domingo, 5 de setembro de 2010

DEIXADOS PARA TRÁS IVB

- Você tem razão - ele disse. - Talvez você tenha de pegar o carro e vir me buscar. Não estou
em condições de caminhar até lá.
Quando já estava chegando a sua vez de ser atendido, Buck pediu a Ritz que usasse o cartão
de crédito dele para alugar o carro e disse que o reembolsaria depois.
- Não quero que meu nome apareça neste Estado, caso a CG pense em fazer investigações.
Ritz jogou seu cartão em cima do balcão. Uma jovem funcionária começou a examiná-lo.
- Só sobraram carros pequenos. Pode ser?
- E se eu não aceitar, meu bem? - ele perguntou.
- É o que temos - ela disse, com uma cara feia.
- Então que diferença faz eu aceitar ou não?
- O senhor vai querer?
- Não tenho escolha. Que tamanho tem essa coisa?
A funcionária arrastou um cartaz brilhante sobre o balcão e apontou para a fotografia de um
carro minúsculo.
- Que coisa! - disse Ritz. - Acho que não há espaço nem para mim, e muito menos para o meu
filho, aqui.
Buck conteve-se para não rir. A funcionária, visivelmente entediada diante dos gracejos de Ritz,
começou a preencher os formulários.
- Essa coisa tem banco traseiro?
- Não. Mas há um pequeno espaço atrás dos bancos da frente, onde você pode colocar a
bagagem.
Ritz olhou para Buck. Buck sabia o que ele estava pensando. Os dois teriam de se espremer
dentro daquele carro. E Buck não podia sequer imaginar como incluiriam ali uma mulher adulta
em estado debilitado.
- O senhor tem preferência de cor? - perguntou a moça.
- Posso escolher? - disse Ritz. - Você só tem um modelo disponível, mas de diversas cores?
- Normalmente, sim - ela disse. - Mas agora só temos na cor vermelha.
- E eu preciso escolher?
- Só se for de cor vermelha.
- Está bem. Aguarde um minuto. Sabe qual é a minha cor preferida? Você tem um carro
vermelho?
- Sim.
- Então vou levar um vermelho. Espere um pouco. Filho, você gosta de carro vermelho?
Buck fechou os olhos e balançou a cabeça afirmativamente. Assim que Ritz lhe deu as chaves,
ele correu para pegar o carro. Atirou sua sacola e a de Ritz atrás dos bancos, empurrou-os para
trás até onde pôde, espremeu-se entre o volante e o banco, e acelerou em direção à saída
onde Ritz o aguardava. Buck levara poucos minutos para chegar, mas Ritz não aguentou
esperá-lo em pé. Ele estava sentado, com os braços passados ao redor dos joelhos dobrados.
Ritz esforçou-se para levantar e cobriu os olhos, parecendo estar zonzo. Buck abriu a porta do
lado dele, mas Ken disse:
- Pode deixar. Eu estou bem.
100
DOZE
Ele se espremeu para entrar no carro, ficando com os joelhos encostados no painel e a cabeça
raspando o teto.
- Rapaz, tenho de me abaixar para ver alguma coisa – ele disse, rindo.
- Não há muita coisa para ser vista - disse Buck. – Tente relaxar.
Ritz esbravejou.
- Acho que nunca levou uma pancada de avião na cabeça.
- Claro que não - disse Buck, desviando pelo acostamento e ultrapassando vários carros.
- A palavra certa não é relaxar. É sobreviver. Por que você me fez sair daquele hospital? Eu
precisava ficar mais um ou dois dias lá.
- Não jogue a culpa em cima de mim. Tentei fazer você mudar de ideia.
- Eu sei. Só me ajude a encontrar meu analgésico, por favor. Onde está minha sacola?
As vias expressas das Cidades Gémeas Saint Paul e Minneapolis estavam relativamente em
boas condições, comparadas às da região de Chicago. Serpenteando por entre becos e desvios,
Buck rodava a uma velocidade regular. Com os olhos na estrada e uma das mãos ao volante,
ele passou a outra por trás de Ken e pegou sua sacola grande de couro. Puxou-a com força
para passá-la por trás do banco de Ken. Quando ele fez esse movimento, a sacola bateu com
força na cabeça de Ken, fazendo-o dar um grito de dor.
- Oh, Ken! Desculpe-me! Você está bem?
Ken colocou a sacola no colo. Lágrimas corriam por seu rosto, e ele fez uma careta tão feia que
seus dentes ficaram à mostra.
- Se eu soubesse que você fez isso de propósito - ele disse, gemendo -, você seria um
homem morto.
Rayford Steele sentia grande necessidade de ler a Palavra de Deus desde o dia em que aceitara
a Cristo. No entanto, à medida que o mundo voltava lentamente à normalidade após os
desaparecimentos, suas tarefas e responsabilidades aumentavam dia a dia. Tornava-se cada
vez mais difícil dedicar-se à leitura da Bíblia o quanto ele desejava.
Seu pastor, o falecido Bruce Barnes, havia convencido os membros do Comando Tribulação
sobre a importância de "examinar as Escrituras" diariamente. Rayford procurava seguir essas
instruções, mas nas últimas semanas sentiu-se frustrado por não ter conseguido. Tentava sair
da cama, mas vivia envolvido em tantas discussões e atividades até tarde da noite que o
estudo da Palavra de Deus se tornou impraticável. Às vezes, lia a Bíblia nos intervalos dos
voos, porém isso causava animosidade entre ele e seus co-pilotos.
Finalmente, ele encontrou uma solução. Independente do lugar em que estivesse no mundo e
do que houvesse feito durante o dia ou à noite, chegaria o momento em que ele teria de
deitar-se para dormir. Independentemente do local ou da situação, antes de apagar a luz, ele
faria seu estudo bíblico.
A princípio, Bruce havia sido categórico, insistindo para que ele dedicasse a Deus os primeiros
minutos do dia e não os últimos.
- Você precisa levantar-se mais cedo - Bruce dissera. - Não seria melhor dedicar a Deus os
momentos em que você está descansado e nos quais dispõe de mais energia?
Rayford considerava sábio esse conselho, mas quando parecia não funcionar, ele voltava ao
antigo método. Sim, muitas vezes ele dormira enquanto lia a Bíblia ou orava, mas em geral
permanecia acordado, e Deus sempre tinha algo a lhe mostrar.
Depois de perder sua Bíblia no terremoto, Rayford começou a sentir-se frustrado. Agora, nas
horas vagas, ele queria conectar a Internet, ler uma boa versão da Bíblia e ver se Tsion Ben-
Judá enviara alguma mensagem por meio da central de boletins. Rayford sentiu-se agradecido
por ter guardado seu laptop na sacola de viagem. Se ele tivesse guardado sua Bíblia ali, não
101
estaria achando falta dela agora.
Trajando apenas camiseta, calça e meias, Rayford carregou o laptop até o centro de
comunicações. As secretárias eletrônicas estavam ligadas, mas não havia ninguém por perto.
Ele encontrou uma tomada de telefone livre, ligou o fio e sentou-se num local onde podia ver a
porta de seu quarto no fim do corredor.
Quando as informações começaram a aparecer na tela, seus ouvidos captaram o som de
passos. Ele abaixou a tela e olhou para o fim do corredor. Um moço de cabelos escuros, parado
diante de seu quarto, batia levemente na porta. Como ninguém atendeu, ele tentou girar a
maçaneta. Rayford imaginou que alguém tinha sido incumbido de roubá-lo ou
de procurar pistas para saber o paradeiro de Hattie Durham ou Tsion Ben-Judá.
Depois de bater novamente, o rapaz afastou-se com ar de desânimo. De repente, algo ocorreu a
Rayford. Seria Hassid? Ele chamou-o com um "psiu!" bem alto.
O moço parou e olhou na direção do som. Rayford estava na penumbra e levantou a tela do
laptop para clarear o local em que estava. O moço parou, querendo certificar-se de que a
pessoa diante do computador era quem ele esperava ver. Rayford imaginou que história ele
inventaria caso um de seus superiores passasse ali.
Rayford chamou-o com um gesto, e o moço aproximou-se. Em seu crachá, lia-se David Hassid.
- Posso ver seu sinal? - Hassid sussurrou. Rayford aproximou o rosto da tela e afastou os
cabelos. - Isso é muito legal, conforme os norte-americanos costumam dizer.
- Você estava à minha procura? - perguntou Rayford.
- Eu queria conhecê-lo - respondeu Hassid. - A propósito, eu trabalho no setor de
comunicações. - Rayford fez um movimento de cabeça confirmando que já sabia. - Apesar de
não termos telefones nos quartos, temos tomadas para telefones.
- No meu não há. Já procurei.
- Elas estão cobertas com placas de aço inoxidável.
- Não vi isso - disse Rayford.
- O senhor não precisa arriscar-se a ser visto aqui, capitão Steele.
- É bom saber disso. Eu não ficaria surpreso se eles descobrissem em que página da Web eu
entrei.
- Eles têm condições de saber. Podem rastrear as linhas de seu quarto também, mas o que
encontrariam?
- Estou tentando encontrar o que meu amigo Tsion Ben-Judá está dizendo estes dias.
- Eu posso lhe contar tudo - disse Hassid. - Ele é meu pai espiritual.
- O meu também.
- Foi ele quem o conduziu a Cristo?
- Não - admitiu Rayford. - Foi o antecessor dele. Mas considero o rabino meu pastor e mentor.
- Vou anotar para o senhor o endereço da central de boletins onde encontrei a mensagem dele
para hoje. É bem longa, mas é ótima. Ele e um irmão de fé descobriram seus respectivos sinais
ontem. Estou muito empolgado. O senhor sabia que talvez eu seja uma das 144.000
testemunhas?
- Bem, isso seria muito bom, não? - disse Rayford.
- Não vejo a hora de saber qual é a minha atribuição. Sinto-me muito novato, muito ignorante
acerca da verdade.
Conheço o Evangelho, mas preciso conhecer muito mais ainda, se quiser ser um evangelista
arrojado, que pregue como o apóstolo Paulo.
- Se você pensar bem, David, somos todos novatos nesse assunto. Mas eu sou o mais novato de
todos. Espere até ver todas as mensagens na central de boletins. Milhares e milhares de
crentes já responderam. Não sei como o Dr. Ben-Judá vai encontrar tempo para ler tudo. Eles
estão querendo muito que ele visite seus países a fim de ensiná-los e treiná-los pessoalmente.
Eu daria tudo para ter esse privilégio.
- Você sabe, é claro, que o Dr. Ben-Judá é um fugitivo.
- Sei, mas ele acredita ser uma das 144.000 testemunhas. Está ensinando que teremos um selo
na testa, pelo menos por uns tempos, e que as forças do mal não se insurgirão contra nós.
- Sério?
- Sim. Aparentemente, essa proteção não é para todos os que possuem o selo. É só para os
102
judeus convertidos.
- Em outras palavras, eu posso estar correndo perigo, mas você não, pelo menos por uns
tempos.
- Acho que é isso que ele está ensinando. Estou ansioso para saber qual será a sua reação,
capitão.
- Não vejo a hora de conectar a Internet.
Rayford desligou o laptop da tomada, e os dois caminharam pelo corredor conversando em voz
baixa. Rayford descobriu que Hassid tinha apenas 22 anos, era formado por uma faculdade de
aspirantes a militares na Polónia.
- Eu estava fascinado por Carpathia - ele contou – e candidatei-me imediatamente para
trabalhar na Comunidade Global. Não demorou muito tempo para eu descobrir a verdade pela
Internet. Agora me encontro-me em oposição às linhas inimigas, mas eu não planejava que
isso acontecesse dessa maneira.
Rayford aconselhou o jovem que não seria prudente declarar-se antes do momento certo.
- Será muito perigoso declarar-se crente, e neste momento você será muito útil à causa se
permanecer em silêncio, como o piloto McCullum está fazendo.
Quando chegaram à porta do quarto de Rayford, Hassid deu-lhe um forte aperto de mão.
- É bom demais saber que não estou só - ele disse. – O senhor gostaria de ver o meu sinal?
- Claro - respondeu Rayford, sorrindo.
Ainda segurando a mão de Rayford, Hassid afastou o cabelo da testa.
- Com certeza você é um dos nossos - disse Rayford. - Bem-vindo à família.
Na opinião de Buck, o estacionamento do hospital era semelhante ao do aeroporto. O
pavimento havia afundado, e na parte frontal foi aberto um desvio no meio dos entulhos.
Porém as pessoas estacionavam a esmo, e o único lugar que Buck encontrou ficava a centenas
de metros da entrada. Ele deixou Ken na porta do hospital com sua sacola e pediu-lhe que o
aguardasse ali.
- Só se você prometer não dar uma pancada em minha cabeça de novo - disse Ken. - Rapaz,
sair deste carro é igual a um parto.
Buck estacionou em linha com outros veículos e retirou da sacola alguns artigos de toalete.
Enquanto se dirigia para o hospital, ele ajeitou a camisa dentro da calça, passou uma escova
na roupa, penteou o cabelo e borrifou um pouco de desodorante nas axilas. Quando chegou
perto da entrada, ele avistou Ken deitado no chão, usando a sacola como travesseiro. Buck
perguntou a si mesmo se havia sido uma boa ideia forçá-lo a trabalhar. Algumas pessoas
olhavam para Ken, que parecia estar em coma. Oh, não!, pensou Buck.
- Você está bem? - ele perguntou, ajoelhando-se ao lado de
Ken. - Deixe-me ajudá-lo a levantar-se.
Ken falou sem abrir os olhos.
- Oh, rapaz! Buck, fiz uma grande bobagem.
- O quê?
- Você se lembra de quando me deu aquele remédio? – A voz de Ken era pastosa. - Eu engoli
sem água, certo?
- Eu perguntei se você precisava de água.
- O problema não é este. Eu devia tomar um comprimido de um frasco e três do outro, a cada
quatro horas. Eu me esqueci da última dose e resolvi tomar dois de um e seis do
outro.
- E daí?
- Eu misturei os frascos.
- Quais são?
Ritz deu de ombros e começou a respirar como se estivesse ressonando.
- Não caia dormindo em cima de mim, Ken. Preciso levar você para dentro.
Buck vasculhou a sacola de Ken e encontrou os frascos. A dose maior recomendada era para
dor local. A menor parecia ser uma combinação de morfina, Demerol e Prozac.
- Você tomou seis deste7.
- Hummm, hummm.
103
- Vamos, Ken. Levante-se. Já.
- Oh, Buck. Deixe-me dormir.
- De jeito nenhum. Temos de sair daqui já.
Buck não acreditava que Ken estivesse muito mal nem que precisasse ser submetido a uma
lavagem estomacal, mas se não o levasse para dentro, Ken seria um empecilho e não o
ajudaria em nada. E pior, ele talvez fosse arrastado dali para um outro lugar.
Buck levantou uma das mãos de Ken e enfiou a cabeça debaixo de seu braço. Quando ele
tentou endireitar-se, Ken soltou o corpo e voltou à posição anterior.
- Vamos, rapaz. Você precisa me ajudar
Ken apenas resmungava.
Buck segurou a cabeça de Ken com cuidado e retirou a sacola debaixo dele.
- Vamos, vamos!
- Você hummm, hummm.
Buck receava que a cabeça de Ken fosse o único lugar que ainda possuía sensibilidade e que
poderia tornar-se insensível repentinamente. Em vez de arriscar-se a contaminar o ferimento
na cabeça, Buck resolveu tocar em um ponto inflamado em outro local, um pouco abaixo da
linha dos cabelos, que estava muito vermelho. Buck afastou uma perna da outra, equilibrou-se
e apertou o local. Ritz levantou-se com um pulo como se tivesse recebido um tiro. Ele virou-se
para dar um tapa em Buck, mas este se esquivou, passou um braço ao redor das costas de
Ken, segurou a sacola com o outro e conduziu-o para a entrada do hospital.
Ken parecia estar delirando por causa do ferimento e agia como tal. As pessoas afastavam-se
do caminho.
Dentro do hospital, a situação era pior. Tudo o que Buck podia fazer era segurar Ken para que
ele não caísse. As filas diante da recepção eram imensas. Buck arrastou Ken até a sala de
espera, onde todas as cadeiras estavam ocupadas, e havia várias pessoas em pé. Buck olhou
para ver se alguém poderia ceder o lugar. Finalmente, uma senhora robusta de meia-idade
levantou-se. Buck agradeceu-lhe e fez Ken sentar-se. Ken curvou o corpo de lado, levantou os
joelhos, segurou o rosto com as duas mãos e deixou a cabeça cair sobre o ombro de um
senhor idoso a seu lado. O homem notou o ferimento, retraiu-se, mas depois resolveu
resignar-se e servir de travesseiro para Ken.
Buck enfiou a sacola de Ken debaixo da cadeira, desculpou-se com o senhor idoso e prometeu
voltar o mais rápido possível. Quando ele tentou aproximar-se do balcão da recepção, as
pessoas que formavam duas filas reclamaram.
- Lamento muito - ele gritou -, mas tenho um caso de emergência!
- Todos nós temos - gritou alguém.
Ele permaneceu na fila por alguns minutos, mais preocupado com Chloe que com Ken. Ken
estava dormindo. O único problema era que Buck estava sem ação. A menos que...
Ele saiu da fila e dirigiu-se apressado a um banheiro público. Lavou o rosto, umedeceu e
penteou o cabelo e ajeitou a roupa o melhor que pôde. Tirou a carteira de identidade do bolso
e prendeu-a na camisa, virando-a para que sua fotografia e seu nome não ficassem visíveis.
Retirou a lente que sobrara de seus óculos de sol quebrados, mas a armação estava tão
horrível que ele a levantou e a ajeitou por cima do cabelo. Olhou-se no espelho, fez uma
careta e disse a si mesmo:
- Você é médico. Um médico de verdade, mandão e faz-tudo.
Ele saiu do banheiro como se soubesse onde estava indo. Precisava encontrar uma pessoa
simplória. Os dois médicos que passaram por ele pareciam ser muito maduros e experientes
para cair em sua lábia. De repente, surgiu um jovem médico, magro, de olhos arregalados
como se não pertencesse àquele hospital. Buck parou na frente dele.
- Doutor, eu não lhe disse para verificar aquele trauma na emergência dois?
O jovem médico perdeu a fala.
- E então? - perguntou Buck, com voz autoritária.
- Não! Não, doutor. O senhor deve ter pedido a outro médico.
- Está bem! Mas preste atenção! Preciso de um estetoscópio - desta vez um esterilizado! - um
avental grande recém-saído da lavanderia e o prontuário da Mãe Coelha. Você entendeu?
O residente fechou os olhos e repetiu:
104
- Estetoscópio, avental, prontuário.
Buck continuou a gritar:
- Esterilizado, grande, Mãe Coelha.
- Vou buscar imediatamente, doutor.
- Vou esperar perto dos elevadores.
- Sim, senhor.
O residente virou-se e afastou-se. Buck gritou para ele:
- É para hoje, doutor! - O residente começou a correr.
Agora, Buck precisava encontrar os elevadores. Voltou à sala de espera e viu que Ken
continuava cochilando na mesma posição. O senhor a seu lado parecia constrangido. Buck
perguntou a uma mulher hispânica se ela sabia onde se localizavam os elevadores. Ela apontou
para o fim do corredor. Enquanto ele corria naquela direção, ouviu o interno atrás do balcão,
apressando as recepcionistas.
- Façam o que estou mandando! - ele dizia.
Alguns minutos depois, o jovem médico dirigiu-se apressado a Buck, trazendo tudo o que ele
pedira. Segurou o avental aberto, e Buck vestiu-o rapidamente, pendurou o estetoscópio no
pescoço e pegou o prontuário.
- Obrigado, doutor. De onde você é?
- Daqui mesmo! - respondeu o residente. - Deste hospital.
- Oh, que bom! Muito bom! Eu sou do... - Buck hesitou
por um segundo. - Young Memorial. Obrigado pela ajuda.
O residente parecia atordoado, como se estivesse pensando onde se localizava o Young
Memorial.
- De nada - ele disse.
Buck afastou-se dos elevadores e correu para o banheiro. Trancou-se em um dos
compartimentos e abriu o prontuário de Chloe. As fotografias o levaram às lágrimas. Ele
depositou a prancheta com o prontuário no chão e orou silenciosamente: "Senhor, como
permitiste que isso acontecesse?"
Com os dentes cerrados e tremendo, ele fazia um esforço enorme para acalmar-se. Não queria
que ninguém o ouvisse. Após mais ou menos um minuto, ele abriu o prontuário novamente. Na
fotografia, com o rosto quase irreconhecível, sua mulher olhava para ele. Se ela estivesse tão
inchada assim quando foi transportada para Kenosha, nenhum médico a teria reconhecido
mediante a fotografia que Buck exibira.
Conforme o médico de Kenosha dissera, aparentemente o lado direito do corpo de Chloe tinha
sido atingido com violência por uma parte do telhado. Sua pele, normalmente lisa e clara,
apresentava manchas vermelhas e amareladas e cortes onde haviam penetrado piche e
pedregulhos. O pé direito parecia ter sido forçado a dobrar-se ao meio. Um osso despontava de
sua canela. Os ferimentos começavam do lado de fora do joelho e atingiam a rótula, que
estava muito machucada. Na posição em que ela se encontrava, dava a impressão que o lado
direito de seu quadril havia saído do lugar. As contusões e os hematomas no tórax
evidenciavam costelas quebradas. O cotovelo tinha sinais de fratura e o ombro direito parecia
ter-se deslocado, com a clavícula direita pressionada contra a pele. O lado direito do rosto
estava achatado, comprometendo a mandíbula, os dentes, o osso malar e o olho. O rosto
estava tão desfigurado que Buck mal conseguia olhar para ele. O olho, inchado demais, estava
fechado. O único ferimento no lado esquerdo era uma escoriação perto do quadril; portanto, o
médico devia ter razão quando deduziu que ela havia levado uma pancada do lado direito.
Buck decidiu que não se assustaria quando a visse. Evidentemente, queria que Chloe
sobrevivesse. Mas isso seria o melhor para ela? Será que ela conseguiria comunicar-se? Seria
capaz de reconhecê-lo? Ele folheou o restante do prontuário, tentando interpretar as
anotações. Aparentemente, os órgãos internos não haviam sido atingidos. Ela sofrera várias
fraturas, inclusive três no pé, uma no tornozelo, na rótula, no cotovelo e em duas costelas, e
luxações no quadril e ombros. Havia também fraturas na mandíbula, osso malar e crânio.
Buck analisou o restante rapidamente, procurando uma palavra-chave. Lá estava. Detectados
batimentos fetais. Oh, Deus! Permite que ela e o bebé se salvem.
Buck não entendia nada de medicina, mas os sinais vitais de Chloe pareciam bons para uma
105
pessoa que sofrera um trauma daquelas proporções. Apesar de ela não ter recuperado a
consciência até o momento da elaboração do relatório médico, seu pulso, respiração, pressão
arterial e ondas cerebrais apresentavam normalidade.
Buck consultou seu relógio. O contingente da CG chegaria em breve. Ele necessitava de tempo
para pensar e recompor-se. Não seria bom para Chloe se ele agisse com precipitação. Depois de
memorizar o maior número possível de informações do prontuário e verificar que ela se
encontrava no quarto 335A, ele colocou a prancheta debaixo do braço. Saiu do banheiro com
os joelhos trémulos, mas aprumou-se assim que chegou ao corredor. Enquanto refletia sobre
suas opções, ele voltou à sala de espera da recepção. O senhor idoso havia ido embora. Ken
Ritz não tinha onde apoiar a cabeça, mas seu corpanzil estava curvado em posição fetal, como
uma criança crescida, com a parte sã da cabeça pousada no encosto da cadeira. Parecia que
ele teria condições de dormir por uma semana.
Buck pegou o elevador e desceu no terceiro andar para fazer o reconhecimento do terreno.
Abriu novamente o prontuário. "335A." Ela estava num quarto com outra paciente. E se ele
simulasse ser o médico da outra paciente? Mesmo que não constasse da lista dos médicos do
hospital, eles não barrariam sua entrada, certo? Talvez precisasse gritar e esbravejar, mas
entraria no quarto.
Dois policiais uniformizados da CG, um moço e uma mulher de mais idade, postavam-se de
cada lado da porta do quarto 335. Coladas na porta, havia duas fitas adesivas brancas, escritas
com tinta preta. A de cima dizia: "A: Mãe Coelha, Proibidas Visitas." Na outra, lia-se: "B: A.
Ashton."
Buck estava ansioso por ver Chloe. Com o relógio trabalhando contra ele, seria necessário
entrar ali antes dos oficiais da CG. Ele passou pelo quarto, foi até o fim do corredor, deu meiavolta
e caminhou na direção do 335.
Rayford não estava preparado para o que encontrou na Internet. Tsion se superara. Conforme
David Hassid dissera, milhares e milhares de pessoas já haviam respondido. Muitas enviavam
mensagens por meio da central de boletins identificando-se como membros das 144.000
testemunhas. Rayford examinou as mensagens por mais de uma hora, sem conseguir chegar
ao fim. Centenas de pessoas afirmavam que aceitaram a Cristo depois de lerem a mensagem de
Tsion e os versículos de Romanos que comprovavam a necessidade da presença de Deus.
Já era tarde, e os olhos de Rayford estavam cansados. Ele tinha a intenção de passar uma
hora na Internet, mas ficara muito mais tempo lendo a mensagem de Tsion. "A Colheita de
Almas Está Próxima" era um estudo fascinante das profecias bíblicas. Tsion elaborara o estudo
de maneira tão compreensível e pessoal que Rayford não se surpreendeu com o fato de
milhares de pessoas se considerarem afilhadas do rabino, apesar de nunca o terem conhecido.
No entanto, pelo que se deduzia das mensagens enviadas por meio da central de boletins, a
situação teria de modificar-se. O povo clamava para que Tsion visitasse seus países para
poderem aprender diretamente com ele.
Tsion respondeu aos pedidos contando a história de sua vida e como foi indicado pelo Estado
de Israel para estudar as afirmativas sobre a vinda do Messias por ser um profundo conhecedor
da Bíblia. Ele explicou, que pouco antes do arrebatamento da Igreja, tinha chegado à
conclusão de que Jesus de Nazaré preenchia todos os requisitos do Messias profetizado no
Antigo Testamento. Mas só aceitou a Cristo como seu salvador quando presenciou o
Arrebatamento.
Ele não revelou isso a ninguém até o dia em que foi convidado a aparecer em um programa de
TV de âmbito internacional a fim de divulgar os resultados de seu extenso estudo.
Surpreendeu-se ao constatar que os judeus ainda se recusavam a acreditar quem Jesus era,
segundo a Bíblia. Tsion revelou suas descobertas no final do programa, provocando um
tremendo tumulto, principalmente entre os ortodoxos. Em seguida, sua esposa e dois filhos
adolescentes foram trucidados, e ele mal teve tempo de fugir. Tsion contou também que, no
momento, estava escondido, mas que "continuaria a ensinar e a proclamar que Jesus Cristo é
o único nome debaixo do céu, dado entre os homens, pelo qual importa que sejamos salvos".
Rayford forçou-se a permanecer acordado, meditando sobre os ensinamentos de Tsion. Uma
106
contagem exibida na tela mostrava o número de respostas que estavam sendo compiladas pela
central de boletins. Parecia que o sistema de contagem estava com defeito. Os números
mudavam com tanta velocidade que Rayford não conseguia enxergá-los um a um. Ele separou
algumas respostas ao acaso. Muitos judeus convertidos afirmavam estar entre as 144.000
testemunhas. Além disso, muitos judeus e gentios diziam que passaram a acreditar em Cristo.
Outros milhares incentivavam uns aos outros no sentido de fazerem uma petição à
Comunidade Global solicitando proteção e asilo para esse grande estudioso.
Rayford sentiu um formigamento atrás dos joelhos que se estendeu até a cabeça. Uma parte
do poder de Carpathia dependia do julgamento do povo. Ele não teria condições de assassinar
Tsion Ben-Judá ou matá-lo "acidentalmente", e deixar transparecer que isso havia sido obra de
outras forças. Em razão do apelo dos milhares de pessoas do mundo inteiro em favor de Tsion,
Nicolae seria forçado a provar que podia resgatá-lo. Rayford desejava que também houvesse
um jeito de forçá-lo a fazer a coisa certa no caso de Hattie Durham.
A principal mensagem de Tsion para o dia baseava-se nos capítulos 8 e 9 de Apocalipse. Esses
capítulos davam sustentação a seus argumentos de que após o terremoto - a profecia da ira
do Cordeiro - viriam os segundos 21 meses da Tribulação.
O período todo é de sete anos ou 84 meses. Portanto, meus caros amigos, vocês podem ver
que estamos vivendo a primeira quarta parte. Lamentavelmente, os terríveis acontecimentos
que estamos presenciando tornar-se-ão progressivamente piores à medida que nos
aproximarmos do fim, do glorioso aparecimento de Cristo.
O que virá a seguir? Em Apocalipse 8.5 um anjo pega um incensário, enche-o do fogo do altar
de Deus e atira-o à terra, provocando trovões, vozes, relâmpagos e terremoto.
O mesmo capítulo prossegue dizendo que sete anjos com sete trombetas preparam-se para
tocar. É neste ponto que estamos. Em algum momento dos próximos 21 meses, o primeiro
anjo tocará a trombeta e haverá chuva de granizo e fogo, misturados com sangue, e atirados à
terra. Isso queimará um terço das árvores e toda a vegetação da terra.
Depois, um segundo anjo tocará a segunda trombeta, e a Bíblia diz que uma grande montanha
ardendo em chamas será atirada ao mar, cuja terça parte se transformará em
sangue, matando um terço de todos os seres viventes do mar e afundando um terço dos
navios.
Quando o terceiro anjo tocar a trombeta cairá do céu uma grande estrela, ardendo como tocha,
sobre a terça parte dos rios e nascentes. A Bíblia dá um nome a essa estrela. O livro de
Apocalipse a chama de Absinto. Onde ela cai, a água se torna amarga e quem a beber, morre.
Como pode uma pessoa que tem o poder de raciocínio ver tudo o que aconteceu e não temer o
que está por vir? Se ainda houver incrédulos após o terceiro Julgamento das Trombetas, o
quarto deverá convencer a todos. Qualquer pessoa que resistir às admoestações de Deus
naquela época, provavelmente já decidiu servir ao inimigo. No quarto Julgamento das
Trombetas, o sol, a lua e as estrelas serão golpeados, de modo que a terça parte do sol, a
terça parte da lua e a terça parte das estrelas escurecerão. Nunca mais veremos o sol brilhar
tão intensamente quanto antes. O dia de verão mais claro, com o sol a pino, terá apenas dois
terços da luminosidade que possuía antes. Que explicação haverá para isso?
No meio desses acontecimentos, o autor do livro de Apocalipse diz que viu e ouviu um anjo
voando pelo meio do céu e dizendo em alta voz: "Ai, ai, ai dos que moram na terra, por causa
das restantes vozes da trombeta dos três anjos que ainda têm de tocar."
Em meu próximo estudo, cobrirei os três últimos Julgamentos das Trombetas do segundo
período de 21 meses da Tribulação. Porém, meus amados irmãos e irmãs em Cristo, a vitória
também se aproxima. Permitam-me recordar-lhes algumas passagens da Bíblia, cujo desfecho
já está determinado. Nós vencemos! Mas precisamos compartilhar a verdade, falar da escuridão
e levar o maior número possível de almas para Cristo nestes últimos dias.
Quero que saibam por que acredito que uma grande colheita de almas se aproxima. Mas,
antes, reflitam sobre estas afirmações e promessas:
No livro de Joel 2.28-32, que se encontra no Antigo Testamento, Deus diz o seguinte: "E
acontecerá depois que derramarei o meu Espírito sobre toda a carne; vossos filhos e vossas
filhas profetizarão, vossos velhos sonharão, e vossos jovens terão visões; até sobre os servos e
sobre as servas derramarei o meu Espírito naqueles dias.
107
"Mostrarei prodígios no céu e na terra; sangue, fogo, e colunas de fumo.
"O sol se converterá em trevas, e a lua em sangue, antes que venha o grande e terrível dia do
Senhor.
"E acontecerá que todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo; porque no monte
Sião e em Jerusalém estarão os que forem salvos, assim como o Senhor prometeu, e entre os
sobreviventes aqueles que o Senhor chamar."
Vocês não acham que essa é uma promessa maravilhosa e abençoada? Apocalipse 7 indica que
os julgamentos das trombetas que acabo de mencionar não virão enquanto os servos de Deus
não receberem o selo na testa. Não haverá mais nenhuma dúvida sobre quem são os
verdadeiros crentes. Aos primeiros quatro anjos, a quem foram entregues os quatro primeiros
Julgamentos das Trombetas, foi instruído que: "Não danifiqueis nem a terra, nem o mar, nem
as árvores, até selarmos em suas frontes os servos do nosso Deus." Portanto, está claro que
esse selo vem antes. Nas últimas horas tornou-se evidente para mim e para outros irmãos e
irmãs em Cristo que o selo na testa dos verdadeiros crentes já está visível, mas
aparentemente só os crentes podem vê-lo. Trata-se de uma descoberta emocionante, e eu
gostaria muito que vocês me informassem se já viram tal sinal uns nos outros.
A palavra servos, que se origina da palavra grega doulos, é a mesma que os apóstolos Paulo e
Tiago usaram quando se referiram a si mesmos como prisioneiros de Jesus Cristo. A principal
função de um servo de Cristo é divulgar o Evangelho da graça de Deus. Seremos inspirados
porque podemos compreender o livro de Apocalipse, que foi dado por Deus "para mostrar aos
seus servos as coisas que em breve devem acontecer", de acordo com o primeiro versículo do
primeiro capítulo. O terceiro versículo diz: "Bem-aventurados aqueles que lêem e aqueles que
ouvem as palavras da profecia e guardam as coisas nela escritas, pois o tempo está próximo."
Embora ainda tenhamos de sofrer grandes perseguições, podemos nos sentir confortados
porque durante a Tribulação estaremos aguardando eventos extraordinários mencionados em
Apocalipse, o último livro no qual Deus revela seu plano ao homem.
Agora, permitam-me mencionar mais um versículo do capítulo 7 de Apocalipse, e explicarei por
que motivo resolvi falar desta grande colheita de almas.
Em Apocalipse 7.9, João, a quem as profecias foram reveladas, diz: "Depois destas coisas vi, e
eis grande multidão que ninguém podia enumerar, de todas as nações, tribos, povos e línguas,
em pé diante do trono e diante do Cordeiro, vestidos de vestiduras brancas, com palmas nas
mãos."
Estes são os santos da tribulação. Agora, acompanhem atentamente meu raciocínio. Em um
versículo posterior, Apocalipse 9.16, o autor diz que o número dos exércitos da cavalaria era
de duzentos milhões. Se um exército tão imenso pode ser enumerado, o que a Bíblia queria
dizer quando se refere aos santos da tribulação - aqueles que aceitarão a
Cristo durante esse período - como uma "grande multidão que ninguém podia enumerar" [grifo
meu]?
Vocês entendem por que acredito que devemos levar a Deus mais de um bilhão de almas
durante este período? Vamos orar por esta grande colheita. Todo aquele que aceitar a Cristo
como seu Redentor terá parte nisso, a maior incumbência que já foi dada à humanidade.
Aguardo comunicar-me com vocês em breve.
Com amor, no nome incomparável do Senhor Jesus Cristo, nosso Salvador,
- Tsion Ben-Judá
Rayford mal conseguia manter os olhos abertos, mas estava comovido com o entusiasmo
ilimitado de Tsion e seus maravilhosos ensinamentos. Ele voltou a olhar para a contagem
exibida na tela e piscou, parecendo não acreditar no que via. O número já estava em dezenas
de milhares e aumentava assustadoramente. Rayford queria ser mais um naquela lista, mas
estava exausto.
Nicolae Carpathia havia feito um pronunciamento ao mundo inteiro via rádio e TV. Sem dúvida,
a reação seria monumental. Mas será que competiria com a reação demonstrada a esse rabino
convertido, que se comunicava do exílio com uma nova família cujo número era cada vez
maior?
108
Buck decidiu que naquele momento ele não era apenas um médico, mas também um ególatra.
Aproximou-se do quarto 335 e limitou-se a fazer um movimento com a cabeça para os dois
policiais da Comunidade Global. Quando ele tentou abrir a porta, ambos barraram-lhe a
entrada.
- Com licença! - ele disse com ar zangado. - A campainha de alarme da Srta. Ashton tocou.
Se vocês não quiserem ser responsáveis pela morte de minha paciente, saiam da frente.
Os policiais se entreolharam, parecendo estar em dúvida. A mulher tentou pegar o crachá de
Buck. Ele afastou a mão dela com força, entrou no quarto e trancou a porta. Parou por alguns
instantes e deu meia-volta, preparado para responder, caso começassem a esmurrar a porta.
Eles não tomaram nenhuma atitude.
Os leitos das duas pacientes estavam rodeados de cortina. Buck afastou a primeira e avistou
Chloe. Ele prendeu a respiração enquanto seus olhos percorriam o corpo dela coberto com um
lençol desde os pés até o pescoço. Parecia que seu coração ia explodir. A pobre e meiga Chloe
não tinha ideia de onde estava se metendo quando concordou em se casar com ele. Buck
mordeu os lábios com força. Não havia tempo para emoções. Ele ficou feliz por ela estar
dormindo tranquilamente. Seu braço direito estava engessado desde o pulso até o ombro. O
braço esquerdo estendia-se ao lado do corpo, e havia uma agulha intravenosa espetada no
dorso de sua mão.
Buck deixou a prancheta sobre a cama e colocou a mão debaixo da dela. Ao tocar aquela pele
macia, que ele gostava de acariciar, Buck sentiu vontade de segurá-la nos braços, confortá-la,
levar embora sua dor. Ele curvou-se e encostou os lábios na mão de Chloe, deixando que as
lágrimas caíssem por entre os dedos. Ele teve um sobressalto ao sentir um leve aperto na mão
e olhou para ela. Chloe estava com os olhos fixos nele.
- Eu estou aqui! - ele sussurrou desesperado, aproximando-se para acariciar o rosto dela. -
Chloe, meu bem, é Buck.
Ele chegou mais perto. Ela o acompanhava com o olhar. Buck não queria olhar para o lado
direito dela. Ali estava sua esposa, com a aparência meiga e inocente de um lado e
monstruosa do outro. Ele segurou a mão dela novamente.
- Você está me ouvindo? Chloe, aperte minha mão outra vez.
