.
Loretta pigarreou.
— Cuidando das coisas de Bruce, é claro.
— Que coisas?
— Bem, você sabe que quando ele voltou daquela extensa viagem à Indonésia para evangelizar o povo de lá, tinha contraído uma espécie de vírus ou coisa parecida. Ele foi levado com tanta pressa para o hospital que acabou esquecendo seu laptop aqui. Vocês sabem que ele levava aquela coisa a todos os lugares por onde andava.
— Eu sei — disse Chloe.
— Assim que foi internado, Bruce me ligou, pedindo que eu levasse o laptop para ele, se fosse possível. Eu faria qualquer coisa por Bruce, claro. Quando eu já estava de saída, o telefone tocou novamente. Bruce me disse que estava sendo levado para a unidade de terapia intensiva e que não poderia receber visitas por algum tempo. Acho que ele teve uma premonição.
— Uma premonição? — estranhou Buck.
— Acho que Bruce sabia que ia morrer — disse Loretta. — Ele me pediu que mantivesse contato com o hospital para saber quando poderia receber visitas. Bruce gostava muito de mim, mas sei que ele estava mais interessado em receber o laptop que receber minha visita.

— Não tenho certeza quanto a isso — disse Chloe. — Ele gostava muito da senhora e a considerava como mãe.
— É verdade — disse Loretta. — Ele me disse isso mais de uma vez. Bem, Bruce pediu que eu imprimisse tudo o que estava no disco rígido de seu computador, tudo exceto o que ele chamava de arquivos de programas.
— O quê? — perguntou Chloe. — Todos os seus estudos bíblicos e esboços de sermão, coisas desse tipo?
—Acredito que sim — disse Loretta. — Ele me pediu que providenciasse bastante papel. Acho que ele queria dizer uma resma ou algo parecido.
— E já foi impresso mais que isso? — perguntou Buck.
— Oh, sim, muito mais que isso, senhor. Fiquei ali abastecendo aquela impressora, de 200 em 200 folhas mais ou menos, até completar duas resmas. Tenho pavor de lidar com computadores, mas Bruce me ensinou como imprimir tudo o que havia no arquivo que começava com suas iniciais. Ele me disse que bastava eu digitar "Imprimir BB*.*" e que a impressora faria o resto. Espero ter feito tudo certo. Há muito material impresso, mais do que ele podia imaginar. Acho melhor desligar tudo agora.
— A senhora está imprimindo a terceira resma? — perguntou Chloe.
— Não. Precisei pedir ajuda a Donny.
— O sujeito que conserta telefones? — perguntou Buck.
— Oh, Donny Moore faz mais do que simplesmente consertar telefones — disse Loretta. — É raro haver um aparelho eletrônico que ele não saiba consertar. Ele me ensinou como usar estas velhas caixas de papel contínuo em nossa impressora a laser. Pegou uma caixa lá fora, arrastou-a até aqui. Agora o papel entra por um lado da impressora e sai pelo outro. Assim não preciso ficar tomando conta do papel da impressora.
— Não sei como a senhora conseguiu fazer isso — disse Buck.
— Nem eu — disse Loretta. — Há muitas coisas que Donny sabe fazer e que eu não sei. Ele disse que nossa impressora é supermoderna e imprime cerca de quinze páginas por minuto.
— E faz muito tempo que a máquina está imprimindo? — perguntou Chloe.
— Desde que Bruce me ligou do hospital hoje de manhã. Provavelmente houve um intervalo de cinco ou dez minutos depois que imprimi as duas resmas e antes de Donny me trazer aquela caixa enorme.
Buck entrou no escritório e parou atónito diante daquela impressora de alta tecnologia que puxava página após página da caixa e soltava do outro lado uma pilha de papel tão alta que parecia prestes a tombar. Ele endireitou a pilha de papel e olhou para a caixa. As primeiras duas resmas de páginas impressas, todas em espaço simples, estavam arrumadas cuidadosamente sobre a escrivaninha de Bruce. A velha caixa de papel tinha tamanho suficiente para conter 5.000 folhas. Buck calculou que a máquina já imprimira cerca de 80% do conteúdo da caixa. Com certeza, devia haver algum engano. Será que Bruce teria produzido mais de 5.000 páginas de anotações? Talvez tivesse havido algum erro e Loretta imprimira muita coisa por engano, inclusive arquivos de programas, Bíblias e concordâncias bíblicas, dicionários e coisas do género.
Mas não tinha havido erro nenhum. Buck folheou ao acaso a primeira resma e depois a outra, à procura de algo mais além das anotações de Bruce. Todas as páginas continham material escrito por Bruce, inclusive comentários sobre passagens bíblicas, esboços de sermões, leituras devocionais e cartas a amigos, parentes e pessoas de igrejas do mundo inteiro. A princípio Buck sentiu-se culpado, como se estivesse invadindo a privacidade de Bruce. Mas por que Bruce insistira com Loretta para que ela imprimisse tudo aquilo? Será que ele sabia que ia morrer? Queria deixar o material para uso deles?
Buck curvou-se sobre a pilha de papel contínuo, que aumentava rapidamente. Levantou-a do chão e fez com que as páginas caíssem uma a uma diante de seus olhos. Novamente constatou que todas tinham sido escritas por Bruce, e todas com espaço simples. Ele devia ter escrito várias páginas por dia durante mais de dois anos.
Quando Buck voltou ao lugar onde Chloe e Loretta estavam, Loretta voltou a dizer:
— É melhor desligarmos tudo e jogarmos fora as páginas impressas. Bruce não vai mais precisar disso.
Chloe estava sentada numa cadeira ao lado de Loretta, parecendo exausta. Buck ajoelhou-se ao lado de Loretta, colocou a mão em seus ombros e disse com franqueza:
— Loretta, você ainda pode servir ao Senhor servindo a Bruce. — Ela começou a protestar, mas Buck prosseguiu. — Ele morreu, eu sei, mas não seria melhor ficarmos felizes por ele estar novamente com sua família? — Loretta cerrou os lábios e assentiu. Buck continuou. — Preciso de sua ajuda para um grande projeto. Há uma mina de ouro naquele escritório. Olhei aquelas páginas de relance e vi que Bruce ainda está conosco. Seu conhecimento, seus ensinamentos, seu amor e compaixão estão ali. O melhor que podemos fazer por este pequeno rebanho que perdeu seu pastor é tirar cópias de todas aquelas páginas. Não sei se teremos aqui um outro pastor ou mestre, mas, enquanto isso, as pessoas necessitam ter acesso ao que Bruce escreveu. Talvez elas tenham ouvido seus sermões sobre isto, talvez já tenham visto este material. Mas trata-se de um tesouro que todos podem usar.
— Buck — disse Chloe — você não acha que deveria tentar editar este material ou transformá-lo numa espécie de livro?
— Vou dar uma olhada em todo o material, Chloe, mas acho que o melhor seria tirar cópias do jeito que ele está. Trata-se de material de uso pessoal de Bruce, de seus estudos, de cartas aos crentes, a seus amigos, entes queridos e a ele próprio. Acho que Loretta deveria levar esse material para ser xerografado imediatamente. Precisamos de mil cópias de tudo, impressas frente e verso e encadernadas da maneira mais simples possível.
— Isso vai custar uma fortuna — disse Loretta.
— Não se preocupe por ora — disse Buck. — Penso que não existe investimento melhor.

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Enquanto o Learjet preparava-se para aterrissar na área de Dallas/Fort Worth, Fortunato entrou na cabina e ajoelhou-se entre Hemandez e Rayford. Ambos tiraram os fones para ouvir o que o assessor de Carpathia tinha a dizer.
— Alguém aqui está com fome? — ele perguntou. Rayford não tinha sequer pensado em comida. Para ele, o mundo estava se desintegrando e ninguém sobreviveria àquela guerra. No entanto, a simples menção da palavra fome mexeu com seu estômago, e ele se deu conta de que estava faminto. Amanda também deveria estar. Ela alimentava-se pouco, e quase sempre ele precisava lembrá-la de comer alguma coisa.
— Eu estou com fome — disse Hernandez. — Na verdade, estou com muita fome.
— O potentado Carpathia quer que você entre em contato com a torre DFW e peça que preparem alguma coisa gostosa para nós.
Hernandez pareceu assustado.
— O que ele quer dizer com "alguma coisa gostosa"?
— Tenho certeza de que você saberá o que fazer, capitão Hernandez.
Fortunato saiu da cabina, e Hernandez olhou para Rayford com ar de aborrecimento.
— Torre DFW, aqui fala Comunidade Global Três, câmbio. Rayford olhou para trás. Fortunato já havia se sentado.
Carpathia conversava animadamente com Amanda.

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Chloe ajudou Loretta a preparar um comunicado resumido, de duas frases, que deveria ser transmitido por telefone às seis primeiras pessoas da lista da corrente de orações. Cada uma delas deveria ligar para outras, e assim sucessivamente, até que a notícia chegasse a todos os membros da Igreja Nova Esperança. No ínterim, Buck gravou esta breve mensagem na secretária eletrônica: "A notícia trágica sobre a morte do pastor Bruce é verdadeira. O presbítero Rayford Steele chegou a vê-lo e acredita que ele tenha morrido antes de o hospital ter sido atingido pelas explosões. Por favor, não compareçam à igreja porque não haverá reuniões nem cultos nem avisos posteriores até domingo no horário normal." Buck desligou a campainha do telefone e direcionou todas as chamadas para a secretária eletrônica, que em seguida começou a ser acionada uma vez atrás da outra. Era o pessoal da igreja ligando para obter confirmação. Buck sabia que a reunião matinal de domingo seria muito concorrida. Chloe concordou em acompanhar Loretta até a casa dela para ter certeza de que tudo estava bem. Enquanto isso Buck ligou para Donny Moore.
— Donny — ele disse — preciso de um palpite seu, e tem de ser agora.
— Pode falar, Sr. Williams — soou a voz pausada de Donny — sou especialista em dar palpites. O senhor sabe que eu trabalho em casa. Podemos nos encontrar aqui ou posso ir até onde o senhor está.
— Donny, não tenho condições de sair agora. Eu ficaria muito grato se você pudesse encontrar-me aqui na igreja.
— Posso ir imediatamente, Sr. Williams, mas antes diga-me uma coisa. A Loretta deixou o telefone fora do gancho?
— Creio que sim. Ela não tinha respostas para as pessoas que estavam ligando para saber do pastor Bruce. Em vista disso, ela resolveu tirar o telefone do gancho.
— Isso me deixa mais aliviado — disse Donny. — Algumas semanas atrás ajudei Loretta a instalar um novo sistema, e espero que não tenha dado nada errado. E Bruce, como ele está?
— Vou-lhe contar tudo quando você chegar aqui, Donny. Está bem?

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Rayford avistou imensas nuvens negras sobre o aeroporto comercial Dallas/Fort Worth e lembrou-se das muitas vezes em que pousara aeronaves de grande porte naquelas pistas extensas. Quanto tempo levaria para serem reconstruídas? O capitão Hernandez dirigiu o Learjet para uma pista militar próxima, a mesma que Rayford usara recentemente para fazer o teste. Não havia nenhuma outra aeronave no solo. Evidentemente, alguém havia tirado todos os aviões dali para evitar que a pista se transformasse em alvo.
Hernandez pousou o Learjet suavemente, fazendo uso de toda a sua habilidade para manejar aquela aeronave de pequeno porte. Taxiou até o final da pista e entrou em um enorme hangar. Rayford surpreendeu-se ao notar que o hangar também estava vazio. Hernandez desligou os motores e todos desceram. Carpathia vestiu o disfarce e cochichou alguma coisa ao ouvido de Fortunato, o qual perguntou a Hernandez onde estava a comida.
— No hangar três — disse Hernandez. — Estamos no hangar um. A aeronave está no hangar quatro.
O disfarce não foi necessário. Não havia muito espaço entre os hangares, e o pequeno grupo passou rapidamente pelas pequenas portas nas laterais de cada hangar. O hangar dois também estava vazio. No três havia apenas uma mesa abastecida de lanches, perto da porta que dava para o hangar quatro.
Quando eles se aproximaram da mesa, Carpathia virou-se para Rayford.
— Diga adeus ao capitão Hernandez. Após a refeição, ele vai tratar de um assunto para mim no edifício da Agência de Segurança Nacional, em Maryland. Acho que você não o verá novamente. Ele pilota apenas aeronaves de pequeno porte.
Rayford conteve-se para não demonstrar desinteresse. O que ele tinha a ver com isso? Acabara de conhecer aquele homem. Por que Carpathia tinha tanto interesse em mantê-lo informado acerca de seus empregados? Ele não contara nada a Rayford sobre a participação de Earl Halliday no projeto do novo avião. Não disser a Rayford que precisava de um novo avião. Nem sequer pedira a opinião de Rayford sobre o avião que ele pilotaria. Era difícil demais entender aquele homem.
Rayford estava com apetite voraz e insistiu que Amanda se alimentasse mais do que ela costumava. Ela não atendeu ao seu pedido. Quando o grupo estava passando do hangar três para o quatro, Rayford ouviu o som característico dos motores do Learjet e percebeu que Hernandez já decolará. Curiosamente, Fortunato desapareceu assim que eles entraram no hangar quatro. Ali, em pé com o corpo erguido e formando uma fila, estavam quatro dos dez embaixadores internacionais representantes das diversas populações do mundo e que eram subordinados a Carpathia. Rayford não tinha ideia de onde eles vieram e como chegaram ali. Ele só sabia que teria de levar todos eles até a Nova Babilónia para reuniões de emergência em razão da eclosão da Terceira Guerra Mundial.
No final da fila estava Earl Halliday, em pé em posição de sentido e olhando firme para a frente. Carpathia apertou a mão de cada um dos quatro embaixadores e não deu atenção a Halliday, que parecia esperar por isto. Rayford caminhou em direção a Halliday e estendeu-lhe a mão. Halliday não fez nenhum movimento e falou entre dentes.
— Saia da minha frente, Steele, seu ordinário!
— Earl!
— Você entendeu, Rayford. Vou ser obrigado a ensiná-lo a pilotar esta aeronave, mas não vou fingir que estou gostando disto.
Rayford afastou-se, desconcertado, e foi fazer companhia a Amanda que parecia abandonada e deslocada.
— Rayford, o que Earl está fazendo aqui? — perguntou ela.
— Vou lhe contar mais tarde. Só posso dizer que ele não está nem um pouco feliz. Sobre o que Carpathia estava conversando com você no avião?
— Ele queria saber qual a comida que eu prefiro, essas coisas. Que homem!
Dois assessores procedentes da Nova Babilónia entraram e cumprimentaram Carpathia com um abraço. Um deles fez um sinal para que Earl e Rayford o acompanhassem até um canto do hangar, bem distante do lugar onde o Condor 216 se encontrava. Rayford estava evitando olhar para aquela aeronave monstruosa. O Condor 216 parecia dominar todo o hangar, apesar de estar de frente para a porta que dava para a pista e a cerca de 50 metros de distância de onde eles estavam. Bastou um olhar de relance para Rayford constatar que aquela aeronave levara anos para ser construída, e não meses. Era o maior avião de passageiros que ele já vira, e estava pintado de um branco tão brilhante que se misturava com as paredes claras do hangar parcamente iluminado. Seria muito difícil localizá-lo no céu.
O assessor de Carpathia, que trajava roupas elegantes e idênticas ao do patrão — terno preto, camisa branca e gravata vermelha presa com um pino de ouro — inclinou-se em direção a Rayford e Earl e disse:
— O potentado Carpathia gostaria de voar o mais breve possível. Vocês podem nos dizer de quanto tempo necessitam até a hora da partida?
— Nunca vi esta aeronave antes — disse Rayford — e não tenho ideia ...
— Rayford — interrompeu Earl — vou-lhe dizer uma coisa. Você pode pilotar o Condor 216 dentro de meia hora. Conheço você. Conheço aviões. Confie em mim.
— Que interessante, Earl! Mas não vou prometer nada enquanto não aprender a manejá-lo.
O imitador de Carpathia virou-se para Halliday.
— Você poderia pilotar o avião até que Rayford se sinta ...
— Não, senhor, não posso! — disse Halliday. — Vou treinar Steele durante trinta minutos e depois gostaria de retornar a Chicago.

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Buck percebeu que Donny Moore falava demais, mas fingir interesse era o mínimo que ele poderia fazer diante da habilidade daquele homem.
— Então, quer dizer que você conserta telefones, mas também vende computadores ...
— De uma certa maneira, sim, senhor. Só assim consigo duplicar minha renda. Eu trouxe uma montanha de catálogos.
— Eu gostaria de vê-los — disse Buck. Donny deu um sorriso.
— Pensei nisso. — ele disse, abrindo uma maleta e pegando uma pilha de catálogos de fabricantes que aparentemente o haviam contratado como representante. Ele escolheu seis catálogos e espalhou-os diante de Buck, em cima da mesinha de café.
— Puxa! — exclamou Buck. — Vejo que temos muitas opções. Não seria melhor eu lhe dizer o que estou procu rando para depois você me dizer se tem para pronta entrega?
— Posso dizer agora mesmo se tenho material para pronta entrega — disse Donny. — Na semana passada vendi a um sujeito trinta sub-notebooks com mais capacidade do que qualquer outro computador de mesa e ...
— Espere um momento, Donny — disse Buck. — Você ouviu que aquela impressora ali parou de funcionar?
— Claro que ouvi. Parou agora. Pode ser falta de papel, falta de tinta ou ela já imprimiu tudo. Fui eu que vendi aquela máquina para Bruce, você sabia? A melhor que existe. Imprime em papel comum, papel contínuo — o que a gente precisar.
— Deixe-me dar uma espiada ali — disse Buck, levantando-se e olhando ao redor do escritório. A tela do laptop de Bruce estava em posição de descanso. Não havia nenhum sinal de que faltava papel ou tinta na impressora. Buck apertou um botão do laptop e os dados da tela voltaram a ficar visíveis, indicando que a impressão terminara. Bruce calculou que sobraram cerca de cem folhas da caixa de 5.000 que Loretta rodara na impressora.
Que tesouro, pensou Buck.
— Quando Bruce vai voltar? — perguntou Donny do outro cómodo.

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Rayford e Earl subiram a bordo do Condor sozinhos. Earl estava circunspecto e Rayford entendeu que ele estava à procura de alguma falha mecânica. Earl examinou cuidadosamente o sistema de intercomunicação.
— Nunca se sabe — ele disse.
— Diga-me uma coisa — disse Rayford.
— Diga alguma coisa você, Rayford!
— Earl, sei muito menos que você. Eu nem sabia que você estava envolvido neste projeto. Não tinha ideia de que você estava trabalhando para Carpathia. Você sabia que eu estava, então por que não me contou nada?
— Não estou trabalhando para Carpathia, Rayford. Fui obrigado a fazer o serviço. Ainda sou o piloto-chefe da Pan-Con em O'Hare, mas quando o dever nos chama ...
— Então por que Carpathia não me disse que conhecia você? — perguntou Rayford. — Ele me pediu que encontrasse alguém para pilotar o Comunidade Global Um até Nova York. Ele não sabia que eu ia escolher você.
— Ele devia saber — disse Earl. — Quem mais você escolheria? Fui chamado para ajudar no projeto da nova aeronave e achei que seria divertido testá-la um pouco. Em seguida, pediram que eu pilotasse a outra aeronave até Nova York. Como o pedido partiu de você, senti-me lisonjeado e honrado. Só quando aterrissei foi que me dei conta de que a aeronave e eu éramos os alvos de um ataque. Saí de Nova York e tentei voltar para Chicago o mais rápido possível. Não consegui. Enquanto eu estava no ar, o pessoal de Carpathia me avisou que eu precisava estar em Dallias para treinar você a pilotar esta aeronave.
— Estou confuso — disse Rayford.
— Eu também estou — disse Earl. — Mas ficou claro que Carpathia queria que eu fosse até Nova York e aparecesse morto, dando a entender que a decisão havia sido sua, e não dele.
— Por que ele haveria de querer que você morresse?
— Talvez eu saiba demais.
— Tenho voado com ele por todos os lugares — disse Rayford. — Sei muito mais que você, e mesmo assim não acho que ele esteja pensando em me ver morto.
— Reflita um pouco, Rayford. Já ouvi muita coisa para saber que tudo isto é uma farsa e que esse homem não tem as melhores intenções do mundo.
Um eufemismo que atravessou séculos, pensou Rayford.
— Não sei por que você me colocou nisto, Rayford, mas ...
— Eu coloquei você nisto? Earl, você tem memória fraca. Foi você quem me incentivou a ser piloto do Air Force One. Eu não estava procurando emprego e certamente nunca imaginei que tudo acabaria assim.
— Pilotar o Air Force One era um emprego excelente — disse Earl — mesmo que você não reconhecesse isso na época. Como eu poderia saber o que sucederia depois?
— Vamos parar de nos culpar e resolver o que devemos fazer agora.
— Ray, vou treiná-lo para pilotar esta aeronave, mas acho que depois disso serei um homem morto. Você poderia dizer à minha esposa que ...
— Earl, do que você está falando? Por que você acha que não vai voltar para Chicago?
— Não faço ideia, Ray. Só sei que deveria estar em Nova York com aquela aeronave quando ela foi destruída. Não me considero uma ameaça à administração de Carpathia, mas se eles se preocupassem um pouco comigo, teriam encontrado um jeito de me tirar de Nova York antes que eu tivesse tido aquela ideia.
— Será que você não consegue trabalhar com o pessoal da emergência em Dallas/Fort Worth? Deve haver falta de funcionários no escritório da Pan-Con de lá, depois de tudo o que aconteceu.
— O pessoal de Carpathia já providenciou minha volta para Chicago. Tenho um pressentimento de que estou correndo perigo.
— Diga-lhes que não quer ir para lá, que tem muito trabalho para fazer em DFW.
— Vou tentar. Enquanto isso, vou mostrar-lhe este aparelho. Como seu velho amigo, Ray, quero que você prometa que se alguma coisa acontecer comigo ...
— Nada vai acontecer com você, Earl. Mas de qualquer maneira vou manter contato com sua esposa.

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Donny Moore calou-se após ouvir a trágica notícia. Permaneceu sentado, com os olhos arregalados, parecendo impossibilitado de falar. Buck começou a folhear os catálogos. Não conseguia concentrar-se. Sabia que viriam mais perguntas, mas não tinha ideia do que responder a Donny. E precisava da ajuda dele. A voz de Donny soou rouca de emoção.
— O que vai acontecer com esta igreja?
— Sei que o que vou dizer pode parecer um cliché — disse Buck — mas acredito que Deus proverá.
— Como Deus proverá alguém como o pastor Bruce?
— Sei o que você quer dizer, Donny. Qualquer que seja essa pessoa, ela nunca será igual ao pastor Bruce. Ele foi alguém muito especial.
— Ainda não consigo acreditar — disse Donny. — Mas acho que nada mais devia me surpreender.

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Rayford sentou-se diante dos controles do Condor 216.
— O que devo fazer para ter um co-piloto? — perguntou ele a Earl.
— Já encontraram alguém de uma outra linha aérea. Ele voará com você até São Francisco, onde McCullum subirá a bordo.
— McCullum? Ele foi meu co-piloto no trajeto da Nova Babilónia até Washington, Earl. Quando fui para Chicago, ele devia voltar para o Iraque.
— Só sei o que me contaram, Rayford.
— E por que vamos voar rumo oeste para chegarmos a leste, conforme Carpathia diz?
— Não tenho ideia do que está se passando aqui, Rayford. Sou novato nisso. Talvez você saiba mais que eu. O fato é que a maior parte da guerra e da devastação parece ter acontecido a leste do Mississippi. Você sabia disso? Parece que tudo foi planejado. Este avião foi desenhado e construído aqui em Dallas, mas não no DFW, onde poderia ter sido destruído. Está pronto para ser usado. Como você pode ver, ele tem os controles de um 757, embora seja muito maior. Se você sabe pilotar um 757, saberá pilotar este. Basta acostumar-se com o tamanho. As pessoas de que você precisa estão sempre à sua disposição. Pense nisso, rapaz. Nada parece ser surpresa para Carpathia, não é mesmo?
Rayford não sabia o que dizer. Não demorou muito para ele compreender.
Halliday prosseguiu.
— Você vai voar direto de Dálias para São Francisco. Meu palpite é que você não verá nenhuma devastação lá de cima, e também não correrá o risco de ser atacado. O pessoal do exército deve estar em algum lugar do oeste querendo lançar foguetes contra Carpathia, mas há pouquíssimas pessoas que conhecem a rota dele. Você vai parar em São Francisco apenas o tempo suficiente para livrar-se desse co-piloto e ficar com o outro.

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Buck tocou no braço de Donny, como se o estivesse acordando de um sono profundo. Donny olhou para ele com ar inexpressivo.
— Sr. Williams, tudo tem sido tão difícil, mesmo quando o pastor Barnes estava aqui. Agora não sei o que vamos fazer.
— Donny — disse Buck solenemente — você tem uma oportunidade aqui de fazer algo por Deus, e essa seria a maior homenagem que poderia prestar em memória de Bruce Barnes.
— Então me diga, senhor. Farei qualquer coisa.
— Antes de tudo, Donny, deixe-me dizer-lhe que dinheiro não é problema.
— Não quero ter lucro com alguma coisa que possa ser útil à igreja, a Deus e à memória de Bruce.
— Ótimo. Se você tiver lucro ou não, é problema seu. Só estou dizendo que necessito de cinco computadores, os melhores, os mais modernos e os mais compactos, mas que tenham potência, memória, rapidez e facilidade de comunicação, ou seja, com todas as configurações possíveis.
— Agora o senhor está falando a minha língua, Sr. Williams.
— Espero que sim, Donny, porque preciso de um computador praticamente sem limites. Quero poder levá-lo a qualquer lugar, mantê-lo em lugar discreto, armazenar tudo o que puder dentro dele e, acima de tudo, poder conectá-lo com qualquer pessoa do mundo sem que a transmissão seja rastreada. É possível?

— Bem, posso montar um computador para o senhor parecido com aqueles que os cientistas usam na selva ou no deserto, onde não há tomadas elétricas nem lugar para pendurá-los.
— Ah, sim — disse Buck. — Alguns repórteres nossos usam esse tipo de computador em regiões muito distantes. Esses computadores têm antena parabólica embutida?
— Acredite ou não, é mais ou menos isso. E posso incluir mais uma configuração para o senhor.
— O quê?
— Videoconferência.
— Você está dizendo que posso ver a pessoa com quem estou conversando naquele momento?
— Sim, se a pessoa tiver um computador semelhante ao seu.
— Quero tudo isso, Donny. E tenho pressa. E este é um assunto confidencial.
— Sr. Williams, essas máquinas podem valer mais de 20 mil dólares cada uma.
Buck achava que dinheiro não era problema, mas esta seria uma despesa que ele não poderia pôr na conta de Carpathia. Sentou-se e assobiou por entre os dentes.


TRÊS




— Dê a isto o nome de premonição ou o que quiser, Rayford, mas incluí uma coisa aqui para você.
Rayford já terminara de receber as instruções de Earl. Confiava nele. Sabia que, se Earl estava dizendo que ele podia pilotar aquela aeronave, é porque ele podia. Ainda pensava em insistir para que Earl ensinasse a ele e a seu co-piloto temporário alguma coisa a mais sobre decolagem, adaptação à aeronave e aterrissagem antes de arriscar-se a transportar outras pessoas. Rayford não estava preocupado com um acidente no qual ele e o anticristo viessem a perecer, mas não queria ser responsável por vidas inocentes, principalmente de sua esposa.
— Então, o que você incluiu para mim, Earl?
— Olhe para isto aqui — disse Earl — apontando para o botão que o capitão utiliza para comunicar-se com os passageiros.
— É o intercomunicador do capitão — disse Rayford. — E daí?
— Coloque a mão esquerda debaixo de sua poltrona e corra os dedos pela lateral.
— Encontrei um botão.
— Agora vou sair da cabina — disse Earl. — Aperte o botão do intercomunicador normal e fale alguma coisa. Depois, conte até três e aperte o botão debaixo de sua poltrona. Não retire os fones de ouvido. Rayford aguardou até Halliday sair. Fechou a porta da cabina e pegou o intercomunicador.
— Alô, alô, alô, Earl, atenção, atenção, atenção. — Depois de contar silenciosamente até três, Rayford apertou o botão sob sua poltrona. Ficou surpreso ao ouvir pelo receptor o que Earl Halliday estava falando quase num sussurro. — Rayford, saiba que estou falando em tom mais baixo do que se estivesse conversando com alguém. Se fiz a coisa certa, você será capaz de me ouvir perfeitamente de qualquer lugar da aeronave que eu estiver falando. Cada um dos alto-falantes também é um transmissor que conduz o som apenas para seus fones de ouvido. Fiz uma ligação de modo a não ser detectada, e esta aeronave já passou pelos mais eficientes rastreadores de grampos. Se, por acaso, a ligação for detectada, eu simplesmente vou dizer-lhes que achei que era isso que eles queriam.
Rayford saiu apressadamente da cabina.
— Earl, você é um génio! Não faço ideia do que vou ouvir, mas vai ser ótimo saber o que está se passando fora da cabina.