Nenhuma reação.
Buck correu até o outro lado do quarto e afastou a cortina para olhar a outra paciente. A.
Ashton era uma senhora beirando os 60 anos e parecia estar em coma. Buck voltou, pegou a
prancheta e analisou o rosto de Chloe. Ela o acompanhava com o olhar. Será que podia ouvir?
Estaria consciente?
Ele destrancou a porta e saiu no corredor.
- No momento, ela está fora de perigo - ele disse - mas há um problema. Quem disse que a
Srta. Ashton estava no leito B?
- Desculpe-me, doutor - disse a policial - mas não temos nada a ver com as pacientes. Nossa
responsabilidade é vigiar a porta.
- Então, vocês não são responsáveis por esta confusão de nomes?
- Absolutamente - respondeu a policial.
Buck arrancou as fitas adesivas da porta e inverteu as posições.
- A senhora pode tomar conta deste quarto sozinha enquanto este jovem vai buscar uma
caneta para mim?
- Certamente, senhor. Craig, vá buscar uma caneta para ele.
109
TREZE
Buck voltou a entrar no quarto, desesperado para que Chloe soubesse que ele estava ali para
protegê-la.
Ele não suportava olhar para aquele rosto com marcas escuras e roxas e um grande inchaço no
olho. Segurou delicadamente a mão de Chloe e aproximou-se de seu rosto.
- Chloe, estou aqui, e não vou permitir que nada lhe aconteça. Mas preciso de sua ajuda.
Aperte minha mão. Pisque. Dê um sinal de que está me ouvindo.
Nenhuma reação. Buck encostou o rosto no travesseiro dela, com os lábios bem próximos de
seu ouvido. "Oh, Deus", ele orou, "por que permitiste que isto acontecesse? Por que ela?
Ajuda-me a tirá-la daqui, Senhor, eu te suplico!"
Buck sentiu a mão de Chloe leve como uma pluma, e ela parecia frágil como uma criança
recém-nascida. Que contraste com a mulher forte que um dia ele conhecera e que amava
tanto. Além de ser destemida, ela era muito inteligente. Como ele gostaria que ela estivesse
em condições de ajudá-lo.
A respiração de Chloe acelerou, e Buck viu uma lágrima escorrendo pela orelha dela. Ele olhou
firme para o rosto de Chloe e ela começou a piscar rapidamente. Buck perguntou a si mesmo se
ela estava tentando comunicar-se.
- Estou aqui - disse ele repetidas vezes. - Chloe, é Buck.
O policial da CG já devia estar voltando. Buck orou para que ele estivesse do lado de fora,
aguardando para entregar-lhe a caneta, mas com receio de bater na porta. Por outro lado,
talvez trouxesse alguém com ele e isso eliminaria qualquer possibilidade de Buck tirar Chloe
dali.
- Meu bem - ele disse rapidamente -, não sei se você pode me ouvir, mas tente concentrarse.
Estou trocando o seu nome pelo da mulher do leito ao lado. O nome dela é Ashton. Estou
fingindo ser seu médico. Está certo? Você entendeu?
Buck aguardou, cheio de esperança. Finalmente, ela fez um leve movimento.
- Eu comprei para você - ela balbuciou.
- O quê? Chloe, o quê? Sou eu, Buck. Você comprou para mim o quê?
Ela passou a língua pelos lábios e engoliu saliva.
- Eu comprei para você, e você quebrou.
Buck imaginou que ela estivesse delirando ou com a língua enrolada. Balançou a cabeça e
sorriu para ela.
- Confie em mim, criança, que tudo vai dar certo.
- Doutor Buck - ela resmungou, esboçando um sorriso.
- Sim! Chloe! Você me reconheceu.
Ela entreabriu os olhos e fechou-os vagarosamente, como se estivesse fazendo esforço para
permanecer acordada.
- Você devia ser mais cuidadoso com os presentes.
- Não sei do que você está falando, meu amor, e talvez você também não saiba. Não sei o que
fiz de errado, mas me desculpe.
Pela primeira vez, ela virou-se para olhar para ele.
- Você quebrou seus óculos, Dr. Buck.
A armação dos óculos de sol de Buck estava presa na parte de cima de sua cabeça.
- Sim! Chloe, preste atenção. Estou tentando protegê-la. Troquei os nomes que estão na porta.
Seu nome é...
- Ashton - ela conseguiu dizer com muito esforço.
- Isso mesmo! E seu primeiro nome começa com a letra A. Que nome bonito começa com A?
- Annie - ela disse. - Sou Annie Ashton.
- Perfeito. E quem eu sou?
110
Chloe apertou os lábios e começou a pronunciar a letra B, mas parou.
- Meu médico - ela disse.
Buck virou-se para ver se Craig, o policial, havia trazido a caneta.
- Doutor - Chloe disse em voz alta. - As pulseiras de identificação.
Ela estava raciocinando! Como ele pôde esquecer que alguém talvez tivesse a ideia de conferir
as pulseiras de identificação do hospital?
Buck arrancou a pulseira de Chloe, tomando o cuidado para não deslocar a agulha intravenosa,
e afastou a cortina do leito de A. Ashton. Ela parecia estar dormindo profundamente. Buck
retirou a pulseira da mulher com cuidado, percebendo que ela nem sequer dava sinais de estar
respirando. Ele aproximou-se um pouco mais, porém não ouviu nem sentiu nada. Também não
havia pulsação. Ele trocou as pulseiras.
Buck sabia que estava apenas ganhando tempo. Não demoraria muito para alguém descobrir
que o corpo dessa mulher idosa não era o de uma grávida de 22 anos. Mas, por enquanto, ela
era a Mãe Coelha.
Quando Buck saiu do quarto, os policiais estavam conversando com um médico mais velho.
Craig, com uma caneta preta na mão, estava dizendo:
- ...não sabíamos exatamente o que fazer.
O médico, um homem de óculos, alto e de cabelos grisalhos, segurava três prontuários. Ele fez
uma carranca para Buck.
Buck olhou furtivamente para o nome costurado no bolso de seu avental.
- Dr. Loyd! - ele exclamou, estendendo a mão.
O médico apertou-a com relutância.
- Não me lembro de...
- Claro que sim! Não nos vemos desde, hã, aquele...
- Simpósio?
- Isso mesmo, aquele em, hã...
- Bemidji?
- Sim, você foi brilhante.
O médico pareceu lisonjeado, como se estivesse tentando lembrar-se de Buck. Mesmo assim,
gostou do elogio e disse:
- Bem, eu...
- Um de seus filhos estava prestes a fazer alguma coisa. O que era mesmo?
- Oh, devo ter mencionado meu filho, que ia começar a fazer residência.
- Certo! E como ele está indo?
- Maravilhosamente. Estamos muito orgulhosos dele. Agora, doutor...
- Tenho certeza disso - interrompeu Buck. - Só uma pergunta, doutor - ele disse, tirando do
bolso o frasco de comprimidos de Ken Ritz. - Você poderia me ajudar a...
- Posso tentar.
- Obrigado, Dr. Lloyd. - Buck levantou o frasco de tranquilizantes. - Prescrevi este remédio a
um paciente com um ferimento grave na cabeça, e ele exagerou a dose inadvertidamente. Qual
é o melhor antídoto? O Dr. Lloyd examinou o frasco.
- A consequência não é muito grave. Ele vai dormir por algumas horas até o efeito passar.
Trauma na cabeça, foi o que você disse?
- Sim, é por isso que eu não queria que ele continuasse dormindo.
- Claro. O melhor antídoto é uma injeção de Benzedrina.
- Como não faço parte do corpo médico deste hospital - disse Buck -, não posso pegar nenhum
remédio na farmácia...
O Dr. Lloyd rabiscou uma receita.
- Agora, com sua licença, Dr...
- Cameron - disse Buck sem pensar.
- Prazer em vê-lo novamente, Dr. Cameron.
- O prazer foi meu, Dr. Lloyd, e obrigado.
Buck pegou a caneta das mãos do desapontado Craig e alterou as fitas adesivas da porta de B
para A e de A para B.
- Volto logo, Craig - ele disse, colocando a caneta na palma da mão do policial.
111
Buck caminhou apressado, fingindo saber aonde estava indo, mas observando atentamente as
placas indicativas. Não houve problemas com a receita do Dr. Lloyd na farmácia. Em seguida,
Buck dirigiu-se ao saguão à procura de Ken Ritz. No caminho, apropriou-se de uma cadeira de
rodas.
Ken estava curvado para a frente, com os cotovelos apoiados nos joelhos, segurando o queixo
com as duas mãos e roncando. Graças ao treinamento que recebera quando precisou aplicar
injeções de insulina em sua mãe, Buck abriu com facilidade o invólucro, levantou a manga da
camisa de Ken sem inclinar o corpo dele, desinfetou o local e arrancou a tampa da agulha
hipodérmica com os dentes. Quando ele apontou a agulha para o bíceps de Ken, a tampa caiu
de sua boca e rolou no chão.
- Ele não devia estar usando luvas? - alguém resmungou.
Buck encontrou a tampa, substituiu-a e colocou tudo no bolso. De frente para Ken, ele colocou
as mãos nas axilas do companheiro e levantou-o da cadeira. Girou o corpo 45 graus e ajeitou-o
na cadeira de rodas, esquecendo-se de acionar o freio. Quando o corpo de Ken despencou na
cadeira, ela começou a rodar para trás, e Buck não teve tempo de soltar as mãos. Sentado em
cima das longas pernas de Ritz, com a cabeça de frente para o peito dele, Buck atravessou a
sala de espera, com passos trôpegos, enquanto as pessoas abriam caminho, assustadas.
Quando a cadeira começou a ganhar velocidade, a única opção de Buck era firmar os pés no
chão para impedi-la de continuar a rodar, mas acabou caindo estatelado em cima do piloto
combalido, que despertou por alguns instantes e gritou:
- Charlie Bravo Alfa chamando base!
Buck conseguiu equilibrar-se, abaixou os apoios para pés e levantou os joelhos de Ritz para
colocar os pés dele no lugar. Buck só esperava que a Benzedrina agisse rápido para que Ritz
pudesse ajudá-lo a transportar o corpo da Srta. Ashton, com a pulseira de identificação da Mãe
Coelha, até o necrotério. Se ele conseguisse convencer temporariamente o pessoal da
Comunidade Global de que sua refém estava morta, ganharia um pouco mais de tempo.
Enquanto Buck empurrava Ken até os elevadores, os braços do piloto penderam do lado de fora
da cadeira, impedindo que ela rodasse. Buck colocou os braços de Ken no lugar, mas eles se
soltaram novamente. Buck só conseguiu firmá-los no lugar quando o elevador chegou, mas,
assim que entraram, Ritz abaixou a cabeça e encostou o queixo no peito, deixando seu
ferimento na cabeça visível a todos os que estavam no elevador.
Quando Ritz começou a sair de seu estado de torpor, Buck conseguiu tirá-lo da cadeira de rodas
e colocá-lo em uma maca que encontrou no caminho. Esse movimento provocou tonturas em
Ken. Ele caiu de costas na maca, esbarrando o ferimento no lençol.
- Está tudo bem! - ele gritou, com a voz pastosa.
Depois de ajeitá-lo na maca, Buck cobriu-o com o lençol até o pescoço, empurrou a maca e
encostou-a perto de uma parede, aguardando que Ritz despertasse completamente. Enquanto
um grande número de pessoas transitava por ali, Ritz sentou-se duas vezes na maca, olhou ao
redor e voltou a deitar-se.
Finalmente, ele teve condições de ficar em pé sem sentir tontura, mas continuava
desorientado.
- Rapaz, dormi um bom sono. Poderia até ter dormido mais um pouco.
Buck explicou que precisava encontrar mais um avental, de modo que Ken pudesse ser
confundido com um atendente ajudando o Dr. Cameron. Buck precisou explicar várias vezes até
convencer-se de que Ken havia compreendido tudo.
- Espere um pouco. Não saia daqui - disse Buck.
Perto do centro cirúrgico, Buck avistou um médico pendurar um avental em um cabide e
afastar-se dali. O avental parecia limpo. Buck pegou-o e levou-o para Ken. Mas Ken saíra do
local combinado e estava no saguão do elevador.
- O que você está fazendo? - perguntou Buck.
- Vou pegar minha sacola - respondeu Ken. - Deixei-a do lado de fora do hospital.
- Ela está debaixo da cadeira na sala de espera. Vamos pegá-la depois. Agora vista este
avental.
As mangas eram dez centímetros mais curtas que os braços de Ken, que parecia ter
encontrado a última peça disponível numa loja de roupas.
112
Empurrando a maca, eles caminharam o mais rápido que puderam até o 335.
- Doutor - disse a policial -, nossos superiores nos informaram que há uma comitiva vindo do
aeroporto e...
- Sinto muito - disse Buck -, mas a paciente que você está vigiando morreu.
- Morreu? - ela repetiu. - Bem, a culpa não foi nossa. Nós...
- Ninguém está dizendo que a culpa é de vocês. Preciso transportar o corpo para o necrotério.
Informem a comitiva, ou a quem quer que seja, onde o corpo se encontra.
- Então não há mais necessidade de permanecermos aqui, certo?
- Claro que não. Obrigado por tudo.
Quando eles entraram no quarto, Craig viu o ferimento na cabeça de Ritz.
- Você é um atendente ou um paciente?
Ken deu meia-volta.
- Você tem algum preconceito contra deficientes?
- Não senhor, desculpe-me. Eu só...
- Todo mundo precisa de emprego! - disse Ken.
Chloe esboçou um sorriso ao avistar Ken. Ela o conhecera em Palwaukee depois que Buck e
Tsion voltaram do Egito. Buck apontou para Ritz.
- Esta é Annie Ashton - ele disse. - Sou o médico dela.
- O Dr. Buck - disse Chloe em voz baixa - quebrou os óculos.
Ritz sorriu.
- Parece que tomamos o mesmo remédio.
Buck cobriu a cabeça da mulher morta com o lençol, tirou a cama com rodas do lugar e
substituiu-a pela maca. Conduziu a cama em direção à porta e pediu a Ken que permanecesse
ao lado de Chloe.
- Só por medida de precaução - ele disse.
- Medida de precaução?
- O pessoal da CG pode chegar nesse meio tempo.
- Devo fingir que sou médico?
- De certa forma, sim. Se nós pudermos convencê-los de que a mulher que eles procuram está
no necrotério, talvez tenhamos tempo de esconder Chloe.
- Você não vai querer amarrá-la em cima do carro alugado, vai?
Buck empurrou a cama pelo corredor na direção dos elevadores. De um deles desceram quatro
pessoas. Três eram homens, trajando ternos escuros. As credenciais em seus paletós os
identificavam como funcionários da Comunidade Global.
- Que número estamos procurando? - perguntou um deles.
- O 335 - respondeu um outro.
Buck desviou o rosto. Talvez sua fotografia já estivesse circulando. Assim que ele entrou com a
cama no elevador, um médico apertou o botão de parada de emergência. Dentro do elevador
havia seis pessoas, além de Buck e a cama com o corpo.
- Desculpem-me, senhoras e senhores - disse o médico. - Só um momento, por favor.
- Você não é médico residente daqui, é? - ele cochichou perto do ouvido de Buck.
-Não.
- Temos regras rígidas que proíbem transporte de corpos em elevadores que não sejam de
serviço.
- Eu não sabia.
O médico virou-se para as outras pessoas e disse:
- Sinto muito, mas vocês precisam pegar outro elevador.
- Felizmente - disse alguém.
O médico apertou o botão para abrir a porta, e todos desceram. Em seguida, ele apertou o
botão do subsolo.
- É a primeira vez que você trabalha neste hospital?
-Sim.
- Siga à esquerda até o fim do corredor.
Ao chegar ao necrotério, Buck pensou èm deixar o corpo do lado de fora da porta na esperança
de que fosse identificado temporariamente como Mãe Coelha. Porém, ele foi visto por um
113
homem sentado atrás de uma mesa, que lhe disse:
- Você não pode trazer camas para cá. Não sou responsável por esse tipo de coisa. Você terá de
levá-la de volta.
- Estou com muita pressa.
- O problema é seu. Não temos nada a ver com camas deixadas aqui.
Dois atendentes transferiram o corpo para uma maca, e o funcionário disse:
- Papéis?
- Como assim?
- Papéis! Atestado de óbito. Autorização do médico.
- Na pulseira de identificação está escrito Mãe Coelha. Fui encarregado de trazê-la para cá. É só
isso o que eu sei.
- Quem é o médico dela?
- Não faço ideia?
- Qual é o quarto?
-335.
- Vou verificar. Agora leve embora esta cama daqui.
Buck caminhou apressado até o elevador, orando para que a artimanha tivesse dado certo e
que o contingente da CG estivesse dirigindo-se para o necrotério a fim de constatar que Mãe
Coelha estava morta. Ainda bem que não cruzou com eles no caminho.
Quando se aproximava do 335, Buck avistou o grupo. Ele olhou para o outro lado e continuou a
caminhar.
Um deles disse:
- Onde está Charles?
- Devíamos ter esperado - respondeu a mulher. – Ele estava estacionando o carro. Como vai
conseguir nos encontrar?
- Ele não deve estar longe. Quando chegar aqui, vamos resolver esse assunto.
Depois que eles se afastaram, Buck voltou a colocar a cama no 335.
- Sou eu - disse ele ao passar pela cortina ao redor da cama de Chloe. Ela estava mais pálida e
tremia. Sentado ao lado da cama, Ken segurava delicadamente a cabeça de Chloe.
- Você está com frio, querida? - perguntou Buck. Chloe meneou a cabeça. As manchas de seu
rosto haviam se espalhado. As marcas escuras causadas por hemorragia subcutânea
estendiam-se até as têmporas.
- Ela está um pouco assustada, só isso - disse Ritz. – Eu também. Acho que mereço um Oscar.
- Doutor Aeroplano - disse Chloe, e Ritz riu.
- Ela só disse isso. Eles não conseguiram extrair mais nada dela, a não ser o nome.
- Annie Ashton - ela sussurrou.
- Foi muito difícil tapear aqueles sujeitos. Eles entraram aqui reclamando, principalmente a
mulher, por não haver vigilância na porta, conforme haviam pedido. "Nós não pedimos", disse
Ken, imitando a voz dela. "Recebemos ordens."
Chloe balançou a cabeça afirmativamente. Ken prosseguiu:
- Eles passaram por mim e puxaram com força a cortina, dizendo que ela devia estar no leito B,
orgulhosos por terem conseguido ler a fita adesiva na porta. Eu gritei: "Dois visitantes por vez,
por favor, e não se aproximem muito. Minha paciente está com intoxicação." Eu queria dizer
infecção, mas é a mesma coisa, não? Eles viram imediatamente que havia uma maca vazia ali.
Um deles enfiou a cabeça no vão da cortina. Eu fiquei na ponta dos pés, com pose de médico,
e disse: "Se você não quiser pegar febre tifóide, é melhor tirar o rosto daqui."
- Febre tifóide?
- Soou legal para mim. E funcionou.
- Eles fugiram assustados?
- Quase. O sujeito fechou a cortina e disse: "Doutor, por favor, podemos falar com o senhor em
particular?" Eu respondi: "Não posso deixar minha paciente sozinha. E preciso me desinfetar
antes de conversar com alguém. Estou imunizado, mas posso transmitir a doença."
Buck ergueu as sobrancelhas.
- E eles? Acreditaram?
Chloe balançou a cabeça, parecendo estar se divertindo.
114
- Eu é que fui bom demais - disse Ken. - Eles perguntaram quem era a minha paciente. Eu
poderia ter dito Annie Ashton, mas achei que a cena seria mais real se me sentisse
ofendido pela pergunta. Eu disse: "O nome dela não é tão importante quanto seu diagnóstico.
Se quiserem saber o nome, ele está escrito na porta." Eles cochicharam entre si e um me
perguntou: "Ela está consciente?" Eu respondi: "Se você não é médico, não é da sua conta." A
mulher disse alguma coisa sobre chamar um médico com o qual eles ainda não haviam
conversado, mas eu disse: "Podem me perguntar tudo o que desejam saber." Um deles disse:
"Vimos o que está escrito na porta, mas fomos informados que a Mãe Coelha estava naquele
leito." Eu disse: "Não vou ficar em pé aqui argumentando. Minha paciente não é a Mãe Coelha."
Um outro perguntou: "Você se importaria se eu perguntasse a ela qual é o seu nome?" Eu
respondi: "Para ser franco, eu me importo sim. Ela precisa descansar para melhorar." O sujeito
disse: "Madame, se a senhora estiver me ouvindo, diga-me qual é o seu nome." Eu fiz um sinal
de autorização para Chloe, mas me aproximei da cortina como se estivesse furioso. Ela
hesitou, sem saber o que eu ia fazer, mas finalmente disse com voz fraca: "Annie Ashton."
Chloe levantou a mão.
- Falando sério - ela disse -, por que eles me deram o nome de Mãe Coelha?
- Você não sabe? - perguntou Buck, segurando a mão dela.
Chloe balançou a cabeça negativamente.
- Deixem-me terminar minha história - disse Ritz. – Acho que eles estão voltando. Abri com
força a cortina e olhei firme para eles. Acho que ficaram assustados com o meu tamanho. Eu
disse: "E então? Estão satisfeitos? Vocês perturbaram minha paciente e eu." A mulher disse:
"Pedimos desculpas, doutor, hã...", e Chloe complementou:
"Doutor Aeroplano." Eu tive de me conter, mas disse: "O remédio está mexendo com a cabeça
dela. Sou o Doutor Lalaine, mas, nestas circunstâncias, é melhor não nos cumprimentarmos
com aperto de mão." O restante do grupo ficou perto da porta. A mulher enfiou o rosto no vão
da cortina e perguntou: "O senhor sabe o que aconteceu com a Mãe Coelha?" Eu respondi: "A
outra paciente deste quarto foi levada para o necrotério." Ela disse: "Oh, será verdade?" como
se não estivesse acreditando nem um pouco, e prosseguiu em tom sarcástico: "Qual foi a
causa dos ferimentos desta jovem senhora? Febre tifóide?" Eu não estava preparado para isso,
e enquanto tentava encontrar uma resposta à altura de um médico, ela disse: "Vou pedir ao
nosso médico que a examine." Eu lhe disse: "Não sei qual é o procedimento na terra de vocês,
mas neste hospital só o médico atendente ou o paciente pode solicitar um segundo
diagnóstico." Embora fosse um pouco mais baixa que eu, ela pareceu olhar de cima para mim,
e disse: "Somos da Comunidade Global e estamos aqui por ordem de Sua Excelência, e você
vai se arrepender." Eu perguntei então: "E quem é esse tal de Sua Excelência?" Ela respondeu:
"Por onde você tem estado, debaixo de uma pedra?" Bem, eu não podia dizer que isso era
verdade, porque tinha tomado uma dose exagerada de tranquilizantes e não sabia muito bem
onde estava. Resolvi dizer: "Servindo à humanidade, tentando salvar vidas, madame." Ela saiu
daqui ofendida, e, depois de alguns minutos, você chegou. Agora já conhece toda a história.
- Eles devem estar trazendo um médico - disse Buck. - Isso é terrível. É melhor escondermos
Chloe em algum lugar e ver se podemos misturá-la a outros pacientes.
- Quero saber uma coisa - murmurou Chloe.
- O quê?
- Buck, eu estou grávida?
- Está.
- O bebé está bem?
- Até agora, sim.
-E eu?
- Você está muito machucada, mas não corre perigo.
- Sua febre tifóide quase desapareceu - disse Ritz.
- Dr. Aeroplano! - ralhou Chloe, com a testa franzida. - Buck, eu preciso melhorar depressa. O
que essa gente deseja?
- É uma longa história. Basicamente, eles querem trocar você por Tsion ou Hattie, ou pelos dois.
- Não - ela disse, com voz mais forte.
- Não se preocupe - disse Buck. - Mas é melhor nos apressarmos. Não vamos representar um
115
médico verdadeiro por muito tempo, apesar do Dr. Ator aqui presente.
- Sou o Dr. Aeroplano - disse Ken.
Ao ouvir vozes perto da porta, Buck abaixou-se no chão e arrastou-se por baixo das cortinas,
ficando agachado no local apertado onde já havia uma cama e uma maca.
- Dr. Lalaine - disse um dos homens -, este é o nosso médico de Kenosha. Estamos pedindo
sua permissão para que ele examine esta paciente.
- Não estou entendendo - disse Ritz.
- Claro que não - disse o médico -, mas ontem ajudei a tratar de uma paciente nãoidentificada
que tem as mesmas características desta. É por isso que estou aqui.
Buck fechou os olhos. A voz lhe era familiar. Se fosse o último médico com quem ele conversara
em Kenosha, aquele que tirara fotografias de Chloe, tudo havia ido por água abaixo. Mesmo
que Buck passasse por ele rapidamente para não ser reconhecido, não haveria jeito de tirar
Chloe daquele lugar.
- Eu já contei a esse pessoal quem é a minha paciente - disse Ritz.
- E nós já sabemos que sua história é mentirosa, doutor - disse a mulher. - Perguntamos pela
Mãe Coelha no necrotério. Não demorou muito para sabermos quem era a verdadeira Sra.
Ashton.
Buck ouviu o som de um envelope sendo aberto e algo sendo retirado de dentro.
- Veja estas fotografias - disse a mulher. - Ela talvez não seja igualzinha, mas é muito
parecida. Acho que é ela.
- Existe um jeito de sabermos - disse o médico. – Minha paciente tinha três cicatrizes pequenas
no joelho esquerdo, provenientes de uma cirurgia nas articulações quando era adolescente, e
também uma cicatriz por ter extraído o apêndice.
Buck raciocinava rapidamente. Chloe não tinha nada disso. O que estaria acontecendo? Buck
ouviu o farfalhar de cobertor, lençol e camisola.
- Agora estou entendendo - disse o médico. - O rosto desta moça é um pouco mais redondo e
os ferimentos muito mais profundos.
- Mesmo que esta moça não seja quem estamos procurando - disse a mulher -, também não é
Annie Ashton e, com certeza, não está com febre tifóide.
- Ninguém neste hospital está com febre tifóide – interveio Ken. - Eu disse que não queria
ninguém bisbilhotando meus pacientes.
- Quero que este homem seja repreendido - disse a mulher. - Como ele não sabe o nome de
sua paciente?
- Há muitas pacientes aqui neste hospital - disse Ken. - Fiquei sabendo que o nome dela era
Annie Ashton. É o que está escrito na porta.
- Vou conversar com o administrador do hospital sobre o Dr. Lalaine - disse o médico. - Sugiro
que vocês verifiquem novamente na recepção sobre o caso da Mãe Coelha.
- Doutor? - disse Chloe com voz fraca. - O senhor tem alguma coisa na testa.
- Tenho? - ele perguntou.
- Não estou vendo nada - disse a mulher. - Essa moça está dopada.
- Não estou, não - disse Chloe. - O senhor tem alguma coisa ali, doutor.
- Bem - ele disse em tom de voz agradável, mas disfarçando -, talvez você também vai ter
alguma coisa na testa depois que sarar.
- Vamos embora - disse um dos homens.
- Irei ao encontro de vocês depois de conversar com o administrador do hospital - disse o
médico.
O pessoal da CG saiu. Assim que a porta foi fechada, o médico disse:
- Eu sei quem ela é. Quem é vocêl
- Sou o Dr...
- Nós dois sabemos que você não é médico.
- Ele é, sim - balbuciou Chloe. - Ele é o Dr. Aeroplano.
Buck saiu detrás da cortina.
- Dr. Charles, este é Ken Ritz, meu piloto. O senhor já teve a oportunidade de receber resposta
a uma oração?
- Não foi fácil pegar este caso - disse Floyd Charles. – Mas achei que podia ser útil.
116
- Não sei se um dia poderei agradecer-lhe - disse Buck.
- Mantenha contato comigo - disse o médico. - Talvez eu venha a precisar de você algum dia.
Sugiro que você transfira sua mulher daqui. Eles voltarão para se certificar quando não
encontrarem a Mãe Coelha.
- O senhor tem condições de providenciar transporte para o aeroporto e tudo o que
necessitarmos para cuidar dela? - perguntou Buck.
- Claro. Assim que conseguir cassar a licença do Dr. Aeroplano.
- Já brinquei muito de médico hoje - disse Ken, tirando o avental. - Prefiro fazer minhas
brincadeiras no céu.
- O senhor acha que poderei cuidar dela em casa? - perguntou Buck.
- Ela vai sentir muitas dores por um longo tempo que talvez não cessem definitivamente, mas
não corre perigo de morte. Até o momento, o bebé também está bem.
- Eu só soube disto hoje - disse Chloe. – Estava suspeitando, mas não tinha certeza.
- Você quase estragou tudo quando fez aquela observação a respeito de minha testa - disse o
Dr. Charles.
- Ah, sim - disse Ken. - O que significa isso?
- Vou contar-lhe no avião - disse Buck.
Na quinta-feira, logo que o dia clareou na Nova Babilónia, Nicolae Carpathia e Leon Fortunato
reuniram-se com Rayford.
- Já comunicamos seu itinerário aos dignitários – disse Carpathia. - Eles providenciaram
acomodações para o Supremo Comandante, mas você e seu co-piloto precisam cuidar das
suas.
Rayford assentiu. Essa reunião, como tantas outras, era desnecessária.
- Agora quero falar de um assunto seu, capitão Steele - complementou Carpathia. - Apesar
de compreendermos sua situação, ficou decidido que não vamos retirar do rio Tigre os
destroços do avião da Pan-Con. Lamento muito, mas foi confirmado que sua mulher estava a
bordo. Decidimos que o corpo dela deve descansar lá, com os outros passageiros.
No íntimo, Rayford sabia que tudo não passava de uma mentira de Carpathia. Amanda estava
viva e jamais traíra a causa de Cristo. Os equipamentos de mergulho dele e de Mac estavam
chegando. Apesar de não ter ideia de onde Amanda estava, ele queria provar, antes de tudo,
que ela não estava a bordo do 747 submerso.
Na sexta-feira, duas horas antes do horário do vôo, Mac contou a Rayford que substituíra a
aeronave que estava no compartimento de carga.
- Já estamos levando o helicóptero - ele disse. – Aquele pequeno bimotor era supérfluo. Foi
substituído pelo Challenger 3.
- Onde você descobriu isso? - O Challenger era mais ou menos do tamanho de um Learjet mas
quase duas vezes mais rápido. Tinha sido fabricado nos últimos seis meses.
- Pensei que tivéssemos perdido todas as aeronaves, com exceção do helicóptero, do bimotor e
do Condor. Mas encontrei o Challenger um pouco mais adiante de uma pista de decolagem que
se levantou do solo. Tive de instalar outra antena e um novo conjunto do leme da cauda, mas
agora ele está novinho em folha.
- Eu gostaria de saber pilotar esse avião - disse Rayford. - Talvez eu pudesse visitar minha
família enquanto Fortunato faz uma parada no Texas.
- Sua filha foi encontrada?
- Acabei de receber notícias. Ela está machucada, mas não foi nada grave. E eu vou ser vovô.
Que bom, Ray! - disse Mac, dando um tapinha no ombro de Rayford. - Vou ensinar você a
pilotar o Challenger. Em pouco tempo, estará craque.
Preciso terminar de arrumar minha mala e enviar um e-mail para Buck - disse Rayford.
- Você não está recebendo e enviando mensagens pelo sistema daqui, está?
- Não. Recebi um e-mail codificado de Buck, informando-me quando ele ia ligar para o meu
telefone particular. Tomei cuidado de estar fora daqui naquele momento.
- Precisamos conversar com Hassid para saber até que ponto eles controlam a Internet. Você,
ele e eu temos usado muito a Internet para saber notícias de nosso amigo Tsion.
Estou preocupado, porque a chefia talvez tenha condições de saber quem está conectando a
117
Internet. Carpathia deve estar furioso com Tsion. Poderemos nos meter em encrencas.
- David me disse que, se usarmos a central de boletins, eles não conseguirão rastrear nossas
ligações.
- Você deve estar sabendo que ele gostaria muito de viajar conosco - disse Mac.
- O David? Eu sei. Mas precisamos dele aqui, exatamente onde ele está.
118
OUATORZE
O vôo até Waukegan havia sido muito cansativo para Chloe. O percurso de carro de Waukegan a
Palatine para deixar Ken Ritz, e depois para Monte Prospect, foi pior ainda. Ela dormira
praticamente durante todo o vôo nos braços de Buck, mas a viagem dentro do Range Rover
tinha sido uma tortura.
O melhor que Buck pôde fazer foi deitá-la no banco traseiro, mas um dos parafusos que
prendiam o banco no assoalho do carro se soltara durante o terremoto, portanto Buck teve de
dirigir em velocidade mais lenta que o normal. Mesmo assim, Chloe parecia estar sendo atirada
de um lado para o outro. Finalmente, Ken ajoelhou-se de frente para ela e segurou o banco
com as mãos.
Quando eles chegaram ao aeroporto de Palwaukee, Buck conduziu Ken até um abrigo onde
alguém lhe dera um lugar para ficar.
- Como sempre, uma aventura - disse Ken exausto. - Qualquer dia você vai me matar.
- Foi uma loucura pedir que você pilotasse um avião tão pouco tempo depois de uma cirurgia,
Ken, mas você salvou uma vida. Vou enviar-lhe um cheque.
- Você nunca falha. Mas eu também gostaria de saber mais alguma coisa de vocês, de suas
crenças, de tudo.
- Ken, já conversamos sobre isso antes. Está ficando cada vez mais claro, não é mesmo? Este
período da História já é uma explicação. Dentro de pouco mais de cinco anos, tudo estará
terminado. Posso até entender por que as pessoas não compreenderam o que estava
acontecendo antes do Arrebatamento. Eu fui uma delas. Mas chegou a hora da gigantesca
contagem regressiva. A questão principal é de que lado você está. Ou você está servindo a
Deus ou está servindo ao anticristo. Você tem colaborado com o lado bom. Já é tempo de
juntar-se ao nosso time.
- Eu sei, Buck. Nunca vi ninguém cuidar de uma outra pessoa como vocês fazem entre si. Seria
bom se eu pudesse analisar a situação em branco e preto, isto é, como numa folha de papel,
todos os prós e os contras. É assim que eu sou. Antes de me decidir, eu preciso ter uma ideia
da situação.
- Posso conseguir-lhe uma Bíblia.
- Eu tenho uma em algum lugar. Será que existe uma ou duas páginas na Bíblia que expliquem
claramente tudo isso?
- Leia João. E depois Romanos. Lá você vai encontrar o assunto sobre o qual conversamos. Nós
somos pecadores. Nós nos separamos de Deus. Ele nos quer de volta e ensinou o caminho.
Ken parecia estar sentindo um certo desconforto. Buck sabia que ele estava confuso e sentindo
dores.
- Você tem computador? - perguntou Buck.
- Sim, e também tenho um endereço eletrônico.
- Diga-me qual é. Eu vou lhe passar um endereço para correspondência em grupo. O homem
que você trouxe do Egito comigo está causando furor na Internet. Ele é craque em colocar em
apenas uma página tudo o que você deseja saber.
- Quer dizer que assim que eu me juntar ao grupo receberei o sinal secreto na testa?
- Com certeza.
Buck reclinou o banco do passageiro e transferiu Chloe para lá. Mas o banco não ficou
totalmente na posição horizontal e ela precisou voltar para o banco traseiro.
Quando, finalmente, Buck entrou com o carro no quintal de Donny, Tsion apressou-se para
cumprimentar Chloe. Assim que a viu, ele rompeu em pranto.
- Oh, pobre menina. Bem-vinda ao novo lar. Você está em segurança.
Tsion ajudou a retirá-la do banco traseiro e abriu a porta a fim de que Buck pudesse carregá-la
para dentro de casa. Buck dirigiu-se para a escada, mas Tsion o fez parar.
- Por aqui, Cameron. Você está vendo? - Tsion trouxera sua cama para Chloe. - Ela ainda não
119
pode subir e descer escadas.
- Imagino que a próxima coisa será uma sopa de galinha - disse Buck, balançando a cabeça.
Tsion sorriu e apertou um botão no microondas.
- Aguarde 60 segundos.
Chloe, porém, não quis comer nada. Dormiu a noite inteira e todo o dia seguinte.
- Você precisa ter um objetivo - disse-lhe Tsion. – Aonde gostaria de ir no primeiro dia que
puder sair de casa?
- Quero ver a igreja. E a casa de Loretta.
- Talvez seja muito...
- Será muito penoso. Mas Buck diz que se eu não tivesse corrido, jamais teria sobrevivido. Eu
preciso ver por quê. Quero também ver o local onde Loretta e Donny morreram.
Quando conseguiu caminhar mancando até a mesa da cozinha e sentar-se sem a ajuda de
ninguém, Chloe só quis saber onde estava seu computador.
Buck sofreu ao vê-la comer com uma só mão, mas quando tentou ajudar, ela o impediu. Ele
demonstrou descontentamento.
- Meu bem, eu sei que você está querendo ajudar – ela disse. - Você me procurou até me
encontrar, e fez tudo o que podia por mim. Mas, por favor, não tente me ajudar, a menos
que eu lhe peça.
- Você nunca pede nada.
- Não sou uma pessoa dependente, Buck. Não quero ser paparicada. Estamos em guerra, e não
temos muitos dias pela frente para desperdiçar. Assim que eu puder trabalhar com esta mão,
vou tirar um pouco da carga das costas de Tsion. Ele está trabalhando dia e noite no
computador.
Buck pegou seu laptop e enviou uma mensagem para Ritz a respeito de uma possível viagem a
Israel. Ele imaginava que não haveria segurança para Tsion naquele país, mas o rabino estava
tão determinado a ir, que Buck achou que não tinha escolha. Seu outro assunto com Ken,
evidentemente, era saber se ele tomara uma decisão espiritual. Enquanto ele transmitia a
mensagem, Chloe chamou-o da cozinha.
- Oh, veja só, Buck! Venha ver isto!
Buck correu até a cozinha e olhou por cima dos ombros de Chloe. A mensagem que estava na
tela tinha sido enviada vários dias atrás. Era de Hattie Durham.
Rayford receava que Leon Fortunato se entediasse durante a viagem até Roma e resolvesse
importuná-los na cabina de comando. Todas as vezes que Rayford acionava o botão secreto
para ouvir o que se passava no compartimento dos passageiros, Leon estava assobiando,
cantarolando, falando ao telefone ou se remexendo na poltrona.