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Enquanto estava encaixotando todas as páginas impressas de Bruce, Buck ouviu o Range Rover chegando ao estacionamento. Quando Chloe entrou no escritório, ele já havia empacotado as páginas e o computador de Bruce dentro de uma caixa enorme. Enquanto arrastava a caixa, ele disse a Chloe:

— Dê-me uma carona até o escritório de Chicago e, em seguida, vá até o The Drake para ter a certeza de que nossas coisas ainda estão lá. Talvez seja melhor permanecermos naquele quarto até encontrarmos um lugar para morar mais perto daqui.
— Achei que você estaria pensando nisso — disse Chloe. Loretta está arrasada. Vai precisar de muita ajuda do pessoal daqui. O que vamos fazer a respeito do funeral?
— Você vai precisar dar uma ajuda nisso, Chloe. Vai ter de falar com o médico legista para liberar o corpo e tomar providências para que ele seja enviado para um necrotério perto daqui, essas coisas. Com todas essas mortes, tudo deve estar um caos, portanto eles talvez gostem de saber que pelo menos um corpo foi reivindicado. Cada um de nós vai precisar de um carro. Não tenho ideia para onde vão me mandar. Posso trabalhar no escritório de Chicago, tendo em vista que ninguém poderá ir a Nova York por um bom tempo, mas não tenho condições de prometer que ficarei por aqui o tempo todo.
— A pobre da Loretta pensou a mesma coisa, apesar de todo o seu sofrimento. Ela me contou que há muitos carros pertencentes ao pessoal da congregação que estão abandonados desde o Arrebatamento. A igreja costuma emprestá-los em momentos críticos como este.
— Ótimo — disse Buck. — Acho que você deve ficar com um deles. E lembre-se, vamos precisar tirar cópias de todo este material para os membros da congregação.
— Você não vai ter tempo de tirar cópia de tudo isso, vai?
— Não, mas estou confiante de que qualquer coisa que esteja aqui vai ser muito útil para todos.
— Buck, espere um pouco. Você não pode tirar cópias de todo esse material sem que alguém leia tudo antes. Deve haver coisas particulares aí dentro. E você sabe que existem referências diretas a Carpathia e ao Comando Tribulação. Não podemos nos arriscar a divulgar fatos como estes.
O ego de Buck foi atingido. Amava aquela mulher, mas ela era dez anos mais nova, e ele detestava quando Chloe parecia estar-lhe dizendo o que fazer, principalmente quando ela estava com a razão. Enquanto ele depositava a enorme caixa com os papéis e o computador na parte traseira do Range Rover, Chloe disse:
— Deixe que eu tome conta disso, meu bem. De hoje até domingo vou examinar esse material, linha por linha. No domingo teremos algo para contar aos crentes da Igreja Nova Esperança e poderemos avisá-los que dentro de uma semana ou pouco mais talvez tenhamos cópias prontas de parte do material.
— Está bem, está bem. Mas onde você vai fazer isso?
— Loretta nos convidou para ficarmos em sua casa. Ela mora numa casa antiga e grande, você sabe.
— Seria perfeito, mas detesto importunar os outros.
— Buck, nós não vamos importuná-la. Ela mal se dará conta de que estaremos lá. De qualquer forma, acho que ela está se sentindo tão sozinha e sofrendo tanto que talvez necessite de nós.
— Você sabe que provavelmente não estarei a seu lado o tempo todo — disse Buck.
— Já sou bem grandinha. Posso tomar conta de mim. Neste momento, eles já estavam dentro do Range Rover.
— Então para que você precisa de mim? — perguntou Buck.
— Preciso tê-lo por perto porque você é muito atraente.
— Falando sério, Chloe, nunca me perdoarei se a guerra atingir Monte Prospect e eu estiver em outra cidade ou país.
— Você se esqueceu do abrigo sob a igreja.
— Não me esqueci, Chloe. Estou apenas orando para que a situação nunca chegue a esse ponto. Será que, além do Comando Tribulação, alguém mais sabe da existência daquele lugar?
— Não. Nem mesmo Loretta. É um lugar muito pequeno. Se papai, Amanda, você e eu precisarmos ficar ali por algum tempo, acho que não será nada divertido.
Meia hora depois, Buck entrou na área de Chicago, onde se localizava o escritório do Semanário Comunidade Global.
— Vou providenciar dois telefones celulares para nós — disse Chloe. —Telefonarei para o The Drake e irei até lá para pegar nossas coisas. Também vou conversar com Loretta sobre o outro carro.
— Não seja mesquinha, Chloe. Providencie cinco telefones celulares.
— Cinco? — ela perguntou. — Nem sei se Loretta sabe lidar com telefone celular.
— Não estou pensando em Loretta. Só quero ter a certeza de que temos celulares sobrando.

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O Condor 216 estava equipado com muito mais acessórios que o Comunidade Global Um, se é que isso poderia ser possível. Não faltava nenhum detalhe, e os aparelhos de comunicação instalados eram de último tipo. Rayford dissera adeus a Earl Halliday, insistindo para que ele o informasse, assim que soubesse, se sua casa estava intacta e se sua esposa estava sã e salva.
— Você não vai gostar nem um pouco do que aconteceu ao nosso aeroporto — disse-lhe Rayford. — Você não vai pousar em O'Hare.
Rayford e seu co-piloto temporário haviam irritado Carpathia por terem feito uma decolagem e um vôo experimental antes de permitirem que os passageiros subissem a bordo. Rayford gostou do que fez. Embora tudo o que houvesse na cabina fosse idêntico a um 757, este avião maior e mais pesado assemelhava-se a um 747, e era necessário acostumar-se com ele. Agora que o Condor 216 já estava no ar, com todos os seus passageiros, rumo a São Francisco a uma altitude de 11 mil metros e voando a 950 km por hora, Rayford ligou o piloto automático e pediu a seu co-piloto que se mantivesse alerta.
— O que o senhor vai fazer? — perguntou o jovem.
— Apenas ficar sentado aqui — respondeu Rayford. — Pensando. Lendo.
Rayford já se comunicara com uma das torres de Oklahoma, e agora estava apertando o botão para dirigir-se a seus passageiros. "Potentado Carpathia e convidados, aqui fala o capitão Steele. Devemos chegar a São Francisco às 17 horas, horário do Pacífico. Esperamos que o céu esteja claro e que nosso vôo seja suave."
Depois disso, ele encostou-se no espaldar da poltrona e empurrou os fones de ouvido para trás da cabeça, fingindo ter desligado o aparelho. No entanto, deixou-os bem perto dos ouvidos de modo que pudesse captar qualquer som. O co-piloto, por estar com os fones de ouvido ligados, não podia ouvir nada. Rayford tirou um livro da maleta e abriu-o, colocando-o sobre os controles diante de si. Teria de lembrar-se de virar uma página de vez em quando. Ele não tencionava ler. Ficaria ouvindo atentamente. Deslizou a mão sob a poltrona e apertou discretamente o botão oculto.
A primeira voz que ouviu, clara como se estivesse conversando com ele por telefone, foi a de Amanda.
— Sim, senhor, entendo. O senhor não precisa preocupar-se comigo.
Agora era Carpathia quem falava:

— Acho que todos se alimentaram bem em Dallas. Em São Francisco teremos a bordo uma tripulação completa, que estará à nossa disposição até Bagdá e depois até a Nova Babilónia.
— Bagdá? — soou a voz de outra pessoa.
— Sim — disse Carpathia. —Tomei a liberdade de pousar em Bagdá para pegar os três leais embaixadores restantes. Nossos inimigos devem ter imaginado que os levaríamos diretamente para a Nova Babilónia. Vamos pegá-los em Bagdá e começaremos as reuniões no pequeno trajeto de lá até a Nova Babilónia.
— Sra. Steele, a senhora nos daria licença?
— Certamente — disse Amanda.
— Cavalheiros — dizia Carpathia, agora em tom de voz mais baixo, mas claro o suficiente para que Rayford entendesse cada palavra. Algum dia ele teria de agradecer a Earl Halliday em nome do reino de Cristo. Earl não demonstrara nenhum interesse em servir a Deus, pelo menos por ora, mas qualquer que fosse o motivo que o levara a fazer um favor daquele para Rayford, certamente traria muitos benefícios aos inimigos do anticristo. Carpathia prosseguia:
— O Sr. Fortunato ficou em Dálias para providenciar minha próxima transmissão via rádio. Farei isso daqui; no entanto, a transmissão parecerá ter saído de Dálias, novamente para despistar quaisquer inimigos da Comunidade Global. Vou precisar do Sr. Fortunato para as nossas reuniões, portanto permaneceremos em São Francisco até que ele possa chegar até nós. Assim que decolarmos de São Francisco, vamos acionar Los Angeles e a área da baía.
— A área da baía? — soou uma voz com sotaque acentuado.
— Sim, a área de São Francisco e de Oakland.
— O que o senhor quer dizer com 'acionar'? Carpathia respondeu em tom solene:
— 'Acionar' significa simplesmente 'acionar'. Quando pousarmos em Bagdá, as cidades de Washington, Nova York e Chicago terão sido dizimadas. Estas são apenas as três cidades dos Estados Unidos que mais sofrerão. Até agora, apenas o aeroporto e a região suburbana de Chicago foram atingidos. Dentro de uma hora tudo mudará. Os senhores já ouviram falar do que aconteceu em Londres. Cavalheiros, os senhores sabem o que significa uma bomba de cem megatons? Houve completo silêncio. Carpathia prosseguiu:
— Para os senhores terem uma idéia, os livros históricos contam que uma bomba de vinte megatons é mais poderosa que todas as que foram atiradas durante a Segunda Guerra Mundial, inclusive as duas que caíram sobre o Japão.
— A União das Nações Britânicas tinha de aprender a lição — disse novamente a pessoa de sotaque acentuado.
— Com certeza aprendeu — disse Carpathia. — Montreal, Toronto, Cidade do México, Dálias, a capital Washington, Nova York, Chicago, São Francisco e Los Angeles serão exemplos para aqueles que nos fizerem oposição.
Rayford desvencilhou-se dos fones de ouvido e desatou o cinto. Saiu da cabina e olhou firme para Amanda, chamando-a com um sinal. Carpathia olhou para ele e sorriu.
— Capitão Steele — ele o cumprimentou — está tudo certo?
— Temos um vôo tranquilo, se é isso o que o senhor está querendo saber. O melhor vôo possível. Mas não sei bem o que está acontecendo lá embaixo.
— É verdade — disse Carpathia, em tom sombrio. — Vou transmitir em breve minhas condolências à comunidade global.
Rayford puxou Amanda para perto da cabina.
— Buck e Chloe não iam pernoitar hoje no The Drake?
— Não houve tempo para conversarmos sobre isto, Ray — ela disse. — Não posso imaginar que outra opção eles teriam. Parece que nunca conseguirão voltar para Nova York.
— Acho que Chicago será o próximo alvo de alguém— disse Rayford. — Oh, não quero nem pensar — disse Amanda.
— Preciso avisá-los.
— Você vai arriscar-se a fazer um telefonema que pode ser rastreado? — ela perguntou.
— Vale a pena correr o risco para salvar a vida deles. Amanda abraçou o marido e voltou a sentar-se. Rayford discou de seu próprio telefone celular depois de assegurar-se de que seu co-piloto estava usando os fones de ouvido. Ao ser atendido pelo The Drake Hotel, de Chicago, Rayford pediu para falar com o casal Williams.
— Temos três hóspedes com o sobrenome de Williams — disseram-lhe. — Nenhum deles com o primeiro nome de Cameron, Buck ou Chloe.
Rayford coçou a cabeça.
— Ah, então me ligue com o Sr. Katz — ele disse.
— Herbert Katz? — perguntou a telefonista.
— Ele mesmo.
Após alguns instantes a telefonista retornou:
— Não responde. O senhor gostaria de deixar recado no voice mail deles?
— Gostaria — disse Rayford — mas gostaria também de ter a certeza de que o indicador luminoso permaneça aceso e que alguém informe que há um recado urgente para eles, caso passem pela recepção.
— Fique tranquilo, senhor. Faremos isso. Obrigada por ter ligado ao The Drake.
Quando o bip do voice mail soou, Rayford falou rapidamente.
— Meus filhos, vocês sabem quem está falando. Não percam mais tempo. Saiam do centro de Chicago o mais rápido possível. Por favor, acreditem no que estou falando.


Buck havia tido um sem-número de desentendimentos com Verna Zee no escritório de Chicago. Logo no início, ele achou que ela extrapolara ao mudar-se rápido demais para a sala de sua ex-chefe após Lucinda Washington ter desaparecido no Arrebatamento. Depois, quando Buck foi removido por ter deixado ostensivamente de cumprir o trabalho mais importante de sua vida, Verna foi promovida a chefe da sucursal de Chicago e passou a lhe dar ordens. Depois que ele foi promovido a editor, pensou em demiti-la. Mas resolveu mantê-la no emprego, desde que ela trabalhasse bem e não se intrometesse.
Até mesmo a mal-humorada Verna parecia chocada com as notícias quando Buck entrou repentinamente no escritório no final daquela tarde. Como era comum em tempos de crise internacional, o pessoal estava em volta do aparelho de TV. Alguns funcionários desviaram os olhos quando Buck entrou.
— O que você acha disto, chefe? — perguntou um deles, chamando a atenção dos demais. Verna Zee dirigiu-se a Buck.
— Há vários recados urgentes para você — ela disse. — Carpathia está tentando falar com você desde cedo. Há também um recado urgente de um tal de Rayford Steele.
Havia recados de todos os tipos. Para quem Buck deveria ligar? Ele não tinha ideia do que Carpathia estaria engendrando para alimentar a Terceira Guerra Mundial. Também não tinha ideia do que Rayford queria.
— O Sr. Steele deixou o número de seu telefone? — Buck perguntou a Verna.
— Você vai retornar a ligação dele em primeiro lugar?
— Como assim? — ele disse. — Acho que lhe fiz uma pergunta.
— Ele simplesmente disse para você ligar para o seu quarto no hotel.
— Ligar para meu quarto no hotel?
— Eu poderia ter feito isso, chefe, mas não sabia em que hotel você estava hospedado. Em que hotel você está?
— Não é da sua conta, Verna.
— Está bem, mil perdões! — ela disse, afastando-se. Era o que Buck desejava.
— Vou usar sua sala temporariamente — ele gritou para ela.
Verna parou e deu meia-volta.
— Por quanto tempo?
— Pelo tempo que for necessário — ele disse. Ela afastou-se zangada.
Buck apressou-se em fechar a porta. Telefonou para o The Drake e pediu que ligassem para seu quarto. Buck empalideceu ao ouvir o recado e o tom de medo na voz de Rayford.
Em seguida, Buck ligou para o serviço de informações para saber o número do telefone da concessionária da Land Rover em Arlington Heights. Ligou para lá e pediu para falar com o gerente de vendas, dizendo que se tratava de assunto urgente.
Em um minuto, o gerente já estava na linha. Assim que Buck se identificou, o gerente perguntou:
— Está tudo bem com o ...?
— O carro está ótimo, mas preciso localizar minha esposa. Ela está dirigindo o carro neste momento e preciso do número do telefone que está instalado lá dentro.
— Isso vai demorar um pouco.
— Você não vai entender a urgência disso. Só posso lhe dizer que se eu não conseguir o número agora, vou ter um ataque de remorso e devolver o carro.
— Um momento.
Alguns minutos depois, Buck discou o número do carro. Depois de quatro toques, ele ouviu a seguinte mensagem: "A pessoa com quem você deseja falar está fora do veículo ou fora da área de acesso. Por favor, tente ligar ..."
Buck desligou o telefone com força, tirou-o do gancho novamente e apertou o botão de rediscagem. Enquanto a campainha tocava, ele levou um susto quando a porta se abriu repentinamente e Verna Zee disse bem alto:
— Carpathia na linha para você.
— Vou ligar para ele em seguida! — disse Buck.
— Você vai o quê?
— Anote o número!
— Ligue 0-800-DEMiTIDO — ela disse.

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Rayford estava agitado. Esqueceu-se de fingir uma situação para ficar sentado ali imóvel e olhava firme para o céu de fim de tarde, com os fones de ouvido ligados e a mão esquerda apertando o botão secreto. Ouviu a voz do assessor de Carpathia: "Quem diria!"
—O quê? — perguntou Carpathia.
— Estou tentando pôr esse tal de Williams na linha para o senhor, e ele mandou sua secretária anotar o número.
Isso foi o suficiente para Rayford desistir de ligar para Buck novamente, porque agora tinha certeza de que ele estava no escritório de Chicago. E se alguém dissesse a Carpathia que Buck não podia atender porque estava falando com Rayford Steele, seria desastroso. Em seguida, soou a voz tranquilizadora de Carpathia: "Informe o número, meu amigo. Confio nesse jovem. Ele é um jornalista brilhante e não me faria esperar se não tivesse um bom motivo. Ele está tentando fazer a cobertura da maior reportagem de todos os tempos, você não concorda?"
Buck ordenou a Verna Zee que fechasse a porta e o deixasse em paz até que ele desligasse o telefone. Ela deu um suspiro profundo, balançou a cabeça e bateu a porta com força. Buck continuou a apertar o botão de rediscagem, odiando ter de ouvir o som daquela mensagem gravada. De repente, o intercomunicador tocou.
— Lamento aborrecê-lo — disse Verna, com uma doçura repugnante — mas há outra ligação urgente para você. Chaim Rosenzweig, de Israel.
Buck apertou com força o botão do intercomunicador.
— Acho que também vou ter de ligar para ele depois. Diga-lhe que lamento muito.
— Você devia dizer a mim que lamenta muito — disse Verna.
— Lamento muito, Verna — disse Buck com sarcasmo. — Agora, deixe-me em paz, por favor!
O telefone do carro continuava tocando. Buck desligou várias vezes após ouvir a mensagem gravada. Verna tocou novamente o intercomunicador.
— O Dr. Rosenzweig diz que é assunto de vida ou morte, Cameron.
Buck apertou rapidamente o botão que piscava.
— Chaim, sinto muito, mas estou no meio de um assunto urgente. Posso ligar para você em seguida?
— Cameron! Por favor, não desligue! Israel foi poupado dos terríveis bombardeios que seu país sofreu, mas a família do rabino Ben-Judá foi raptada e assassinada! A casa dele foi queimada e desabou. Estou orando para que o rabino esteja são e salvo, mas ninguém sabe onde ele está! Buck não sabia o que dizer. Abaixou a cabeça.
— A família dele foi assassinada? Você tem certeza?
— Foi um espetáculo público, Cameron. Eu receava que isso ia acontecer mais cedo ou mais tarde. Oh, por que ele teve de falar em público sobre sua opinião a respeito do Messias? Trata-se de uma coisa que não concordo, embora ele seja um amigo a quem respeito e em quem confio. Mas os fanáticos religiosos deste país odeiam quem acredita que Jesus é o Messias. Cameron, ele precisa de nossa ajuda.
O que podemos fazer? Não estou conseguindo falar com Nicolae.
— Chaim, faça um imenso favor para mim. Deixe Nicolae fora disso!
— Cameron! Nicolae é o homem mais poderoso do mundo, e ele se comprometeu a me ajudar, a ajudar Israel e a nos proteger. Com certeza, ele vai intervir e preservar a vida de um amigo meu!
— Chaim, estou suplicando-lhe para que você confie em mim. Deixe Nicolae fora disso. Ligo para você depois. Tenho pessoas de minha família que estão enfrentando problemas!
— Perdoe-me, Cameron! Ligue para mim assim que puder. Buck voltou a apertar o botão de rediscagem. Enquanto os números soavam em seu ouvido, Verna tocou o intercomunicador.
— Há alguém na linha para você, mas como você não quer ser incomodado ...
O telefone do carro de Chloe estava ocupado! Buck desligou e apertou o botão do intercomunicador.
— Quem é?

— Achei que você não queria ser incomodado.
— Verna, não tenho tempo para isso!
— Já que você quer saber, era sua esposa.
— Em que linha?
— Linha dois, mas eu disse a ela que você devia estar falando com Carpathia ou Rosenzweig.
— De onde ela estava ligando?
— Não sei. Ela disse que aguardaria sua chamada.
— Ela deixou o número?
— Sim. É ...
Após ouvir os dois primeiros números, Buck constatou que ela ligara do carro. Desligou o intercomunicador e apertou o botão de rediscagem. Verna enfiou a cabeça no vão da porta e disse:
— Não sou secretária, você sabe, e muito menos sua secretária!
Buck nunca esteve tão zangado como naquele momento. Olhou firme para Verna e disse:
— Vou me levantar daqui e fechar aquela porta com um pontapé. É melhor você sair do caminho.
O telefone do carro estava tocando. Verna ainda estava em pé ali. Buck levantou-se da cadeira e, com o fone ainda no ouvido, passou por volta da mesa atulhada de papéis de Verna. Os olhos dela arregalaram-se quando ele levantou a perna. Ela fugiu dali enquanto ele chutava a porta com toda força, quase derrubando as divisórias. Verna deu um grito, Buck quase chegou a querer que ela estivesse no vão da porta.
— Buck! — soou a voz de Chloe ao telefone.
— Chloe! Onde você está?
— Estou na saída de Chicago — ela disse. — Consegui os telefones e fui até o The Drake, e havia um recado para mim na recepção.
— Eu sei.
— Buck, alguma coisa na voz de papai me fez desistir de pegar as coisas que estão no nosso quarto.
— Ótimo!
— Mas o seu laptop, as suas roupas, as suas coisas e tudo o que eu trouxe de Nova York ...
— Seu pai parecia estar falando sério, não?
— Sim. Oh, Buck. Estou sendo seguida pela polícia! Fiz um retorno proibido em alta velocidade, atravessei o semáforo vermelho e andei sobre a calçada por alguns metros.
— Chloe, ouça! Você conhece aquele ditado que diz que é mais fácil pedir perdão que permissão?
— Você quer que eu fuja da polícia?
— Talvez você esteja salvando sua vida. Existe apenas um motivo para seu pai querer que a gente se afaste o mais que pudermos de Chicago e o mais rápido possível!
— Está bem, Buck, ore por mim! Não sei se vou conseguir!
— Vou ficar na linha com você, Chloe.
— Preciso das duas mãos para dirigir!
— Aperte o botão do viva-voz e ponha o fone no gancho! — disse Buck.
Em seguida, ele ouviu o som de uma explosão, pneus derrapando, um grito e silêncio. Depois de alguns segundos as luzes apagaram-se no escritório do Semanário Comunidade Global. Buck dirigiu-se para o saguão onde as lâmpadas de emergência perto do teto, acionadas por gerador próprio, iluminavam as portas.
— Vejam isto! — gritou alguém.
Os funcionários saíram pelas portas da frente e começaram a subir em cima de seus carros para enxergar um imenso ataque aéreo sobre a cidade de Chicago.

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Em sua escuta clandestina, Rayford ouvia horrorizado o que Carpathia estava comunicando a seus compatriotas. "Chicago deve estar sofrendo um ataque de represália, enquanto estamos conversando. Obrigado por sua colaboração e pela estratégia de não terem usado material radioativo. Tenho muitos empregados leais naquela área e, apesar de prever a perda de alguns no ataque inicial, não quero perder nenhum deles por causa de radiação."
Alguém mais falava. "Não é melhor assistirmos ao noticiário?"
"Boa ideia", disse Carpathia.
Rayford não conseguia mais permanecer sentado. Não sabia o que dizer ou fazer, mas simplesmente não podia permanecer naquela cabina, sem saber se seus entes queridos estavam salvos. Entrou no compartimento de passageiros quando a TV estava sendo ligada, mostrando as primeiras imagens de Chicago. Amanda estava ofegante. Rayford sentou-se ao lado dela para assistir ao noticiário.
— Você iria até Chicago para mim? — Rayford cochichou.
— Se você achar que é seguro...
— Não há perigo de radiação.
— Como você sabe disso?
— Vou-lhe contar depois. Só me diga se concorda para que eu peça permissão a Carpathia para você pegar outro avião em São Francisco.
— Faço qualquer coisa por você, Rayford. Você sabe disso.
— Preste atenção no que estou dizendo, meu bem. Se você não conseguir um vôo imediato, quer dizer, antes que o Condor decole de São Francisco, você deve retornar para cá. Entendeu?
— Entendi, mas por quê?
— Não posso lhe contar agora. Pegue o primeiro avião para Milwaukee. Se ele não decolar antes deste ...
— O quê?
— Só quero que você faça tudo certo, Amanda. Eu não suportaria perder você.
Após dar as notícias de Chicago, o canal a cabo interrompeu para os comerciais. Rayford aproximou-se de Carpathia.
— Senhor, posso lhe falar por um momento?
— Claro, capitão. Notícias terríveis de Chicago, não?
— Sim, terríveis. É por isso que estou querendo falar com o senhor. O senhor sabe que tenho familiares naquela região.
— Sim, e espero que estejam sãos e salvos — disse Carpathia.
Rayford teve vontade de matá-lo ali mesmo onde ele estava sentado. Sabia muito bem que ele era o anticristo e sabia também que Carpathia seria assassinado um dia e depois ressuscitaria pelas mãos de Satanás. Jamais passou pela cabeça de Rayford ser o assassino, mas naquele instante ele chegou a cogitar essa possibilidade. Lutou para não se descontrolar. A pessoa que mataria aquele homem seria um simples fantoche no meio de um imenso jogo cósmico. O assassinato e a ressurreição apenas serviriam para que Carpathia se tornasse ainda mais poderoso e satânico.
— Senhor — prosseguiu Rayford — eu gostaria de saber se seria possível minha esposa descer em São Francisco e voltar para Chicago para saber como está minha família.
— Eu teria satisfação em designar um de meus funcionários para fazer isso — disse Carpathia. — Basta você me fornecer os endereços.
— Eu me sentiria muito melhor se ela pudesse estar com eles, caso necessitem de ajuda.
— Como você quiser — disse Carpathia, e Rayford conteve-se para não dar um suspiro de alívio na frente daquele homem.

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— Alguém tem um telefone celular para me emprestar? gritou Buck tentando fazer-se ouvir no meio daquele alvoroço que tomara conta do estacionamento do Semanário Comunidade Global.
Uma mulher que estava perto entregou-lhe um telefone, e ele ficou espantado ao ver que era Verna Zee.
— Preciso fazer algumas ligações interurbanas — ele disse rapidamente. — Posso apagar todos os códigos e reembolsar você depois?
— Não se preocupe com isso, Cameron. Nosso pequeno feudo passou a ser insignificante.
— Preciso de um carro! — gritou Buck. Mas ele percebeu rapidamente que todos estavam se dirigindo para suas casas a fim de verificar se seus familiares estavam bem e calcular os prejuízos. — Quem pode me dar uma carona até Monte Prospect?
— Eu posso — murmurou Verna. — Não quero ver o que está acontecendo na outra direção.
— Você mora na cidade, não? — perguntou Buck.
— Morava até cinco minutos atrás — disse Verna.
— Talvez você tenha tido sorte.
— Cameron, se aquela explosão violenta foi nuclear, nenhum de nós vai atravessar a semana.
— Talvez eu conheça um lugar onde você possa ficar em Monte Prospect — disse Buck.
— Eu ficaria muito agradecida — ela disse.
Verna voltou ao escritório para pegar suas coisas. Buck aguardou no carro dela, fazendo ligações telefónicas. Começou com seu pai que morava no oeste.
— Estou muito feliz por você ter ligado — disse-lhe o pai.
— Faz horas que eu estou tentando ligar para Nova York.
— Pai, aqui está uma confusão danada. Fiquei só com as roupas do corpo, e não tenho muito tempo para conversar. Só liguei para saber se todos estão bem.
— Seu irmão e eu estamos bem — disse o pai de Buck. — Ele ainda está sofrendo por ter perdido sua família, é claro, mas estamos bem.
— Pai, este país está desmoronando. Vocês não vão estar bem até ...
— Cameron, não vamos começar novamente, está bem? Sei no que você crê, e se isso lhe traz conforto ...
— Pai! Isso me traz pouco conforto neste momento. Sofro por saber que demorei muito para conhecer a verdade. Já perdi muitos entes queridos. Não quero perder você também.
O pai de Buck riu, deixando o filho furioso.
— Você não vai me perder, rapaz. Ninguém parece querer nos atacar aqui. Acho que eles se esqueceram de nós.
— Pai! Milhões de pessoas estão morrendo. Não fale assim.
— Então, como vai sua nova esposa? Será que vamos conhecê-la um dia?
— Não sei, pai. Não sei onde ela está neste momento e não sei se você vai ter a oportunidade de conhecê-la.
— Você se envergonha de seu pai?
— Não é nada disso, pai. Preciso saber se ela está bem, e vamos ter de sair daqui de alguma maneira. Procure uma boa igreja aí, pai. Procure alguém que possa explicar-lhe o que está acontecendo.
— Não posso pensar em ninguém mais qualificado que você, Cameron. E você vai ter de esperar até que eu rumine tudo isso sozinho.


QUATRO




Rayford ouviu o pessoal de Carpathia preparando seu pronunciamento a ser transmitido por rádio.
— Existe alguma possibilidade de alguém saber que estamos dentro de um avião em pleno vôo? — perguntou Carpathia.
— Nenhuma — foi a resposta.
Rayford não podia afirmar com segurança, mas ninguém tinha uma pista exata para saber onde Carpathia estava, a menos que ele houvesse cometido um erro colossal.
Ao ouvir o som de uma batida na porta da cabina, Rayford desligou o botão secreto e virou-se com olhar de indagação. Era um assessor de Carpathia.
— Faça o que for possível para eliminar todas as interferências e providencie um contato com Dálias. Estaremos ao vivo, via satélite, dentro de mais ou menos três minutos, e o pronunciamento do potentado deve ser ouvido em qualquer lugar do mundo.
Que maravilha! pensou Rayford.

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Buck estava falando ao telefone com Loretta quando Verna Zee entrou no carro, sentou-se ao volante e atirou uma sacola enorme no banco traseiro. Ela tremia tanto que teve dificuldade para prender o cinto de segurança. Buck desligou o telefone.
— Verna, você está bem? Acabei de falar com uma senhora de nossa igreja. Ela tem um quarto com banheiro privativo para você.
Quando os colegas de Verna e Buck começaram a sair do pequeno estacionamento, o congestionamento de trânsito já começava a dissipar-se. A única iluminação do local vinha dos faróis dos carros.
— Cameron, por que você está fazendo isto para mim?
— Por que eu não deveria? Você me emprestou seu telefone.
— Mas tenho tratado você muito mal.
— E eu tenho pago com a mesma moeda. Sinto muito, Verna. Esta é a última vez na vida que deveremos nos preocupar tanto para conseguir fazer o que queremos.
Verna ligou o carro, mas continuou sentada com as mãos no rosto.
— Você quer que eu dirija? — perguntou Buck.
— Não, preciso só de alguns instantes.
Buck contou-lhe sobre a urgência que tinha de localizar um veículo e tentar encontrar Chloe.
— Cameron! Você deve estar nervoso demais!
— Sinceramente, estou.
Ela desatou o cinto de segurança e fez um gesto para abrir a porta.
— Leve meu carro, Cameron. Faça o que precisar fazer.
— Não — disse Buck. — Posso tomar seu carro emprestado, mas antes vamos descobrir um lugar para você ficar.
— Você não pode esperar nenhum minuto a mais.
— A esta altura, tudo o que posso fazer é confiar em Deus — disse Buck, apontando a direção que Verna deveria tomar.
Ela rumou para as cercanias de Monte Prospect e encostou o carro no meio-fio, em frente à linda e antiga casa de Loretta. Verna não permitiu que Buck perdesse tempo fazendo as apresentações.
— Já nos conhecemos de nome, portanto é melhor que Cameron se apresse — ela disse.
— Consegui um carro para você, Buck — disse Loretta. — Ele deve estar aqui dentro de alguns minutos.
— Muito obrigado, mas por enquanto vou usar o carro de Verna.
— Fique com o telefone durante o tempo que precisar — disse Verna, enquanto Loretta a convidava para entrar.
Buck empurrou o banco do motorista para trás e ajustou o espelho. Discou o número de Nicolae Carpathia, tentando retornar a ligação. O telefone foi atendido por um assessor.
— Vou dizer-lhe que o senhor retornou a ligação, Sr. Williams, mas neste momento ele está fazendo um pronunciamento de âmbito internacional. Talvez o senhor queira ouvi-lo.
Buck ligou o rádio imediatamente, enquanto acelerava o carro em direção ao único caminho que, em sua opinião, Chloe teria tomado para fugir de Chicago.
"Senhoras e senhores, estamos levando a vocês, de um lugar qualquer, o pronunciamento ao vivo do potentado da Comunidade Global, Nicolae Carpathia." Rayford virou sua poltrona e escorou a porta da cabina para deixá-la aberta. A aeronave estava no piloto automático. Ele e seu co-piloto estavam ouvindo o pronunciamento de Carpathia ao mundo. O potentado parecia estar se divertindo ao ser apresentado e piscou para dois de seus embaixadores. Fingiu lamber o dedo e passá-lo nas sobrancelhas, como se estivesse preparando-se para aparecer em público. Os outros contiveram um sorriso. Rayford gostaria de ter uma arma na mão.
No momento certo, Carpathia encenou um tom de voz emotivo.
"Irmãos e irmãs da Comunidade Global, estou me dirigindo a vocês com o coração mais pesaroso do que nunca. Sou um homem de paz, que foi forçado a revidar com armas os terroristas internacionais que desejavam prejudicar a causa da harmonia e da fraternidade. Estejam certos de que compartilho a dor que estão sentindo pela perda de entes queridos, amigos e pessoas de seu relacionamento. O número imenso de civis mortos deverá atormentar a mente desses inimigos da paz pelo resto de seus dias.
"Como vocês sabem, a maioria das dez regiões do mundo que fazem parte da Comunidade Global destruiu 90% de seu material bélico. Passamos quase dois anos desmontando, embalando, despachando, recebendo e montando novamente esse material na Nova Babilónia. Minha humilde prece era que jamais necessitássemos fazer uso dele.
"No entanto, alguns conselheiros sábios persuadiram-me a armazenar armas tecnologicamente superiores em locais estratégicos ao redor do mundo. Confesso que agi assim contra minha vontade. Minha opinião otimista e exageradamente positiva sobre a bondade do ser humano estava errada.
"Sou grato porque me deixei ser persuadido a manter essas armas de prontidão. Em meus sonhos, por mais extravagantes que fossem, nunca imaginei que teria de tomar a difícil decisão de fazer com que este poder se voltasse contra os inimigos em tão larga escala. Neste momento vocês já devem saber que dois ex-membros do exclusivo conselho executivo da Comunidade Global conspiraram de maneira cruel e maldosa contra minha administração, e outra pessoa permitiu impensadamente que as forças militares de sua região fizessem o mesmo. Essas forças foram conduzidas pelo ex-presidente dos Estados Unidos da América do Norte Gerald Fitzhugh, treinado pelo Exército americano, que contou com o apoio do armamento armazenado secretamente pela União das Nações Britânicas e pelo antigo Estado sobe domínio do Egito.
"Pelo fato de eu nunca ter precisado defender minha reputação de ativista contrário a guerras, tenho a satisfação dê informar a vocês que revidamos com rigor e presteza. Saibam que em qualquer lugar do mundo em que foi usado, o material bélico da Comunidade Global teve como objetivo específico atingir os locais onde se encontram os rebeldes militares. Asseguro-lhes que todas as mortes de civis e a destruição das grandes cidades da América do Norte e ao redor do mundo foram de responsabilidade dos rebeldes.
"Não mais existem planos de contra-ataques pelas forças da Comunidade Global. Reagiremos somente quando for necessário e esperamos que nossos inimigos entendam que para eles não existe nenhum futuro. Eles não podem ter êxito. Serão completamente destruídos.
"Sei que em tempos de guerra mundial como este, quase todos nós estamos aterrorizados e sofrendo muito. Posso garantir-lhes que compartilho seu sofrimento, mas meus temores foram superados pela confiança de que a maioria da comunidade global está unida, de corpo e alma, contra os inimigos da paz.
"Assim que eu estiver certo de que existe segurança e proteção, farei um pronunciamento por TV via satélite e pela Internet. Vocês receberão notícias minhas com frequência para que saibam exatamente o que está sucedendo e tomarei providências para que possamos dar passos largos para a reconstrução de nosso mundo. Podem ficar tranquilos, porque enquanto estivermos reconstruindo e reorganizando tudo, desfrutaremos a maior prosperidade e o lugar mais belo que este mundo pode nos oferecer. Que todos possamos trabalhar juntos para um objetivo em comum."
Enquanto os assessores e os embaixadores de Carpathia assentiam e davam-lhe tapinhas nas costas, Rayford olhou firme para Amanda e fechou a porta da cabina.

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O carro de Verna Zee era um calhambeque importado, automático, de quatro cilindros. Era barulhento e cheio de manhas. Em resumo, era uma lata-velha. Buck decidiu testar os limites do carro e reembolsar Verna posteriormente, se necessário. Acelerou em direção a Kennedy e rumou para o entroncamento Edens, tentando adivinhar que distância Chloe teria percorrido após ter saído do The Drake e levando em consideração o tráfego pesado que agora deveria estar intransitável.
Ele só não sabia se ela teria pegado a Lake Shore Drive (estrada que os habitantes da localidade chamavam de LSD) ou a Kennedy. Aquela era uma região que ela dominava mais que ele, mas isso agora não tinha a mínima importância. Chicago estava em chamas, e quase todos os motoristas que lotavam a Kennedy em ambas as direções estavam parados na pista, olhando boquiabertos para o holocausto. Buck daria tudo para estar dirigindo o Range Rover naquele momento.
Quando acelerou o calhambeque de Verna para passar pelo bloqueio, Buck percebeu que a ideia não havia sido só dele. As leis de trânsito e a civilidade deixam de existir em tempos como este, e havia quase que o mesmo número de carros tanto na pista como fora dela. Ele não tinha alternativa. Nem tinha idéia se estava destinado a sobreviver os sete anos da Tribulação. Seu único desejo era salvar o amor de sua vida, mesmo que para isso fosse necessário morrer.
Desde que se convertera, Buck considerava um privilégio dar sua vida a serviço de Deus. Em sua mente, qualquer que fosse o motivo da morte de Bruce, ele acreditava que o pastor havia sido um mártir para a causa de Deus. Arriscar sua vida no trânsito talvez não fosse uma atitude altruísta como aquela, mas de uma coisa ele estava certo: Chloe não hesitaria, se estivesse no lugar dele.
Os maiores congestionamentos vinham das pontes que atravessavam a pista onde o bloqueio terminava, e aqueles que estavam no meio do trânsito tinham de esperar sua vez para prosseguir. Motoristas irados tentavam obstruir a passagem. Buck não podia censurá-los. Teria feito a mesma coisa, se estivesse no lugar deles.
Ele havia armazenado o número do telefone do Range Rover e continuava a apertar o botão de rediscagem sempre que podia. Todas as vezes que ouvia o início da mensagem "A pessoa com quem você deseja falar...", ele desligava e rediscava novamente.

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Pouco antes de iniciar a aterrissagem em São Francisco, Rayford aproximou-se de Amanda.
— Vou deixar aquela porta aberta e fazer você sair deste avião o mais rápido possível — ele disse. — Não quero esperar pela checagem pós-vôo ou coisa parecida. Não se esqueça, é muito importante que seu vôo parta antes deste.
— Mas por quê, Ray?
— Confie em mim, Amanda. Você sabe que tenho as melhores das intenções. Assim que puder, ligue para meu telefone celular universal e me informe se Chloe e Buck estão bem.

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Buck saiu da rodovia expressa e dirigiu por vias marginais durante mais de uma hora até chegar a Evanston. Quando ele pegou a Rodovia Sheridan, que corria paralela ao lago, constatou que ela estava bloqueada, mas não havia guardas de trânsito por ali. Aparentemente todos os policiais e técnicos de emergência estavam atarefados. Buck foi tentado a avançar em direção aos cavaletes, mas não quis fazer isso com o carro de Verna. Desceu e afastou um dos cavaletes, o suficiente para poder passar. Pensou em deixar o cavalete fora do lugar, mas alguém gritou de um prédio de apartamentos:
— Ei! O que você está fazendo?
Buck olhou para cima e acenou na direção de onde vinha a voz.
— Imprensa! — ele gritou.
— Tudo bem! Prossiga!
Tentando agir do modo mais natural possível, Buck saiu lentamente do carro e recolocou o cavalete no lugar antes de prosseguir. Avistou um carro de polícia com as luzes pis¬cando e alguns homens uniformizados nas calçadas. Ele ligou o pisca-alerta do carro e foi em frente. Ninguém interceptou-lhe o caminho. Ninguém sequer apontou-lhe uma lanterna. Para Buck, parecia que todos haviam entendido que, se ele entrara em uma área proibida e prosseguia com tanta confiança, era sinal de que tinha certeza do que estava fazendo. Ele mal podia acreditar que estava prosseguindo com tanta facilidade, enquanto todas as vias de acesso à Rodovia Sheridan permaneciam bloqueadas. A dúvida agora era se ele conseguiria encontrar a Lake Shore Drive.

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Frustração era uma palavra muito suave para expressar o que Rayford sentia quando pousou o Condor 216 em São Francisco e taxiou em direção a um terminal particular. Lá estava ele realizando a tarefa indesejável de transportar o anticristo para onde ele desejasse ir. Carpathia acabara de pronunciar as mentiras mais deslavadas para o mundo inteiro em uma única transmissão via rádio. Rayford sabia, sem sombra de dúvida, que logo após a decolagem rumo à Nova Babilónia, São Francisco seria devastada pelo ar da mesma maneira que Chicago. O povo morreria. As empresas e indústrias sucumbiriam. Os centros de transportes seriam destruídos, inclusive aquele aeroporto. A primeira providência de Rayford era tirar Amanda daquele avião e daquele aeroporto fazendo-a seguir para a área de Chicago. Ele não quis sequer aguardar que a rampa fosse engatada do lado de fora. Ele mesmo abriu a porta e abaixou a escada em direção à pista. Fez um sinal para que Amanda se apressasse. Carpathia disse-lhe algumas palavras de despedida, enquanto ela passava rapidamente por ele. Rayford sentiu um alívio ao ver que ela simplesmente agradeceu e não parou. O pessoal de terra acenava para Rayford, tentando fazê-lo suspender a escada. Ele gritou:
— Temos uma passageira que precisa pegar um vôo de conexão!
Rayford abraçou Amanda e sussurrou:
— Conversei com a torre. Há um vôo para Milwaukee partindo de um portão no final deste corredor em menos de vinte minutos. Faça o possível para pegá-lo. — Ele beijou-a ela desceu as escadas correndo.
Rayford avistou o pessoal de terra aguardando que ele suspendesse a escada para que a rampa pudesse ser colocada na posição correta. Ele tinha um motivo muito importante para protelar, portanto resolveu não fazer caso do pessoal de terra. Voltou para a cabina e começou a fazer a checagem pós-vôo.
— O que está havendo? — perguntou o co-piloto. — Quero dar lugar ao outro co-piloto assim que puder.
Se você soubesse onde está se metendo, pensou Rayford. — Qual é o seu plano para esta noite?
— O que há com você? — perguntou o co-piloto. Rayford deu de ombros. Sentia-se como o menino holandês com o polegar no dique. Não podia salvar todo mundo. Seria capaz de salvar alguém?
Um assessor de Carpathia enfiou a cabeça no vão da porta da cabina.
— Capitão Steele, o pessoal de terra está chamando o senhor.
— Tomarei conta disso, senhor. Eles vão ter de aguardar nossa checagem pós-vôo. O senhor há de entender que este avião é novo para mim e precisamos ter certeza de que tudo está bem antes de cruzarmos o Pacífico.
— McCullum e uma tripulação inteira estão aguardando para subir a bordo. Estamos precisando dos serviços deles.
Rayford tentou demonstrar animação.
— Segurança em primeiro lugar.
— Então se apresse!
Enquanto o co-piloto procedia à segunda verificação dos itens do equipamento, Rayford pediu informações à torre sobre a posição do vôo para Milwaukee.
— Está atrasado cerca de doze minutos, Condor 216. Não deve atrapalhar você.
Mas vai, pensou Rayford.
Rayford saiu da cabina e entrou no compartimento dos passageiros.
— Com licença, senhor, mas o Sr. Fortunato não vai nos fazer companhia daqui em diante?
— Sim — respondeu um assessor. — Ele saiu de Dálias meia hora depois de nós, e não deve demorar a chegar.
Se depender de mim, ele vai demorar.

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Finalmente aconteceu uma situação inevitável para Buck. Ele bateu em um muro de tijolos. Já havia passado por cima de calçadas e não tinha conseguido evitar um choque com uma barreira de trânsito, onde a Rodovia Sheridan fazia uma curva que terminava na Lake Shore Drive. Ao longo do toda a LSD, ele avistou carros fora da pista, veículos de emergência com luzes pisca-pisca ligadas, e o pessoal do serviço paramédico acenando para ele. Buck pisou fundo no acelerador do carro de Verna Zee, e ninguém se atreveu a interceptá-lo. Todas as pistas da Lake Shore Drive estavam livres, mas ele ouviu pessoas gritando:
— Pare! Rodovia interditada!
O rádio estava informando que o engarrafamento tomara conta de toda a cidade. Um repórter disse que a situação estava assim desde o momento da primeira explosão. Buck queria ter tempo para esquadrinhar as saídas para a praia. Havia muitos lugares onde o Range Rover poderia ter saído da estrada, ter colidido ou sido abalroado. Se, ao sair do The Drake, Chloe tivesse percebido que não teria tempo de chegar à Rodovia Kennedy ou à Eisenhower, ela teria tentado a LSD. Mas quando Buck chegou à saída da Avenida Michigan que o levaria ao The Drake, ele constatou que teria de passar por cima de alguém ou voar. As barreiras que fechavam a Lake Shore Drive e a saída da Avenida Michigan pareciam cenário do filme Os Miseráveis. Carros de polícia e de bombeiros, ambulâncias, cavaletes, luzes de advertência interrompiam toda a área, orientados pelo pessoal da emergência.
Ao ouvir um grito ordenando-lhe que parasse, Buck deu uma guinada e derrapou por uns quinze metros. O pneu dianteiro direito estourou. O carro rodou enquanto o pessoal da emergência saía da frente em disparada.
Algumas pessoas gritaram palavrões, e uma policial graduada avançou de arma em punho. Buck fez menção de sair do carro, mas ela disse:
— Fique onde está, homem!
Buck abaixou o vidro com uma das mãos e esticou a outra para pegar sua credencial de imprensa. A policial o impediu. Colocou a arma na abertura do vidro e encostou-a na têmpora de Buck.
— Fique com as mãos para cima, seu sujo! — ela disse, abrindo a porta do carro.
Buck teve de sair do carro sem usar as mãos. A policial o obrigou a deitar-se no chão, com as pernas e os braços esticados.
Apareceram dois outros policiais que começaram a revistar Buck.
— Você tem alguma arma, faca, punhal? Ofendido, Buck respondeu:
— Não, só duas identidades.
Os policiais retiraram uma carteira de cada bolso traseiro de Buck, uma contendo sua verdadeira identidade e a outra contendo o documento falso em nome de Herb Katz.
— Qual dos dois você é, e qual é a sua?
— Sou Cameron Williams, editor do Semanário Comunidade Global. Eu me reporto diretamente ao potentado. O documento falso serve para facilitar minha entrada em países pouco indulgentes.
Um guarda jovem e esguio pegou o documento verdadeiro de Buck que estava na mão da policial.
— Deixe-me dar uma olhada nisso — ele disse com sarcasmo. — Se você reporta a Nicolae Carpathia, deve ter autorização nível 2-A, e não estou vendo — espere, acho que estou vendo uma aqui.
Os três policiais ajuntaram-se para ver aquele documento de identidade inusitado.
— Você sabia que pode ser punido com a morte se estiver portando uma autorização 2-A falsa?
— Sim, eu sei.
— Não temos condição de verificar a placa de seu carro porque os computadores estão congestionados.
— O que eu posso lhes dizer é que tomei este carro emprestado de uma amiga chamada Zee — disse Buck. — Vocês podem verificar isso antes de mandar este carro para o ferro-velho.
— Você não pode deixar este carro aqui!
— O que vou fazer com ele? — perguntou Buck. — Não vale mais nada. Está com um pneu furado e não tenho condição de consertá-lo esta noite.
— Nem nas próximas semanas, provavelmente — disse um dos policiais. — E para onde você estava indo com tanta pressa?
— Para o The Drake.
— Por onde você tem andado, cara? Não ouviu as últimas milícias? A maior parte da Avenida Michigan está torrada.
— Inclusive o The Drake?
— Isso eu não sei dizer, mas ele não deve estar intacto neste momento.
— Se eu subir a pé aquela ladeira e chegar à Avenida Michigan, vou correr o risco de ser contaminado por radiação?
— Os homens da Defesa Civil nos disseram que não há precipitação radioativa, o que significa que a explosão partiu do pessoal do Exército, tentando poupar o maior número possível de vidas humanas. De qualquer forma, se aquelas bombas fossem nucleares, a radiação já teria atingido uma distância muito maior.
— É verdade — disse Buck. — Posso ir agora?
— Não garantimos que você vá passar pelos guardas da Avenida Michigan.
— Vou tentar.
— Você tem sorte por estar portando essa autorização. Espero que ela seja verdadeira, para o seu próprio bem.

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Rayford não podia mais retardar a entrada dos tripulantes, e muito menos fingir que não os vira. Suspendeu a escada como se estivesse preparando a aeronave para receber a rampa, mas deixou-a um pouco fora de lugar. Com isso, ele sabia que a rampa jamais poderia ser engatada. Em vez de permanecer ali para ver o que sucederia, ele voltou à cabina e continuou seu trabalho. Não vou sequer abastecer a aeronave enquanto o avião de Amanda não decolar.
O co-piloto titular e a tripulação inteira só conseguiram subir a bordo depois de quinze minutos. Todas as vezes que o pessoal de terra informava pelo rádio que a aeronave já podia ser abastecida, Rayford dizia que ainda não terminara seu trabalho. Finalmente, um funcionário exasperado gritou pelo rádio:
— Qual o motivo de tanta demora, chefe? Disseram que este era um avião VIP e que o serviço devia ser rápido.
— Você está mal informado. Este é um avião de carga, e é novo. Tivemos um problema na cabina e estamos trocando a tripulação. Aguarde um pouco. Não ligue para cá, nós ligaremos para você.
Vinte minutos mais tarde, Rayford deu um suspiro de alívio ao constatar que o avião de Amanda já estava a caminho de Milwaukee. Agora ele podia mandar reabastecer a aeronave, cumprir todos os requisitos e preparar-se para o longo vôo sobre o Pacífico.
— Bela aeronave, não? — disse McCullum examinando a cabina.
— Bela aeronave — concordou Rayford. — Tive um dia muito cansativo, Mac. Gostaria de tirar uma soneca depois de estarmos na rota certa.
— O prazer é todo meu, capitão. Você pode dormir a noite inteira que eu cuidarei de tudo. Quer que eu acorde você quando iniciarmos a descida?
— Não vou ficar descansado se sair da cabina — disse Rayford. — Se você precisar de mim, estarei aqui.

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De repente, Buck se deu conta de que estava correndo um risco enorme. Não levaria muito tempo para Verna Zee descobrir que, pelo menos em uma ocasião, ele participara ativamente das atividades da Igreja Nova Esperança. Ele havia sido muito cuidadoso para não assumir uma função de líder na igreja, não falar em público nem ser conhecido por muitos crentes. Agora, uma de suas funcionárias — uma inimiga de longa data — tomaria conhecimento de algo que poderia arruiná-lo, até mesmo pôr sua vida em risco.
Resolveu ligar para a casa de Loretta pelo telefone de Verna.
— Loretta — ele disse — preciso falar com Verna.
— Ela está um pouco perturbada — disse Loretta. — Espero que você esteja orando por esta moça.
— Com certeza — disse Buck. — Como vocês estão indo?
— Estamos indo bem, como se poderia esperar de duas pessoas completamente estranhas uma para a outra — respondeu Loretta. — Estou contando minha história a ela. Imaginei que você gostaria que eu fizesse isso.
Após silenciar por alguns instantes, Buck disse:
— Quero falar com ela, por favor, Loretta.
Loretta chamou Verna. Buck foi direto ao assunto.
— Verna, você vai precisar de um carro novo.
— Oh, não! Cameron, o que aconteceu?

— Apenas um pneu furado, Verna, mas vai ser impossível consertá-lo nos próximos dias, e acho que não vale a pena você se preocupar com esse carro.
— Muito obrigada!
— Que tal eu substituí-lo por um carro melhor?
— Não tenho condições de contra-argumentar — ela resmungou.
— Prometo, Verna. Vou abandonar seu carro. Existe alguma coisa dentro dele que você necessite?
— Não me lembro de nada. Há uma escova de cabelo no porta-luvas. Gosto muito dela.
— Verna!
— Isso parece uma bobagem diante de tudo o que está acontecendo.
— Nenhum documento, coisas pessoais, dinheiro escondido ou algo semelhante?
— Não. Faça como achar melhor. Só não quero ter problemas por causa disso.
— Vou dizer aos policiais que, quando eles julgarem necessário, poderão rebocar o carro para qualquer ferro-velho e negociar com o pessoal de lá o preço da taxa de reboque.
— Cameron — cochichou Verna — esta senhora é estranha, meu amigo.
— Não tenho tempo para discutir esse assunto agora, Verna. Mas dê-lhe uma chance. Ela é uma pessoa meiga. E está abrigando você.
— Você não entendeu. Não estou falando mal dela. Só estou dizendo que ela tem ideias estranhas.
Enquanto subia a ladeira para chegar à Avenida Michigan, Buck decidiu cumprir a promessa feita a Loretta de que oraria por Verna. Como seria essa oração, ele não sabia. Ou ela se torna crente ou estou morto.
Ao avistar as dezenas de edifícios bombardeados ao longo da Avenida Michigan e por quase toda a Magnificent Mile, Buck não pôde deixar de lembrar-se de sua experiência em Israel, quando aquele país foi atacado pela Rússia. Ele podia imaginar o som das bombas e do calor das labaredas, mas naquela ocasião a Terra Santa havia sido milagrosamente salva. Agora não havia nenhuma intervenção. Buck apertou o botão de rediscagem do telefone de Verna, esquecendo-se de que sua última ligação havia sido para Loretta, e não para o telefone celular do Range Rover.
Quando percebeu que não havia aquela costumeira mensagem "A pessoa com quem você deseja falar", Buck orou para que Chloe atendesse. Mas quem atendeu foi Loretta, e ele não sabia o que dizer.
— Alô! Há alguém na linha?
— Perdoe-me, Loretta — ele disse.— Disquei o número errado
— Foi bom você ter ligado, Buck. Verna está querendo falar com você.
— Sobre o quê?
— É melhor que ela lhe explique.
— Cameron, telefonei para o escritório — disse Verna. — Alguns funcionários ainda estão lá, cuidando das coisas e prometendo trancar tudo quando forem embora. Há alguns recados para você.
— De Chloe?
— Não, sinto muito. Havia um do Dr. Rosenzweig, de Israel. O outro era de um homem que disse ser seu sogro. E há um terceiro de uma tal de Srta. White, pedindo que você vá buscá-la no Mitchell Field, em Milwaukee, à meia-noite.
Srta. White? pensou Buck. É a esperta da Amanda tentando ocultar nosso parentesco.
— Obrigado, Verna. Já entendi.
— Cameron, como você vai buscar alguém em Milwaukee sem carro?
— Ainda tenho algumas horas para pensar. Neste momento, ter tanto tempo assim até parece uma extravagância.
— Loretta ofereceu o carro dela, desde que eu queira dirigi-lo — disse Verna.
— Espero não ser necessário — disse Buck. — De qualquer forma, obrigado. Se eu precisar, ligo para você.
Em pé no meio do caos, Buck não se sentia um jornalista naquele momento. Ele deveria estar absorvendo tudo, gravando na memória, fazendo perguntas ao pessoal que comandava os trabalhos. Mas ninguém parecia estar comandando. Todos estavam trabalhando. E Buck não se preocupava em transformar tudo aquilo em uma reportagem. Sua revista e todos os principais veículos de informação eram controlados por Nicolae Carpathia, ou melhor, eram de propriedade dele. Por mais que ele lutasse para manter a situação sob controle, tudo parecia ter sido engendrado pelo impostor-mór. Pior ainda. Carpathia era bom nisso. Evidentemente, tinha de ser. Fazia parte de sua natureza. Buck detestava a idéia de estar sendo usado para divulgar propaganda e mentiras de que o povo estava feliz.
Mas, acima de tudo, naquele momento, exatamente ali, ele não estava preocupado com mais nada, a não ser Chloe. Um pensamento passou-lhe pela cabeça de que poderia perdê-la. Ele sabia que a veria novamente no final da Tribulação, mas será que teria forças para prosseguir sem ela? Chloe tornara-se o centro de sua vida, ao redor do qual tudo girava. Durante o curto período em que estiveram juntos, ela havia sido tudo o que ele esperava de uma esposa. Era verdade que eles estavam ligados por uma causa em comum que os fazia deixar de lado coisas e fatos insignificantes, que pareciam atrapalhar a vida de muitos casais. Mas ele percebeu que ela nunca seria uma mulher rancorosa ou rabujenta. Ela era altruísta e meiga. Confiava nele e dava-lhe todo o apoio possível. Ele não desistiria até encontrá-la. E jamais pensaria que ela estava morta, a não ser que o pior tivesse acontecido.
Buck discou o número do telefone do Range Rover. Quantas vezes ele já havia feito isso? Já sabia de cor o que aconteceria. Quando ele ouviu o sinal de ocupado, seus joelhos quase dobraram. Teria discado o número certo? Havia sido necessário discar novamente porque o botão de rediscagem ligaria para a casa de Loretta. Ele parou de repente na calçada, vendo só destruição à sua volta. Com os dedos tremendo, discou novamente o número e apertou o fone contra o ouvido. "A pessoa com quem você deseja falar..."
Buck praguejou e segurou o telefone de Verna com tanta força que quase o quebrou. Deu um passo à frente e esticou o braço para trás como se fosse arremessar aquele aparelho contra a parede de um edifício. Quase chegou a fazer isso, mas desistiu, imaginando que seria a coisa mais estúpida que podia fazer. Balançou a cabeça ao pensar na palavra que brotou em seus lábios ao ouvir aquela maldita gravação. Isso quer dizer que minha velha índole ainda está debaixo da superfície, ele pensou.
Buck estava furioso consigo mesmo. Por que razão, naquelas terríveis circunstâncias, ele teria discado um número errado?
Apesar de saber que ouviria a gravação novamente, ele apertou o botão de rediscagem. Agora a linha estava ocupada! Seria um defeito? Alguma brincadeira de mau gosto? Ou seria alguém, em um lugar qualquer, tentando usar aquele telefone?
Não havia garantia de que fosse Chloe. Podia ser qualquer pessoa. Podia ser um policial. Podia ser um atendente de emergência. Podia ser alguém que a encontrara nos escombros do Range Rover.
Não, ele não queria acreditar nisso. Chloe estava viva. Chloe estava tentando ligar para ele. Mas para onde ela ligaria? Não havia ninguém na igreja. E, pelo que ele sabia, não havia mais ninguém no escritório do Semanário Comunidade Global. Será que Chloe tinha o número do telefone de Loretta? Seria fácil conseguir. A dúvida era se ele deveria tentar ligar para os lugares que Chloe costumava ligar ou continuar a rediscagem na esperança de conseguir falar com ela no momento em que o telefone desocupasse.

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A chefe do serviço de bordo de uma enorme tripulação, cujo número de integrantes representava dois terços da lista total de passageiros, deu uma pancada seca na porta da cabina e abriu-a enquanto Rayford taxiava lentamente pela pista de decolagem. Ele afastou o fone de ouvido.
— Capitão — ela disse — há um passageiro que ainda não se sentou nem prendeu o cinto de segurança.
— Não vou parar — ele disse. — Você não pode resolver isso?
— O tal passageiro é o Sr. Carpathia.
— Não tenho autoridade sobre ele — disse Rayford. — Nem você.
— As regras da Administração Federal de Aviação mandam que ...
— Se você ainda não sabe, essa tal de "administração" não significa mais nada. Tudo agora é global. E Carpathia está acima do global. Se ele não quiser se sentar, que fique em pé. Já fiz o comunicado e você já deu as instruções, certo?
— Certo.
— Então, volte para o seu lugar, prenda o cinto e deixe que o potentado cuide de si.
— O senhor é quem sabe, capitão. Mas se esta aeronave for tão possante quanto um 757, eu não gostaria de estar em pé quando o senhor acelerar...
Mas Rayford já havia recolocado os fones de ouvido e estava posicionando a aeronave para a decolagem. Enquanto aguardava instruções da torre, ele deslizou a mão por baixo da poltrona e apertou o botão secreto. Alguém estava perguntando a Carpathia se ele não gostaria de sentar-se. Rayford notou que McCullum olhava para ele com ar de indagação, como se tivesse ouvido alguma coisa pelo seu aparelho que ele próprio não ouvira. Rayford soltou rapidamente o botão e ouviu McCullum dizer:
— A autorização já foi dada, capitão. Podemos fazer a manobra para a decolagem.
Rayford poderia ter feito uma manobra gradual e lenta, o suficiente para ganhar velocidade e decolar. Mas, de vez em quando, as pessoas gostam de uma decolagem mais violenta, certo? Rayford acelerou e levantou da pista com tanta força e velocidade que ele e McCullum foram empurrados contra o espaldar de suas poltronas.
— Iuuuuu! — gritou McCullum. — Vamos lá! Rayford tinha muito em que pensar. Por ser esta a sua segunda decolagem em uma aeronave praticamente desconhecida, ele precisava concentrar-se no que estava fazendo. Porém, não pôde resistir à tentação de apertar novamente o botão e ouvir o que teria acontecido com Carpathia. Em sua mente, ele visualizou o homem levando um tombo e escorregando até o fundo do avião. Que pena não haver uma porta traseira que pudesse ser aberta da cabina de comando!
— Oh, céus! — ele ouviu alguém gritar. — Potentado, o senhor está bem?
Rayford percebeu uma movimentação, como se os passageiros estivessem tentando desatar os cintos para ajudar Carpathia, mas como a aeronave ainda estava arremetendo, todos estavam presos nas poltronas por causa da força centrífuga.
— Estou bem — insistiu Carpathia. — A culpa foi minha. Não houve nada.
Rayford desligou o botão e concentrou-se na decolagem. No íntimo, ele desejava que Carpathia estivesse debruçado sobre uma das poltronas no início da arremetida. Isso faria com que ele desse um rodopio e caísse no chão. Provavelmente minha última oportunidade de dar-lhe um castigo.

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Ningéem está prestando atenção em Buck, mas ele insistia em agir discretamente. Virou uma esquina e escondeu-se nas sombras, apertando o botão de rediscagem uma vez atrás da outra para que não houvesse nenhuma ligação intermediária, caso o telefone estivesse sendo usado por Chloe. De repente, no curto espaço de tempo entre ouvir o sinal de ocupado, desligar e tornar a ligar, seu telefone tocou.
— Alô! Chloe! — Buck gritou, antes mesmo de apertar o botão para receber chamadas. Seus dedos tremiam tanto que ele quase derrubou o telefone. Apertou o botão e gritou:
— Chloe!
— Não, Cameron, é Verna. Ligaram do escritório dizendo que Chloe está tentando falar com você.
— Alguém deu a ela o número deste telefone?
— Não. Eles não sabem que você está usando o meu telefone.
— Estou tentando falar com ela, Verna. A linha está ocupada.
— Continue tentando, Cameron. Ela não disse onde nem como estava, mas pelo menos sabemos que está viva.
— Graças a Deus!