Quando Mac assumiu o comando da aeronave, Rayford encontrou uma desculpa para dar um
passeio pelo compartimento dos passageiros. Leon estava arrumando a mesa de mogno onde
ele, o Supremo Pontífice Peter Mathews e os dez embaixadores se reuniriam antes do encontro
com Carpathia.
Leon parecia estar explodindo de entusiasmo.
- Você voltará para a cabina assim que nossos convidados entrarem, certo?
- Claro - disse Rayford, percebendo que Leon precisava de companhia.
Rayford não esperava ouvir nenhum segredo durante a conversa de Leon com Mathews, mas
gostaria muito de saber como o assessor de Carpathia se comportaria. Fortunato era tão
apegado a Carpathia e Mathews tão condescendente e independente que os dois eram como
óleo e água. Mathews estava acostumado a receber tratamento aristocrático. Fortunato
tratava Carpathia como o rei do mundo, mas era moroso para servir outra pessoa e
geralmente áspero com quem o servia.
Quando Peter Mathews subiu a bordo em Roma, tratou Fortunato como um de seus criados. Ele
já possuía dois. Um moço e uma moça entraram carregando as malas e permaneceram em pé,
conversando com ele. Pelo que Rayford conseguiu ouvir, Fortunato estava novamente exposto
às provocações de Mathews. Todas as vezes que Fortunato sugeria que era hora de começarem
a tratar de assuntos importantes, Mathews interrompia.
- Você poderia providenciar uma bebida gelada para mim, Leon? - disse Mathews.
120
Após uma longa pausa, Fortunato disse secamente:
- Pois não. - Em seguida, prosseguiu com sarcasmo. – Para seus criados também?
- Sim, para eles também.
- Tudo bem, pontífice Mathews. Acho que depois poderíamos...
- E alguma coisa para mastigar. Obrigado, Leon.
Depois desse duelo de palavras, Fortunato permaneceu calado. Finalmente ele disse:
- Pontífice Mathews, penso que já é hora de...
- Por quanto tempo vamos ficar parados aqui, Leon? Que tal iniciarmos a viagem?
- Não podemos decolar tendo pessoas não-autorizadas a bordo.
- Quem não tem autorização?
- Os dois que estão com o senhor.
- Eu os apresentei a você, Leon. Eles são meus auxiliares.
- O senhor entendeu que eles foram convidados?
- Não vou a lugar nenhum sem eles.
- Vou ter de verificar isso com Sua Excelência.
- Como assim?
- Vou ter de verificar isso com Nicolae Carpathia.
- Você disse Sua Excelência.
- Eu planejava falar desse assunto no decorrer da viagem.
- Pois fale agora, Leon.
- Pontífice, eu gostaria que o senhor me chamasse pelo meu título. Seria pedir muito?
- É de títulos que estamos falando neste momento. Por que Carpathia está usando o título de
Excelência7.
- Não foi escolha dele. Eu...
- Sim, suponho que potentado também não foi escolha dele. Secretário-geral nunca foi um título
ideal para ele, não?
- Conforme eu já lhe disse, eu gostaria de falar do novo título no decorrer da viagem.
- Então vamos decolar!
- Não estou autorizado a transportar pessoas que não foram convidadas.
- Sr. Fortunato, essas pessoas foram convidadas. Eu as convidei.
- Meu título não é senhor.
- Oh, o potentado passou a ser Sua Excelência e você é o quê, potentado? Não, deixe-me
adivinhar. Você é o Supremo Alguma Coisa ou Outra. Acertei?
- Preciso verificar isso com Sua Excelência.
- Então se apresse. E diga a "Sua Excelência" que o Supremo Pontífice considera uma audácia
mudar um título aristocrático - que já é um exagero - para um título sagrado.
Pela escuta clandestina, Rayford ouviu apenas o fim da conversa de Fortunato com Nicolae, mas
Leon teve de humilhar-se.
- Pontífice - ele disse após a conversa com Nicolae – Sua Excelência pediu-me que transmitisse
as boas-vindas a seus convidados e assegurou que é uma honra ter a bordo quaisquer
pessoas que possam tornar seu vôo mais confortável.
- Verdade? - disse Mathews. - Então diga a ele que desejo uma tripulação a bordo para me
servir. - Fortunato riu. - Estou falando sério, Leon... ou... qual é mesmo o seu título, homem?
- Estou enquadrado na categoria de comandante.
- Comandante? Diga-me a verdade, comandante, seu título é Supremo Comandante? -
Fortunato não respondeu, porém Mathews devia ter notado algo em seu semblante. - É ou não
é? Bem, mesmo que não seja, vou insistir. Se eu tiver de chamá-lo de comandante, devo dar
preferência a Supremo Comandante. Está bem assim? Fortunato deu um suspiro profundo.
- O título correto é Supremo Comandante. O senhor pode me chamar de uma forma ou outra.
- Oh, não posso não. É Supremo Comandante e ponto final. Agora, Supremo Comandante
Fortunato, estou falando muito sério a respeito da tripulação em um vôo tão longo como este,
e estou abismado com sua falta de previsão por não ter providenciado isso.
- Temos tudo o que necessitamos, Pontífice. Achamos mais conveniente ter um serviço completo
quando os embaixadores regionais estiverem a bordo.
- Você está enganado. Eu não gostaria de decolar enquanto não houver uma tripulação
121
completa a bordo. Se você tiver de verificar isso com Sua Excelência, sinta-se à vontade.
Houve um longo silêncio, e Rayford supôs que os dois estavam se encarando.
- O senhor está falando sério? - perguntou Fortunato.
- Tão sério quanto o terremoto.
A campainha soou na cabina de comando.
- Cabina de comando - disse Mac. - Prossiga.
- Cavalheiros, decidi que devemos ter uma tripulação para atender os passageiros daqui até
Dallas. Vou contratar o pessoal de uma das linhas aéreas daqui. Por favor, comuniquem à torre
que retardaremos a decolagem por duas ou três horas. Obrigado.
- Desculpe-me, senhor - disse Mac - mas nossa demora aqui já retardou nossa decolagem em
quatro lugares consecutivos. Eles estão sendo compreensivos por saberem quem somos, mas...
- Você não entendeu o que eu disse? - perguntou Leon.
- Entendi perfeitamente, senhor. Positivo, retardaremos o vôo.
O e-mail de Hattie dizia o seguinte:
Querida CW, eu não sabia mais a quem recorrer. Tentei falar com AS no número particular que
ela me deu, mas não obtive resposta. Ela disse que carrega o telefone o tempo todo, e estou
preocupada com o que possa ter acontecido.
Necessito de sua ajuda. Menti para meu ex-chefe dizendo que minha família era de Denver.
Quando mudei meu itinerário e voei de Boston para oeste em vez de leste, esperava que ele
imaginasse que eu fosse visitar minha família. Mas minha família mora em Santa Monica. Estou
em Denver por um outro motivo.
Estou em uma clínica daqui. Não fique escandalizada. Sim, eles fazem abortos, e estão me
pressionando nesse sentido. Na verdade, é o que eles mais fazem aqui. Porém, perguntam à
mãe se ela já refletiu sobre sua opção, e, em alguns casos, a gravidez é levada até o fim.
Algumas crianças são enviadas para adoção; outras, criadas pela própria mãe. Há ainda as
que são criadas pela clínica.
Este lugar também está servindo para me proteger, pois estou aqui anonimamente. Cortei meu
cabelo e o tingi de preto, e estou usando lentes de contato de cor diferente dos meus olhos.
Tenho certeza de que ninguém pode me reconhecer.
Eles permitem que as pacientes usem computadores durante algumas horas por semana. Em
outras ocasiões escrevemos, desenhamos e fazemos exercícios físicos. Eles também nos
incentivam a escrever para dar satisfações a pessoas amigas e da família. Às vezes insistem
dizendo que devemos escrever para os pais de nossos filhos.
Eu não poderia fazer isso. Mas preciso conversar com você. Tenho um telefone celular só meu.
Você também tem um como AS? Estou assustada. Estou confusa. Há dias em que o aborto
parece ser a solução mais fácil.
Porém, já estou ficando muito ligada a esta criança. Eu poderia me desfazer dela, mas acho
que não posso tirar sua vida. Contei a uma conselheira que me sentia culpada por ter
engravidado sem estar casada. Ela nunca ouviu isso na vida. Disse que eu devia parar de ficar
ruminando sobre o que é certo e errado, e começar a pensar no que é melhor para mim.
Sinto-me mais culpada em considerar a possibilidade de um aborto do que na imoralidade do
fato, conforme vocês costumam dizer. Eu não quero cometer um erro. E não quero continuar a
ter uma vida como esta. Sinto inveja de você e de seus amigos. Espero que todos tenham
sobrevivido ao terremoto. Penso que seu pai e seu marido acham que o terremoto foi causado
pela ira do Cordeiro. Talvez tenha sido. Eu não ficaria surpresa.
Se você não me der notícias, vou imaginar o pior, por isso peço que me responda o mais breve
possível. Recomendações a todos. Um abraço para L. Carinhosamente, H.
- Agora, Buck - disse Chloe - eu gostaria que você me ajudasse. Responda o mais rápido que
puder. Diga que fui ferida e que fiquei longe de meu computador, que vou sarar e informe o
número de meu telefone. Está bem? Antes de Chloe terminar de falar, Buck já estava
digitando.
122
Rayford tirou seu laptop da sacola e saiu da aeronave. No caminho, passou pelos dois criados
cujos semblantes estampavam aborrecimento, pelo irado Leon que transpirava e falava ao
telefone, e por Mathews. O Supremo Pontífice da Fé Mundial Enigma Babilónia olhou de relance
para Rayford e desviou o olhar. Um sacerdote que não demonstra nenhum interesse, pensou
Rayford. Para homens como aquele, os pilotos não passavam de adereços.
Rayford sentou-se perto de uma janela do terminal. Com seu incrível computador, movido a
luz solar e conectado por zonas de celular, ele podia comunicar-se de qualquer lugar. Ele
verificou a central de boletins na qual Tsion mantinha contato com os crentes em número cada
vez maior. Em questão de dias, centenas de milhares de pessoas haviam respondido às suas
mensagens. Os e-mails abertos enviados a Nicolae Carpathia pediam a anistia de Tsion Ben-
Judá. Uma mensagem comovente mostrava aquilo que já era um consenso: "Certamente um
homem amante da paz como o senhor, potentado Carpathia, que ajudou o rabino Ben-Judá a
fugir dos zelotes ortodoxos de sua terra natal, tem o poder de fazê-lo retornar são e salvo a
Israel, onde ele poderá comunicar-se com um número tão grande de pessoas que o amam
como eu. Confiamos no senhor."
Rayford sorriu. Muitos eram tão novatos na fé que não conheciam a verdadeira identidade de
Carpathia. Quando Tsion teria condições de falar abertamente o que pensava sobre Carpathia?
Quando leu seus e-mails, Rayford ficou estarrecido ao saber que Hattie havia feito contato. Ele
sentiu uma estranha mistura de emoções. Ficou feliz porque ela e o bebé estavam protegidos,
mas sentiu uma certa inveja por não ter recebido uma mensagem de Amanda. Ele se ressentiu
pelo fato de Chloe ter recebido notícias de Hattie antes que ele soubesse do paradeiro de
Amanda. "Meu Deus, perdoa-me", ele orou silenciosamente.
Algumas horas depois, o Condor 216 finalmente decolou de Roma com uma tripulação completa,
cortesia da Alitalia Airlines.
Nos momentos em que não estava pensando no mergulho no rio Tigre, Rayford escutava
clandestinamente a conversa no compartimento de passageiros.
- Agora sim, Supremo Comandante Fortunato – Mathews estava dizendo -, não é melhor do
que ter um bufe a bordo conforme você planejou? Admita isso.
- Todo mundo gosta de ser bem servido - disse Fortunato. - Agora há alguns assuntos que Sua
Excelência pediu-me que tratasse com o senhor.
- Pare de chamá-lo assim! Isso me tira do sério! Eu ia manter segredo disso, mas, pensando
bem, acho que posso contar-lhe agora. O índice de aceitação à minha posição tem sido tão
grande que meu pessoal planejou uma festa de uma semana para comemorar minha posse no
mês que vem. Embora eu não atue mais na Igreja Católica, que se fundiu com nossa religião,
alguém achou conveniente mudar meu título também. Creio que haverá um impacto maior e
serei mais compreendido pelas massas se eu passar a ser chamado simplesmente de Peter
Segundo.
- Parece nome de papa - disse Fortunato.
- Claro que é. Apesar de algumas pessoas considerar-me papa, eu acho sinceramente que meu
título deveria ser mais suntuoso.
- O senhor prefere Peter Segundo a Supremo Pontífice ou até mesmo Supremo Papa?
- Quanto mais simples, melhor. Ele soa melhor, não?
- Veremos o que Sua... hã, o Potentado Carpathia pensa disto.
- O que o potentado da Comunidade Global tem a ver com a Fé Mundial?
- Oh, ele se sente responsável pela ideia e por sua elevação a esse posto.
- Ele precisa lembrar-se de que a democracia não é tão má assim. Pelo menos ela faz
separação entre Igreja e Estado.
- Pontífice, o senhor perguntou o que Sua Excelência tem a ver com a Fé Mundial. Agora eu lhe
pergunto: o que seria da Enigma Babilónia sem a ajuda financeira da Comunidade
Global?
- Eu poderia inverter a pergunta. O povo precisa acreditar em alguma coisa. Precisa de fé.
Precisa de tolerância. Nós devemos permanecer unidos e livrar o mundo dos semeadores da
discórdia. Os desaparecimentos levaram embora os fundamentalistas tacanhos e os fanáticos
intolerantes. Você já viu o que está acontecendo na Internet? Aquele rabino que blasfemou sua
123
religião em seu próprio país está agora conseguindo uma legião de seguidores. Minha
responsabilidade é competir com isso. Tenho um pedido aqui... - Rayford ouviu o farfalhar de
papéis - ...para uma ajuda financeira maior por parte da Comunidade Global.
- Sua Excelência estava temendo isso.
- Que bobagem! Eu nunca vi Carpathia ter medo de nada. Ele sabe que temos despesas
enormes. Estamos vivendo de acordo com o nome que ostentamos. Somos uma religião
mundial. Exercemos influência em todos os continentes em prol da paz, da união e da
tolerância. Todos os embaixadores devem ser instruídos a aumentar sua quota de contribuição
para a Enigma Babilónia.
- Pontífice, ninguém jamais enfrentou os problemas fiscais que Sua Excelência está enfrentando.
O centro do poder foi transferido para o Oriente Médio. A Nova Babilónia é a capital do mundo.
Tudo será centralizado. A reconstrução daquela cidade forçou o potentado a propor um
significativo aumento de impostos em todas as áreas. E ele também está reconstruindo o
mundo inteiro. As forças da Comunidade Global estão trabalhando em todos os continentes,
restabelecendo sistemas de comunicação e de transporte e cuidando da limpeza, resgate,
socorro, vigilância sanitária, etc. e etc. Cada líder de região será convocado a exigir um
sacrifício de seu povo.
- E foi você quem fez aquele trabalho sujo, não, Supremo Comandante?
- Eu não considero um trabalho sujo, pontífice. Sinto-me honrado por poder auxiliar Sua
Excelência a enxergar melhor as coisas.
- Lá vem você de novo com esse negócio de excelência.
- Permita-me contar-lhe uma história pessoal que levarei ao conhecimento de todos os
embaixadores durante esta viagem. Seja tolerante comigo, e o senhor verá que o potentado é
um homem profundamente espiritual e possui uma chama divina.
- Era só isso o que me faltava - disse Mathews, rindo. - Carpathia um sacerdote. Não consigo
imaginar.
- Juro que cada palavra que vou dizer é verdadeira. Minha história mudará a opinião que o
senhor tem de nosso potentado.
Rayford desligou o botão secreto.
- Leon está contando a Mathews sua história parecida com a de Lázaro - ele murmurou.
- Oh, não - disse Mac.
O Condor sobrevoava o Atlântico no meio da noite, e Rayford estava cochilando. O som do
interfone o despertou.
- Quando você puder, capitão Steele - disse Fortunato -, precisamos conversar um pouco.
- Detesto bajular alguém - disse Rayford a Mac -, mas prefiro tirar esse assunto da frente. -
Ele apertou o botão. - Pode ser agora?
Fortunato foi ao encontro de Rayford no meio da aeronave e fez um gesto para que ele o
acompanhasse, ficando bem longe de onde Mathews e seus dois criados estavam dormindo.
- Sua Excelência pediu-me que lhe falasse sobre um assunto delicado. Está se tornando cada
vez mais embaraçoso para ele não conseguir apresentar em público o rabino Tsion Ben-Judá,
de Israel, para seus seguidores.
-Oh!
- Sua Excelência sabe que você é um homem de palavra. Se você está nos dizendo que não
sabe onde Ben-Judá se encontra, aceitamos isso como verdade. A pergunta é esta: você
conhece alguém que saiba onde ele está?
- Por quê?
- Sua Excelência está preparado para cuidar pessoalmente da segurança do rabino. Ele não fará
nenhuma ameaça à segurança de Ben-Judá simplesmente porque não vale a pena.
- Então, por que não tornar isso público e aguardar que Ben-Judá se aproxime de vocês?
- Seria muito arriscado. Talvez você saiba qual é a opinião que Sua Excelência tem a seu
respeito. No entanto, como sou uma pessoa que o conhece melhor que ninguém, sei que ele
confia em você. Admira sua integridade.
- E ele está convencido de que sei onde Ben-Judá se encontra.
- Vamos parar com este joguinho, capitão Steele. A Comunidade Global passou a ter um
alcance muito grande.
124
Além do indiscreto Dr. Rosenzweig, recebemos informações de que o seu genro ajudou o rabino
a fugir.
- Rosenzweig é um dos maiores admiradores de Carpathia, mais leal do que Nicolae merece.
Não foi Chaim quem buscou a ajuda de Carpathia no assunto Ben-Judá quando Nicolae
começou a ficar famoso?
- Fizemos tudo o que pudemos...
- Não é verdade. Se você espera que eu seja um homem de palavra, não insulte minha
inteligência. Se o meu genro tivesse ajudado Ben-Judá a fugir de Israel, eu não poderia
pensar que ele contou com a colaboração da Comunidade Global?
Fortunato não respondeu.
Rayford precisava tomar cuidado para não revelar o que ouvira pelo sistema de escuta
clandestina. Ele jamais se esqueceria do momento em que Fortunato transmitira a Carpathia o
pedido de Rosenzweig para ajudar seu amigo em apuros. A família de Ben-Judá fora trucidada e
ele estava escondido. Mesmo assim, Carpathia rira e dissera, com todas as letras, que talvez
devolvesse Ben-Judá aos fanáticos.
- Aqueles que estão próximos da situação conhecem a verdade, Leon. A afirmação de
Carpathia de que ele se preocupa com o bem-estar de Tsion Ben-Judá não passa de um boato.
Não tenho dúvida nenhuma de que ele podia proteger o rabino e que teve condições de fazer
isso na época, mas não o fez.
- Talvez você tenha razão, capitão Steele. Eu não tinha conhecimento da situação.
- Leon, você conhece cada detalhe de tudo o que se passa. Leon demonstrou ter gostado do
que ouviu. Não argumentou.
- Apesar de tudo, seria contraproducente em relação à opinião pública se mudássemos de
posição agora. O povo acredita que ajudamos o rabino a fugir, e perderíamos a credibilidade se
admitíssemos que não tivemos nenhuma participação nisso.
- Mas como eu estou a par - disse Rayford - não mereço alguma condescendência?
Leon sentou-se e juntou as mãos, tocando as pontas dos dedos, e soltou a respiração.
- Está bem - ele disse. - Sua Excelência autorizou-me a perguntar-lhe o que você deseja em
troca para fazer este favor.
- Que favor?
- Resgatar Tsion Ben-Judá.
- E levá-lo para onde?
- Israel.
O que Rayford mais queria era limpar o nome de sua mulher, mas não podia trair a confiança
de Mac.
- Então, quer dizer que posso estabelecer meu preço agora em vez de trocar o rabino por
minha filha?
Leon pareceu não se surpreender por Rayford estar sabendo do fiasco em Mineápolis.
- Houve um mal-entendido nas comunicações - ele disse. - Você tem a palavra de Sua
Excelência que ele pretendia que a mulher de um de seus funcionários reencontrasse o marido
e recebesse os melhores cuidados.
Rayford sentiu vontade de dar uma gargalhada ou cuspir no rosto de Fortunato, sem saber o
que seria melhor.
- Preciso pensar no assunto - ele disse.
- De quanto tempo você necessita? Sua Excelência está sendo pressionado a fazer alguma coisa
em relação a Ben-Judá. Ele estará nos Estados Unidos amanhã. Podemos tomar algumas
providências?
- Você quer que eu leve o rabino a bordo do Condor com todos os embaixadores?
- Claro que não. Mas já que vamos estar naquela região, seria melhor começarmos a agir desde
já.
- Desde que Tsion Ben-Judá esteja lá.
- Acreditamos que se pudermos localizar Cameron Williams, localizaremos Tsion Ben-Judá.
- Você está sabendo mais que eu.
Rayford começou a levantar-se, mas Fortunato ergueu a mão.
- Só mais uma coisa - ele disse.
125
- Deixe-me ver se adivinho. As iniciais dela são H.D.?
- Sim. Sua Excelência considera importante que o relacionamento seja encerrado pacificamente.
- Apesar do que ele disse ao mundo?
- Quem disse fui eu. Ele não deu seu aval.
- Não acredito.
- Acredite se quiser. Você conhece muito bem como o público fica atento a tudo. Sua Excelência
está determinado a não se sentir constrangido por causa da Srta. Durham. Você deve lembrarse
de que eles foram apresentados um ao outro por seu genro.
- Eu ainda não o conhecia naquela época - disse Rayford.
- Certo. O desaparecimento dela causou um transtorno. Fez Sua Excelência parecer incapaz de
controlar o que se passava em sua casa. O terremoto forneceu uma explicação plausível para a
separação deles. É importante que, enquanto estiver agindo por conta própria, a Srta. Durham
não diga nada nem faça nada que possa constrangê-lo.
- E você quer que eu faça o quê? Que eu diga a ela como deve comportar-se?
- Francamente, capitão, você não estaria exagerando se dissesse a ela que acidentes
acontecem. Ela não pode permanecer escondida por muito tempo. Se for necessário eliminar o
risco, temos condições de fazer isso com facilidade e de maneira que a imagem de Sua
Excelência não fique manchada. Ao contrário, ele conquistaria ainda mais a simpatia do povo.
- Posso repetir o que acabei de ouvir, só para que tudo fique bem claro?
- Claro.
- Você quer que eu diga a Hattie Durham para ficar com a boca fechada, se não você vai matála
e depois negar tudo.
Fortunato pareceu ter ficado abalado. Em seguida, ele se controlou e olhou para o teto.
- Estamos nos entendendo - ele disse.
- Fique sossegado. Se eu fizer contato com a Srta. Durham, transmitirei seu recado.
- Suponho que você também lhe dirá que, se ela repetir o que ouviu, sofrerá as consequências.
- Oh!, entendi. Trata-se de uma ameaça velada.
- Você vai cuidar dos dois assuntos?
- Vê que ironia? Vou transmitir uma ameaça de morte à Srta. Durham e, apesar disso, devo
confiar que você vai proteger Tsion Ben-Judá.
- Correto.
- Bem, talvez esteja correto, mas não é certo.
Rayford marchou de volta para a cabina de comando. O olhar de Mac deixava transparecer que
ele já sabia de tudo.
- Você escutou a conversa?
- Escutei - disse Mac. - Gostaria de tê-la gravado.
- Para quem você a reproduziria?
- Aos nossos companheiros crentes.
- Esse trabalho seria em vão. Nos velhos tempos, você poderia entregar uma fita dessas às
autoridades. Mas você sabe quem são as autoridades.
- O que você vai exigir, Ray?
- Como assim?
- Ben-Judá pertence a Israel. E Carpathia tem de cuidar da segurança dele, não é mesmo?
- Você ouviu o que Fortunato disse. Eles podem provocar um acidente e Carpathia ganhará a
simpatia do povo.
- Mas se ele prometer uma garantia pessoal, Ray, vai ter de proteger Tsion.
- Não se esqueça do que Tsion deseja fazer em Israel. Ele não vai apenas conversar com as
duas testemunhas ou rever velhos amigos. Vai treinar os 144.000 evangelistas ou o maior
número que puder assim que chegar lá. Ele será um terrível pesadelo para Nicolae.
- Mas, o que você vai pedir em troca?
- Qual é a diferença? Você espera que o anticristo cumpra uma promessa? Eu não daria um
centavo pelo futuro de Hattie Durham, quer ela siga as instruções ou não. Talvez se eu levar
isso um pouco mais adiante poderei extrair algo de Fortunato sobre Amanda. Estou lhe
dizendo, Mac, que ela está viva em algum lugar.
- Se ela está viva, Ray, por que não faz contato? Não quero ofendê-lo, mas não existe a
126
possibilidade de ela ser o que dizem que ela é?
127
QUINZE
Buck despertou um depois da meia-noite com o toque do telefone de Chloe no pavimento
inferior. Embora ela houvesse deixado o telefone ao alcance da mão, ele continuou a tocar.
Buck sentou-se na cama, confuso. Em seguida, desceu a escada correndo, imaginando que
talvez Chloe estivesse dormindo profundamente por causa do remédio.
Só as pessoas muito ligadas ao Comando Tribulação conheciam os números dos telefones
celulares de seus membros. Qualquer chamada era muito significativa. Buck não conseguiu
enxergar o telefone no escuro, mas não queria acender a luz. Acompanhou o som até a beira
da cama de Chloe, debruçou-se cuidadosamente por cima dela, tentando não despertá-la.
Pegou o telefone e sentou-se em uma cadeira perto da cama.
- Telefone de Chloe - ele sussurrou.
Do outro lado da linha alguém chorava.
- É você, Hattie?
- Buck! - ela disse.
- Chloe não ouviu o telefone tocar, Hattíe. Eu não quero despertá-la.
- Eu também não - ela disse com a voz entrecortada por soluços. - Desculpe-me por ligar a
esta hora.
- Ela queria muito conversar com você, Hattie. Há alguma coisa que eu possa fazer por você?
- Oh, Buck! - ela disse, descontrolando-se novamente.
- Hattie, sei que você não imagina onde estamos, mas a distância é muito grande para
podermos ajudá-la caso esteja em perigo. Você quer que eu avise alguém?
-Não!
- Então fale com calma. Posso esperar. Não tenho compromisso nenhum a esta hora.
- Obrigada - ela conseguiu dizer.
Enquanto Buck aguardava, seus olhos começaram a acostumar-se à escuridão. Pela primeira
vez desde que chegara, Chloe não estava deitada do lado esquerdo para proteger o semnúmero
de fraturas, hematomas, cortes, torções e arranhões do lado direito. Todas as manhãs
ela passava meia hora massageando as partes dormentes do corpo. Ele orou para que em
breve ela pudesse desfrutar uma boa noite de sono. Talvez isso estivesse acontecendo naquele
momento. Mas será que alguém conseguiria dormir um sono tão profundo a ponto de não
ouvir o toque de um telefone tão próximo? Ele esperava que o sono fosse benéfico tanto ao
corpo como ao espírito de Chloe. Ela continuava deitada de costas, com o braço esquerdo ao
longo do corpo. O pé direito machucado, que ficara com os dedos virados para dentro, estava
tombado para a esquerda, e o braço engessado repousava sobre o estômago.
- Seja paciente comigo - Hattie conseguiu dizer.
- Não tenha pressa - disse Buck, passando a mão pela cabeça e espreguiçando-se. Ele estava
surpreso por ver sua mulher dormindo de modo tão sereno. Chloe era uma dádiva de Deus, e
Buck sentia-se imensamente agradecido por ela ter sobrevivido. O lençol e o cobertor que a
cobriam estavam amontoados. Ela costumava dormir sem cobertas e só puxava o cobertor
mais tarde.
Buck acariciou o rosto dela com o dorso da mão. A pele estava fria. Ainda aguardando que
Hattie conseguisse falar, ele cobriu Chloe até o pescoço com o lençol e o cobertor, preocupado
por talvez ter esbarrado as cobertas em seu pé machucado, o local mais sensível. Mas ela não
se mexeu.
- Hattie, você continua na linha?
- Buck, informaram-me esta noite que minha mãe e minhas irmãs morreram no terremoto.
- Oh, Hattie. Sinto muito.
- A devastação tem sido enorme - ela disse. - Quando Los Angeles e San Francisco foram
bombardeadas, Nicolae e eu ainda estávamos juntos. Ele me avisou que precisaríamos
128
sair daquela área e me fez jurar segredo. O serviço secreto dele temia um ataque por parte da
milícia, e foi o que aconteceu.
Buck não disse nada. Rayford lhe contara que ouvira, por meio do botão secreto instalado no
Condor 216, o próprio Carpathia dar ordens para bombardear San Francisco e Los Angeles.
- Hattie, de onde você está ligando?
- Eu já informei isso pelo e-mail - ela disse.
- Eu sei, mas você não está usando o telefone deles, está?
- Não! É por isso que estou ligando tão tarde. Tive de esperar até poder sair furtivamente.
- E quanto às notícias sobre sua família? Como chegaram até você?
- Eu tive de informar as autoridades de Santa Monica onde poderiam me encontrar. Dei-lhes o
número de meu telefone particular e o da clínica.
- Lamento muito dizer isto num momento tão difícil para você, Hattie, mas não foi uma boa
ideia.
- Eu não tive escolha. Levei muito tempo para chegar a Santa Monica, e quando cheguei,
minha família estava desaparecida. Fui obrigada a deixar o número dos telefones. Agora estou
muito preocupada.
- Talvez a informação tenha sido passada ao pessoal da CG.
- Eu não me importo mais.
- Não diga isso.
- Não quero voltar para Nicolae, mas quero que ele assuma a responsabilidade por nosso filho.
Não tenho emprego, nem renda e, agora, nem família.
- Nós nos preocupamos com você e a amamos, Hattie. Não se esqueça disto.
Ela rompeu em pranto novamente.
- Hattie, você já parou para pensar que as notícias sobre sua família podem ser falsas?
- O quê?
- Eu não subestimo o pessoal da CG. Sabendo onde você está, talvez queiram ter um motivo
para você não sair daí. Se você achar que sua família está morta, não haveria razão
para ir até a Califórnia.
- Mas eu disse a Nicolae que minha família tinha se mudado depois do bombardeio.
- Ele não deve ter levado muito tempo para descobrir que isso era mentira.
- Por que ele há de querer que eu não saia daqui?
- Talvez suponha que quanto mais tempo você ficar aí, maiores serão as chances de fazer um
aborto.
- Isso é uma realidade.
- Não fale assim.
- Não tenho alternativa, Buck. Não posso criar um filho em um mundo como este e sem
nenhuma perspectiva.
- Não quero fazê-la sentir-se pior, Hattie, mas acho que você não está segura aí.
- O que você está insinuando?
Buck gostaria que Chloe despertasse e o ajudasse a conversar com Hattie. Ele tinha uma ideia,
mas queria consultar sua mulher antes.
- Hattie, eu conheço essa gente. Eles preferem eliminá-la a fazer um acordo com você.
- Eu não represento mais nada. Não posso prejudicá-los.
- Se alguma coisa lhe acontecer, Carpathia poderá
conquistar uma grande simpatia por parte do povo. O que ele mais deseja é chamar a atenção
para si, e tanto faz se essa atenção venha em forma de medo, respeito, admiração ou
piedade.
- Vou lhe contar uma coisa. Farei o aborto antes que ele faça algum mal a mim ou a meu filho.
- Você não está sendo sensata. Vai matar seu filho antes que ele o mate?
- Você está falando igual ao Rayford.
- Nós concordamos neste ponto - disse Buck. - Por favor, não faça isso. Pelo menos, vá para
um lugar onde você não corra perigo e possa refletir sobre o assunto.
- Eu não tenho para onde ir!
- Se eu for buscá-la, você ficaria aqui conosco?
Silêncio.
129
- Chloe precisa de você. Podemos contar com a ajuda dela. E ela poderia ser útil para você
durante sua gravidez. Ela também está grávida.
- Verdade? Oh, Buck, não quero ser uma preocupação a mais para vocês. Eu me sentiria
constrangida, uma intrusa.
- Ei, a ideia foi minha.
- Não sei se daria certo.
- Hattie, diga-me onde você está. Chegarei aí até ao meio-dia de amanhã para buscá-la.
- Que tal até ao meio-dia de hoje?
Buck consultou seu relógio.
- Acho que vou conseguir - ele disse.
- Você não deveria conversar antes com Chloe?
- Não quero importuná-la agora. Se houver algum problema, ligarei para você. Caso contrário,
esteja pronta para vir comigo.
Nenhum comentário.
- Hattie?
- Continuo na linha, Buck. Estava só pensando. Você se lembra como nos conhecemos?
- Claro. Foi numa ocasião muito significativa.
- No 747 que Rayford pilotava na noite dos desaparecimentos.
- Do Arrebatamento - corrigiu Buck.
- Que seja. Já passamos por muita coisa desde então.
- Ligarei para você quando faltar uma hora para chegar aí.
- Nunca poderei pagar-lhe por isso.
- Quem disse alguma coisa sobre pagamento?
Buck desligou o telefone, arrumou as cobertas de Chloe e ajoelhou-se ao lado da cama para
beijá-la. Ela ainda estava fria. Ele resolveu pegar mais um cobertor, mas parou no meio do
caminho. Chloe estava imóvel. Estaria respirando? Ele voltou e colocou o ouvido perto do nariz
dela. Ficou em dúvida. Colocou o polegar e o indicador debaixo das mandíbulas para sentir a
pulsação. Ela retraiu-se. Estava viva. Buck ajoelhou-se no chão. "Obrigado, meu Deus!"
Chloe balbuciava alguma coisa. Ele segurou a mao dela e colocou-a entre as suas.
- O que foi, meu amor? O que você quer?
- Buck? - ela disse, esforçando-se para abrir os olhos.
- Estou aqui.
- O que houve?
- Acabei de receber um telefonema de Hattie. Volte a dormir.
- Estou com frio.
- Vou buscar mais um cobertor.
- Quero falar com Hattie. O que ela disse?
- Eu lhe contarei amanhã.
- Hummm, hummm.
Buck encontrou uma manta e estendeu-a sobre ela.
- Agora está melhor?
Ela não respondeu. Quando ele começou a afastar-se nas pontas dos pés, ela resmungou algo.
Ele voltou.
- O que é, meu bem?
- Hattie.
- Amanhã cedo - ele disse.
- Ela está com o meu coelhinho.
- Coelhinho? - perguntou Buck sorrindo.
- Meu cobertor.
- Está bem.
- Obrigada pelo cobertor.
Buck imaginou se ela se lembraria do que disse.
Mac estava na cabina de comando e Rayford dormia em seus aposentos quando seu telefone
tocou. Era Buck. Rayford sentou-se na cama. - Que horas são aí? - ele perguntou.
130
- Se eu lhe disser, qualquer pessoa que estiver na escuta saberá em que região estou.
- Donny nos assegurou que estes telefones eram seguros.
- Isso foi no mês passado - disse Buck. - Agora eles já estão quase obsoletos.
Os dois contaram as últimas novidades um ao outro.
- Você tem razão de querer tirar Hattie de lá. Depois que lhe contei o que Leon me disse, você
não concorda que ela está em perigo?
- Sem dúvida nenhuma - disse Buck.
- E Tsion? Está querendo ir para Israel?
- Querendo? Tive de amarrá-lo na cadeira para impedir que ele fosse a pé até lá. No entanto,
ele vai desconfiar de alguma coisa, caso o chefão queira assumir o mérito de levá-lo para lá.
- Acho que ele não deve ir, Buck. A vida dele estaria por um fio.
- Tsion busca conforto nas profecias que dizem que ele e o restante das 144.000 testemunhas
estão selados e protegidos, pelo menos por ora. Ele acha que pode entrar na toca do inimigo e
sair ileso.
- Ele é o especialista no assunto.
- Eu quero ir com ele. O encontro de Tsion com as duas testemunhas no Muro das Lamentações
fará explodir essa colheita de almas que ele tem profetizado.
- Buck, você já consultou a sede da CG? Tudo o que eu ouvi até agora da chefia é que você está
em terreno perigoso. Você não pode esconder mais nada de ninguém.
- Foi interessante essa sua pergunta. Acabei de transmitir uma longa mensagem ao chefão.
- E isso vai trazer-lhe algum benefício?
- Você sobreviveu até agora por causa de sua franqueza, Rayford. Estou fazendo o mesmo. Eu
disse a eles que ando muito atarefado resgatando amigos e enterrando mortos, e não estou
tendo tempo para me preocupar com meu trabalho. Além disso, 90% dos funcionários
morreram e todas as publicações estão praticamente paradas. Estou propondo continuar a
editar a revista pela Internet até que Carpathia decida se vai reconstruir as gráficas.
- Que criatividade!
- É isso aí. O fato é que talvez apareçam duas revistas na Internet simultaneamente, se é que
você está me entendendo.
- Já existem dezenas.
- Eu disse que talvez apareçam duas simultaneamente, editadas pela mesma pessoa.
- Mas apenas uma será financiada e autorizada pelo rei do mundo?
- Correto. A outra não receberá nenhum financiamento. Divulgará a verdade. E ninguém poderá
saber de onde ela se origina.
- Estou gostando de seu modo de pensar, Buck. Que bom você fazer parte de minha família.
- Minha vida não tem sido nem um pouco maçante, é o que eu posso dizer.
- E o que eu devo dizer a Leon sobre Hattie e Tsion?
- Diga que você vai fazer o recado chegar até a moça. Quanto a Tsion, negocie o que você
quiser. Ele será levado para Israel dentro de um mês.
- Você pensa que o pessoal do leste é tão paciente assim?
- É importante ganhar o maior tempo possível. Aumente as dificuldades. Controle o tempo
gasto. Isso deixará Tsion furioso, mas nos dará oportunidade para fazer um comunicado a
todos pela Internet para que possam estar presentes.
- Conforme eu já lhe disse, gosto de seu modo de pensar. Você devia ser editor de revista.
- Daqui a pouco não passaremos de fugitivos.
Buck estava certo. Quando o dia amanheceu, Chloe não se lembrava de nada do que se
passara durante a noite.
- Eu acordei com calor e descobri que alguém me cobriu com um cobertor - ela disse. - Acho
que foi obra de um dos sujeitos que dormem no pavimento superior.