CINCO




Buck queria pular, gritar ou correr, mas não tinha ideia de que rumo tomar. Saber que Chloe estava viva foi a melhor de todas as notícias, mas agora ele queria agir. Continuou a apertar o botão de rediscagem. O telefone continuava ocupado. De repente, seu telefone tocou novamente.
— Chloe!
— Não, desculpe, Cameron, é Verna de novo.
— Verna, por favor! Estou tentando falar com Chloe!
— Calma, rapaz. Ela ligou novamente para o Semanário. Preste atenção. Onde você está agora e por onde andou?
— Estou na Avenida Michigan perto do Water Tower Place, ou melhor, onde foi o Water Tower Place.
— Como você chegou até aí?
— Pela Sheridan até a Lake Shore Drive.
— OK — disse Verna. — Chloe disse a alguém do escritório que ela está no outro lado da Lake Shore Drive.
— No outro lado?
— É tudo o que sei, Cameron. Você vai precisar dar uma olhada na estrada, do outro lado do lago, na pista em sentido contrário da Lake Shore Drive.
— Buck já estava caminhando enquanto falava. — Não sei como ela conseguiu chegar lá se estava seguindo pela LSD em direção ao sul.
— Também não sei — disse Verna. — Talvez ela tivesse esperança de poder seguir para o sul. Quando viu que não tinha condições, fez um retorno.
— Peça a alguém do escritório, caso Chloe ligue novamente para lá, que diga a ela para não usar o telefone. Que aguarde minha ligação, se possível.

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Quaisquer dúvidas que Rayford ainda tivesse sobre o incrível e instantâneo poder maligno de Nicolae Carpathia desapareceram poucos minutos após o Condor 216 ter decolado do Aeroporto Internacional de São Francisco. Pelo intercomunicador clandestino, ele ouviu um dos assessores de Carpathia perguntar:
— E agora, senhor? Sobre São Francisco?
— Acione — foi a resposta sussurrada.
O assessor, evidentemente falando pelo telefone, disse simplesmente:
— Já.
— Olhem pela janela daquele lado — disse Carpathia, com um tom de euforia na voz. — Vejam!
Rayford foi tentado a virar a aeronave para poder ver também, mas isso era algo que ele preferia esquecer a gravar aquela imagem na memória. Ele e McCullum olharam um para o outro. De repente, ouviram pelo fone de ouvido os gritos que vinham da torre de controle. "Socorro! Socorro! Estamos sendo atacados pelo ar!"
O abalo interrompeu as comunicações, mas Rayford sabia que as bombas arrancariam a torre inteira do chão mais o restante do aeroporto e talvez uma parte das circunvizinhanças.
Rayford não sabia por quanto tempo mais suportaria ser o piloto do demónio.

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Buck estava em razoável boa forma para um homem que entrara na casa dos trinta anos, mas naquele momento suas articulações doíam e o ar lhe faltava nos pulmões enquanto corria pela Avenida Chicago no sentido leste em direção ao Lago. Até que ponto Chloe poderia ter ido antes de fazer o retorno? Ela teve de fazer o retorno. Caso contrário, como poderia ter ido parar daquele lado?
Quando ele finalmente chegou à LSD, não havia carros na estrada. Sabia que ela estava interditada do lado norte na saída da Avenida Michigan. Então, com certeza também estaria interditada do lado sul. Ofegante, ele passou por cima das defensas, caminhou apressado pelo patamar entre as pistas, ouviu os diques das mudanças de luzes do semáforo e atravessou correndo para o outro lado. Seguiu em direção .ao sul, sabendo que Chloe estava viva, mas desconhecendo o que encontraria pela frente. Supondo que Chloe não estivesse correndo risco de perder a vida, a grande pergunta agora era se aqueles comentários impressos de Bruce — ou pior ainda, o computador — teriam caído em mãos erradas. Com certeza, algumas partes daquela narrativa deixavam claro que Bruce acreditava que Nicolae Carpathia era o anticristo.
Buck achava que não tinha forças para dar nenhum passo a mais. No entanto corria, apertando o botão de rediscagem repetidas vezes e segurando o telefone perto do ouvido. Ao sentir que não conseguiria prosseguir, sentou-se na areia e encostou-se na parte externa das defensas, ofegando. Finalmente, Chloe atendeu o telefone. Sem ter planejado o que dizer, Buck fez perguntas óbvias.
— Você está bem? Está ferida? Onde você está?
Ele não disse que a amava, que estava morrendo de medo de perdê-la ou que se sentia feliz por ela estar viva. Imaginou que ela já sabia de tudo isso.
A voz de Chloe parecia fraca.
— Buck, onde você está?
— Estou seguindo na direção sul pela Lake Shore Drive, ao sul da Avenida Chicago.
— Graças a Deus — ela disse. — Eu estava imaginando que você ainda teria de percorrer mais de um quilómetro.
— Você está ferida?
— Acho que sim, Buck. Não sei por quanto tempo fiquei inconsciente. Nem mesmo sei como cheguei até aqui.
— Onde você está, exatamente?
Buck tinha-se levantado e estava caminhando rapidamente. Não tinha forças para correr, apesar do medo que sentia de que ela pudesse estar sangrando ou em estado de choque.
— Estou num lugar muito estranho — disse Chloe, e Buck percebeu que a voz dela estava muito fraca. Ele sabia que ela estava dentro do carro porque o telefone não podia ser transportado. — O airbag foi acionado — ela acrescentou.
— O Rover ainda está em condições de ser dirigido?
— Não faço ideia, Buck.
— Chloe, você precisa me dizer onde devo procurá-la. Você está em lugar aberto? Conseguiu despistar aquele policial?
— Buck, o Range Rover parece estar preso entre uma árvore e um pilar de concreto.
— O quê?
— Eu estava a mais de 90 quilómetros por hora — ela disse — quando pensei ter visto uma rampa de saída. Peguei a tal rampa, e foi aí que ouvi a bomba explodir.
— A bomba?
— Sim, Buck, você deve estar sabendo que uma bomba explodiu em Chicago.
Uma bomba? pensou Buck. Talvez, pela misericórdia de Deus, ela não tivesse ouvido todas as bombas que explodiram cm seguida.
— Mas eu vi a viatura da polícia passar por mim. Talvez o policial não estivesse me perseguindo. Todo o trânsito da Lake Shore Drive parou quando o pessoal viu e ouviu a bomba, e o policial bateu no carro de alguém. Espero que ele esteja bem. Espero que não tenha morrido. Estou-me sentindo responsável.
— E onde você foi parar, Chloe?
— Aquilo que eu pensei que fosse uma saída, não era. Não cheguei a brecar, mas tirei o pé do acelerador. O Range Rover ficou no ar por alguns segundos. Acho que subi uns trinta metros. Há uma espécie de declive perto de mim. O carro bateu em cima de algumas árvores e caiu de lado. Depois disso, só sei que acordei e estava sozinha aqui.

— Onde? perguntou Buck, exasperado, mas sem poder culpar Chloe por não fornecer mais detalhes.
— Ninguém me viu, Buck — ela disse, como se estivesse sonhando. — Os faróis estão desligados. Estou presa no banco da frente, mais ou menos pendurada pelo cinto de segurança. Posso alcançar o espelho retrovisor. Vi carros passando correndo e, depois, não vi mais nenhum. Não vi mais luzes de emergência, nada, nada.
— Não há ninguém perto de você?
— Ninguém. Tive de desligar o carro e depois ligar novamente para que o telefone funcionasse. Estava orando para que você viesse me procurar, Buck.
Ela parecia prestes a cair no sono.
— Fique na linha, Chloe. Não fale, apenas fique na linha para que eu não perca seu paradeiro.
As únicas luzes que Buck via eram os pisca-piscas dos carros de emergência bem distantes, mais próximos ao centro da cidade, focos de incêndio aqui e ali, e algumas pequenas luzes dos barcos no lago. A Lake Shore Drive estava completamente escura. As únicas luzes vinham do setor norte, onde ele avistara os pisca-piscas dos carros. Ele passou por uma curva longa e semicerrou os olhos para conseguir enxergar a distância. Pela fraca luz da lua ele pensou ter visto uma defensa rasgada, algumas árvores e um pilar de concreto, um dos que sustentavam uma passagem subterrânea para chegar à praia. Ele caminhou lentamente e parou para olhar. Achou que estava a pouco menos de duzentos metros do local.
— Chloe! — ele disse ao telefone. Nenhuma resposta.
— Chloe! Você está na linha? Ele ouviu um suspiro.
— Sim, Buck. Mas não estou-me sentindo bem.
— Você tem condições de acender os faróis?
— Posso tentar.
— Tente. Mas cuidado para não se machucar.
— Vou tentar empurrar o corpo para cima segurando no volante.
Buck ouviu um gemido de dor. De repente, a distância ele avistou os faróis brilhando na areia em uma estranha posição vertical.
— Já vi você, Chloe. Aguente firme.

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No entender de Rayford, McCullum achava que ele estava dormindo. Esticado na poltrona do piloto, com o queixo encostado no peito, ele respirava pausadamente. Porém, continuava com o fone de ouvido ligado e a mão esquerda .apertando o botão oculto. Carpathia conversava em voz baixa, imaginando que nínguém da tripulação estivesse ouvindo seus segredos.
— Eu estava tão eufórico e com tantas ideias na cabeça — disse o potentado — que não consegui permanecer sentado. Espero não precisar mostrar o lugar que machuquei. — Seus lacaios caíram na gargalhada.
Acharam graça só porque a piada partia do patrão, pensou Rayford.
— Temos muitas coisas para conversar, muitas coisas para fazer — prosseguiu Carpathia. — Quando nossos compatriotas se juntarem a nós em Bagdá, começaremos a trabalhar imediatamente.
A destruição do aeroporto de São Francisco e de grande parte da área da baía já havia sido noticiada. Rayford viu medo nos olhos de McCullum. Talvez o co-piloto se sentisse mais confiante se soubesse que seu patrão, Nicolae Carpathia, tinha e teria todo o controle nas mãos durante os próximos anos.
De repente, Rayford ouviu a voz inconfundível de Leon Fortunato.
— Potentado — ele sussurrou — o senhor não acha que vamos precisar de substitutos para Hernandez, Halliday e para sua noiva?
Rayford endireitou-se na poltrona. Seria possível? Será que eles já teriam eliminado os três? E por que eliminar Hattie Durham? Ele se sentia responsável por ela ter-se tornado funcionária de Carpathia, amante dele e futura mãe de seu filho. Por que Carpathia não queria casar-se com ela? Será que ele não queria um filho? Então, por que demonstrara tanto entusiasmo quando Hattie comunicou a novidade a Rayford e Amanda? Carpathia estava rindo.
— Por favor, não inclua a Sra. Durham na mesma categoria de nossos saudosos amigos. Hemandez era dispensável. Halliday foi uma necessidade temporária. Vamos substituir Hernandez, mas não devemos nos preocupar com a substituição de Halliday. Ele foi útil na ocasião. Pedi que você substituísse Hattie porque o trabalho era muito complicado para ela. Quando a contratei, eu já sabia de suas limitações. Mas precisava de uma assistente, e queria que fosse ela. Agora vou usar a desculpa da gravidez para afastá-la do escritório.
— O senhor quer que eu cuide desse assunto? — perguntou Fortunato.
— Eu mesmo vou dizer a ela, se é isso que você está querendo dizer — respondeu Carpathia. — Eu gostaria que você me conseguisse uma nova equipe de secretárias.
Rayford lutou para não se descontrolar. Não queria que McCullum percebesse. Ninguém podia saber que Rayford estava ouvindo aquela conversa. Mas agora ele estava ouvindo coisas que jamais quis ouvir. Talvez fosse útil tomar conhecimento dessas coisas. Talvez servissem para o Comando Tribulação. Porém a vida agora quase não valia mais nada. Em questão de horas ele perdera Hernandez, que acabara de conhecer, e Earl Halliday, um velho amigo e conselheiro. Havia prometido a Earl que se comunicaria com sua esposa, caso alguma coisa acontecesse. Ele não esperava por isso.
Rayford desligou o intercomunicador e ligou o botão que lhe permitia falar com seu co-piloto pelos fones de ouvido.
— Acho que vou descansar um pouco em meu alojamento — ele disse.
McCullum assentiu, e Rayford saiu da cabina dirigindo-se a seu alojamento que era muito mais requintado que o do .antigo Comunidade Global Um, agora destruído. Tirou os sapatos e deitou-se de costas. Pensava em Earl. Pensava em Amanda. Pensava em Chloe e Buck. E estava preocupado. Tudo começara com a morte de Bruce. Rayford virou-se de lado, enterrou o rosto nas mãos e chorou. Quantas pessoas queridas ele poderia ter perdido só naquele dia?

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O Range Rover estava preso entre o tronco e os galhos mais baixos de uma árvore enorme e um pilar de concreto
— Desligue os faróis, meu bem! — gritou Buck. — É melhor não chamarmos a atenção de ninguém.
As rodas do carro estavam prensadas contra o pilar, e Buck não entendeu como a árvore conseguia sustentar o peso. Ele precisou subir na árvore para enxergar através do vidro da porta do motorista.
— Você tem condições de alcançar a ignição? — ele perguntou.
— Sim, tive de desligar o carro porque as rodas estavam girando contra o pilar.
— Então, dê meia-volta na chave e abaixe o vidro para que eu possa ajudar você.
Chloe parecia estar pendurada, presa apenas pelo cinto de segurança.
— Não sei se vou conseguir alcançar o botão do vidro daquele lado.
— Você é capaz de soltar o cinto sem se machucar?
— Vou tentar, Buck, mas estou toda machucada. Não sei se fraturei algum osso e nem sei dizer qual.
— Tente passar o braço ao redor de seu corpo e soltar o cinto. Depois, apóie-se no vidro do lado do passageiro e abaixe este aqui.
Mas Chloe estava tão enrolada no cinto que só conseguiu virar o corpo e dar meia-volta na chave de ignição. Empurrou o corpo com a mão direita para alcançar o botão e levantar o vidro. Quando ele se abriu, Buck tentou segurá-la com as duas mãos.
— Eu estava preocupado demais com você — ele disse.
— E eu também — disse Chloe. — Acho que me machuquei mais do lado esquerdo. Devo ter fraturado o tornozelo, torci o pulso e sinto muita dor no joelho e no ombro do lado esquerdo.
— Faz sentido, pelo que estou vendo — disse Buck. — Será que não vai doer muito se eu segurá-la desta maneira para que você possa firmar o pé em bom estado no vidro do lado do passageiro?
Buck debruçou-se na janela do Range Rover e esticou o corpo para colocar um dos braços sob o braço direito de Chloe e passar o outro ao redor da cintura dela. Conseguiu levantá-la assim que ela soltou o cinto de segurança. Ela era pequena e delicada, mas sem ter onde se apoiar ou se segurar, Buck tinha receio de derrubá-la. Chloe conseguiu soltar o pé que estava preso debaixo do painel e levantou o corpo devagar. Agora seus pés estavam apoiados na porta do passageiro e a cabeça perto do volante.
— Você está perdendo sangue?
— Acho que não.
— Espero que não tenha havido hemorragia interna.
— Buck, tenho certeza de que já teria morrido se tivesse havido hemorragia interna.
— Então, quer dizer que posso tentar tirá-la daí?
— Por pior que seja, Buck, quero sair daqui. A porta pode ser aberta para que você possa me ajudar a sair do carro?
— Antes preciso fazer-lhe uma pergunta. É assim que você imaginou que seria sua vida de casada? Eu lhe compro carros caríssimos e você os destrói logo no primeiro dia?
— Em situação normal, isso até poderia ser engraçado ...
— Desculpe-me.
Buck orientou Chloe para que ela usasse o pé e o braço em bom estado para apoiar-se e empurrar o corpo enquanto ele abria a porta. A parte debaixo da porta raspou no pilar. Para surpresa de Buck, o carro havia sofrido poucas avarias pelo que ele conseguiu enxergar naquele local escuro.
— Deve haver uma lanterna no porta-luvas — ele disse.
Chloe entregou-a a Buck. Ele acendeu a lanterna e examinou a parte externa do carro. Os pneus estavam bons. Havia um pequeno amassado na grade da frente, mas nada sério. Ele desligou a lanterna e colocou-a no bolso. Gemendo e choramingando, Chloe conseguiu sair do carro com a ajuda de Buck.
Enquanto ambos se ajeitavam para sentar-se sobre a porta esquerda do carro tombado, Buck percebeu que aquele veículo pesado e em condição precária estava balançando.
— Você precisa sair daqui — ele disse.
— Dê-me a lanterna — disse Chloe. — Ela apontou-a para cima. — Acho que será mais fácil eu subir até o topo do pilar. A altura é de pouco mais de meio metro.
— Está bem — ele disse. — Você acha que vai conseguir?
— Acho que sim — ela disse. — Sou boa nisso.
— Depois você me conta essa história.
Chloe deu um salto tentando agarrar-se ao topo do pilar com a mão em bom estado, e pediu a Buck que a empurrasse até que ela estivesse com o maior peso do corpo em cima do pilair. Quando ela deu o último impulso com a perna em bom estado, o Range Rover inclinou-se um pouco, quase a ponto de soltar-se dos galhos da árvore. A árvore e o Range Rover estremeceram e começaram a balançar.
— Buck! Saia daí! Você vai ser esmagado!
Buck estava com os braços e as pernas estendidos sobre a lateral do Range Rover. Agora, o carro estava inclinando-se em direção ao pilar. Os pneus raspavam no concreto, deixando marcas enormes. Quanto mais Buck tentava mover-se, mais rápido o carro se inclinava. Ele percebeu que, para sobreviver, teria de afastar-se daquele pilar. Agarrou com força no bagageiro e empurrou o corpo em direção ao teto do Range Rover. Os galhos soltaram-se da parte debaixo do carro e bateram em sua cabeça, arranhando-lhe a orelha. O carro movimentava-se cada vez mais, o que era um bom sinal para Buck — desde que ele não caísse dali. Primeiro foi o carro que se movimentou, depois foi a árvore e, em seguida, ambos começaram a despencar. Buck imaginou que o Range Rover, depois de livrar-se da pressão dos galhos, cairia cerca de um metro até o chão. Ele apenas esperava que o carro caísse com as rodas para baixo. Mas ele não caiu assim.
Com os pneus esquerdos prensados contra o concreto e os galhos curvos empurrando-o para a direita, o veículo pesado moveu-se também para a direita. Buck cobriu a cabeça com as mãos para não se ferir nos galhos durante a queda do Range Rover. Buck quase foi atirado de encontro ao pilar. Assim que o Range Rover se soltou dos galhos, começou a virar sobre os pneus direitos e quase tombou. Se tivesse virado completamente, Buck teria sido esmagado na árvore. Mas assim que os pneus direitos bateram no chão, o carro se equilibrou, e os pneus esquerdos afastaram-se do concreto. Com a força da queda, o lado esquerdo do veículo bateu no concreto, e finalmente o carro parou com as rodas assentadas no chão. Agora, a distância entre o concreto e o veículo era menor que dois centímetros, mas ele acomodou-se sobre o chão irregular. Os galhos quebrados estavam pendurados acima dele. Buck utilizou a lanterna para iluminar o carro. Com exceção do amassado na grade e dos arranhados nas laterais — de um lado por causa do concreto e do outro por causa dos galhos das árvores — o carro até que estava em bom estado.
Buck não tinha ideia de como fazer o airbag voltar ao normal, portanto resolveu arrancá-lo e preocupar-se com isso mais tarde se o Range Rover ainda pudesse rodar. A lateral de seu corpo doía, e ele tinha certeza de ter fraturado uma costela quando o carro bateu no chão. Desceu do carro e ficou debaixo da árvore. Os galhos não permitiam que ele enxergasse Chloe.
— Buck! Você está bem?
— Não saia daí, Chloe. Vou tentar fazer alguma coisa. Buck entrou no carro pelo lado direito, segurou no volante e deu partida. O carro pegou. Ele o examinou cuidadosamente para saber se não havia vazamentos ou peças superaquecidas. O Rover estava ligado no automático e tração nas quatro rodas. Quando Buck tentou fazer o carro rodar, parecia que as rodas estavam dentro de um sulco. Ele mudou a alavanca do câmbio e passou para tração em todas as rodas, acelerou o motor e pisou na embreagem. O carro desvencilhou-se das árvores e, em questão de segundos, estava sobre a areia. Buck fez uma curva acentuada à direita e aproximou o carro das defensas que separavam a areia da Lake Shore Drive. Dirigiu uns 400 metros até encontrar um local onde conseguiu atravessar pelas defensas e dar meia-volta. Retornou à passagem elevada onde Chloe estava, sustentando-se em um pé só e segurando o pulso esquerdo com a outra mão. Para Buck ela estava com uma aparência ótima.
Ele aproximou-se dela e apressou-se em ajudá-la a entrar no carro. Atou o cinto de segurança da esposa e fez uma ligação telefónica antes de entrar no carro.
— Loretta! Chloe está salva. Ela está um pouco machucada, e eu quero levá-la para ser examinada o mais rápido possível. Eu ficaria muito grato se você pudesse encontrar um médico da igreja que não estivesse muito sobrecarregado de trabalho.
Buck tentou dirigir com muito cuidado para não aumentar a dor de Chloe. No entanto, ele tinha pressa. Quando chegou à enorme barreira da Avenida Michigan com a LSD, ele virou à esquerda e subiu a ladeira por onde havia passado a pé. Avistou o carro de Vema e não fez caso dos sinais de advertência dos policiais com quem ele conversara havia pouco tempo. Acelerou pela LSD, contornou as barreiras da Rodovia Sheridan e seguiu as orientações de Chloe para chegar a Dempster. Em breve ele já estava de volta aos subúrbios da região noroeste.
Loretta e Vema estavam olhando pela janela quando ele chegou. Foi então que ele se lembrou de uma coisa. Saltou do carro e foi até o porta-malas. Pegou as chaves desajeitadamente e abriu a fechadura. Lá estavam as páginas de Bruce, todas espalhadas. O computador também estava lá, com os telefones que Chloe comprara.
Chloe — ele disse, e ela virou-se lentamente. — Preciso ligar para Carpathia assim que eu levá-la para dentro de casa.


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Rayford estava de volta à cabina de comando. À medida que a noite avançava, a cabina ficava cada vez mais silenciosa. A conversa transformara-se em algumas poucas palavras. Os dignitários estavam bem alimentados pela tripulação, e Rayford teve a impressão de que eles estavam-se preparando para o trabalho longo e difícil que tinham pela frente. Rayford despertou sobressaltado e imaginou que seu dedo havia escorregado do botão secreto. Apertou-o novamente, mas não ouviu nada. De qualquer forma, já ouvira mais do que desejava. Decidiu estender as pernas.
Quando voltou ao compartimento dos passageiros para assistir à programação em uma das TVs que estavam no fundo da aeronave, ninguém lhe deu atenção, a não ser Carpathia. Alguns estavam cochilando e outros sendo atendidos pelos tripulantes, que limpavam as bandejas e providenciavam travesseiros e cobertores.
Carpathia balançou a cabeça afirmativamente, sorriu e acenou para Rayford.
Como ele pode fazer isto? perguntou Rayford a si mesmo.
Bruce disse que o anticristo só seria incorporado por Satanás na metade do período da Tribulação, mas com certeza Carpathia já é a encarnação do mal.
Rayford não podia deixar transparecer que conhecia a verdade, apesar de Carpathia estar ciente de suas crenças cristãs. Rayford limitou-se a fazer um movimento afirmativo com a cabeça e prosseguiu. A TV mostrava reportagens ao vivo do mundo inteiro. As profecias da Bíblia se cumpriam. Este era o Cavalo Vermelho do Apocalipse. A seguir viriam mortes por causa da fome e pragas até que um quarto da população da terra, que sobrou após o Arrebatamento, fosse eliminada. O telefone celular universal de Rayford vibrou em seu bolso. Poucas pessoas conheciam seu número. Graças a Deus pela tecnologia, ele pensou. Não queria que ninguém o ouvisse. Caminhou sorrateiramente até o fundo do avião e ficou perto de uma janela. A noite estava tão negra quanto a alma de Carpathia.
— Rayford Steele — ele disse.
— Papai!
— Chloe! Graças a Deus! Chloe, você está bem?
— Sofri um pequeno acidente de carro, papai. Só queria dizer-lhe que você salvou a minha vida novamente.
— Como assim?
— Recebi o recado que você deixou no The Drake — ela disse. — Se eu tivesse perdido tempo indo até nosso quarto, provavelmente não estaria aqui.
— E Buck? Ele está bem?
— Ele está ótimo. Não teve tempo de retornar a ligação de um certo sujeito, e está tentando fazer isso neste momento.
— Agora preciso desligar — disse Rayford. — Voltarei a ligar para você.
Rayford caminhou de volta à cabina, tentando não demonstrar pressa. Ao passar por Fortunato, viu que ele estava entregando o fone para Carpathia.
— Williams, de Chicago — ele disse. — Até que enfim! Carpathia fez uma careta ao ver a reação exagerada de Leon.
Quando Rayford já estava perto da cabina, ouviu Carpathia dizer entusiasmado:
— Cameron, meu amigo! Eu estava preocupado com você. Rayford acomodou-se rapidamente na poltrona e ajeitou os fones de ouvido. McCullum olhou para ele com ar de curiosidade, mas Rayford não lhe deu atenção. Fechou os olhos e apertou o botão secreto.
— Estou curioso a respeito da cobertura jornalística — Carpathia estava dizendo. — O que aconteceu aí em Chicago? Sim — sim — devastação, eu entendo — sim. Sim, uma tragédia ..."
Repugnante, pensou Rayford.
— Cameron — prosseguia Carpathia, — seria possível você viajar para a Nova Babilónia nos próximos dias? Ah, entendo
— Israel? Sim, acho sensato. As tais das terras santas foram poupadas novamente, não? Eu gostaria de uma cobertura completa das reuniões de alto nível em Bagdá e na Nova Babilónia. Gostaria de ter o seu dedo nisso, mas Steve Plank, seu velho amigo, tem condições de dar conta do recado. Você e ele podem trabalhar juntos para que a reportagem saia em toda a nossa mídia impressa...
Rayford estava ansioso para falar com Buck. Admirava a coragem e habilidade de seu genro para estabelecer sua própria agenda e até mesmo conseguir declinar com gentileza as instruções sugeridas por Carpathia. Rayford gostaria de saber por quanto tempo Carpathia aguentaria aquilo. Por ora, ele aparentemente respeitava Buck e ainda desconhecia a quem Buck era verdadeiramente leal, assim Rayford esperava.
— Bem — Carpathia estava dizendo — claro que estou sofrendo com tudo isso. Mantenha contato e nos ligue de Israel.



SEIS




Sentado diante da mesa do café da manhã, com os olhos turvos, Buck sentia as orelhas ardendo e as costelas doloridas. Somente ele e Loretta tinham-se levantado. Ela estava se aprontando para ir ao escritório da igreja após assegurar-se de que não precisaria tomar providências quanto ao corpo de Bruce nem quanto ao culto em memória dele, que faria parte das programações matinais do domingo. Verna Zee estava dormindo em um pequeno quarto no pavimento inferior da casa.
— É tão bom ter novamente a companhia de outras pessoas neste lugar — disse Loretta. — Vocês podem permanecer aqui pelo tempo que desejarem.
— Somos muito gratos — disse Buck. — Amanda talvez durma até o meio-dia. Depois, ela terá de falar com o pessoal do escritório do médico legista. Chloe não dormiu muito bem por causa do tornozelo. No entanto, agora ela está dormindo profundamente, e espero que demore para acordar.
Buck usara aquela mesa para pôr em ordem todas aquelas páginas das transcrições de Bruce que se haviam espalhado no porta-malas do Range Rover. Teve um trabalho enorme para verificar o texto e separar o que deveria ser copiado e distribuído. Empilhou os papéis e desempacotou os cinco telefones celulares universais que Chloe comprara. Felizmente, eles haviam sido acondicionados em espumas e não sofreram avarias no acidente.
Buck dissera a Chloe para não economizar, e ela seguira suas instruções. Ele não se atrevia a calcular o preço total, mas aqueles telefones tinham todos os acessórios possíveis, inclusive podiam receber chamadas de qualquer lugar do mundo, graças a um chip de satélite embutido.
Depois que Loretta foi até a igreja, Buck examinou as baterias dos telefones, leu rapidamente o manual de instruções para aprender a manuseá-los e tentou fazer a primeira ligação. Desta vez ficou satisfeito por ter a mania de guardar números antigos de telefones. Bem no fundo de sua maleta estava o número de que ele necessitava. Ken Ritz, um ex-piloto comercial e agora proprietário de uma frota de jatos para fretamento, já transportara Buck em um deles, partindo de uma minúscula pista de Waukegan, Illinois, para Nova York no dia seguinte aos desaparecimentos.
— Sei que o senhor está muito ocupado, Sr. Ritz, e provavelmente não necessita de um cliente como eu — disse Buck — mas saiba que disponho de uma verba grande e polpuda, e posso pagar mais que qualquer outra pessoa.
— Minha frota foi reduzida a um jato — disse Ritz — que se encontra em Palwaukee, e neste momento ele e eu estamos disponíveis. Estou cobrando dois dólares por milha e mil dólares por dia parado. Para onde você quer ir?
— Israel — disse Buck. — E preciso estar de volta no sábado à noite, o mais tardar.
— Percurso muito cansativo — disse Ritz. — É melhor sairmos ao anoitecer e pousarmos lá no dia seguinte. Encontre-se comigo em Palwaukee às sete para acertarmos tudo.

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Finalmente Rayford conseguiu dormir profundamente durante várias horas, de acordo com McCullum, chegando até a roncar.
Cerca de uma hora antes de chegarem a Bagdá, Leon Fortunato entrou na cabina de comando e ajoelhou-se ao lado de Rayford.
— Não temos absoluta certeza quanto à segurança na Nova Babilónia — ele disse. — Ninguém espera que aterrissemos em Bagdá. É melhor mantermos contato com a torre da Nova Babilónia dizendo que estamos nos dirigindo diretamente para lá. Depois de pegarmos os outros três embaixadores, permaneceremos no solo por algumas horas até que o serviçode segurança vasculhe toda a Nova Babilónia.
— Isso tem alguma coisa a ver com suas reuniões? perguntou Rayford, tentando não demonstrar muito interesse.
— Não vejo motivo para você se preocupar com isso. Podemos nos reunir no avião enquanto ele estiver sendo reabastecido. Você deve deixar o ar-condicionado ligado, certo?
— Claro — disse Rayford, tentando raciocinar rapidamente. — Ainda há muita coisa que preciso aprender a respeito desta aeronave. Permanecerei na cabina ou em meus aposentos, longe dos senhores.
— Faça isso.

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Buck conversou com Donny Moore, o qual disse que fizera alguns negócios incríveis comprando componentes individualizados e agora estava montando os cinco mega-laptops sozinho.
— Com isso, estou economizando um pouco de dinheiro para o senhor — disse. — Pouco mais de vinte mil dólares por unidade, calculo.
— E eles estarão prontos quando eu voltar de uma viagem no domingo?
— Garantido, senhor.
Buck comunicou o número de seu novo telefone celular universal ao pessoal da chefia do Semanário Comunidade Global e pediu que não o divulgassem a não ser para Carpathia, Plank e Rosenzweig. Arrumou suas roupas dentro de uma enorme mochila e passou o restante do dia trabalhando nas transcrições de Bruce e tentando falar com Rosenzweig. Aquele homem talvez estivesse tentando dizer-lhe, em poucas palavras, que sabia que o Dr. Ben-Judá estava vivo em algum lugar. Buck esperava que Rosenzweig tivesse seguido seu conselho e estivesse mantendo Carpathia fora do assunto. Buck não tinha ideia de onde Tsion Ben-Judá se escondera. Porém, se Rosenzweig sabia, Buck gostaria de conversar com ele antes de chegar com Ritz ao Aeroporto Ben Gurion.
Quanto tempo ainda levaria, pensou Buck, até que ele e seus entes queridos precisassem ficar escondidos no abrigo debaixo da igreja?

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A segurança estava reforçada em Bagdá. Rayford havia sido instruído a não se comunicar com a torre de lá para não permitir que uma aeronave inimiga soubesse onde eles estavam.
Rayford estava convencido de que os ataques de retaliação por parte das forças da Comunidade Global em Londres e no Cairo, sem falar na América do Norte, tinham afugentado todo o povo do Iraque, com exceção dos suicidas. No entanto, ele estava cumprindo as ordens recebidas.
Leon Fortunato comunicou-se por telefone com as torres de Bagdá e da Nova Babilónia. Rayford já telefonara para assegurar-se de que havia um lugar dentro do terminal onde ele e McCullum pudessem estender as pernas e relaxar. Apesar de trabalhar tantos anos como piloto, havia ocasiões em que ele sentia uma certa claustrofobia a bordo de um avião.
Um cordão de soldados da CG fortemente armados cercava o avião quando ele parou na extremidade mais segura do terminal de Bagdá. As seis comissárias de bordo e os atendentes foram os primeiros a descer. Fortunato aguardou até que Rayford e McCullum terminassem a checagem pós-vôo, e desceu com eles.
— Capitão Steele — ele disse — vou conduzir os três embaixadores para dentro do avião em uma hora.
— E quando você deseja partir para a Nova Babilónia?
— Provavelmente após quatro horas mais ou menos.
— As regras internacionais de aviação proíbem-me de voar novamente antes de 24 horas.
— Que bobagem! — disse Fortunato. — Como você está se sentindo?
— Exausto.
— Mesmo assim, você é a única pessoa qualificada para pilotar aquele avião, portanto vai ter de cumprir nossas ordens.
— Quer dizer, então, que as regras internacionais de aviação deixaram de existir?
— Steele, você sabe que as regras internacionais referentes a qualquer coisa estão nas mãos do homem que está sentado naquele avião. Quando ele quiser partir para a Nova Babilônia, você terá de conduzi-lo até lá. Entendido?
— E se eu me recusar?
— Não seja tolo.
— Deixe-me dizer-lhe uma coisa, Leon. Assim que eu descansar um pouco, quero voltar para aquele avião e familiarizar-me com todos os detalhes.
— Sim, sim, eu sei. Agora fique longe de nós. E eu lhe agradeceria muito se você me chamasse de Sr. Fortunato.
— Isso é tão importante assim para você, Leon?
— Não me provoque, Steele.
Assim que ambos entraram no terminal, Rayford disse:
— Já que sou a única pessoa capaz de pilotar aquele avião, eu lhe agradeceria muito se você me chamasse de Capitão Steele.

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No final da tarde, horário de Chicago, Buck interrompeu a leitura fascinante dos escritos de Bruce Barnes e finalmente conseguiu completar a ligação para Chaim Rosenzweig.
— Cameron! Finalmente consegui falar com nosso amigo em comum. É melhor não mencionarmos o nome dele ao telefone. Ele conversou pouco comigo, mas parecia tão inexpressivo e vazio que chegou a comover-me profundamente. Deixou um recado estranho, Cameron. Disse simplesmente que você sabia com quem falar a respeito do paradeiro dele.
— Que eu sabia?
— Foi o que ele disse, Cameron. Que você sabia. Você acha que ele estava se referindo a NC?
— Não! Não! Chaim, ainda estou orando para que você mantenha aquele sujeito fora disto.

— Eu estou, Cameron, mas não está sendo fácil! Quem mais poderia interceder pela vida de meu amigo? Estou com muito medo de que o pior aconteça, e vou me sentir responsável.
— Estou de partida para Israel. Você pode conseguir um carro para mim?
— O carro de nosso amigo e seu motorista estão disponíveis, mas será que posso confiar nele?
— Você acha que ele teve alguma coisa a ver com o caso?
— Penso que o que ele mais queria era proteger o nosso amigo.
— Então ele deve estar correndo perigo — disse Buck.
— Oh, espero que não — disse Rosenzweig. — De qualquer forma, vou-me encontrar com você no aeroporto. Vamos dar um jeito de arrumar um meio de transporte para você. Posso providenciar um local para você ficar?
— Você sabe onde costumo ficar — disse Buck — mas desta vez acho melhor escolhermos outro lugar.
— Muito bem, Cameron. Há um belo hotel não muito distante daquele que você costuma se hospedar, e o pessoal de lá me conhece.

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Diante do aparelho de TV, Rayford assistia ao noticiário da CNN/Rede Comunidade Global procedente de Atlanta e transmitido ao mundo inteiro. Estava claro que Carpathia impusera sua vontade e determinação sobre todos os diretores de telejornais. Embora as reportagens mostrassem cenas horripilantes de guerra, derramamento de sangue, feridos e mortos, todos falavam com entusiasmo da ação decisiva do potentado ao reagir diante da crise e acabar com a rebelião. Os reservatórios de água tinham sido contaminados, não havia energia elétrica em muitas regiões e milhões de pessoas perderam suas casas em questão de minutos.
Rayford percebeu uma movimentação fora do terminal. Um equipamento portátil de TV, incluindo uma câmera, estava sendo levado ao Condor 216. Logo a seguir, a CNN/RCG comunicou que dentro de instantes seria levado ao ar um pronunciamento ao vivo do potentado Carpathia, partindo de um local desconhecido. Rayford balançou a cabeça e dirigiu-se para uma mesa em um dos cantos do terminal, onde encontrou papel impresso com o timbre de uma empresa aérea do Oriente Médio. Ele começou a redigir uma carta para a esposa de Earl Halliday.
A lógica dizia a Rayford que ele não deveria sentir-se responsável. Evidentemente Halliday havia cooperado com Carpathia e seu pessoal na montagem do Condor 216 muito antes de Rayford saber de sua existência. No entanto, assim que tomasse conhecimento da notícia, a Sra. Halliday imaginaria que havia sido Rayford quem conduzira seu velho amigo e chefe díretamente para a morte, e não haveria meios de fazê-la mudar de ideia. Rayford não sabia sequer como Earl fora morto. Talvez todas as pessoas que estavam naquele vôo para Glenview tivessem morrido. Rayford só sabia que o fato acontecera e que Earl não mais existia. Sentado diante da mesa e tentando redigir uma carta com palavras que jamais explicariam a verdade, Rayford sentiu que uma onda enorme e escura de depressão começava a tomar conta dele. Sentia saudade de sua esposa. Sentia falta de sua filha. Lamentava a morte de seu pastor. Lamentava a morte de amigos e conhecidos, novos e antigos. Como tudo aquilo pôde acontecer?
Rayford sabia que não era responsável pelo castigo que Nicolae Carpathia impusera a seus inimigos. O terrível e negro julgamento sobre a terra imposto por aquele homem maligno não terminaria, mesmo que Rayford abandonasse seu emprego. Centenas de pilotos seriam capazes de pilotar aquela aeronave. Ele próprio havia aprendido em meia hora. Não precisava do emprego, não queria o emprego, não pediu o emprego. Porém, ele sabia que Deus o colocara ali. Com que finalidade? Seria aquele sistema de intercomunicação clandestino engendrado por Earl Halliday uma dádiva vinda de Deus que permitiria a Rayford proteger algumas pessoas da ira de Carpathia?
De uma coisa ele tinha certeza. Já havia salvado a vida de sua filha e de seu genro do bombardeio sobre Chicago, e agora, enquanto assistia ao noticiário procedente da costa oeste dos Estados Unidos, ele gostaria de ter feito alguma coisa para advertir o povo de São Francisco e Los Angeles sobre o ataque. Ele estava enfrentando uma batalha penosa, e, sozinho, não tinha forças para prosseguir.
Após terminar a carta de condolências à Sra. Halliday, Rayford colocou os braços sobre a mesa e abaixou a cabeça, sentindo um nó na garganta, mas sem derramar uma lágrima sequer. Ele sabia que de agora em diante poderia chorar 24 horas por dia até o final do período da Tribulação, por ocasião do retorno de Cristo, ao qual Bruce dava o nome de "Aparecimento Glorioso". Como ele ansiava por esse dia! Será que ele e seus entes queridos sobreviveriam até lá ou seriam transformados em "mártires da tribulação", da mesma forma que Bruce? Em momentos como os que estava atravessando, Rayford gostaria de ter uma morte rápida e indolor que o levasse diretamente a Cristo no céu. Sabia que estava sendo egoísta. No íntimo, não desejava deixar as pessoas a quem amava e que o amavam, mas a perspectiva de mais cinco anos de sofrimento parecia-lhe insuportável.
O pronunciamento do potentado da Comunidade Global Nicolae Carpathia estava começando. Rayford sabia que estava sentado a uns 60 metros de distância daquele homem e, mesmo assim, assistiu a seu pronunciamento pela TV, da mesma forma que milhões de pessoas do mundo inteiro.

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Estava quase na hora de Buck partir para o Aeroporto de Palwaukee. Vema Zee voltara ao escritório do Semanário Comunidade Global com o carro usado (novo para ela) que Buck lhe comprara, um dos que haviam sido deixados no estacionamento da Igreja Nova Esperança. Loretta estava no escritório da igreja atendendo às constantes ligações telefónicas sobre o culto de domingo em memória a Bruce. Chloe andava mancando pela casa apoiada em uma bengala. Ela necessitava de muletas, mas não podia apoiar-se nelas por ter torcido o pulso. Só restava Amanda para levar Buck ao aeroporto.
— Eu gostaria de ir com vocês — disse Chloe.
— Você acha que tem condições de ir, meu bem? — perguntou Buck.
Chloe respondeu com voz trémula:
— Buck, detesto dizer isto, mas diante de tudo o que está acontecendo não sabemos se teremos condição de nos encontrarmos novamente.
— Você não está sendo um pouco piegas? — ele perguntou.
— Buck! — disse Amanda em tom de repreensão. — Você está mexendo com os sentimentos dela. Tive de dar um beijo de adeus em meu marido na frente do anticristo. Você acha que aquilo me deu segurança de que vou vê-lo novamente?
Buck recebeu o castigo que merecia.
— Vamos embora — ele disse. Deu a volta no Range Rover e atirou sua mochila no porta-malas, retornando rapidamente para ajudar Chloe a entrar no carro. Amanda sentou-se no banco traseiro e traria Chloe de volta para casa.
Buck surpreendeu-se ao ver que a TV embutida no carro suportara o acidente. Ele não estava em posição de ver as imagens, como faziam Amanda e Chloe. Nicolae Carpathia, em sua maneira exageradamente humilde, dizia:
"Não se enganem, meus irmãos e irmãs, ainda teremos muitos dias negros pela frente. Serão necessários recursos imensos para começarmos a reconstruir o processo, mas graças à generosidade de sete leais regiões do mundo e com o apoio dos cidadãos das outras três regiões que foram leais à Comunidade Global e não aos rebeldes, estamos arrecadando o maior fundo assistencial da história da humanidade. Esse fundo será destinado às nações carentes da Nova Babilónia e ao centro de operações da Comunidade Global sob minha supervisão. Em razão do caos que resultou desta rebelião, a mais sinistra e imprudente de todas, surgirão oportunistas e saqueadores que tentarão impedir a reconstrução do processo e a proteção aos desabrigados. O trabalho assistencial patrocinado pela Comunidade Global será conduzido de maneira rápida e generosa de modo a permitir que o maior número possível de membros leais à Comunidade Global retornem o mais breve possível a seus prósperos padrões de vida.
"Continuem a resistir aos opositores e rebeldes. Continuem a dar seu apoio à Comunidade Global. E lembrem-se de que, apesar de eu não ter almejado esta posição, aceito-a com seriedade e com a determinação de colocar minha vida a serviço de uma humanidade mais fraterna. Agradeço seu .apoio enquanto nos esforçamos para permanecer lado a lado, mesmo com sacrifício, e tentamos sair deste caos rumo a um plano mais alto que nenhum de nós poderia alcançar sem a ajuda de outras pessoas."
Buck balançou a cabeça.
— Ele está dizendo o que o povo quer ouvir, não é mesmo?
Chloe e Amanda permaneceram em silêncio.

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Rayford disse ao co-piloto McCullum para deixar as preocupações de lado e estar pronto para partir rumo à Nova Babilónia no momento em que fossem solicitados. Ele calculava que isso ainda levaria algumas horas.
— Mas é melhor estarmos à disposição — Rayford lhe disse.
Quando entrou no avião, com a suposta finalidade de familiarizar-se melhor com seus aparatos, Rayford foi direto aos aposentos do piloto. Notou que Carpathia e seus assessores estavam cumprimentando e conversando com os sete embaixadores leais à Comunidade Global.
Ao sair de seus aposentos para entrar na cabina de comando, Rayford percebeu que Fortunato ergueu os olhos e cochichou algo com Carpathia. Carpathia concordou com um movimento de cabeça, e a reunião foi transferida para um compartimento no centro da aeronave.
— Será mais confortável — Carpathia estava dizendo. — Temos uma bela mesa de reuniões aqui.
Rayford fechou a porta da cabina e trancou-a. Pegou as listagens de pré e pós-vôo e colocou-as numa prancheta com outras folhas em branco, só para disfarçar, caso alguém batesse na porta. Sentou-se em sua poltrona, colocou os fones de ouvido e apertou o botão secreto. O embaixador do Oriente Médio estava falando:
— O Dr. Rosenzweig envia-lhe suas mais sinceras e leais saudações, potentado. Há um assunto pessoal urgente que ele deseja que eu lhe conte.
— É confidencial? — perguntou Carpathia.
— Não creio, senhor. Diz respeito ao rabino Tsion Ben-Judá.
— O erudito que criou tanto furor com sua mensagem controvertida?
— Ele mesmo — disse o embaixador do Oriente Médio. — Parece que sua mulher e dois enteados foram assassinados por fanáticos, e que o Dr. Ben-Judá está escondido em algum lugar.
— Ele não poderia esperar nada melhor — disse Nicolae. Rayford sentiu o arrepio de sempre, quando a voz de Carpathia adquiria um tom solene.
— Concordo plenamente com o senhor, potentado — disse o embaixador. — Não sei como aqueles fanáticos permitiram que ele escapasse de suas mãos.
— Mas o que Rosenzweig quer de mim?
— Ele quer que o senhor interceda a favor de Ben-Judá.
— Interceder a quem?
— Creio que aos fanáticos — respondeu o embaixador, caindo na gargalhada.
Rayford reconheceu a gargalhada de Carpathia, e percebeu que os outros passageiros aproximaram-se deles.
— Acalmem-se, cavalheiros — disse Carpathia. — Talvez eu deva concordar com o pedido do Dr. Rosenzweig e conversar diretamente com o chefe da facção fanática. Eu lhes daria meu total apoio e talvez fornecesse alguma tecnologia para ajudá-los a encontrar sua presa e eliminá-la com urgên cia.
— O senhor está falando sério, potentado? O que devo dizer ao Dr. Rosenzweig? — perguntou o embaixador.
— Dê um tempo a ele. Seja difícil. Diga-lhe que você não encontrou um momento apropriado para conversar sobre o assunto comigo. Depois de algum tempo, diga-lhe que estou estado muito ocupado para tratar disso. Finalmente, você poderá dizer-lhe que preferi manter-me neutro sobre o .issunto.
— Muito bom, senhor.
Porém Carpathia não se manteria neutro. Ele acabara de esquentar o assunto. Rayford ouviu o ranger de um assento de couro e imaginou Carpathia inclinando-se para a frente a fim de falar com seu bando de lacaios internacionais.
— Permitam-me dizer-lhes uma coisa, cavalheiros. Uma pessoa do tipo do Dr. Ben-Judá é muito mais perigosa para a nossa causa do que um velho tolo como Rosenzweig. Rosenzweig é um cientista brilhante, mas não é um sábio aos olhos do mundo. Ben-Judá é muito mais erudito que ele. Ben-Judá tem a habilidade de dominar o povo, o que não seria mau se ele estivesse trabalhando em prol de nossa causa. Mas ele prefere encher a cabeça de seus compatriotas com essa bobagem de que o Messias já retornou. Não entendo como alguém ainda insiste em interpretar a Bíblia e suas profecias de maneira tão literal, mas dezenas de milhares de convertidos e devotos surgiram em Israel e ao redor do mundo em razão da pregação dele no Estádio Teddy Kollek e em outros locais semelhantes. O povo acredita em tudo. E quando acredita, torna-se perigoso. O tempo de Ben-Judá está curto, e eu não vou impedir que ele morra. Agora, vamos ao trabalho.
Rayford pegou as duas primeiras folhas da prancheta e começou a tomar notas, enquanto Carpathia esboçava seus planos imediatos.
— Precisamos agir rapidamente — ele estava dizendo, — enquanto as pessoas ainda estão vulneráveis e receptivas. Elas vão recorrer à Comunidade Global para pedir ajuda, e nós as ajudaremos. No entanto, elas terão de nos ajudar primeiro. Tínhamos uma enorme reserva de dinheiro antes da reconstrução da Babilónia. Vamos precisar de muito mais para pôr em prática nosso plano de elevar o nível dos países do Terceiro Mundo, de modo que o planeta inteiro fique em pé de igualdade. Vou lhes contar uma coisa, cavalheiros. Eu estava tão eufórico e com tantas ideias ontem à noite que não consegui permanecer sentado no momento da decolagem de São Francisco. Eu estava no compartimento da frente e fui praticamente atirado nesta sala durante o processo da decolagem. Eu pensava no seguinte:
— Vocês fizeram um trabalho maravilhoso com respeito à moeda universal. Estamos perto de ter uma sociedade sem um níquel sequer no bolso, o que só serve para ajudar a administração da Comunidade Global. Quando vocês retornarem a seus respectivos países, gostaria que anunciassem, simultaneamente, o início de um imposto de dez cents a ser cobrado em todas as transferências eletrônicas de dinheiro. Quando chegarmos ao ponto de ninguém mais ter dinheiro no bolso, é fácil imaginar que todas as transações serão eletrônicas. Calculo que isso gerará mais de um trilhão e meio de dólares por ano.
— Também estou dando início a um imposto de um dólar por barril de petróleo no campo petrolífero mais um imposto de dez cents por galão na bomba de gasolina. Meus consultores financeiros dizem que isso pode nos render mais de meio trilhão de dólares por ano. Vocês sabiam que chegaria o tempo em que haveria um imposto a ser pago à Comunidade Global sobre o Produto Interno Bruto de cada região. Esse tempo já chegou. Embora os rebeldes do Egito, Grã-Bretanha e América do Norte tenham sido devastados militarmente falando, eles também devem ser obrigados a pagar um imposto de 50% sobre seu PIB. O restante pagará 30%.
— Não olhem para mim desta maneira, cavalheiros. Vocês devem entender que tudo o que pagarem lhes será restituído com benefícios multiplicados. Estamos construindo uma nova comunidade global. O sofrimento faz parte do processo. A devastação e morte causadas por esta guerra se transformarão em uma utopia, diferente de tudo o que este mundo já viu. E vocês estarão na vanguarda. Seus países e regiões serão beneficiados, principalmente vocês.
— Tenho uma coisa a mais em mente. Como vocês sabem, nossas forças secretas convenceram-se rapidamente de que o ataque sobre Nova York foi planejado pela milícia norte-americana sob a liderança clandestina do presidente Fit-zhugh. Isso só serviu para confirmar minha decisão anterior de eliminá-lo virtualmente do poder executivo. Agora já sabemos que ele foi morto em nosso ataque de retaliação sobre Washington, D.C., cuja responsabilidade deve ser atribuída aos rebeldes. Aqueles poucos que ainda permanecem leais a ele vão-se insurgir contra os rebeldes e ver que fizeram papel de tolos.
— Como vocês sabem, o segundo maior poço de petróleo, menor apenas que o da Arábia Saudita, foi descoberto acima da Baía Prudhoe, no Alasca. Durante o período de vacância na liderança da América do Norte, a Comunidade Global se apropriará dos imensos campos de petróleo do Alasca, inclusive daquele poço enorme. Anos atrás ele foi coberto para satisfazer os ambientalistas; no entanto, já organizei equipes de trabalhadores da região para instalarem uma série de oleodutos de 16 polegadas que levarão o petróleo através do Canadá para canais onde poderão ser transportados em barcaças para os centros de comércio internacionais. Já adquirimos os direitos do petróleo da Arábia Saudita, Kuwait, Iraque, Irã e do restante do Oriente Médio. Com isso, temos o controle de dois terços do suprimento mundial de petróleo.
— Elevaremos de forma gradual, porém firme, o preço do petróleo, que no futuro financiará nossos planos para incluirmos serviços sociais em países não-privilegiados e transformarmos o mundo em um local que seja igual para todos. Só do petróleo teremos condições de lucrar uma média de um trilhão de dólares por ano.
— Em breve nomearei líderes para substituírem os três embaixadores das regiões que se voltaram contra nós. Com isso, a administração da Comunidade Global voltará a ser complementada por dez regiões. Por enquanto vocês são conhecidos como embaixadores da Comunidade Global, mas de agora em diante começarei a me referir a vocês como chefes soberanos de seus reinados. Vocês continuarão a reportar-se diretamente a mim. Aprovarei seus orçamentos, receberei seus impostos, e lhes darei privilégios políticos. Alguns criticarão este procedimento por deixar transparecer que todas as nações e regiões passarão a depender da Comunidade Global quanto às suas receitas e que temos controle sobre o destino de seus povos. Vocês sabem que não será assim. Sabem que sua lealdade será recompensada, que o mundo será um lugar melhor para viver, e que nosso destino é uma sociedade utópica baseada em paz e fraternidade.
— Estou certo de que todos vocês concordam que tem havido muito antagonismo por parte da imprensa mundial. Até eu, que não viso lucros pessoais e que sou movido apenas por motivos altruístas para aceitar com humildade e a contragosto o pesado manto da responsabilidade de líder mundial, tenho sido atacado e criticado pelos editorialistas. A habilidade da Comunidade Global para comprar todos os principais meios de comunicação eliminou isso. Apesar das críticas que recebemos por ameaçarmos a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa, acredito que o mundo entende que tais liberdades não-vigiadas produzem excessos que sufocam a habilidade e a criatividade de qualquer líder. Embora tenham sido úteis em alguma época para evitar que ditadores malvados assumissem o poder, proibindo qualquer crítica, tais editorialistas da oposição são anacrónicos.
Kayford sentiu uma fisgada na espinha e quase virou-se, certo de que havia alguém em pé do lado de fora da cabina.
A sensação tornou-se tão agourenta e abrangente que ele arrancou os fones e levantou-se da poltrona, inclinando-se para espiar no olho mágico. Não havia ninguém ali. Será que Deus estaria tentando dizer-lhe alguma coisa? Ele se lembrou de que teve a mesma sensação de medo quando Buck contou aquela história horripilante de estar presente a uma reunião na qual Carpathia hipnotizara e fizera uma lavagem cerebral em todos os participantes, exceto Buck.
Rayford voltou a sentar-se e colocou os fones. Quando apertou o botão secreto, parecia estar ouvindo um novo Carpathia. Nicolae falava com suavidade, sinceridade e em tom monótono. Não havia mais os floreios e inflexões de voz que normalmente caracterizavam seus discursos.
— Quero dizer uma coisa a todos vocês, e quero que prestem muita atenção e compreendam tudo. Este mesmo controle que já temos sobre todos os meios de comunicação, também será necessário sobre a indústria e o comércio. Não haverá necessidade de comprarmos ou adquirirmos todos eles. Isso seria óbvio demais e despertaria a atenção de nossos opositores. O importante não é a propriedade. É o controle. Dentro dos próximos meses comunicaremos decisões unânimes que nos permitirão controlar o comércio, a educação, o sistema de saúde e até mesmo como os reinados individuais escolherão seus líderes. A verdade é que a democracia e a eleição serão suspensos. São ineficientes e não beneficiam os interesses do povo. Proporcionaremos tantas coisas ao povo que ele entenderá rapidamente que esse procedimento é correto. Vocês podem voltar para seu povo e dizer-lhe honestamente que a ideia foi de vocês, que partiu de vocês, que procuraram apoio de seus colegas e de mim e que tiveram êxito. E eu, publicamente, concordarei com relutância, e todos nós sairemos vencedores.
Houve um profundo silêncio e Rayford imaginou que sua escuta clandestina não estava funcionando. Soltou e apertou o botão várias vezes, e percebeu que ninguém estava dizendo nada na sala de reuniões. Então, era esse o tal controle da mente que Buck já testemunhara. Por fim, ele ouviu a voz de Leon Fortunato.
— Potentado Carpathia — ele disse em tom de respeito, — sei que sou um mero assessor e não faço parte deste ilustre grupo. No entanto, eu poderia dar uma sugestão?
— Claro que sim, Leon! — disse Carpathia, demonstrando uma agradável surpresa. — Você ocupa uma importante posição de confiança, e todos nós gostaríamos de ouvir o que você tem a nos dizer.
— Eu estava pensando numa coisa. O senhor e seus companheiros aqui presentes não acham que a suspensão do voto popular poderá ser uma medida ineficiente e que não beneficiará os interesses do povo, pelo menos temporariamente?
— Oh, Sr. Fortunato — disse Carpathia, — eu não sei. Como você acha que o povo reagiria diante de tal proposta controvertida?
Os outros pareciam estar querendo falar todos ao mesmo tempo. Rayford ouviu que todos concordavam com Fortunato e insistiam com Carpathia para que ele refletisse sobre o assunto. Um deles repetiu o pronunciamento de Carpathia sobre o quanto a imprensa melhorara agora que passara a ser de propriedade da Comunidade Global e complementou que a aquisição da indústria e do comércio não seria tão necessáriosi como a da imprensa, desde que fossem controlados por Carpathia e pela Comunidade Global.
— Muito obrigado por suas sugestões, cavalheiros. Foram muito estimulantes e inspiradoras. Vou assimilar todas elas e em breve vocês serão informados sobre sua disposição e implementação.
A reunião durou mais um par de horas. Na maior parte, os tais reis nomeados por Carpathia repetiam como papagaios tudo o que ele lhes dissera, que após uma boa reflexão achariam suas idéias brilhantes. Todos pareciam considerá-las de sua propriedade. Apesar do fato de Carpathia ter acabado de mencioná-las, os embaixadores as repetiam com frequência um para o outro como se alguém não as tivesse ouvido.
— Agora, cavalheiros — concluiu Carpathia, — dentro de algumas horas estaremos na Nova Babilónia, e em breve nomearei os três novos embaixadores soberanos. Quero que vocês estejam cientes do inevitável. Não podemos fingir que o mundo não foi quase destruído pela irrupção desta guerra mundial. E ela ainda não terminou. Haverá mais conflitos. Haverá mais ataques furtivos. Precisaremos ter acesso, embora com relutância, ao nosso arsenal de armamentos, uma tarefa que, conforme vocês sabem, detesto fazer, e mais alguns milhares de vidas serão dizimadas além das centenas de milhares que já foram. Apesar de nossos melhores esforços e das ideias maravilhosas que vocês me transmitiram hoje, devemos enfrentar o fato de que teremos por um longo tempo uma batalha difícil pela frente.
— Os oportunistas sempre aparecem em tempos como estes. Aqueles que são nossos opositores se beneficiarão da impossibilidade de nossas forças de paz estarem em todos os lugares ao mesmo tempo, e isso acarretará fome, pobreza e doenças. De certa maneira, existe um lado positivo em tudo isso. Em razão do custo altíssimo de reconstrução, quanto menos pessoas precisarmos alimentar e sustentar seus padrões de vida, mais rapidamente poderemos fazer isso e com menos despesas. À medida que o nível da população decrescer e estabilizar-se, deveremos estar certos de que ela não explodirá tão cedo novamente. Mediante legislação adequada quanto a aborto, suicídio e redução de tratamentos caros para deficientes físicos e mentais, seremos capazes de controlar a população mundial.
Rayford não podia fazer nada, a não ser orar.
— Senhor — ele orou em silêncio — eu gostaria de ser um servo mais útil. Será que não existe outra função para mim? Será que eu não poderia ser usado em algum tipo de oposição ativa ou de julgamento contra este ser maligno? Posso apenas confiar em teu propósito. Protege meus entes queridos até que eu possa ver-te em toda a tua glória. Sei que já me perdoaste por meus anos de incredulidade e indiferença, mas isso ainda pesa sobre mim. Obrigado por me ajudares a descobrir a verdade. Obrigado por Bruce Barnes. E obrigado por estares ao nosso lado durante esta batalha derradeira.


SETE




Buck sempre conseguiu dormir bem, mesmo quando o sono não podia ser muito prolongado. Poderia ter dormido 12 horas ou mais na noite anterior, após um dia atribulado como aquele. No entanto, sete horas de sono tinham sido suficientes porque, quando ele se desligava, desligava-se de verdade. Soube apenas que Chloe teve um sono agitado que ela lhe contou ao acordar. Ela se debatera durante a noite, mas seus movimentos na cama e gemidos de dor não haviam perturbado o sono dele.
Agora, enquanto Ken Ritz pousava o Learjet em Easton, Pensilvânia — só para completar o tanque antes de seguir para Tel-Aviv — Buck estava alerta. Ele e aquele piloto franzino e experiente, beirando os 60 anos, pareciam ter retomado a conversa no ponto em que pararam na última vez que Buck contratou seus serviços. Ritz gostava de falar e contar piadas, era uma pessoa obstinada, interessante e interessada. Estava ansioso por saber a opinião de Buck sobre os desaparecimentos e a guerra mundial, mas expunha, ao mesmo tempo, seus pontos de vista.
— Então, o que há de novo, meu jovem articulista internacional, desde a última vez que nos vimos há quase dois anos? — perguntou Ritz, tentando puxar conversa.
Buck contou-lhe as novidades. Lembrou-se de que Ritz havia sido franco e direto quando se conheceram, admitindo que sabia tanto quanto qualquer outra pessoa sobre o motivo dos desaparecimentos, mas pendendo para a teoria de um ataque provocado por seres extraterrestres. Na época, Buck considerou essa idéia um pouco extravagante por ter partido de um piloto tão experiente, mas também não havia chegado a nenhuma conclusão. Todas as teorias eram válidas. Ritz contara-lhe muitos casos de objetos misteriosos que avistara no céu, portanto fazia sentido um piloto como ele acreditar em tais coisas.
Diante daquela lembrança, Buck sentiu-se confiante para contar sua história, sem precisar desculpar-se. Aparentemente, Ritz não se aborreceu com o relato. Ouviu em silêncio, e quando Buck terminou ele simplesmente fez um movimento afirmativo com a cabeça.
— Será que minha história foi tão extravagante quanto a sua quando você sugeriu a teoria dos seres extraterrestres? — perguntou Buck.
— Na verdade, não — respondeu Ritz. — Você ficará surpreso com o número de pessoas iguais a você que tenho encontrado por aí desde a última vez que conversamos. Não sei o que tudo isso significa, mas estou começando a acreditar que há mais pessoas que concordam com você do que comigo.
— Vou contar-lhe uma coisa — disse Buck — se eu estiver certo, meus problemas não acabaram. Todos nós vamos atravessar períodos terríveis. E as pessoas que não acreditam vão sofrer mais ainda, como nunca imaginaram.
— Não posso imaginar sofrimento maior do que o que estamos passando neste momento — disse Ritz.
— Entendo o que você quer dizer. Eu costumava me desculpar e tentar não usar palavras muito fortes ou ser irritante, mas preciso insistir para que você investigue o que eu disse. E não pense que você tem muito tempo pela frente para fazer isso.
— Isso faz parte de sua religião, não é mesmo? — disse Ritz. — Se o que você está dizendo for verdade, o fim não tá muito longe. Restam apenas alguns anos.
— Exatamente.