Ela pegou o telefone e caminhou até a cozinha apoiando-se numa bengala.
- Vou ligar para ela agora mesmo - disse Chloe discando os números com a mão direita
inchada. - Vou dizer a ela que não vejo a hora de ter uma companhia feminina por aqui.
Chloe aguardou alguns momentos com o fone colado ao ouvido.
- Ninguém está atendendo? - perguntou Buck. - É melhor você desligar, meu bem. Se ela
estiver em algum lugar de onde não possa falar, deve ter programado o telefone para
131
desligar após o primeiro toque. Tente mais tarde, mas tome cuidado para não comprometê-la.
Do pavimento superior, veio o som de uma risada de Tsion.
- Vocês não vão acreditar nisto! - ele gritou, e Buck ouviu seus passos. Chloe fechou o telefone
e olhou para cima com curiosidade.
- Ele se diverte facilmente - ela disse. - Que alegria! Aprendo alguma coisa com ele todos os
dias.
Buck assentiu, e Tsion desceu a escada e sentou-se à mesa com o semblante demonstrando
vivacidade.
- Estou lendo algumas dos milhares de mensagens deixadas para mim na central de boletins -
ele disse. – Não sei quantas deixo de ler por dia. Acho que estou conseguindo ler apenas 10 %
do total, porque o número cresce assustadoramente. Fico triste por não poder responder a cada
uma delas, mas vocês sabem que isso é impossível. Esta manhã recebi uma mensagem de
alguém que assinou "Sei de Tudo". Claro que não posso ter certeza se essa pessoa sabe de
tudo, mas talvez saiba. Trata-se de um enigma interessante, não? Correspondência anónima
pode ser um embuste. Alguém pode usar meu nome e espalhar ensinamentos falsos. Eu
preciso inventar alguma coisa que prove minha autenticidade, não?
- Tsion! - disse Chloe. - O que esse "Sei de Tudo" escreveu de tão engraçado?
- Ah, sim. Foi por isso que vim até aqui, não? Perdoe-me. Eu imprimi a mensagem. - Tsion
olhou para a mesa e depois enfiou a mão no bolso da camisa. - Oh! - ele disse vasculhando os
bolsos da calça. - Ainda está na impressora. Não saia daqui.
- Tsion? - Chloe o chamou ao vê-lo afastar-se. - Só quero que você saiba que não vou sair
daqui enquanto você não voltar.
Ele olhou para ela com ar atordoado.
- Oh, bem, sim. Claro.
- Ele ficará emocionado quando souber que vai para casa - disse Buck.
- E você vai com ele?
- Eu não perderia isso por nada - disse Buck. – Essa história vai dar o que falar.
- Vou com vocês.
- Oh, não vai não! - disse Buck, mas Tsion já estava voltando.
Ele estendeu a folha de papel sobre a mesa e leu: "Rabino, sinto-me na obrigação de contarlhe
que a pessoa encarregada de vigiar todas as suas transmissões é um conselheiro militar
graduado da Comunidade Global. Isso talvez não signifique muito para o senhor, mas ele está
particularmente interessado em sua interpretação das profecias sobre o que estará caindo na
terra daqui a alguns meses e que causará grandes devastações. Sabendo que o senhor leva
essas profecias a sério, ele resolveu desenvolver defesas nucleares contra essas catástrofes.
Assinado, "Sei de Tudo".
- Isto é muito engraçado - disse Tsion olhando para cima, com um brilho nos olhos -, porque
deve ser verdade! Carpathia, que está sempre tentando explicar que tudo o que tem amparo
nas profecias bíblicas é um fenómeno da natureza, incumbiu seu conselheiro militar graduado
de planejar um contra-ataque a... o quê? Desferir um ataque a uma montanha incandescente
vinda do céu? Seria como um mosquito ameaçando um elefante. De qualquer forma, não
poderíamos considerar que ele está admitindo que existe fundamento nessas profecias?
Buck imaginou que o "Sei de TUdo" poderia ser o novo irmão de Rayford e Mac que trabalhava
dentro da sede da CG.
- Que coisa intrigante! - disse Buck. - Agora você está preparado para receber boas notícias?
Tsion pousou a mão no ombro de Chloe.
- O progresso diário desta garotinha aqui já é uma boa notícia para mim. - ele disse. - A
menos que o assunto seja Israel.
- Perdoarei sua observação condescendente, Tsion, porque tenho certeza de que você não teve
a intenção de ofender-me - disse Chloe.
Tsion demonstrou estar confuso.
- Perdoe Chloe - disse Buck a Tsion. - Faz 22 anos que ela está tentando ser politicamente
correta.
Chloe olhou firme para Buck.
- Sinto muito ter de dizer isto na frente de Tsion, Cameron, mas agora você me ofendeu de
132
verdade.
- Está bem - disse Buck rapidamente. - Considero-me culpado. Desculpe-me. Mas eu ia contar
a Tsion que ele vai ter seu desejo...
- Sim! - Tsion gritou exultante.
- E, Chloe, não estou disposto a discutir se você vai ou não.
- Então não vamos discutir. Eu vou.
- Oh, não! - disse Tsion. - Você não pode ir! Não está em condições.
- Tsion! Ainda temos um mês pela frente. Até lá eu...
- Um mês? - disse Tsion. - Por que tanto tempo? Eu já estou pronto. Preciso ir logo. O povo está
implorando por isso, e acredito que Deus quer que eu esteja lá.
- Estamos preocupados com a questão da segurança, Tsion - disse Buck. - Um mês dará tempo
para reunirmos o maior número possível de testemunhas do mundo inteiro em Israel.
- Um mês é demais!
- Será bom para mim - disse Chloe. - Até lá já estarei andando sem a ajuda de ninguém.
Buck balançou a cabeça.
- Você não precisa preocupar-se com segurança, Cameron - disse Tsion, já de volta a seu
mundo. - Deus me protegerá.
Ele protegerá as testemunhas. Quanto aos outros crentes, não sei. Só sei que eles receberam o
selo na testa, mas não tenho certeza se estarão protegidos durante a época da colheita.
- Se Deus pode proteger você - disse Chloe - pode me proteger também.
- Chloe - disse Buck - você sabe que só desejo o seu bem-estar. Eu adoraria que você fosse.
Nunca senti tanto a sua falta como quando estive em Jerusalém sem você.
- Então me diga por que não posso ir.
- Eu jamais me perdoaria se alguma coisa acontecesse com você. Não posso arriscar.
- Eu também estou vulnerável aqui, Buck. Cada dia é um risco. Por que você quer arriscar sua
vida e não a minha?
Buck não sabia o que dizer, e tentou encontrar uma resposta.
- Hattie estará mais perto de dar à luz. Ela vai precisar de você. E quanto ao nosso filho?
- Ninguém perceberá nada, Buck. Nessa época, estarei no terceiro mês de gravidez. E você vai
precisar de mim. Quem vai cuidar da parte logística? Vou me comunicar com milhares de
pessoas pela Internet, marcar reuniões. Preciso estar presente.
- Você não levou em conta o assunto de Hattie.
- Hattie é mais independente do que eu. Ela gostaria que eu fosse. Pode tomar conta de si
mesma.
Buck estava perdendo e sabia disso. Desviou o olhar, relutando em ceder tão depressa. Sim, ele
estava agindo como protetor de Chloe.
- É que há poucos dias eu quase perdi você.
- Pense um pouco, Buck. Eu fui capaz de sair daquela casa antes que ela me esmagasse.
Ninguém tem culpa de o telhado ter caído em cima de mim.
- Vamos ver em que condições você estará daqui a algumas semanas.
- Vou começar a ajuntar minhas coisas.
- Não seja precipitada.
- Pare de me tratar como uma criança, Buck. Eu não tenho problema de ser submissa a você
porque sei o quanto você me ama. Estou disposta a obedecer mesmo que você esteja errado.
Mas não seja insensato. E não erre quando não há motivos para errar. Eu vou fazer o que você
quer, e posso até me conformar, mesmo que você me obrigue a perder um dos maiores
acontecimentos da história da humanidade. Porém não me venha com essas ideias
antiquadas, querendo proteger sua mulherzinha. Vou aceitar a piedade e a ajuda de vocês por
alguns tempos, e depois quero voltar a trabalhar para valer. Pensei que essa tivesse sido uma
das virtudes que você apreciou em mim.
E era. O orgulho impediu que Buck concordasse tão depressa. Ele aguardaria um dia ou dois
para contar a ela que chegara a uma conclusão. Os olhos de Chloe estavam fixos nos dele.
Estava claro que ela queria vencer essa batalha. Ele tentou fazê-la abaixar o olhar mas não
conseguiu. Olhou, então, para Tsion.
- Dê ouvidos a ela - disse Tsion.
133
- Fique fora disto - disse Buck, sorrindo. - Eu não preciso de nenhum aliado. Pensei que você
estivesse do meu lado. Pensei que você concordaria comigo que aquele lugar não era
apropriado para...
- Para quem? - disse Chloe. - Para uma menina? Para uma "mulherzinha"? Para uma mulher
grávida e ferida? Será que ainda sou membro do Comando Tribulação ou fui rebaixada a
mascote?
As entrevistas de Buck com chefes de Estado tinham sido muito mais fáceis que esta discussão
com Chloe.
- Você não pode concordar com isto, Buck – ela complementou.
- Você está querendo me obrigar a aceitar a derrota – disse Buck.
- Não vou dizer mais nenhuma palavra - ela disse.
- Basta por hoje - disse Buck, rindo.
- Agora peço licença aos dois "senhores" - disse Chloe. - Vou tentar ligar novamente para
Hattie. Nós, da "liga das mulheres indefesas", vamos fazer uma reunião por telefone.
- Ei! Você não ia dizer mais nenhuma palavra! - O tom de voz de Buck era de retaliação.
- Então vá embora daqui para não ter de ouvir.
- Preciso ligar para Ritz. Quando você falar com Hattie, descubra sob que nome ela foi internada
na clínica.
Buck acompanhou Tsion em direção à escada, mas Chloe o chamou.
- Venha até aqui, garotão. - Buck a encarou. Ela fez um gesto para que ele se aproximasse. -
Vamos - ela disse levantando o braço engessado desde o ombro até o pulso e
passando-o ao redor do pescoço dele. Em seguida, ela puxou-o para perto de si e deu-lhe um
longo beijo. Ele afastou-se e sorriu timidamente. - Você é tão ingénuo - ela sussurrou.
- Mas amo você, neném - disse ele -, dirigindo-se para a escada.
- Ei - gritou ela - se você encontrar meu marido aí em cima, diga a ele que já estou cansada de
dormir sozinha.
Rayford permaneceu com o botão secreto ligado enquanto Peter Mathews e Leon Fortunato
passaram mais de uma hora e meia de vôo discutindo sobre o protocolo da chegada deles a
Dálias. Mathews, evidentemente, prevaleceu quase o tempo todo.
O embaixador regional - ex-senador dos Estados Unidos pelo Texas - providenciara limusines,
tapete vermelho estendido no chão, saudação oficial e até mesmo uma banda de música.
Fortunato passou meia hora conversando por telefone com o pessoal do embaixador, tomando
conhecimento da apresentação dos convidados de honra que seria lida quando ele e Mathews
desembarcassem. Embora Rayford só conseguisse escutar o que Fortunato dizia, ficou claro que
o pessoal do embaixador estava simplesmente tolerando essa presunção.
Depois que Fortunato e Mathews se aprumaram para a cerimónia, Leon chamou a cabina de
comando pelo interfone.
- Eu gostaria que vocês, cavalheiros, auxiliassem a tripulação de solo descendo a escada de
saída assim que pararmos no aeroporto.
- Antes da verificação pós-vôo? - perguntou Mac, dando a entender a Rayford que isso era a
coisa mais estúpida que ele já ouvira. Rayford deu de ombros.
- Sim, antes da verificação pós-vôo - respondeu Leon. - Vejam se tudo está em ordem, digam à
tripulação de bordo para aguardar na aeronave até que a cerimónia de boas-vindas termine.
Vocês dois serão os últimos a descer.
Mac desligou o interfone.
- Se vamos adiar a verificação pós-vôo, com certeza seremos os últimos a descer. Você não
acha que a prioridade seria fazer a verificação para sabermos se esta aeronave está em
condições de fazer a viagem de volta?
- Como temos 36 horas pela frente, ele acha que podemos fazer isso a qualquer momento.
- Fui treinado para verificar os itens importantes enquanto ainda estão quentes.
- Eu também - disse Rayford. - Mas devemos fazer o que nos mandam, e você sabe por quê?
- Diga-me, ó Excelência Supremo Piloto.
- Porque o tapete vermelho não é para nós.
134
- Você não vai ficar ressentido com isso?
Rayford comunicou-se com o controle de solo enquanto Mac seguia as direções do sinalizador
rumo à pista de macadame e depois para perto de um pequeno palanque onde o público, a
banda de música e os dignitários aguardavam. Rayford espiou pela janela pessoas diferentes
vestidas de músicos.
- Onde será que eles foram buscar essas criaturas? – ele disse. - Sabe-se lá em quantos elas
eram antes do terremoto.
O sinalizador dirigiu Mac até a extremidade do tapete e cruzou no ar as lanternas em formato
de cone para indicar parada lenta.
- Veja só - disse Mac.
- Tome cuidado, seu malandro - disse Rayford.
No momento de frear, Mac parou um pouco além da extremidade do tapete vermelho.
- Eu fiz isso? - ele perguntou.
- Você é um garoto mau.
- Assim que a escada foi descida, a banda de música terminou de tocar. Os dignitários se
perfilaram e o embaixador da Comunidade Global pegou o microfone.
- Senhoras e senhores - ele anunciou com grande solenidade - representando Sua Excelência,
o Potentado da Comunidade Global Nicolae Carpathia, o Supremo Comandante Leonardo
Fortunato!
O grupo de pessoas irrompeu em aplausos enquanto Leon descia a escada acenando para
todos.
- Senhoras e senhores, os assistentes pessoais do escritório do Supremo Pontífice da Fé
Mundial Enigma Babilónia!
A reação foi mais branda porque as pessoas presentes talvez quisessem saber se aqueles dois
tinham nomes, e se tinham, por que não foram mencionados.
Após uma pausa, longa o suficiente para que todos ficassem curiosos de saber quem mais
estava a bordo, Mathews caminhou até perto da porta de saída, mas ficou fora da visão do
povo. Em pé na porta da cabina de comando, Rayford aguardava o início da verificação pós-vôo
quando toda aquela bobagem terminasse.
- Estou aguardando - resmungou Mathews. - Não vou aparecer enquanto não me anunciarem.
Rayford sentiu vontade de colocar a cabeça para fora e gritar: "Anunciem o Peter!", mas
conteve-se. Fortunato voltou a subir a escada apressado. De onde ele parou, não conseguia
enxergar Mathews, que estava um pouco afastado da porta. Ao avistar Rayford, ele gritou:
- Ele está pronto?
Rayford assentiu. Leon desceu a escada e cochichou ao ouvido do embaixador.
- Senhoras e senhores, o Supremo Papa Peter Segundo, da Fé Mundial Enigma Babilónia!
A banda de música começou a tocar, o povo se alvoroçou, e Mathews apareceu na porta,
aguardando os aplausos e aparentando humildade diante de uma reação tão generosa. Desceu
a escada solenemente, estendendo sua bênção a todos.
Assim que os discursos de boas-vindas foram iniciados, Rayford pegou sua prancheta e instalouse
novamente na cabina de comando.
- Senhoras e senhores! - disse Mac. - O Piloto Comandante do Condor 216, com uma vida
inteira repleta de...
Rayford bateu com a prancheta no ombro dele e disse:
- Pare com isso, seu boboca.
- Como você está, Ken - perguntou Buck pelo telefone.
- Melhor. Houve dias em que eu preferia estar no hospital. Mas estou bem melhor do que na
última vez que você me viu. Acho que vou tirar os pontos na segunda-feira.
- Tenho um outro serviço, se você estiver em condições.
- Estou sempre pronto. Para onde vamos?
- Denver.
- Hummm. Fiquei sabendo que o antigo aeroporto de lá está aberto. Acho que o novo nunca
mais voltará a funcionar.
135
- Temos uma hora pela frente. Eu disse à minha cliente que a pegaria até ao meio-dia.
- Outra garota com problemas?
- A bem da verdade, sim. Você tem carro?
- Sim.
- Desta vez, quero que você venha me pegar. Meu carro precisa ficar aqui.
- Quero saber notícias de Chloe - disse Ken. - Como ela está?
- Venha ver com seus próprios olhos.
- É melhor eu me apressar para que você não chegue atrasado ao compromisso. Você nunca
tem tempo para um pouco de lazer, não?
- Sinto muito. Ei, Ken, você entrou naquele site da Internet do qual eu lhe falei?
- Entrei. Passei um bom tempo lendo tudo.
- E chegou a alguma conclusão?
- Preciso conversar com você sobre esse assunto.
- Faremos isso quando estivermos a bordo.
- Estou muito agradecido por você ter permitido que eu pilotasse grande parte desta viagem -
disse Mac enquanto ele e Rayford desciam da aeronave.
- Eu tinha um outro motivo. Sei que as regras da FAA (órgão dos Estados Unidos que controla o
sistema de aviação) deixaram de prevalecer, uma vez que Carpathia passou a ser a própria lei,
mas ainda sigo o máximo que posso as regras de horas de vôo.
- Eu também. Você vai a algum lugar?
- Assim que você me ensinar a voar por aí com o Challenger. Eu gostaria de fazer uma visita de
surpresa para minha filha. Buck me disse como chegar lá.
- Isso será muito bom para você.
- O que você vai fazer, Mac?
- Vou ficar aqui. Tenho alguns amigos que moram a uns 300 quilómetros a oeste. Se eu
descobrir onde estão, usarei o helicóptero.
O carro velho de Ken Ritz entrou sacolejando no quintal da casa pouco antes das nove horas.
- Alguém gostaria de vê-la depois de você ter recobrado a consciência - disse Buck a Chloe.
- Pergunte se ele topa uma queda-de-braço comigo – disse Chloe.
- Você não acha que está muito brincalhona?
Tsion estava descendo a escada quando Buck foi ao encontro de Ken na porta dos fundos. Ken
usava botas e chapéu tipo caubói, calça jeans e camisa caqui de mangas compridas.
- Sei que você está com pressa - ele disse - mas onde está a paciente?
- Estou aqui, Dr. Aeroplano - disse Chloe mancando até a porta da cozinha. Ken tirou o chapéu
para cumprimentá-la.
- Faça mais que isso, caubói - ela disse, estendendo o braço em bom estado para dar-lhe um
abraço. Ken aproximou-se dela.
- Você está bem melhor do que na última vez que a vi - ele disse.
- Obrigada. Você também.
- Estou muito melhor - ele disse, rindo. - Vocês notaram alguma diferença em mim?
- Um pouco mais corado, acho - disse Buck. - E você deve ter engordado meio quilo nos
últimos dois dias.
- Não dá para perceber por causa de minha estatura - disse Ritz.
- Faz tanto tempo que não nos vemos, Sr. Ritz – disse Tsion.
Ritz apertou a mão do rabino.
- Todos nós estamos com aparência melhor que da última vez, não? - disse Ritz.
- É melhor nos apressarmos - disse Buck.
- Quer dizer que ninguém notou nenhuma diferença em mim, hein? - perguntou Ken. - Vocês
não estão vendo nada? Ainda não está aparecendo?
- O quê? - perguntou Buck. - Você também está "grávido"?
Enquanto todos riam, Ken tirou o chapéu e passou a mão pelos cabelos. - É a primeira vez que
coloco chapéu nesta cabeça machucada.
- E daí? O que há de diferente? - perguntou Buck.
136
- Isto aqui. - Ken passou novamente a mão pelos cabelos, e desta vez segurou-os no alto da
cabeça. - Talvez a diferença esteja em minha testa. Eu posso ver o de vocês. Vocês podem ver
o meu?
137
DEZESSEIS
Rayford fez mais uma manobra de aterrissagem com o Challenger 3.
- Eles já estão cansados de me ver fazendo barbeiragens nesta pista. Se eu não acertar desta
vez, talvez seja melhor você me levar até Illinois.
- Torre de Dallas para Charlie, Tango, câmbio.
Rayford franziu a testa.
- Eu não falei que isso ia acontecer? - ele disse.
- Pode deixar que eu atendo - disse Mac. - Aqui é Charlie, Tango, câmbio.
- Mensagem recebida via rádio para o capitão do Condor 216, câmbio.
- Prossiga, torre, câmbio.
- Mensagem diz para ele ligar para o Supremo Comandante no seguinte número... Mac anotou
o número.
- E agora? - Rayford disse para si mesmo em voz alta, fazendo uma manobra de pouso, a mais
suave daquela manhã.
- Não há necessidade de pousar - disse Mac. - Deixe que eu tomo conta do Challenger
enquanto você liga para o capitão Canguru.
- Diga Supremo Comandante Canguru, companheiro - corrigiu Rayford. Ele arremeteu o
Challenger à velocidade de 480 km por hora. Assim que Rayford nivelou o avião no ar,
Mac assumiu os controles.
Rayford ligou para Fortunato, que estava na residência do embaixador.
- Eu esperava que você me ligasse imediatamente - disse Leon.
- Estou no meio de um treinamento.
- Tenho um serviço para você.
- Planejei algumas coisas para hoje, senhor. Tenho alguma opção?
- A instrução partiu de cima.
- Minha pergunta permanece no ar.
- Não, você não tem opção. Sua Excelência quer que você voe até Denver hoje. Se isto retardar
nossa volta, informaremos os respectivos embaixadores.
- Denver?
- Ainda não estou apto a pilotar este avião sozinho – disse Rayford. - Meu co-piloto não poderia
encarregar-se disso?
- O serviço secreto localizou a pessoa com que você deveria entrar em contato. Entendeu?
- Entendi.
- Sua Excelência gostaria que seu recado fosse transmitido pessoalmente, o mais rápido
possível.
- Por que tanta pressa?
- A pessoa encontra-se em um local de propriedade da Comunidade Global, que pode ajudar a
resolver o assunto, dependendo da resposta.
- Ela está em uma clínica de aborto?
- Capitão Steele! Esta ligação pode ser ouvida por alguém.
- Talvez eu deva pegar um vôo comercial.
- Você precisa chegar lá ainda hoje. Os homens da CG estão vigiando a pessoa.
- Antes de você partir, Cameron - disse Tsion - devemos render graças ao Senhor por nosso
novo irmão.
Buck, Chloe, Tsion e Ken abraçaram-se em círculo na cozinha. Tsion colocou a mão nas costas
de Ken e olhou para cima. "Senhor Deus Todo-Poderoso, a tua Palavra nos diz que os anjos
estão rejubilando conosco pela conversão de Ken Ritz. Acreditamos na profecia de uma grande
138
colheita de almas, e te agradecemos porque Ken passou a ser mais um dentre os muitos
milhões que habitarão em teu reino daqui a poucos anos. Sabemos que muitas pessoas vão
sofrer e morrer nas mãos do anticristo, mas o destino delas já está selado na eternidade.
Oramos especialmente para que nosso novo irmão passe a sentir sede de tua Palavra e que
possua a intrepidez de Cristo diante das perseguições, e que ele seja usado para trazer outros
para a família. Que o Deus de paz nos santifique completamente, e que nosso espírito, alma e
corpo permaneçam irrepreensíveis até a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo. Cremos que
aquele que nos chamou é fiel e cumprirá sua palavra. Oramos no nome incomparável de Jesus,
o Messias e nosso Redentor."
Ken enxugou as lágrimas do rosto, colocou o chapéu e abaixou-o até os olhos.
- Caramba! Isso é o que eu chamo de oração!
Tsion subiu rapidamente a escada e voltou trazendo um livro de bolso, cujas folhas estavam
marcadas com dobras, chamado Como iniciar a vida cristã. Ele o entregou a Ken, que parecia
emocionado.
- O senhor poderia autografá-lo para mim?
- Oh, não - disse Tsion - eu não sou o autor do livro. Peguei-o da biblioteca do pastor Bruce
Barnes. Sei que ele gostaria que o livro fosse entregue a você. Devo esclarecer que a Bíblia não
se refere a nós, que nos convertemos após o Arrebatamento, como cristãos. Somos chamados de
santos da tribulação. Mas as verdades contidas neste livro ainda prevalecem.
Ken segurou o livro com as duas mãos como se fosse um tesouro.
Tsion, que era quase 30 centímetros mais baixo que Ken, passou o braço ao redor da cintura
dele.
- Como novo mentor deste pequeno grupo, permita-me dar-lhe as boas-vindas ao Comando
Tribulação. Agora somos seis, cuja terça parte é composta de pilotos.
Ritz caminhou na direção de seu carro para dar a partida. Tsion desejou boa viagem a Buck e
que Deus o acompanhasse, e subiu a escada novamente. Buck puxou Chloe para perto de si e
abraçou-a como se ela fosse uma frágil boneca de porcelana.
- Você conseguiu falar com Hattie? Você sabe por qual nome ela é conhecida na clínica?
- Não. Vou continuar tentando.
- Continue também seguindo as ordens do Dr. Tsion, está bem?
Ela assentiu.
- Sei que você vai voltar logo, Buck, mas não gosto de despedidas. Na última vez que nos
despedimos você me encontrou em Minnesota.
- Na semana que vem daremos um jeito de trazer o Dr. Charles até aqui para ele tirar seus
pontos.
- Estou aguardando o dia em que não terei mais pontos nem gesso, e não precisarei mais usar
bengala nem andar mancando. Não sei como você aguenta olhar para mim.
Buck segurou o rosto de Chloe com as duas mãos. A região do olho direito ainda estava preta e
arroxeada, e a testa muito vermelha. A face direita afundara pela falta de alguns dentes, e o
osso malar estava fraturado.
- Chloe - ele disse baixinho - quando olho para você vejo o amor de minha vida. - Ela
começou a protestar mas ele a fez calar. - Quando imaginei que havia perdido você, teria
dado qualquer coisa para tê-la de volta nem que fosse por um minuto. Eu poderia ficar
olhando para você até Jesus voltar e continuaria a querer viver a seu lado na eternidade.
Depois de ajudá-la a sentar-se, Buck curvou o corpo e beijou-a na testa. Em seguida, suas
bocas se uniram.
- Eu gostaria muito que você fosse comigo - ele sussurrou.
- Quando eu sarar, você vai querer que eu fique em casa de vez em quando.
Rayford estava voando o mais lento que podia, pois queria adaptar-se ao Challenger 3 e
também ter certeza de que Buck e Ken Ritz chegariam até Hattie antes dele. Rayford gostaria
de poder dizer a Fortunato que ela já havia partido quando ele chegou lá. Em breve ele ligaria
para Buck a fim de avisá-lo que o pessoal da CG estava tentando mantê-la prisioneira.
Rayford não gostou das instruções recebidas. Fortunato não especificara o local. Dissera que o
139
pessoal da CG lhe forneceria aquela informação. Para Rayford, o local para onde eles queriam
levá-la não era importante. Se tudo desse certo, ela voaria de volta para a região de Chicago
com Buck e Ken, e as ordens de Fortunato seriam discutíveis.
Buck teria de voar cerca de 1.600 quilómetros até Denver, ao passo que o percurso de Rayford
seria de menos de 1.300 quilómetros. Ele reduziu a velocidade do jato até onde era possível.
Uma hora depois, estava ao telefone conversando com Buck. Enquanto ambos conversavam, o
rádio de Rayford recebeu duas chamadas, mas, como ele não ouviu seus nomes nem suas
iniciais, resolveu ignorá-las.
- Pretendemos estar em Stapleton ao meio-dia – disse Buck. - Ken diz que fui muito
pretensioso por ter prometido a ela que chegaríamos a esta hora. Ela ainda vai ter de nos
dizer como chegar lá, e até agora não conseguimos completar a ligação. Não sei sequer o
nome que ela deu quando se internou na clínica.
Rayford contou-lhe qual era sua missão.
- Não gosto disto - disse Buck. - Não confio em ninguém que esteja com ela.
- Essa história toda é uma loucura.
O rádio produziu uma estática. - Albie para Escafandro, câmbio. Rayford não deu atenção.
- Estou voando atrás de você, Buck. Vou fazer o possível para não chegar lá antes das duas
horas.
- Albie para Escafandro, câmbio - repetiu o rádio.
- Isso será razoável para Leon - prosseguiu Rayford. – Ele não pode pretender que eu chegue
lá antes disso.
- Albie para Escafandro, está me ouvindo, câmbio?
Finalmente, Rayford entendeu do que se tratava.
- Espere um momento, Buck.
Ao segurar o microfone, Rayford sentiu um arrepio. - Aqui é Escafandro. Prossiga, Albie.
- Preciso saber sua posição, Escafandro, câmbio.
- Um momento.
- Buck, vou ligar para você depois. Está havendo alguma coisa com Mac.
Rayford verificou seus instrumentos.
- Wichita Falis, Albie, câmbio.
- Pouse em Liberal. Câmbio e desligo.
- Albie, espere. Eu...
- Pouse que eu o encontrarei. Câmbio e desligo.
Por que Mac usara nomes em código? Rayford desviou a rota para Liberal, no Estado de Kansas,
e entrou em contato com a torre de lá para obter instruções de pouso. Com certeza Mac não
estava voando para Liberal no Condor. E a viagem no helicóptero duraria horas.
Rayford voltou a falar pelo rádio. - Escafandro para Albie, câmbio.
- Estou na escuta, Escafandro.
- Estou pensando em voltar e encontrar-me com você em sua rota, câmbio.
- Negativo, Escafandro. Câmbio e desligo.
Rayford ligou para Buck e contou-lhe o que sucedera.
- Estranho - disse Buck. - Mantenha-me informado.
- Positivo.
- Você quer ouvir uma boa notícia?
- Claro que sim.
- Ken Ritz é o membro mais novo do Comando Tribulação.
Pouco antes do meio-dia, horário MST (terceiro fuso horário dos Estados Unidos, que inclui o
Estado de Colorado), Ritz pousou o Learjet no aeroporto Stapleton, em Denver. Buck ainda não
tinha recebido notícias de Chloe. Ligou para ela.
- Nada, Buck. Sinto muito. Continuarei tentando. Liguei para várias clínicas de lá, mas todas me
informaram que as pacientes não ficam internadas. Perguntei se faziam partos. Disseram que
não. Não sei mais o que fazer, Buck.
- Nós dois não sabemos. Continue tentando.
140
Rayford completou o tanque de combustível para não levantar suspeitas dos funcionários da
torre do pequenino aeroporto de Liberal. Eles se surpreenderam com a pequena quantidade que
precisou ser adicionada ao tanque.
Parado na pista de macadame, Rayford ajeitou seu laptop perto da janela da cabina de
comando e conectou a Internet. Localizou a central de boletins de Tsion, que se tornara o
assunto do momento no mundo inteiro. Centenas de milhares de respostas acumulavam-se dia
a dia. Tsion continuava a concentrar a atenção de seu crescente rebanho em Deus. Incluía em
suas mensagens pessoais diárias um estudo bíblico dirigido às 144.000 testemunhas. Rayford
animava-se ao ler essas mensagens, e impressionava-se com o fato de um homem erudito ser
tão sensível a seu público. Além das testemunhas, seus leitores compunham-se de pessoas
interessadas, assustadas, cheias de dúvidas e recém-convertidas. Tsion tinha uma palavra para
cada uma delas, porém o mais impressionante de tudo era sua habilidade de "colocar os
biscoitos na prateleira mais baixa", conforme Bruce Barnes costumava dizer. A mensagem de
Tsion tinha o mesmo efeito das que Rayford ouvia pessoalmente quando o Comando Tribulação
se reunia com Tsion para discutir o que ele chamava de "as insondáveis riquezas de Jesus
Cristo". Rayford sabia que a habilidade de Tsion com a Bíblia ia muito além de sua facilidade de
lidar com idiomas e textos.
Ele era ungido por Deus, com o dom de ensinar e evangelizar. Naquela manhã, ele enviara a
seguinte "chamada às armas" pela Internet:
Bom-dia para todos vocês, meus queridos irmãos e irmãs no Senhor. Dirijo-me a vocês com o
coração pesaroso, mas também repleto de alegria. Choro a perda de minha querida esposa e
de meus filhos adolescentes. Choro por muitas pessoas que morreram depois que Cristo veio
para arrebatar sua Igreja. Choro pelas mães do mundo inteiro que perderam seus filhos. Choro
pelo mundo que perdeu uma geração inteira.
É muito triste não ver os rostos sorridentes nem ouvir as gargalhadas de crianças. Por mais
que tivéssemos desfrutado a companhia delas, não soubemos avaliar o quanto elas nos
ensinaram e o quanto foram úteis à nossa vida até o momento em que partiram.
Também estou triste esta manhã por causa das consequências da ira do Cordeiro. Deve ter ficado
claro a qualquer pessoa que saiba raciocinar, até mesmo os idólatras, que a profecia foi cumprida.
O grande terremoto parece ter extinguido 25% da população restante. Durante muitas gerações o
povo tem se referido às catástrofes da natureza como "atos de Deus". Essa é uma designação
incorreta. Séculos e séculos atrás, Deus o Pai concedeu o controle dos fenómenos atmosféricos ao
próprio Satanás. Deus permitiu destruição e morte por meio de fenómenos naturais, sim, por
causa do pecado do homem. E, sem dúvida, de vez em quando Deus interveio contra essas ações
do demónio por causa das orações fervorosas de seu povo.
No entanto, este terremoto recente foi com certeza um ato de Deus, infelizmente necessário.
Escolhi o dia de hoje para abordar um assunto específico em razão de um fato que ocorreu no
lugar onde vivo exilado. Trata-se do mais bizarro e mais impressionante acontecimento, que
pode ser creditado à incrível capacidade de organização, motivação e empreendimento da
Comunidade Global. Sempre deixei claro que a ideia de um governo mundial, de uma moeda
mundial ou, especificamente, de uma fé mundial (que considero tudo menos fé) originam-se
das profundezas do inferno. Com isso não estou dizendo que tudo o que resulta dessas
alianças pagãs seja necessariamente obra do demónio.
Hoje, no local secreto em que vivo, fiquei sabendo por meio do rádio que a incrível rede
Celular-Solar já possibilitou que a televisão fosse restabelecida em determinadas regiões.
Um amigo e eu, curiosos, ligamos o aparelho de TV. Ficamos estarrecidos. Esperávamos
ver um canal de notícias ou talvez uma emissora de emergência desta localidade. Mas
tenho certeza de que todos vocês já sabem que, nos locais onde a TV foi restabelecida,
ela voltou com força total.
Nosso aparelho de TV tem acesso a centenas de canais do mundo inteiro, que chegam até
aqui por meio de satélite. As imagens de todos os canais, representados por emissoras e
redes disponíveis, são recebidas em nossa casa de forma tão nítida e clara que temos a
impressão de poder entrar na tela e tocá-las. Mais uma das maravilhas da tecnologia!
Isto, porém, não me emociona nem um pouco. Admito que nunca fui um telespectador
141
tão assíduo como agora. Antigamente eu aborrecia as outras pessoas com minha
insistência para que elas assistissem apenas a noticiários e programas educativos e,
mesmo assim, eu criticava o que a TV exibia na tela. De tempos em tempos, eu
manifestava minha insatisfação pela queda gradativa na programação da TV.
De agora em diante, não vou mais apresentar justificativas por minha aversão a esse meio
de comunicação e lazer, que conseguiu piorar mais ainda. Hoje, enquanto meu amigo e eu
percorríamos as centenas de canais, não fui capaz nem sequer de fazer uma pausa para
ver a maioria das cenas que estavam diante de meus olhos, tal era a permissividade
apresentada na tela. Mesmo que eu tivesse visto as cenas só para poder criticá-las depois,
estaria sujeitando minha mente ao veneno da perversidade. Apenas 5 % da programação
exibiam cenas inofensivas referentes a noticiários. (Evidentemente, até mesmo os canais que
transmitem notícias são de propriedade da Comunidade Global e controlados por ela, e
apresentam seus pontos de vista. Mas pelo menos eu não fiquei exposto a linguagem obscena ou
imagens lascivas.) No entanto, em todos os outros canais que vi - naquela fração de segundo
enquanto eu percorria todas as emissoras - constatei que a sociedade chegou ao fundo do poço.
Não sou ingénuo nem puritano. Mas hoje vi coisas que nunca pensei que veria. Todas as
restrições, todas as regras, todos os limites foram erradicados. Isso foi apenas um dos motivos
ínfimos para que a ira do Cordeiro se manifestasse. A sexualidade, a sensualidade e a nudez
têm estado presentes há muitos anos em numerosos ramos de atividade. Porém, mesmo
aqueles que costumavam justificar essa prática como liberdade de expressão - ou que se
posicionavam contra a censura -pelo menos tomavam o cuidado de fazer essas imagens
chegarem apenas a quem optava por vê-las.
Talvez a perda de nossos filhos tenha nos forçado a nos lembrar de Deus, porém da pior
maneira possível, porque lhe demos as costas, protestamos contra Ele e cuspimos em seu
rosto. A simples visão dessa perversão simulada, um retrato vivo de todos os pecados
mencionados na Bíblia, nos fez sentir impuros.
Meu amigo e eu saímos da sala. Eu chorei. Não me causa surpresa saber que muitas pessoas
se voltaram contra Deus. Mas ver o povo exposto às terríveis consequências por ter
abandonado o Criador é uma coisa muito triste e deprimente para mim. Cenas de violência,
torturas e assassinatos são arrogantemente anunciadas em alguns canais que exibem tais
programações 24 horas por dia. Feitiçaria, magia negra, clarividência, adivinhação, bruxaria,
necromancia e encantamentos são apresentados como fatos normais e até mesmo positivos.
Existe algum equilíbrio nisto? Por acaso há uma só emissora que leve ao ar histórias, comédias,
programas de variedades, musicais e educativos ou que aborde assuntos religiosos que não se
refiram apenas à Fé Mundial Enigma Babilónia? Todo esse alarde feito pela Comunidade Global,
dizendo que a liberdade de expressão chegou para ficar, deve ser repudiado por nós que
conhecemos e acreditamos na verdade de Deus.
Perguntem a si mesmos se a mensagem que escrevo hoje teria permissão para ser exibida em
apenas uma das centenas de emissoras que enviam suas imagens às TVs do mundo inteiro.
Claro que não. Receio que a tecnologia fará com que a Comunidade Global silencie até mesmo
esta forma de expressão, que, sem dúvida, em breve será considerada crime contra o Estado.