— Então, quer dizer que, se um sujeito quiser constatar se tudo isso é verdade, é melhor que ele se interesse pelo aissunto.
— Você explicou melhor que eu — disse Buck.
Após reabastecer em Easton, Ritz passou as horas de vôo sobre o Atlântico fazendo perguntas do tipo "e se". Buck precisou dizer-lhe várias vezes que não era um estudioso do assunto nem um erudito, mas surpreendeu-se por lembrar tantos ensinamentos de Bruce.
— Deve ser muito triste perder um amigo como ele — disse Ritz.
— Você não pode imaginar.

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Leon Fortunato instruiu todos os que estavam no avião quanto ao momento de desembarcarem e como se posicionarem perante as câmaras fotográficas quando chegassem à Nova Babilónia.
— Sr. Fortunato — disse Rayford, tomando o cuidado de atender ao pedido de Leon, pelo menos diante das outras pessoas — McCullum e eu precisamos aparecer nas fotografias?
— Não, a menos que vocês queiram contrariar o potentado — respondeu Fortunato. — Por favor, limitem-se a cumprir ordens.
A aeronave permaneceu bem protegida no solo da Nova Babilónia por vários minutos antes que as portas fossem abertas e o pessoal da imprensa controlada por Carpathia se aproximasse. Sentado na cabina de comando, Rayford continuava sua escuta pelo intercomunicador clandestino.
— Lembrem-se — dizia Carpathia — nada de sorrisos. O dia de hoje é triste, sério. Expressões apropriadas para o momento, por favor.
Rayford perguntou a si mesmo se alguém precisaria ser lembrado de não sorrir em um dia como aquele. A seguir, ele ouviu a voz de Fortunato:
— Potentado, parece que há uma surpresa para o senhor.
— Você sabe que eu não gosto de surpresas — disse Carpathia.
— Parece que sua noiva está no meio da multidão, aguardando pelo senhor.
— Isso é totalmente impróprio.
— O senhor quer que eu a retire de lá?
— Não, não sei qual seria a reação dela. Devemos evitar cenas. Só espero que ela saiba como se comportar. Mas esse não é o ponto forte dela, você sabe.
Rayford achou que Fortunato usou de diplomacia ao deixar de comentar sobre o assunto. Alguém bateu na porta da cabina.
— O piloto e o co-piloto em primeiro lugar — gritou Fortunato. — Vamos!
Rayford abotoou o paletó de seu uniforme e colocou o quepe enquanto saía da cabina. Ele e McCullum desceram a escada rapidamente e postaram-se do lado direito de uma fila em formato de V que aguardava o potentado, o último a desembarcar.
A seguir, desceram os integrantes da tripulação, que pareciam desajeitados e nervosos. Sabiam que não deviam sorrir, limitaram-se a olhar para o chão e caminharam diretamente para seus postos. Fortunato e dois outros assessores de Carpathia conduziram os sete embaixadores pela escada. Rayford virou-se para ver a aparição de Carpathia no topo da escada.
Em tais situações, o potentado dava a impressão de ser mais alto do que realmente era, pensou Rayford. Parecia ter acabado de barbear-se e lavar os cabelos, embora Rayford imaginasse que ele não tinha tido tempo para isso. Seu terno, camisa e gravata eram requintados e ele usava acessórios elegantes, porém discretos. Aguardou alguns instantes. Mantinha uma das mãos no bolso direito do terno, e com a outra carregava uma fina pasta de couro. Como sempre, ele aparenta estar atarefado, cuidando do assunto que tem em mãos, pensou Rayford.
Rayford surpreendeu-se diante da habilidade de Carpathia em manter a pose e a expressão adequadas para o momento. Ele tinha um ar preocupado, sério, mas, de certa forma, determinado e confiante. Desceu resolutamente a escada e .iproximou-se de um sem-número de microfones, enquanto .as câmeras disparavam e os flashes espoucavam em volta dele. Os logotipos das emissoras, ostentados em cada microfone, haviam sido redesenhados para incluir as letras:"GCN" (em inglês), sigla de Rede Comunidade Global.
A única pessoa que Carpathia não podia controlar completamente escolheu aquele momento para furar o bloqueio ao sou redor. Hattie Durham passou pelo meio da multidão e correu na direção dele. Os guardas de segurança que interceptaram seu caminho perceberam rapidamente quem ela era e deixaram-na passar. Ela fez de tudo, pensou Rayford, menos gritar de alegria. Para Rayford, foi a primeira vez que ele viu Carpathia embaraçado e confuso. Parecia que ele não sabia o que seria pior: afastá-la ou convidá-la a permanecer do seu lado.
Ele escolheu a última alternativa, mas ficou claro que ela o deixara em apuros. Ela inclinou o corpo para beijá-lo, e ele encostou os lábios em seu rosto. Quando ela se virou para dar-lhe um beijo na boca, ele sussurrou alguma coisa em seu ouvido. Hattie demonstrou ter ficado abalada. Quase chorando, ela começou a afastar-se de Carpathia, mas ele a segurou pelo pulso e a manteve perto de si, diante dos microfones.
— É bom demais retornar ao lugar a que pertenço — ele disse. — É maravilhoso estar perto das pessoas que amo. Minha noiva está sofrendo, tanto quanto eu, diante dos terríveis acontecimentos que começaram há relativamente poucas horas. Estamos atravessando um tempo difícil, mas, mesmo assim, nossos horizontes nunca foram tão amplos, nossos desafios nunca foram tão grandes, nosso futuro nunca foi tão brilhante.
— Talvez isso possa parecer um tanto incongruente diante da tragédia e devastação que todos nós sofremos, mas teremos prosperidade se nos comprometermos a nos manter unidos. Lutaremos contra qualquer inimigo da paz e abraçaremos qualquer amigo da Comunidade Global.
A multidão, inclusive o pessoal da imprensa, aplaudiu com a solenidade exigida pelo momento. Rayford estava enojado, ansioso para chegar a seu apartamento e desesperado para ligar para a esposa assim que o dia amanhecesse nos Estados Unidos.

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— Não se preocupe comigo, companheiro — disse Ken Ritz a Buck, enquanto o ajudava a descer do Learjet. — Vou deixar esta belezinha num hangar e procurar um canto qualquer para descansar meus ossos durante alguns dias. Sempre desejei conhecer este país, e é bom estar num lugar que não foi reduzido a pó. Você sabe como me encontrar. Quando estiver pronto para voltar, deixe um recado aqui no aeroporto. Vou manter contato frequente com este pessoal.
Buck agradeceu, pegou sua mochila, atirou-a por cima dos ombros e dirigiu-se ao terminal. Atrás da parede de vidro estava a figura franzina e alquebrada de Chaim Rosenzweig, com os cabelos desalinhados, acenando entusiasticamente para ele. Como Buck gostaria que aquele homem se convertesse! Passara a amá-lo, uma expressão que ele jamais teria usado para descrever seus sentimentos na ocasião em que conheceu o cientista. Fazia poucos anos, mas parecia um período muito longo. Na época, Buck era o articulista sénior mais jovem da história do Semanário Global, ou melhor, da história do jornalismo internacional. Não se intimidara ao se candidatar à tarefa de traçar o perfil do Dr. Rosenzweig para ser o "Homem do Ano" do Semanário.
Buck conhecera o cientista pouco mais de um ano antes disso, quando Rosenzweig ganhou um prémio internacional por sua invenção (Chaim preferia chamá-la de descoberta) de uma fórmula botânica. Algumas pessoas chegaram a dizer, sem muito exagero, que a fórmula de Rosenzweig tinha o poder de fazer as plantas se desenvolverem em qualquer lugar — até mesmo sobre concreto.
Esta última afirmação nunca foi provada; no entanto, em breve as areias do deserto de Israel começaram a florescer como se fossem uma estufa. Rapidamente a nação inteira transformou-se em um campo fértil, onde cresciam flores, milho, feijão e tudo quanto se pudesse imaginar. Da noite para o dia, Israel havia-se transformado na nação mais rica do mundo.
Os outros países começaram a invejar a fórmula, uma solução evidente para qualquer crise económica. Israel, um país anteriormente vulnerável e geograficamente indefeso, passou a ser uma força mundial — respeitado, temido e invejado.
Rosenzweig tornara-se a personalidade do momento e, de acordo com o Semanário Global, o "Homem do Ano".
Buck gostou muito mais de conhecê-lo do que conhecer qualquer um dos políticos poderosos que ele já entrevistara. Rosenzweig era um homem brilhante dedicado à ciência, humilde, modesto, ingênuo como uma criança, entusiasmado, elegante e uma figura inesquecível. Tratava Buck como um filho.
A ansiedade dos outros países para conseguirem a fórmula foi tão exagerada que eles chegaram ao ponto de designar diplomatas e políticos de alto nível para bajulá-lo. Rosenzweig fez tantas concessões para atender a um número tão grande de autoridades de outros países que o trabalho de que mais gostava foi deixado de lado. É verdade que ele já estava na idade de aposentar-se, mas ali estava um homem que se sentia muito mais confortável dentro de um laboratório ou sala de aula do que no meio de diplomatas. A preciosidade que Israel possuía tornara-se o ícone dos governos do mundo inteiro; todos a reivindicavam.
Chaim havia contado a Buck que todos os interessados na fórmula tinham propósitos escusos.
— Fiz o melhor que pude para manter a calma e ser diplomático — dissera na ocasião, com seu gracioso sotaque hebraico — mas só por estar representando o país onde nasci. Quase cheguei a adoecer quando todos começaram a tentar convencer-me de que eu me tornaria o homem mais rico do mundo se fosse condescendente e lhes cedesse minha fórmula.
O governo de Israel passou a proteger a fórmula de maneira mais rígida. Seus representantes foram tão incisivos ao dizer que a fórmula não estava à venda nem seria arrendada e que os outros países ameaçaram declarar guerra a Israel. A Rússia chegou a atacá-lo. Buck estava em Haifa na noite em que os aviões de guerra chegaram fazendo um barulho enorme. A miraculosa proteção recebida por aquele país contra destruições, ferimentos, mortes — apesar do incrível ataque aéreo — forçou Buck a acreditar em Deus, mas não em Cristo, até então. Não havia outra explicação para o fato de todos os cidadãos e edifícios daquela nação terem permanecido incólumes após os ataques por meio de bombas, mísseis e navios de guerra que surgiram por todos os cantos.
Tal acontecimento levou Buck, que temera por sua vida naquela noite, a buscar a verdade, a qual só foi descoberta após os desaparecimentos e o encontro que teve com Rayford e Chloe Steele.
Foi Chaim Rosenzweig o primeiro a mencionar o nome de Nicolae Carpathia para Buck. Buck perguntara ao cientista se um dos que o bajularam para conseguir a fórmula havia-lhe causado boa impressão. Apenas um, dissera-lhe Rosenzweig; um jovem político de nível médio, procedente do pequeno país da Roménia. Chaim se impressionara com os pontos de vista pacifistas de Carpathia, suas atitudes altruístas e sua insistência em dizer que a fórmula tinha potencial para mudar o mundo e salvar vidas. Ainda soavam nos ouvidos de Buck aquilo que Chaim Rosenzweig lhe dissera certa vez:
— Você e Carpathia precisam se conhecer um dia. Vocês vão gostar um do outro.
A primeira vez que Buck ouviu o nome de Carpathia foi durante aquela entrevista com Rosenzweig. Alguns dias após os desaparecimentos, o homem que se tornou presidente da Roménia do dia para a noite foi convidado a falar na Organização das Nações Unidas. Seu breve discurso foi tão convincente, tão influente, tão impressionante que ele cativou todos os presentes, tendo sido aplaudido em pé por toda a imprensa — inclusive por Buck. Evidentemente, o mundo estava em estado de choque, estarrecido diante dos desaparecimentos, e o momento havia sido perfeito para alguém elevar-se ao poder e apresentar um novo plano internacional de paz, harmonia e fraternidade.
Carpathia foi levado ao poder fingindo não almejar tal posição. Depôs o ex-secretário-geral da Organização das Nações Unidas, reorganizou-a para incluir dez megaterritórios internacionais, rebatizou-a de Comunidade Global, transferiu-a para a Babilónia (que foi reconstruída e passou a chamar-se Nova Babilónia) e elaborou um plano para desarmar o mundo inteiro.
Para conseguir tudo isso, Carpathia teve de lançar mão de algo mais, além de seu carisma. Ele tinha uma vantagem a seu favor. Dominara Rosenzweig. Convencera aquele senhor idoso e o governo de Israel de que a chave para o novo mundo estava nas habilidades, tanto sua como da Comunidade Global, em trocarem a fórmula de Rosenzweig por acordos que visassem ao estabelecimento de regras internacionais para o desarmamento. Em troca de uma garantia assinada por Carpathia de uma proteção de no mínimo sete anos contra seus inimigos, Israel licenciou a fórmula para ele, o que lhe permitiu extrair o que desejasse de qualquer país do mundo. Com a fórmula, a Rússia pôde plantar e colher grãos nas regiões congeladas da Sibéria. As nações africanas carentes transformaram-se em celeiros de alimentos e fontes de exportação de produtos agrícolas.
O poder que a fórmula conferiu a Carpathia possibilitou-lhe fazer com que o restante do mundo caísse de joelhos. Sob o pretexto de filosofias pacifistas, ele exigiu que as nações integrantes da Comunidade Global destruíssem 90% de seu armamento bélico e doassem os 10% restantes ao centro de operações da Comunidade Global. Antes de qualquer um perceber o que acontecera, Nicolae Carpathia, já ostentando o título de grande potentado da Comunidade Global, havia-se transformado no pacifista mais poderoso, militarmente falando, de toda a história do mundo. Apenas alguns poucos países que suspeitaram dele mantiveram seus armamentos. O Egito, a União das Nações Britânicas e uma facção das forças da milícia norte-americana, organizada clandestinamente, armazenaram armas em número suficiente para provocar aborrecimento e irritação em Carpathia, que revidou com violência. Em resumo, a insurreição e a incrível reação desses países foram o estopim para a Terceira Guerra Mundial, que foi simbolicamente predita na Bíblia como o Cavalo Vermelho do Apocalipse.
A ironia de tudo isso foi que o inocente e dócil Chaim Rosenzweig, que sempre demonstrou estar interessado no bem-estar de outras pessoas, se tornou um defensor público de Nicolae Carpathia. O homem que Buck e seus queridos companheiros do Comando Tribulação acreditavam ser o anticristo transformara aquele meigo botânico em seu instrumento. Carpathia incluía Rosenzweig em muitas situações visivelmente diplomáticas e até mesmo fingia que Chaim fazia parte de seu círculo fechado de amigos. Todos sabiam que Rosenzweig era simplesmente tolerado e servia de motivo de chacota. Carpathia fazia dele o que queria. Mesmo assim, Rosenzweig chegava quase ao ponto de adorar aquele homem. Certa vez ele insinuou a Buck que se existia alguém que personificava as qualidades do Messias judeu aguardado há tanto tempo, esse alguém era Nicolae.
Isso havia-se passado muito tempo antes de um dos jovens protegidos de Rosenzweig, o rabino Tsion Ben-Judá, ter divulgado ao mundo os resultados de uma pesquisa encomendada pelo governo de seu país com relação às características que os judeus deveriam encontrar no Messias.
O rabino Ben-Judá, que realizara um estudo elaborado de manuscritos antigos, inclusive do Antigo e do Novo Testa¬mentos, chegara à conclusão que apenas Jesus Cristo englobara todas as profecias necessárias para qualificá-lo como o Messias. Para tristeza do rabino Ben-Judá, ele ainda não havia aceitado a Cristo nem entregado sua vida a ele quando ocorreu o Arrebatamento. O Arrebatamento serviu para reforçar sua opinião de que Jesus era o Messias e que ele voltara para levar seu povo. O rabino, um homem na casa dos quarenta anos, foi deixado para trás com a esposa, com quem estava casado havia seis anos, e dois enteados adolescentes, um menino e uma menina. Ele surpreendeu o mundo, e principalmente seu país, quando divulgou a conclusão de seu estudo de três anos em um programa de TV ao vivo de âmbito internacional. Assim que declarou sua fé publicamente, ele passou a ser um homem marcado.
Apesar de Ben-Judá ter sido aluno e protegido do Dr. Rosenzweig, e depois seu colega, o cientista ainda se considerava um judeu não-religioso, não-praticante. Em resumo, ele não concordava com a conclusão de Ben-Judá a respeito de Jesus, e, acima de tudo, aquele era um assunto do qual não queria falar.
No entanto, Rosenzweig continuou amigo e defensor de Ben-Judá. Quando Ben-Judá, contando com o apoio e incentivo de dois estranhos — os pregadores do outro mundo que permaneciam diante do Muro das Lamentações — começou a dar testemunho, primeiro no Estádio Teddy Kollek e depois em outros locais semelhantes ao redor do mundo, todos tiveram a certeza de que, mais cedo ou mais tarde, ele sofreria por isso.
Buck sabia que os responsáveis pelo fato de o rabino Tsion Ben-Judá ter conseguido escapar de qualquer atentado contra sua vida eram Moisés e Eli, os dois pregadores, que também impediam que suas próprias vidas fossem ameaça¬das. Muitas pessoas tinham morrido misteriosamente e por meio de chamas de fogo quando tentaram atacar aqueles dois. Quase todos sabiam que Ben-Judá era "um dos deles" e por esse motivo ainda não sofrera um atentado mortal.
Agora aquela segurança parecia ter chegado ao fim, e Buck estava em Israel por causa disso. Buck tinha certeza de que Carpathia estava por trás do horror e da tragédia que se abatera sobre a família de Ben-Judá. Os noticiários informaram que homens encapuzados invadiram a casa de Ben-Judá no meio de uma tarde ensolarada, quando os adolescentes tinham acabado de voltar da escola hebraica. Dois homens armados que guardavam a casa foram mortos a tiros. A Sra. Ben-Judá e seus filhos foram arrastados até a rua, decapitados e abandonados no chão sobre poças de sangue.
Os assassinos fugiram em uma perua sem placas. Segundo algumas pessoas, o motorista de Ben-Judá correu até o escritório do rabino na universidade assim que soube da notícia, e levou o patrão para um local seguro. Onde, ninguém sabia. Ao retornar, o motorista foi interrogado pelas autoridades e pela imprensa, e negou saber qual era o paradeiro de Ben-Judá, dizendo que não o vira desde o momento dos assassinatos e que simplesmente aguardava notícias dele a qualquer momento.


OITO




Rayford achava que já havia dormido o suficiente depois de ter tirado alguns cochilos durante sua longa viagem. Ele não calculara o efeito que a tensão, o terror e o asco teriam sobre sua mente e corpo. No apartamento onde morava com Amanda, um local com ar- condicionado e o mais confortável dentro dos padrões do Iraque, ele trocou de roupa e sentou-se na beira de sua cama. Com os ombros caídos e os cotovelos apoiados nos joelhos, ele deu um suspiro profundo e só então percebeu o quanto estava exausto. Finalmente, conseguira ter notícias de casa. Sabia que Amanda estava salva, que Chloe estava melhorando e que Buck — como sempre — estava viajando. Só não sabia o que pensar sobre a ameaça que Verna Zee representava à segurança do pessoal do Comando Tribulação em sua nova casa (a de Loretta). Mas ele confiava em Buck, e em Deus.
Rayford deitou-se de costas por cima da colcha. Colocou as mãos atrás da cabeça e fixou o olhar no teto. Ele adoraria dar uma espiada no tesouro encontrado nos arquivos do computador de Bruce. E enquanto estava sendo levado a dormir um sono profundo, tentava descobrir um meio de voltar a Chicago até domingo. Com certeza haveria um jeito de poder assistir ao culto em memória de Bruce. Ele estava suplicando isso a Deus quando foi vencido pelo sono.

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Chaim Rosenzweig sempre costumava cumprimentar Buck com um sorriso entusiasmado no rosto. Agora aquele sorriso desaparecera. Quando Buck caminhou em sua direção, Rosenzweig simplesmente foi ao seu encontro para abraçá-lo e disse em voz rouca pela emoção:
— Cameron! Cameron!
Buck curvou-se para abraçar seu amigo franzino, e Rosenzweig segurou-o com força, apertando-o como se ele fosse uma criança. Escondeu o rosto no ombro de Buck e chorou amargamente. Buck quase perdeu o equilíbrio, com o peso de sua mochila puxando-o para um lado e Chaim Rosenzweig puxando-o para o outro. Sentiu que ia cair sobre seu amigo. Lutou para permanecer firme, segurando Chaim e deixando que ele chorasse.
Por fim, Rosenzweig soltou-se dele e levou-o até uma fileira de cadeiras. Buck avistou o motorista de Rosenzweig, um homem alto e de tez escura, em pé a mais ou menos três metros de distância e com as mãos cruzadas diante de si. Parecia constrangido e preocupado com seu patrão.
Chaim fez um movimento com a cabeça para que ele se aproximasse.
— Você se lembra de André?
— Ah, sim — disse Buck, balançando afirmativamente a cabeça. — Como vai?
André respondeu em hebraico. Não falava nem entendia inglês. Buck não falava e não entendia hebraico.
Rosenzweig disse alguma coisa a André e ele saiu apressado.
— Ele foi buscar o carro — disse Chaim.
— Vou ficar apenas uns dias aqui — disse Buck. — Quais são as novidades? Você já sabe onde Tsion está?
— Não! Cameron, isso é terrível! Que coisa medonha, horrível! Acabaram com a vida da família de um homem e com a reputação dele!
— Mas você teve notícias dele ...
— Um telefonema. Ele disse que você sabia onde começar a procurá-lo. Mas, Cameron, você soube das últimas notícias?
— Nem imagino.
— As autoridades estão tentando responsabilizar Tsion pelos assassinatos de sua família.
— Ora, vamos! Ninguém vai aceitar isso! Não há nada que aponte para essa direção. Por que ele faria isso?

— Claro que você e eu sabemos que ele jamais faria tal coisa, Cameron, mas quando elementos maus querem pegar a gente, não há nada que os segure. Você já sabe o que aconteceu com o motorista dele?
— Não.
Rosenzweig balançou a cabeça e encostou o queixo no peito.
— O quê? — perguntou Buck. — Ele também?
— Sim. Uma bomba no carro. O corpo dele ficou quase irreconhecível.
— Chaim! Você tem certeza de que está em segurança? Seu motorista sabe como ...
— Dirigir defensivamente? Verificar se há bombas no carro? Defender-se ou defender-me? Sim, para todas estas perguntas. André é um motorista muito hábil. Isso não acalma meus temores, admito dizer, mas sinto que estou protegido o mais que posso.
— Mas você está relacionado ao Dr. Ben-Judá. Aqueles que o estão procurando tentarão seguir você para encontrá-lo.
— O que significa que você não deve ser visto comigo — disse Rosenzweig.
— É tarde demais para isso — disse Buck.
— Também não é assim. André assegurou-me que não fomos seguidos até aqui. Eu não me surpreenderia se alguém nos seguisse daqui em diante, mas até agora creio que ninguém se deu conta de nós.
— Ótimo! Passei pela alfândega com meu passaporte falso. Você mencionou meu nome quando fez a reserva no hotel?
— Infelizmente sim, Cameron. Sinto muito. Cheguei a usar meu nome para garantir a reserva.
Buck reprimiu um sorriso diante da ingenuidade daquele homem.
— Bem, meu amigo, então vamos usar isso para mantê-los longe de nós, hein?
— Cameron, não sou muito bom nessas coisas.
— Peça a André que o leve diretamente até aquele hotel. Diga-lhes que meus planos mudaram que eu só chegarei no domingo.
— Cameron! Como você consegue raciocinar tão rápido?
— Agora, apresse-se. E não devemos mais ser vistos juntos. Vou permanecer aqui até sábado à noite. Ligue para mim neste número.
— É seguro?
— É um telefone via satélite, a última novidade em tecnologia. Ninguém pode grampeá-lo. Só não escreva meu nome ao lado do número, e não o forneça a ninguém.
— Cameron, por onde você começará a procurar Tsion?
— Tenho algumas ideias — disse Buck. — E você sabe, se eu puder tirá-lo deste país, vou tirá-lo.
— Excelente! Se eu fosse um homem de oração, oraria por você.
— Chaim, em breve você vai precisar ser um homem de oração.
Chaim mudou de assunto.
— Só mais uma coisa, Cameron. Fiz uma ligação para Carpathia pedindo a ajuda dele.
— Gostaria que você não tivesse feito isso, Chaim. Não confio nele tanto quanto você.
— Eu percebi, Buck — disse Rosenzweig — mas você precisa conhecer melhor aquele homem.
Se você soubesse, pensou Buck.
— Chaim, vou tentar me comunicar com você assim que eu souber de alguma coisa. Ligue para mim só se houver necessidade.
Rosenzweig abraçou-o com força novamente e saiu apressado. Buck utilizou um telefone público para ligar para o Hotel Rei Davi. Reservou um quarto por duas semanas sob o nome de Herb Katz.
— Qual a empresa que o senhor representa? — perguntou o funcionário. Buck pensou por um instante.
— International Harvester — ele disse, pensando que esse nome seria uma ótima indicação tanto para Bruce Barnes como para Tsion Ben-Judá.

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Rayford arregalou os olhos. Não havia se mexido do lugar. Não tinha ideia de quanto dormira, mas alguma coisa havia interrompido seu sono. O ruído da campainha do telefone na mesa de cabeceira fez com que ele desse um pulo na cama. Ao tentar alcançá-lo, percebeu que seu braço estava dormente. Não obedecia aos seus comandos. Mas ele deu um jeito de agarrar o fone.
— Aqui é Steele — ele disse, com a voz trémula.
— Capitão Steele? Você está bem? — Era Hattie Durham. Rayford rolou na cama e colocou o fone entre o ombro e o queixo. Apoiou-se no cotovelo e disse:
— Estou bem, Hattie. E você, como vai?
— Mais ou menos. Gostaria de me encontrar com você. Embora as cortinas estivessem fechadas, a claridade do sol forte da tarde tentava atravessá-las.
— Quando? ele perguntou.
— Que tal jantarmos juntos esta noite? — ela disse. — Poderíamos marcar às seis?
A mente de Rayford girava rapidamente. Será que ela já sabia que sua posição seria rebaixada na administração de Carpathia? Será que queria ser visto em público ao lado dela enquanto Amanda estivesse longe7.
— É urgente, Hattie? Amanda está nos Estados Unidos, mas voltará dentro de uma semana ou pouco mais ...
— É, Rayford, preciso muito conversar com você. Nicolae tem reuniões a partir de agora até a meia-noite e depois vai jantar com seu pessoal. Ele disse que não se importa que eu converse com você. Sei que você quer manter as aparências. Mas não se trata de um encontro amoroso. Vamos jantar juntos em algum lugar onde fique claro que somos apenas dois velhos amigos conversando. Por favor.
— Acho que posso aceitar — disse Rayford, curioso.
— Meu motorista vai pegá-lo às seis, está bem, Rayford?
— Hattie, faça-me um favor. Se você está dizendo que não quer que esse encontro pareça outra coisa, por favor não se vista de maneira extravagante.
— Capitão Steele — ela disse em tom formal — sair para me divertir é a última coisa que passa pela minha cabeça.

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Buck instalou-se em seu quarto no terceiro andar do Hotel Rei Davi. Ligou, por intuição, ao escritório do Global Commu-nityEast Coast Daily Times [Diário da Comunidade Global da Costa Leste], em Boston, e pediu para falar com seu velho amigo Steve Plank, que havia sido seu chefe no Semanário Global. Na ideia de Buck, isso parecia ter acontecido muitos séculos atrás. Plank deixara repentinamente o Semanário pra trabalhar como secretário de imprensa de Carpathia quando este último se tornou secretário-geral da Organização das Nações Unidas. Logo a seguir, Steve foi promovido para .a lucrativa posição que ele agora ocupava.
Buck não se surpreendeu ao ser informado que Plank estava ausente do escritório. Ele estava na Nova Babilónia recebendo ordens de Nicolae Carpathia e, sem dúvida, sentindo-se muito importante por isso. Buck tomou uma ducha e tirou um cochilo.

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Rayford sentiu que ainda poderia dormir por várias horas. Não tinha a intenção de passar muito tempo com Hattie Durham. Vestiu uma roupa comum, mas suficientemente adequada para apresentar-se em um local como o Bistrô Global, que Hattie e Nicolae costumavam frequentar.
Evidentemente, Rayford não deixaria transparecer que sabia do rebaixamento de cargo de Hattie antes dela. Deixaria que ela contasse sua história com todos os detalhes e amarguras. Ele não se importaria. Tinha de fazer isso por Hattie. Ainda sentia-se culpado a respeito do lugar em que ela estava, tanto do ponto de vista geográfico como do ponto de vista pessoal. Não parecia que ela havia sido objeto de seu desejo pouco tempo atrás.
Rayford não chegou a realizar seu intento, mas era em Hattie que ele estava pensando na noite do Arrebatamento. Como ele pôde ter sido tão surdo, tão cego, tão sonhador? Um homem bem-sucedido profissionalmente, casado havia mais de vinte anos, com uma filha na faculdade e um filho de 12 anos, sonhando acordado com a chefe do serviço de bordo e justificando tal atitude porque sua esposa havia se entregado de corpo e alma à religião! Ele balançou a cabeça. Irene, aquela pequenina e encantadora mulher que ele sempre considerou como propriedade sua, aquela que tinha o nome de uma tia muitos anos mais velha, conhecera a verdade, com V maiúsculo, muito tempo antes de qualquer um deles.
Rayford sempre frequentara a igreja assiduamente e se considerava um cristão. Mas, para ele, a igreja era um lugar para reunir-se, confraternizar-se e parecer respeitável. Rayford sentia-se nervoso quando os pregadores faziam sermões muito críticos ou muito literais. E quando Irene descobriu uma pequena congregação que parecia ser muito mais exigente em relação a seus membros, ele começou a encontrar desculpas para não acompanhá-la. Quando ela começou a falar sobre a salvação de almas, sobre o sangue de Cristo e sobre a volta de Cristo, Rayford convenceu-se de que sua esposa estava maluca. Quanto tempo havia passado desde a época em que ele a acompanhava, entregando folhetos de porta em porta?
Essa tinha sido a justificativa, pelo menos em sua mente, para seus galanteios a Hattie Durham. Hattie tinha 15 anos menos que ele e era encantadora. Apesar de terem jantado juntos algumas vezes e tomado drinques com muito mais frequência, e apesar dos trejeitos e dos olhares que ela lhe lançava, Rayford nunca a havia tocado. Seus contatos não haviam passado de um leve toque no braço quando Hattie esbarrava nele ou quando ela colocava as mãos em seus ombros ao lhe dirigir a palavra na cabina de comando, mas Rayford impedira, de uma maneira ou outra, que a situação avançasse. Naquela noite sobre o Atlântico, com o 747 lotado e ligado no piloto automático, ele finalmente reunira coragem para propor algo mais concreto a ela. Agora, sentia-se envergonhado por ter de admitir que naquela época ele estava pronto para tomar o passo mais decisivo e arrojado em direção a um relacionamento físico.
Porém, as palavras não chegaram a sair de sua boca. Quando ele saiu da cabina para procurá-la, ela o deixou pasmo ao contar-lhe a notícia sobre o desaparecimento de um quarto do total de passageiros do avião, que deixaram para trás apenas roupas e objetos pessoais. A cabina de comando, que normalmente era escura e silenciosa às quatro horas da madrugada, de repente tornou-se barulhenta quando as pessoas perceberam o que estava se passando. Foi naquela noite que Rayford disse a Hattie que ignorava tanto quanto ela o motivo de tudo aquilo estar acontecendo. Mas ele sabia muito bem. Irene estava certa. Cristo voltara para arrebatar sua Igreja. Rayford, Hattie e três quartos do total de passageiros haviam sido deixados para trás.
Naquela época Rayford ainda não conhecia Buck Williams, não sabia que Buck era um passageiro de primeira classe naquele mesmo vôo. Não sabia que Buck e Hattie haviam conversado, que Buck usara seu computador e a Internet para tentar saber se a família dela estava bem. Só posteriormente é que Rayford descobriu que Buck apresentara Hattie a Nicolae Carpathia, um novo líder internacional, famoso e brilhante. Rayford conheceu Buck em Nova York. Estava lá para desculpar-se com Hattie por seu mau comportamento em relação a ela e tentar convencê-la da verdade acerca dos desaparecimentos. Buck estava lá para apresentá-la a Carpathia, entrevistar Carpathia e entrevistar Rayford — o capitão de Hattie. Buck estava simplesmente tentando compor uma história sobre as muitas opiniões a respeito dos desaparecimentos.
Rayford tinha usado de sinceridade e concentrado seus objetivos visando persuadir Buck de que passara a conhecer a verdade. Foi naquela noite que Buck conheceu Chloe. Tantas coisas aconteceram em tão pouco tempo! Menos de dois anos depois, Hattie tornou-se assistente pessoal e amante de Nicolae Carpathia, o anticristo. Rayford, Buck e Chloe tornaram-se crentes em Cristo. E todos os três temiam pela sorte de Hattie Durham.
Talvez esta noite, pensou Rayford, eu possa exercer alguma influência positiva sobre Hattie.

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Buck sempre teve a facilidade de acordar sozinho quando queria. Poucas vezes não conseguira. Ele havia dito a si mesmo que queria acordar às 18 horas. Despertou na hora certa, menos descansado do que esperava, mas ansioso por agir. Pegou um táxi e disse ao motorista: — Muro das Lamentações, por favor. Momentos depois, ele chegou perto do local e desceu do táxi. Ali, não muito distante do Muro das Lamentações, atrás de uma cerca de ferro forjado, estavam os homens que Buck conhecera como as duas testemunhas profetizadas na Bíblia.
Eles referiam-se um ao outro como Moisés e Eli, e realmente pareciam ter vindo de um outro tempo e de um outro mundo. Usavam trajes esfarrapados feitos com tecido semelhante a aniagem. Estavam descalços e tinham pele escura e rija. Ambos tinham cabelos compridos e grisalhos, e barbas malcuidadas. Eram fortes, tinham articulações ossudas e pernas e braços musculosos. Qualquer pessoa que ousasse aproximar-se deles sentia odor de fumaça. Os que tentaram atacá-los haviam sido mortos. Várias pessoas que correram na direção deles com armas automáticas pareceram chocar-se contra uma parede invisível e caíram mortos ali mesmo. Outras foram carbonizadas com o fogo expelido da boca das duas testemunhas.
Ambos pregavam quase que constantemente na linguagem e cadência da Bíblia, e o que diziam soava como blasfémia aos ouvidos dos judeus devotos. Falavam do Cristo crucificado, chamando-o de Messias, o Filho de Deus.
A única vez em que o povo os viu longe do Muro das Lamentações foi no Estádio Teddy Kollek, quando eles apareceram ao lado do rabino Tsion Ben-Judá, um cristão recém-convertido. Os noticiários do mundo inteiro mostraram aqueles dois homens estranhos, falando em uníssono, sem usar microfones e, mesmo assim, sendo ouvidos perfeitamente pelas pessoas que estavam sentadas nas últimas fileiras.
— Aproximai-vos do servo do Deus altíssimo — eles haviam gritado — e ouvi-o com atenção! Ele está entre os primeiros dos 144 mil que partirão desta e de muitas outras nações para proclamar o evangelho de Cristo por todo o inundo! Aqueles que se voltarem contra Ele, como os que antes se voltaram contra nós antes do tempo apropriado, certamente morrerão!
As testemunhas não permaneceram o tempo todo na plataforma nem no estádio durante aquela primeira concentração evangelística no Estádio Teddy Kollek. Saíram sorrateiramente e já estavam de volta ao Muro das Lamentações quando a reunião terminou. Nos 18 meses seguintes, reuniões semelhantes em estádios enormes se repetiram inúmeras vezes em todos os países do mundo, resultando em dezenas de milhares de convertidos. Inimigos do rabino Ben-Judá tentaram "voltar-se contra ele" durante aquele ano e meio, conforme as testemunhas haviam advertido. Outros pareceram entender o que estava acontecendo e arrependeram-se de suas intenções. Uma calmaria de três ou quatro semanas após algumas ameaças de morte serviu para dar uma trégua ao incansável Ben-Judá. Mas agora ele estava escondido, e sua família e seu motorista haviam sido trucidados.
Ironicamente, a última vez que Buck esteve no Muro das Lamentações para observar e ouvir as duas testemunhas foi na companhia do rabino Ben-Judá. Eles retornaram ao local naquela mesma noite e tiveram a coragem de aproximar-se da cerca e conversar com os homens que mataram todas as outras pessoas que haviam feito a mesma coisa. Buck entendera em sua própria língua o que eles disseram, apesar de a gravação que ele fez do incidente ter provado que as testemunhas falaram em hebraico. O rabino Ben-Judá começara a conversa repetindo as palavras de Nicodemos, o homem que se encontrou com Jesus à noite, e as testemunhas reagiram da mesma forma que Jesus. Aquela foi a noite mais emocionante da vida de Buck.
Agora, lá estava ele, sozinho, à procura de Ben-Judá, que dissera a Chaim Rosenzweig que só Buck saberia onde encontrá-lo. E ele não podia pensar em lugar mais apropriado.
Como de costume, havia uma imensa multidão diante das testemunhas, embora o povo soubesse que deveria manter distância. A raiva e a ira de Nicolae Carpathia não haviam afetado Moisés e Eli. Mais de uma vez, até mesmo em público, Carpathia perguntara se não haveria alguém capaz de afugentar aqueles dois sujeitos inconvenientes. Desculpando-se, os líderes militares responderam que não existiam armas com o poder de destruí-los. As próprias testemunhas referiam-se constantemente à tolice de tentar destruí-los antes do tempo apropriado".
Bruce Barnes explicara ao Comando Tribulação que no tempo apropriado Deus permitiria que as testemunhas se tornassem vulneráveis, e que seriam agredidas. Buck acreditava que isso só ocorreria dali a um ano e meio, mas, mesmo assim, essa idéia era um pesadelo para sua alma.
Nesta noite as testemunhas estavam fazendo a mesma coisa de todos os dias, desde a assinatura do tratado entre Israel e Carpathia: proclamando o terrível dia do Senhor. E elas se referiam a Jesus Cristo como "o Deus Poderoso, o Pai Eterno e o Príncipe da Paz. Que nenhum outro homem se proclame soberano deste mundo! Aquele que disser tal coisa não é o Cristo, mas o anticristo, e com certeza morrerá! A desgraça cairá sobre qualquer um que pregar um evangelho diferente! Jesus é o único Deus verdadeiro, criador do céu e da terra!"
Buck sempre se emocionava diante da pregação das testemunhas. Ele observou a multidão e viu pessoas de várias raças e culturas. Sabia por experiência que muitas não compreendiam a língua hebraica. Estavam ouvindo as testemunhas em sua própria língua, da mesma forma que ele.
Buck andou ao redor da multidão de cerca de 300 pessoas e ficou na ponta dos pés para ver as testemunhas. De repente, ambos pararam de pregar e se aproximaram da cerca. O povo afastou-se de uma só vez, temendo por suas vidas. As testemunhas estavam agora bem perto da cerca. O povo mantinha uma distância de mais ou menos 15 metros. Buck estava atrás da multidão.
Para Buck, estava claro que as testemunhas notaram sua presença. Os dois fixaram os olhos nele, deixando-o imóvel. Sem fazer nenhum gesto ou movimento, Eli começou a pregar.
— Quem tem ouvidos para ouvir, ouça! Não temais, porque sei que buscais a Jesus, que foi crucificado. Ele não está aqui; ressuscitou, como havia dito.
Os crentes que estavam no meio da multidão murmuraram amém e palavras de aquiescência. Buck não conseguia sair do lugar. Moisés deu um passo à frente e parecia estar falando diretamente a ele.
— Não temais, porque sei a quem buscais. Ele não está aqui.
Eli voltou a falar:
— Ide, pois, depressa, e dizei aos seus discípulos que Cristo ressuscitou dos mortos!
Moisés continuava a olhar firme para Buck.
— Ele vai adiante de vós para a Galiléia. Ali o vereis. É como vos digo.
As testemunhas pararam de falar, e permaneceram em silêncio e com o olhar fixo por um longo tempo, como se tivessem se transformado em pedras. A multidão parecia nervosa e começou a dissipar-se. Alguns aguardaram para ver se as testemunhas falariam novamente, mas o silêncio perdurou. Em breve, apenas Buck permanecia ali, em pé no mesmo lugar onde estava havia alguns minutos. Ele não conseguia tirar os olhos de Moisés. Os dois limitaram-se a permanecer diante da cerca, olhando para ele. Buck começou a avançar na direção deles, parando a pouco mais de cinco metros de distância. As testemunhas não se moveram. Davam a impressão de nem sequer estar respirando. Buck não percebeu nenhum piscar de olhos, nenhuma contração muscular. Sob a ténue luz do crepúsculo, ele observava atentamente os rostos dos dois. Nenhum deles abriu a boca, mas Buck ouviu claramente e em sua própria língua:
— Quem tem ouvidos para ouvir, ouça.


NOVE




Rayford foi avisado pelo interfone do condomínio onde morava que o motorista de Hattie o aguardava. O motorista o conduziu até o espaçoso Mercedes branco e abriu a porta traseira. Havia lugar para sentar-se ao lado de Hattie, mas Rayford preferiu sentar-se de frente para ela. Hattie cumprira o prometido de não vestir-se com exagero, mas mesmo com poucos enfeites, ela estava encantadora. Ele resolveu não comentar. A preocupação estava estampada no rosto dela.
— Fico muito grata por você ter concordado em se encontrar comigo.
— Claro que concordo em me encontrar com você. O que houve?
Hattie olhou de relance para o motorista.
— É melhor conversarmos durante o jantar — ela disse. —Vai ser no Bistrô, você concorda?

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Buck permaneceu imóvel diante das testemunhas enquanto o sol se punha no horizonte. Olhou ao redor para ter a certeza de que não havia mais ninguém ali.
— É só isso o que tendes a me dizer? Que ele está na Galiléia?
De novo, sem movimentar os lábios, as testemunhas falaram:
— Quem tem ouvidos para ouvir, ouça.
Galiléia? Será que a Galiléia ainda existia? Por onde e quando Buck deveria começar a busca? Com certeza ele não queria vasculhar a área durante a noite. Precisava saber para onde deveria ir, ter alguma indicação. Virou-se para trás para ver se havia táxis por perto. Avistou alguns. Voltou a olhar para as testemunhas.
— Se eu voltar aqui mais tarde, poderei ter mais informações?
Moisés afastou-se da cerca e sentou-se no chão, encostado na parede. Eli fez um gesto e disse em voz alta:
— As aves dos céus têm seus ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça.
— Não compreendo — disse Buck. — Preciso de mais informações.

— Quem tem ouvidos ... Buck estava frustrado.
— Voltarei à meia-noite. Estou suplicando a vossa ajuda. Eli também estava se afastando.
— E eis que estou convosco sempre, até a consumação do século.
Buck partiu, planejando voltar, mas sentindo um estranho entusiasmo por aquela última promessa misteriosa. Aquelas foram palavras de Cristo. Será que Jesus estava falando diretamente a ele por meio da boca das duas testemunhas? Que privilégio indizível! Ele pegou um táxi de volta ao Hotel Rei Davi, confiante de que em breve encontraria Tsion Ben-Judá.

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Rayford e Hattie foram cumprimentados efusivamente pelo maitre do Bistrô Global. Ela foi reconhecida, mas evidentemente, Rayford não.
— A mesa de sempre, madame?
— Não, obrigada, Jeoffrey, mas também não queremos um lugar reservado.
Eles foram conduzidos a uma mesa para quatro pessoas. Dois atendentes apressaram-se em colocar pratos e talheres para duas pessoas, e o garçom puxou uma cadeira para Hattie e apontou outra ao lado dela para Rayford sentar-se. Mas Rayford continuava a pensar nas aparências. Resolveu sentar-se de frente para Hattie, mesmo sabendo que teriam de conversar alto por causa do barulho do local. O garçom hesitou, parecendo irritado, mas finalmente mudou os pratos e os talheres de lugar, colocando-os diante de Rayford. Isso teria sido motivo de riso para Rayford e Hattie em tempos passados, nas poucas ocasiões em que jantaram juntos às escondidas, e quando cada um deles parecia estar imaginando o que o outro pensava a respeito do futuro. Hattie tinha sido mais atrevida que Rayford, embora ele nunca a tivesse desencorajado.
Os aparelhos de TV do Bistrô levavam ao ar notícias da guerra ao redor do mundo. Hattie fez um sinal para o maitre, que se aproximou imediatamente.
— Acho que o potentado não gostaria que os clientes que frequentam este local para relaxar um pouco ouvissem essas notícias deprimentes.
— Essas notícias estão em todas as emissoras, madame.
— Não há uma que transmita músicas?
— Vou verificar.
Em poucos instantes, todos os aparelhos de TV do Bistrô Global exibiam vídeos musicais. Várias pessoas aplaudiram, mas Rayford percebeu que Hattie mal se deu conta disso.
No passado, quando eles estavam cogitando em ter um caso, Rayford sempre tinha de tomar a iniciativa de pedir os pratos e lembrar Hattie de que ela precisava alimentar-se. Ela concentrava-se inteiramente nele, o que o fazia sentir-se lisonjeado e sedutor. Agora a situação era outra.
Hattie estudava o cardápio como se tivesse de fazer um teste a respeito dele na manhã seguinte. Aos 29 anos e grávida pela primeira vez, ela estava mais linda que nunca. Sua gravidez em estágio inicial ainda não podia ser notada por ninguém, a não ser que ela contasse. E ela contou a Rayford e Amanda na última vez em que se encontraram. Na ocasião, Hattie parecia estar emocionada, orgulhosa de seu anel de brilhante e ansiosa para falar sobre seu casamento iminente. Ela dissera a Amanda:
— Nicolae ainda vai fazer de mim uma mulher famosa. Hattie estava usando seu pomposo anel de brilhante; no entanto, a pedra estava virada para baixo e apenas o aro do anel era visível. Hattie demonstrava claramente ser uma mulher infeliz, e Rayford gostaria de saber se essa tristeza fora ocasionada pela fria recepção de Nicolae no aeroporto. Gostaria de fazer-lhe esta pergunta, mas o encontro havia sido ideia de Hattie. Ela é quem deveria decidir o que dizer.
Apesar de o Bistrô Global ter um nome de origem francesa, foi Hattie quem ajudou a montá-lo, e o cardápio incluía pratos da cozinha internacional, principalmente dos Estados Unidos. Ela pediu um prato exageradamente grande, o que não era seu costume. Rayford quis apenas um sanduíche. Hattie falou pouco até terminar a refeição, inclusive a sobremesa. Rayford conhecia de antemão todas as desculpas que viriam, inclusive que ela agora estava se alimentando por dois, mas ele acreditava que Hattie comia demais por nervosismo, na tentativa de adiar um assunto que ela realmente precisava desabafar.
— Você acredita que já se passaram quase dois anos desde que você trabalhou comigo como chefe do serviço de bordo? — ele disse, tentando dar início à conversa.
Hattie endireitou o corpo na cadeira, cruzou as mãos sobre o colo e inclinou-se para a frente.
— Rayford, estes dois anos foram os mais incríveis de minha vida.
Ele lançou-lhe um olhar de indagação, imaginando se ela os considerava bons ou maus.
— Você ampliou seus horizontes — ele disse.
— Pense nisto, Rayford. Eu sempre quis ser comissária de bordo. Todas as minhas colegas da Escola de Segundo Grau do Leste de Maine queriam ser comissárias de bordo. Nós todas fizemos a inscrição, mas só eu consegui. Fiquei muito orgulhosa, mas em breve essa profissão perdeu o encanto para mim. Eu passava a metade do tempo pensando para onde estávamos indo, quando chegaríamos ao destino e quando voltaríamos. Mas eu gostava muito das pessoas, da liberdade de viajar e de visitar todos aqueles lugares. Você sabe que tive alguns namoros sérios aqui e ali, mas nenhum deles deu certo. Quando fiquei um pouco mais velha E resolvi me dedicar apenas a aviões e rotas, apaixonei-me perdidamente por um de meus pilotos, mas isso também nunca deu certo.
— Hattie, eu gostaria que você não trouxesse esse assunto à baila. Você sabe como me sinto quando penso naquela época.
— Eu sei, e lamento muito. Não houve nada de concreto, apesar de eu ter esperado por isso. Aceitei sua explicação e suas desculpas, mas isso não tem nada a ver com o assunto do momento.
— Acho bom porque, como você sabe, casei-me novamente e estou muito feliz.
— Eu invejo você, Rayford.
— Pensei que você e Nicolae iam se casar.
— Eu também. Agora não tenho mais tanta certeza. E nem sei se quero.
— Se você quiser falar desse assunto, estou disposto a ouvir. Como não sou especialista em assuntos do coração, provavelmente não terei nenhum conselho a dar, mas posso ouvir, se é isso o que você deseja.
Hattie aguardou até que os pratos fossem retirados da mesa, e disse ao garçom:
— Ficaremos aqui por mais algum tempo.
— Vou anotar isso em sua conta — disse o garçom. — Duvido que alguém tenha a coragem de afugentá-la daqui. — Ele sorriu para Rayford, parecendo ter gostado de seu próprio senso de humor. Rayford forçou um sorriso.
Depois que o garçom se afastou, Hattie sentiu-se livre para prosseguir.
— Rayford, talvez você não saiba, mas tive uma queda por Buck Williams. Você deve lembrar-se de que ele estava em nosso avião naquela noite.
— Claro.
Naquele dia, não lancei um olhar provocante para ele porque ainda estava apaixonada por você. Mas ele foi muito gentil. E prestativo. Tinha um emprego muito importante. Nós dois temos mais ou menos a mesma idade.
— E...?
— Bem, para lhe dizer a verdade, quando você me despachou ...

— Hattie, nunca despachei você. Não foi nada disso. Nenhum de nós era um objeto.
— Até então.
— Está bem, até então — ele disse. — Mas você tem de admitir que não houve nenhum compromisso, nenhuma manifestação de compromisso.
— Houve muitas insinuações, Rayford.
— Devo admitir que houve. Mas é injusto você dizer que eu a despachei.
— Dê a isso o nome que você quiser, mas eu me senti como se tivesse sido despachada, está bem? De uma forma ou outra, de repente Buck pareceu-me um homem muito atraente. Tenho certeza de que ele pensou que eu o estava usando para conhecer uma pessoa famosa, o que, de fato, aconteceu. Fiquei muito grata a Buck por ele ter-me apresentado a Nicolae.
— Desculpe-me, Hattie, mas isso não é novidade.
— Eu sei, mas estou tentando chegar a um ponto. Pense comigo. Assim que conheci Nicolae, levei um susto. Ele era apenas um pouco mais velho que Buck. Mas parecia ter muito mais idade. Era um homem que viajava pelo mundo inteiro, um político internacional, um líder. Já era o homem mais famoso do mundo. Eu sabia que seu sucesso seria maior ainda. Sentia-me como uma colegial e não podia imaginar que conseguira impressioná-lo. Quando ele começou a demonstrar interesse, pensei que fosse um interesse meramente físico. E devo admitir que teria um relacionamento físico com ele sem pestanejar e não teria me arrependido. Tivemos um caso, e me apaixonei, mas Deus é testemunha... oh, Rayford, sinto muito. Eu não devia falar destas coisas com você, mas nunca esperei que ele se interessasse por mim, de verdade. Eu sabia que nosso caso era passageiro, e estava determinada a curti-lo enquanto durasse.
— Mas cheguei ao ponto de detestar quando ele viajava. Eu dizia a mim mesma para manter a cabeça no lugar. Em breve tudo terminaria, e eu acreditava que estava preparada. Mas, de repente, ele me fez uma surpresa. Nomeou-me sua assistente pessoal. Eu não tinha nenhuma experiência, nenhuma habilidade para ocupar a função. Sabia que essa seria a única maneira de estar disponível para ele após o expediente. Mesmo assim, fiquei satisfeita, apesar de temer como seria minha vida quando ele se tornasse cada vez mais atarefado. Bem, meus temores se concretizaram. Ele ainda é o homem mais incrível que conheci; é charmoso, agradável, dinâmico e poderoso. Mas eu represento para ele exatamente o que sempre temi representar. Você sabe que ele costuma trabalhar 18 horas por dia, e às vezes vinte? Não significo nada para ele, e sei disso.
— Eu costumava me envolver em algumas discussões. E ele extraía de mim uma ou duas ideias. Mas o que entendo de política internacional? Quando eu fazia algum comentário tolo com base em meus conhecimentos limitados, ele ria de mim ou me ignorava. De repente, ele nunca mais pediu minha opinião. Passei a cuidar de coisas insignificantes, como ajudar a montar este restaurante e receber grupos de turistas que vêm visitar a nova sede da Comunidade Global. Não passo de um objeto decorativo, Rayford. Ele só me deu o anel de noivado depois que engravidei, mas ainda não me pediu em casamento. Acho que isso basta para eu ter entendido.
— Quando aceitou o anel, você não fez nenhuma insinuação de que gostaria de se casar com ele?
— Oh, Rayford, a ocasião não foi nada romântica. Ele simplesmente pediu que eu fechasse os olhos e estendesse a mão. Aí ele colocou o anel em meu dedo. Eu não sabia o que dizer. Apenas sorri.

— Você está dizendo que não se sente compromissada com ele?
— Não sei mais como me sinto. Nem sei se ele sente alguma coisa por mim, a não ser atração física.
— E quanto a todas as pompas? A riqueza? Seu carro com motorista? Suponho que você tenha uma verba para despesas
— Tenho tudo isso, sim. — Hattie parecia cansada, mas prosseguiu. — Para lhe dizer a verdade, tudo aquilo é igual ao que meu antigo emprego foi para mim. A gente se cansa rapidamente da rotina. Com certeza, fiquei embriagada pelo poder, pelo brilho e pelo charme de minha posição. Mas não sou mais eu. Não conheço ninguém aqui. As pessoas me tratam com deferência e respeito só por causa do homem com quem convivo. Mas ninguém o conhece de verdade. Nem eu. Eu preferiria que ele ficasse furioso comigo a me ignorar. Outro dia perguntei a ele se eu podia voltar para os Estados Unidos e passar algum tempo lá visitando meus amigos e familiares. Ele se irritou com minha pergunta e disse: "Apenas me mantenha informado. Vá em frente e providencie tudo. Tenho coisas mais importantes para fazer do que me preocupar com seus programas insignificantes." Para ele, não passo de uma peça de mobília, Rayford.
Rayford estava aguardando o momento propício. Havia muitas coisas que ele queria lhe dizer.
— Vocês conversam muito?
— Se conversamos muito? Não conversamos. Agora nós apenas convivemos.
Rayford escolheu as palavras com cuidado.
— Eu só estou curioso a respeito do que ele sabe sobre Chloe e Buck.
— Oh, não se preocupe com isso. Por mais que Nicolae seja esperto e por mais "espiões" que tenha para vigiar tudo e todos, duvido que ele imagine que possa existir uma ligação entre você e Buck. Eu nunca mencionei a ele que Buck se casou com sua filha. E nunca mencionarei.
— Por quê?
— Acho que ele não precisa saber, só isso. Por um motivo ou outro, Rayford, ele confia em você em algumas coisas e não confia nada em outras.
— Já percebi.
— O que você percebeu? — ela perguntou.
— Por exemplo, me deixar de fora dos planos para o Condor 216 — respondeu Rayford.
— Ah, sim — ela disse — e você não acha que Nicolae foi criativo ao incluir o número do escritório dele no nome do avião?
— Só achei muito estranho ser piloto dele e fiquei surpreso com o novo equipamento.
— Se você convivesse com ele, nada disso o surpreenderia. Faz meses que estou por fora de tudo. Rayford, você pode imaginar que ninguém me avisou nada quando a guerra estourou?
— Ele não ligou para você?
— Eu nem sabia se ele estava vivo ou morto. Ouvi o que ele disse pelos noticiários, como qualquer outra pessoa. Ele nem sequer me ligou depois disso. Nenhum assessor conversou comigo. Nenhum assistente me enviou um memorando. Telefonei para todos os lugares. Conversei com todo o pessoal que eu conhecia na organização. O máximo que consegui foi falar com Leon Fortunato. Ele me disse que informaria Nicolae que eu havia ligado. Você é capaz de imaginar? Ele informaria que eu liguei!
— Então, quando você avistou Nicolae na pista...?
— Fiz um teste com ele. Não posso negar isso. Estava ansiosa por vê-lo, mas também estava lhe dando mais uma chance. Não ficou claro que estraguei sua grande aparição?
— Foi a impressão que eu tive — disse Rayford, perguntando a si mesmo se estava sendo prudente por ter deixado de lado a neutralidade.
— Quando tentei beijá-lo, ele me disse que o momento era inoportuno e que eu deveria agir como uma pessoa adulta. Pelo menos, referiu-se a mim como sua noiva. Disse que eu estava tão triste quanto ele. Mas eu o conheço o suficiente para saber que ele não sentia nenhuma tristeza. Pude ver isso em seu semblante. Ele adora o que está acontecendo.
E apesar do que diz, ele está no centro de tudo isso. Fala como um pacifista, mas espera que o povo o ataque para que ele possa justificar sua retaliação. Fiquei muito horrorizada e triste ao tomar conhecimento das mortes e destruições, mas ele voltou para cá, para seu palácio, fingindo compartilhar a dor dos povos do mundo inteiro. Mas no íntimo, ele está comemorando, e ainda achando pouco. Está esfregando as mãos, fazendo planos, maquinando estratégias. Neste momento ele está reunido com sua nova equipe. Não dá para imaginar o que estão tramando!
— O que você pretende fazer, Hattie? Isto não é vida para você.
— Ele não quer mais que eu trabalhe no escritório. Rayford sabia disso, mas não deixou transparecer.
— Como assim?

— Fui demitida hoje, pelo meu próprio noivo. Ele me perguntou se podia encontrar-se comigo em meus aposentos.
— Seus aposentos?
— Não estamos vivendo juntos. Durmo em meus aposentos no final do corredor, e ele me visita de vez em quando, no meio da noite — entre uma reunião e outra, suponho. Faz um bom tempo que tenho sido a garota de luxo que mora no quarto ao lado.
— E o que ele queria?
— Pensei que eu soubesse. Achei que ele tinha estado longe por muito tempo e queria o de sempre. Mas ele me disse que estava providenciando uma substituta para mim.
— Quer dizer que você está fora da jogada?
— Não. Ele ainda me quer por perto. Ainda quer que eu dê à luz o filho dele. Só acha que o emprego está além de minha capacidade. Eu lhe disse: "Nicolae, aquele emprego sempre esteve além de minha capacidade, desde o início. Nunca tive habilidade para ser secretária. Eu era uma boa relações-públicas e sabia lidar com as pessoas, mas fazer de mim sua assistente pessoal foi um erro."
— Sempre achei que você tinha capacidade para ocupar essa função.
— Obrigada por isso, Rayford. Mas a perda daquele emprego deu-me um certo alívio.
— Um certo alívio?
— Sim. O que seria de mim? Perguntei a Nicolae o que o futuro reservava para nós. Ele teve a audácia de dizer: "Nós?" Eu disse: "Sim! Nós! Estou usando o anel que você me deu e carregando seu filho no ventre. Quando a nossa união vai tornar-se permanente?"

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Buck despertou assustado. Estava sonhando. Já era noite. Ele acendeu a lâmpada e consultou seu relógio. Ainda faltavam algumas horas para seu encontro com Moisés e Eli à meia-noite. Mas o que seu sonho tinha a ver com tudo aquilo? Ele sonhara que era José, o marido de Maria, e ouvira um anjo do Senhor dizer: "Levanta-te, foge para o Egito e permanece lá até que eu te avise."
Buck estava confuso. Nunca havia se comunicado com ninguém em sonhos, nem mesmo com Deus. Sempre considerara os sonhos como aberrações baseadas em acontecimentos do dia-a-dia. E agora ele estava na Terra Santa, pensando em Deus, pensando em Jesus, comunicando-se com as duas testemunhas, tentando manter-se afastado do anticristo e de seu bando. Fazia sentido ter sonhos relacionados com histórias bíblicas. Ou será que Deus estava tentando dizer-lhe que ele encontraria Tsion Ben-Judá no Egito, e não no local onde as testemunhas pareciam indicar? Os dois sempre falaram de maneira muito cautelosa. Ele teria de perguntar-lhes. Como poderia compreender as referências bíblicas sendo tão novato nesses assuntos? Queria dormir até às onze e meia, antes de pegar um táxi até o Muro das Lamentações, mas teve dificuldade em dormir por causa do sonho esquisito que não lhe saía da cabeça. De uma coisa ele estava certo: não queria ir para nenhum lugar nas proximidades do Egito, principalmente depois de ouvir as notícias sobre a guerra no Cairo. Estava a pouco mais de trezentos quilómetros do Cairo, em linha reta. Seria arriscado, mesmo que Carpathia não tivesse usado armamentos nucleares sobre a capital egípcia.
Buck permaneceu deitado de costas, pensando.

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Rayford estava arrasado. O que poderia dizer à sua velha amiga? Hattie estava sofrendo muito e completamente perdida. Rayford não podia deixar escapar que ele e seus amigos sabiam que o amante dela era o anticristo. O que Rayford mais queria era suplicar que ela aceitasse a Cristo.