Nossa mensagem bate de frente com a fé mundial que nega a crença no único e verdadeiro
Deus, um Deus de justiça e de discernimento.
Sou considerado um dissidente da mesma forma que vocês, que fazem parte da família de
Deus. Acreditar em Jesus Cristo como o unigénito Filho de Deus Pai, Criador do céu e da terra, e
confiar naquele que ofereceu sua vida como sacrifício pelo pecado do mundo passou a ser
antiético a tudo o que vem sendo ensinado pela Enigma Babilónia. Aqueles que se orgulham de
ser tolerantes e que nos chamam de exclusivistas, julgadores, desalmados e insistentes estão
sendo ilógicos e agindo de forma absurda. A Enigma Babilónia acolhe todas as religiões
existentes em suas fileiras, com o argumento de que todas devem ser aceitas e que nenhuma
deve ser discriminada.
Apesar disso, os dogmas de muitas dessas religiões não concordam com o princípio imposto
pela Enigma Babilónia. Quando tudo é tolerado, não existem limites.
Por que não cooperar? perguntam alguns. Por que não amar e aceitar? Nós amamos. Só que
não aceitamos. Parece que a Enigma Babilónia é a religião "única e verdadeira". Talvez muitas
142
dessas crenças tenham abandonado suas doutrinas de exclusividade porque elas nunca tiveram
nenhum sentido.
A fé em Jesus Cristo, contudo, é única e, sim, exclusiva. Não passam de tolos aqueles que se
orgulham de "aceitar" Jesus Cristo como um grande homem, talvez um deus, um grande
mestre ou um dos profetas. Sinto-me gratificado ao ler os vários tipos de comentários sobre
meus ensinamentos. Agradeço a Deus esse privilégio e oro para que eu sempre possa buscar
sua orientação e expor sua verdade com diligência. Porém, imaginem vocês se eu lhes dissesse
que, além de ser crente, sou também Deus. Isso não anularia todas as coisas positivas que
lhes ensinei? É certo dizer que devemos amar uns aos outros e viver em paz. Que devemos
praticar atos de bondade. Que devemos fazer aos outros aquilo que queremos que eles nos
façam. Estes princípios são profundos, mas será que este mestre continuaria a ser admirado e
aceito se ele também afirmasse ser Deus?
Jesus foi homem e também Deus. Bem, vocês dirão, é este o ponto de divergência. Alguém
pode considerá-lo apenas homem. E se, como homem, fez tudo aquilo, então Ele foi um
egocêntrico, um demente ou um mentiroso. E alguém pode afirmar em voz alta, sem atentar
para a estupidez do que está dizendo, que Jesus foi um grande mestre, mas não acreditar que
Ele é o Filho de Deus, o único caminho até o Pai?
Um dos argumentos contra um compromisso de fé profundo e sincero era que as
diversas religiões tinham tanta semelhança entre si que não fazia diferença qual delas a
pessoa escolhesse. Para termos uma vida digna, tanto do ponto de vista moral como
espiritual, deveríamos assumir a responsabilidade de fazer o bem, tratar os outros com
bondade e esperar que nossas boas ações superassem as más.
Na verdade, essas doutrinas são comuns a várias religiões que se uniram para formar a Fé
Mundial. A título de colaboração, seus membros deixaram de lado todas as diferenças e
começaram a desfrutar a harmonia da tolerância.
Francamente, isso esclarece o assunto. Eu não devo mais comparar a fé em Cristo com
qualquer outra crença. Todas elas passaram a ser uma só, e a diferença entre a Enigma
Babilónia e o Caminho, a Verdade e a Vida é tão evidente que a escolha se tornou fácil.
A Enigma Babilónia, sancionada pela Comunidade Global, não acredita em um único Deus
verdadeiro. Acredita em qualquer deus, em nenhum deus ou em um conceito de deus.
Não existe nem o certo nem o errado; existe apenas o relativismo. O "eu" é o centro
dessa religião feita por homens, e o ato de dedicar a vida para a glória de Deus fica em
segundo plano.
Meu desafio de hoje é que cada um de vocês tome uma posição. Junte-se a um grupo. Se
um deles estiver do lado certo, o outro estará do lado errado. Os dois lados não podem
estar certos. Procure ler as passagens bíblicas que esclarecem a condição do homem.
Descubra que você é um pecador, que foi separado de Deus, mas que pode reconciliar-se
com Ele desde que aceite o dom da salvação que Ele lhe oferece. Conforme já mencionei
antes, a Bíblia prediz que haverá um exército de 200 milhões de cavaleiros, mas que haverá
também uma multidão de santos da tribulação - aqueles que se tornaram crentes durante este
período - cujo número é impossível de ser contado.
Embora essa profecia indique que haverá centenas de milhões de pessoas como nós, eu lhes
digo que nossa vida não será fácil. Durante os próximos cinco anos que antecedem a gloriosa
volta de Cristo para estabelecer seu reino na terra, três quartos da população que não foi
levada por ocasião do Arrebatamento morrerá. Nesse ínterim, devemos dedicar nossa vida à
causa de Cristo. Atribui-se ao grande missionário Jim Elliot, mártir do século 20, um dos
textos mais pungentes que alguém já escreveu sobre o compromisso com Cristo: "Não pode
ser chamado de tolo aquele que abre mão do que não pode manter [sua vida na terra] para
ganhar o que não pode perder [a vida eterna com Cristo]."
Dirijo agora uma palavra a meus companheiros judeus convertidos que procedem de cada uma
das 12 tribos: Planejem uma concentração em Jerusalém daqui a um mês na qual haverá
confraternização, ensinamentos e unção para que vocês possam evangelizar com a veemência
do apóstolo Paulo e realizar a grande colheita de almas, obra esta que nos foi destinada.
E a Ele, que é capaz de impedir que vocês tropecem e caiam, a Cristo, o grande pastor das
ovelhas, seja dado o poder, o domínio e a glória hoje e para sempre, até o final dos séculos,
143
Amém. Seu servo, Tsion Ben-Judá.
Rayford sempre gostou muito de ler, na companhia de Amanda, essas cartas de Bruce Barnes e
depois de Tsion. Se ela estivesse escondida em algum lugar, teria condições de ler esta
mensagem? Será que eles estariam lendo ao mesmo tempo? Será que algum dia ele receberia
uma mensagem de Amanda na tela de seu computador? A cada dia sem notícias, as dúvidas de
Rayford aumentavam, e, mesmo assim, ele não conseguia aceitar que ela estava morta.
Continuaria a procurá-la. Ele não via a hora de receber o equipamento que lhe possibilitaria
mergulhar no rio e provar que Amanda não estava naquele avião.
- Albie para Escafandro, câmbio.
- Aqui é Escafandro, prossiga - disse Rayford.
- Devo pousar em três minutos. Esteja alerta. Câmbio e desligo.
Buck e Chloe concordaram que ele continuaria discando para o número de Hattie enquanto ela
cuidaria de ligar para os hospitais e clínicas de Denver. Buck sentiu na pele a mesma frustração
de Chloe quando começou a apertar seguidamente o botão de rediscagem do número de
Hattie. Até mesmo um sinal de ocupado seria mais animador.
- Não posso aguardar sentado aqui - disse Buck. – Sinto vontade de sair a pé para procurá-la.
- Você trouxe seu laptopl - perguntou Ritz.
- Estou sempre com ele - respondeu Buck. Já fazia algum tempo que Ken estava com os olhos
cravados no seu.
- Tsion está na Internet, convocando as tropas. Ele deve estar irritando Carpathia. Sei que há
muito mais gente que ainda ama Carpathia do que pessoas como nós que conseguiram
enxergar a luz, mas veja isto aqui.
Ritz virou seu computador de modo que Buck pudesse ver os números mostrados na tela,
indicando quantas respostas chegavam à central de boletins a cada minuto. Depois da última
mensagem de Tsion, o total começou a multiplicar-se novamente.
Ritz está certo, pensou Buck. Carpathia devia estar furioso diante das respostas às mensagens
de Tsion. Não era de admirar que ele queria receber o mérito por ter ajudado o rabino a fugir e,
posteriormente, apresentá-lo ao público. Mas por quanto tempo isso deixaria Carpathia satisfeito?
Quanto tempo ainda demoraria para ele começar a invejar Tsion?
- Se for verdade, Buck, que a Comunidade Global quer apoiar o retorno de Tsion a Israel, essa
gente devia ler o que ele está dizendo sobre a Enigma Babilónia.
- Carpathia incumbiu Mathews de cuidar da Enigma Babilónia - disse Buck - e agora está
arrependido. Mathews se considera maior e mais importante até mesmo que a CG. De acordo
com Tsion, a Bíblia diz que Mathews não vai durar muito.
O telefone tocou. Era Chloe.
- Buck, onde você está?
- Continuo aqui na pista.
- Você e Ken precisam apressar-se para alugar o carro. Vou explicar tudo enquanto vocês
tratam isso.
- O que houve? - perguntou Buck, descendo e fazendo um sinal para que Ken o acompanhasse.
- Consegui ligar para um pequeno hospital particular. Uma funcionária me disse que eles vão
fechar as portas dentro de três semanas porque é melhor vendê-lo à Comunidade Global que
pagar impostos altíssimos.
Buck caminhava apressado em direção ao terminal, mas reduziu a velocidade ao perceber que
Ken estava andando com dificuldade.
- É lá que Hattie se encontra? - ele perguntou a Chloe.
- Não, mas a funcionária me disse que existe um grande laboratório de testes da CG em Littleton.
Ele funciona em uma igreja enorme que passou a ser de propriedade da Enigma Babilónia e depois
vendida a Carpathia quando a frequência diminuiu. Há uma clínica instalada em uma das antigas
alas educacionais da igreja que cuida de pacientes grávidas prestes a dar à luz. A funcionária não
estava gostando muito dessa história. A clínica e o laboratório trabalham em conjunto, e
aparentemente realizam clonagens e pesquisas de tecidos fetais.
- Hattie está lá?
144
- Acho que sim. Eu fiz uma descrição de Hattie, e a recepcionista desconfiou quando eu disse
que não sabia o nome que ela estava usando. A recepcionista me disse que se alguém estava
usando nome falso era porque não queria ser encontrada. Eu disse que o assunto era muito
importante, mas ela não acreditou. Perguntei se ela poderia avisar cada paciente que havia
um recado de CW, mas tenho certeza de que ela não me deu ouvidos. Liguei um pouco mais
tarde e disfarcei a voz. Disse que meu tio era zelador de lá e pedi que alguém o chamasse ao
telefone. Quando ele entrou na linha, eu disse que tinha uma amiga internada que se
esquecera de me fornecer seu pseudónimo. Contei que meu marido estava a caminho para
levar um presente para essa minha amiga, mas ele precisava saber sob que nome ela
havia sido internada. O zelador não demonstrou disposição em ajudar até eu dizer que meu
marido lhe daria cem dólares. Ele ficou tão entusiasmado que me disse seu nome e, depois, os
nomes das quatro mulheres que estão internadas lá.
Buck aproximou-se do balcão da locadora de carros e Ken, que já conhecia a artimanha,
apresentou sua carta de motorista e o cartão de crédito à recepcionista.
- Você já está me devendo um monte de dinheiro - ele disse.
- Espero que eles tenham um carro de tamanho decente.
- Passe-me os nomes, meu bem - disse Buck a Chloe, pegando uma caneta.
- Vou lhe passar os quatro - disse Chloe - mas você vai saber imediatamente qual é o dela.
- Não vá me dizer que ela escolheu um nome parecido com Fulana de Tal.
- Nada tão criativo assim. Tivemos sorte, porque cada nome tem ligação com a nacionalidade
da mulher. Conchita Fernandez, Suzie Ng, Mary Johnson e Li Yamamoto.
- Passe-me o endereço e peça ao zelador que diga a Mary que estamos a caminho.
Mac pousou o helicóptero perto do Challenger e subiu no avião para conversar com Rayford.
- Eu não sei o que está acontecendo, Ray, mas não retardaria seu vôo tanto assim se não
houvesse um motivo importante. Sinto calafrios só em pensar que poderíamos nos
desencontrar, mas, depois que você me deixou, taxiei o Condor até aquele hangar do lado sul,
conforme você disse. Eu já estava saindo de lá e me dirigindo para a fila de táxi quando
Fortunato me ligou da casa do embaixador. Ele me pediu que eu o levasse de volta até o
Condor porque precisava fazer uma ligação confidencial, e o único telefone seguro estava a
bordo. Eu não contestei, mas disse que precisava destrancar a aeronave e acionar o botão de
energia para ele poder fazer a ligação e depois teria de trancá-la novamente por dentro. Ele
concordou desde que eu ficasse nos aposentos do piloto ou na cabina de comando para não
ouvir a conversa. Eu disse a ele que tinha algumas coisas para fazer na cabina de comando.
Veja isto, Ray.
Mac retirou uma máquina de ditados do bolso.
- Veja só como fui esperto. Entrei na cabina, coloquei os fones de ouvido e liguei o botão.
Encaixei a máquina dentro de um dos fones e liguei-a. Escute só.
Rayford ouviu o som de discagem e, em seguida, a voz de Fortunato.
"Está bem, Sua Excelência, estou no Condor, o telefone é seguro... Sim, estou sozinho... O copiloto
McCullum abriu a porta... Está na cabina de comando. Não há problema... Ele está a
caminho de Denver... Eles vão fazer isso lá?... Não poderia haver lugar melhor. Mas isso vai
alterar nossa viagem de volta... Um único piloto não tem condições de fazer esta viagem
inteira sozinho. Eu não me sentiria seguro... Sim, direi aos embaixadores que precisaremos de
mais tempo para voltar. O senhor quer que eu tente contratar um piloto daqui de Dallas?...
Entendo. Falarei com o senhor mais tarde."
- O que você está deduzindo disto, Mac?
- Está tudo muito claro, Ray. Eles querem pegar vocês dois de uma só vez. Fiquei impressionado
quando ele caminhou apressado até a cabina e bateu rapidamente na porta. Ele parecia agitado
e trémulo. Pediu-me que o acompanhasse até o compartimento de passageiros e que me
sentasse. Parecia nervoso. Passava a mão na boca e olhava para os lados, totalmente diferente
de seu modo de ser, você sabe. Ele me disse: "Acabei de receber notícias do capitão Steele, e
talvez ele se atrase um pouco. Eu gostaria que você fizesse o roteiro de nossa viagem de volta
com algumas paradas para você descansar, caso seja necessário pilotar o percurso inteiro. Eu
145
perguntei: "O percurso inteiro? Todo o caminho de volta e todas as escalas programadas?" Ele
respondeu que eu devia fazer o roteiro da viagem de volta de modo que eu tivesse tempo de
descansar, que eles tinham plena confiança em mim.
E complementou: "Sua Excelência lhe será muito grato."
Rayford não gostou nada da história.
- Isso quer dizer que você passou a ser o novo capitão.
- Estou prestes a ser.
- E que eu vou me atrasar um pouco. Bem, não é uma maneira cortês de dizer que vou ser
eliminado.
146
DEZESSETE
Depois que Buck e Ken entraram no carro - com mais espaço do que necessitavam - e foram
informados sobre os desvios por causa da destruição, levaram quase 45 minutos para chegar a
Littleton. Foi fácil encontrar uma igreja que tinha sido transformada em laboratório de testes e
clínica de reprodução humana. Localizava-se na única rua transitável dentro de um raio de 25
quilómetros. Todos os veículos que passavam por eles estavam empoeirados e enlameados.
Buck entrou sozinho na esperança de conseguir tirar Hattie do local, sem que ninguém visse.
Ken aguardava do lado de fora com o motor do carro ligado, cuidando do telefone de Buck.
Buck aproximou-se da recepcionista.
- Oi! - disse ele alegremente. - Vim visitar Mary.
- Mary?
- Johnson. Ela está me aguardando.
- Quem gostaria de visitá-la?
- Diga-lhe que é B.
- Você é parente dela?
- Em breve vou ser. Assim espero.
- Um momento.
Buck sentou-se e começou a folhear uma revista como se tivesse todo o tempo do mundo. A
recepcionista pegou o telefone.
- Sra. Johnson, a senhora está esperando uma visita?... Não?... Há um moço aqui que diz
chamar-se B... Vou verificar.
A recepcionista chamou Buck com um gesto.
- Ela quer saber de onde você a conhece.
Buck deu um sorriso nervoso.
- Diga-lhe que nos conhecemos num avião.
- Ele diz que a conheceu num avião... Muito bem.
A telefonista desligou o telefone.
- Lamento muito, mas ela acha que o senhor a confundiu com outra pessoa.
- Você pode me dizer se ela está sozinha?
- Por quê?
- Talvez seja por isso que ela está negando que me conhece. Talvez precise de ajuda e não
sabe como me dizer.
- Senhor, ela está convalescendo de um tratamento médico. Tenho certeza de que está sozinha
e bem cuidada. Não posso contar-lhe mais nada sem a permissão dela.
Buck observou, pelo canto do olho, passar por ele uma figura pequena, de tez escura, trajando
um roupão. A mulher franzina, de cabelos compridos e traços asiáticos, olhou com curiosidade
para Buck. Em seguida, desviou os olhos e desapareceu no corredor.
O telefone da recepcionista tocou. Ela disse em voz baixa:
- Pois não, Mary... Você tem certeza de que não sabe quem ele é? Obrigada.
- Então, Mac, será que estou paranóico ou isso quer dizer que eles estão usando Hattie como
isca para nos pegarem de uma só vez?
- A última hipótese parece ser a verdadeira - disse Mac. - E nenhum dos dois conseguirá
escapar.
Rayford pegou seu telefone.
- Acho melhor avisar Buck sobre o que ele vai encontrar antes que eu decida o que vou fazer.
Buck entendeu que a recepcionista estava chamando o serviço de segurança. Não seria nada
147
bom ser conduzido para fora pelos guardas, ou pior ainda, ser detido por eles. Seu primeiro
impulso foi o de sair às pressas dali. Mas havia ainda uma possibilidade de ludibriar a
recepcionista. Talvez Ken conseguisse distraí-la. Ou, então, Buck poderia convencê-la de que
não sabia o nome que sua amiga estava usando e tentara adivinhar.
A recepcionista, no entanto, deixou-o surpreso ao dizer, depois de desligar o telefone:
- Você trabalha para a Comunidade Global?
A recepcionista não sabia que a resposta àquela pergunta era mais complicada que Hattie usar
um nome de origem asiática ou uma moça asiática chamar-se Mary Johnson ou ter escolhido
esse nome como pseudónimo. Se Buck negasse que trabalhava para a Comunidade Global,
talvez nunca descobrisse o motivo da pergunta.
- Hã, sim, a bem da verdade, trabalho - ele disse. A porta de entrada abriu-se atrás dele. Ken
estava ali, com o telefone de Buck na mão.
- Seu nome é Rayford Steele? - perguntou a telefonista.
-Hã...
- Senhor? - gritou Ken. - Aquele carro lá fora com os faróis acesos é seu?
Buck sabia que não havia tempo para hesitação. Virou-se na direção da porta e disse por cima
dos ombros:
- Já volto.
- Mas, senhor! Capitão Steele!
Buck e Ken desceram a escada e seguiram até o carro.
- Eles imaginaram que eu fosse Rayford! Quase entrei nessa!
- Você não deve ficar lá dentro, Buck. Rayford foi enganado. Ele acreditava que ia cair numa
emboscada.
Ken tentou sair com o carro, mas ele não se mexia do lugar.
- Tenho certeza de que deixei o motor funcionando. – As chaves haviam sumido.
Um policial uniformizado da CG surgiu, como que por encanto, na janela do carro.
- Aqui estão, senhor - ele disse, entregando as chaves a
Ken. - Qual de vocês é o capitão Steele?
Buck tinha certeza de que Ken queria fugir correndo dali. Ele debruçou sobre o colo de Ken e
disse:
- Talvez seja eu. Vocês estavam à minha espera?
- Sim, estávamos. Quando seu motorista saiu do carro, achei melhor trancá-lo e levar as chaves
para ele. Capitão Steele, sua encomenda está lá dentro. Queira me acompanhar. - Em seguida,
ele virou-se para Ken. – Você também trabalha para a CG?
- Eu? Não. Trabalho para uma locadora de carros. O capitão aqui não tinha certeza se poderia
retornar com o carro, por isso eu o trouxe. É claro que ele vai pagar uma viagem de ida e
volta.
- Claro. E se não houver nada no carro que o senhor necessite, capitão, queira me acompanhar
- disse o policial para Buck, e depois para Ken. - Providenciaremos condução para ele. Você
pode levar o carro embora.
- Preciso acertar as contas com ele - disse Buck. – É rápido. Só preciso de um minuto.
Ken fechou a janela de seu lado.
- Decida que devemos fugir daqui, Buck, e eles jamais nos alcançarão. Se você entrar lá como
Rayford Steele, nem você nem Hattie conseguirão sair.
Buck fez uma encenação, tirando algumas notas do bolso para entregar a Ken.
- Preciso entrar - disse ele. - Se eles acham que sou Rayford e que estou desconfiado de
alguma coisa, a vida de Hattie não valerá mais nada. Ela está carregando um filho no ventre, e
ainda não se converteu. Não estou disposto a entregá-la nas mãos da CG. - Buck olhou de
relance para o policial na calçada. - Agora preciso ir.
- Vou ficar por aqui - disse Ritz. - Se você não sair logo, vou entrar.
- Estou propenso a voar direto para Bagdá porque quero provar a mim mesmo que Amanda
não está no fundo do rio Tigre. O que Carpathia vai fazer quando me vir? Dizer que me
ressuscitou?
148
- Você sabe onde sua filha está, não? Se ela encontrou um lugar para se esconder, é para lá
que você deve ir. Quando Carpathia souber que você não apareceu em Denver, você
estará escondido.
- Não sou homem de me esconder, Mac. Eu sabia que este emprego com Carpathia era
temporário, mas acho estranho ser um alvo para ele. Possivelmente, nenhum de nós vai
sobreviver até o dia do Glorioso Aparecimento, mas este tem sido o meu objetivo desde o início.
Agora, quais são as probabilidades?
Mac meneou a cabeça.
O telefone de Rayford tocou. Ritz contou-lhe o que estava acontecendo.
- Oh, não! - disse Rayford. - Você não podia ter permitido que Buck entrasse lá novamente.
Talvez eles só descubram que não sou eu depois de matá-lo. Tire-o de lá!
- Não consegui impedi-lo, Rayford. Ele acha que se tomarmos alguma atitude suspeita, Hattie
morrerá. Confie em mim. Se ele não sair dentro de alguns minutos, vou entrar.
- Aquela gente tem armas muito poderosas – disse Rayford. - Você está armado?
- Sim, mas eles não vão correr o risco de atirar lá dentro, será?
- Por que não? Esse pessoal não preza a vida de ninguém a não ser a deles. Que arma você
tem?
- Buck não sabe, e eu nunca tive de usá-la, mas carrego uma Beretta sempre que estou a
serviço dele.
Buck e o policial da CG foram ao encontro da recepcionista, que demonstrava aborrecimento.
- Se o senhor tivesse me dito quem era, capitão Steele, e mencionado o nome correto da
paciente, eu poderia tê-lo encaminhado até ela sem problemas.
Buck sorriu e deu de ombros. Um policial mais jovem aproximou-se.
- Ela poderá recebê-lo agora - ele disse. – Depois preencheremos alguns papéis e
conduziremos os dois até Stapleton.
- Oh - disse Buck - nós não pousamos em Stapleton. Os policiais entreolharam-se.
- Não pousaram?
- Fomos informados de que o percurso de Stapleton até aqui estava em piores condições do que
do Aeroporto Internacional de Denver, por isso...
- Pensei que o Aeroporto Internacional de Denver estivesse fechado.
- Fechado só para voos comerciais - disse Buck, com cautela. - Se você nos conduzirem até lá,
seguiremos nosso destino.
- Que destino? Ainda não lhe demos nenhuma instrução.
- Oh, sim. Eu sei. Entendi que íamos para a Nova Babilónia.
- Ei - disse o policial mais jovem - se o Aeroporto Internacional de Denver está fechado para
voos comerciais, onde você alugou o carro?
- Só uma loja permanecia aberta - disse Buck. - Deve estar a serviço das forças militares da
CG.
O policial mais velho olhou de relance para a recepcionista.
- Diga a ela que já estamos indo.
Assim que a recepcionista estendeu a mão para pegar o telefone, os policiais pediram que
Buck os acompanhasse pelo corredor. Eles entraram em um quarto em cuja porta estava
escrito "Yamamoto". Buck receava que Hattie pronunciasse seu nome assim que o visse. Ela
estava deitada de lado, com o rosto virado para a parede. Buck não sabia se ela estava
acordada.
- Ela vai ficar surpresa ao ver seu antigo capitão – disse Buck. - Ela costumava me chamar de
Buck. Mas na frente da tripulação e dos passageiros, sempre se dirigia a mim como capitão
Steele. Ah, sim, ela foi minha comissária de bordo na Pan-Con durante muitos anos. Sempre
muito competente.
O policial mais velho pôs a mão no ombro dela.
- Está na hora de ir, minha cara.
Hattie virou-se com ar de perplexidade, protegendo os olhos da luz.
- Para onde estamos indo? - ela perguntou.
- O capitão Steele está aqui, madame. Ele vai levá-la até um local intermediário e, depois, de
149
volta à Nova Babilónia.
- Oh, oi, capitão Steele - ela disse com voz pastosa. – Não quero ir para a Nova Babilónia.
- Estou apenas cumprindo ordens, Srta. Durham – disse Buck. - Você conhece isso muito bem.
- Eu não quero ir para tão longe - ela disse.
- Faremos a viagem em etapas. Tudo vai dar certo.
- Mas eu...
- Vamos, madame - disse o policial mais velho. – Temos horário a cumprir.
Hattie sentou-se. Sua gravidez estava começando a aparecer.
- Eu gostaria que os cavalheiros me dessem licença. Preciso me vestir.
Buck acompanhou os policiais até o corredor. O mais jovem perguntou-lhe:
- Como você voou até aqui?
- Oh, em um daqueles jatinhos que não foram destruídos pelo terremoto.
O outro perguntou:
- Como foi o vôo que saiu de Bagdá?
Buck não tinha certeza se Rayford havia lhe contado que o aeroporto de Bagdá estava sem
condições de uso. Aliviado por eles não terem feito mais perguntas sobre o avião, ele imaginou
que estava sendo testado.
- Decolamos da Nova Babilónia - ele disse. - Vocês não podem acreditar na rapidez com que
estão reconstruindo tudo.
- Vôo longo?
- Muito. Mas fizemos algumas escalas de tempos em tempos para pegar cada um dos
dignitários. - Buck não fazia ideia de quantos, quando ou onde, e esperava que eles não
perguntassem.
- E como foi viajar com todos aqueles manda-chuvas grosseiros no mesmo avião?
- Ossos do ofício - disse Buck. - Mas os pilotos ficam na cabina de comando ou em aposentos
particulares. Não participamos das pompas dos passageiros.
Buck sabia que sua demora devia estar preocupando Ken. Aqueles sujeitos não iam levá-los a
nenhum aeroporto, apesar de toda aquela encenação. Buck ficou surpreso por eles não lhe
terem oferecido uma bebida envenenada. Aparentemente, tinham ordens de fazer um serviço
limpo e silencioso. Não poderia haver testemunhas.
Quando o policial mais velho bateu na porta do quarto de Hattie, Buck avistou Ken caminhando
pelo corredor ao lado de um funcionário da limpeza, ambos carregando vassouras. Buck
começou a conversar com os policiais na esperança de que Ken se afastasse rapidamente dali.
Apesar de Ken estar usando um boné da clínica igual ao do funcionário, suas feições eram
visíveis.
- Que tipo de carro vocês providenciaram para nós? - indagou Buck. - Um que atravesse estas
ruas esburacadas mais rápido que um seda alugado?
- Nem tanto assim. Conseguimos uma perua pequena com tração nas rodas traseiras,
infelizmente. Mas podemos levar vocês até o Aeroporto Internacional de Denver sem problemas.
- E para onde eles vão nos levar depois?
O policial mais jovem retirou um papel do bolso.
- Vou lhe dar esta informação no outro quarto dentro de alguns minutos, mas aqui diz Dulles
- Washington.
Buck olhou firme para o policial. De uma coisa ele tinha certeza: não havia planos para
reconstruir o aeroporto de Dulles. Ele tinha sido devastado pela guerra, e o terremoto destruíra
completamente o National Reagan, destinado a voos domésticos. Rayford lhe contara que o
Reagan tinha uma ou duas pistas funcionando, mas Dulles transformara-se em uma pilha de
escombros.
- Só mais um minuto - gritou Hattie. O policial deu um longo suspiro.
- O que vamos fazer no outro quarto? - perguntou Buck.
- É lá que vocês receberão as instruções e tudo o que vão necessitar. Depois seguiremos para o
aeroporto.
Buck não gostou da ideia de precisar ir para outro quarto. Ele queria conversar com Ritz. Buck
não sabia dizer se os homens da CG estavam portando pistolas, mas com certeza tinham Uzis
presas nas costas. Ele perguntou a si mesmo se ia morrer tentando salvar Hattie Durham.
150
Rayford não queria que Fortunato soubesse que ele ainda não estava em Denver, caso os
homens da CG de lá tivessem passado adiante a informação sobre sua chegada. Se o aeroporto
de Denver tivesse sido avisado que o verdadeiro Rayford ainda não chegara, Buck estaria em
perigo. Nem ele nem Hattie teriam condições de escapar. Aguardando na pista do aeroporto,
Rayford foi tomado de um completo desânimo.
- É melhor você voltar, Mac. Fortunato acha que você está visitando amigos, certo?
- E não estou?
- Como ele faz contato com você?
- Ele dá uma ordem para que a torre me chame, e depois ligamos a chave na frequência 11
para conversarmos particularmente.
Rayford assentiu.
- Boa viagem - ele disse.
- Tudo certo, madame? - perguntou o policial aproximando-se da porta do quarto de Hattie. -
Tempo esgotado. Vamos.
Buck não ouviu nenhum som vindo de dentro. Os policiais entreolharam-se. O mais velho girou
a maçaneta. Estava trancada. Ele proferiu um palavrão. Ambos sacaram armas de suas
jaquetas e esmurraram a porta, ordenando que Hattie saísse. As outras mulheres apareceram
nas portas dos quartos. O policial mais jovem apontou-lhes sua Uzi, e elas entraram e
fecharam as portas novamente. O policial mais velho deu quatro tiros na porta de Hattie,
estourando o ferrolho e a trava. Alguém gritou. A recepcionista correu para ver o que estava
acontecendo. Quando ela surgiu no corredor, o policial mais jovem fuzilou-a com uma rajada
de balas, que dilacerou seu corpo desde a cintura até o rosto. Ela caiu pesadamente no piso de
mármore.
O policial mais velho precipitou-se para dentro do quarto de Hattie enquanto o mais novo
virava-se para acompanhá-lo. Buck estava entre os dois. Ele gostaria de ter feito um curso de
defesa pessoal. Devia haver algum golpe estratégico para dominar, frente a frente, um homem
com uma Uzi nas mãos.
Sem saber muito o que fazer, ele firmou-se no pé direito, colocou o esquerdo um pouco à
frente e deu um soco no nariz do policial mais jovem, com toda a força que conseguiu reunir
naquele momento. Ele sentiu a cartilagem afundar quebrando alguns dentes, e viu sangue
jorrando de um corte.
O policial pareceu'ter sido pego de surpresa quando Buck o golpeou, porque caiu de costas
batendo a cabeça no chão.
A Uzi caiu no piso de mármore. A tira que a prendia no corpo do policial enrolou-se debaixo
dele. Buck correu na direção do último quarto à sua esquerda, onde, momentos antes, ele vira
um rosto em pânico olhar pela fresta da porta. Em sua mente passavam imagens em câmera
lenta das cortinas voando para fora da janela aberta do quarto de Hattie, do corpo dilacerado
da recepcionista e do branco dos olhos do policial quando Buck afundou seu nariz com um soco
tão forte que quase o nivelou com o rosto.
Sangue pingava da mão de Buck enquanto ele corria. Antes de entrar no último quarto do
corredor, ele olhou de relance para trás. Nenhum sinal do policial mais velho. Uma mulher
grávida hispânica soltou um grito agudo quando Buck invadiu seu quarto. Ele sabia que estava
com a aparência horrível. O machucado em sua bochecha continuava inflamado, e sua mão e
camisa estavam sujas do sangue que espirrara do rosto do policial. A mulher cobriu os olhos e
começou a tremer.
- Tranque a porta e esconda-se debaixo da cama! - disse Buck. A princípio, ela não saiu do
lugar. - Faça isso já ou vai morrer!
Buck abriu a janela e percebeu que teria de virar-se de lado para sair. A tela de proteção não se
movia do lugar. Ele afastou-se, correu na direção da tela e arrebentou-a com um pontapé. O
impulso o arremessou para fora, e ele caiu em cima de alguns arbustos. Enquanto tentava ficar
em pé, as balas traspassavam a porta do quarto, e ele avistou a mulher escondida debaixo da
cama. Correu pela lateral da clínica e passou pela janela aberta do quarto de Hattie. Ao longe,
151
Ken Ritz a ajudava a entrar no carro pela porta traseira. Entre Buck e o seda estava estacionada
a perua da Comunidade Global.
Buck parecia estar no meio de um pesadelo, incapaz de movimentar-se mais rápido. Ele
cometera o erro de prender a respiração enquanto corria e o ar começou a faltar-lhe nos
pulmões. Seu coração batia acelerado contra as costelas. Assim que se aproximou da perua,
ele olhou de relance para trás e avistou o policial saltando da janela pela qual ele havia fugido.
Buck escondeu-se do outro lado da perua enquanto as balas perfuravam a lataria. A um
quarteirão de distância, Ritz aguardava sentado ao volante. As alternativas de Buck eram
limitadas: ser fuzilado, ser levado preso ou arriscar-se a correr para o carro.
Decidiu correr. A cada passo, ele temia que o próximo projétil esfacelaria sua cabeça. Hattie
devia estar deitada no banco ou no chão do carro. Ken tombara o corpo para a direita para não
ser visto. A porta do lado do passageiro abriu-se e o atraía como uma nascente no deserto.
Quanto mais Buck corria, mais vulnerável se sentia, mas ele não ousava olhar para trás.
De repente, ele ouviu um barulho, mas não de arma de fogo. Uma pancada seca na porta da
perua. O policial pulara para dentro da perua. Buck estava a cerca de 50 metros do carro.
Rayford ligou para Buck. O telefone tocou várias vezes, mas Rayford não queria desligar. Se
alguém da CG atendesse, ele inventaria uma história até descobrir o que desejava saber. Se
Buck atendesse, Rayford conversaria em código, caso ele estivesse na frente de pessoas que
não soubessem de onde partira a ligação. O telefone continuava a tocar.
Rayford detestava essa sensação de abandono e imobilidade. Estava cansado de fazer jogo
com Nicolae Carpathia e com á Comunidade Global. A hipocrisia dessa gente o deixava
enfurecido. "Senhor", ele orou silenciosamente, "permita que eu me torne um inimigo ferrenho
de Carpathia". Uma voz feminina aterrorizada atendeu ao telefone.
- Alô! - ela gritou.
- Hattie? Não deixe ninguém perceber que estou na linha.
É Rayford.
- Rayford! O piloto de Buck apareceu do lado de fora de minha janela e me deu um susto
danado, mas me ajudou a sair! Estamos aguardando Buck! Eles querem nos matar!
Estamos morrendo de medo!
- Dê-me este telefone! - Rayford ouviu alguém dizer. Era Ritz. - Ray, ele está bem, mas há um
sujeito atirando nele. Assim que ele entrar no carro, vou dar no pé. Talvez eu deixe você
falando sozinho.
- Tome conta deles! - gritou Rayford.
A poucos passos do carro, esperando ser morto a qualquer momento, Buck não ouvia mais
nenhum ruído. Nem de tiros, nem do motor da perua. Ao olhar de relance para trás, ele viu o
policial da CG descer da perua. O homem agachou-se e começou a atirar. Buck ouviu o
estampido de um tiro, que passou raspando por ele, e o pneu direito do carro estourando. Ele
correu na direção da porta aberta, agarrando-se à maçaneta e tentando colocar um dos pés
dentro. O vidro traseiro foi estilhaçado, e os cacos espalharam-se no interior do carro.
Buck tentava equilibrar-se, tendo o pé esquerdo no chão do carro e o direito no asfalto, a mão
esquerda agarrada na lataria e a direita na maçaneta da porta. Ken debruçara-se
novamente por cima do banco do passageiro para proteger-se das balas. Antes que Buck
conseguisse entrar com o corpo inteiro no carro, Ken pisou às cegas no acelerador. A porta
abriu-se completamente. Para não ser atirado para fora, Buck girou o corpo e sentou-se em
cima da cabeça de Ken, que deu um grito enquanto o carro rodava com o pneu furado e em
frangalhos e os outros deixando um rasto de borracha no asfalto. Buck também tentava
desviar-se da linha de fogo, mas precisava sair de cima da cabeça machucada de Ken.
Ken soltou o volante e usou as duas mãos para tentar sair debaixo de Buck. Conseguiu sentarse
para ver onde estava e deu uma guinada para a esquerda, mas não teve tempo de impedir
que o carro batesse na quina de um edifício. O canto direito do painel rasgou-se e ficou todo
enrugado. Ken controlou a direção do carro e tentou manter uma certa distância entre eles e o
152
atirador.
O carro não estava colaborando. Balas e mais balas passavam zunindo perto de Ritz. Buck
observou o comportamento de seu amigo mudar, repentinamente, de assustado para furioso.
- Chega! - Ritz gritou. - É a última vez que ele atira em mim!
Horrorizado, Buck viu Ken dar um rodopio com o carro e acelerar na direção do policial. Em
seguida, ele sacou a Beretta 9mm de um coldre amarrado no tornozelo, firmou o braço
esquerdo entre o espelho externo e a lataria, e atirou.
O policial escondeu-se do outro lado da perua.
- Agora não tem mais jeito! - gritou Ken. - Deixe esse cara comigo!
Ele freou a cerca de 15 metros da perua e saltou do carro. Agachou-se, segurou a arma com as
duas mãos e começou a atirar um pouco acima do nível do chão.
Ao ver o policial da CG virar-se e correr na direção do edifício, Buck gritou pedindo que Ritz
voltasse para o carro. Ritz atirou mais três vezes, e um projétil atingiu o pé do policial. O
impacto fez a perna dele levantar-se instintivamente. Ele caiu de costas no chão e gritou:
- Vou acabar com você, seu...
Buck pulou para fora do carro e agarrou Ritz, arrastando-o de volta.
- Ele não está sozinho! - disse Buck. - Precisamos sair daqui!
Os dois entraram no carro novamente, e Ken girou o volante com o pé afundado no acelerador.
Uma imensa nuvem de poeira levantou-se atrás deles enquanto o carro atravessava as ruas
destruídas pelo terremoto, sacolejando em direção a Stapleton.
- Se eles nos perderem de vista - disse Buck - vão pensar que estamos indo para o Aeroporto
Internacional de Denver.
Por que ele não conseguiu dar partida na perua?
Ritz passou a mão debaixo do banco e pegou uma tampa de distribuidor com os fios
pendurados.
- Acho que foi por causa disto - ele disse.
O motor do carro roncava forte. Buck colocou a mão no teto para proteger a cabeça enquanto o
carro trepidava pelas ruas esburacadas. Com a outra mão ele atou o cinto de segurança de
Ritz. Depois de atar o seu, ele avistou o telefone no assoalho do carro. Havia alguém na linha.
- Alô! - ele disse.
- Buck! É Ray! Você conseguiu escapar?
- Estamos a caminho do aeroporto! O pneu traseiro estourou, mas não temos alternativa a não
ser rodar até onde for possível.
- O tanque de combustível está vazando! - gritou Ritz. – O nível está descendo rápido!
- Como está Hattie? - perguntou Rayford.
- Aguentando firme para sobreviver! - respondeu Buck.
Ele queria atar o cinto de segurança dela, mas naquelas condições seria impossível,
principalmente porque o carro balançava de um lado para outro. Ela estava deitada no banco
traseiro, com os pés firmados contra a porta, uma das mãos segurando o estômago e a outra
agarrada ao encosto do banco. Seu rosto estava pálido.
- Segurem firme! - gritou Ritz.
Buck olhou para a frente a tempo de ver uma montanha de lixo da qual eles não podiam
desviar. Ritz não reduziu a marcha nem parou. Acelerou até o fim e arremessou o carro bem no
meio do lixo. Buck encolheu-se no banco, passou um dos braços ao redor do corpo e com o
outro tentava impedir que Hattie rolasse do banco no momento do impacto. Quando o carro se
chocou com o lixo, Hattie foi atirada de encontro ao encosto do banco da frente. Ela agarrou-se a
Buck com tanta força que quase deslocou seu ombro. O telefone voou da mão dele, bateu com
força no painel e caiu no assoalho.
- Ligue para mim quando puder! - gritou Rayford. Ele desligou o telefone e taxiou o Challenger até
a extremidade da pista.
- Escafandro para Albie - ele disse. - Albie, você está me ouvindo?
- Prossiga, Escafandro.
- Volte à base e descubra o que eles estão sabendo. A carga está protegida temporariamente,
mas vou precisar inventar uma história quando me encontrar com eles.
- Positivo, Escafandro. Pense no que aconteceu em Minot.
153
Rayford fez uma pausa.
- Boa lembrança, Albie. Vou seguir seu conselho. Preciso da informação que lhe pedi o mais
rápido possível.
- Positivo.
Que ideia brilhante! pensou Rayford. Tempos atrás ele contara uma experiência a Mac que
ocorreu enquanto estava estacionado em Minot, no Estado de Dakota do Norte. O avião de
caça que ele pilotava apresentou um problema, e ele teve de interromper uma missão de
treinamento. Agora ele contaria a Fortunato a mesma história em relação ao Challenger, e
Leon não perceberia nada. Mac confirmaria tudo o que Rayford dissesse. O maior problema
seria no momento de reencontrar Leon. Ele já deveria ter tomado conhecimento do fracasso em
Denver e suspeitaria da participação de Rayford.
No momento, ele só necessitava de equilíbrio para manter-se vivo. Seria Hattie tão importante
para Carpathia a ponto de ele envolver Rayford na história até descobrir onde ela estava?
Rayford tinha de voltar para Bagdá a fim de saber o que sucedera com Amanda. Carpathia
poderia matá-lo para dar uma mostra de seu poder ao restante do Comando Tribulação.
O carro está fervendo! - gritou Ritz.
- E eu também! - gemeu Hattie. Ela sentou-se e firmou as duas mãos nos apoios para cabeça
dos bancos da frente. Seu rosto estava vermelho, e a testa molhada de suor.
- Não temos alternativa a não ser continuar a rodar – disse Buck. Ele e Ken tentavam
equilibrar-se em razão da violenta trepidação do carro amassado. O ponteiro da temperatura já
alcançara a faixa vermelha, a fumaça começava a subir pelo capo e o marcador de combustível
descia rapidamente. Buck viu que o pneu traseiro furado estava pegando fogo.
- Se você parar, as chamas atingirão a gasolina. Se conseguirmos chegar ao aeroporto, só pare
o carro se tiver certeza de que o tanque está vazio! - disse Buck.
- E se o fogo do pneu atingir o carro? - gritou Hattie.
- Você estará nos braços de Deus, assim espero! – disse Ritz.
- Você tirou as palavras de minha boca! - disse Buck.
Voando rumo a Dálias no Challenger, Rayford receava chegar antes do helicóptero de Mac. Ele
teria de programar o horário de sua chegada. Alguns minutos depois, ele ouviu a voz de
Fortunato tentando falar com Mac.
- Torre de Dallas para Golf, Charlie, Nono, Nono, câmbio.
- Aqui é Golf, Charlie. Prossiga, torre.
- Ajuste a chave na frequência alternada para falar com seu superior, câmbio.
- Positivo.
Rayford mudou a chave para a frequência 11 a fim de ouvir a conversa.
- Mac, aqui fala o Supremo Comandante.
- Prossiga, senhor.
- Qual é a sua posição?
- Duas horas a oeste do senhor. Retornando de uma visita.
- Você está vindo diretamente para cá?
- Não, senhor. Mas posso ir.
- Então venha, por favor. Houve um contratempo ao norte de onde estamos, você está me
entendendo?
- O que aconteceu?
- Ainda não sabemos ao certo. Precisamos contatar nosso pessoal. Voltaremos à programação
estabelecida assim que for possível.
- Já estou a caminho, senhor.
Buck orava para que o combustível do carro se esgotasse logo, mas não sabia como
conseguiriam fazer Hattie caminhar por aquele chão completamente esburacado. As chamas
154
atingiam o lado direito da traseira do carro, que só não explodira ainda porque ele continuava
a rodar.
O fogo estava muito perto de Hattie, e, mesmo com o carro pulando de um lado para o outro,
ela conseguiu arrastar-se até os bancos da frente e ficou espremida entre os dois homens.
- O motor vai explodir antes que o combustível acabe! - gritou Ken. - Acho que vamos ter de
pular!
- Falar é mais fácil que fazer! - disse Hattie.
Buck teve uma ideia. Pegou seu telefone e discou um código de emergência.
- Avisem a torre de Stapleton! - ele gritou. - Uma pequena aeronave em chamas está se
aproximando!
A pessoa do outro lado da linha tentou perguntar alguma coisa, mas Buck desligou. O motor
zumbia e a traseira do carro estava em chamas quando Ken conseguiu ultrapassar uma última
elevação perto da extremidade mais afastada da pista. Um caminhão do corpo de bombeiros,
carregado de espuma, preparou-se para entrar em ação.
- Continue rodando, Ken! - disse Buck.
Finalmente, o motor parou. Ken deixou o carro no ponto morto, e os dois homens agarraram-se
às maçanetas das portas. Hattie segurou-se no braço de Buck com as duas mãos. O carro
ainda rodava lentamente quando o caminhão o alcançou, arremessando um jato de espuma
que cobriu o veículo e apagou o fogo. Ken pulou para fora e Buck fez o mesmo, seguido por
Hattie. Com a vista turvada por causa da espuma, Buck carregou Hattie nos braços e ficou
surpreso diante dos quilos que ela engordara. Exausto, ele acompanhou Ken até o Learjet. Ken
desceu a escada do jato, tirou Hattie dos braços de Buck e entrou, conduzindo-a até uma
poltrona. Buck a ajudou a sentar. Em menos de um minuto, Ken fechou a porta e ligou os
motores, e o Learjet começou a rodar na pista.
Enquanto eles levantavam vôo, a equipe do corpo de bombeiros terminou de cuidar do carro e
viu o avião desaparecer no céu.
Buck afastou um joelho do outro e pendurou as mãos entre as pernas. Os nós dos dedos
estavam machucados. Ele não conseguia tirar da mente as imagens da recepcionista, que
morreu antes de cair no chão, do policial atingido por um tiro no pé, e da mulher tremendo
enquanto trancava a porta.
- Ken, se eles descobrirem quem somos, você e eu passaremos a ser fugitivos.
- Por que vocês não chegaram ao meio-dia? – perguntou Hattie, com voz fraca.
- O que houve com seu telefone? - retrucou Buck. – Chloe e eu tentamos ligar para você a
manhã inteira.
- Eles o tomaram de mim - ela disse. - Falaram que precisavam dele para saber o resultado de
um diagnóstico ou coisa parecida.
- Você está bem de saúde? - perguntou Buck. - Excetuando seu estado, é claro.
- Tenho passado bem - ela disse. - Continuo grávida, se é isto o que você quer saber.
- Eu percebi enquanto carregava você.
- Sinto muito ter-lhe dado este trabalho.
- Vamos ter de ficar num esconderijo - disse Buck. – Você está preparada?
- Quem mais está lá?
Buck lhe contou.
155
DEZOITO
- E quanto a cuidados médicos? - ela perguntou.
- Eu tenho uma ideia - disse Buck. - Não é nenhuma promessa, mas acho que poderemos fazer
alguma coisa.
Ken continuava ligado aos acontecimentos anteriores.
- Não pude acreditar na sorte que tive quando dei dinheiro àquele funcionário e ele me levou
para fora, de onde pude ver o quarto através da janela.
- Quando você me contou que estava com Buck – disse Hattie -, tive de confiar em você.
- E como você conseguiu sair de lá,-Buck? – perguntou Ken.
- Nem eu mesmo sei. O policial matou a recepcionista.
- Claire? - perguntou Hattie, abalada. - Claire Blackburn está morta?
- Eu não sabia o nome dela - disse Buck -, mas ela está morta.
- Era isso o que eles queriam fazer comigo - disse Hattie.
- Você adivinhou - disse Ken.
- Cavalheiros, vou ficar com vocês dois enquanto não me mandarem embora.
Buck pegou o telefone e ligou para Rayford e Chloe, e contou-lhes tudo o que acontecera. Em
seguida, ligou para o Dr. Floyd Charles em Kenosha.
Rayford inventou uma história que acreditava ser convincente. O único problema agora seria
quando eles soubessem que Buck os enganara usando seu nome.
Antes de retornar a Dálias, Rayford esperava descobrir o que Leon sabia sobre o que se passara
em Denver. Porém, ele não conseguia falar com Mac. Será que Buck havia sido reconhecido?
Ninguém acreditaria que Rayford não participara da fuga de Hattie se soubesse que seu genro
esteve lá. Rayford aceitaria as consequências de seus atos naquilo que ele considerava uma
guerra santa. No entanto, antes de ser preso, ele desejava encontrar Amanda e limpar o nome
dela.
Se Tsion estivesse certo, as 144.000 testemunhas permaneceriam protegidas por Deus de
todos os perigos durante um determinado tempo. Embora não fosse uma das testemunhas,
Rayford era crente; tinha o selo de Deus na testa, e confiava que Ele o protegeria. Se isso não
acontecesse, ele consideraria a morte como "lucro", de acordo com as palavras do apóstolo
Paulo.
Rayford não recebera notícias de Mac e não tinha meios de falar com ele. Ou Mac não
conseguira livrar-se de Leon a tempo de entrar em contato ou alguma coisa errada havia
sucedido em terra. Rayford precisava tomar uma atitude. Se contasse que cancelara sua
missão, essa história só faria sentido se ele se comunicasse, via rádio, com Leon antes de
aparecer novamente em Dálias.
Buck estava preocupado, imaginando que talvez tivesse matado uma pessoa. Quando o Dr.
Charles foi ao encontro deles no aeroporto de Waukegan, antes de seguirem para Monte
Prospect, Buck cochichou ao ouvido do médico:
- Preciso saber se machuquei muito aquele policial.
- Conheço uma pessoa que trabalha em uma das unidades de pronto- socorro da CG nos
arredores de Littleton - disse o Dr. Charles. - Posso verificar.
Ao chegarem a Monte Prospect, Ken entrou com seu velho carro no quintal da casa. O Dr.
Charles permaneceu dentro do seu, falando ao telefone. Chloe e Tsion queriam ouvir todos os
detalhes. Chloe insistiu para que Hattie, exausta da viagem, ficasse com a cama do pavimento
térreo, e subiu a escada para tomar uma ducha, apoiando-se na bengala e contando com a
ajuda de Ken e Tsion. Assim que terminasse, ela deveria avisá-los para que eles a ajudassem a
156
descer.
Buck e Chloe conversaram em particular.
- Você poderia ter sido morto - ela disse.
- Não sei como não morri. Tenho quase certeza de que matei aquele policial. Não posso
acreditar. Ele tinha acabado de fuzilar a recepcionista, e eu sabia que faria o mesmo conosco.
Reagi instintivamente. Se houvesse tempo para pensar, eu teria ficado paralisado de medo.
- Você não tinha alternativa, Buck. Mas será que você seria capaz de matar um homem com um
soco?
- Espero que não. Ele estava se virando para apontar a arma para mim, quando eu o atingi.
Não estou exagerando, querida. Acho que eu não teria conseguido atingi-lo com tanta força se
tivesse corrido em sua direção. Senti meu punho afundando na cabeça dele, esmigalhando
tudo. Ele caiu de costas e bateu a cabeça com força no chão. O baque soou como uma bomba.
- Foi autodefesa, Buck.
- Não sei o que vou fazer se souber que ele está morto.
- O que a Comunidade Global fará se descobrir que foi você?
Buck gostaria de saber quanto tempo levaria para eles descobrirem. O policial mais jovem teve
tempo suficiente para gravar suas feições, mas provavelmente estava morto. O outro achava
que ele era Rayford Steele. Enquanto alguém não lhe mostrasse uma fotografia de Rayford, ele
continuaria a acreditar nisso. Mas teria condições de descrever os traços de Buck?
Buck caminhou até um espelho no corredor. Seu rosto estava sujo, e as faces apresentavam
manchas vermelhas e roxas até perto do nariz. O cabelo estava desgrenhado e molhado de
suor. Ele necessitava de uma ducha. Mas qual teria sido a sua aparência na clínica? O que o
policial sobrevivente diria sobre ele?
- Charlie, Tango para torre de Dálias, câmbio.
- Torre, prossiga, Charlie, Tango.
- Mensagem urgente para o Supremo Comandante da Comunidade Global. Missão suspensa por
falha mecânica. Verificando equipamento antes de retornar à base. Chegada prevista daqui a
duas horas, câmbio.
- Positivo, Charlie, Tango.
Rayford aterrissou em uma pista aparentemente abandonada a leste de Amarillo e aguardou a
chamada de Fortunato.
Buck sentiu uma certa inquietação quando o Dr. Charles entrou na casa sem olhar para ele. O
médico concordara em examinar Chloe, Ken e Hattie antes de voltar para Kenosha. Ele
demonstrou preocupação com o estado de Hattie e do bebé. Ela devia permanecer em repouso
absoluto.
Depois de instruir os outros como cuidar de Hattie e monitorar os sintomas, ele retirou os
pontos de Ken e recomendou que ele não fizesse nenhum esforço durante alguns dias.
- O quê? Nada de tiroteios? Acho que não vou poder trabalhar para Buck por uns tempos.
O médico disse a Chloe que o tempo seria seu aliado. O gesso que cobria seu braço e pé ainda
não podia ser retirado, mas ele prescreveu um tratamento que a ajudaria a melhorar
rapidamente.
Buck aguardou, observando. Se o Dr. Charles não lhe dissesse nada, significava que Buck
matara um homem e o médico não sabia como lhe contar.
- Você poderia examinar minha bochecha? – Buck perguntou.
O Dr. Charles aproximou-se sem dizer nenhuma palavra. Segurou o rosto de Buck e virou-o na
direção da claridade.
- Eu preciso desinfetar este ferimento - ele disse. - Se não passarmos um pouco de álcool aqui,
ele poderá infeccionar.
Os outros saíram do local enquanto o médico cuidava de Buck.
- Você se sentirá melhor depois de tomar uma ducha – ele disse.
- Eu vou me sentir melhor depois que você me contar o que descobriu. Você levou muito tempo
falando ao telefone.
157
- O homem está morto - disse o Dr. Charles.
Buck olhou assustado para ele.
- Você não tinha alternativa, Buck.
- Eles virão atrás de mim. Havia câmeras instaladas por toda parte.
- Se seu rosto estava como está agora, mesmo as pessoas que o conhecem não teriam
condições de identificá-lo.
- Acho que devo me apresentar.
O Dr. Charles afastou-se um pouco.
- Se você tivesse baleado um soldado inimigo no campo de batalha, teria de apresentar-se
como culpado?
- Eu não tinha a intenção de matá-lo.
- Se você não tivesse feito isso, ele o mataria. Ele matou uma pessoa na sua frente. A missão
dele era tirar você e Hattie dali.
- Não entendo como um soco pode matar alguém.
O médico aplicou um curativo e sentou-se na beira da mesa.
- Meu colega de Littleton disse que uma das duas pancadas - o soco no rosto ou o baque da
cabeça no chão - poderia ter matado o policial. Mas as duas juntas foram fatais. Ele sofreu
trauma facial e esmagamento da cartilagem e dos ossos ao redor do nariz. Algumas partículas
de osso penetraram em seu crânio. Os dois nervos ópticos sofreram danos irreversíveis. Vários
dentes foram quebrados, e o maxilar superior partiu-se ao meio. Sua morte poderia ter sido
causada por todos esses traumatismos.
- Como assim?
- Meu colega tende a acreditar que a morte foi causada pelo baque da parte posterior da
cabeça no chão. Foi esse baque que fez o crânio dele esmigalhar-se como casca de ovo. Vários
fragmentos do tecido craniano penetraram no cérebro. A morte foi instantânea.
Buck abaixou a cabeça. Que espécie de soldado ele era? Como poderia participar dessa batalha
cósmica do bem contra o mal sem aceitar a ideia de ter matado o inimigo?
- Nunca conheci alguém que tivesse causado a morte de outra pessoa e não se sentisse
culpado por uns tempos - disse o médico, começando a guardar suas coisas. – Já conversei
com pais que foram forçados a matar para proteger seus filhos, mas eles também se sentiram
atormentados pelo remorso. Pergunte a si mesmo onde Hattie estaria agora? Onde você
estaria?
- Eu estaria no céu. Hattie estaria no inferno.
- Então você lhe deu um pouco mais de tempo para converter-se.
Finalmente, Rayford recebeu uma chamada da torre de Dálias pedindo que ele entrasse em
contato novamente meia hora antes de aterrissar naquele aeroporto.
- O Supremo Comandante aguarda sua chegada.
Rayford disse que estava a caminho. Quando faltava meia hora para chegar a Dálias, ele
informou a torre, e 40 minutos depois estava taxiando em direção ao hangar que também
abrigava o Condor 216. Ao descer da aeronave, ele avistou Leon Fortunato, cujo semblante
demonstrava indignação. Mac McCullum estava um pouco atrás, com ar de quem sabia de
tudo. Rayford não via a hora de conversar em particular com Mac.
- O que aconteceu, capitão Steele?
- A aeronave estava voando lento, comandante, e achei prudente verificar o que estava
havendo. Consegui reparar o problema, mas como me atrasei demais para o compromisso,
achei melhor voltar.
- Então você não sabe o que aconteceu?
- Com a aeronave? Mais ou menos. Ela começou a balançar e...
- Eu estou falando do que aconteceu em Denver!
Rayford olhou de relance para Mac, que fez um leve movimento negativo com a cabeça.
- Em Denver?
- Eu já lhe contei como foi, comandante - interveio Mac. - Não consegui contato com ele.
- Acompanhem-me - disse Fortunato. Ele conduziu Rayford e Mac a um escritório e ligou um
158
computador, que exibiu um vídeo e um e-mail vindos do escritório da Comunidade Global de
Denver.
Os três debruçaram-se diante do monitor e passaram a acompanhar a narrativa de Fortunato.
- Sabíamos que a Srta. Durham não queria retornar à Nova Babilónia, mas Sua Excelência
acreditava estar agindo no melhor interesse dela e da segurança mundial. Com a finalidade de
proteger sua noiva e seu filho, encarregamos dois policiais de encontrarem-se com você e com
ela para transmitir-lhes instruções. A prioridade deles era entregar a Srta. Durham a seus
cuidados para que você a transportasse para o Oriente Médio. Eles tinham de mantê-la em
Denver até você chegar. Apesar de o laboratório e a clínica terem sido pouco atingidos pelo
terremoto, imaginamos que o sistema de vigilância estivesse avariado. Ao inspecionar o
sistema, o responsável pelo serviço de segurança constatou a presença do impostor.
- Impostor? - disse Rayford.
- O homem que afirmou ser você.
Rayford ergueu as sobrancelhas.
- Eles eram profissionais, capitão Steele.
- Eles?
- Pelo menos dois. Talvez mais. As câmeras instaladas na frente do edifício e na recepção não
estavam funcionando.
No entanto, havia uma câmera no fim do corredor principal e outra no meio. A ação que vocês
vão ver agora aconteceu no meio, mas a única câmera que funcionava estava instalada na
extremidade norte do corredor. As imagens do impostor foram prejudicadas, porque ora ele
está atrás de um dos policiais, ora de costas para a câmera. A fita começa aqui quando os
policiais e o impostor saem do quarto da Srta. Durham enquanto ela se veste para a viagem.
Não havia dúvida de que era Buck quem estava entre os dois policiais, mas seu rosto não
aparecia com nitidez. Seus cabelos estavam despenteados, e ele tinha um ferimento feio na
bochecha.
- Prestem atenção agora, cavalheiros. Quando o policial mais velho bate na porta do quarto da
Srta. Durham, o outro também se vira para a porta, e o impostor olha de relance
para o fim do corredor. Esta é a imagem mais nítida que conseguimos do rosto dele.
Novamente, Rayford sentiu-se aliviado porque a imagem não era clara.
- O policial mais velho acredita que a atenção do impostor foi distraída por dois funcionários da
limpeza que aparecem um pouco antes na fita. Ele terá uma conversa com os dois ainda hoje.
Vejam esta cena aqui. Ele perde a paciência com a Srta. Durham e a chama. Os dois policiais
esmurram a porta. Aqui o policial mais novo ordena às pacientes curiosas que voltem para seus
quartos. O impostor dá alguns passos para trás quando o policial mais velho estoura a
fechadura da porta. A recepcionista aparece. Enquanto o policial mais novo vira-se para ver a
recepcionista, o impostor consegue desarmá-lo. Prestem atenção. Vocês conseguem ver os tiros
sendo disparados? Ele mata a recepcionista no lugar em que ela está. Quando o policial mais
novo tenta desarmá-lo, o impostor dá-lhe um golpe tão forte no rosto com a ponta mais
pesada da Uzi que ele cai morto no chão.
Mac e Rayford entreolharam-se e aproximaram-se mais ainda para analisar o vídeo. Rayford
perguntou a si mesmo se Fortunato imaginava ter os mesmos poderes de Carpathia para
convencer as pessoas de que elas tinham visto algo que não viram. Rayford não deixou por
menos.
- Não foi bem assim, Leon.
Leon lançou-lhe um olhar sarcástico.
- O que você está dizendo?
- Quem atirou foi o policial mais jovem.
Fortunato voltou a fita.
- Está vendo? - prosseguiu Rayford. - Ali! Ele está atirando. O impostor está se afastando. O
policial vira-se para trás e o impostor dá alguns passos à frente enquanto ele parece estar
guardando as cápsulas das balas disparadas.
Está vendo? Ele perde o pé de apoio, e é por isso que o soco o faz bater com a cabeça no chão.
Fortunato parecia zangado. Reproduziu várias vezes a imagem.
- O impostor nem sequer tentou pegar a arma - disse Mac.
159
- Digam o que quiserem, cavalheiros, mas aquele impostor matou a recepcionista e o policial.
- O policial? - disse Rayford. - Ele ia cair e bater com a cabeça no chão mesmo sem ter recebido
o soco.
- De qualquer forma - prosseguiu Fortunato - o cúmplice retirou a Srta. Durham pela janela e
levou-a até o carro no qual eles fugiram. Assim que o policial mais velho abriu a porta, o
cúmplice atirou nele.
Evidentemente, esta não era a história que Rayford ouvira.
- E ele não morreu?
- Escapou por um triz. Foi ferido gravemente no calcanhar.
- Entendi o senhor dizer que ele estava entrando no quarto quando recebeu o tiro.
- Correto.
- Se ele recebeu um tiro no calcanhar é porque estava saindo.
O computador deu um sinal, e Fortunato pediu ajuda a um assessor.
- Está chegando outra mensagem - ele disse. - Abra-a para mim.
O assessor apertou alguns botões, e uma nova mensagem apareceu na tela. Era do policial
mais velho, e dizia o seguinte: "Ferimento no pé sendo tratado. Será necessária uma cirurgia.
O cúmplice é o falso funcionário que aparece no início da fita. O verdadeiro foi encontrado com
uma bolada de dinheiro. Diz que o cúmplice o forçou a aceitar o dinheiro para que parecesse
suborno. Disse que o cúmplice colocou uma faca em sua garganta até obter a informação."
O assessor de Fortunato voltou a fita até o ponto em que os dois funcionários estavam
entrando no corredor e caminhando em direção à câmera. Rayford, que não conhecia Ritz
pessoalmente, percebeu logo qual dos dois ele era ao observar que seu uniforme estava
incompleto. A única peça de roupa que se assemelhava a um uniforme era o boné que,
aparentemente, ele tomara emprestado do funcionário. Ritz também carregava uma vassoura,
mas trajava roupas características da região oeste.
- Ele não deve ser daquela região - disse Fortunato.
- Que poder de percepção! - disse Rayford.
- Não é necessário ter um olho muito apurado para identificar roupas regionais.
- Mesmo assim, comandante, isso é sinal de perspicácia.
- Eu não estou vendo nenhuma faca - disse Mac, enquanto as imagens das pessoas
aproximavam-se da câmera. O boné de Ritz estava abaixado até os olhos. Rayford prendeu a
respiração quando ele segurou a ponta do boné e colocou-o corretamente na cabeça,
mostrando todo o rosto. Rayford e Mac, postados atrás de Fortunato, entreolharam-se.
- Assim que eles passaram por aquela câmera – disse Fortunato - o cúmplice recebeu a
informação de que necessitava e desapareceu. Pegou a Srta. Durham e atirou em nosso
policial. E aqueles policiais estavam ali só para proteger a Srta. Durham.
O policial ocultara os detalhes por conveniência porque não queria passar por idiota. Enquanto
alguém não analisasse cuidadosamente a cena, a Comunidade Global não tinha um mínimo de
provas para acusar Rayford.
- Ela vai entrar em contato com você - disse Fortunato a Rayford. - Ela sempre faz isso. É
melhor você não ter nada a ver com o que aconteceu. Sua Excelência consideraria alta traição,
sujeita a pena de morte.
- O senhor está suspeitando de miml
- Ainda não cheguei a nenhuma conclusão.
- Vou retornar à Nova Babilónia como suspeito ou como piloto?
- Como piloto, é claro.
- O senhor quer que eu pilote o Condor 216?
- Claro. Você não pode nos matar sem morrer também, e eu não o considero um suicida. Por
enquanto.
Buck passou mais de três semanas trabalhando na versão via Internet do Semanário
Comunidade Global. Conversava com Carpathia quase todos os dias. Nada foi dito acerca de
Hattie Durham, mas Carpathia sempre mencionava que o "amigo mútuo", o rabino Tsion Ben-
Judá, receberia proteção da Comunidade Global a qualquer hora que desejasse retornar para a
160
Terra Santa. Buck não contou isso a Tsion. Simplesmente manteve a promessa de que o rabino
voltaria para Israel dentro de um mês.
A cada dia, a casa geminada de Donny Moore tornava-se mais apropriada para eles. Ninguém
da vizinhança sobrevivera. Poucos carros passavam por ali.
Ken Ritz, totalmente recuperado, mudara-se do pequenino abrigo que alguém lhe cedera em
Palwaukee e passou a morar no porão da casa secreta. O Dr. Charles os visitava de tempos em
tempos. Sempre que havia uma oportunidade, o Comando Tribulação se reunia para ouvir os
ensinamentos de Tsion.
Não era por acaso que eles se reuniam ao redor da mesa da cozinha, a poucos metros de
distância de Hattie, que passava a maior parte do tempo deitada. Geralmente, ela virava-se de
costas para eles fingindo dormir, mas Buck estava convencido de que ela ouvia cada palavra.
Eles tomavam o máximo cuidado para não dizer algo que os incriminasse em relação a
Carpathia. Ninguém fazia ideia do que o futuro reservava para Nicolae e Hattie. Eles choravam
juntos, oravam juntos, riam, cantavam, estudavam e contavam histórias de suas vidas.
Sempre que podia, o Dr. Charles estava presente.
Tsion repassava o plano inteiro da salvação em quase todas as reuniões, aproveitando um fato
que alguém contara ou explicando um texto bíblico. Hattie tinha muitas dúvidas, mas suas
perguntas eram feitas posteriormente a Chloe.
O Comando Tribulação queria que o Dr. Charles se tornasse membro permanente, mas ele
declinou, temeroso de que, se começasse a visitar a casa diariamente, poderia atrair pessoas
estranhas para lá. Ritz passou muitos dias pondo em ordem o abrigo subterrâneo, caso um
deles ou todos necessitassem esconder-se. Eles esperavam que a situação não chegasse a esse
ponto.
O vôo de Dálias para a Nova Babilónia, com várias escalas para pegar os embaixadores
regionais de Carpathia, tinha sido angustiante para Rayford. Ele e Mac estavam preocupados,
imaginando que Fortunato pudesse encarregar Mac de eliminá-lo. Rayford sentia-se vulnerável.
Talvez Fortunato soubesse que ele estava envolvido na fuga de Hattie Durham.
O dispositivo que permitia Rayford ouvir o que se passava no compartimento dos passageiros
foi muito útil para que eles tomassem conhecimento de fatos importantes durante a viagem.
Um dos botões transmissores estava estrategicamente colocado perto da poltrona em que
Carpathia costumava sentar-se. Evidentemente, naquela viagem Leon apropriara-se dela, o
que foi muito proveitoso para Rayford. Leon era um mestre na arte de ludibriar as pessoas,
sendo superado apenas por Nicolae.
Todos os embaixadores subiam a bordo acompanhados de um grande estardalhaço, e Fortunato
imediatamente procurava agradar a cada um deles. Ordenava à tripulação que os servisse,
cochichava ao ouvido deles, bajulava-os, fazia confidências. Todos ouviram a história de
Carpathia ter ressuscitado Fortunato. A reação era de espanto ou de fingimento.
- Imagino que o senhor saiba que é um dos dois potentados regionais favoritos de Sua
Excelência – dizia Fortunato em particular a cada um dos embaixadores.
As respostas eram praticamente as mesmas.
- Eu não sabia ao certo, mas posso dizer que isso não me causa surpresa. Tenho colaborado
muito com o regime de Sua Excelência.
- Sua colaboração tem sido notada - dizia Fortunato. – Ele gostou muito de sua sugestão para
aproveitarmos tudo o que o mar nos oferece. Sua Excelência acredita que isso renderá imensos
lucros ao mundo inteiro. Ele está solicitando que sua região divida o lucro em partes iguais
com a administração da Comunidade Global sob sua responsabilidade. Depois, ele redistribuirá
a parte da CG às regiões menos afortunadas.
Se aquela observação fizesse o embaixador empalidecer, Fortunato mudava o tom da conversa.
- É claro que Sua Excelência faz ideia do ónus que isso representa para o senhor. Mas há um
velho ditado que diz: "A quem muito é dado, muito é solicitado." O potentado acredita que o
senhor tem governado com tal brilhantismo e vigor que pode ser considerado um dos maiores
benfeitores do mundo. Em troca, ele deu-me a liberdade de mostrar-lhe esta lista e estes
planos para seu conforto e incentivo.
161
Enquanto desenrolava os papéis - que Rayford supunha serem plantas arquitetonicas e listas
de privilégios adicionais - Fortunato dizia:
- Sua Excelência pediu-me que lhe assegurasse que ele considera isto muito apropriado para
uma pessoa de sua posição e estatura. Embora o que estou lhe mostrando possa parecer uma
ostentação, ele incumbiu-me de transmitir-lhe pessoalmente que o senhor é digno de tais
acomodações. Embora seu novo domicílio, que será construído e equipado dentro de seis
meses, possa elevá-lo a uma posição superior até mesmo à dele, Sua Excelência insiste para
que o senhor não rejeite seus planos.
Tudo o que Fortunato lhes mostrava parecia impressioná-los.
- Bem - diziam alguns - eu nunca reivindiquei isso para mim, mas se Sua Excelência insiste...
Fortunato deixava para o fim sua abordagem mais astuciosa. Pouco antes do término da
conversa com cada embaixador, ele complementava:
- Só mais uma coisa. Sua Excelência pediu-me que tratasse de um assunto delicado com o
senhor que deve permanecer confidencial. Posso contar com sua discrição?
- Claro!
- Obrigado. Ele está compilando dados importantes sobre os trabalhos da Fé Mundial Enigma
Babilónia. Sem ter a intenção de prejudicá-lo, mas também por não querer agir sem conhecer
sua opinião, ele tem uma pergunta a lhe fazer. O que o senhor acha do trabalho que o
Supremo Pontífice Peter Mathews está realizando em benefício próprio... oh, não, esta
linguagem é pejorativa. Vou fazer a pergunta de outra maneira. Mais uma vez, sem ter a
intenção de prejudicá-lo, o senhor concorda com a, digamos, dúvida de Sua Excelência quanto
à independência do pontífice em relação ao restante da administração da Comunidade Global?
Todos os embaixadores manifestaram indignação diante das maquinações de Mathews.
Consideravam-nas uma ameaça. Um deles disse:
- Fazemos a nossa parte. Pagamos os impostos. Somos leais à Sua Excelência. Mathews só
pensa em tomar, tomar, tomar. Nada é suficiente para ele. Eu, pessoalmente, e você pode dizer
isto à Sua Excelência, adoraria que Mathews caísse fora.
- Então permita-me tratar de outro assunto mais delicado ainda. Posso?
- Certamente.
- Se houver necessidade de tomarmos uma medida extrema contra a pessoa do pontífice, Sua
Excelência poderia contar com o senhor?
- Você está dizendo...
- O senhor entendeu.
- Ele pode contar comigo.
Na véspera do dia em que o Condor 216 deixaria os dignitários na Nova Babilónia, Mac recebeu
um recado de Albie. "Sua encomenda está pronta. Pode vir buscá-la."
Rayford passou quase uma hora programando o turno de trabalho entre ele e Mac para que
ambos chegassem ao fim da viagem um pouco mais descansados. Rayford encarregou-se da
última parte da viagem. Mac dormiria durante esse período para ter condições de pilotar o
helicóptero, pegar a encomenda e pagar a Albie. Nesse ínterim, Rayford dormiria em seus
aposentos no abrigo. Ao cair da noite, eles voariam furtivamente de helicóptero até o rio Tigre.
Tudo funcionou mais ou menos conforme o planejado.
David Hassid estava ansioso para contar a Rayford tudo o que se passara em sua ausência.
- Carpathia tem mísseis apontados para o espaço, temendo os meteoros do julgamento.
Rayford recuou, perplexo.
- Ele acredita nas profecias? Acredita que Deus enviará outros julgamentos?
- Ele jamais admitiria isso - disse David - mas parece estar com medo.
Rayford agradeceu a David e disse-lhe que precisava descansar. Enquanto ele saía, Hassid
contou-lhe mais uma novidade que afastaria Rayford de vez da Internet.
- Carpathia está com uma ideia fixa nestes últimos dias - disse David. - Ele descobriu aquele
site da Web que mostra imagens ao vivo do Muro das Lamentações. Ele leva seu laptop a todos
os lugares, e fica observando e ouvindo os dois pregadores diante do muro. Carpathia tem
certeza de que ambos estão se dirigindo a ele, e é claro que estão. Carpathia está furioso. Já o
ouvi gritar duas vezes: "Quero que esses dois morram! E logo!"
- Isso não vai acontecer antes do tempo determinado - disse Rayford.
162
- Você não precisa me dizer isso - disse David. - Leio as mensagens de Tsion Ben-Judá sempre
que tenho uma oportunidade.
Rayford enviou mensagens em código a todas as centrais de boletins da Internet, tentando
localizar Amanda. Muita gente não entenderia, mas ele não se atrevia a expor-se mais ainda.
Acreditava que ela estava viva, a menos que houvesse prova em contrário. Rayford tinha
certeza de que, se Amanda tivesse meios de comunicar-se com ele, faria contato. E quanto às
acusações de que ela estava a serviço de Carpathia, havia momentos em que ele gostaria que
fossem verdadeiras. Isso significaria que ela estava viva. Mas se tivesse sido uma traidora...
não, ele se recusava a pensar nessa hipótese. Em sua opinião, ela ainda não fizera contato por
não ter tido condições.
A ansiedade de Rayford para provar que Amanda não estava no fundo do rio Tigre era tanta
que ele quase não conseguiu dormir. Seu sono foi agitado, e ele olhou para o relógio a cada
meia hora. Finalmente, cerca de 20 minutos antes da hora de Mac retornar, Rayford tomou uma
ducha, vestiu-se e conectou a Internet.
A câmera instalada no Muro das Lamentações transmitia imagens e som ao vivo. Os
pregadores, profetizados no livro de Apocalipse, estavam falando. As imagens eram tão nítidas
que Rayford quase podia sentir o odor de fumaça que exalava de seus trajes de aniagem. Suas
feições escuras, pés descalços e mãos ossudas davam-lhes aparência de pessoas com mais de
mil anos de idade. Eles tinham barbas longas e grosseiras, olhos escuros e penetrantes, cabelos
compridos e desgrenhados. Eles se chamavam de Eli e Moisés, e pregavam com poder e
autoridade. E em alto e bom som. A inscrição no vídeo identificava o da esquerda como sendo
Eli, e sua mensagem era legendada em inglês. Ele estava dizendo:
"Escutai, ó homens de Jerusalém! Estais vivendo sem água do céu desde que assinastes o
pacto com o demónio. Se continuardes a blasfemar o nome de Jesus Cristo, o Senhor e
Salvador, vereis vossa terra cada vez mais árida e vossas gargantas cada vez mais secas.