Mas ele já não tinha feito isso naquela vez? Já não lhe tinha explicado tudo o que aprendera após os desaparecimentos, aos quais ele agora se referia como Arrebatamento?
Ela conhecia a verdade. Pelo menos conhecia o que ele acreditava ser a verdade. Ele tinha aberto seu coração a Hattie, a Chloe e a Buck em um restaurante de Nova York, e sentiu que deixara Hattie em posição incômoda por ter repetido tudo o que lhe dissera antes, naquele mesmo dia, em particular. Rayford teve a certeza de que causara um profundo constrangimento em sua filha. E também teve a certeza de que o erudito Buck Williams o estava simplesmente tolerando. Para Rayford, foi chocante observar o passo gigantesco dado por Chloe ao tomar a decisão de aceitar a Cristo, após ouvir as palavras emocionadas do pai naquela noite. O encontro no restaurante também exercera enorme influência sobre Buck.
Agora ele estava tentando uma nova abordagem.
— Deixe-me dizer-lhe uma coisa, Hattie. Você precisa saber que Buck, Chloe e eu estamos muito preocupados com você.
— Eu sei, Rayford, mas ...
— Acho que você não sabe — disse Rayford. — Temos nos perguntado se isso foi o melhor para você, e cada um de nós sente-se responsável por você ter abandonado seu emprego e familiares para seguir para Nova York e agora para a Nova Babilónia. E para quê?
Hattie olhou firme para ele.
— Mas vocês mal conversaram comigo.
— Achamos que não tínhamos o direito de nos intrometer. Você é adulta. A vida é sua. Eu penso que meu mau comportamento afastou-a do ramo da aviação. Buck sente-se culpado por tê-la apresentado a Carpathia. Chloe está sempre se questionando se não deveria ter dito ou feito alguma coisa para fazer você mudar de ideia.
— Mas por quê? — perguntou Hattie. — Como vocês sabiam que eu não era feliz aqui?
Agora foi a vez de Rayford ficar confuso. De fato, como eles sabiam?
— Percebemos que os ventos estavam soprando contra você — ele respondeu.
— Penso que não lhe dei nenhuma demonstração de que você estava certo. Sempre tentei impressioná-lo todas as vezes que vi você ou Buck na companhia de Nicolae.
— Sim, isso é verdade.
— Bem, Rayford, talvez você fique surpreso por saber que nunca pretendi engravidar nem me casar.

— Por que você acha que isso me causa surpresa?
— Porque não posso dizer que minha moral era, de um certo modo, ilibada. Eu estava prestes a ter um caso com você. Só estou querendo dizer que não fui criada daquela maneira, e certamente não teria planejado ter um bebé sem me casar.
— E agora?
— A verdade continua sendo a mesma, Rayford. — A voz de Hattie enfraqueceu. Ela evidenciava cansaço, mas agora parecia derrotada, quase sem vida. — Não vou usar esta gravidez para forçar Nicolae a se casar comigo. De qualquer forma, ele não concordaria. Ele não é forçado por ninguém a fazer qualquer coisa. Se eu forçá-lo, provavelmente ele vai me dizer para fazer um aborto.
— Oh, não! — disse Rayford. — Você não está imaginando uma coisa dessa, está?
— Não estou imaginando? Penso nisso todos os dias. Rayford estremeceu e coçou a testa. Por que ele haveria de esperar que Hattie vivesse como uma cristã se ela não era? Não seria justo supor que ela concordasse com ele em questões como esta.
— Hattie, você me faria um grande favor?
— Talvez.
— Você promete pensar cuidadosamente no assunto antes de tomar uma atitude? Promete aconselhar-se com sua família, com seus amigos?
— Rayford, eu quase não tenho mais amigos.
— Chloe, Buck e eu ainda nos consideramos seus amigos. E creio que Amanda também pode vir a ser sua amiga se passar a conhecê-la.
Hattie deu um suspiro profundo.
— Tenho a impressão de que, quanto mais Amanda me conhecer, menos ela gostará de mim.
— Isso prova que você não a conhece — disse Rayford. — Ela é do tipo que não precisa gostar de alguém para depois amar, se é que você entende o que estou dizendo.
Hattie arregalou os olhos.
— Que maneira interessante de explicar isso — ela disse. — Acho que é assim que os pais se sentem, às vezes, em relação aos filhos. Meu pai me disse isso certa vez, quando eu era uma adolescente rebelde. Ele disse: "Hattie, é muito bom eu amar você tanto assim, porque não gosto nem um pouco de você." Aquilo me deixou desnorteada, Rayford. Você está me entendendo?
— Claro — ele disse. — Você precisa conhecer Amanda. Ela poderia ser uma outra mãe para você.
— Uma é mais que suficiente — disse Hattie. — Não se esqueça, foi minha mãe quem me deu este nome maluco, que era de uma pessoa mais velha que eu duas gerações.
Rayford sorriu. Ele sempre quis saber a origem do nome de Hattie.
— Você disse que Nicolae não se importaria se você passasse alguns dias nos Estados Unidos?
— Ah, sim, mas isso foi antes de estourar a guerra.

— Hattie, vários aeroportos continuam abertos para pousos de aviões. E, pelo que sei, nenhuma ogiva nuclear atingiu as principais cidades. A única cidade atingida por precipitação radioativa foi Londres. Seria melhor ninguém ir para lá pelo menos por um ano, acredito. Mas até mesmo a devastação no Cairo não foi relacionada com radiação.
— E você acha que ele ainda permitiria que eu viajasse para os Estados Unidos?
— Não sei, mas estou pretendendo estar de volta lá no domingo para ver Amanda e assistir ao culto em memória ile um amigo.
— De que jeito você vai voltar para lá, Rayford?
— Em um vôo comercial. Pessoalmente, acho uma extravagância transportar uma dúzia ou menos de dignitários no Condor 216. De qualquer forma, o potentado ...
— Oh, por favor, Rayford, não o chame assim.
— Você acha esse título tão ridículo quanto eu?
— Sempre achei. Para um homem tão brilhante e poderoso, esse título estúpido parece uma palhaçada.
— Não o conheço tão bem a ponto de chamá-lo de Nicolae, e seu sobrenome é difícil de ser pronunciado.
— É verdade que a maioria de vocês que frequentam igreja o consideram o anticristo?
Rayford teve um sobressalto. Nunca esperava ouvir aquela palavra na boca de Hattie. Estaria ela falando sério? Ele achou que ainda era muito cedo para fazer revelações.
— O anticristo? — ele perguntou.
— Gosto de ler — ela disse. — Na verdade, gosto de ler os artigos de Buck. Tenho lido seus comentários no Semanário. Quando ele abrange todas as teorias e fala sobre o que as pessoas pensam, deixa claro que existe uma grande facção que acredita que Nicolae possa ser o anticristo.
— Já ouvi isso — disse Rayford.


DEZ




Ao sair do Hotel Rei Davi naquela noite, Buck teve um pressentimento de que deveria levar sua mochila. Dentro dela estava uma pequena máquina de ditados, um computador do tipo sub-notebook (que em breve seria substituído pela mãe de todos os computadores), uma máquina fotográfica, um telefone celular, seus objetos de toalete e duas mudas de roupa.
Ele deixou a chave na recepção e pegou um táxi até o Muro das Lamentações, perguntando ao motorista se ele falava inglês. O motorista ergueu o polegar e o dedo indicador, afastados alguns centímetros um do outro, e deu um sorriso como que se desculpando.
— A Galiléia fica muito longe? — Buck perguntou. O motorista tirou o pé do acelerador.
— Você ir para a Galiléia? Muro das Lamentações em Jerusalém.
Buck acenou para que ele prosseguisse a viagem.
— Eu sei. Muro das Lamentações agora. Galiléia depois. O motorista rumou para o Muro das Lamentações.
— Galiléia agora Lago Tiberius — ele disse. — Mais ou menos 120 quilómetros.
Naquela hora da noite, havia poucas pessoas no Muro das Lamentações, inclusive em toda a região da colina do templo. O novo templo recém-construído estava magnificamente iluminado e parecia fazer parte de um filme em terceira dimensão. Dava a impressão de estar pairando no horizonte. Bruce dissera a Buck que um dia Carpathia se sentaria naquele novo templo e se proclamaria Deus. O jornalista que existia dentro de Buck queria estar presente quando isso acontecesse.
A princípio, Buck não avistou as duas testemunhas. Um pequeno grupo de marinheiros passava diante da cerca de ferro no final do Muro, onde as testemunhas costumavam permanecer e pregar. Os marinheiros conversavam em inglês, e um deles apontou.
— Acho que são eles, logo ali — ele disse.
Os outros viraram-se e olharam. Buck acompanhou o olhar deles, que foi dirigido para um edifício de pedra atrás da cerca. As duas figuras misteriosas estavam sentadas de costas para a parede e com o queixo apoiado nos joelhos. Não se mexiam, pareciam estar dormindo. Os marinheiros olharam pasmos para eles e aproximaram-se pé ante pé. Não ultrapassaram a distância de trinta metros da cerca, talvez por terem ouvido as histórias que contavam sobre os dois. Não pretendiam acordá-los da maneira que faziam com os animais do zoológico. Aqueles dois eram mais que animais. Eram seres perigosos que costumavam queimar as pessoas que os ridicularizavam. Buck não se aproximou ostensivamente da cerca para não chamar a atenção sobre si. Aguardou até que os marinheiros se cansaram e foram embora.
Assim que os jovens abandonaram o local, Eli e Moisés levantaram a cabeça e olharam direto para Buck. Ele foi atraído pelo olhar dos dois. Caminhou em direção à cerca. As testemunhas levantaram-se e ficaram a pouco mais de cinco metros de Buck.
— Preciso de informações mais claras — sussurrou Buck. — Posso saber mais alguma coisa sobre o paradeiro de meu amigo?
— Quem tem ouvidos ...
— Eu sei — disse Buck — mas ...
— Como te atreves a interromper os servos do Deus Altíssimo? — disse Eli.
— Perdoa-me — disse Buck. — Ele queria explicar-se, mas resolveu permanecer em silêncio.
Agora era Moisés quem falava.
— Antes de tudo deves conversar com alguém que te ama. Buck aguardou mais informações. As testemunhas continuavam ali, em silêncio. Abriu as mãos como se não estivesse entendendo nada. De repente, ele sentiu uma vibração dentro de sua mochila e percebeu que seu telefone celular estava tocando. E agora? O que ele deveria fazer? Se não podia interromper os servos do Deus Altíssimo, como se atreveria a atender o telefone enquanto conversava com eles? Buck sentia-se um tolo. Afastou-se da cerca, pegou o telefone, abriu-o e disse:
— Aqui é Buck.
— Buck! É Chloe! Aí é mais ou menos meia-noite, certo?
— Certo, Chloe, mas neste instante eu estou ...
— Buck, você está dormindo?
— Não, estou acordado e ...

— Buck, só quero ter a certeza de que você está no Hotel Rei Davi.
— Bem, eu estava lá, mas ...
— Mas você não está lá neste momento, certo?
— Não, estou no ...
— Querido, não sei como lhe dizer isto, mas acabei de ter um pressentimento de que você não deve dormir naquele hotel esta noite. Na verdade, tive uma premonição de que você não deve passar a noite em Jerusalém. Não sei o que vai acontecer amanhã, e não sei mais nada, mas o pressentimento é tão forte ...
— Chloe, eu vou ligar de volta para você, está bem? Chloe hesitou.
— Está bem, mas você não pode conversar comigo por alguns instantes quando ...
— Chloe, não vou dormir no Hotel Rei Davi esta noite, e não vou passar a noite em Jerusalém, está certo?
— Isso me faz sentir melhor, Buck, mas eu gostaria de conversar...
— Vou ligar para você de volta, querida, está bem? Buck não sabia o que pensar sobre esta condição, nova para ele, à qual Bruce se referia como "andar no espírito". As testemunhas tinham dado a entender que a pessoa a quem ele procurava estava na Galiléia, um local que não mais existia. O mar da Galiléia passara a ser Lago Tiberius. Seu sonho, se de fato tivesse sido um aviso, indicava que ele deveria ir para o Egito. Agora as testemunhas queriam que ele usasse os ouvidos para compreender. Buck gostaria muito de ser "João, o Revelador", mas como não era, teria de pedir mais informações. E como as testemunhas sabiam que ele precisava conversar com Chloe antes de tudo? Buck já conhecia um pouco as duas testemunhas para saber que elas podiam fazer milagres. Ele só queria que elas não fossem tão enigmáticas. Estava ali em missão perigosa. Já que elas podiam ajudá-lo, ele pediria ajuda.
Buck pôs sua mochila no chão e sentou-se em cima dela, tentando dar a entender que estava disposto a parar tudo o que estava fazendo e simplesmente ouvir. Moisés e Eli aproximaram-se um do outro e pareciam estar conversando em voz baixa. Em seguida, aproximaram-se da cerca. Buck começou a caminhar em direção a eles, como havia feito na última vez que lá esteve na companhia do rabino Tsion Ben-Judá, mas as testemunhas levantaram a mão, e ele parou, mantendo distância da cerca. De repente, as testemunhas começaram a gritar com toda força. A princípio, Buck assustou-se e recuou, pulando por cima de sua mochila. Eli e Moisés citavam versículos que Buck reconheceu como sendo do Livro de Atos e proferidos por Bruce durante seus ensinamentos. Eles gritavam:
— E acontecerá nos últimos dias, diz o Senhor, que derramarei do meu Espírito sobre toda carne; vossos filhos e vossas filhas profetizarão, vossos jovens terão visões, e sonharão vossos velhos.
Buck sabia que os versículos continuavam, mas as testemunhas pararam e fixaram os olhos nele. Seria ele um velho, mesmo tendo acabado de completar 32 anos? Seria ele um dos velhos que sonhariam? As testemunhas sabiam disso? Estariam lhe dizendo que seu sonho era válido? Os dois prosseguiram:
— Até sobre os meus servos e sobre as minhas servas derramarei do meu Espírito naqueles dias, e profetizarão. Mostrarei prodígios em cima no céu e sinais embaixo na terra: sangue, fogo e vapor de fumaça. O sol se converterá em trevas, e a lua em sangue, antes que venha o grande e glorioso Dia do Senhor. E acontecerá que todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo.
Buck estava entusiasmado, comovido, empolgado para iniciar sua missão. Mas por onde deveria começar? E por que as testemunhas não lhe diziam? Ele se surpreendeu ao ver que não estava mais sozinho ali. Os gritos das testemunhas provocaram a aproximação de um pequeno grupo. Buck não queria esperar mais. Pegou sua mochila e caminhou em direção à cerca. As pessoas o advertiam para não avançar. Ele ouviu gritos em outros idiomas, e poucos em inglês.
— Você vai-se arrepender, filho! — alguém gritou. Buck avançou até ficar a pouco mais de um metro das testemunhas. Ninguém mais se atreveu a aproximar-se.
— Quando dizeis Galiléia entendo que estais se referindo ao Lago Tiberius. — Buck sussurrou. Como seria possível dizer a essas duas pessoas, que pareciam pertencer aos tempos bíblicos, que seus conhecimentos geográficos estavam ultrapassados'? — Vou encontrar meu amigo na Galiléia, no mar da Galiléia, ou onde?
— Quem tem ouvidos para ouvir...
Buck sabia que não podia interrompê-los nem demonstrar frustração.
— Como posso chegar até lá? — ele perguntou. Eli falou em voz baixa.
— É melhor que voltes para o meio da multidão — ele disse. Voltar para o meio da multidão? Buck pensou. Obedeceu e juntou-se à multidão.
— Você está bem, filho? — perguntou alguém. — Eles o agrediram?
Buck balançou a cabeça negativamente. Moisés começou a falar em voz alta:
— Depois de João ter sido preso, foi Jesus para a Galiléia, pregando o evangelho de Deus, dizendo: O tempo está cumprido e o reino de Deus está próximo; arrependei-vos e crede no evangelho. Caminhando junto ao mar da Galiléia, viu os irmãos Simão e André, que lançavam a rede ao mar, porque eram pescadores. Disse-lhes Jesus: Vinde após mim, e eu vos farei pescadores de homens. Então eles deixaram imediatamente as redes, e o seguiram.
Buck não tinha certeza do que fazer após ouvir tudo aquilo, mas percebeu que havia obtido tudo o que podia das testemunhas naquela noite. Embora elas continuassem a pregar, e mais pessoas pareciam vir de todos os cantos para ouvir, Buck retirou-se dali. Dirigiu-se com sua mochila até uma pequena fila de táxis e pegou um deles.
— É possível subir de barco o rio Jordão até o Lago Tiberius a esta hora da noite? — ele perguntou ao motorista.
— Bem, senhor, para dizer a verdade, é muito mais fácil fazer o caminho inverso. Mas, sim, há barcos motorizados que vão para o norte. E alguns fazem esse percurso à noite É claro que os barcos de turismo só navegam durante o dia, mas sempre há alguém disposto a levar uma pessoa para onde ela quiser, a qualquer hora do dia ou da noite, desde que pague o preço correto.
— Foi o que imaginei — disse Buck.
Logo em seguida, ele já estava acertando o preço com um barqueiro chamado Michael, que se recusou a dizer seu sobrenome.
— Durante o dia posso transportar vinte turistas dentro deste barco. Quatro jovens fortes e eu levamos isto no braço, se é que você está me entendendo.
— Com remos?
— Sim, senhor, como nos tempos da Bíblia. Barco feito de madeira. Cobrimos os dois motores de popa com madeira e aniagem, e ninguém percebe. Apesar de ser cansativo, conseguimos remar durante um dia inteiro. Mas, quando temos de subir o rio, não podemos fazer isso com remos.
Embora estivesse seguindo para o norte depois de meia-noite, sozinho com Michael em seu barco de dois motores, Buck parecia estar pagando uma viagem para vinte turistas e quatro remadores.
No início, Buck ficou em pé na proa do barco, deixando que o vento cortante batesse em seus cabelos. Mas logo precisou fechar o zíper de sua jaqueta de couro até o pescoço e colocar as mãos no bolso. Não demorou muito para fazer companhia a Michael, que pilotava seu longo e rústico barco de madeira sentado um pouco à frente dos motores. Naquela noite havia poucas embarcações navegando sobre o Jordão.
Michael precisou gritar para ser ouvido em razão do barulho do vento e da água.
— Então, quer dizer que você não sabe exatamente quem está procurando nem onde encontrá-lo?
Eles tinham passado perto de Jericó, e Michael lhe dissera que ainda faltavam mais de cem quilómetros para navegar rio acima e que demorariam perto de três horas para chegar à embocadura do Lago Tiberius.
— É mais ou menos isso — admitiu Buck. — Espero descobrir tudo quando chegar lá.
Michael balançou a cabeça.
— O Lago Tiberius não é uma lagoa qualquer. Seu amigo ou seus amigos podem estar perto da margem ou do outro lado.
Buck fez um movimento afirmativo com a cabeça, sentou-se e encostou o queixo no peito para aquecer-se, pensar e orar.
"Senhor", ele orou silenciosamente, "nunca falaste comigo de modo audível, e não espero que faças isto agora, preciso de mais indicações. Não sei se o sonho que tive veio de ti, e se na volta devo passar pelo Egito. Não sei se vou encontrar Ben-Judá acompanhado de alguns pescadores ou se estou na trilha certa ao me dirigir para o antigo mar da Galiléia. Sempre gostei de ser independente e resoluto, mas confesso que estou completamente perdido aqui. Há muita gente à procura de Ben-Judá, e quero muito ser o primeiro a encontrá-lo."
A pequena embarcação tinha acabado de passar por uma curva do rio quando, de repente, os motores silenciaram e as luzes, dianteiras e traseiras, apagaram-se.
Deve ser a resposta à oração, pensou Buck.
— Problemas, Michael?
Buck ficou surpreso diante do silêncio que se seguiu enquanto o barco navegava à deriva. Parecia estar indo em direção à margem.
— Nenhum problema, Sr. Katz. Quando seus olhos se acostumarem à escuridão, será capaz de ver que tenho uma arma possante apontada para sua cabeça. Quero que permaneça sentado e me responda algumas perguntas.
Buck sentiu-se estranhamente calmo. Aquilo era muito bizarro, um fato inusitado mesmo para alguém que levava uma vida de aventuras.
— Não estou aqui para lhe fazer nenhum mal, Michael — ele disse. — Você não precisa ter medo de mim.
— Não sou em quem deve estar com medo neste momento — disse Michael. — Nas últimas 48 horas passei fogo em dois caras que eu achava que eram inimigos de Deus.
Buck mal conseguiu falar.
— De uma coisa você pode estar certo, Michael, não sou inimigo de Deus de jeito nenhum. Você está me dizendo que é um servo de Deus?
— Sou. Quero saber se você é mesmo o Sr. Katz. E se for, como pode provar?
— Aparentemente — disse Buck — nós dois precisamos ter a certeza de que estamos do mesmo lado.
— A responsabilidade é sua. As pessoas que sobem este rio procurando alguém que eu não quero que encontrem acabam morrendo. Se você for a terceira, vou dormir como um bebé esta noite.
— E como você vai justificar os homicídios? — perguntou Buck.
— Vou dizer que eram pessoas erradas procurando gente errada. Só quero saber seu nome verdadeiro, o nome da pessoa que você está procurando, por que está procurando essa tal pessoa, e o que pretende fazer caso a encontre.
— Mas, Michael, não posso correr o risco de lhe dar essas informações sem saber se você está do meu lado.
— Você está disposto a morrer para proteger seu amigo?
— Espero não ter de chegar a esse ponto, mas minha resposta é sim.
Os olhos de Buck estavam se acostumando à escuridão. Michael tinha dirigido o barco de tal maneira que quando o motor foi desligado ele se afastou um pouco e se enroscou suavemente nas ramagens e pedras perto da margem.
— Estou impressionado com sua resposta. — disse Michael — mas não vou hesitar em incluir você na lista dos inimigos mortos, se não conseguir me convencer que tem bons motivos para localizar essa tal pessoa.
— Então faça um teste comigo — disse Buck. — O que preciso fazer para convencer você de que não estou blefando, e ao mesmo tempo me convencer de que você está pensando na mesma pessoa que eu?
— Excelente — disse Michael. — Diga se é verdadeiro ou falso. A pessoa que você está procurando é jovem.
Buck respondeu rapidamente.
— Falso, se eu a comparar com você. Michael prosseguiu:
— A pessoa que você está procurando é do sexo feminino.
— Falso.
— A pessoa que você está procurando é um médico.
— Falso.
— Um gentio?
— Falso.
— Ignorante?
— Falso.
— Bilíngue?
— Falso.
Buck ouviu Michael movimentar a arma possante nas mãos e complementou rapidamente:
— Bilíngue não diz tudo. Seria melhor dizer poliglota. Michael deu um passo à frente e encostou o cano da arma na garganta de Buck. Buck fez uma careta e fechou os olhos.
— O homem que você está procurando é um rabino, o Dr. Tsion Ben-Judá — afirmou Michael.
Buck não disse nada. Apertando mais a arma contra o pescoço de Buck, Michael prosseguiu:
— Se você estiver procurando esse homem para matá-lo, e se eu for um compatriota dele, vou matar você. Se você estiver procurando esse homem para salvá-lo, e eu for um perseguidor dele, vou matar você.
— Mas neste último caso — Buck conseguiu dizer — você estaria sendo mentiroso por ter dito que é um servo de Deus.
— Isso é verdade. E o que o aconteceria comigo?
— Você poderia me matar, mas sairia perdedor.
— Como você sabe disso?
Buck não tinha mais nada a perder.
— Já está profetizado. Deus vai vencer.
— E se isso for verdade e eu for seu irmão, você pode me dizer o seu nome verdadeiro. — disse Michael.
Buck hesitou. Michael complementou:
— Mas se eu for seu inimigo, vou matar você. Buck não podia mais argumentar.
— Meu nome é Cameron Williams. Sou amigo do Dr. Ben-Judá.
— Você é aquele americano de quem ele fala?
— Provavelmente.
— Um último teste, se você não se importar.
— Parece que não tenho escolha.
— É verdade. Diga rapidamente seis profecias do Messias que foram cumpridas em Jesus Cristo, de acordo com as testemunhas que pregam no Muro das Lamentações. Buck deu um profundo suspiro de alívio e sorriu.
— Michael, você é meu irmão em Cristo. Todas as profecias do Messias foram cumpridas em Jesus Cristo. Posso dizer as seis que têm relação com a sua cultura. Ele seria descendente de Abraão, descendente de Isaque, descendente de Jacó, da tribo de Judá, herdeiro do trono de Davi e nascido em Belém.
Michael depositou a arma com força sobre o convés e deu um abraço enorme em Buck, rindo e chorando ao mesmo tempo.
— E quem lhe disse onde encontrar Tsíon?
— Moisés e Eli.
— Eles são meus mentores — disse Michael. — Sou um dos que se converteram ao ouvir a pregação deles e de Tsion.
— E você assassinou as outras pessoas que estavam procurando o Dr. Ben-Judá?
— Não considero assassinato o que fiz. Os corpos delas boiarão e serão consumidos pelo sal quando chegarem ao Mar Morto. Melhor que isso aconteça com elas do que com ele.
— Então você é um evangelista?
— De acordo com o Dr. Ben-Judá, sou um evangelista nos moldes do apóstolo Paulo. Ele disse que há 144 mil pessoas como nós ao redor do mundo, todas com a mesma missão de Moisés e Eli: proclamar que Cristo é o único e eterno Filho de Deus.
— Você acredita que você foi uma resposta quase instantânea à minha oração? — perguntou Buck.
— Isso não me surpreende — respondeu Michael. — Você deve saber que também foi.
Buck estava exausto. Ficou satisfeito por Michael voltar a cuidar dos motores e do barco. Virou o rosto para o outro lado e chorou. Deus era bom demais. Michael deixou-o a sós com seus pensamentos por alguns instantes, mas logo voltou a falar.
— Sabe de uma coisa? Não vamos direto ao Lago Tiberius.
— Não vamos? — disse Buck, aproximando-se de Michael.
— Você está fazendo o que devia fazer, indo na direção da Galiléia — disse Michael. — No meio do caminho entre Jericó e o Lago Tiberius vamos desembarcar no lado leste do rio. Caminharemos a pé por uns cinco quilómetros até onde meus compatriotas e eu escondemos o Dr. Ben-Judá.
— Como vocês conseguiram enganar os fanáticos?
— Existe um plano de fuga desde a primeira vez que o Dr. Ben-Judá falou no Estádio Kollek. Durante muitos meses achamos que não haveria necessidade de protegermos sua família. Era ele que os fanáticos queriam. Ao primeiro sinal de ameaça ou de ataque, enviamos ao escritório de Tsion um carro tão pequeno onde aparentemente só cabia o motorista dentro. Tsion deitou-se no chão do carro, atrás do motorista, com o corpo curvado e coberto com um cobertor. Foi trazido a este barco, e eu o levei rio acima.
— E essas histórias que contam por aí que foi o motorista dele o responsável pela chacina de sua família?
Michael balançou a cabeça.
— Aquele homem não teve culpa nenhuma, você concorda?
— Ele também era crente?
— Infelizmente, não. Mas foi um homem leal e compassivo. Acreditávamos que em breve ele se tornaria crente. Mas estávamos enganados. A propósito, o Dr. Ben-Judá não sabe da morte de seu motorista.
— Mas sabe o que aconteceu à sua família?
— Sim, e você pode imaginar a dor que ele está sentindo. Quando o trouxemos para este barco, ele permaneceu naquela posição fetal, coberto com o cobertor. De certa maneira, isso foi bom, porque conseguimos mantê-lo escondido até o local do desembarque. Durante a viagem inteira, ouvi o som de seus soluços apesar do barulho do barco. Ainda ouço esses soluços.
— Só Deus pode consolá-lo — disse Buck.
— Oro a Deus por isso — disse Michael. — Confesso que o período de consolo ainda não começou. Ele não consegue falar. Só chora.
— Quais são seus planos em relação a ele? — perguntou Buck.
— Ele precisa sair do país. Sua vida não vale nada aqui. Seus inimigos são em número muito maior que nós. Ele não estará seguro em nenhum lugar, mas pelo menos terá alguma chance fora de Israel.
— E para onde você e seus amigos vão levá-lo?
— Eu e meus amigos!?
— Quem, então?
— Você, meu amigo!
— Eu? — perguntou Buck.
— Deus falou por intermédio das duas testemunhas. Ele nos assegurou que surgiria um libertador. Que ele conhecia o rabino. Que ele conhecia as testemunhas. Que ele conhecia as profecias messiânicas. E que, acima de tudo, ele conhecia o Senhor Jesus Cristo. Essa pessoa, meu amigo, é você.
Buck quase dobrou o corpo ao meio. Sentira a proteção de Deus. Sentira a empolgação de servi-lo. Mas nunca se sentira servo de Deus de maneira tão direta e específica. Humilhou-se a ponto de sentir vergonha de si mesmo, como se fosse um homem indigno, indisciplinado e fraco para cumprir essa missão. Tinha sido tão abençoado, e o que fizera depois de converter-se? Tinha tentado ser obediente e falar de Cristo aos outros. Mas certamente continuava a ser uma pessoa indigna.

— O que vocês esperam que eu faça com Tsion?
— Não sabemos. Achamos que você o tiraria do país clandestinamente.
— Não vai ser fácil.
— Pense nisto, Sr. Williams, não foi fácil para você encontrar o rabino, foi? Você quase foi morto.
— Você achou que teria de me matar?
— Eu esperava que não. Tudo indicava que você não era o libertador, mas eu estava orando.
— Existe um aeroporto aqui por perto que tenha condições de receber um Learjet?
— Há uma pista a oeste de Jericó, perto de Al Birah.
— Já passamos por perto enquanto subíamos o rio, certo?
— Certo, é uma pista mais cómoda, claro. Mas ela faz parte do aeroporto que serve Jerusalém. A maioria dos voos que chegam e saem de Israel começa ou termina no Aeroporto Ben Gurion, em Tel- Aviv, mas há também um grande tráfego aéreo perto de Jerusalém.
— O rabino deve ser uma das pessoas mais conhecidas de Israel — disse Buck. — Como farei para passá-lo pela alfândega?
Michael sorriu na escuridão.
— Existe outra maneira? Só se for sobrenatural. Buck pediu um cobertor. Michael foi buscar um no compartimento nos fundos do barco. Buck cobriu os ombros e a cabeça com o cobertor.
— Ainda falta muito para chegarmos? — ele perguntou.
— Mais uns vinte minutos — respondeu Michael.
— Preciso dizer-lhe uma coisa que você talvez ache estranha — disse Buck.
— Mais estranha do que esta noite? Buck riu.
— Acho que não. Talvez eu tenha sido avisado em sonho para sair daqui pelo Egito, e não por Israel.
— Você pode?
— Não estou acostumado a esse tipo de mensagem de Deus, portanto não tenho certeza.
— Eu não duvidaria de um sonho que parece ter vindo de Deus — disse Michael.
— Mas isso faz sentido?
— Faz mais sentido que tentar tirar clandestinamente daqui o alvo dos fanáticos, fazendo-o passar por um aeroporto internacional.
— Mas Cairo foi destruída. Para onde estão sendo dirigidos os vôos que deveriam entrar e sair de lá?
— Alexandria — respondeu Michael. — Mas, mesmo assim, vocês precisam sair de Israel, de uma maneira ou outra.
— Descubra uma pista pequena em um lugar qualquer, de onde poderemos partir, evitando a alfândega.
— Mas, então, você não vai passar pelo Egito?
— Não sei o que fazer a respeito disso. Talvez o sonho indique que eu deva percorrer um outro caminho, que não seja o normal.
— Uma coisa é certa — disse Michael. — Isso terá de ser feito depois de escurecer. Se não for esta noite, será amanhã à noite.
— Eu não seria capaz de fazer isso esta noite, mesmo que os céus se abrissem e Deus apontasse o dedo para mim.
Michael sorriu.
— Meu amigo, se eu tivesse passado por tudo o que você passou, e minha oração tivesse sido respondida como a sua, não desafiaria Deus a fazer uma coisa tão simples assim.

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