Rejeitar Jesus como o Messias é cuspir no rosto do Deus Todo-Poderoso. De Deus não se
zomba.
"Ai daquele que está sentado no trono desta terra. Se ele tiver o atrevimento de colocar-se no
caminho das testemunhas seladas e ungidas por Deus - as 12.000 testemunhas de cada uma
das 12 tribos que se dirigem para cá com o propósito de preparar-se para a vinda de seu Filho
- certamente sofrerá as consequências de tal ato."
Neste ponto, Moisés assumiu a palavra.
"Sim, qualquer tentativa de impedir a locomoção dos homens selados por Deus fará com que
vossas plantas murchem e morram, que a chuva não caia sobre a terra e que a água - todo o
seu volume - se transforme em sangue! O Senhor dos Exércitos jurou dizendo: 'Como pensei,
assim sucederá, e como determinei, assim se efetuará'."
Rayford sentia vontade de gritar. Ele esperava que Buck e Tsion estivessem vendo aquilo. As
duas testemunhas advertiam Carpathia para manter distância dos 144.000 que estavam a
caminho de Israel. Não era de admirar que Nicolae estivesse espumando de raiva. Com certeza
ele sabia que era aquele que estava sentado no trono da terra.
Rayford ficou agradecido por Mac não ter tentado dissuadi-lo de sua missão. Ele nunca esteve
tão determinado a cumprir uma tarefa. Ele e Mac acomodaram-se no helicóptero para a curta
viagem entre a Nova Babilónia e o rio Tigre. Rayford atou o cinto e apontou na direção de
Bagdá. Quando eles pousaram, o céu estava escuro.
- Você não precisa me acompanhar nesta missão – disse Rayford. - Não ficarei magoado se
você ficar de fora, só vigiando enquanto eu estiver no fundo do rio.
- De jeito nenhum, irmão. Irei com você.
Eles descarregaram os equipamentos de mergulho e desceram um barranco íngreme. Rayford
despiu-se, colocou as roupas impermeáveis e ajeitou o capuz na cabeça. Se aquelas roupas
fossem um pouco menores, não caberiam nele.
- Será que eu peguei a sua? - ele perguntou a Mac.
- Albie disse que as duas são do mesmo tamanho.
- Impressionante!
Depois de estarem completamente equipados com tanques de oxigénio de oito pés cúbicos,
bóias salva-vidas, cintos especiais e nadadeiras, eles fizeram um teste com as máscaras e as
163
colocaram no rosto.
- Meu coração diz que ela não está lá no fundo.
- Eu sei - disse Mac.
Eles inspecionaram seus respectivos equipamentos, inflaram as bóias, desceram o banco de
areia e mergulharam nas águas frias do rio.
Rayford precisava adivinhar em que lugar do rio o 747 afundara. Apesar de concordar com os
técnicos da Pan-Con que disseram a Carpathia que a aeronave era muito pesada para ter sido
levada longe demais pela correnteza, ele acreditava que ela devia ter descido alguns metros rio
abaixo antes de afundar de vez. Rayford estava convencido de que a fuselagem tinha
perfurações na parte frontal e traseira, uma vez que nenhuma de suas partes subira à tona.
Se isso tivesse acontecido, a aeronave havia se chocado contra o fundo do rio.
A água estava muito escura. Embora fosse um bom mergulhador, Rayford sentiu uma certa
claustrofobia por não conseguir ver um pouco mais adiante, mesmo tendo uma lanterna
possante presa ao pulso, que parecia iluminar apenas poucos metros adiante dele. Mac foi
desaparecendo aos poucos de sua vista até sumir de vez.
Será que seu equipamento estava em más condições ou ele desistira por algum motivo? Não
fazia sentido. Rayford não queria perder seu parceiro de vista. Talvez estivessem perdendo
tempo demais para encontrar os destroços. Desse jeito, não haveria tempo para examiná-los.
Ao ver nuvens de areia passando por ele, Rayford entendeu o que estava sucedendo. Mac
nadava à sua frente, a uma distância que ele não conseguia enxergá-lo.
Rayford tentava manter-se na posição correia. Quanto mais fundo ele mergulhasse, menor
seria a força da correnteza. Ele retirou um pouco de ar das bóias e afundou mais alguns
metros. Um pouco adiante, ele avistou uma luz piscando sempre no mesmo lugar. Como Mac
podia ter parado?
À medida que a luz foi ficando cada vez mais forte, Rayford deu um impulso maior com as
pernas, tentando alinhar-se com a lanterna de Mac. De repente, sua cabeça chocou-se
violentamente contra o tanque que Mac carregava nas costas. Mac enganchou seu braço no
dele, segurando-o com força. Ao fazer esse movimento, Mac enroscou-se na raiz de uma
árvore, e sua máscara saiu do lugar. Com um braço segurando Rayford e o outro agarrado à
raiz, ele não conseguia movimentar-se.
Rayford agarrou-se à raiz, para que Mac pudesse soltá-lo. Mac recolocou a máscara no lugar.
Com o corpo balançando na correnteza e com as mãos agarradas à raiz, eles não tinham
condições de comunicar-se. Rayford sentia dor no local da cabeça onde ele batera no tanque de
Mac. Seu capuz rasgara-se, e uma parte do couro cabeludo tinha sido arrancada. Mac apontou
a lanterna para a cabeça de Rayford e fez um gesto para que ele se curvasse. Rayford não
sabia o que Mac vira, mas ele fez um sinal para que ambos subissem à superfície. Rayford
balançou a cabeça, e seu ferimento começou a latejar.
Mac desvencilhou-se da raiz, inflou sua bóia e subiu à superfície. Rayford acompanhou-o com
relutância. Naquelas condições, ele não podia fazer nada sem Mac. Rayford emergiu da água a
tempo de ver Mac subindo a barranca do rio. Rayford fez um esforço para alcançá-lo. Depois de
tirarem as máscaras e os tubos de respiração, Mac disse apressado:
- Não estou tentando demovê-lo de sua missão, Rayford. Mas quero dizer-lhe que temos de
trabalhar juntos. Você está vendo a que distância estamos do helicóptero?
Rayford surpreendeu-se ao ver a silhueta indistinta do helicóptero bem longe de onde eles
estavam.
- Se não encontramos a aeronave até agora, é porque provavelmente passamos por ela. As
lanternas não estão ajudando muito. Precisamos de sorte - prosseguiu Mac.
- Precisamos orar - disse Rayford.
- Mas você vai ter de cuidar do ferimento em sua cabeça. Ele está sangrando.
Rayford passou a mão na cabeça e iluminou os dedos com a lanterna.
- Não é nada sério, Mac. Vamos mergulhar novamente.
- Vamos ter de adivinhar. Precisamos nadar perto da margem até estarmos preparados para
fazer a busca no meio do rio. Assim que chegarmos lá, teremos de agir rápido. Se
encontrarmos a aeronave, vamos examiná-la imediatamente. Se não a encontrarmos,
voltaremos para a margem. Você é quem dará as ordens, Ray. Vai me seguir enquanto eu
164
estiver nadando perto da margem do rio. Eu o acompanharei quando você me sinalizar que
chegou o momento de nos arriscarmos.
- E como eu vou saber?
- Você é quem vai ficar encarregado de orar.
165
DEZENOVE
O relógio marcava pouco menos de 13 horas em Monte Prospect. Tsion passara a manhã inteira
preparando mais uma longa mensagem aos fiéis e aos que navegavam na Internet. O número
de respostas continuava a subir vertiginosamente.
Ao ouvir Tsion gritar seu nome, Buck subiu a escada correndo e olhou por cima dos ombros do
rabino para ver o indicador do número de respostas recebidas.
- Então - perguntou Buck - o ritmo já começou a diminuir?
- Eu sabia que você ia fazer este comentário, Cameron - disse Tsion sorrindo. - Chegou uma
mensagem às quatro horas da madrugada explicando que o provedor passará a mostrar o
número de respostas recebidas em milhares, e não em unidades como tem feito até agora.
Buck meneou a cabeça e olhou surpreso para o número que se modificava a cada um ou dois
segundos.
- Tsion, isto é fenomenal!
- É um milagre, Cameron. Recebo estas manifestações com humildade e, ao mesmo tempo, fico
com mais desejo de trabalhar. Deus me tem feito sentir amor por todas as pessoas que estão
conosco, principalmente por aquelas que têm dúvidas. Eu as faço lembrar que encontrarão o
plano de salvação em qualquer lugar que clicarem em nossa central de boletins. O único
problema é que, por não termos um site próprio na Internet, há necessidade de
reabastecermos a central semanalmente.
Buck pousou a mão no ombro do rabino.
- Não vai demorar muito para o início das grandes concentrações em Israel. Tenho orado a
Deus suplicando proteção para você.
- Sinto uma coragem tão grande - não baseada em minhas forças, mas nas promessas de
Deus -, que acredito que poderei caminhar sozinho até o Monte do Templo sem ser
molestado.
- Eu não vou permitir que você faça isso, Tsion, mas acho que tem razão.
- Veja isto aqui, Cameron - Tsion clicou sobre o ícone que permitia ver as duas testemunhas
diante do Muro das Lamentações. - Não vejo a hora de voltar a conversar pessoalmente com
eles. Sinto uma grande afinidade com os dois. Passaremos a eternidade ao lado deles, ouvindo
as histórias dos milagres de Deus.
Buck estava fascinado. Os dois usavam o tempo como desejavam, ora pregando, ora
permanecendo afastados da multidão. Todos sabiam que deviam manter distância deles. Os
que tentaram aproximar-se para prejudicá-los caíram mortos ou foram carbonizados pelo fogo
expelido da boca das testemunhas. Apesar disso, Buck e Tsion tinham ficado a uma distância de
poucos metros deles, separados apenas por uma cerca. Naquela ocasião, as testemunhas
falaram por enigmas, mas Deus ajudara Buck a compreender. Agora, Eli estava sentado em um
local escuro de Jerusalém, com as costas apoiadas em um cómodo de pedra abandonado, que
parecia ter sido usado por guardas em épocas passadas. As duas portas de ferro do cómodo
estavam seladas, e havia apenas uma pequena abertura nas grades que servia de janela.
Moisés estava em pé, de frente para a cerca que o separava do povo. Ninguém se aproximava
a menos de dez metros. Com os pés afastados um do outro e os braços caídos ao longo do
corpo, Moisés não se movia. Parecia até que não piscava. Alguém diria que se tratava de uma
estátua de pedra, a não ser quando a brisa agitava levemente seus cabelos.
Eli balançava o corpo de vez em quando. Massageava a testa como se estivesse pensando ou
orando.
Tsion olhou de relance para Buck.
- Você precisa fazer o que eu tenho feito. Quando preciso descansar um pouco, entro neste
site para observar meus irmãos. Gosto muito de vê-los pregar. Eles falam sem medo e sem
rodeios. Não usam o nome do anticristo, mas advertem os inimigos do Messias sobre o que
166
está por vir. Eles serão uma grande inspiração para as 144.000 testemunhas que chegarão a
Israel. Estaremos de mãos dadas. Cantaremos. Oraremos. Estudaremos. Receberemos
motivação para pregar com coragem e ousadia o Evangelho de Cristo ao redor do mundo. Os
campos estão brancos para a colheita. Perdemos a oportunidade de nos encontrar com Cristo
quando Ele arrebatou sua Igreja, mas temos o privilégio indescritível de estar vivos durante
este período! Muitos de nós darão a vida por nosso Salvador. Que chamado mais sublime um
homem poderia receber?
- Você devia dizer isto a seus irmãos internautas.
- A bem da verdade, estou lhe contando a conclusão da mensagem de hoje. Você não vai
precisar lê-la.
- Não perco nenhuma.
- Hoje estou advertindo os crentes e não-crentes para que permaneçam afastados de árvores e
gramados até que venha o primeiro Julgamento das Trombetas.
Buck olhou com ar de indagação para Tsion.
- Como saberemos que ele chegou ao fim?
- Será o maior acontecimento depois do terremoto. Precisamos pedir a Ken e Floyd que nos
ajudem a eliminar uma parte do gramado ao redor da casa e podar algumas árvores.
- Você está levando as profecias ao pé da letra? - perguntou Buck.
- Meu querido irmão, quando a Bíblia usa linguagem simbólica, devemos interpretá-la
simbolicamente. Quando ela diz que toda a erva verde e um terço das árvores serão destruídos
pelo fogo, não posso imaginar que essa linguagem seja simbólica. Se as árvores ao redor desta
casa fizerem parte desse um terço, não vou querer ter nenhuma por aqui. Você não concorda
comigo?
- Onde estão as ferramentas de jardinagem de Donny?
As águas do rio Tigre não eram geladas, mas causavam um certo desconforto. Rayford teve de
usar músculos que não eram exercitados havia anos. Sua roupa impermeável era justa demais,
sua cabeça latejava, e ele lutava para não ser levado pela correnteza. Com a pulsação mais
acelerada do que deveria estar em tais condições, ele esforçava-se para
controlar a respiração tentando não consumir todo o oxigénio do tanque.
Rayford discordava de Mac. Se eles não encontrassem o avião naquela noite, Rayford voltaria
quantas vezes fossem necessárias. Não pediria a Mac que o acompanhasse, apesar de saber
que o amigo nunca o abandonaria.
Enquanto nadava atrás de Mac, Rayford orava incessantemente. Mac retirou um pouco de ar de
sua bóia e afundou um pouco mais. Rayford fez o mesmo. Quando um deles afundava mais de
três metros sem ter onde se agarrar perto da margem, corria o risco de ser levado pela
correnteza.
Rayford esforçou-se para acompanhar Mac. "Por favor, meu Deus", ele orou, "ajuda-me a
terminar esta missão. Se Amanda não estiver aqui, que eu possa encontrá-la. Se ela estiver
em perigo, que eu possa salvá-la." Rayford lutava para tirar da mente a possibilidade de
Amanda estar a serviço de Carpathia. Ele não queria acreditar nisso, nem por um segundo
sequer, mas aquele pensamento o atormentava.
Quanto aos corpos afundados no Tigre, quer suas almas estivessem no céu ou no inferno,
seria melhor deixá-los ali mesmo. Se localizasse algum. Essa expectativa de encontrar os
corpos seria um aviso de Deus de que eles estavam perto dos destroços do avião? Rayford -
pensou em tocar de leve na nadadeira de Mac para dar-lhe um sinal, mas conteve-se.
O avião devia ter batido com força suficiente para matar todos os que estavam a bordo. Caso
contrário, os passageiros teriam tido condições de desatar os cintos e sair pelos furos da
fuselagem ou pelas portas e janelas, abertas em razão da queda brusca. Porém, nenhum
corpo subira à superfície.
Rayford imaginava que as asas tivessem sido arrancadas, e talvez a cauda também. Aquelas
aeronaves faziam parte das maravilhas da aerodinâmica, mas não eram indestrutíveis. Ele
temia ver as consequências de tal impacto.
Rayford surpreendeu-se ao ver Mac a pouco menos de cem metros da margem, sem estar
167
agarrado a nada. Aparentemente eles haviam afundado mais do que imaginavam porque a
força da correnteza diminuíra. Mac parou e consultou o manómetro. Rayford também verificou o
seu e fez um sinal de positivo com o polegar. Mac apontou para a cabeça de Rayford. Rayford
fez outro sinal com o polegar, embora o ferimento estivesse incomodando um pouco. Dali em
diante ele seguiu à frente de Mac. Ambos estavam agora a quase dois metros de profundidade.
Rayford teve a sensação de que em breve acharia o que procurava. Orou para não encontrar o
que não queria ver.
Naquele local afastado das margens, a areia não se movimentava tanto, e o foco das lanternas
tinha mais poder de alcance. Rayford enxergou alguma coisa e ergueu o braço para que Mac
parasse. Apesar da relativa calma, eles se aproximaram um pouco mais da margem para não
ficar à deriva. Ambos apontaram as lanternas para o local indicado por Rayford. Ali estava a
gigantesca asa direita do 747, completamente intacta. Rayford lutou para não se descontrolar.
Rayford esquadrinhou a área. Um pouco mais adiante, eles avistaram a asa esquerda, também
intacta, com exceção de um imenso rasgo desde os flaps até o local de encaixe no corpo da
aeronave. Rayford imaginou que a próxima parte a ser encontrada seria a cauda. Testemunhas
disseram que o avião caíra de bico no rio. Em razão disso, a parte traseira devia ter sofrido um
impacto de grandes proporções, fazendo com que a cauda se partisse ao meio ou rompesse
por completo.
Mantendo a mesma profundidade, Rayford nadou até um pouco mais adiante do local onde
eles haviam encontrado as asas. Mac segurou com força o tornozelo de Rayford para evitar que
ele se chocasse contra a imensa cauda da aeronave. Ela estava seriamente danificada. A parte
principal devia estar um pouco adiante. Rayford nadou seis metros à frente e endireitou o
corpo, ficando quase na posição vertical. Quando uma de suas nadadeiras tocou o leito do rio,
ele se deu conta do perigo que corria de ficar atolado no lodo.
Chegara a vez de Buck servir alimento a Hattie, que se sentia tão fraca a ponto de quase não
conseguir movimentar-se. O Dr. Charles estava a caminho.
Enquanto lhe servia uma colherada de sopa, Buck dirigiu-se a ela em tom carinhoso:
- Hattie, todos nós amamos você e seu bebé. Só queremos seu bem. Você tem ouvido os
ensinamentos do Dr. Ben-Judá. Conhece tudo o que foi profetizado e o que já aconteceu.
Não há meios de você negar que as profecias da Palavra de Deus têm sido cumpridas desde o
dia dos desaparecimentos até hoje. O que mais é necessário para convencê-la? De que outras
provas você necessita? Por pior que sejam estes tempos, Deus está deixando claro que só
existe um caminho. Ou você fica do lado de Deus ou fica do lado do demónio. Não chegue ao
ponto de permitir que você ou seu bebé sejam mortos num dos próximos julgamentos.
Hattie cerrou os lábios e recusou-se a aceitar a próxima colherada de sopa.
- Não necessito ser convencida de mais nada, Buck – ela disse com voz fraca.
Chloe aproximou-se mancando.
- Devo chamar Tsion? - ela perguntou.
Buck fez um sinal negativo com a cabeça, mantendo o olhar fixo em Hattie. Ele teve de
inclinar-se para ouvir o que ela dizia.
- Eu sei que tudo isso é verdade. Se eu necessitasse de mais alguma coisa para me convencer,
seria a pessoa mais céptica do mundo.
Chloe afastou os cabelos de Hattie e encostou a mão em sua testa.
- Ela está muito quente, Buck.
- Dissolva um comprimido de Tyienol na sopa.
Hattie parecia estar dormindo, mas Buck sentiu uma certa inquietação. Que desastre seria se
eles a perdessem quando ela estava tão perto de aceitar a Cristo.
- Hattie, se você sabe que é verdade, se você acredita, tudo o que tem a fazer é receber a
dádiva de Deus. Reconheça perante Ele que você é pecadora como qualquer outra pessoa e
que necessita de seu perdão. Faça isso, Hattie. Não deixe para depois.
Ela fez um grande esforço para abrir os olhos. Entreabriu os lábios e cerrou-os novamente. Deu
a entender que ia falar, mas não disse nada. Finalmente, ela sussurrou:
- Eu quero fazer isso, Buck. Quero de verdade. Mas você não sabe o que eu fiz.
168
- Não importa, Hattie. Mesmo as pessoas que foram arrebatadas por Cristo também eram
pecadoras e foram salvas pela graça. Ninguém é perfeito. Todos nós já fizemos coisas horríveis.
- Não tanto quanto eu - ela disse.
- Deus quer perdoar você.
Chloe retornou com uma colher onde ela dissolvera um comprimido de Tyienol e misturou-o à
sopa. Buck aguardou, orando em silêncio.
- Hattie - ele disse carinhosamente -, você precisa tomar um pouco mais de sopa.
Misturamos um remédio na sopa.
Lágrimas escorriam pelas faces de Hattie, e ela fechou os olhos.
- Eu quero morrer.
- Não! - disse Chloe. - Você prometeu ser madrinha de meu bebé.
- Ele não vai querer ter uma madrinha como eu – disse Hattie.
- Você não vai morrer. É minha amiga e eu gosto de você como irmã.
- Sou velha demais para ser sua irmã - disse Hattie.
- Agora é tarde demais. Você não pode voltar atrás.
Buck conseguiu que ela tomasse um pouco mais de sopa.
- Você quer aceitar Jesus, não é verdade? - ele cochichou perto do ouvido dela.
Depois de uma longa pausa, ela respondeu:
- Quero, mas Ele talvez não me queira.
- Ele quer - disse Chloe. - Por favor, Hattie. Você sabe que estamos falando a verdade. O
mesmo Deus que cumpre profecias de séculos atrás ama e aceita você. Não diga não a
Ele.
- Não estou dizendo não a Ele. É Ele que está dizendo não a mim.
Chloe segurou Hattie pelo pulso. Buck lançou-lhe um olhar de surpresa.
- Ajude-me a sentá-la na cama, Buck.
- Chloe! Ela não pode.
- Ela precisa raciocinar e ouvir, Buck. Não podemos desistir dela.
Buck segurou o outro pulso de Hattie, e os dois fizeram-na sentar-se. Ela apertou as têmporas
com as pontas dos dedos e começou a gemer.
- Preste atenção - disse Chloe. - A Bíblia diz que Deus não deseja que ninguém pereça. Será
que você é a única pessoa na terra que fez algo tão terrível que nem mesmo o Deus do
universo é capaz de perdoá-la? Se Deus perdoasse apenas pecados insignificantes, não existiria
esperança para nenhum de nós. Não importa o que você tenha feito, Deus é como o pai do
filho pródigo, que esquadrinha o horizonte aguardando sua volta. Ele está com os braços
abertos, aguardando você.
Hattie balançou o corpo e meneou a cabeça.
- Fiz coisas horríveis - ela disse.
Buck olhou para Chloe, sem saber o que fazer.
Rayford apontou para uma parte projetada da cauda e subiu um pouco em direção à
superfície. Mac o acompanhou.
Rayford segurou firme na beira de uma janela para não ser levado pela correnteza. Direcionou
o foco da lanterna para dentro do compartimento de passageiros, e seus temores foram
confirmados. Na parte traseira da aeronave não havia nada a não ser piso, paredes e teto.
Tudo havia sido arremessado para a frente.
Ele e Mac usaram as janelas como pontos de apoio para se arrastar por quase 15 metros até a
pilha de escombros. Os lavatórios traseiros, compartimentos de bagagem, paredes divisórias e
latas de lixo estavam no topo da pilha.
A cena era pior do que Rayford podia imaginar. Ele se viu diante de uma gigantesca fuselagem,
com o bico e um quarto do comprimento enterrados no leito do rio Tigre em ângulo de 45
graus. Rayford pensava com horror naquilo que ele e Mac estavam prestes a presenciar. Tudo
naquela aeronave -desde compartimentos de bagagem, poltronas, apoios para cabeça,
bandejas para refeições, telefones e até passageiros -devia estar amontoado na parte da
frente. Um impacto tão violento a ponto de arrancar o trem de pouso de uma aeronave teria
quebrado imediatamente o pescoço de todos os passageiros. As poltronas deviam estar
169
rasgadas e espremidas num canto, e os passageiros empilhados como lenha. Tudo devia ter-se
soltado do lugar e voado para a frente.
Rayford gostaria pelo menos de saber em qual poltrona Amanda se sentara. Assim, ele
pouparia tempo de procurá-la no meio de todos aqueles destroços. Por onde começar? Ele
Hattie abaixou a cabeça. Buck achou que eles a estavam pressionando demais. Mesmo assim,
ele imaginava que teria dificuldade em perdoar a si mesmo, caso não conseguisse dar a Hattie
todas as oportunidades se algo acontecesse com ela.
- Será que eu preciso contar a Ele tudo o que fiz? – disse Hattie com um suspiro.
- Ele já sabe - respondeu Chloe. - Se você se sentir melhor em contar tudo a Ele, faça isso.
- Não quero contar em voz alta - disse Hattie. - Não foram apenas casos amorosos com muitos
homens. Foram coisas piores até mesmo que desejar abortar!
- Mas você não abortou - disse Chloe.
- Nada é tão horrível que não possa ser perdoado por Deus - disse Buck. - Acredite em mim.
Hattie balançou a cabeça. Buck sentiu um alívio ao ouvir o carro do médico chegando. O Dr.
Charles Floyd examinou Hattie rapidamente e ajudou-a a deitar-se. Indagou que medicamento
ela havia tomado, e eles informaram que lhe deram Tylenol.
- Ela necessita de uma dosagem maior - ele disse. – A temperatura está mais alta do que
vocês informaram algumas horas atrás. Em breve ela estará delirando. Preciso descobrir
qual é a causa da febre.
- O estado dela é grave?
- Eu diria que sim.
Hattie gemia, tentando falar. O Dr. Charles fez um gesto para que Buck e Chloe se afastassem.
- Vocês dois e Tsion precisam orar por ela - disse o médico.
Rayford perguntava a si mesmo se seria prudente nadar no meio de centenas de cadáveres,
principalmente tendo uma ferida aberta na cabeça. Bem, se alguma coisa tivesse de
contaminá-lo, ele já estava contaminado. Ele trabalhou febrilmente com Mac para começar a
remover os escombros. Abriram um buraco a pontapés num espaço entre duas janelas, por
meio do qual conseguiram retirar, com grande esforço, as peças soltas no interior da
aeronave.
Quando eles alcançaram um painel extremamente pesado, Rayford passou a mão por baixo
dele e puxou-o. Imediatamente ele descobriu o que o deixava tão pesado. Era o encosto da
poltrona da comissária de bordo. Ela ainda estava com o cinto atado, mãos fechadas, olhos
abertos. Seus cabelos longos flutuavam na água. Rayford e Mac afastaram o painel. Rayford
notou que a luz da lanterna de Mac estava diminuindo de intensidade.
Aquele painel havia protegido os corpos de serem devorados pelos peixes. Rayford teve a
sensação de estar violando cadáveres. Iluminou com a lanterna as poltronas amontoadas.
Todas estavam ocupadas e os passageiros não tiveram tempo de desatar os cintos. Ninguém
teria sofrido muito tempo para morrer.
Mac deu uma pancada em sua lanterna, e a luz voltou ao normal. Ele direcionou-a para os
cadáveres, tocou o ombro de Rayford e balançou a cabeça como se quisesse dizer que não
deviam prosseguir. Rayford não podia culpá-lo, mas não queria desistir. Não havia mais dúvida
de que a busca o tranquilizaria em relação a Amanda. Teria de ir até o fim nessa tarefa
medonha para ter paz de espírito.
Rayford apontou a lanterna para Mac e depois para a superfície. Em seguida, dirigiu-a para os
cadáveres e deu uma batida no peito como se estivesse dizendo: "Pode ir, eu fico."
Mac balançou a cabeça lentamente dando a impressão de estar aborrecido. Mas não saiu dali.
Eles começaram a levantar os cadáveres amarrados às poltronas pelos cintos de segurança.
Buck ajudou Chloe a subir a escada e eles reuniram-se com Tsion para orar por Hattie. Quando
terminaram, Tsion mostrou-lhes que Carpathia estava competindo com ele em matéria de
mensagens enviadas por meio de computador.
170
- Ele deve estar enciumado por causa do número de respostas - disse Tsion com tristeza. -
Vejam isto.
Carpathia estava se comunicando com o povo por meio de uma série de mensagens curtas.
Todas elas teciam elogios ao pessoal encarregado da reconstrução. Incentivavam o povo a
mostrar devoção à Fé Mundial Enigma Babilónia. Algumas reiteravam o compromisso assumido
pela Comunidade Global de proteger o rabino Ben-Judá dos zelotes, caso ele resolvesse voltar
para sua terra natal.
- Vejam a resposta que dei - disse Ben-Judá.
Buck leu o que estava escrito na tela:
"Potentado Carpathia: Agradeço e aceito sua oferta de proteção, e congratulo-me com o senhor
porque esse gesto o torna instrumento do único Deus vivo e verdadeiro. Ele prometeu selar e
proteger seus escolhidos durante este período em que nos incumbiu de pregar seu Evangelho
ao mundo. Estamos agradecidos porque, aparentemente, Ele o escolheu como nosso protetor e
gostaríamos de saber como o senhor se sente a esse respeito. No nome de Jesus Cristo, o
Messias e nosso Senhor e Salvador.
Rabino Tsion Ben-Judá, no exílio."
- Não demoraremos muito para partir, Tsion – exclamou Buck.
- Espero poder acompanhá-los - disse Chloe.
- Acho que eu não tenho escolha - completou Buck.
- Estou pensando em Hattie - ela completou. - Não posso abandoná-la enquanto ela não sarar.
Os três desceram a escada. Hattie estava dormindo, mas respirava com dificuldade. Seu rosto
estava vermelho e a testa úmida. Chloe enxugou-a com uma toalha. Em pé diante da porta dos
fundos o Dr. Charles olhava através da tela de proteção.
- Você poderia dormir aqui esta noite? - perguntou Buck.
- Eu gostaria muito. Na verdade, eu gostaria de levar Hattie para que ela pudesse receber
tratamento adequado.
Mas ela seria reconhecida, e não teríamos condições de ir muito longe. Depois daquela história
em Minneapolis passei a ser olhado com desconfiança. Estou sendo cada vez mais vigiado.
- Se você achar que deve ir, então vá.
- Dê uma olhada no céu - disse o médico.
Buck aproximou-se da porta. O sol ainda estava alto, mas havia formação de nuvens escuras
no horizonte.
- Ótimo - disse Buck. - O que a chuva fará com as vias esburacadas que chamamos de ruas?
- Acho melhor dar mais uma espiada em Hattie antes de ir embora.
- Como você conseguiu fazê-la dormir?
- A febre a derrubou de vez. Dei-lhe uma dose de Tylenol suficiente para baixar a temperatura,
mas há perigo de desidratação.
Buck não disse nada. Estava perscrutando o céu.
- Buck?
Ele virou-se.
- Ah, sim.
- Ela estava gemendo e balbuciando algo sobre sentir-se culpada.
- Eu sei.
- Sabe?
- Nós insistimos para que Hattie recebesse Cristo em seu coração, e ela disse que não era
digna. Contou que fez algumas coisas erradas e acha que Deus não a ama mais.
- Ela lhe disse que coisas eram essas?
-Não.
- Então eu também não devo dizer.
- Se for alguma coisa que você ache que devemos saber, diga.
- É uma maluquice.
- Não há nada mais que me cause surpresa.
- Ela está carregando uma tremenda culpa em relação a Amanda e Bruce Barnes. Amanda é
mulher do pai de Chloe?
- Sim, e eu já lhe contei a história de Bruce. O que houve com eles?
171
- Ela contou chorando que ia viajar com Amanda de Boston para Bagdá. Quando Hattie disse a
Amanda que mudara de plano e voaria para Denver, Amanda insistiu em acompanhá-la. Hattie
me contou o seguinte: "Amanda sabia que eu não tinha nenhum parente em Denver. Ela achou
que sabia o que eu ia fazer lá. E estava certa." Depois ela me contou que Amanda cancelou
sua reserva para Bagdá e estava a caminho do balcão a fim de comprar uma passagem para
Denver no mesmo vôo de Hattie. Hattie suplicou-lhe que não fizesse isso. O único jeito de
impedi-la foi Hattie jurar que não iria se Amanda tentasse acompanhá-la. Ela fez Hattie
prometer que não tomaria nenhuma atitude estúpida em Denver. Hattie sabia que essa atitude
estúpida seria fazer um aborto. Prometeu a Amanda que não faria o aborto.
- E por que ela está se sentindo tão mal?
- Ela contou que, quando Amanda voltou para pegar o vôo programado anteriormente para
Bagdá, não havia mais lugar.
Ela disse a Hattie que não queria permanecer em lista de espera e que se sentiria mais feliz se
a acompanhasse no vôo até o oeste. Hattie não permitiu, e acredita que Amanda conseguiu
um lugar no vôo para Bagdá. Ela não pára de dizer que devia e queria ter ido com Amanda. Eu
lhe disse que ela não devia dizer coisas desse tipo, e ela retrucou: "Então por que não permiti
que Amanda me acompanhasse? Ela ainda estaria viva."
- Você ainda não conhece meu sogro nem Amanda, Floyd, mas Rayford não acredita que
Amanda tenha viajado naquele avião. Não sabemos se ela viajou.
- Mas se ela não viajou naquele avião e não acompanhou Hattie, onde estaria? Centenas de
milhares de pessoas morreram no terremoto. Vocês não acham que já teriam recebido notícias
se ela tivesse sobrevivido?
Buck olhou para o céu e viu nuvens se aproximando.
- Não sei - ele disse. - É provável que ela não tenha morrido, só esteja ferida. Talvez ela não
tenha condições de fazer contato, como foi o caso de Chloe.
- Talvez. Buck, tenho mais dois assuntos para tratar com você.
- Diga.
- Hattie disse que sabia algo mais sobre Amanda.
Buck gelou. Seria possível?
- O que mais ela poderia saber? - ele perguntou, tentando controlar-se.
- Um segredo que ela ouviu, mas que não pode revelar.
Buck receava saber do que se tratava.
- Você disse que havia mais um assunto.
Agora, quem demonstrava nervosismo era o médico.
- Eu gostaria que tudo isso fosse um delírio - ele disse.
- Vamos, diga.
- Tirei uma amostra do sangue dela. Vou verificar se houve envenenamento. Meus colegas de
Denver podem tê-la envenenado antes de o plano deles ser posto em prática. Perguntei o que
ela havia comido lá, e ela percebeu que eu estava suspeitando de alguma coisa. Começou a
tremer e parecia muito assustada. Ajudei-a a deitar-se. Ela agarrou minha camisa, puxou-me
para perto e disse: "Se Nicolae me envenenou, serei sua segunda vítima." Perguntei o que
aquilo significava. Ela respondeu: "Bruce Barnes. Nicolae o envenenou quando ele estava em
viagem ao exterior. Barnes conseguiu voltar para os Estados Unidos e foi hospitalizado.
Todos pensam que ele morreu no bombardeio, e talvez tenha sido verdade. Mas teria morrido
de qualquer forma, mesmo que o hospital não tivesse sido bombardeado. Eu sabia de tudo
isso. Não contei a ninguém." Buck estava abalado.
- Eu gostaria muito que você tivesse conhecido Bruce – ele murmurou.
- Teria sido uma honra para mim. Temos condições de saber qual foi a causa da morte, você
sabe. Ainda não é tarde demais para uma autópsia.
- Isso não o traria de volta - disse Buck. - Mas o fato de saber disso me dá um motivo...
- Um motivo?
- Talvez uma desculpa. Para matar Nicolae Carpathia.
172
VINTE
Embora a água proporcione praticamente a mesma ausência de peso do espaço cósmico, o
esforço de puxar e arrastar escombros e deslocar fileiras de poltronas com corpos presos a elas
foi penoso demais. A luz da lanterna de Rayford estava diminuindo de intensidade e o
suprimento de ar reduzira sensivelmente. O ferimento em sua cabeça latejava, e ele se sentia
zonzo. Talvez Mac estivesse sentindo o mesmo, mas nenhum deles fez um gesto indicativo de
desistência.
Rayford sabia de antemão que sentiria um grande mal-estar no momento de revolver os
cadáveres, mas a sensação que tomou conta dele foi horrível. Que tarefa difícil! As vítimas
estavam boiando, completamente desfiguradas, com as mãos fechadas, braços flutuando,
bocas escancaradas, rostos apresentando tonalidade preta, vermelha ou roxa. Os cabelos
movimentavam-se tocados pela correnteza.
Rayford sentia dificuldade para respirar. Mac deu um leve toque nele, apontou para seu
manómetro e fez um sinal de dez com os dedos. Rayford tentou trabalhar mais rápido,
porém até aquele instante havia verificado só 60 ou 70 corpos, e não poderia terminar a tarefa
sem outro tanque de oxigénio. A partir de agora, teria apenas cinco minutos pela frente.
Bem abaixo dele estava uma fileira das poltronas do meio, todas intactas e de frente para o
bico da aeronave, como as demais, porém viradas um pouco de lado. Com sua lanterna fraca,
Rayford só conseguiu enxergar a parte posterior de cinco cabeças e dez calcanhares. Sete
sapatos haviam-se soltado dos pés. Ele nunca entendera por que os pés humanos se contraem
diante de uma violenta colisão. Calculou que essa fileira tinha sido arremessada sete metros
para a parte da frente da aeronave. Ele fez um gesto para que Mac segurasse um dos braços
da fileira de poltronas enquanto segurava o outro. Mac levantou um dedo, indicando que
faltava um minuto para eles subirem à superfície. Rayford assentiu.
Enquanto eles tentavam endireitar a fileira de poltronas, ela ficou presa em alguma coisa e eles
tiveram de recolocá-la no lugar e puxá-la novamente. Depois que ambos conseguiram levantála,
ela finalmente tombou para trás. Os cinco corpos estavam agora deitados de costas. Rayford
iluminou fracamente com a lanterna o rosto em pânico de um senhor idoso trajando terno e
colete. As mãos inchadas do homem flutuaram diante do rosto de Rayford. Rayford as afastou
com delicadeza e dirigiu o foco de luz para o passageiro ao lado. Era uma mulher de cabelos
grisalhos, olhos abertos e sem expressão. O pescoço e o rosto estavam sem cor e inchados,
mas os braços não se haviam levantado como os dos outros passageiros. Ela provavelmente
agarrara a sacola de seu laptop e enroscara sua tira na dobra do braço. Morreu com os dedos
entrelaçados e com as mãos presas entre os joelhos, tendo ao lado a sacola do computador.
Rayford reconheceu os brincos, o colar e o casaco. Ele queria morrer. Não conseguia desviar os
olhos dela. As íris haviam perdido a cor. Era uma imagem que Rayford jamais conseguiria
esquecer. Mac nadou apressado até ele, segurou-o pelos bíceps e puxou-o levemente. Confuso,
ele virou-se para Mac.
Mac deu um leve tapa no tanque de oxigénio de Rayford, que estava à deriva por ter perdido o
sentido do que estava fazendo. Ele não queria sair do lugar. De repente, sentiu as batidas
fortes de seu coração indicando que o oxigénio estava terminando. Ele não queria que Mac
soubesse disso. Foi tentado a sugar água suficiente para encher os pulmões e fazer companhia
à sua amada.
Mas Rayford sabia que seu amigo não permitiria que isso acontecesse. Mac não usara tão
rapidamente todo o seu suprimento de ar. Ele abriu os dedos de Amanda e passou a tira da
sacola sobre a cabeça, deixando o laptop suspenso atrás do tanque de oxigénio.
Rayford sentiu a presença de Mac, segurando-o pelas axilas. Rayford queria livrar-se dele, mas
ele foi mais esperto. Quando Rayford apresentou o primeiro sinal de resistência, Mac soltou as
duas mãos e prendeu os braços de Rayford impedindo-o de movimentar-se. Mac deu um
173
impulso com força e arrastou Rayford para longe da carcaça do 747, fazendo uma subida
controlada.
Rayford perdera a razão de viver. Quando eles chegaram à superfície, ele arrancou a máscara,
e soluços fortes brotaram de seu peito. Ele deu um grito tão alto que atravessou a escuridão
da noite e refletiu na solidão da agonia de sua alma. Mac conversava com ele, mas Rayford
não lhe dava atenção. Mac puxou-o com força, nadando e arrastando-o em direção à margem.
Apesar de ter respirado um pouco de ar fresco, Rayford parecia estar entorpecido, sem saber
se teria forças para nadar. Mas ele não queria fazer nenhum esforço. Sentia pena de Mac, que
se esforçava tanto para puxar um homem grande como ele pela escarpa enlameada do rio até
a areia.
Rayford continuava gritando, e o som de seu desespero chegou a assustá-lo. Mas ele não
conseguia parar. Mac arrancou a própria máscara, desamarrou os tanques de oxigénio de
Rayford e os soltou. Rayford rolou sobre a areia e deitou-se de costas, imóvel.
Mac retirou o capuz de Rayford e viu que havia sangue dentro de sua roupa. Os gritos de
Rayford transformaram-se em lamentos. Mac ficou agachado e respirou profundamente.
Rayford o observava, esperando que ele relaxasse e se afastasse dali, achando que era o fim.
Mas não era o fim. Rayford acreditara sinceramente que Amanda estava viva e que se reuniria
a ela. Ele atravessara períodos muito difíceis nos últimos dois anos, porém sempre recebera
uma dose de misericórdia suficiente para mantê-lo equilibrado. Agora não. Seria melhor pedir
que Deus o levasse? Ele não teria condições de enfrentar mais cinco anos sem Amanda.
Mac ficou em pé e começou a abrir o zíper de sua roupa de mergulho. Rayford levantou
lentamente os joelhos e afundou os calcanhares na areia. Fez isso com tanta força que sentiu
uma distensão nos tendões, enquanto seu corpo escorregava para dentro do rio. Como se a
ação estivesse rodando em câmera lenta, Rayford sentiu o ar fresco batendo no rosto
enquanto sua cabeça afundava na água. Ele ouviu Mac praguejar e gritar:
- Oh, não faça isso!
Mac teria de livrar-se de seus tanques antes de pular no rio. Rayford só esperava conseguir
esquivar-se de Mac no escuro ou que o amigo caísse em cima dele, deixando-o inconsciente.
Seu corpo afundou verticalmente na água, depois se virou e começou a subir. Ele não
movimentou um dedo sequer, na esperança de que o rio Tigre o envolvesse para sempre. Mas,
sem entender o motivo, ele não conseguia engolir a água que o mataria.
Rayford ouviu o baque de Mac na água e suas mãos esbarraram nele, agarrando seus pés.
Rayford não tinha forças para resistir. Do fundo do coração veio-lhe uma sensação de pena de
Mac, que não merecia isso. Não era justo causar-lhe tanto esforço. Lentamente, Rayford
começou a nadar em direção à barranca do rio, demonstrando a Mac que decidira cooperar
com ele. Assim que chegou à areia, ele caiu de joelhos e encostou o rosto no chão.
- Não sei o que lhe dizer neste momento, Ray. Mas preste atenção. Se você quiser morrer neste
rio hoje, vai ter de me levar junto. Entendeu?
Rayford assentiu, sentindo-se desprezível.
Sem dizer mais nada, Mac puxou Rayford para perto de si e examinou seu ferimento na
escuridão. Retirou as nadadeiras de Rayford, colocou-as ao lado da máscara em cima dos
tanques de oxigénio e entregou tudo nas mãos do amigo. Depois, pegou seu equipamento e
dirigiu-se para o helicóptero. Guardou suas coisas, ajudou Rayford a tirar a roupa de mergulho
como se fosse um menino preparando-se para dormir, e atirou-lhe uma toalha. Ambos
vestiram roupas secas.
O ferimento de Rayford começou a doer como se tivesse sido atingido por pedradas. Ele cobriu
a cabeça e curvou o corpo, mas sentiu dores agudas nos braços, pescoço e costas. Será que
havia se esforçado demais? Teria sido um tolo por ter continuado o mergulho com uma ferida
exposta? Quando ele levantou a cabeça, Mac estava preparando-se para subir no helicóptero.
- Entre, Ray! Está caindo chuva de granizo!
Buck sempre gostou de tempestades. Pelo menos até antes de conhecer a ira do Cordeiro.
Quando menino, ele sentava-se diante da janela panorâmica de sua casa em Tucson e
observava o violento temporal. No entanto, os fenómenos atmosféricos após o Arrebatamento
174
tinham o poder de deixá-lo assustado.
O Dr. Charles deixou instruções sobre o tratamento de Hattie e partiu para Kenosha. Quando a
tarde começou a escurecer por causa da aproximação da chuva, Chloe pegou cobertores extras
para Hattie, que dormia o tempo todo, enquanto Tsion e Buck fechavam as janelas.
- Vou correr um risco calculado - disse Tsion. Vou ligar meu computador nas baterias até que a
tempestade termine, mas continuarei conectado às linhas telefónicas.
- Pela primeira vez vou poder corrigir um intelectual brilhante - disse Buck rindo. - Você
esqueceu que estamos recebendo eletricidade de um gerador movido a gás, que dificilmente
será afetado pela tempestade. Sua linha telefónica está ligada à antena parabólica no telhado,
o ponto mais alto daqui. Se você estiver preocupado com relâmpagos, é melhor desligar o
telefone e ligar a fonte de energia.
- Jamais serei confundido com um eletricista - disse Tsion, balançando a cabeça. - A verdade é
que não tenho necessidade de conectar a Internet nas próximas horas. -
Depois de dizer isso, ele subiu a escada.
Buck e Chloe sentaram-se lado a lado aos pés da cama de Hattie.
- Ela está dormindo demais - disse Chloe. - E está muito pálida.
Buck refletia sobre os terríveis segredos que atormentavam Hattie. O que Rayford pensaria
sobre a possibilidade de Bruce ter sido envenenado? Rayford sempre achou estranha a
expressão serena de Bruce em comparação com a de outras vítimas do bombardeio. Os
médicos não chegaram a nenhuma conclusão sobre a enfermidade que ele contraíra no
Terceiro Mundo. Quem poderia pensar que Carpathia estava por trás disso?
Buck também se preocupava por ter matado o policial da Comunidade Global. A fita de vídeo
havia sido mostrada repetidas vezes em todos os canais de TV. Buck não suportou ver a cena
novamente, apesar de Chloe ter insistido que, de acordo com as imagens reproduzidas na fita,
ele não teve alternativa.
- Outras pessoas teriam morrido, Buck - ela disse. - E uma delas teria sido você.
Era verdade. Ele não podia chegar a outra conclusão. Por que, então, não se sentia satisfeito
por ter feito aquilo? Ele não nascera para ser um guerreiro. E, mesmo assim, estava na linha
de frente.
Buck segurou a mão de Chloe e puxou-a para perto de si. Ela encostou o rosto em seu peito, e
ele acariciou seu rosto machucado. O olho, ainda fechado pelo inchaço e com manchas roxas
ao redor, parecia estar melhorando.
- Eu a amo de todo o coração - ele disse, dando-lhe um leve beijo na testa.
Buck olhou de relance para Hattie. Fazia uma hora que ela não se mexia na cama.
A chuva de granizo começou a cair.
Buck e Chloe levantaram-se e observaram da janela as pequeninas pedras de gelo caindo com
força no jardim. Tsion desceu a escada correndo.
- Oh, meu Deus! Vejam isto!
O céu ficou negro e os granizos eram cada vez maiores, quase do tamanho de uma bola de
golfe. Batiam no telhado com força, provocando goteiras na casa, e ressoavam ao cair em cima
do Range Rover. A energia eletrica foi interrompida. Tsion tentou protestar, mas Buck o
tranquilizou.
- Os granizos bateram no fio e interromperam a energia, só isso. Um problema fácil de ser
consertado.
Enquanto eles observavam a tempestade, o céu iluminou-se. Mas não por causa de
relâmpagos. Os granizos, pelo menos metade deles, estavam em chamas!
- Oh, meus queridos! - disse Tsion. - Vocês sabem o que é isso, não? Vamos arrastar a cama
de Hattie para longe da janela! O anjo do primeiro Julgamento das Trombetas está atirando
saraiva e fogo à terra.
Rayford e Mac deixaram seus equipamentos de mergulho no chão, perto do helicóptero.
Protegido dentro da cabina, Rayford tinha a sensação de estar dentro de uma panela de
pipoca. Os granizos, cada vez maiores, batiam com força nos tanques de oxigénio e chegaram a
perfurar o helicóptero. Mac ligou o motor e acionou as hélices, sem saber para onde ir. Ele não
queria deixar os equipamentos de mergulho ali, e helicópteros não combinavam com chuvas de
175
granizo.
- Você não vai querer ouvir o que eu tenho a lhe dizer, Ray - ele gritou para abafar o barulho
da tempestade -, mas precisa deixar aqueles destroços e o corpo de sua mulher no lugar em
que estão. Eu também não gosto disso e entendo menos que você, mas creio que Deus vai
ajudá-lo a atravessar esta provação. Não balance a cabeça. Sei que ela era tudo para você.
Mas Deus o deixou aqui com um propósito. Eu preciso de você. Sua filha e seu genro precisam
de você. O rabino, de quem você tanto tem falado, também precisa de você. Só lhe peço uma
coisa. Não tome nenhuma decisão enquanto estiver dominado por emoções. Atravessaremos
isto juntos.
Rayford sentia-se desgostoso consigo mesmo, mas tudo o que Màc - o crente recém-convertido
- dizia soava-lhe como banalidades. Quer fossem verdadeiras ou não, ele não estava disposto a
ouvir.
- Seja sincero comigo, Mac. Você verificou a testa dela para ver se havia o selo?
Mac fez um trejeito com a boca e não respondeu.
- Você verificou, não? - pressionou Rayford.
- Sim.
- E não havia nada, havia?
- Não, não havia.
- O que devo deduzir disto?
- Como eu posso saber, Ray? Eu não era crente antes do terremoto. Também não sei se
naquela ocasião você já tinha o selo na testa.
- Provavelmente já!
- Talvez, mas você se lembra quando foi que o Dr. Ben- Judá explicou que os crentes estavam
começando a ver o selo na testa de seus irmãos? Foi depois do terremoto. Se eles tivessem
morrido no terremoto, não teriam recebido o selo. E mesmo que tivessem recebido, como
podemos saber se ele permanece na testa depois que a pessoa morre?
- Se Amanda não era crente, provavelmente estava trabalhando para Carpathia - disse Rayford.
- Mac, não sei como vou suportar isso.
- Pense em David - disse Mac. - Ele está à espera de nossa liderança e orientação, e sou tão
novato nisso quanto ele.
Quando, além de granizos, começaram a cair línguas de fogo do céu, Rayford apenas observou.
- Caramba! - Mac repetiu várias vezes. - Parece uma explosão de fogos de artifício!
Enormes granizos batiam com força no rio e eram levados pela correnteza. Acumulavam-se na
barranca e a areia ficou branca como a neve. Neve no deserto. Flechas incandescentes desciam
zunindo do céu e chiavam ao bater na água. O som era o mesmo quando elas caíam sobre os
granizos na margem do rio, e o fogo não se apagava imediatamente.
Os faróis do helicóptero iluminaram uma área a seis metros adiante. Mac desatou o cinto de
segurança e inclinou-se para a frente.
- O que é isto, Ray? Está chovendo, mas está tudo vermelho! Olhe lá! Por cima da neve!
- É sangue - disse Rayford, com uma sensação de paz inundando sua alma. Ela não amenizou
seu sofrimento nem levou embora suas terríveis suspeitas sobre Amanda. Mas esta
demonstração, esta chuva de fogo, sangue e gelo, o fizeram lembrar-se novamente de que
Deus é fiel. Ele cumpre suas promessas. Apesar de saber que os nossos caminhos não são os
caminhos de Deus e que não podemos entender seus planos enquanto vivermos aqui na
terra, mais uma vez Rayford teve certeza de que estava lutando ao lado do exército que já
vencera esta guerra.
Tsion correu até os fundos da casa e viu as chamas derretendo os granizos e incendiando o
gramado. As chamas arderam por alguns momentos e, em seguida, foram apagadas por outra
precipitação de granizos. O quintal inteiro estava escuro. Bolas de fogo caíam sobre as árvores
que circundavam o quintal. Elas explodiam em chamas e seus galhos lançavam uma
gigantesca fumaça alaranjada no ar, e esfriavam-se rapidamente.
- Aí vem o sangue - disse Tsion.
De repente, Hattie sentou-se na cama, olhou através da janela enquanto uma chuva de
sangue caía do céu. Ajoelhou-se com esforço na cama para poder ver mais adiante. O jardim
176
chamuscado estava molhado com uma mistura de gelo derretido e sangue.
Relâmpagos riscavam o céu e trovões ribombavam. Granizos um pouco maiores que bola de
beisebol batiam com força no telhado, rolavam e caíam no jardim. Tsion gritou:
- Louvado seja o Senhor Deus Todo-Poderoso, criador do céu e da terra! O que vocês estão
vendo é a representação do que está escrito em Isaías 1.18: "Ainda que vossos pecados são
como a escarlate, eles se tornarão brancos como a neve; ainda que são vermelhos como o
carmesim, se tornarão como a lã."
- Você está vendo isto, Hattie? - perguntou Chloe.
Hattie virou-se e Buck viu lágrimas em seus olhos. Ela fez um movimento afirmativo com a
cabeça, mas parecia atordoada. Buck ajudou-a a deitar-se novamente, e ela voltou a dormir.
Quando as nuvens começaram a dissipar-se e o sol voltou a brilhar, os resultados tornaram-se
óbvios. As cascas das árvores estavam negras e a folhagem queimada. Quando o gelo
derreteu e o sangue infiltrou-se no solo, a grama chamuscada ficou visível.
- A Bíblia diz que um terço das árvores e toda erva verde do mundo seriam queimados -
disse Tsion. - Espero que a energia seja logo restabelecida para ver como os porta-vozes de
Carpathia explicarão o que aconteceu.
Buck sentiu a mão de Deus empurrando-o para fazer alguma coisa. Ele queria que Hattie fosse
curada para que ela lhe contasse a verdade. O fato de Bruce Barnes ter sido envenenado por
Carpathia ou perdido a vida no primeiro bombardeio da Terceira Guerra Mundial não fazia
muita diferença diante daqueles acontecimentos. Mas se Hattie Durham tivesse alguma
informação sobre Amanda que confirmasse ou negasse o que Tsion encontrara nos arquivos de
Bruce, Buck estava disposto a ouvir.
Mac deixou o helicóptero ligado, mas Rayford estava sentindo muito frio. Como naquela parte
do mundo não havia nenhuma vegetação para ser queimada, o fogo e o sangue haviam sido
superados pelos granizos. O resultado foi a noite mais fria da história no deserto do Iraque.
- Fique aqui - disse Mac. - Vou buscar os equipamentos.
Rayford estendeu o braço para abrir a porta.
- Eu estou bem. Vou fazer a minha parte.
- Não! Não mesmo! Deixe-me fazer isso.
Rayford não queria admitir, mas sentiu-se agradecido por não precisar sair do helicóptero. Mac
começou a caminhar sobre o gelo derretido. Guardou o equipamento de mergulho atrás das
poltronas. Quando subiu a bordo novamente, estava carregando o laptop encharcado de
Amanda.
- Qual é a sua, Mac? Estas coisas não são à prova d'água.
- É verdade - disse Mac. - A tela está furada e os painéis solares em péssimo estado, o teclado
não funciona, a placa-mãe desapareceu. A água estragou tudo menos o disco rígido. Ele está
dentro de uma embalagem à prova d'água. Os técnicos poderão examiná-lo e copiar qualquer
arquivo que você desejar.
- Não espero encontrar nenhuma surpresa.
- Desculpe-me a franqueza, Rayford - disse Mac -, mas você não esperava encontrá-la no rio
Tigre. Se eu estivesse em seu lugar, procuraria encontrar evidências para provar que Amanda
era tudo o que você pensava que ela era.
- Eu teria de recorrer a alguém que conheço, como David Hassid ou outra pessoa que mereça
minha confiança.
- Você está querendo dizer David ou eu.
- Se houver alguma novidade má aí dentro, não quero que um estranho descubra antes de
mim. Por que você não cuida disso, Mac? Nesse ínterim, não quero nem pensar no assunto. Se
eu pensar muito, vou quebrar a promessa que fiz a você e exigir que Carpathia se retrate e
limpe o nome de Amanda na frente de todos aqueles que o ouviram falar mal dela.
- Você não pode fazer isso, Ray.
- Talvez eu não me controle se tiver acesso exclusivo a esse computador. Faça isso por mim e
me informe o que descobriu.
- Não sou um especialista no assunto, Ray. Que tal se eu contar com a ajuda de David ou pedir
177
que ele me ensine a lidar com isto? Não vamos examinar apenas um arquivo. Vamos examinar
tudo o que estiver aqui.
Nicolae Carpathia anunciou o adiamento da viagem em razão do "estranho fenómeno natural"
e seus efeitos sobre a reconstrução do aeroporto.
Ao longo das semanas seguintes, enquanto o contingente de Chicago do Comando Tribulação
preparava-se para a viagem para Israel, Buck ficou surpreso diante da melhora de Chloe. O
gesso foi tirado pelo Dr. Charles Floyd e, em questão de dias, os músculos atrofiados
começaram a voltar ao normal. Talvez ela ficasse com algumas sequelas, tais como dificuldade
para locomover-se, dores residuais e uma leve lesão no rosto e na ossatura. Mas, para Buck,
ela nunca parecera estar tão bem. Sua conversa girava em torno da viagem a Israel para
presenciar a incrível concentração das testemunhas.
As primeiras 25.000 testemunhas a chegar deveriam encontrar-se com Tsion no Estádio Teddy
Kollek. O restante reunir-se-ia em alojamentos por toda a Terra Santa, vendo tudo por um
circuito fechado de TV. Tsion contou a Buck que planejava convidar Moisés e Eli para
comparecerem ao lado dele no estádio.
Após o granizo, fogo e sangue enviados por Deus o número de cépticos reduziu sensivelmente.
Não havia mais ambiguidade acerca da guerra. O mundo estava tomando partidos.
Quase um mês após a noite em que Rayford descobrira o corpo de Amanda, David Hassid
presenteou-o com um disquete de alta tecnologia contendo todos os arquivos relacionados no
computador de Amanda.
- Todos estão em código e não podem ser lidos sem a devida decodificação - disse-lhe David.
Rayford comportava-se com tal frieza na frente de Carpathia e Fortunato, mesmo quando era
forçado a levá-los de um lugar para outro, que chegou a acreditar que os dois estavam
entediados dele. Ótimo. Enquanto Deus não o liberasse de sua tarefa, ele a suportaria.
O progresso da reconstrução ao redor do mundo causava admiração a Rayford. As equipes de
Carpathia trabalhavam sem parar em estradas, pistas de aeroportos, cidades, rotas comerciais.
O centro de turismo, comércio e governo tinha sido transferido para o Oriente Médio, Iraque,
Nova Babilónia, a capital do mundo.
O ferimento na cabeça de Rayford sarou rapidamente, mas seu coração ainda doía. Ele passava
os dias chorando, orando, estudando, acompanhando atentamente os ensinamentos de Tsion
pela Internet e enviando e-mails diários para Buck e Chloe.
Mantinha também a mente ocupada fazendo roteiros de viagem, aconselhando David Hassid e
doutrinando Mac. Nos primeiros dias após o mergulho no Tigre os papéis de ambos haviam se
invertido quando Mac precisou ajudar Rayford a atravessar o período mais crítico de sofrimento.
Rayford teve de admitir que Deus lhe renovava as forças a cada dia. Nenhuma força extra,
nada para ele investir no futuro, mas suficiente para o dia.
O povo ao redor do mundo implorava por conhecer a Deus. Seus pedidos inundavam a
Internet. Tsion, Chloe e Buck trabalhavam dia e noite correspondendo-se com os novos
convertidos e fazendo planos para a concentração em massa na Terra Santa.
O estado de saúde de Hattie não melhorava. O Dr. Charles localizou uma clínica médica
secreta, mas finalmente disse a Buck que tomaria conta dela ali mesmo enquanto eles
estivessem em Israel. Seria arriscado para ambos, e ela talvez tivesse de ficar sozinha por
algum tempo, mas isso era o melhor que ele podia fazer.
Buck e Chloe oravam por Hattie todos os dias. Chloe confidenciou a Buck:
- A única coisa que poderá impedir-me de ir com vocês é se Hattie não aceitar a Cristo antes
de minha partida. Não posso deixá-la neste estado.
Buck tinha seus motivos para desejar que ela sarasse. A salvação dela estava em primeiro
lugar, é claro, mas ele precisava saber de coisas que só ela poderia contar-lhe.
Por meio de informações obtidas de David Hassid e da própria observação, Rayford percebeu o
quanto Carpathia estava furioso com Tsion Ben-Judá, com as duas testemunhas, com a próxima
conferência e, principalmente, com o número cada vez maior de pessoas interessadas em Cristo.
178
Carpathia sempre fora um homem motivado e disciplinado, mas agora estava claro que ele
trabalhava visando um objetivo. Seus olhos tinham uma expressão selvagem, e seu rosto
estava tenso. Levantava-se muito cedo todos os dias e trabalhava até altas horas da noite.
Rayford esperava que ele entrasse em delírio de tanto trabalhar. Seu dia está próximo, pensava
Rayford, e espero que Deus me permita apertar o gatilho.
Dois dias antes da data programada para a partida rumo à Terra Santa, Buck acordou com o
som de um bip em seu computador. Havia uma mensagem de Rayford que dizia: "Está
acontecendo! Ligue a TV. Vai ser eletrizante!"
Buck desceu a escada na ponta dos pés e ligou a TV, procurando as emissoras de notícias.
Assim que ele viu o que estava se passando, despertou todos da casa, exceto Hattie. Ele disse
a Chloe, Tsion e Ken:
- É quase meio-dia na Nova Babilónia, e acabei de receber uma mensagem de Rayford. Venham
comigo.
Os telejornais de TV contavam a história do que os astrónomos haviam descoberto duas horas
antes - um cometa novo em rota de colisão com a terra. Os cientistas da Comunidade Global
analisaram os dados transmitidos pelas sondas lançadas no espaço que circundavam o objeto.
Disseram que meteoro não era a palavra exata para aquela formação rochosa, que tinha a
consistência de giz ou talvez de arenito.
As imagens vindas das sondas mostravam um projétil de forma irregular, de cor clara. O
jornalista dizia:
"Senhoras e senhores, peço que observem essas imagens com atenção. Este objeto está
prestes a entrar na atmosfera terrestre. Os cientistas ainda não determinaram sua
composição, mas se - conforme parece - ele for menos denso que granito, o atrito com a
atmosfera o fará explodir em chamas.
Quando ele for atraído para a força de gravidade da terra, atingirá uma velocidade
descomunal. Conforme os senhores podem ver por estas imagens, ele é imenso. Porém,
enquanto não soubermos qual é o seu tamanho aproximado, não podemos imaginar seu
potencial de destruição. Os astrónomos da CG calculam que ele pode ser comparado à cadeia
dos Montes Apalaches. Tem potencial para partir a terra ao meio ou deslocá-la de sua órbita.
O Ministério da Aeronáutica e Administração Espacial da Comunidade Global estima que a
colisão se dará aproximadamente às nove horas da manhã, horário da região central dos
Estados Unidos. Eles prevêem que o fenómeno ocorrerá no meio do Oceano Atlântico.
"Ondas imensas poderão cobrir as duas margens do Atlântico até uma extensão de 80
quilómetros. Neste momento, as áreas costeiras estão sendo evacuadas. Tripulações e
passageiros de navios em pleno mar estão sendo içados por helicópteros, apesar de não
sabermos quantas pessoas poderão ser retiradas a tempo. Especialistas concordam que o
efeito devastador sobre a vida marinha será incalculável.
"Sua Excelência potentado Nicolae Carpathia emitiu um pronunciamento declarando que seu
pessoal não teve condições de prever este fenómeno. Embora o potentado Carpathia diga estar
confiante de que possui armamento de fogo para destruir o objeto, ele foi informado que os
locais por onde se espalharão os fragmentos correrão grandes riscos, principalmente
considerando que a montanha cadente está prestes a afundar no mar."
Os componentes do Comando Tribulação pegaram seus computadores para transmitir ao mundo
que esse era o segundo Julgamento das Trombetas profetizado em Apocalipse 8.8-9.
Tsion escreveu o seguinte: "Será que estamos agindo como videntes se os resultados estão
diante de nós? Será que isso chocará os poderosos quando eles descobrirem, conforme a
Bíblia diz, que um terço dos peixes morrerá e um terço dos navios afundará, e que ondas
imensas causarão devastação no mundo inteiro? Ou será que os governantes darão uma nova
interpretação a esse evento para parecer que a Bíblia estava errada? Não sejam tolos! Não se
demorem! É chegada a hora de aceitar. Chegou o dia da salvação. Aceitem a Cristo antes que
seja tarde demais. As coisas vão piorar cada vez mais. Fomos deixados para trás na primeira
oportunidade. Tomem uma decisão antes de dar o último suspiro."
179
As forças militares da Comunidade Global posicionaram aeronaves com câmeras instaladas em
locais estratégicos para filmar a colisão mais espetacular da História.
Finalmente, constatou-se que a montanha de mais de 1.600 metros quadrados consistia na
maior parte de enxofre, que explodiu em chamas assim que entrou na atmosfera. A montanha
eclipsou o sol, deslocou as nuvens de seu trajeto e produziu ventos com força de furacões
entre ela e a superfície do mar durante a última hora em que despencou do céu. Quando ela
bateu no mar, fez subir um jato de água quente a quilómetros de altura, acompanhado de
trombas d'água e tufões, que inundaram vários aviões da CG. Durante semanas, as imagens
filmadas desse fenómeno foram levadas ao ar 24 horas por dia na TV.
A devastação na região costeira foi tão extensa a ponto de interromper quase todos os meios
de transporte. A concentração das testemunhas judaicas em Israel foi adiada por dez semanas.
As duas testemunhas diante do Muro das Lamentações partiram para a ofensiva, ameaçando
prosseguir com a seca na Terra Santa que perdurava desde o dia da assinatura do tratado
entre o anticristo e Israel. Os dois prometeram transformar rios em sangue em retaliação a
qualquer ameaça que os evangelistas selados por Deus viessem a sofrer. Em seguida, em uma
demonstração cómica de poder, eles clamaram a Deus para que chovesse apenas no Monte do
Templo por sete minutos. Do céu sem nuvens caiu uma chuva quente que transformou o pó
em lama, fazendo com que os israelenses saíssem de suas casas. As pessoas levantavam as
mãos, olhavam para cima e punham a língua para fora. Cantavam e dançavam porque esse
milagre significava grandes colheitas. Porém, sete minutos depois, a chuva parou e evaporouse,
a lama transformou-se em pó que foi soprado pelo vento.
"Ai de vós, que zombais do único e verdadeiro Deus!", gritaram Eli e Moisés. "Enquanto não
chegar o tempo certo, quando Deus permitir que sejamos lançados por terra para depois nos
levar para junto dele, não tereis nenhum poder sobre nós nem sobre aqueles a quem Deus
chamou para proclamar seu nome por toda a terra!"
A princípio Rayford sentiu-se animado pelas palavras de conforto recebidas de Chloe, Buck e
Tsion pela morte de Amanda. Porém, quando ele começou a exaltar suas virtudes, via e-mail,
as respostas foram ficando mornas. Será que eles estavam sendo sugestionados por Carpathia?
Eles conheciam e amavam Amanda o suficiente para acreditar que ela era inocente.
Finalmente, chegou o dia em que Rayford recebeu uma longa mensagem de Buck, que
terminava desta forma: "Nossa paciente melhorou o suficiente para poder contar alguns
segredos do passado que a impediam de dar um passo vital na direção do Criador. Essa
informação é alarmante e reveladora. Só poderemos conversar sobre ela pessoalmente,
portanto peço que você coordene um encontro entre nós dois assim que for possível."
Rayford sentiu um profundo abatimento. Será que aquela mensagem significava que Hattie
havia esclarecido as acusações que pesavam sobre Amanda? Se Hattie não tivesse meios de
provar a falsidade de tais acusações, Rayford não teria pressa nenhuma em se encontrar com
Buck.
Poucos dias antes da partida reprogramada do Comando Tribulação para Israel, o Ministério da
Aeronáutica e Administração Espacial da CG detectou novamente uma ameaça vinda do céu.
Tratava-se de um objeto semelhante em tamanho à montanha incandescente, mas tinha a
consistência de madeira podre. Carpathia, na ânsia de desviar para si a atenção do povo
dirigida a Cristo e a Ben-Judá, comprometeu-se a abatê-lo no céu.
A imprensa mostrou, com grande estardalhaço, o lançamento de um gigantesco míssil nuclear
destinado a fazer evaporar a nova ameaça. Enquanto o mundo inteiro observava, o meteoro
em chamas ao qual a Bíblia dava o nome de Absinto, desintegrou-se em bilhões de partículas
antes da chegada do míssil. Os resíduos voaram à deriva durante horas e caíram sobre um
terço das fontes, nascentes e rios da terra, cujas águas se tornaram amargas e venenosas.
Milhares de pessoas morreriam ao bebê-las.
Mais uma vez, Carpathia comunicou sua decisão de adiar a conferência em Israel. Mas Tsion
Ben-Judá não tomou conhecimento. Enviou sua resposta pela central de boletins da Internet e
180
insistiu para que o maior número possível das 144.000 testemunhas se concentrasse em Israel
na semana seguinte.
"Sr. Carpathia", ele escreveu, deixando de usar de propósito os outros títulos, "estaremos em
Jerusalém conforme programado, com ou sem sua aprovação, permissão ou proteção
prometida. A glória do Senhor será a nossa retaguarda."
A lista dos arquivos em código extraídos do disco rígido do computador de Amanda evidenciava
numerosa correspondência entre ela e Nicolae Carpathia. Apesar do medo que sentia, Rayford
estava ansioso por decodificá-los. Tsion lhe contara sobre o programa de Donny que revelou
materiais contidos no arquivo de Bruce. Se Rayford pudesse ir para Israel quando o restante do
Comando Tribulação estivesse lá, poderia finalmente desvendar aquele terrível mistério.
Por que sua filha e seu genro não o tranquilizavam? A cada dia Rayford sentia-se pior,
convencido de que seus entes queridos haviam sido sugestionados e que não havia nada a
fazer para dissuadi-los. Ele não tinha feito perguntas diretas nem pedido a opinião deles. Não
seria necessário. Se eles ainda estivessem do seu lado - e do lado da memória de sua mulher -
ele saberia.
Rayford acreditava que a única maneira de inocentar Amanda seria decodificar seus arquivos,
mas ele teria de correr o risco. Teria de enfrentar o que lhe fosse revelado. Será que ele queria
conhecer a verdade? Quanto mais orava sobre isso, mais convencido ficava de que não devia
temer a verdade.
Dependendo do que ele descobrisse, sua atitude em relação ao Comando Tribulação mudaria.
Se a mulher com a qual ele compartilhara sua vida o enganara, em quem mais poderia confiar?
Se ele não sabia julgar o caráter de uma pessoa, que bem poderia fazer no trabalho pela causa
de Cristo? Dúvidas malucas permeavam sua mente, mas ele precisava conhecer a verdade.
Quer ela tivesse sido uma mulher apaixonada ou mentirosa, esposa ou feiticeira, ele precisava
saber.
Na manhã da véspera do início da mais famosa concentração em massa do mundo, Rayford
aproximou-se de Carpathia em seu escritório.
- Sua Excelência - ele começou a dizer, engolindo qualquer vestígio de orgulho -, estou
entendendo que o senhor vai precisar de Mac e de mim para levá-lo a Israel amanhã.
- Não me venha com essa conversa, capitão Steele. Eles estão se reunindo contra a minha
vontade, portanto, não tenho a intenção de dar um aval com minha presença.
- Mas o senhor prometeu proteger...
- Ah, isso também mexeu com você, não?
- O senhor conhece minha posição.
- E você também sabe que sou eu quem diz para onde devo ir, e não vice-versa. Você não acha
que se eu quisesse estar em Israel amanhã já não lhe teria dito isso antes?
- Então, quer dizer que aqueles que imaginam que o senhor está com medo daquele estudioso
que...
- Medo!
- ... o desmascarou via Internet e que o chamou de enganador diante de pessoas do mundo
inteiro...
- Você está tentando me seduzir, capitão Steele – disse Carpathia, sorrindo.
- Francamente, acredito que o senhor sabe que vai ser destronado em Israel pelas duas
testemunhas e pelo Dr. Ben-Judá.
- Pelas duas testemunhas? Se aqueles dois não pararem com aquela história de magia negra,
falta de chuva e sangue, vão ter de se explicar comigo.
- Eles dizem que o senhor não pode fazer nada que os prejudique até o tempo certo.
- Eu vou decidir qual é o tempo certo.
- Apesar disso, a nação de Israel foi protegida do terremoto e dos meteoros...
- Você acredita que as testemunhas são responsáveis por isso?
- Acredito que Deus é o responsável.
- Diga-me uma coisa, capitão Steele. Você ainda acredita que um homem com poderes de
ressuscitar uma pessoa possa ser o anticristo?
181
Rayford hesitou, desejando que Tsion estivesse presente.
- O inimigo é conhecido por imitar milagres - ele disse. - Imagine qual seria a reação do
público em Israel se o senhor fizesse algo parecido. Lá estarão pessoas de fé em busca de
inspiração. Se o senhor é Deus, se pode ser o Messias, eles não ficariam emocionados por
conhecê-lo?
Carpathia encarou Rayford, parecendo esquadrinhar seus olhos. Rayford acreditava em Deus.
Acreditava que, apesar de seu poder e de suas intenções, Nicolae estaria de mãos atadas
diante de qualquer uma das 144.000 testemunhas que haviam sido seladas na testa pelo Deus
Todo-Poderoso.
- Se você está sugerindo - disse Carpathia, escolhendo as palavras - que é importante que o
potentado da Comunidade Global conceda a esses convidados uma recepção suntuosa
como eles jamais viram, talvez tenha razão.
Rayford não havia dito nada que se referisse a isso, mas Carpathia ouviu o que queria ouvir.
- Obrigado - ele disse.
- Capitão Steele, prepare o roteiro do vôo.
182
De que lado você vai ficar?
Rayford Steele e Buck Williams temem estar sozinhos. Os dois sobreviveram a um
terremoto mundial ocorrido no 21° mês da Tribulação. Um não sabe que o outro está
vivo, e ambos empreendem uma busca desesperada na tentativa de encontrar suas
respectivas esposas. O mentor do grupo, Tsion Ben-Judá, está preso em um abrigo
subterrâneo. E ninguém sabe o que aconteceu com Hattie Durham, uma velha amiga
do grupo. Enquanto o mundo caminha a passos largos rumo à grande colheita de almas
profetizada na Bíblia Sagrada, Rayford e Buck tentam resgatar pessoas queridas de
todos os lugares.
Tsion conseguirá sair são e salvo do abrigo? Chloe será encontrada viva? E Amanda? E
Hattie? E quanto às terríveis acusações que pesam sobre os ombros de Amanda? Rayford
está determinado a limpar o nome da esposa, quer ela esteja viva ou morta.
A medida que as profecias dos julgamentos vão-se cumprindo, o número de céticos
diminui. Até mesmo os inimigos já sabem contra quem estão lutando, e o mundo é
obrigado a decidir de que lado vai ficar.
A E S C O L H A E S T A F E I T A
COLHEITA*
TIM LAHAYE
JERRY B. JENK1NS
Tim LaHaye é escritor, pastor, comentarista de rádio e TV e palestrante na área de vida
familiar. E estudioso de longa data de assuntos relacionados a profecia e sinais dos tempos.
Autor de grande sucesso, já escreveu 34 livros com mais de 11 milhões de exemplares
impressos em mais de 30 idiomas. Ele vive com sua esposa, Beverly, no sul da Califórnia.
Jerry B. Jenkins é autor e conferencista. Escreveu mais de cem livros e já esteve na lista
dos mais vendidos do The New York Times por três vezes. Escreveu artigos para a Reader's
Digest e para dezenas de periódicos literários: biografias, obras sobre casamento e família,
ficção para crianças e ficção para adultos. Ele vive com sua esposa, Dianna, no norte de
Chicago.
Prepare-se para a Grande Colheita!
A Colheita levará você, leitor, do Iraque até os Estados Unidos, de quilómetros de
insegurança no ar até abrigos subterrâneos, das areias do deserto até o fundo do rio Tigre,
do caminho da esperança até a contemplação de devastações e vice-versa - tudo isso
girando em torno de uma busca incessante pela verdade e pela sobrevivência.
A Colheita é o quarto livro da série que narra o drama das pessoas que foram deixadas
para trás por ocasião do Arrebaramento. Os três primeiros livros da série figuram entre os
mais rapidamente vendidos na área de obras de ficção, tendo cada título alcançado o
primeiro lugar na lista dos best-sellers da CBA - Christian Booksellers Association - a
partir de seu lançamento. Os direitos dos dois primeiros títulos foram vendidos para a
indústria cinematográfica.
Acompanhe a aventura arriscada do Comando Tribulação quando cada elemento do grupo
tenta sobreviver e lutar contra o anticristo até o dia do Glorioso Aparecimento de Cristo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário